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A escuta pedagógica à criança hospitalizada

A escuta pedagógica à criança hospitalizada:


discutindo o papel da educação no hospital

Rejane de S. Fontes
Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação

Introdução ça é muito significativa. A particularidade dos cuida-


dos com o infante era negada, o que resultava na
A identidade de ser criança é, muitas vezes, di- elevada taxa de mortalidade infantil. Ariès (1981)
luída numa situação de internação, em que a criança mostra-nos que o moderno sentimento familiar, ca-
se vê numa realidade diferente da sua vida cotidiana. racterizado pela intensidade das relações afetivas en-
O papel de ser criança é sufocado pelas rotinas e prá- tre pais e filhos, privacidade do lar e cuidados espe-
ticas hospitalares que tratam a criança como pacien- ciais com a infância, foi produzido ao longo dos anos
te, como aquele que inspira e necessita de cuidados pelas mudanças socioeconômicas instaladas nas so-
médicos, que precisa ficar imobilizado e que parece ciedades industrializadas.
alheio aos acontecimentos ao seu redor. Na tentativa Todavia, é importante ressaltar que a história
de compreender o resgate da subjetividade e sua con- da infância no Brasil se confunde com a história do
tribuição para a saúde da criança hospitalizada, pro- preconceito, da exploração e do abandono, pois desde
ponho a análise de situações pedagógicas enquanto o início houve a diferenciação entre as crianças se-
interações sociais privilegiadas da criança nesse novo gundo sua classe social, com direitos e lugares di-
momento de sua vida. versos no tecido social. Elegeram-se, assim, alguns
Os estudos e pesquisas voltados para a análise poucos como portadores do “vir a ser” (grandes ho-
da infância revelam que esse período da vida vai des- mens e grandes mulheres), enquanto tantos outros
de o nascimento até a puberdade. É a idade da meni- foram reduzidos à servidão, muitas vezes classifica-
nice, porém vale ressaltar que considerar o grau de dos como geneticamente doentes e, assim, social-
importância social atribuído a essa fase é algo recen- mente incapazes.
te na história ocidental. Quando me propus realizar a pesquisa, procurei
Na sociedade medieval não havia valorização da dar prosseguimento às reflexões que desenvolvi du-
infância, e a indiferença dessa época para com a crian- rante a graduação como bolsista de iniciação científi-

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ca pelo Programa Institutcional de Bolsas de Inicia- a) Analisar, po intermédio de atividades pedagógi-


ção Científica (PIBIC) promovido pelo Conselho cas, o papel do conhecimento, da emoção e da
Nacional de Pesquisa (CNPq),1 quando minha preo- linguagem para a saúde da criança hospitalizada.
cupação central foi investigar a validade de um aten- b) Descrever e analisar uma prática pedagógica
dimento educacional em curto prazo realizado em hos- em hospital como alternativa de atendimento
pitais. As preocupações que estiveram na origem desse educacional, apontando suas conquistas e difi-
projeto surgiram a partir dos altos índices de evasão2 culdades.
e atraso escolar das crianças e adolescentes que per- c) Refletir sobre a atuação do professor e os no-
maneciam hospitalizados durante um determinado pe- vos caminhos para a educação a partir do acom-
ríodo de suas vidas. Foi pensando nesse universo de panhamento pedagógico em âmbito hospitalar.
crianças e adolescentes que se encontra temporária
ou permanentemente internado que dei prosseguimen- Esses objetivos buscavam não só compreender a
to aos estudos realizados entre 1995 e 1998, com vis- contribuição da educação, ao operar com processos
tas à implantação de um acompanhamento pedagógi- de conhecimento afetivos e cognitivos no resgate da
co-educacional na Enfermaria Pediátrica do Hospital saúde da criança hospitalizada, como também definir
Universitário Antônio Pedro (HUAP). o espaço de atuação do professor, muitas vezes con-
Para melhor situar a abordagem metodológica da fundido com o do psicólogo, na estrutura hospitalar.
pesquisa realizada, apresento brevemente suas carac- O tema reveste-se de uma importância crucial
terísticas, começando pelo problema que instiga a in- nos dias atuais a partir da constatação de que sua aná-
vestigação: quais as possibilidades e os limites de uma lise se volta para as populações já sistematicamente
educação para a saúde com crianças, na faixa etária excluídas,3 socioeconomicamente, do acesso a bens
dos 7 aos 14 anos, de ambos os sexos, com possibilida- culturais e de saúde. A relevância deste estudo deve-
des de deslocamento (sala de recreação), e que passam se ao fato de se realizar em instituições hospitalares
pelo processo de reinserção na Enfermaria Pediátrica públicas que apresentam atendimento em enferma-
do HUAP? Considero, para tanto, as formas de inser- rias pediátricas. Entre elas, escolhi o HUAP, situado
ção dessas crianças no ambiente hospitalar (seja por em Niterói (RJ), compromissado com a pesquisa e
meio do setor de emergência, do ambulatório para exa- que atende a uma elevada parcela de nossa população
me ou tratamento, ou ainda para intervenção cirúrgi- historicamente desrespeitada em seus direitos, que tem
ca), bem como o tempo e a freqüência dessas hospita- na educação sua principal via de cidadania e esperan-
lizações. ça de ascensão social.
A pesquisa tinha como objetivo geral compreen- Desse modo, ao longo do presente artigo preten-
der como o conhecimento da vivência hospitalar e a do responder às seguintes questões:
apropriação dos sentidos expressos no ambiente refle-
tem o papel da educação no desenvolvimento cogniti- a) É possível pensar o hospital como um espaço
vo, emocional e da saúde de crianças hospitalizadas na educacional para as crianças internadas em en-
enfermarias pediátricas. E como objetivos específicos: fermarias pediátricas?
b) Pode a educação contribuir para a saúde da
criança hospitalizada?

1
Pesquisa desenvolvida com orientação das professoras
Cristina Maria Carvalho Delou e Liliana Hochman Weller. 3
Algumas crianças nem excluídas serão, porque não serão
2
Na realidade as crianças não se evadem, elas são expulsas sequer incluídas, como, por exemplo, os bebês da Unidade de Te-
pelas adversidades impostas pelo sistema. rapia Intensiva (UTI) neonatal.

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c) Que formas de educar são possíveis num hos- ca (1999), que têm publicações nessa área de conhe-
pital? cimento.
d) Quais os limites e as possibilidades de atuação Segundo a política do Ministério da Educação
do professor nesse novo locus de atuação? (MEC),

A educação no hospital: pensando a Classe hospitalar é um ambiente hospitalar que pos-


formação e a prática de professores sibilita o atendimento educacional de crianças e jovens in-
para atuação em hospitais ternados que necessitam de educação especial e que este-
jam em tratamento hospitalar. (Brasil, 1994, p. 20)
O trabalho pedagógico em hospitais apresenta
diversas interfaces de atuação e está na mira de dife- Essa corrente defende a presença de professores
rentes olhares que o tentam compreender, explicar e em hospitais para a escolarização das crianças e jo-
construir um modelo que o possa enquadrar. No en- vens internados segundo os moldes da escola regular,
tanto, é preciso deixar claro que tanto a educação não contribuindo para a diminuição do fracasso escolar e
é elemento exclusivo da escola quanto a saúde não é dos elevados índices de evasão e repetência que aco-
elemento exclusivo do hospital. O hospital é, inclusi- metem freqüentemente essa clientela em nosso país.
ve, segundo definição do Ministério da Saúde, um Esse atendimento tem sido o modelo adotado
centro de educação. desde 1950 pela primeira classe hospitalar do Brasil,
a Classe Hospitalar Jesus, vinculada ao Hospital Mu-
Hospital é a parte integrante de uma organização nicipal Jesus, no Rio de Janeiro, que foi uma das oi-
médica e social, cuja função básica consiste em proporcio- tenta classes representadas no 1o Encontro Nacional
nar à população assistência médica integral, curativa e pre- sobre Atendimento Escolar Hospitalar, acontecido em
ventiva, sob quaisquer regimes de atendimento, inclusive o 2000 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
domiciliar, constituindo-se também em centro de educa- sob a coordenação geral da professora Dra. Eneida
ção, capacitação de recursos humanos e de pesquisas em Simões da Fonseca.
saúde, bem como de encaminhamento de pacientes, caben- A outra corrente de pensamento segue passos
do-lhe supervisionar e orientar os estabelecimentos de saú- como os da professora Regina Taam, da Universidade
de a ele vinculados tecnicamente. (Brasil, 1977, p. 3.929) Estadual de Maringá (UEM), que sugere a construção
de uma prática pedagógica com características próprias
Refletir sobre a atuação de professores em hos- do contexto, tempos e espaços hospitalares e não sim-
pitais tem sido uma questão bastante delicada na re- plesmente transplantada da escola para o hospital. Se-
cente, mas já polêmica, discussão da prática pedagó- gundo essa autora (Taam, 1997), faz-se necessária a
gica em enfermarias pediátricas. construção de uma “pedagogia clínica”, termo utiliza-
A discussão começa entre duas correntes teóri- do em seu artigo publicado na Revista Ciência Hoje.
cas aparentemente opostas, mas que podem ser vistas Com forte embasamento na teoria da emoção do médi-
como complementares. A primeira delas, talvez a mais co francês Henri Wallon (1879-1962), Taam (2000) de-
difundida hoje no Brasil e com respaldo legal na Po- fende a idéia de que o conhecimento pode contribuir
lítica Nacional de Educação Especial (Brasil, 1994) e para o bem-estar físico, psíquico e emocional da crian-
seus desdobramentos (Diretrizes Nacionais para a ça enferma, mas não necessariamente o conhecimento
Educação Especial na Educação Básica – Brasil, 2001) curricular ensinado no espaço escolar. Segundo ela, o
defende a prática pedagógica em classes hospitala- conhecimento escolar é o “efeito colateral” de uma ação
res. São representantes dessa visão autores como Fon- que visa, primordialmente, à recuperação da saúde. O
seca (2001, 2002), Ceccim (1997) e Ceccim e Fonse- trabalho do professor é ensinar, não há dúvida, mas isso

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