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O clarão repentino nos céus iluminou os orbes carmesim do rapaz, suas orelhas

de molde levemente pontudo reverberando em alerta ao que seus ouvidos foram


inundados pelo som do trovão. Piscou rapidamente, distraído pelo repentino barulho e
mal se dando conta quando seu jantar saiu batendo perna rua abaixo, a procura de
algum lugar para se abrigar da tempestade iminente. Yeonjun suspirou em exaustão,
descendo de cima do telhado de uma casa qualquer daquela vizinhança
desguarnecida, conseguindo pensar apenas em como seu estômago reclamava de
fome.
Em um mundo onde criaturas mágicas se esgueiram entre humanos durante os
dias e saem para caçar e festejar no horário das trevas, criaturas sem pulso, frias e
desalmadas ocupam o topo da cadeia alimentar. Indivíduos desprotegidos e
insignificantes sabem a hora de trancar bem as portas e apagar as luzes ou quais
bairros evitar, a todo custo, frequentar. Destacando-se, sobretudo, a alta colina nas
margens do distrito, onde morcegos e corvos ocupam as árvores tal qual o bispo ocupa
a igreja, onde o vento assobia cantigas de Halloween e as nuvens cobrem os céus
acima do enorme e esbelto castelo, sua estrutura constituída puramente pela
arquitetura vitoriana, assim como os móveis que o compunha por dentro. Uma perfeita
mistura de belo e horripilante ele concebia a qualquer um que tivesse os olhares caídos
sobre si, tal qual seu dono, criatura sangue suga de beleza singular, misteriosa. Todos
da cidade sabiam a longa idade que carregava, sendo mais antigo que sua própria
moradia, e invejavam sua imortalidade, por mais que Yeonjun a levasse como um
fardo. Temiam sua força e sabedoria, a nomenclatura de conde das trevas manchando
seu nome e fazendo todos tremerem os joelhos em pavor sempre que a sua presença
era notada, fosse humano, ogro ou elfo, era altamente respeitado e temido por todas
as criaturas daquele pequeno povoado, ou pelo menos quase todas.
Já de volta à sua residência, sua caçada por alimento a tempos deixada de lado,
seu sobretudo flutuou como uma pena para fora de seus ombros e se auto pendurou
no cabide da entrada assim que o Choi pisou no tapete do corredor. Quase que
automaticamente, estranhou o silêncio que assombrava os salões, então, com as
sobrancelhas franzidas e uma inquietude tomando conta de seu coração – se é que ele
possuía um –, flutuou escadaria acima. Olhou em cada canto daquele castelo e, ao não
encontrar nada, teve quase certeza de que sua busca havia sido em vão e que, muito
provavelmente, o bruxo que dividia o castelo consigo havia saído, o que tornava a
situação ainda mais curiosa, tendo em mente que o homem só largava seu grimório e
colocava os pés no gramado a cada vinte anos no máximo, Yeonjun tinha certeza, ele
havia contado. Suspirou em frustração e voltou a subir as escadarias, se dirigindo ao
último andar da torre oeste. Beomgyu havia transformado o, consideravelmente
grande, observatório em seu quarto especial para estudar as fazes lunares, o Choi mais
velho nunca entendeu muito bem do assunto, tudo o que sabia era que o mais novo
passava tempo de mais trancado fazendo sabe-se lá o que. Se Beomgyu não estivesse
lá em cima, então Yeonjun o daria como desaparecido e sairia rua a fora sugando o
sangue de quem estivesse em seu caminho até achar quem sequestrou seu melhor
amigo. Ou tiraria proveito de seu armazenamento de sangue de porco, por mais
gorduroso que fosse. Dependeria de seu humor e Yeonjun estava com fome, então a
segunda opção parecia mais plausível e requeria menos esforço. Não foi até o
momento que alcançou o último degrau para o corredor da torre que ruídos o tirou de
seus devaneios, então apressou-se até a última porta no fim do passadiço, a abrindo
com certa robustez. Analisou momentaneamente o local, o piso de pedra iluminado
por lampiões e pela luz da lua que entrava pela claraboia dava um ar pacífico para o
local, o vampiro lembrou de como Beomgyu gostava de coisas de teor mais antigo, já
que a maioria das luminárias do castelo possuíam lâmpadas led. Mesma claraboia
possuía um telescópio direcionado para si, enquanto pergaminhos com anotações
ocupavam as paredes e frascos, velas e cadernos ocupavam as escrivaninhas e estantes
de madeira.
Yeonjun nunca havia entrado naquela torre desde que Beomgyu se apossara
dela, então a sua surpresa ao ter os olhos caídos em um garoto preso em uma gaiola
gigante enquanto o bruxo anotava alguma coisa em um caderno foi irreprimível.
− Hyung? Pensei que tinha saído para comer. – O bruxo dirigiu-se ao vampiro ao
ouvir o rangido da porta.
− Eu ia... – O mais velho respondia ao que caminhava até a gaiola, a curiosidade
clara em seu olhar. – Beomgyu o que é isso daqui? – Cruzou os braços e virou-se para
julgar o bruxo de cima a baixo.
− “Isso aqui” é uma pessoa com direitos! – O garoto na gaiola respondeu,
recebendo um riso do vampiro.
− Você não parece estar sujeito aos seus direitos pelo que eu estou vendo. –
Respondeu ao que o analisava de cima a baixo, o bruxo parcialmente esquecido no
recinto. O garoto era belo e jovem, seus grandes lumes e lábios grossos e rosados o
davam certo ar inocente enquanto suas madeixas escuras possuíam um undercut que
quebrava sua aparência com sensualidade.
− Não é como se eu tivesse muita escolha, ele quem não está me deixando ir
embora. Vivemos em uma sociedade democrática pelo amor de deus!
Yeonjun revirou os olhos.
− Beomgyu quero explicações do porquê de ter um ser humano aprisionado em
uma gaiola gigante no meu castelo. – Voltou a se aproximar do amigo, dando ênfases
na palavra “meu” para deixar claro que ele quem mandou construir aquela estrutura a
mais de duzentos anos atrás e que, se não deixava apenas qualquer um perambular
pelas redondezas, quem dirá dentro de sua residência.
− Hyung você sabe que a lua cheia desse mês está chegando... – Respondeu
rapidamente em um tom fofo em uma tentativa de aquecer o coração gélido do
vampiro.
− E daí, Beomgyu. Você não é um cachorro.
− O termo certo seria lobisomem, hyung...
− São todos cachorros molhados e nojentos.
Beomgyu revirou os olhos.
− De qualquer forma, não tem a ver com lobisomens. – Virou-se e pôs-se a
caminhar até uma antiga escrivaninha de madeira no canto da sala. – Tem a ver com os
meus feitiços.
− O que os seus feitiços têm a ver com a lua cheia, Beomgyu? – Perguntou
impaciente. Sabia da resposta, mas gostava de ouvir o garoto lhe explicando sobre
bruxaria e seus rituais, então fingia-se de esquecido.
− Hyung! Eu já te expliquei pelo menos umas dez vezes. – Falou em
incredulidade. – As fazes lunares afetam diretamente na magia e nos rituais, é
importante eu fazer meus rituais de transição e transformação toda lua cheia.
− Certo, mas pra quê você precisa do... – Voltou sua atenção para o garoto
enjaulado. – Qual o seu nome, garoto?
− Taehyun. – Respondeu simplista, prestando demasiada atenção na conversa de
ambas as criaturas mágicas.
− Certo. Pra quê você precisa do Taehyun pra esses rituais? – Perguntou com
genuína curiosidade, e por um segundo desejou ter deixado o assunto de lado ao ver o
bruxo respirar fundo e o olhar com certa apreensão.
− Hyung, − Sussurrou e fez um sinal com a mão para que o vampiro se
aproximasse, e assim foi feito. – eu fiz um ritual mais cedo para conjurar meu familiar
novo, sabe? Para me ajudar na transição na lua cheia. – Yeonjun assentiu. – Eu
esperava algo como uma ave, mas, ao invés de aparecer um animal, ele apareceu.
Ambos tornaram a atenção ao garoto, esse que agora se encontrava sentado no
chão, com as sobrancelhas arqueadas e a mão erguida.
− Eu tenho uma pergunta. – Seu tom de voz era genuíno.
− Yeonjun-hyung, o que eu faço? – O bruxo voltou a sussurrar, sua ansiedade
clara como água.
O Choi mais velho franziu o cenho, voltando cem por cento da sua atenção ao
homem enjaulado ao que começou a andar em sua direção. Familiares, Yeonjun viu
muitos no decorrer de seus longos anos e já presenciou rituais de perto. Se lembra de
Ryujin, bruxa vendedora em uma loja de especiarias para feitiços, o contar sobre como
o familiar é um companheiro importante na jornada espiritual de uma bruxa, não
lembrava de muito mais além de eles servirem como protetores e ajudantes. Mas uma
ideia tomou conta da mente do vampiro, não via incidentes como aquele a muito
tempo e havia altas chances de que ele estivesse errado, mas aquele sentimento
inquieto em seu estômago não o largava.
− É o seguinte, menininho curioso, − Falou em seu tom cativante, se agachando
até que estivesse da mesma altura do garoto. – Responderemos qualquer pergunta
que você tiver. – Observou os olhos do Kang se iluminarem em esperança, então logo
levantou um dedo e continuou: – Contanto que me responda uma única pergunta.
Taehyun fechou a cara novamente, se repreendendo internamente por se deixar
levar pelas palavras de uma criatura como Yeonjun e achar que não haveria algum
escambo de informações, sua mãe sempre o alertou sobre como era incrédulo, talvez
ela estivesse certa.
− O que você quer saber? – Perguntou como uma forma de concordância.
Yeonjun sorriu travesso.
− Você já viu espíritos, Taehyunie? – Seu tom era baixo e sensual, atraindo o Kang
quase que de forma hipnotizadora.
O garoto engoliu em seco, então concordou de leve com a cabeça, levando
Yeonjun a sorrir satisfeito e se levantar, seus passos elegantes e atraentes sendo
seguidos pelos olhos de Taehyun ao que voltava para onde Beomgyu estava.
− Você hipnotizou ele? – O bruxo questionou, o outro apenas negou com a
cabeça. – Então como... – Foi cortado.
− Não preciso hipnotizar quando meu charme já faz esse trabalho por mim. –
Falou convencido e piscou para o amigo, que o retribuiu com uma expressão de
desgosto e revirada de olhos, mas não o contrariou, a final, o vampiro não mentira com
sua fala.
− Vão responder a minha pergunta? – Foram tirados de sua bolha recém-formada
pela voz do Kang, que agora se encontrava de pé e com os braços cruzados, seu pé
batia no chão em impaciência. – Olha, eu não faço ideia do que está acontecendo aqui.
Estava no meu quarto quando pisquei e apareci nessa gaiola. Não faço ideia de quem
sejam vocês ou o que querem de mim, se vão me matar ou não, mas estou começando
a ficar ansioso, então apreciaria se pudessem me explicar.
Ambas as criaturas trocaram olhares admirados antes de caírem em uma
gargalhada alta o suficiente a ponto de ecoar por todo o castelo. Yeonjun nunca
presenciou alguém falar consigo de forma tão aberta e valente, mal podia inalar o
cheiro do medo que o rapaz exalava. Taehyun havia cutucado o vampiro bem em seu
ponto mais curioso, mas deixaria que Beomgyu tomasse liderança da situação, por
mais que seu instinto controlador o mandasse fazer o contrário.
Assim que as risadas cessaram, o bruxo limpou uma gota salgada que escapara
de seus lumes e andou até o humano com um sorriso no rosto, as mãos guardadas no
bolso da calça cargo preta.
− Qual a sua pergunta, docinho? – Seu tom era aveludado e exalava calmaria, o
que, juntamente ao apelido, fez as bochechas do Kang corarem em carmesim.
− Pensei que só mulheres fossem bruxas. – Sua pergunta era genuína, diligência
brilhando em seus grandes orbes.
− Mmm... – Um bico fofo tomou conta dos lábios de Beomgyu, a cabeça
balançando em concordância ao que fingia pensar. – Vejo que é hora para a sua
primeira aula! – Rapidamente, um tom animado tomou conta da voz do garoto, que,
com um estalo de dedos, sumiu completamente com a grande gaiola que prendia o
mais baixo.
Taehyun estava livre, ele podia facilmente fugir daquele inferno e voltar para o
conforto de sua cama e acordar no dia seguinte convencendo a si mesmo de que havia
sido tudo um sonho, mas algo o impedia. Não tinha certeza do que era, se era
compreensão de que teria que descer inúmeros andares de escada enquanto tentava
fugir do vampiro que muito provavelmente iria atrás de si, ou se era aquela estranha
sensação em seu peito. Como se uma corda invisível estivesse amarrando seu coração
e o mandando sentar no banco que Beomgyu puxara para si, então, sem questionar
muito, o fez.
− Vou deixar vocês dois se divertirem, tenho coisas para fazer. – Yeonjun
pronunciou ao que andava até a porta do observatório. – Ah, e Beomgyu, −
Acrescentou, já com a mão na maçaneta, recebendo apenas um murmúrio vindo do
bruxo enquanto procurava alguma coisa entre os diversos frascos na escrivaninha. –
sem trazer mais seres humanos para o meu castelo.
Avisado, Yeonjun saiu porta a fora, deixando o amigo explicar para seu suposto
novo familiar sobre a diferença entre bruxas e magos e como o Choi havia usado magia
de transição mais de cem anos atrás para virar um garoto, porém, não deixando de se
sentir conectado com a natureza e as fazes da lua em momento algum. Já havia ouvido
aquela história mais do que poderia contar, a final, estava lá quando aconteceu, só
esperava que Beomgyu não assustasse o garoto de mais.

☾⛤☽
A brisa fria entrou pela porta da frente assim que o Choi mais velho a abriu na
simples intenção de sair para dar uma caminhada pelo jardim. O tédio decidiu o
incomodar novamente naquela madrugada e, como o sol ainda não havia nascido,
aproveitou para respirar um pouco de ar fresco e admirar a forma como a horta criada
por Beomgyu era bem iluminada pela luz da lua. Os legumes e frutas pertenciam ao
bruxo e foram plantados ali puramente com intenções mágicas, intenções as quais
Yeonjun não possuía o mínimo interesse em se envolver, mas, sinceramente, quando se
vive por mais de três mil anos, prestar atenção e apreciar os mínimos detalhes que a
natureza lhe proporciona acaba sendo inevitável.
Respirou fundo, por mais que não fosse necessário, sabia que seu pulmão não
levaria oxigênio para seu coração, mas gostava da sensação de estar vivo que esses
sutis detalhes lhe proporcionavam. Seu momento sabático foi interrompido ao escutar
o som de algo se mexendo entre os arbustos, mas não demonstrou muita importância
ao que caminhou até o pomar mais próximo, arrancando de um dos galhos uma maçã.
O suco doce molhou seus lábios vermelhos e cheios assim que o vampiro fincou suas
presas na carne da fruta, logo para ser substituído por um gosto amargo, cuspindo
rapidamente o pequeno pedaço mastigado e assumindo nojo em sua feição ao ver
vermes e uma gosma verde saindo da parte recém mordida. Lembrava-se de Beomgyu
se glorificando de como sua plantação estava bem e saudável mais cedo naquele dia,
então ficou um tanto atônito ao presenciar tal cena.
Ainda com a fruta abocanhada em mãos, planejando levá-la até o bruxo para tirar
satisfações, ouviu o mesmo barulho anterior vindo dos arbustos, então, determinado a
dar um fim àquela praga que estava envenenando as plantações de seu amigo, pôs-se a
andar. Yeonjun aproximou-se do emaranhado de folhas que nascia encostado ao muro
baixo e, em um movimento brusco, as separou, apenas para dar de cara com um
coelho escondido entre os galhos, seu rosto estava próximo ao chão e escondido entre
as patinhas, suas orelhas estavam baixas e seu corpinho tremia. Ao seu lado,
descansavam algumas cenouras no gramado. O vampiro franziu o cenho e, após soltar
um estressado “seu ladrãozinho” pelos lábios, pegou o bicho com uma mão e o apoiou
ao próprio peito. Segurando-o com força maneirada para ter certeza de que não
fugiria, mesmo percebendo que o animal estava a ponto de morrer de medo para se
quer pensar em sair correndo, andou rapidamente de volta ao castelo. Não sabia o que
faria com o coelho ainda, mas estava determinado a tirar aquela situação a limpo.

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