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A CRIAÇÃO DA LOMBRIGA: UM PROJ ETO DE EDUCAÇÃO PARA A SAÚDE,

PARA A COMUNIDADE, PARA A ACADEMIA, E SUAS MUITAS PERCEPÇÕES.


Priscila Correia Fernandes (Universidade Federal de São João Del Rei, MG).
Eduardo Sérgio da Silva (Universidade Federal de São João Del Rei, MG).

“Estou sempre pensando que lá por detrás dele


acontecem outras coisas,
que o morro está tapando de mim,
e que eu nunca hei de ver...”
(João Guimarães Rosa)

A Van da prefeitura passa às seis e meia da manhã pela Igreja Dom Bosco em frente à
universidade. São João del Rei vai amanhecendo e para uma professora universitária de um curso
noturno, só o estar acordada há essa hora já é um bom resultado em extensão.
O projeto “Educação, Saúde e Meio Ambiente: ação integrada contra verminose nas escolas
municipais de ensino fundamental de São João del Rei, MG, Brasil” é um projeto de extensão
universitária que também desenvolve pesquisa básica, epidemiológica e ensino e tem por
objetivo inventariar a prevalência de verminoses intestinais em crianças de todo o município,
oferecer tratamento e prevenir novas infestações através de um programa integrado médico e de
educação para a saúde em escolas rurais e urbanas. Essa ação integrada exigiu uma articulação
entre a equipe da universidade e as secretarias de Saúde, Meio Ambiente e Educação que
construíram juntas as estratégias para o atendimento de toda a rede municipal pública escolar de
São João del Rei, MG.
O planejamento das ações também vem ocorrendo de forma integrada entre as equipes de
trabalho, e as regiões a ser atendidas foram organizadas por critérios de logística. Assim,
Emboabas deveria ser a primeira região atendida pelo projeto. É uma região rural, bastante
isolada, a cerca de 15 km do centro de São João del Rei. Tem uma população atendida por 5
unidades escolares (escolas rurais). O tempo para se transitar entre as unidades pode ser de mais
de meia hora o que têm demandado um envolvimento grande de alunos bolsistas e docentes. Nas
unidades freqüentam cerca de 200 alunos das 5 séries iniciais (introdutória, 1, 2, 3 e 4 séries do
ensino fundamental). Assim, cinco e meia da manhã de uma quarta feira o despertador tocou em
meu quarto e às sete horas já estávamos na estrada de terra.
Chegar a um lugar novo com o propósito de entendê­lo é sempre desvendar um observador
(Clifford, 2002). O que comunicavam para mim as casas de adobe mal cobertas? Leitores
poderiam encontrar Miguilins1 e biólogos necessariamente procurariam Triatomínios2. Na
escola, crianças. Todas magras, nenhuma nitidamente desnutrida. O que encontramos, e o que é
encontrado na maioria das vezes em experiências extra campus, não se parece com a catástrofe
descrita nas justificativas dos projetos universitários, nem se parece com o recanto bucólico da
inocência primitiva da relação comunidade natureza. A miséria e a qualidade de vida parecem
ser um campo do olhar do pesquisador e a construção desta ou daquela realidade durante os
projetos merece atenção dos educadores em ciência.
Nesse trabalho pretendo explicitar essa tensão do olhar do pesquisador sobre a realidade objetiva
e subjetiva em projetos de educação para a saúde utilizando para isso reflexões no campo da
etnografia. Busco no presente texto ressaltar a procura do professor, pesquisador, pela falta (de
condição, de saberes, de percepções) e sua necessidade em enxergar a gravidade no modo
cotidiano de vida e nos seus seres mais comuns nas comunidades visitadas. Ressalto ainda no
texto a obrigatoriedade que o professor tem em buscar na comunidade a tensão dos léxicos
(científico e popular) e seus significados, e a criação de novos seres e novas relações desses seres
com o cotidiano das comunidades.
Taxonomias e os nomes das coisas
Em certa enciclopédia chinesa, segundo Foucault, os animais eram classificados em
“a)pertencentes ao imperador, b)embalsamados, c)domesticados, d)leitões, e)sereias, f)fabulosos,
g)cães, h)incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis,
k)desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de
quebrar a bilha, n)que de longe parecem moscas”. E em seguida apresenta a impossibilidade que
“no deslumbramento dessa taxonomia, o que de súbito atingimos, o que graças ao apólogo, nos é
indicado como encanto exótico de um outro pensamento, é o limite do nosso: a impossibilidade
patente de pensar isso” (Foucault, 2002). Desafiada pela impossibilidade, surge a intenção de
reconhecer qual a taxonomia com a qual eu estaria lidando durante o projeto.

1
Personagem de João Guimarães Rosa em Manuelzão e Miguilim.
2
Nome científico genérico de espécies de insetos vetores de Tripanossomos,causadores da Doença de Chagas,
conhecidos popularmente por barbeiros.
Durante a primeira visita à escola, era necessário conhecer o que os alunos sabiam sobre
verminoses intestinais. “Trabalhos educativos que não se preocupam em levantar as noções que
os sujeitos têm sobre determinado fenômeno são vistos como ultrapassados e equivocados com
relação ao modo como efetivamente se dá o processo de conhecer. A esse respeito, fundamental
notar que o que importa não é apenas identificar a representação, mas admitir que ela e outros
tipos de saber devem estar presentes nos espaços de ensino, seja para serem removidos, deixando
uma brecha para a inserção de um novo saber instituído, seja para serem criticados e, em
seguida, reconhecidos a partir dos núcleos de sensatez neles presentes” (Gazzinelli, 2005)
Portanto era necessário identificar os seguintes pontos, com complexidades distintas e
crescentes: 1. Qual a capacidade dos alunos em identificar vermes intestinais; 2. Qual a
capacidade dos alunos em identificar sintomas de infestação por vermes intestinais e 3. Qual a
relação causal construída pelos alunos entre verminose intestinal e ambiente. Se possível também
seria interessante identificar se esses conhecimentos eram advindos da cultura escolar ou
familiar, se é que é possível traçar essa fronteira.
Propusemos então uma conversa aberta com todos os alunos, sentados em roda, estando
presentes também dois estagiários universitários para ajudar no registro das informações. Tudo
deveria ser anotado. Foram também propostas atividades de desenho: desenhe uma cena de como
alguém pode pegar doenças causadas por vermes. Depois de desenhada a cena deveria ser
explicada pelo autor para todos. Essa explicação da cena desenhada é necessária para que o
pesquisador não crie o significado desejado no desenho, por exemplo: o aluno desenhou uma
cobra e o pesquisador se sente satisfeito pela perfeita representação de Ascaris lumbricoides. A
identificação de desenhos infantis é muitas vezes uma apropriação indébita do significado.
­Eu conheço verme, já vi um monte, meu pai matou um porco e saiu um monte de verme da
barriga dele.
­É verme tem na barriga de porco.
­Credo, e cê come porco com verme.
­Tem problema não, é só lavara tripa direitinho que tira tudo e na carne num tem não...
De barriga revirada, sorrizinho amarelo, e cheia de orgulho pela compreensão profunda de
verminoses intestinais do grupo, me senti inútil. O que mais é necessário esses meninos e
meninas saberem sobre verminoses intestinais. Vou impedi­los de comer porco cheio de vermes?
A lavagem é mesmo suficiente? Impotência e necessidade. Certamente o grupo é capaz de dar
mais detalhes sobre a anatomia macroscópica do verme do que eu. A convivência cotidiana com
a lombriga versus informações detalhadas do ciclo de vida e morfologia interna de Ascaris.
Depois do momento de constrangimento, a reflexão sobre os dados contidos nos textos, falas e
desenhos dos alunos vão desenhando o caminho para a educação.
Eu conheço verme, já vi um monte. Ver cotidianamente. É possível reconhecê­lo em sua
explosão populacional. Nossas representações biológicas, entretanto são unitárias, individuais.
Um verme sozinho não pode fazer mal. Imagino que esse pensamento permeie muitas
concepções populares sobre infestação parasitária.
Outra característica é que o cotidiano não é temido. Muitos dos alunos convivem com o parasito
numa espécie de territorialidade definida. Tem verme na barriga de porco. É condição natural de
o porco ter vermes. Assim como em muitos casos é condição natural de infância ter lombriga. O
cotidiano não oferece perigo. O discurso de que “se fizer isso ou aquilo vai pegar verme” não é
causa motivação, verme não mata só se for muito. O programa de educação para a saúde tem que
agravar a percepção da infestação parasitária para promover uma ação das comunidades.
Tem problema não, é só lavar... “A doença é manifestada cognitiva e afetivamente. Decorre daí a
importância da educação em saúde buscar explorar a forma como a doença é elaborada
culturalmente, tendo como horizonte levar os sujeitos ao reconhecimento desta como algo
anômalo, vindo assim a favorecer comportamentos de recusa, negação e remoção da enfermidade
– fenômeno que pode ser designado como de “desnaturalização” da doença, segundo o qual a
doença é extraída de um contexto em que é vista como normal, natural” (Gazzinelli, 2005).
Desnaturalização é o termo utilizado por Gazzinelli et al (Gazzinelli, 2005) para designar a ação
descrita. Mas em um programa de educação para a saúde, como fazê­lo? Como promover a
composição dos conhecimentos populares e científicos para promover resultados interessantes
em programas de saúde?
No programa que vimos desenvolvendo, a ação coordenada de secretarias (saúde, educação,
meio ambiente) e da Universidade compõem um campo de ação recheado de pragmatismos,
longe dos quais o campo epistemológico (da própria presente pesquisa) pretende se colocar.
Portanto a produção de conhecimento em educação para a saúde aparece muitas vezes cindida da
ação efetiva do programa de educação para a saúde.
De volta ao campus, lócus privilegiado de cisão prática/reflexão/teorização, surgem os
planejamentos da ação que efetivamente seria desenvolvida no projeto. Diante da objetividade,
as reflexões sobre a subjetivação da necessidade de ação sucumbe frente aos objetivos resultados
dos exames parasitológicos (fezes): muitos dos alunos estão infectados com parasitos intestinais.
Tal resultado traz uma ainda maior autoridade à natureza técnico­científica do projeto. As
reflexões sobre a composição de saberes, as percepções populares e científicas dos processos de
saúde e doença são sombreadas pela ação urgente (medicamentosa) de nossa equipe médica. O
julgamento dos méritos, assim como a dimensão educacional do projeto se curva diante do
utilitário. Será que esse suceder de eventos é incomum? Será que somos incapazes de agir na
orientação do acreditar/pensar/perceber?
Conclusão?
O projeto educação para a saúde que temos desenvolvido caminhou da referência poética das
infinitas possibilidades, passou pela reflexão filosófica do respeito à diversidade e se lançou na
conhecida tomada de poder dos saberes técnicos. Reverter o quadro e permitir uma ação
educativa pautada na construção dos saberes tem sido uma tarefa árdua. Em nossas visitas às
escolas e comunidades a resposta imediata é buscada com vigor: ­ Quando vem o médico?
Eu em meio aos conflitos reluto em trabalhar os ciclos de vida de Áscaris, atenho­me ao porco e
sua barriga aberta. As crianças estão medicadas como sonhavam as mães e professoras, mesmo
ainda crendo que essas doenças são mesmo de crianças. Junto à Secretaria de Meio Ambiente foi
feito um pedido para tratamento das águas da comunidade de Emboabas. Para a academia
apresento esse trabalho inconcluso: tenho criado lombrigas em escolas rurais, feitas com massa
de modelar.

Bibliografia
Clifford, J. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro:
Editora da UFRJ. 2002.
Foucault, m. As palavras e as coisas. São Pulo: Martins Fontes 2002.
Gazzinelli, M.F., Gazzinelli, A. Reis, D. e Penna, C.M.M. Cadernos de Saúde Pública,
21(1):200­206. 2005.

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