Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
EID&A
Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação
ISSN 2237-6984
Editores
Eduardo Lopes Piris
Moisés Olímpio Ferreira
Editores
Eduardo Lopes Piris • Moisés Olímpio Ferreira
Comitê Científico
Ana Maria Di Renzo (UEMT) • Ana Soledad Montero (UBA) • Ana Zandwais (UFRGS) • Anna
Flora Brunelli (UNESP) • Carlos Piovezani (UFSCar) • Claudia Stumpf Toldo (UFP) • Christian
Plantin (ICAR/CNRS) • Cristian Tileaga (U.Loughborough) • Eduardo Chagas Oliveira (UEFS) •
Eduardo Lopes Piris (UESC) • Edvânia Gomes da Silva (UESB) • Eliana Alves Greco (UEM) •
Eugenio Pagotti (UFS) • Emília Mendes Lopes (UFMG) • Galia Yanoshevsky (U.Tel-Aviv) •
Gilberto Nazareno Telles Sobral (UNEB) • Grenissa Bonvino Stafuzza (UFG) • Helena Nagamine
Brandão (USP) • Isabel Cristina Michelan Azevedo (ABEC) • Ivo José Dittrich (UniOeste) • John E.
Richardson (U.Newcastle) • José Niraldo de Farias (UFAL) • Juan Eduardo Bonnin (UBA) • Juan
Marcelo Columba-Fernández (UPCEA) • Juciane dos Santos Cavalheiro (UEA) • Leonildo Silveira
Campos (UMESP) • Lineide Salvador Mosca (USP) • Luciana Salazar Salgado (UFSCar) • Luciano
Novaes Vidon (UFES) • Manuel Alexandre Júnior (U.Lisboa) • Márcia Regina Curado Pereira
Mariano (UFS) • Maria Adélia Ferreira Mauro (USP) • Maria Alejandra Vitale (UBA) • Maria
Amélia Chagas Gaiarsa (UCSal) • Maria de Lourdes Faria dos Santos Paniago (UFG) • Maria Eliza
Freitas do Nascimento (UERN) • Maria Emília de Rodat de Aguiar Barreto Barros (UFS) • Maria
Helena Cruz Pistori (PUC/SP) • Maria Rosa Petroni (UFMT) • Maria Teresinha Py Elichirigoity
(UFRGS) • Marianne Doury (CNRS) • Marie-Anne Paveau (U.Paris XIII) • Marisa Grigoletto (USP)
• Moisés Olímpio Ferreira (USP) • Nelson Barros da Costa (UFC) • Nilton Milanez (UESB) • Ricardo
Henrique Resende de Andrade (UFRB) • Rui Alexandre Grácio (U.Aveiro) • Ruth Amossy (U.Tel-
Aviv) • Ruth Wodak (U.Lancaster) • Sírio Possenti (UNICAMP) • Soeli Maria Schreiber da Silva
(UFSCar) • Sophie Moirand (U.Paris III) • Soraya Maria Romano Pacifico (USP) • Valdir Heitor
Barzotto (USP) • Wander Emediato de Souza (UFMG) • William Augusto Menezes (UFOP) •
William M. Keith (U.Wisconsin) • Zilda Gaspar Oliveira de Aquino (USP)
Tradutores
Inglês: Cleide Lúcia da Cunha Rizério e Silva • Gabriel do Nascimento Santos • Kelly Cristina de
Oliveira • Laurenci Barros Esteves • Mário Bonazza de Carvalho • Moisés Olímpio Ferreira
Francês: Carlos Alberto Magni • Eduardo Lopes Piris • Moisés Olímpio Ferreira • Rodrigo dos
Santos Mota • Sébastien Giuliano Giancola • Sérgio Israel Levemfous • Silvana
Gualdieri Quagliuolo Seabra • Thaise Almeida dos Santos
Espanhol: Cristina do Sacramento Cardôso de Freitas • Ludmila Scarano Coimbra
Revisores
Denise Gonzaga dos Santos Brito • Eduardo Lopes Piris • Maria Helena Cruz Pistori • Mirélia
Ramos Bastos Marcelino • Moisés Olímpio Ferreira • Roberto Santos de Carvalho
Capa e logotipo
Laurenci Barros Esteves
Diagramação
Eduardo Lopes Piris
Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação
i
Doutorando em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo, Brasil, sob a orientação da Profa. Dra.
Lineide Salvador Mosca e coorientação do Prof. Dr. Henrique Graciano Murachco. E-mail: moisesolim@usp.br.
ii
Quanto às traduções dos textos em grego ou hebraico, a fim de auxiliar a sua leitura, utilizamos os seguintes símbolos:
1- ( ) – opção de tradução; 2-[ ] – texto omitido em alguns manuscritos; 3-{ } – termo subentendido (real ou possível).
iii
Em nossa transcrição das palavras gregas, preferimos a forma êthos (h=qoj: caráter, modo de ser) para diferenciá-la de
éthos (e;qoj: costume, hábito). Além disso, procuramos manter a acentuação original de todas as palavras por nós
transcritas neste artigo: lógos, páthos, dóxa etc.
104
Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação
Abstract: This paper aims to reflect on the discursive construction of the orator,
by observing the changes that this representation is submitted in front of his
audience. The corpus is constituted by the St. Paul’s speech at Lystra, recorded in
Acts 14.15-17. The theoretical basis for this study is the concepts of the New
Rhetoric of Chaim Perelman, and his successors. In regard to the grammar of the
Greek language, we use the theoretical framework of Henrique Murachco. There
is no doubt that the New Rhetoric has brought life to the rhetorical-argumentative
study. The analysis of the operations of the persuasion, which is presented in a
more diverse range of discursive modes, can be sustained in this theory in order to
understand and describe the processes by which the orator is committed to achieve
his aim, that is, the agreement of the audience. Concepts such as ethos, logos,
pathos, doxa, etc. support the consideration of the various maneuvers of influence,
because of the projected image of the orator, which supports his or her arguments
in the universe of beliefs, values and admitted passions, is manifested in the
speech, but not before having suffered coercion from representations of those to
whom it is concerned. As the orator is built by the image of his audience,
adjustments will be categorically needed to show if he wants to achieve agreement
and participation. In fact, ethos and pathos are integrated, considering that the
communion of spirits and persuasive operations will be established through
representations that one makes for each other. While the orator projects himself
and his audience by his way of saying, making the sense come into existence
through his speech, the audience recognizes the orator’s character through this
speech, and at the same time, it (re)builds the sense, evaluating the ethos and the
logos, giving them degrees of identification, and accepting or not their legitimacy.
105
FERREIRA, Moisés Olímpio. Hermes está entre nós! O discurso de S. Paulo em Listra. EID&A - Revista Eletrônica de
Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.1, p. 104-116, nov. 2011.
106
FERREIRA, Moisés Olímpio. Hermes está entre nós! O discurso de S. Paulo em Listra. EID&A - Revista Eletrônica de
Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.1, p. 104-116, nov. 2011.
107
FERREIRA, Moisés Olímpio. Hermes está entre nós! O discurso de S. Paulo em Listra. EID&A - Revista Eletrônica de
Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.1, p. 104-116, nov. 2011.
108
FERREIRA, Moisés Olímpio. Hermes está entre nós! O discurso de S. Paulo em Listra. EID&A - Revista Eletrônica de
Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.1, p. 104-116, nov. 2011.
109
FERREIRA, Moisés Olímpio. Hermes está entre nós! O discurso de S. Paulo em Listra. EID&A - Revista Eletrônica de
Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.1, p. 104-116, nov. 2011.
vez que aquele era o mais velho e este o fazendo (realizante do) bem; do céu dando
dirigente do discurso (o` h`gou,menoj tou/ lo,gou (dante) a vós chuvas e tempos oportunos
portadores de frutos, enchendo (que enche)
- Atos 14.12). O sacerdote de Zeus da cidade, completamente de alimento e de
em atitude de adoração, trouxe touros contentamento (alegria) os corações de vós
(tau,rouj) e coroas (ste,mmata) para oferecer- (Atos 14.15-18).
lhes em sacrifícios (Atos 14.13).
Nesses versículos, o narrador simula a sua
Em razão dos habitantes falarem entre si em ausência; o discurso direto produz o efeito de
língua nativa (licaônica), os evangelistas não realidade, não sendo, portanto, um simples
entendiam o que estava acontecendo, não recurso léxico-poético. Ao ser “recriado” no
imaginando o ritual que estava prestes a se “laboratório discursivo”, o simulacro da
realizar. Quando, porém, caíram em si, enunciação construído em forma de discurso
rasgaram os seus mantos em sinal de alheio produz o efeito de vivificação da fala,
reprovação e começaram a gritar que eram que a torna próxima do narratário. Esse
simples humanos anunciantes do bom- recurso é encontrado em todos os discursos
anúncio: paulinos registrados no livro de Atos dos
15. a;ndrej( ti, tau/ta poiei/teÈ kai. h`mei/j
Apóstolos.
o`moiopaqei/j evsmen u`mi/n a;nqrwpoi Para relatar o evento, o narrador outorga a
euvaggelizo,menoi u`ma/j avpo. tou,twn tw/n
matai,wn evpistre,fein evpi. qeo.n zw/nta( o]j palavra ao interlocutor, inaugurando um novo
evpoi,hsen to.n ouvrano.n kai. th.n gh/n kai. e autônomo sistema enunciativo, com as
th.n qa,lassan kai. pa,nta ta. evn auvtoi/j\ categorias de pessoa, tempo e espaço que lhe
são pertinentes. O discurso reportado,
Homens, que coisas essas estais fazendo? simulacro da enunciação construído pelo
Também nós somos sofrentes (sofredores)
semelhantes a vós, homens que vos narrador, é a produção de uma enunciação
anunciam {o bom-anúncio}, a partir dessas dentro de outra: o discurso citado dentro do
coisas vãs, virardes para sobre (voltardes citante, pertencentes a diferentes situações
para sobre) {o} Deus vivente, que fez o céu enunciativas.
e a terra e o mar e todas as coisas {que
estão} neles; Assim, no discurso paulino, embora não
estejamos no nível do “eu projetado” (nível
16. o]j evn tai/j parw|chme,naij geneai/j discursivo do narrador), mas no do “eu
ei;asen pa,nta ta. e;qnh poreu,esqai tai/j
o`doi/j auvtw/n\ personagem” (nível discursivo do
interlocutor), essas categorias naturalmente se
que nas gerações passadas permitiu todos instalam: é um novo eu que diz eu no agora e
os gentios irem pelos caminhos deles, no aqui que lhe pertencem: é um novo sujeito
que ao dizer eu instaura, por necessidade, um
17. kai,toi ouvk avma,rturon auvto.n5 avfh/ken
avgaqourgw/n( ouvrano,qen u`mi/n u`etou.j didou.j
tu interlocutário correspondente às suas
kai. kairou.j karpofo,rouj( evmpiplw/n condições espaço-temporais. Assim
trofh/j kai. euvfrosu,nhj ta.j kardi,aj u`mw/nÅ estabelecido, é o eu-aqui-agora (triângulo
dêitico enunciativo - PARRET, 1988, p. 169)
e também não {os} deixou ir sem do interlocutor que nos interessam.
testemunho em relação a si mesmo,
Infere-se, portanto, que não só a categoria
5 Conforme Nestle-Aland (1985, p. 363), há a seguinte pessoa deve ser compreendida como elemento
variante textual: “auvto,n: für dieses Wort (para esta para (re)construção do sentido produzido, mas
palavra) e e`auto,n”, daí au`to,n, que é a melhor opção para também as noções adjacentes de lugar e de
a constituição semântica do versículo e que seguimos tempo, que se estabelecem a partir do
em nossa tradução.
110
FERREIRA, Moisés Olímpio. Hermes está entre nós! O discurso de S. Paulo em Listra. EID&A - Revista Eletrônica de
Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.1, p. 104-116, nov. 2011.
momento em que eu diz eu: Toda estrutura da anunciantes) {o bom-anúncio} - 14.7; por
língua se organiza ao redor daquele-que-diz- outro lado, não só Paulo confirma esse
eu e de sua referência ao seu papel, outorgado trabalho: homens que vos anunciam {o bom-
pela comunidade (PARRET, 1988, p. 163). anúncio} - 14.15, mas também o próprio
Em conjunto, pela ancoragem histórica que auditório ao chamá-lo de Hermes, porque era
estabelecem, criam o efeito de referência dirigente do discurso – 14.12. Para nós, a
externa tão caro à persuasão, em razão da importância dos poucos versículos não é
produção de “verdade” que promove, como pequena, tendo em vista que nos revelam tanto
afirma Barros (1990): uma parcela do discurso persuasivo anunciado,
quanto as reações passionais dos evangelistas
Partindo do princípio de que todo discurso (de distanciamento quanto ao equívoco da
procura persuadir seu destinatário de que é
verdadeiro (ou falso), os mecanismos
divinização e de aproximação quanto à
discursivos têm, em última análise, por comum condição humana existente entre
finalidade criar a ilusão de verdade. Há interlocutores/interlocutários) diante de seu
dois efeitos básicos produzidos pelos público gentio.
discursos com a finalidade de convencerem
de sua verdade, são o de proximidade ou Após ter negado a sua divindade e ter-se
distanciamento da enunciação e o de mostrado simpático com os seus ouvintes
realidade ou referente. (...) Os efeitos de (também nós somos sofrentes (sofredores)
realidade ou de referente são... construídos
semelhantes a vós – v. 15), a fim de produzir a
mais freqüentemente por meio de
procedimentos da semântica discursiva(...). similitude no sentir e do pensar para alcançar a
O recurso semântico denomina-se benevolência pelo nivelamento de status,
ancoragem. Trata-se de atar o discurso a Paulo diz que a sua missão era anunciar-lhes
pessoas, espaços e datas que o receptor algo (homens que vos anunciam – v. 15), isto
reconhece como ‘reais’ ou ‘existentes’,
é, o evangelho de que poderiam voltar-se ao
pelo procedimento semântico de
concretizar cada vez mais os atores, os Deus vivo, soberano, criador de tudo o que
espaços e o tempo do discurso, existe. Dessa forma, os ouvintes poderiam
preenchendo-os com traços sensoriais que abandonar as coisas sem valor (os deuses
os ‘iconizam’, os fazem ‘cópias da pagãos e seus rituais), deixar o que não tem
realidade’. Na verdade, fingem ser ‘cópias
vida, para ir ao encontro do Deus vivente – v.
da realidade’, produzem tal ilusão. (p. 55-
60) 15.
Embora os seus argumentos tenham sido
Como o registro do relato é bem pequeno, extraídos das Escrituras judaicas, Paulo os
presume-se que se trata de um resumo (ou utiliza sem explicitar a fonte, e mais, insere-os
talvez de uma simples criação de situação em um novo contexto que lhe permite reforçar
discursiva que não tem, necessariamente, a tese que apresenta. O evangelista toma e
ligação com a realidade) que contém apenas a adapta o texto à nova situação de enunciação,
parte que, para Lucas, era a mais significativa. aproximando-o da dóxa de seus ouvintes. Por
O fato de em Listra ter sido fundada uma exemplo, a expressão que fez o céu e a terra e
comunidade cristã, mesmo que no discurso o mar e todas as coisas neles (v. 15) está ipsis
nada tenha sido dito sobre a fé em Cristo, litteris em Êxodo 20.11, inserida em contexto
evidencia que o registro não está completo. Se, que trata da obrigatoriedade da guarda do
por um lado, o narrador aponta explicitamente sábado (sétimo dia). No Antigo Testamento, é
para um trabalho missionário mais intenso do um argumento a favor das obrigações
que aquele que se pode depreender da breve religiosas judaicas:
exposição paulina: kavkei/ euvaggelizo,menoi
h=san, e ali estavam anunciando (eram
111
FERREIRA, Moisés Olímpio. Hermes está entre nós! O discurso de S. Paulo em Listra. EID&A - Revista Eletrônica de
Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.1, p. 104-116, nov. 2011.
evn ga.r e]x h`me,raij evpoi,hsen ku,rioj to.n Ele anuncia que uma nova era tinha sido
ouvrano.n kai. th.n gh/n kai. th.n qa,lassan
kai. pa,nta ta. evn auvtoi/j kai. kate,pausen th/|
iniciada. Na anterior, os homens desviaram-se
h`me,ra| th/| e`bdo,mh| dia. tou/to euvlo,ghsen de Deus e andaram por seus próprios caminhos
ku,rioj th.n h`me,ran th.n e`bdo,mhn kai. (v. 16); na atual, eles podem voltar-se
h`gi,asen auvth,n livremente para ele (v. 15), àquele que nunca
deixou de dar testemunho de si como
pois em seis dias fez o senhor o céu e a
terra e o mar e todas as coisas neles, e evidência de sua presença no mundo (v. 17).
cessou no sétimo dia; por isso, abençoou o Dessa maneira, o Deus que anuncia é
senhor o sétimo dia e o santificou – os aproximado do ouvinte, é feito alguém que se
grifos são nossos (Êxodo 20.11/LXX) – os manifesta a todos e que pode ser encontrado.
negritos são nossos.
Ele é o que faz o bem (é fazente, fazedor do
que, na nova situação, se refere à bem), de modo que do céu ele é o que dá
presentificação de Deus entre os gentios (vos (dante) as chuvas e os tempos oportunos
anunciam): portadores de frutos, é o que enche
completamente (é enchente, enchedor de modo
)))a;nqrwpoi euvaggelizo,menoi u`ma/j))) completo) de alimento e de alegria os
evpistre,fein evpi. qeo.n zw/nta( o]j evpoi,hsen
to.n ouvrano.n kai. th.n gh/n kai. th.n corações. Essas ações e qualidades inerentes a
qa,lassan kai. pa,nta ta. evn auvtoi/j\ esse Deus são expostas como tendo sido
também manifestadas aos ouvintes, como os
...homens que vos anunciam {o bom- pronomes u`mi/n (a vós) e u`mw/n (de vós) do v.
anúncio} para virardes para sobre o Deus
vivente, que fez o céu e a terra e o mar e
17 indicam, de modo que a Natureza anuncia a
todas as coisas [que estão] neles (Atos existência do Criador e o cuidado que ele tem
14.15) – os negritos são nossos. com todas as suas criaturas.
Dentre as vozes veterotestamentárias,
Mas quem é esse Deus universal criador de
conscientes ou não, encontra-se ainda a de
todas as coisas existentes? Paulo o apresenta
Levíticos:
como o Deus vivente (que vive, que é vivo, que
está vivendo). Enquanto ele emprega kai. dw,sw to.n u`eto.n u`mi/n evn kairw/| auvtou/
simplesmente qeo,j, e a LXX, ku,rioj, o texto kai. h` gh/ dw,sei ta. genh,mata auvth/j kai. ta.
hebraico não usa um título genérico, mas hw"hy>, xu,la tw/n pedi,wn avpodw,sei to.n karpo.n
auvtw/n
nome próprio do Deus dos judeus, a quem
Paulo certamente se referia, sem entretanto, e darei a chuva a vós no tempo dela, e a
nomeá-lo, como sendo o criador e para quem terra dará o produto dela, e as árvores das
os gentios poderiam se voltar. O Antigo planícies darão o fruto delas – os grifos são
Testamento possui várias ocorrências6 em que nossos - Levíticos 26.4 (LXX)
hw"hy> é assim qualificado (yx; lae/ ~yYIx; ~yhila{ / ouvrano,qen u`mi/n u`etou.j didou.j kai. kairou.j
/yx; ~yhila{ ,/ Deus vivo7), o que nos indica que karpofo,rouj( evmpiplw/n trofh/j.
os conceitos teológicos subjacentes de Paulo – do céu dando a vós chuvas e tempos
de onde extraía muitos de seus argumentos - oportunos portadores de frutos, enchendo
eram os mesmos do judaísmo. completamente de alimento... (Atos 14.17)
– todos os grifos são nossos.
112
FERREIRA, Moisés Olímpio. Hermes está entre nós! O discurso de S. Paulo em Listra. EID&A - Revista Eletrônica de
Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.1, p. 104-116, nov. 2011.
Levíticos, mas estão associados a auditórios o leitor inferir, quando denomina Paulo e
diferentes. Os ouvintes de Paulo, que Barnabé de euvaggelizo,menoi, anunciantes do
desconheciam a fonte e o contexto originais, bom-anúncio – 14.7):
certamente entenderam (como era 15....evpistre,fein • zwarch/j • que sustenta a
intencionado) que o anúncio lhes era evpi. qeo.n zw/nta( o]j existência
destinado: era a mensagem do cuidado do evpoi,hsen to.n
• zwodo,thj • que dá a vida
Deus vivo extensivo a todos os homens. De ouvrano.n kai. th.n
gh/n kai. th.n • zw|odoth,r • que vivifica
modo bem diferente, em Levíticos, as chuvas qa,lassan kai. pa,nta • zwoto,koj • criador da vida
que trariam abundância de frutos estavam ta. evn auvtoi/j\ • zwopoio,j • vivificador
condicionadas à irrestrita obediência à Torá e • causa primeira
• avrchgo.j
faziam parte das promessas destinadas .... virardes para
fu,sewj da natureza
exclusivamente a vós, os judeus. sobre o Deus
vivente, que fez o • path,r kai. • pai do céu e da
Mas em que medida essas adaptações céu e a terra e o ouvranou/ terra
mar e todas as kai. gh/j
estavam adequadas à dóxa do auditório? Em
coisas [que estão] • poihth.j • fabricante do
que medida o orador construiu o seu discurso, neles; tw/n o]lwn universo
levando em conta as crenças e os valores da
sua audiência? Para respondermos a isso, • poihth.j • fazedor de todas
pa,ntwn as coisas
devemos lembrar que o público de Paulo já era
religioso e que possuía crenças parecidas com • panai,tioj • causa universal
as que o evangelista anunciava. A noção
henoteísta (ei-j qeo,j - único deus [El. Arist. 17. kai,toi ouvk • diata,ktwr • ordenador de
avma,rturon auvto.n pa,ntwn tudo
Orat. 42,4], a;rcwn kai. ku,rioj a`pa,ntwn qew/n avfh/ken • a`pa,ntwn • benfeitor de
- chefe e senhor de todos os deuses [Plut. De avgaqourgw/n( euverge,thj todos
iis qui sero...4]) da divindade já era aceita ouvrano,qen u`mi/n
u`etou.j didou.j kai. • euvmenh,j • benevolente
entre os de religião grega (Murachco,1997). kairou.j • benigno
• h;pioj
Destaca-se, ainda, que o próprio Zeus já tinha karpofo,rouj(
• ne,mei • distribui
o;lbon
sido chamado de deus vivo [o` zw/n qeo,j – K. evmpiplw/n trofh/j
avnqrw,poisin felicidade aos
kai. euvfrosu,nhj
Preisendanz, Papyri Graecae Magicae, IV, ta.j kardi,aj u`mw/nÅ homens
255 2 959], o que, sem dúvida, forneceu • diata,ktwr • ordenador
material para a argumentação paulina. e também não [os] • Diotrefh,j • alimentado
deixou ir sem (nome próprio) por Zeus
Terra (2001) chega mesmo a afirmar que a testemunho em
supremacia de Zeus numa monarquia divina relação a si
porta indícios de um monoteísmo prático na mesmo, fazendo
crença popular e isso justificaria, a seu ver, bem: do céu
que Zeus tenha sido praticamente o único deus dando a vós
chuvas e tempos
contemplado pela devoção popular na escolha oportunos
dos nomes teofóricos (p. 316). Uma breve portadores de
comparação entre os epítetos de Zeus e o frutos, enchendo
discurso de Paulo pode nos mostrar como completamente de
grande parte das crenças do interlocutor e dos alimento e de
contentamento os
interlocutários não estava em oposição; o que corações de vós.
estava em jogo era a tese paulina de que todos
poderiam se voltar ao Deus cuja existência já
era seguramente admitida, por intermédio de Dessa forma, os verbos-adjetivos
Cristo (informação essa que o narrador permite avgaqourgw/n (que faz o bem), didou,j (que dá) e
113
FERREIRA, Moisés Olímpio. Hermes está entre nós! O discurso de S. Paulo em Listra. EID&A - Revista Eletrônica de
Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.1, p. 104-116, nov. 2011.
evmpiplw/n (que enche), que qualificam e que restringisse a um único centro cultural e
classificam Deus, têm força argumentativa na religioso. Com o Apóstolo dos Gentios, os
medida em que foram selecionados para valores cristãos não permaneceram como
enfatizar características divinas amplamente simples representantes das formas evolutivas
aceitas pelo auditório. das tradições e valores intelectuais, morais e
espirituais de Israel; na verdade, o cristianismo
A religiosidade popular grega, então, quer
tomou forma de uma nova religião
seja entendida sob a ótica henoteísta ou
internacional porque fazia parte da cultura
monoteísta, o certo é que há a noção de um
universalista do mundo helênico-romano
deus supremo a quem se dirigem todos os
(KOESTER, 2005, p. XXIII). Embora a
outros e de quem todos derivam. Disso, Paulo,
linguagem do pensamento de Paulo tenha
mesmo mantendo o pensamento judaico como
permanecido hebraica, pois as Escrituras
fundo teológico, certamente aproveitou-se em
serviram-lhe como a pedreira de onde retirou
suas missões evangelísticas, a fim de
suas ideias, termos e temas (DUNN, 2003, p.
apresentar o Deus que, sob o seu ponto de
812), a sua experiência mística associada à sua
vista, era o único e supremo. Essa sua manobra
formação helênica permitiu-lhe uma visão
argumentativa visava não só a construir um
ampliada sobre a ação de Deus no mundo,
acordo, um ponto de partida, pela simpatia
razão de suas constantes releituras das
dóxica, mas também, a partir disso, conduzir o
Escrituras.
auditório à fé cristã.
Em sua incumbência, diante de um mundo
As qualidades atribuídas mantinham pontos
cultural muito maior do que a sua formação
em comum com a religiosidade dos habitantes
judaica, valeu-lhe o conhecimento da cultura e
daquela cidade. Teriam essas escolhas sido
da língua gregas. Ele se movia no mundo
feitas inconscientemente ou por ignorância?
helenizado como se estivesse em seu habitat
Dificilmente isso teria ocorrido. Trata-se, na
natural e usava argumentativamente a
verdade, de acomodação do discurso, tanto
experiência que supomos compartilhar com a
para a simpatização quanto para a condução à
sua audiência, pois a força teológica de seus
crença que se apresenta.
ensinos está relacionada ao diálogo que
É-nos evidente que essas simulações mantinha com o seu público (DUNN, 2003, p.
tiveram objetivo certo; não se satisfizeram em 803).
si mesmas; foram estratégias para a construção
da “verdade” que surge do discurso. E é por Considerações finais
essa “verdade” que o interlocutor quer
persuadir o interlocutário às teses que lhe são Como é possível perceber, a persuasão é
propostas. Ora, a linguagem é instrumento posta em ação quando o orador parte daquilo
humano para ganhar a adesão do outro, de que o auditório já consente (de sua dóxa),
modo que a interação social por seu estabelecendo, a seguir, uma relação entre as
intermédio se caracterizará, crenças existentes e o que se busca fazer
fundamentalmente, pela argumentatividade admitir.
(KOCH, 2002, p. 19). Ao escolher os modos discursivos que
É-nos visível, também, que Paulo foi além respaldam estratégias argumentativas, Paulo
dos limites judaicos da aplicação das mostrou a sua preocupação com aquele a quem
Escrituras e, com isso, contribuiu - haveria de dirigir a palavra, que não é um ser
ultrapassando o isolamento da Palestina passivo, que apenas recebe as informações
(JAEGER, s/d, p. 15) - para que o produzidas pelo enunciador, mas é um
desenvolvimento da fé cristã não se produtor do discurso, que constrói, interpreta,
114
FERREIRA, Moisés Olímpio. Hermes está entre nós! O discurso de S. Paulo em Listra. EID&A - Revista Eletrônica de
Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.1, p. 104-116, nov. 2011.
115
FERREIRA, Moisés Olímpio. Hermes está entre nós! O discurso de S. Paulo em Listra. EID&A - Revista Eletrônica de
Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n.1, p. 104-116, nov. 2011.
Revisão:
Roberto Santos de Carvalho
Mestre em Letras pela Universidade Estadual de Santa
Cruz. E-mail: robertlinguistica@hotmail.com.
116