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As mulheres ou ~Os
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I silêncios da história :
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P7à1f, I!)eb ?(2k~
CoordenaÇllo Geral
Ir. .Elvira Milani

Cooederlt1fiJo Editorial
Ir. Jacinta"Throlo Garcia

Coordenaf./Jo Executivn
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1
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••
Luzia Bianchi
Michelle Perrot .
Comitê Eilitorial Acadêmico
Ir. Elvira Milani - PresidCtlte
1

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,

Glória Maria Palma


ir. Jacinta Turolo Garcia _
José lobson de Andrade Arruda
~ . Marcos Virmond
Maria Arminda ,do Nascimento Arruda
Tradução
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Viviane Ribeiro
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SUMÃRlO*

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P461m Pc:rrpt, MicheUt. .


A3 mulherts o~ 0$ siltnaos da história I Michdle Pc:rrot i traduçAo
Viviane Ribdro.•• Bauru, SP; EDUSC, 2005.
520 p. ; 23 'em: •• (Colrçio História)
9 lNTRODUçAO i~/Jle/'!~
,-
Inclui bibliografia. PARTE 1
Traduçjo de: 1,.($ ftmrnts oula silencu de I'hisloirc:. cl998 .. Traços
ISBN' 85-7460-251-5

1. Mulheres - CondiÇ'Õnsodai. - Evoluçto hist6rka.I:1l1UIo. 1I.Série. CApITULO I

CDO 3010412
33 Práticas da memóriá feminina
. "

ISBN (original) 2..Q8.08.0010-8 I


CAPITULO 2 .-
45 . As filha s de K.r1 Marx: cartas inéditás
,

,
",1.

Copyrighte Flrimmarion, 1998


"- CAPITULO. 3
Copyrighte (lr3duçâo) EDUSC. 2005 II 89 Coroline reencontrado

- "
CAPITULO 4
fuduÇiO realizada a p.ulir da tdiçdo de 1998.
Caroline, uma jovem do Faubourg -Saipt-Germain durante o Segundo
Direitos aelusivos dI! publicação cRl,lingua portuguesa
M 'O Brasil adquiridç.s pela
93
Império . - ,
EDITQRA DA UNlVERsIDAD6 DO SAGRADO CORAçAÓ ,
, Rua Irmã Arminda, lO-50
CEP 17011 - 160 - Bauru - $P
Fone: (I4)32l~-7) II ~- Fax (14) 3235-7219
;.m:H' ~",,:~ed~rm.b' A ediÇão original francesa da presente obra traz dois capltulos que não se encontram
aqui traduridos - os artigos Ma filie Ma"ie e.Le.s !emme.s elleurs imagcs ou le regam
, I des femme.s. Esta aus!ncia deve-se ao' fato de as editoras responSáveis pelos originais
I '- não terem cedido os direitos de: publicação para esta edjç40 traduz.ida. (N.E. )

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5umdrio

PARTE 2 CAPiTULO 14
3~7 As mulheres e a cid~dania na França: história de u;11a exclusão
,< Mulheres no trabalho
, ' . . ,
( CAPITOL0 5 1 CAPITULO '15
155 Greves femininas .... / O gênero na cidade
/
/
I 343

. .171
CAPiTULO 6
O elogio!áa dona -de-casa"no discurso dos operárioS-franceses no ~cuJo 19,
!I PARTE 4,
Figuras

CAPtruLO 7 CAPITUro 16
197 A mulher popular rebelde 365 Flo ra Tristan, pesquisadora

CAPiTULO 8 _ r CAPITU,-,? 17
,223 'Mulheres e m'áquinas no s,éculo 19 38 1 Sand: um a mulher na política

241
CAPITULO 9 ,
Da ama-de-leite à funciOJlária 'de escritório ... Trabalhos de mullleres na .
I PARTE
Debates
5

França do sétulo 19 \ I
CAPiTULO l O
'j 435
C APITULO 18
No front dos sexos: um co mbate duvidoso

251 O qtle é um trabalho de mulher?

' PARTE 3

Mulheresna cidade
I

~,
I
_
e
n
~
447
CAPITULo 'I 9
Corp os s~ bjugados

CApiTULO 20 ' ,,'


Público; privado e re~açõ~s entre os _sexos
, .
I CAPITULO l i
263 ' Poq.r dos ho'mens, força das mulheres? O exemplo do século 19 CApiTULO 2 1
467 Jdentidade;-i~aldade;- rillerença:'o olhar da Hisr6ria
Q CAPITULO J2 .'
, , \~:/salf ' CAPITULO 22
481 Uma históri or sem afron tamentos
CAPiTULO 13

\3 A palavra piíblica das m'ulh~res


,,' 1
~ CAI!ITULO 23 '
~ Michel Fou,cault ~ a h~st6ria. das ~ ulheres.'-
- -- ,
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~ INTROD{JçÃO
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Silenciosas, as mulheres? - Mas-elas são as únicas que escutarnds, dirãó
, alguns.de nossos contempor~neQS, que; co'm certa angústia, têm a impressão
de SU;t irresistível ascensão e de sua fala invaso{a. "Elas, elas, elas, elas, sempre
elaS, vorazes, tagarelàs .. ::' mas não somente nos salões de chá, transbordando

j agora do privado para o público"do ensino Par.a o pretório, dos cbnve~tos para
. a mídia e até mesmo, ó Cfcero, Sajnt-Just e Jaurês, para O Parlamento .
. Evidentemehte,.~rrupção de uma presença e de uma fala f~miriinas em
locais que lhes eram até então proibidos. ou pouco familiares. é uma inQya~Q
90 sé,,!lº J 9 Que muda o horiwnte.sonoro. Subsistem, no entanto, muitas zo-
nas mudas e, "_ 0que se refere ao passàdo, um oceano de silêncio, ligado à pàr-
tilha desigual dos ,traços, da memória e, ~inda mais, da História, êste relato
/\ .,' que, por muito tempo,·"esqueceu" as mulheres, como se, por serem de~tinadas
à.obscuridade da reprodução, ineriarráveJ, elas estiv:essem fora do tempo,"'o u ao
menos fora do aconteámtnto.
, inf . ·erá·'o Vi o mas o Verbo eus e Homem. O silêncio 'é o
. comum das mu eres. e convém à sua posição s~cundária e subOrdinada. Ele
cai bem em seus rostos, levemente sorridentes, não defórmados' pela imperti-
nência do risQ barulhento e viril. Bocas temadas. lábios cerrados, pálpebras
-baixas, as mulheres só podem chorar, deiXar as lágrimas correrem como a água
de uma inesgotável dor, da qual, segundo Midlelet, elas "'detêm o sacerdócio'~
• • -I
O silêncio é, um mandamento reiterado através dos séculos pelas -reli -
,
l' giões, pelos sistemas poHticos e pelos manuais de com·portamento. Silêncio das

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, SA~RAUTE, Nath,/ie. Tropismt:$. Pa'\': GalJim,rd, 119--1. p. 15. X, La PMi,de.
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IlIIrodll(<lo I' Introdlj fdo

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mulheres na igreja ou no templo; .maior ainda n a sinagoga ou na mesquita, aq uel as velhas mulheres fechadas em um mutismo de além-túmulo, que não
onde elas não podem nem m~smo penetrar na hora das o rações. Silêncio nas , se pode discernir se ele é um a vontade de se calar, uma incapacidade em co-
assembléias políticas povoadas de hQm~..Quu!e as tQ.mam de assalto com s'l.a munkar-se ou. uma ausência de um pensamento que foi destruid o de tanta
( logüênda masculina. Silêncio no espaço público onde sua intervenção cole.:. f impossibilidade de se e.,xpressa r.
tiva é assimilada à histeria do grito e a uma atitude barulhenta demais 'Como·a As mulheres não estão sozinhas nes Le silêncio profundo. Ele envolve o
da jjvida fácil'~ Silêncioj até mesmo na vida privada, quer se trate do salão do continente perdido das vidas tragadas pelo esquecimento em que se aniguilà a
século 19 onde calo:-se a conversação mais igualitária da elite das Luzes, afas- massa da humanidade Mas ele pesa mais fortemente sobre elas. em razão da
tada pelas obrigações mundanas. q1}e o rdenam que as mulheres evitem os as- desigualdade d"s sexos, esta "valênàa diferencial" (François Héritier) que es·
suntos maif quentes - a po~tica em primeiro lugar - suscetíveis de perturbar trutura o passado das sociedades. Esta desigualdade é o primeiro dado sobre o
a convivialidade, e que se limitel}'l às conveni ências da polidez. "Seja bela e cale ,
I qua l se enraízâ um segundo dado: a deficiência dos traços relativos às mulhe-
a boca", aconselha-se às moças casad~iras, para que evitem dizer bobagens ou
cometer indiscrições. I res e que dificulta tanto a sua apreensão no tempo, ainda que esta deficiência
seja diferente dependendo da época. Porque elas apareçem menos no espaço
, Evicle'ntemente as mulheres n ão respeitaratn estas injunções. Seus .sus-
I público, objeto mai or da 'observaçãQ e da narrativa) fala-se pouco ~elas e ai n-
r
surros e seus murmúrios correm -na casa, insinuam-se nos vilarejos, fazedores' da menos caso qu em.faça o relato seja um hOillem qqe se acomoda com uma
de boas ou más reputações, ciTculam na cidade.. misturados aos barulhos do
mercado ou da s loja's, inflados às vezes por suspeitos e insidiosos rum ores que
flutuam nas margens da opinião. Teme-se sua co nversa fiada e sua tagarelice,
I costumej(a ,ausência 1 serve-se de um masculino universal, de estereótipos glo-
baliza nte, ou da ,'upost. uniàdade dé um gênero: A MULHER. A falta de in-
formações concretas e s:ircunstan ciadas contrasta com a abu'ndância dos dis-
formas , no entanto, desvalo~izadas da fala. Os dom inados podem sempre,es- cursos e com a p~olifera ção de imagens. A5 mulheres são m~is imaginadas do
quivar-se, desviar as proibições, preçncher os vazios do,poder, as lacunas da que descrit~ ou çontadas, e fazer a sua história é, antes ,de tudo, inevi tavel-
História. Imagina-se, sàbe-se' que: ~s mulheres nãó deixaram de fazê-lo . Ere- mente, chocar-se contra este bloco de representações que as cobre e que é pre-
qüentemente, também, e1as~fizeram de seu silêncio uma arma. ' ...... ciso necessariamente an alisa r, sem saber como elas m es mas as viam e as vi-
Todavia, sua postura normal é a escuta, a espera, o guardaras palavras viam, como fizeram, nestas circun stâncias, sobretudo os historiadores daAn-
no fundo de si mesmas. Aceitar, conformar-se, obedecer, submeter-se e calar- tigüidade, como François Lissarague desvendando a , hi ~t6ria em quadrinl}os
se. Pois este silêncio, imposto pela ordem simbólica, não é somente o silêncio dos vasos gregos, ou da Idade Méclia"Veremos as perplexidades de um Gear·
da fala, mas t~bém o_da expressão, gestual ou escriturária. O corpo das mu- ges ~ uby) aó perscrutar as inlagehs medievais ou de um PaUl Veyne,.ao disse-
lheres, sua cab~ça, seu rosto devem às vezes ser cobertos e até mes mo velados. car os afrescos da Vila dos Mistérios. Ambos concluem por um caráter mascu-
'''As mulheres são feitas para esconder a sua vida" na sombra do gineceu. do - lino 'da~ obras e d~ ol~ar e interrogam-se quanto ao grau· de ~desão das mu-
ço nvento ou da casa. E O ~cesso ao livro e à escrita, modo de comunicação dis- . lheres a es ta figuração delas-mesmas. . .
tancia~a.e serpefltina, capaz dç enganar a s, c1ati sura~ e penetrar na intimidade........ I Outro exemplo de opacidade, mais contemporâneo: o das estatisticas.
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__ mais 1)em guardada, de perturbar um imaginário se'm pre disposto às tentações '
do sinhô,,, foi-lhes por muito ,tempo recusado, ou parcimoniosa mente cedido, I
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Elas são.na maior parte das vezes assexuadas. O recenseamento dos foros, du-'"
rante o.Antigo Regime, ou o da s famílias, nO"séc ulo ]9, repousa no chefe de fa-
como uma porta entrea1?erta parfl o infinito do dêsejo. mília. As estatlstiças agrícolas enumeram os "chefes dê: exploração" sem :deta-
Pois o silêncio era ao mesmo tempo disciplina do mund o. das fãinUias, II lhar o sexo, que se supõe obrigatoriamente masculino, com-o o dos "trabalha-
e dos corpos, regra políticã, social, familiar - as paredes da casa abafam os gri'- j dores diaristas': entre os quais havia tantas serventes. As mulheres de agricul-
tos das mulheres e das crianças a'g redidas -, pessoal. Ul1la mulher conveni en- ! tores ou de artesãos. cujo papel econômico era considerável, não são recensea-
te não se queixa, oão faz confidência$, exceto, para as ca(ólicas, a seu confes- lo' das, e seu trabalho, c,Onfundido com as tarefas domésticas e auxiliares, torn a-
sor, não se entrega. O pudor é su~ virtudel o silêncio, sua honra, a pOlito de , ' se assim invisivel. Em suma, as mulheres não "contam'~ E existe aí muito mais
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se tornar um a segunda natureza"A imposs,bilidade de faJar de si mesma aca-
oa por abolir o seu pr6pri~ ser,.ou ao men4s, o que se pode saber dele. Como " I do que simples inadvertência. Ainda hoje, n~s minjstérios,'é preciso (nsistir
para qu~.as estatístiQls sejam sex:uadas.

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Enfim, algumas fontes são, por definição, inexistentes para as mulheres:, I gredos. Por pudor, mas também por autodesvalorização, elas intedorizavam,
os róis da circunscrição e dQs conselhos de revisão, tão preciosos para o conhe- 1 de certa forma, o silêncio que as envolvia. O que Marguerite Duras evocou enr
cimento da descrição flsica dos jovens do século 19, ou ainda as listas eJ.eito-
-,, La Ma"ladie de la mort e Nathalie Sarraute, tão atenta aos murmúrio~ das rnu~
mis, I?~is as mulheres votaram apenas tardiamente (na França, a;n 1944). Por Iheresj em toda a sua obra.
isso, Alain Corbin, desejanp.o fazer a história de um desconhecido, de imediá-" Entretanto, a 'consideração crescente da vida privada, familiar ou pes-
to descartou as mulJ1eres. em razão desta carência de traços. Traços que já soal, modi~cou o olhar negligente que se tinha sobre as correspondências ou
eram muito poucos'para Louis-FrançoisPinagol, o'tamanqueiro da floresta de . o s diários íntimos. A ação d,e Philippe .Lejeúne e a acolhida que ele recebeu são
Belleme cujo '.'mundo" de conseguiu recQnstituir, e que seriam completamen- muito significativas a este respeito.~ As mulheres são, ao mesmo tempo, prota-
te inexistentes para a sua mulher, Anne P6té, de quem tudo é ignorado:NQcn- gonistas e beneficiárias deste esforço: AI; descobertas, depÓsitos e publicações
tant,o, as mulheres existem naquele vilarejo do Perçhe ·do qual ele encbntrou multiplicam-se, obra das mulheres sensibilizadas pela história de seus ances-
até a memória sonoraj mas em gruros - fiandeiras; caçadoras clandestinas, ar~ trais e desejosas de reencontrá-los,' 'e até mesmo ae torná-los visíveis, como
ruaceiras dos tumultos frumentkios ou religiosos - e não como pessoaS, como num ato de justiça e de poesia.
se elas não o fossem, o que coloca o problema de seu reconhedmento:indivi~ . A literatúra., esta epopéia do coração e da famllia, é, felizmente, infini-
dual. t preciso toda a indisciplina, sobretudo sexual, da . prima Angélica para tament~ mais rica. Ela nos fala do coti~iano e dos ~Cestados de mulher",' inclu-
chamar a atenção dos guardiães da ordem. 1 Assim, a matéria· que constitui as sive pelas muUleres que nela se introrpeteram. Pois a escuta diretd das."pala-
fontes integra a desigualdade sexual e a marginalização ou desvaloriz.1ção das vras de muLher"7 depende de seu acesso aos meios de expressão: o gesto, a fala,
, atividades femininas. ~ a escrita. O uso desta.última, essencial, repousa sobre o seu grau de alfabetiz..,-
Este defeito de registro primário é agravadô por um déficit de conser~ ção e o tipo de escrita que lhes é concedido. Inicialmente isoladas"na escrita"
vação dos traços. Pouca coisa nos arquivos públicos, destinados aos atos da ad~ privada e familiar, autorizadas a formas específicas de escrita pública (educ.,-
ministração e do poder, onde as mulheres aparecem ape.nas quando pertur- ção, '.!lridade, cozinha,"etiqueta ... ), elas se apropriaram progressivamente de
bam a ordem, o. que justamente elas fazem menos do que os homens, não' em todos os campos da comunicação - o jornalismo por exemplo' - e da criação:
virtude de uma"mitureza rara, mas devido à sua fraca presença, à sua hesitação poesia, romance sobtetudo. história às vezes, ciência e filosofia mais dificil-
também em dar
queixa quando elas são as vitimas. Conseqüentemente, os ar~ mente. Debates e combates balizam estaS travessias d~ uma fronteira que ten-
o
. quivos de polícia e de justiça; infmitamente preciosos para conhecimento d~ de'a se reconstituir, JB~dando ,de lugar. " )
pov~, homens e muiherês/ devem ser analisados até na forma sexuada de seu O volume e a natureza das fontes das mulheres e sobre as muJ}leres va~
abastecimento.
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r.i am conseqüentemente ao longo do tempo: Eles ~são por .m esmos índices de
Os arquivos privados conservados nos gran~~s depõsitos públicos: são , 'I sua presença e sinal de uma tomada da palavra que se-amplia e faz recuãr o si-
quase exdusivamente os dos "gra ndes homens", políticos, empresários, escrito-_ lêncio, às vezes tão intenso
, que Ghegamos a nos perguntar: " Uma história
,
das
mulheres seria possível?': O que implica em um outro uso das fontes que se
- Os arquivos famjliares, até recentemente, não haviam chamado
- res, criadores.
uma /ãtenção particular. Ao longo de mudanças, destruições maciçfls foram
provocadas por ;herdeiros indiferentes por 'm uito tempo, ou at~ ~esmq pel<is
4 A mediateca de Am~rieu-en-Bugey (OI 500) abriga 0$ arquivos da A$soÇiação
próprias mulheres, pouCO pre.Qcu padas em deixar traços de seu~ eventuais se-
'I para a autobiografia criada."por Philíppe u;eune e publica La Fllute d Rousseau. •
5 A título de exemplo recente, cf. DEGOUMOIS, Valy. Ainsi furent-e1ItS. Dtstirts au
2 CORBIN, A1aín: Le Monde r~,rollvi de LQuis-François P;nag~t. Sur fes troces d'un fêmi"in. Saint-G ingolph, CH: Mitions Cebédita,·1998. (~U. Archives vivantes)
incor,"u (1798-1876).. Paris: FlammôU'ion, 1998. ~ HEINICH, Nathalie. ltals de femme.. L'ide~tité jét1li"ine 'dans la flCtiotl occiden tale.
3 Como moStram os trabalhos de Arlett~ Frage. de tlisabeth Cla"cric c Piem~
, Paris: Gallimard. 1996.
~ mai$On ~ de Anne-Marie $ohn, ChrysalifltS. Femll1ts dans '!l vie privée XIXi -)(Xt 7 Mona Owuf, Paris: Fayard, 1995.
sllcfes. ParIS: Sorbonnc, 1996, 1 . \ '" 8 VEAUVY, Christine õ PISANO, Laura. Paroles ollbliées. Paris:"'. Colin, 199'7.

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deve bUSc.1 r, ler diferente"m ente, suscitar até rn es mo para os períodos recentes, sil êncio cúmplice. Pouêo ilJ1po rta. O positi vismo d e fim de século afasta estas
como a história chamada de "oral" tentou fazer. palàvras vãs de uma imaginação ' romântica. Q uanto aos Anllales ( 1929) de
Assim', longe de ser fruto do acaso, a constituição do Arquivo, da mes- Mar c Bloch e Lucien Febvre, ao substituir o político pelo econômico e o s o-
ma forma que a constitui ção ainda mais sutil da Memória, é o resultado de cial, não realizam grande ruptura neste aspecto, a d espeito das .brilhantes
um a sedimenta çãO seletiva prod uzida pelas relações de fo rça e pelos sistemas . abertura s de Lucien Fehvre nesta direção. 10 Mulheres. relações entre os sexos,
de valor. . , .,,- , até m esmo família q ue, paralelamente, a soCiologia individualista de lOmile
O m esm o ocorre no que concerne à nar rativa histó rica, o utro nível des-
Durkheim abandonava ao holismo conservador de Frédéric Le Piar, eram
I tes silênci os en caixados uns nos outros, _ .)
quantidades negligenciáveis.
I e o olha; que faz a l-i;st6ria. 'No coração de quàlquer relato histórico, .V
Ora, vInte e Ginco anos depois as coisas mudaram .
há a vontade de saber. No que s~ refere às mulheres, es ta vontade fa i por mui-
Porque, como o silêncio foi rompido?
to tempo inexistente. Escrever a hi stó ria d as mulheres sup õe que elas sejam
O nascimento de um a história das mulheres inscreve-se no campo mais
levadas a sé~io, que se d ê à relação entre os sexos um peso, ainda que relativo,
vasto das ciências human;ls, desigualmente visitapas pelo sexo. Ela não é pró-
nos acontecimentos ou na evolução das sociedades. O que não era o caso, e
pria d a Fran.ça. m as do conjunto do mund o ocidental. Os Estados Unidos fo- .
"justamente por parte das próprias mulheres, inclusive "as mais ~mportantes . .-
"".toda a história das mulheres foi feita pelos ho mens", escreve Simone de ,
ram 'pioneiros. utilizand o às vezes
. elem entos
. 'elaborados pela velha Europa e
por ela desprezados. A vida intelectual é feita destas idas e vindas, destas inces-
Beauvoir; fias mulh~res nunc'J disp~tararn este império co m eles". Até m es ~o
santes bricolágens. .
F o femin ism o não é, segundo ela, "um moviinento autônomO". Para a autora
Como as coisas aconteceram na França? A p ublicação d o livro de Fran-
d'O Segundo Sexo .(1949) a ànáli se 'da condição fe minina está mais ligada a
çoise Thébaud, Ecrire {,"istoire des femmes (1981 l:" a melhor i'presentação bis-
uma antropo logia, et:ltão estrutural e triunfante, do que a uma história, ine~
toriográfica até agora, indispensável a partir de seu lançamento, di spensa-me
xi stente, a séus o lhos.
de estender-me sobre esta genealogia abundante. Para ir mais rápido, eu d iria
, A lo nga historiografia do sil êncio, por si só cheia de interes.se, não é aqui
que três séries de fatores imbricados expl icam este surgimento: fa tores cientí-
o meu tema. Eu evocarei simplesmente os seus horizontes próximos. A consti-
ficos, sociol6gicos, políticos.' .
tllição da hi stória como disciplina 'fcientifica" no século 19 reforça seu caráter
Fatores /cientificos, inicialmente. Eles.estão ligados à crise dos grandes
viril. Em suá prática, a partir de então nas 'mãos dos universitári os (o diplç'ma
pamdigmas e.xplicativos e à renovação dos contatos disciplinares nas d écadas
d e magistério..em história foi criado em 1829). Em seu conteúdo, caefa ~ez mais .
de 19.60- t"970. O estruturalismo vira, evidentemente, na "troca dos bens, troca '
entregue à história p ública e política em' que as m~ lheres não estão presentes. _
das mulheres" um d.ado elem entar do funcionamento do parentesê~, mas sem
Jules Michelet foi uma exceção, muito atento ao papel d as mulheres no
. ir m ais lo nge nas rela.ç ães de sexos. Françoise H éritier, que sucedeu Oaude
passado e no presente. ''As mulheres, que poder! ", di zia' ele. E ele l.he~ declica
." Lévi-Stra uss no College' d e FranC"e, tevé o' grande mérito de retomar a r~f] exào
págin ~s brilhantes em seus livros, frases substanciais em sua s aula s, que elas;-
a partir de onde ele a ha~ia deixado. Seu livro Masculifl/fé~Jit1;'1.' La p~nsée de
- auçlit6rio <Jpaixonado e silencioso, vêm escutar em massa. M.as ao assimilar as
la différet1cc 1 é o po nto mai s acabado desta volta à constr ução do pensamento
muJhere~ à natureza, cujo pólo branco e lum inoso só pode ser a m aternidade,
simbólico. O mar~ s.mo tam bém colocara obs,áculos à form ulação de um Ipen-
e os hom ens à' cultura racional e heró ica. denunciando na invetsão dos papéis "
a chave do's 'desregr~mentos das 'sociedades; Michelet aceita as representações I
de se u tempo. sobretudo as .representações d e uma sociologia balbuciante.' A la FEBVRE, Lucien. AmoÍl r sacré. Qmour profQne. Autou,r de I'Heptémaron. Paris:
bar ulht;:nta irrupção das mulheres, para ~cheJet, é também o desejo de seu GaUimard, 1944. (Folio-histoire_1996)
11 TH~BAUD. Françoise. Ecrire I'histoire de femmes. FontenayISaint.Clou~( ENS tdi-
, tions, 1998. (Distribution Ophrys, la, rue de Nesle. 75006, Paris)
9 GEORGOUDI, 5"lIa. Bachoren, le 'mart,t rca: et le monde antique. Histoi" des 12 H.tRITIER, Françoise. MasculinIFbnini" . LA petuie de " a diffiren ce. Paris: Odile
femmes.l, Paris. p. 4n-491, 1991. 1 , Jacob. 1996.
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IIl'rPd'IÇM
IntrPdllflJo

sa rnento feminista. No entanto, ele Lhe forneceu seus primeiros qu"dros e, des- ,
to de vis ta, a ambição - a pretensão? ~ do feminismo em reali zar uma "rup-
te ponto de vista, a pesquisa inicial de Ch rístine Delphy é. um exemplo de r
tura epistemológica" suscitàva ceticismo e- reserva. lncluir as ,mulheres, ainda
transferência de conce.itos. Profundamente materialista, ela substitui a teoria
vá. Mas o gênero e- suas intenções de "desconstrução"? Na verdade, nos anos
da exploração pda burguesia pela da dominação pelo patriarcado, em que o
70, a questão era muito pouco colocada, e ainda menos em história do que em
proletariado se transforma em "classe de sexo':" outras áreas .
. Os historiadore.s, por sua vez, aproximavam-se da al1trop'ologiae da et-
No lado da sociologia, a feminização da universidade, inicialmente no
nologia, enquanto ádemografia histórica se desenvolvia, ávida de reconstitui:-
JJível do público, e depois, mais·tardiamente, dos professores, favoreceu o nas--'
ção das .famílias, a grande realização de Louis Henry desde a década de 1960,
cimento de novas expectativas, de questionamentos diferentes, e conseqüente-
que colocava em evidência a diferenciação sexual em matéria de casamento mente o desenvolvimento de cursos e eesquisas, sobre as mulheres. As paixões
(taxa, idade), celibato, mortalid~de, etc. L'Histoire de la famille (A História da e os interesses se ço nj,ugam, da maneira mais clássica, na constituição de um
familia), a importância dada a partir de en tão às "culturas fa miliares" assina- novo "campo".
lam est;) vol.ta à familia esquecida. 14 A família, no entanto, não fala aut~mati­ A demanda social (grand e expressão dos anos 80), entretanto, não agiu
camente das mulheres. Desta forma, para os períodos antigos, é dificil saber sozinha. Fatores pol1ticos concorreram para esta ec.Iosão: o movimento de li-
qoal deve ter sido o seu papel num controle da natalidade, ~u1to precoce na beração das mulheres - o MLF - surgido nos anos 70 dos silêncios (olais um
. França. Mas os trabalhos dos etnólogos, como Martine Segale)l e Yvonne Ver- deles) de Maio de 1968 sobre as mulheres. Evidentemente, aquele movim~nto
dier, tomavam-nas por inteiro. A última, em Fdçons de dire, façons de faire, U su- não tinha como preocupa~ão primeira fazer história, mas conquistar o direi to
blinháva seu lugar no centro do vilarejo (Minot, na Borgonha) e seu poder cul- à contracepção. ao aborto e, mais amplamente, à dignidade do corpo dasmu-
tural, um poder inscrito no corpo, o 'que provocou discussões com as historia- Iheres, enfim reconhecidas como indivíduos livres para Escolher (Choisir), se-
dOras, desafiadoras diante de qualquer retorno sub-reptício à naturez..1. Mas b
gundo belo nome da associação fundada .por Gisêle Halimi. Mas ele desen-
esta ~ uma outra questão, a questão dos debates dos anos 80. volvê~ em sua caminhilda uma dupla necessidade: wn desejo de memória, de
Estes reencontros com a antropologia, a família, o casamento... parecem reencontrar os traços - as figuras, os acontecimentos, os textos ... _, de um mo- .
rter marcado fortemente a obra de Georges Duby 'que, a pa~tir da metade dos virnento particularmente 'amnésico; uma vontade de fazér a critica do saber-
anos 70, dá cada veZ mais atenção·ao silêncio das mulheres, que se transform a- constituído, pelo questionamento dos diversos parâmetros que o fundarn: o
rá em {)bsessão. na última parte de sua carreira. universal, a idéia de natureza, a diferença dos sexos, aS ,relações do público e do
_ Por outro J~do, a explosão da História - chegou -se a faJar em "história 'privado, o problema do valor, o da neutralidade da linguagem, etc.. Grupos fo-
em migalhas" - fa~orecia o surgimento de novos objetos: a criaI)ça.. a louCUra,- ;... rrup constituídos, semi~ários~ cursos, colóq uios (âesde -1975 em Aix sob~e "as
a sexualidade, a vida priv"da ... Por que não "s mulheres?" ~ulheres e as ciências humanas" ) foram ~rgani~ados. O refluxo do movimen- .'
A "nova história'~ nome geralmente dado à segunda ger~ç;io dos AlIna- to, satisfeito com seus objetivos legislativos maiores, provocou um desvio das.
les, mpstrava-se assim, ",o mesmo tempo, muito favorável à inovação, à cria-·- energias para'il pesquisa. A· chegada da esquerda ao poder (1981) criou uma
-ção de -novás temáticas, mas reticente diante de qualquer esforço de teoriza- conjuntura propkia a uma relativa institucion aHzação_ O colóquio de.Toulou:
c
ção, em que ela farei.,ava os vestlgios de um m arxismo requentado. Deste pon- se (dezembro de 1982) sobre "mulheres, feminismo e pesquisa" indica c<imo a
'- . década de 1970-1980 fora fecunda. " Treze anos mais tarde, em 1995, 0 ~oló­
.'.
\ quio de Paris permite que se faça ~ segundo balanço. Encontraremos seus
13 DELPHY, Christine. L'Etmemi prinçipal_ Pa,ris: Syllepse. 1998. I: L'é(:onomie poli-
ecos nos artigos que se seguem. ~
tique du patriarcat.
A História obtivera um lugar dinâmicç. Seu desenvolvimento foi um a '
14 BllRGUlêRE. Andr~; KLAPISH-ZuSER, Christiane. Hisroire de la famille. Paris:
Colin, 1986.2 t.; BURGUrtRE,Andrt; REj ' L.:Jacques (Dir.). Hi~rojrede la Frnnce.
a-ventura coletiva na qual centenas, ou até '?lesmo milhares de pessoas, toma-
Les formes de la. clt/turc. Paris: ~u il, 1994. . I
15 Yvonne Verdier, Paris: Gallimard, 1979. 1 - 16 PICQ, Françoist. Libératiotl dcs!emmes. Les an.nées-mouvemen.t. P3ris: Seuil. 1993.
"
-.:
16 ·
,
17
Jlurodl<rilo Inrrodufdo

~.
ram parte. Seu relato ultrapassa meu prop~sito. Eu gostaria simplesmente de pação qu e identificam sumariamente as mulheres e O femi'nin o com o arcais-
dizer, sem fazer minha "ego-história", como participei dela e como a vivi. mo, ainda por cima "b~guês", ' . .
Conheci, dé maneira quase caricatural, o silêncio imposto às JnUUlere~· 'Pois eu dete~ tava a ·"burguesia", insuportável pecado original, Como
por minha educação em um colégio religioso ·de moças, cujo peso da contri- . Mauriac, cuja obra eu degustava no negrume de' uma execrável província ca-
ção '~ e a exigência de sacr.ifído foram aumentados p~l a guerra;'7 e a liberação tólica, eu 'deplorava ter "nascido no campo dos injustos", que, na sua maioria,
pela palavra sobe[~Jla de um pai que me tratava como o filho que ele sem dú- h~viam traido. A classe operária, flamejan te, das greves de 1936, mais resisten-
vida teria desejado. Na França ,do pós-guerra, tão conservadora em matéria de te do que outras dura~1te a guerra, aureolada por uma fraternidade zombetei-
papéis sexuais, era uma sorte e um apoio decisivo. Esportes, leituras e alimen- 1'a que Gabin parecia incamar, era ao mesmo tempo a figura da injustiça e a da
tos fortes, estudos, viagens ... , tudo me era proposto, e eu devo apenas à minha salvação. Em suma: o social .primava sobre o sexual, que nem mesmo era reco-
timidez embaraçosa o fato de.não ter aproveitado mais audaciosamente, En- . nhecido; a virilidade dos camaradas sob re a vir tude queixosa das mulheres.
treta nto,"eu aderia plenam en te ao modelo que me era oferecido: o de uma mu- A Sorbonne dos anos 1947- 195 l preenchi a-me, apesar de seu academi-
lher indep~ndente qu e ganha a suâ vida e só se casa, even.tualmen te, bem mais cismo abafado. O curso de Ernest ~1brousse' e sua ação para ;"ili introd uzir a
tarde e por amor. " , história operária seduziram-me como a tantos outros de mÍJll1a geração. Inci-
I' Minha mãe, que sofrera por não poder seguir, devido às exigências do- tada por ele (e a d espeito de ul}la tentação veleidosa de trabalhar sobre as mu-
l
mésticas de um pai viúvo, uma ça'rreira artística para a qual era dotada (ela lheres, apesar de tudo), comecei o estudo,da s greves, que foi mais tarde o ob:
co nservou até a sua morte recente e tardia, em ,1995, co m noventa. e oito anos, e
jeto de mi~h. tese, escrita' entre' 1967 197ó' e defendida em 1971. As mulhe-
< belos desenhos; pesar no stálgico de seu talento cOI)trariado) apoiava ' estas res eram ali minoritárias. A greve, ligada aos assalariado.s em se u ~onjunto, é
( perspectivas. Todavia, mantin~a-sé um po-uco reservada sóbre seus riscos po~­
't siveis quanto a um a feminilidade cuja elegâ9cia era,~a ' seus olhos,. o primeiro
um ato Viril. ·a o passo que os problemas de 'subsistência são uma questão 4as .
mulheres. lodavih,· fiquei 'tocada po~ sua subordina ção. .
I!:
dos mandamentos. O en sino, uma eventual carreira universitária (que, de fãto • . Os te;"pos rt;'Iudavarn,"i'mperceptivelrnente. Brigiúe Bardot, cuja imper ·
eu nem m esmo pretendia, ignorando tudo o'que se referia a ela), apavoravam- tinente liberdad e eu aplaudia, Fran~oise Sagan, t liane Victor e suas "Mulhe'res
.. na co mo uma irremediável descida aos infernos de uma sombria austeridade, .télmbém" na televisão, muitas outras introduziam notas discordantes. As so-
cujo exemplõ .lhe havia sido dado pelos professores de seu bem-amado liceu ciólogas começavam a se mexer. AndTée Michel, .tvelyne Sulle.rot, Madeleine
Fénelon, no início do século 20. Ela temia para mim a desgraça de um cellba- · -Guilbert publicavam se us primeiros livros. A partir de '1964, o Planejam~nto
to de necessidade e sem elegância. O que havia de
femin ino. rio universo ma- Fam iliar (fundado em 1956) mobilizava cada vez mais muUIeres. Ele foi o ban -
terno - o apego- ~.uma casa, a um jardim: ao Cenário da vida, à doçura das coi:.. '. co de ensaio do feminismo, " :
sas - eu considerava enfadonho. Eu preferia Géline: que meu pai admirava, a Seguiu ~se Maio de' 1968. Professora·assistente na Sorbonne, eu partici-
. Colette, venerada por minh~ mãe, a quem eu também tantas vezes impus si- pei intensamente das manifestações e 'd os inumeráveis comIcios e reuniões da
lêncio. Eu não lhe'fiz justiça senão bem mai$ tarde,· Fazer i;l hi~tória das mulhe:-
res per~itiu-me compreender a sua e eDcon~á-la enfim. '
"
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Sorbonne ocupada sobretudo para reforma uníversüária, aquel a "universida-
de crítica" com a qual muitos de 'nós sonhávamos.
O mundo dos homens me atra'ia e o das mulheres me parecia tão tedio- Donde iLminha adesão deterplinada à formação de uma das novas uni-
so quanto derrisório. Simone de Beauvoir, que aliás pensava então quase des- versidades, criadas' pa ra descongestiona.r a velha Sorbonne, pletórica. PGrigosa .
ta mesma forma, (oi o meu inaces.sivel modelo, talvez menos por suas obras - e já sem fôlego. Paris-VII ," a UJ1iversidade criada, absorveu minhas energias. Foi
levei tempo' para assimilar e l~eSm ({para l~r O Segundo Sexo, que me aborre:-'
J uma escolha de que não me arrependi. De 1970' a 1973, fiz ali toda a ininha
" cera de início - do que por sua vida cuja_~udácia eu admirava se m ousar imi-
,, tar. Eu compartilhava da misoginia habitu'al das mulheres em vias de emanci-
I" 18 Sylvie 'Chaperon. Le Creux de la vagJ-le, a ser' publicado: sobre o femini smo dos anos
I. 1. I ~45-, 1 970. com um estudo sob re a publicação do Dellxieme Sexe. de sua recepção
'17 ·MUEL·DREYFUS. Francine. Vichy tI l'é~melfé",ini". Paris: Seuil, 1996. , e de seus efeitos. These, Institut Européen de Florence, 199~.
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carreira, em condições às vetes difíceis, mas com gran.de liberdade e reais pos- tema. Depois desta entrada ,tr·iunfal, os cursos· seguintes foram mais calrpos.
sibilidades de inovação. . Pude,mos escutar tranqüilamente falar sobre o comportamento dos babufnos
Pois, a I?artir dai, o ritmo se a~elera . O movimento das mulheres, de cuja .e da mulher . pré-histórica,' da situação respectiva das mulheres americanas e
base eu participei, ocasionou a minba "conversãd feminista" e meu engaja- africanas; a doutora Retel abriu -nos novos horizontes ao nos apresentar suas r
mento na história das muJheres, transformada então em um dos eixos maio- pesquisas sobre a esterilidade das mulJ:teres Nzacants,-víti,mas de ~oenças ve-
res de meu trabaLho.' t pe"s ia crõnica, erocarei apenas algumas datas e episódios néreas, tão sós em sua vergonha, assim como .o são as mulheres africanas doen-
significativos ou agrãdáveis. tes de AlDS. FreqUentemente se faz silêncio sobre as doenças das mulheres.
1973: primeiro curso sobre as mulheres em Jussieu , com Fabienne Bock Penso, por exemplo, no câncer de seio, tão pouco falado, mas grande causa de
e Pauline Schmitt, intituJado: "As mulheres têm uma hist6ria?'~ Haviamos-es- mortalidade. apesar d.e seu recuo,
colhido este título interrogativo'propositadam,entç, pois apesar de tudo não es- Sinal dos tempos (dos anos 70): dedicamos duas sessões às ·m.ulheres
távamos certas da resposta. "As mulheres são apenas O n6 quase"imóvel das es- chinesas. Claude Broyelle. acabaya d.e publicar La Moitié du cieI, em que cele-
j
truturas de parentesco? Sua história·se confunde com a história da família? Em brava os méritos do maoismo que integrava as mulheres na produção livr:an-
suas relações com o outro sexo, com a sociedade global, quais são os fatores de do-as do doméstico com equipamentos .coletivós, Na nova cultura, a sexuali-
mudança? Os cortes fund~mentais?", escrevíamos em uma apresentação limi- dade, considerada Como uma "in~enção burguesa': não era uma prioridade.
nar que mostr~ a..que ponto ér_amC?s também influenciadas peJa antropologia Jean Chesne~ux, eminente especialista e conferencista, preocupou-se em subli-
estruturalista e_a ·visão de mulheres enraizadas na família, mas também nossa nhar que "contradições" continuavam a existir.
insa ti"sfação quanto a isto, A ponta da dúvida, a suspeita da mudança tocam No segundo semestre, Pierre Viaal-Naquet, Jacq"ues Le G.off. Jean-Louis
. este texto, Desprovidas de problemática, tanto quanto de materiais, havfamos Flandrin. Emmanuel Le Roy Ladurie, Mona Ozouf, .. nos falaram da condição
deciclido proced~r por conferências e apelar a nossos colegas sociólogos para das mulheres em seus períodos respectivos, Eles o qzeram voluntariamente,
um primei.co ~emestre IItempo presente': e historh\dores para um segundo se- considerando que se tratava de uma questão legitima, de fato pouco abordada;
mestre batizado de "referências hist6ricas'~ - . e louvaram o título interrogativo do curso. Em sUma, foi uma abertura "à fran-
Em 7 de novembro, numa sála repleta, superaquecida, diante "da presen- cesa': muito distante das'controvérsias americanas de que tomávamós conhe-
ça de estudantes esquerdistas hostis ao curso por considerarem que ocupar-se cim,ento então, Nos an~s seguiotes, tdmamos nosso destino em nossas mãos,
das mulheres era desviar-se da revolução, Andrée Michel abriu fogo com uma ··com cursos mais aflfmativos sobre "Mulher e familia", "Mulher e trabal~o",
conferência. . sobre U,A mulher e a família nas sociedades d~senvolvidas·: opon- "História dos feminismos", etc, Houve ainda momentos surpreendentes como
do dois umodelos·~. tradicjoaal e moderno. Ela foi cortês mas vigorosamente _ á. vinda de PierTe Samuel, que, ao ler o titu lo de um curso, propôs ,s~us servi-
atacada por rapazes dentre os quais um a criticava por referir-se a "modelos fa- . ços:Srilhánte matemático, ele vinha de uma família de helenistas e .pediu per-
miliares", ao passo que "não queremos mais saber da famUia n • diziã ele; um ou- missão para escrever no quadro em grego, ficanqo muit~ espantado e entriste-
tro a aCusava de não evocar o orgasmo, acariciando os longos cabelos de uma-- cido ao....ver que os ~studantes presentes - historiadores! - não conseguiam
-bela loir~ $entada no chão, ao ·seu lado (não havia mais cadeiras disponiyeis acompanhá-lo, Ele publicara u·m livro, AmazO!le5, guerrieres et gaillardes. em
devido à grandé afluência), O que:fez as· moças da platéia caírept na gargalha- que demonstrava que na 'G~écia Arcaica as mulheres usavam a lança e as a}mas
/
da, solidárias com a sua· c.ompanheira: "Seria preciso talvez perguntar a sua ' com maestria e tinham tão bons resultados nas co~ridas quanto os homeAs. A
opinjão". Andrée Michel explicava cOPl serenidade que "modelos" não tinham
para os sociólogos nenhum sentido no~ma~vo e que orgasmo não era O se~
-
pretensa fraqueza das mulheres não estava i.nscrita em seus corpos, mas o re-·
, .
sultado pernicioso de sua imobilização pela civilização, Este ardente defensor
do vigor feminin~ era acompanhado por Françoise Q-'Eaubonne', que compar-
19 "Vinte e cinco ~nos fe~inistaI-ém·P3ris.V1I",
de est1;ldos an ..is de um colóquio , , tiUlílva de seu feminismo radical e cujo chapéu preto de abas largas causou
sensação, A época era efervescente e tínhamos a sensação d( descobrir um
(novembro de 1997) a sereJ1l publicados nbs Cal,iers du CEDREF, organizado por.
Liliane Kandel e Claude Zaidman, I novo mundo,
"
/.
20 21
l/lt""dl/fi!o . Inr'rod'lçiIo ••
Nós O fazíamos também por meio de seminários de maior ou menor
••
••
do colóquio de Saint-Maximin (Ulle "istoire des femmes eSI-eUépossible?, 1983 )
forma lidade, em que aprofundávamos a reflexão, No GEF (GruPQ de estudos e enfim, ele forne~u o núcleo responsável por Histoire des femmes en OccidcHt,
,
pri~l1eira tentativa de si ntese de pesquisas que, por outro lado, desenvolviam-
lo { .
, feministas), por exemplo. fundado em 1974 por Françoise Basch e por 'mim
mesma. Ali n55 nos encontrávamos entre mulheres (era uma decisão delibera-

••
se intensamente . . . .
da), para discutir, asperamente às vezes, problemas mais canden tes': o estatuto Havia, de. fato, uma forte demanda estudantil (majoritaríamenté femj-
da psicanálise, do qual o;grupo "Psicanálise e politica" (Psych e Po) de Antoi- nina) por mestrados, em seguida por teses, que eu me esforçava em orientar e
nette Fouque fazia s~u principal instrumento, a invisjbi,l idade do ttabalho do-

••
acolher em meu seminári o. Seminário que eu tentei transformar em um lugar
méstico (seria necessário reivindicar a sua remuneração? A resposta foi nega- 'estável e aberto ónde, às segundas ~ no ite, podia-se sempre "dar uma passada':
tiva ), o alcance, libertador ou não do assa1ariamen~o para as mulheres, a ques-). Meu objetivo era favorecer a fala e as trocas, fazer circular a informação, per-
tão do erotismo e da pornogra6a, a homossexuaüdade. etc. Graças a Françoi-
se Basch e a sua s colegas - Marie-Claire Pasquier, Françoise Barret-Ducrocq ...
- do departamento de línguas e civilização anglo -americanas (Charles V) nós
mitir qu'e cada um estabelecesse conta tos, em uma perspectiva de rede, -nacio-
nal e in ternac ional (houve anos.com domínio grego, ou brasileiro, sempre com
a presença das japonesas), suscetrvel de servir de paliativo à fraqueza institu- ••

'.
tivemos contato com as pesquisadoras americanas e os Women's Stud.i es, so- cional ligada à rigidez acadêmica francesa.
bretudo durante os encontros do MouJin d'Andé ( 1979), quando conhecemos Este m ovimento de pesquisas sob re as mulheres efa geral Ele atravessa-
Catherine Stimpso n, a fundadora de Sig11S, CaroU Smith-Rosenberg, cujo arti- va as discipünas. O objeto "mulheres" era plural e não pertencia 'a ninguém em
go sobre "The femaJe world of lo've and rit~al n causara sensação,· Claudi~
Koonz, cuja tese ~obre Les Meres-patrie du Troisieme Reich renovava, não sem
controvérsias, a abordagem das relações mulheres e nazismo,ll que Rita Thal-
particular. Filósofas, historiadoras, sociólogas, literatas trabalhavam juntas,
com talvez um pouco mais de ,distância em relação às ciências "psi': justamen-
te na medida em que o questionamento da psica nálise era vigoroso. Entre as ••
m?nn havia desbravado amplamente.
Na EHESS (.École de~ hautes études en sciences sociales,- Escola de Al~ .
tos Estudos em Ciências Sociais), a partir de 1978-79, (otOlara-se, em torno de
paladinas do feminino, portador de cultura e, porque não?, de alternati.va po-
lítica, e as partidárias da diferença igualitária, desconstruída, libertadora de es-
'colhas individuais em que ã variante s~ual seria apenas uma .entre outras, as
••
Christiane KJapisch, Arlette Farge, Cécile Dauphin ... Pierrette Pézerat, às quais
juntara.~n-se Geneviêve Fraise,: Pauline.Schmitt e depoi; Yànnkk Ripa, Dan.ie-
divergências continuavam fortes. Elas atenuaram-se nos dias de hoje e sobre-
tudo deslocaram-se' e recompuseram-se corls ideravelm~nte, M.as, e daí?
Nascid-o de interroga ções múltiplas, este movimento ultrapassava am-
••
••
le Voldman, Véronique Nahoum-Grappe, Rose-Marie Lagrave, Nancy Green,
plamente as universidadés, ainda que, pela força e pela inércia das coisas, elas
etc., um grupo que devia ao seu caráter informal e autogerido; uma parte de
sua iniciativa e de .sua influência. A idéia inicial era de nos encontrarmos à _
, tivessem tendência a absor,Vê-lo. Era preciso ainda que houvesse professores
\ em relativa posição de poder, capazes de introduzi r esta perspectiva ... Este foi

••
margem de nossas obrigações profissionais. em total liberdade, para ler, refle- ~
o caso especialment e. de Toulouse) com Rolande Trem pé, Mar.ie-France Brive e
tir, debater, apropriarmo:nos da reflexão feminis ta, sobretudo norte-a mer'ica-
"
na, n,as 'também epropéia (italiana em parti<:=ular), bem como das obras Ae- Agnes Fine e .e m Aix, onde, graças à Y.vOnne Knibiehler, aconteceu o primeiro
colóquio sobr~ "As n'-tulheres, e as ciências humanas", em j.urlho de 1975, e~ que
- Maorice.GÓdelie,r ou de George? Duby. Seminário de leitu ra e de nivelamen-
to, e,$te grupo revelou-se eficaz, 'Ele foi, com o ÇEF, o principal supo,r te de Pe-
lIélope, primeiros C.hiers poll~ l'hisloire des femmes (1979-1985, 13 edições),
tive a oportunidade de apresentar um primeiro balanço (aind~ muito modes-
to) e de esboçar uma problemática de pesquisa resolutamente relacional e sus- ••
••
cetível de transforfl'!ar a vi.são global da História.
~
, Esta também era a i;ntenção de Histoire des femnles en Occidentque nos
-,
20 SMlTH·ROSENBERG, Carroll. The. femaJe world of love and ritual: relations mobilizou (e-me monopolizou) entre 1987 e 1 ~92, Eu já co ntei tantas vezes
,
••
between women' in XIXth ccntu ry Ameriêa. Signs, I, I, 1975. 1-20 (trAr. em Les como nasceu e o que foi inicialmente a Storia que hesito a repetir. Mas, como
Tet'~pjJllodernts. 19n- 1978). i .-'. e
aquele livro representou um ponto de cristalização maior provocou, ao me-
, 21 KOONZ, Claudia. Les Meres-patrie du nofsilme Reích. Paris: Licu .commun; 01 989 nos n a França, uma mudança de esta tuto.da história das mulheres, é difícil n-3.o
(ed-, americana 1986). \ '-

••
I evocá-lo neste ·panorama de uma paisagem recomposta ..

.'
......
"

L
22

I.c'--
23

1,lIroJIIÇ,}Q
'm,wupJo

Deve-se a primeira iniciativa a Vito e Guiseppe !.atena, editora fami~jar, européia, que só poderia nos agradar. A aventur~ valia 'a pena ser tentada, pois,
conhecida por sua resistência ao fascismo, suas ligações com a esquerda italia- ainda por cima, ela nos era oferecida. "
na e sua abertura para as ciências humanas, principalmente francesas. Laterza Era o outono de 1987. Em junho de 1988, um colóquio reuniu no hotei.
~

traduzira com sucesso na Itália L'Histoire de la v;e privée, que Philippe Aries e Talleyrand-Gallifet da rua de Varenne, sede do Cen~o Cultural Italiano, a
Georges Duby coordenavam e cujo tomo 4 (século 19) eu havia organizado. maiqria das setenta colaboradoras (e colaboradores) da obra, cujos cinco vo-
Por que não, diziam des, um Storia della Do;ma? Georges Duby, ao ser cõnsul:- lumes foram publica.d os paralelàmente na Itália e na França,u entre 1990 e
lado, aquiesceu imecÚatamente'e juntou-se a mim·. Era a primavera de 1987; eu 1992.-Trabalho conduzido com facilidade; graças à competência e à atividade
a'cabava de sair da Vie privée, tinha outros. projetos e tinha gr~mde vontade de das diretoras ·de volumes: Pauline Schmit (1), Christiane Klapish-Zuber (ll),
recusar este trabalho. Mas meus interlqcutores insistiam. Georges -Duby, em Arlette Farge e Nathalie Davis (II!), Genevieve Fraise e eu (TV), Françoise Thé-
particular, estava convencido da atualidade da empreitada. Atento aos aconte- baud (V) que desejara reunir-se aOZlúcleo inici~L Foi um trabaJho intenso,
cimentos contemporâneos, e ao movimento das mulheres que ele tambéIl}. nl~s no qual tivemos grande prazer. Eu, em todo caso, que fui talvez a princi-
percebia 'pO! aquelas que o cercava;'l - sua esposa, suas filhas -, ele lhes dedi- pal beneficiária desta situação, Penso tamJ>ém, aqui e acolá, nas estudantes e
cava, desde ~ metade da década de 1970, um lugar crescente em sua reflexão, doutorandas de Jussieu, muitas das quais integraram a universidade. Graças. a.
seus cursos e seus escritos. "A mulher, O amQr, O cavaleiro" é publicado em ~las, a história das \Dulheres continua. Então, muito obrigada.
L'Histoire em 1978, O Cavaleiro, a mulher e o 'padre em 1981. Ele mostra no po- ."P. raro poder conciliar um projeto que seja simultaneamente individual, .
der de obstrução das mulheres: em s ua s maiores exigências, um agente de intelectual e polftico (no sentido mais forte e cidadão do termo). A história das
transformação do casamento em que o co nsentimento torna-se cada vez mais mulheres o permitia. De minJ:a párte. foi assim que a vivi e particu1arment~
central. Da' mesma forma que o amor cortês era uma nova tatica de sedução durante este último. trabalho. Tive o sentimento de encontrar as mulheres que
tornada necessária pela r~sistência das mutheres. Âs relações amorosas era!fl por muito tempo eu evitara. Encontrar a súa amizade, sua alegria, suas angús-
ti;lS, sua procura de um sentido; o sentimento de melhor compreender aque-
também relações d. poder em .q ue as mulheres jogavam o seu jogo. Dai a ade-
las linhagens de mulheres que me h~viam precedido, entre as quais minha
são a uma história que faria das relações entre os sexos um motor da mudan-
, mãe, e com isso, encontrar a mim mesma...
ça. Ponto de vista bastante excêpcional entre 'o s historiadores de sua geração e
Mas o lucro não era somen.te existencial. Era intelectual. A hi stória d~s
que explica a junção operada com as historiadoras. 21 . mulheres, ao colocar a questão das relações entre os sexos, revisitava o conjun-
Colocada diante de minhas responsa bilidades, consultei minhas amigas to dos problemas do tempo: o trabalho; o val~r, o sofrimento, a violência, o
do grupo da !>scola de Altos Estudos. Após .discussões em que começamos, na r .amor, a sedução, o poder, as representações,:as'imagens e o -real, o soCial e o po-
realidade, a elaborar O conteúdo, decidiJIlOS aceitar a proposta. Era uma opor: -'" i'-. lítico, a 'Criação, o pensamento sifl:tbdlico. A diferença dos sexos revelava-se de
tunidade que corríam6s ~ risco de não encontrar novamente ~ quç, aliás, ne- . um. grande fecundidad e.i'te fio de Ariadne percorria O labirinto do tempo.
nhum édj tor francês nos havia proposto, o meio d~ sair ae uma semiclandes-- Pois do gineceu à casa rural ou bUIguesa, .da: polis grega à democracia conte~­
- tihidaC1e, d~ fazer a sí.J;ltese (provisória) dt quinze anQ.s de trabalhos qu~, con- t porânêa, havia comunicaçõ,es dos corredores que não existem ·talvez em mes-
seqüentemente, g~ariam em vi~ibilidade. Chance de contri~uir, para a legi- mo grau nos outros capitulos da agenda histórica. Estes "lugares para a histó-
~mid~de de u.m a rustórill ainda marginal, além de tudo em !lr:na perspectiva -' ria" (A. Farge) das mulheres podem ser percor;idos sem que nos sintamos ,
.', completamente deslocadas. A história das m~eres e das relações entre o~ se-
xos coloca de maneira muito feliz a 'questão da permanência e da mudança, da
22 DALARUN, Jacques. L'abime d I'archittcte.lntroduction à Georges Duby. Féodalité. j
modernidade e da ação, das rupturas e das continuidades. do invariante e da
Paris: Gallimard. 19% (reunião de um ~no número de obras): um próxin:ao
número de C/10, a ser publicado sob a organização de Christiane Klapisc.h-Zuber,
\ e
terá dedicado.a Gtorges D.u~y à- história dps mulheres. tema que esta..rá tambtm na ,
?rdem d9 "dia do colóquio organi7..i\do er Mãcon OCIJ - L998) pelo Institut de 23 A edição francesa foi publicâ.da pela Plon, graças a Lau~dler e depois, aos cuida.
- recherche du Vai de Sa6ne-M:\conl13is.
, - '- dos diligentes de Anne le<:lerc. Agradeço a ambas.

24 . , \.
, 25
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III,nulllfiJo

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historicidade ... Objeto de pesquisas precisas e· necessá rias, terreno so nhado Parte 1
para a microhistória, ela é também um terreno de reflexão maior, "teórico"
como o cham ariam os americanos. epistemológico. co mo ~teríamos dito nas_
décadas de 1970 e 1980. para a pesquisa. diremos mais modestamente nos dias
de hoje. Ela interroga a lingu,agem e as estruturas do relato. as rel ações 'do su-
jeito I! do objeto. da cultura e da natureu, do público e do privado. Ela coloca
... em questão as divisÕes disciplinares e as maneiras de pensar. TRAÇOS
Ex periência insubstituível para aquelas e aqueles que- a fizeram, a histó-
ria das mulheres. por outro lado, não mudou nem a atitude histórica, ainda ce"-..
i'
serva da, nem as instituições universitárias, que opõem-se a lhe dar um lugar"
~ ,
ainda que modesto. Os inevitáveis confli tos de território cond uzem às vezes a
ten si?es, internas e externas áumentadas, e cuja con ta pode vir a ser paga pelas,
'pesquisadoras mais jovens, E a França, sob este ângulo, parece mais arcaica do
que a maioria de seus vizinhos.' '"
A históda das mulheres também não mudou muito o lugar ou a "con-
dição" destas mulheres. No entanto, permite compreendê-los melhor. Ela con ~
trib ui para sua consciência de si mesmas, da qual é certam ente ainda apenas
um sinal: Nos p'aíses em vias de desénvolvi~ento, ond,e as mulheres começam
a ter acesso ao 'reconhecimento indi\jdual, é'o acompanhamento freqüente de- "

um proj':esso iaenti tário, às vezes cOntra riado: de que so mos as espectadoras


cúmplices. ansiosas e soLidirias. -
Este livro. reunião de artigos diversos qu'e devo à am igável pe'r.severan- .
ça de Perrine Si mon- Nahum, é portador deste fragmento de história ao qual '
n~eu último itinerário está estreitamente ligado. Ele dá o test.emunho de algu -
mas. destas e,tapas. de suas descobertas e de seus erros, de seus debates e Suas
tensões, de s~as dificuldades e seus' prazeres, de suas interrogações primeiras r
que não perderam' nada de sua acuidade: "Mulheres, quem somos nós? De -
onde viemos? Para onde yamos~" Qual foi o nosso caminho neste mundo? ,
Vocês nos ouvem? I'
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•• A clificuldade da história das mulheres deve-se inicialmente ao apaga-
mento de seus traços, tanto publicas q~nto privados.

•• .t dos traços privados qu~ trataremos nos textos que se seguem: corres-
pondênci3.\ d3.\ três frlh.s de Marx, fragmento de um diário intimo de uma de,
", vota moça do subúrbio Samt-Germain, livro de notas da casa que, ao tornar-

•• se mãe, ela continuou a fazet sobre sua pc?pria filha.


Século de fammas, de armários e de escrita pessoal, o século 19 é um

•• imenso reser'(atório. Co rrespondências,


, diirias, autobiografias foram e..'TI11lla-
'

das e analisadas co mo m odo de comu nicação e expressão. Roger Chartier e sua


'equipe perScrutaram os usos da carta.I Philippc:: Lejeune localizou uma cente- .

•• -- 7 na de diários de moças~ que mostram person,a lidades muito mais rebeldes do


que a 90ce.Caroline Braune que os acasos da pesquisa havia,m ~olocado no ca-

•• -'
minh o de George~ RibeiU. Juntos. nós editáram os os res tos.encontrados de seu
diário. Esta publicação, recenseada pelo L'Express, permjtira~nos encontrar sua
neta. Ela nos confiou então o diário que Caroline, qu e passara a se chama'r Or-

•• .,
"
"
-- ville, dedicara à sua filha Marie, tão desejada. Um outro tipo de diário nos era
• . • I

·1• . ," I .
CHARTIER. Roger (Dir. ):ül Coruspondence, les u,sages de la [ettre au X!)(! sitde.
Páris: Fayard, 1991; DAUPH1N1 Cédle; P~REZAT. Pierrelte; POUBLAN, Daniele.
Ces oonnes lettres, une ccrreJpondance familiale au)(,f)(( silcle. Paris: AJbin Michel,

•• "
\,

.
I
:.\.
',~
.,"
~ 1995 .
2 LE}EUNE, Philippe. Le Moi des DemoiselJes. Enqllitt sI/r le jour:nal de jeu,IIl! filie.
Paris: Stu il. 1993. .

--•
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••
29

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Palie J Par/e I
""", I TI'I~s

, entao fornecido)
, ilustrando a assunção do "bebê" na constelação familiar da- As fontes privadas reforçam, conseqüent~mente, a desigualdade pela as-
quele ftm de século, contriouição à história do sentimento matern.al tanto . simetria d'aquil0 que Uuminà.in. Elas têm um outro. inconvenieIÚe: o de subli-
,.
· quanto à da primeira infância. nhar um pouco.maisos laço.s das mullieres c~m a esfera privada, pois eman~m
desta esfera. Elas inscrevem.o tempo das mulheres na repetição do mesmo e a
Muito preciosos para o conhecimento da vida e do coração dás mulhe- , tI
res, estes documentos.p.o privado têm limites sociais estreitos, desenhados por relativa inércia do cotidiano, acentuam a própria feminilidade, que Colette
· UI:n acesso emin~ntemente variável à escrita. O silêncio é quebrádo apenas pe- descreve de form~ muito feliz.
las privilegiadas da cultura. Ao corttrário, ele pesa ainda mais para as operárias Entre fugacidade dos traços e ~)Ceano d~ esqueCimento, os caminhos da
. memória das ~ulheres são estreitos. '
'e camponesas cuja individualidade nos escapa. Nós' as perceben;H?s em grupo,
nos canlpos, na feira, nas bodas ou nas peregrinações, através de imagens, fo-
tografias ou descrições etnográficas que apagam necessariamente particulari- _
'I
i
dades e conflitosj mantend.o a ilusão de um comunit<1:rismo rural um tanto :
imobilizado. Dos conflitos, ouvimos ap_enas o eco . . quando eles perturbaram .
suficiente!Uente a ordem pública para tornarem-se caso de polÍcia e de justiça.
Delinqüentes e mais freqüentemente vítimcts. as mulheres aparecem então li~
I -.,
· gadas à co ntraven çã<? s I '

A opacidade é um pouco menos - forte no que se refere às mulheres das


, ,
[
classes populares urbanas, mais observadas (assim as monografias de fa.mília
\
da' Escola de Le Play têm grande interesse pelas don as-de -casa, pilares da famí-
\
lia), mais presentes110 espaço público, mais alfabetizadas também . As raras au- ,'
tobiografias de mulheres do povo, diretas ou apresentadas.na forma de ficção,
· provêm de operárias que têm acesso à' individualidade peja escrita (Margueri.
te Audoux, Lise ~anderwielen) ou pela ação militante (Lúcie Baud, Jeanne 7
Bouvier,'Victoire Tinayre). Mas, trata-se aí de' traços impressos, públiços. Da
situação familiar a~terior, pouco emerge e foi cºnservado. 4 ,_
.
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3 Dois exemplos: CLAVERIE.1:li~beth; LAMAlSON, Pierre. L'lmpossible: mariage:. "

Viole:nce. et pareflté til Gévauda~.·XVue. XVIlIt et)(J)(! siêcle:. Paris: Hachette, 1982; ';
SOHN. Anne-Marie: Ch'ysalides, Fe:tllmes dans la vie privée (X1Xc_Xxe siêcle) . Paris:
.
Publications de la Sorbonn~~J99~.2 v.
' ,
.' -
4 Marguerite Audoux, Mafie~Claire. 191 0, L'Atelier de Marie:-Claire, 1920;
. .'
l
VANDERWIElEN. Li~. Lise du piar pays «ol?an autobiographique). [ilIe: p~ss.es
Universitaires, 1983; BOUVIER, ]e<ínne'":"-Ai!es Mémoires ou cinqu(If,u-lIeu! (umées
" d'activité iJ.duslrielle, sociaIe tt imellectuclle....d·une ollvriêre (1876-1935). (1936).
Paris: Maspe~o. 1983. Rééd.; SGHKOLNYI{, Claude. Viaoire Tinayre (i831-1895).
Du SOcifl/is11Ie utopique: au positivisme pl"Olé{aj,·e. Paris: L'Harmattan.·1997.. . .....
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• Capitulo 1
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PRATICAS DA MEMORIAl FEMININA*

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No tea-t ro da memória, as muJheres são uma leve sombra.
A narrativa histórica tradicional lhes dá pouco espaço, justamente n.a
medida em que privilegia a cena pública - a' política, a guerra - onde elas apa-

r
recem' pouco. A iconografia comemo:ativa lhes é mais ,aberta. A ~statuaria)
mania cara à 111- República, se(Jleou' silhuetas femininas pela cidade. Mas ale-
gorias ou simbolos, .~as coro~ os grandes homens ou se prostram a seus pés,
- relegando um paucó mais no esquecimento as mulheres reais que os ~poiaram
\ ou amaram e as mulheres triadoras cuja efigie lhes fazia sombra.)
Mas ~á algo mais grave. Esta ausência.no "nível da narrativa é acomp"a-
Ilhada po{ uma car~ncia de traços no domínio das "fontes" nas quais o histo-
riador se alimenta, devido ao déficit de registro primário, No século 19. por
exe~lplo~ os escrivães da história - administradores, policiais, juizes ou pa-'
dres, contadores' da ordem pública - to~am nota de muito pouco do q'ue tem
o traço das mulheres. categoria indistinta, destinàda ao silêncio. Se o fazem,
quando observam a presença feminina em . .uma
. manifestação ou. reunião, re- ..
I , ., correm 'aos estereótipos mais conhecidos: , ~u1heres vociierarites. meg~as a
4

I ,....
partir do momento em que 'abrem a boca, histéricas, assim que começam a
gesticular. A visão, das mulheres age como Um' pisca:pisca: elas são ra~am'ênte

.~

., li' Pratiques de la mémoire f~minine. Travenes, 40. p, 19-29. rv/l987. N1.imero espe-
,
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l.
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cial ''Th~;\t~ de la m~moire~ ,
'5 Allne-Mar;e Fraise Falire estudou as figurtU femininas em uma Use. La Stahmire
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, ., , I , cOlllnfémofative tl Paris sous La llJt Republique. U. P. d' Arcllitecrure de la Vi/lette.

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Parte 1 Q lptllllo J
n.", Prdlkas rl~ mc.m6ria fcmülina
,.-

consideradas por si mesmas, mas bem mais freqüentemente com ,sintomas de lher'~ entidade coletiva e abstrata à q ual atribuem-se caracteres dê co nvenção.
febre ou de abatimento: -Sobre elas, não há nenhuma verdadeira pesquisa, ma~ somente a co nstatação
de seu eventual deslocamento para fora de suas zonas reservadas. .
Um último exemplo dará uma idéia deste déficit documental e de sua
o SILf.NCIO DOS ÁRQUIVOS
/'
significação complexa, Os arquivos do cri~e, tão ricos para o conheàmento
da vida pri\'ada. dizem pouco sobre as mulheres, na medida em que seu peso
Os procedimentos de registro dos quais a hi stória é t~ibutária são fruto na criminalidade é fraco e,decrescente (de aproximadamente um terço, no iní-
de uma seleção que privilegia o público, único domínio direto de intervenção cio do século 19, ele cai para menos de 200/0 no seu Cma!), não em virtude de
do poder e campo dos valores'verdadeiros'. O século 19 distinguiu claramente ' uma natureza doce, pacifica e maternal, como ,pretende Lo~brosso/ mas de-
as esferas, pública e privada. cuj o a~enciamentl? condiêiona o t;.quilíbrio ge~ral. ' vido a um,a ~érie de práticas que as excluem do campo da vingança ou do
' Provavelmente suas esferas não engloJ>am exatamente a repartição dos sexos. afrontamen to. A honra viril ultrajada é vingada com o assassinato. O roubo
'Mas, grosso modo, o mundo público, sopretudo econômico político, é desti- e nas estradas ou os furtos, os .assaltos ou o atenta'd o eram, até uma data recen-
nado'aos homens e é o mundó que conta. Esta definição·dos papéis, clara ,e. vo- ·te, coisas de hom em, 1

luntarista, traduziu-se por uma retirada das mulheres de certos locais: a Bolsa, Assim, olhar de homens sobre homens, os arquivos públicos calam as
o Banco, os grandes mercados de negócios, o Parlamento, os clubes, círculos e . m~heres. ".E, preciso, todavia, não esquecer as muJheres. entre todos estes ho·
cafés, gra ndes loc~is de sociab~dade masculina, e até m estno as bibliotecas '
\
mens que sós, vociferavam, clamavam <? que haviam f~ito ou que sonhavam fa~
públicas, Mai$ t~rde, Simçme de Be~uvoir, na Biblioteca Nàcional, é uma fig~- , zero Fala-se muito deles. O que se sabe delas?" escreve GeOJ;ges Duby como
ra de transgressão intelectual. A cidade' do século 19 'é um espaço sexy.a~o.As conclusão ,do livro que dedica ao casamento na França feudal, 'Le ClJevaJier, la
mulheres inscrevem-se nele como ornamentos, estritamente disciplinadas pela , Femme et le Prêtre (O Cavaleiro, a Mlllher e o Padre), Eis ai toda a questão,
moda, que codifica S43S aparências, roupas e cuidados, principalmente para as
mulheres b':lrguesas cujo lazer o,s tentatório tem como função significar a for-
tuna e a posiÇãO de seu marido, Protagonistas; no verdadeiro sentido da pala- OS SEGREDOS DOS S'ÓTÃOS
vra, elas desIDam nos salÕes, no teatro 0l,! no passeio, e é por suas roup~ que
I,
os cronistas s~ interessam (vej,amos as Lettrcs parisie,mes, do visconde de Lau- Os arquivos privados, outro sótão da história, dizem mais? Sim, de-ou-
nay, aliás, Delphine de Girardin'), tra maneira, na medida em que as mulhéres s~ exPressaram muito mais abun-
" I Quanto às mulhe'res do p~vo, fala-se dela's somerte quando seus mu~
d'antemente n';les, e até mesmo devido ao raio que';"'co mo secretárias da famí-
I'
I múrios inquietam em caso de pão caro, quando fazem algazarra contra os co-
- .
lia, elas foram produtoras
. destes
, arquivos. Livros de anôtações da casa em que
me(cia~t~s QU os se~horios, quaJ~do ameaçam subverter com sua violência, mantêm os anais da família. Correspond ências familiares de que elas são as es-
I uma passeata de grevistas. . , cribas habituais, diários íntimos cuja 'prática é recomendada para as moças por
,. , Em sum~, a observação ,d as mulheres de outrora obedece critérios de seus confessor~s, e mais tarde por Seus pedagogos, como um meio de controle
ordem e de papel. Ela concerne os di~cursos m ais do que as práticas. lnteres- . de si mesmas constituem um abrigo para os escritos das mulheres, cuja imen-
I' . r' '-
sa-se pouco pelas mulheres singulares, des~rovidas de existência e mais à"mu-
' sidão é atestada por todos os' fatores. Mas quantas destruiçôes forum reallza-
- - ,

6 Madame de Girardin" ~ttres pa:jsjeIl1~ du ,Vicomte de Launay (1837.1848 ) 7 l:.OMBROSO. C.: FERRERO, G. La Femme criminel1e el la prostituée, Paris: A1 c~m ,
Présent~ et anotés par Ahne·Martm FU~ ler. P~IS: Mercure de' France, ~86 . 2 v. "- 1896, Trad, fr.
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34 35
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Ptlrtc J ClpltulÕ I
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das nestes arquivos cujos restos, conservados até hoje. nos sugerem a sua ri· Assim as mulheres freqUentemente apagam de si me~mas as marcas tênues de
queza tanto como o ,se u interesse enfim recQnheddo! . seus passos neste mundo, como s'e' sua apaTição fosse uma ofensa à ordem.
Estas destruições vêm dos a,casos das sucessões e das mudanças de casa, Este ato de autodestruição é também uPla forma de adesão ao silêncio
dnun go?to pelo secreto que cimenta a intriga familia:r, mas também da indi- O' que a sociedade impõe às mulheres, feitas, como escreve Jules Simon, "para es-
ferença de descenden~es embaraçados p~los legados de seus predecessores que conder sua vida"; um consentimento à negação de si que está, no centro da edu-
/ .
causam tanto estorvo: indiferença agravada pelo caráter subalterno dado a es- . cação feminina, religiosa ou laica, e que a escrita - assm} como a leitura - con-
tes escritos clãs mulheres. A5 cartas das filhas de Karl Marx foram imperfeita- tradiziam. Queimar se,us papéis é uma purificaç~\! pelo fogo desta atenção a si
mente conservadas!e publicada,s tardiamente; ao desven4ar as manias o u' as fra- ipesma que confina ao sacrilégi~. Este gigantesco auto-de-fé ~nceu a maior par-
quezas do pai ou-do homem privado, elas chegam a constituir; para 'alguns, uma te do~( escritos privados das muLher~s, ao mesmo,tempo que os arquivos familia-
certa in'conveniência,· Outro exemplo: a correspondência que Tocqueville man- \ , res de que a sua longevidade as tinha transformado em guardiãs. A morte súbi.
teve con~ se u amigo Gustavo de Beaumont foi preciosamente guardada como ' ta, os armários esquecidos 9as grandes casas provinciais ~ão os únicos guarda-
um testemunho único sobre suas empreitadas intelectuais e políticas; paraJela- fogos deSte incêndio. A imagem das mulheres ateando fogo em seus cadernos in-
mente, a correspondência mantida.por.suas esposas desapareceu por completo. timas ou em suas cartas de amor na noite de sua vida sugere a dificu14ade femi-
De resto, muitas mulheres, presseqtindo a indiferença, adiantaram-se a nina de existir de outra forma.ru.ém do fugaz instante da palavra e, conseqüen- '
ela ao "colocar ordem em seus negócios", " temente, à dificuldade .de reencontrar uma memória desprovida de traços.
, isto é, ao destruir seus cadernos inti-
mos, temendo a incompreensão ou a ironia de seus herdeiros. Deixa"r para trás
de shca rtas d~ amor não seria introduzir um terceiro personag~ln em um ca~
sal cuja bela image'm o tempo já havia alterado? O mes.m o acontece pa"r; a a~i­
A PAIXÃO DAS COISAS
zade. Eis duas amigas. Hélene e Berth ~ que durante quarenta anos trocar~m .\
Mais do que ao escrito proibido, é ao mundo calado e permitido das
uma intensa correspondência. De Hélene, resta"", 625 cartas; de Berthe. nada: '
coisas que as' mulheres confiam sua meaiória. Não aos prestigiosos objetos de
ela pediu a Héiene para destruir tudo, pois não desejava nenhum testemunho
'> coleção, coisa de homens preocupados em conquistar, pelo acúmuJo de qua-
de sua amiztde. Hélene resistiu, mas finalmente, dilacerada, queimou as ama-
I . dros o u de livros, a legitimidad e do gosto. Nd século 19, a coleção, e airida mais
das missivas.' 'a' biblioftlia, são ;tti~idades tnascuJinas. As mulheres' se retraem ein matéçia
. Como a leitura,lIl,a escrita é freqüentemente. para as mulh~res,\,um fru- ' .m~is humilde: a roupa bl'anca e os objetos~ Ninharia, pr~sentes recebidos em
to pro'ibido. Para retomar o mesmo exemplo, o pai de Hélene irrita-se ao vê-Ia... up1 'anivel'sário ou uma fest~, bibeIOs trazidos de uma viagem ou de .uma ex-
pass~r tantas- horas em sua correspondên'cia. Ela deve se defender e esconder- cursão, "mil nàdas" preenchem vitrines, pequenos museus da leinbrança femi-
se ~ara 'c~ntmuar ó que, aos olhos do Paj, é uma criancice e um desperçlício. nina. As mulheres têm a paixão pelos estojos, pelas caixinhas e' med~hões em
Uma certa culpa acompanha esta transgressão de um domfnio .sagrado. Não se
-
que elas guardam seus tesouros: mechas de tabelo, flores secas, jóias de farol-
..
dJ ixará vestígio,s desta párte ~ecreta de si mesma, deste pecad~ que foi goz..1.do. lia, miniaturas que, antes das fotografias,.permitiarrl-que se conservasse ~ ros-
to amado. Mais tarde, -fotografias individuais ou de famil!a, emolduradas ou
8 Lenres des filies de Karl Marx. PrHace de r.
Perrot. Paris: Albin Michel, 1979.
9 Anne-Martin Fugier, uLes Jettres célibatalres", arligoo3 ser publicado.
'
,
reunidas em álbuns, estes herbários da lembrança) alimentam uma nostalgia
indefin.idamente enfraquecida. ColetâQeas de croquis e de cartõ~s postai.s me-
10 ~TH[ESsE, Anne·Marie. ~ Roman du qll~tidjen. Lecteurs et ledures populmres à la TQorizam as viagens. Além do mais, as mUlheres são.lev.adas·~a fazer .tais cole-
Bdle Epoque. Paris: Le Cbemin Verto 1981. ..... -ções pela engenhosidade de uma papelaria em pleno desenvolvimento. Agen-
/

'.. ,
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36 37
"
., Parte J Cup{lI/lo I
Th>,M Práticas dll memória fcmi",'"a

~.
I
d;.ts keepsakes yind as da Inglalerr,! incitam ao registro dos acontecimentos pri- que se exerce sobre o co;po das mulheres a toda 110ra do ~a, a cada mês de
vados. "Durante a Monarquia de Julho, toda m'oça de boá farnHia tem seu ál- uma estação. Devéria mostrou-o ao detalhar os trajes que uma mullier elegan-
bwn q~e ela apresenta aos amig~s da casa. É Lamartine quem abre o álbum de te deve usar, hora após hora.
Uopoldine Hugo", escre~e Al.ain Corbin . No fim do século 1Q, o edit'c>r,Paul Mas este dever, no ,qual algumas mulheres encontram prazer e outras
OUendorf lança o Recl/ei/·victor HI/go, transposição dos birtllday books britâ,' um tédio profundo, dá forma à memó~ia, Uma mulher inscreve as circ~nst~n­
nicos; a -página da esquerda é ocupada por trechos da obra do MestrJ, a da di- cias de sua vida através dos vestidos que ela usa, seus am9res na c_or de uma
. ceita menci?na apenas a data do dia; ele pode ser usado como uma col~tânea echarpe ou na forma de um chapéu. Uma luva, um lenço. são para ela relíquias
de poemás, de pensamentos, uma agenda ou um diário, pouco íntimo por ser de que só ela conhece o vÁlor. A monotonia dos ano~ se diferencia pela roupa
-aberto aos famÚiares. que fixa também a representação dos acontecimentos que fazem se~ coração
I Estas práticas,implicam na ~déia de uma capitalização do tempo, cujos bater: "Eu usava, naquele dia ..." ela dirá. A memória dás mulheres é vestida. A
I instantes privilegiados podem ser revividos pela rememoração, reinterpreta-, roupa é sua se,g unda pele. a única de que se ousa falar ou ao menos sonhar. A
I dos, como u~a peça de teatro representada .sem 'cessar. Elas inscreyem-se em importância d~as "parências faz que as mulheres sejam 'mais ,atentas ao léxico
um s~cillo 19 que faz
do pri~ado o lugar da felicidaçle imóvel, cujo palco é a • des..tas mesmas aparências. O rosto do outro é tudo o que elas podem permi-
casa, os atores, os membros da família, e as mullieres as testemunhas e as cro- tir-se. Pelos alhos. ela's pensam atingir a alma . .E: por isso que elas se lembram
ni stas. Mas esta missão de memoriaLista deve respeitar' limites implícitos. O de sua cor, à qual "()~ homens são geralm eht~ indiferentes.
pessoal, o muito íntimo são ba'n idos deste registro como indecenteS". Se a móç,a
sol.teir~ ,che~a. a atrever-se timidamente a se apropriar ,de seu diário, a mulhei
casada, no entanto, renunc,ia a ele. Não há espaço para' tal forn13 de es.crita é-de
pensamento na câmar~ CO;ljugai. Como a escrita,'f'\' memória feminina ~ fami-
t· UMA MEMORIA DO PRIVADO ·
-.
liar, semi-oficia.l. '. . Assim, os .rll0dos de registro das mulh:res estao ligados à sua condição.
, A roupa branca, as' roupas, constituem uma o~tra forma de acumula- ao seu lugar na famüi~ e ~a soçiedade, O mesmo acontece com seu modo 'de.
I· ção. O enxoval, éuidadosamente p~eparado nos meios populares, rurai$ sobre-
/

Jememoração, da encenação propriamente dita do teatro da memória. Por for-


tud~l é "lJ-mà longa história ent~e mãe e filha':11 A conf~cção do enxoval é um ça das coisas. ao menos para as m~eres de ~utrora e para '0 que resta do pas-
legado de conhecimento e de' segre;dos, do corpo e do coração, longan:tente-' sado, nas mulheres de hoj e (e que não é pouco). é uma memória do ,privado,
destil~dos. O armário d~ roupa branca é ao mesmo tempo um cofre-forte e um voltada para a família e para o intimo. aos quais elas estão de certa forma re-
i, '~ relic4fio. A espessura dos lenç6is. a finut:a das toalhas de mesa, as dobras d.os_ l~gadas por coJyenção e posição. ~~be às ml;llheres co'nservar os traços das i'n -
I guaraan~pos, a qualidade dos panos de pó têm sentido em u~a cadeia ges-.. de fândas em que elas são governantas. ~abe' a das a transmissão das ~jstórias de
.I tosiep~tidos e enfeitados. ! ' "\ - família) feit,a geralmente de mãe para filha, ao folhear álbuns de fotografias aos
I Aroupa br3.l1 c~ pe~tenc~ à esfera do íntimo, as roupas, à esfera do pú- quais, juntas, e1aS"'acrescentam um nom~ , uma data , destinados a fixar identi-
.. blico. Elas estãQ ligadas às apàrências cujo cuidado é um grande dever das mu- dad~s já em vias de apagamento, Cabe às mulheres o cuito dofmortos e o cui·
j, ; Ihere's, sobretu'd o das burguesas. A moda, nova fOFma de civilidade, é UI)l có- dado com as tumbas, o que as in~uinb~- de velar pela manutenção da! sepultu-
digo ao qual convém submeter'-se sob peóa de cair em ,desgraça, uma tir~nia
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ras. Ir colocar flores nos túmulos dos seus, no 9ia dos mortos, costume instau-
rado na meta,de do séc~o 19, ton~a-s'e mn mandamento das filha s ou das yiú-
11 I:JNE. Agnes .. Le
trousseau. in: Une lJisfoirc des femmes est-elJe possible? Sous ,Ia . vaso A proximidade do cemitério fixa às vezes a sua última moradia, como se
direction de M. Perrot. Marseille: Riv3ge~, 1984. · " .ele fosse uma dependência da casa. Esta situação é ainda ace.ntuada pelas guer-
.'
.,.
·r' ...
38 '.

J I
39
Parte,J
, Clp/f"Iol
TnffOl
PnJticlU tÜI mallôria ftm inina

ras, sobretudo a Primeira Guerra Mundial, pevoradora de homens, cujos no-:-. sejo de conservar a memór~ia de mundos que se desmoronam - corno a Lore.
mes são tragicamente enumerados sobre os monumentos aos mo.rtos das pr'a- na metalúrgica e sinistrada - levaram nesta direção.1J Por seu caráter não dire-
ças. dos vilarejos. Mas delas, trágicas carpideiras, não nos lembraremos. tivo (o u semi-diretivo). sua exigência de p.articipação por parte do observador
A memória das mulheres é verbo, Ela está ligada à oralidade das socie- necessariamente !Jlais implicado do que em um banal questionário, o relato de
dades tradicionais que lhe confiavam a missão' de contadora da comunidade vida deve mais à' etnologia do que à sociologia,
"
da aldeia, No vilarejo de Martin Nada~d, na Creuse, a velha Fouéssoune des- As mulheres foram amplamente uma parte integrante 'desta aventura,
fia, nas vigílias, a canção de gesta do lugar. Mas quando se insta:.u ram as. migra- entre as pesquisadoras bem como entre as pesquisadas, e ~ isto o que nos in-
ções que, no meio do inverno trazem de volta da cidade os operários da cons:- teressa aqui. E pQ.r diversas razões. Inicialmente, a lóngevidade nitidamente
trução, carregados de pres~ntes e de bo~tos da ~ap ital: ela se' encolhe em seu mais elevada das mulheres (na França, atualmente, a' diferenç.a entre a expec-
canto e, pouco a pouco, cala-se. D':1rante a vigf.lia, a partir de então,'''~ palavra tativa de vida dos Jtomens e das mulheres é ge oito pontos) l~ que lhes confere
está serl]pre com O pedreiro, é ele que faz girar a cabeça das moças, é a ele que . um status efetivo d'e testemunh'as. sobrevi~entes de épocas ;emotas. Trata-se
os pais cedem geral~ente a mão de suas ftlha s". n de reconstituir a história factual ou cotidiana, de uma (am1Jia ou de um bair-
Cena significativa: provavelmep.te houve, no século L9. uma certa recu- ro, captar a "vivência" dê um grande acontc;cimento público? Para o entreguer-
sa da fala feminina, desqualificada'pelos meids de comunicação modernos, pe- ras, ainda mais evidentemente para o início do século 20, foram as mulheres"
los sucessos saltit~'ntes do ç,scrito: cOrrespondência, cartões postais, diários. E
que restaram. A maioria dos pesquisadores trabalhando com este método teve
ao m~smo tempo, perda insidiosa de uma funçã9 tradicional e ruptura de an-
es.ta experiência. Necessariamente eles trabalham com uma amostra sexual-
tigas formas de memória. mente desigual _ ' '.
Segunda razão: o mutismo dos h<?mens, em um casal, a p'a rdr do mo-
mento em que se tratl de lembranças de infância ou da vida privada, contrasta
AS RECITANTES
, .
com a loquacidade muito maior das mulheres, quer seja porque o trabalho e, as
empreitadas do exterior tenham atrofiado a memória masculina, quer seja ain-
É por isso qu'e os desenvolvimentos recentes' da história chamada de
da porque falar de si mesmo é contrário à honra viril que con'sidera e,stas coisas'
"oral" são d~ cer ta maneira uma revanche das mulheres. Sabe-se tudo o ,que '
~egligenciáveis) ab~ndonando às espos~s o laldo.dos berços e as questões do lar.
" esta n~ova forma de co~eta de m .. teria.is para a história deve às experiências nor,:-.
Esta concepção de urna indecência do 'privado é particularmente forte na e1as-
te-americanas (Quebec"sobretudo ) e polonesas" e, adma de tudo à obra pio-
neira de Oscar Lewis, Les Enfants de Sar~che;. Dar a palavra aos deserdadós, às-
~. ,se op~ária, to~a voltada para a realização do homem de mármore da consciên-
cia de classe. Falar de Sua vida é àpor-se, entregar~se ~o olhar de seus inimigos.
pe~o!s, sem história, aplica,r às populações urbanas contemporâneas os ~éto­
, desta burguesia sempre pronta para o desprezo. Esta era a opinião de Prourlhon
dos emp'regados pelos etnólogo.$' para os pseudo- "primi~vos": tais foram , no
iniCio, os pressupostos oeste p·(ocedimento. Na França, ela se desenvolveu em' que sempre se recu~ou a escrever a sua autobiografia, por medo de parec~r um
í1i~ersas direções desde a déc:.da de 19~0: da pllblic Iristory dos grandes atores saltimbanco de feira. "Os fatos de minha vida sã.o menos do que nada", dizia ele.
I sociais, indi~duais ou coletivos, ao. humilde \'relato de vida'" a~rancaqo <.\as .
"Não é bom para a liberdade e para a honra de um povo que os cidadãos colo-
"

"pessoâs comuns", Um certo populismo..herda,d o de 1968, mas também o de-


, ' I - , 13 Por uma análise sugestiva destes fe:n6~e:nos. cf. JEUDY, Pierre:. Mimoires du Social.
" . " j' . Paris: PUF; 1986, .
12 CORBIN, Alain. Arcltarsm~ et moduniti tn Umóus;n. Paris: Rivihe, 1975, I, p. 22( '
. 1 i , 14 Levy, M. L M'ooe:mit~, Mortali(~. PoplIlations et Socittb, n, 192,ju~ 1985.
.'

40 -
. ,
41 ,
.e
Ir
Parte 1
TroÇ(lf
Capitulo I
Prdticus da ~'lc",6ria felllinina
••
quem em cena a intimidade de suas vidas, tratando-se. uns aos outros com o va-
letes de comédia o~ saltimbancos."u "Os militantes operários, sobretudo os que
chegando 'a sentir até m esm o certo orgulho por isso. Os asilos de mulheres tor'"
naram-se terrenos de pesq'uisa, cotn resultados diversos, ligados à quali'dade
••

.'••
'são ligados' à CGT e ao PC rejeita~ faJar de 'sua existência pessoal e limita~l-se das i nterlocutoras.
à s~a vida sindic.a1 e militan!e... Sobr~ a familia e-o ~otidiano, que sç interrogue Estas experi~ncias permitirão talvez um ·dia analisar mais prec i sam ent~
as mulheres! Este asp~cto 'cÍas coisas cabe a elas. Mesmo 'e m um casal de tradi ~ o funcionaniento da memória das "m ulheres. H á~ no fundo, uma especificida-
ção autogestionária/ (anarco-sindicalista ) como o interrogado por Jacques Ca- de? Não, sem dúvida, caso tentemos an~o rá- la em
uma natureza que não se
rou.x-Destray, a divisão da memória obed ece uma definiç~o muito estrita dos pode encontrar e no sqbstrato biológico. Sim, provavelmente, na medida em
papéis sexUais. Am édée fala do trabalho, ~e greves e de ação reivindicativa;
Marcelle fala de casa, de vida'material e de 16
, história fàmiliar. Na rememoração,
que as prá~cas socioculturais em ação na tripla operação "que constitui a me-
mória - acumulação primitiva, rememõração, ordenamento do relato - estão
imbricadas com as relações masculinas/femininas reais e, como elas, são pro-
••
••
as mulheres são, em ,s uma. as porta-vozes da vida privada. . . \
, Enfim, o femini'smo desenvolveu u~a enorme interrogação sobre a vida . d utos de um a história.
das mulheres obscuras. Tornar visível, acumular dados, instituir lugares de Forma .da relação com o tempo e o espaço, a memória,' assim como a
memória (arquivos de mulheres, dicionários ... ) foram preo:cupaçôes de uma
história da s mulheres em pleno desenyolv;mento, por cerca de quinze anos. E'
na falta de teste munhos escritos, procuro~-se fazer surgir o testemunho oral. .
~stência de que elá é o pro,longamento, é pl'ofuJ.1damente sexuada'.

•_•.
Interrogou-se sobre o papel das niulheres . nos acontecimentos públicos, por

••
.

exemplo, a Resistência po.d e a!ação das mulheres, dissimUlada na trama do co-


tidiano - uma sacola de compras, uma xícara de chá - foi muitas vezes 'consi-
derável, bem como sua existência particular na sociedade comum, Inicialmen-
te ,as nl"ulheres mani festaran:t -~uit<)s reticências e seu pudor abrigava-se _atrás e
do pretexto de sua insignificância. Dizer "eu" não é fácil , para as mulheres a
queI1) ~od'a qma educação inculcou a ~onveniência do esquecimento de si ;nes- ••
I': ,
ma, a tal ponto que, para contar sua vida, uma operária - Lise Vanderwielen -
preferiu.abrigar-s~ detrás 4a ficção de um pseudo-romance. 11
, .: Tudo depenqe fiflal.m~nte da natureza da.relaçãb com a pesquisadora:
-
••
uma"i certa familiaridad
_ • • "
e 'pode vencer
~ .

sidbrada' suj~ito da histó- ria. As mulheres


as. resistências e liberar,

íJ.O contrário,
1.

des~jo rééalêado' de falar de si, com o pra.zer de ser levada a sério e, enfim, con-
um
,) ••
"
,
criaram o hábito d,e usar o megafone,

'. 15 PROUDHON, P. J. Mémoires d~ ma vie, !,aris: Maspéro, 1983. Texto~ autobiográfi-


••
.,
" ;\
I
'
16
cos diversos reurudos pOr"B. Voyenne. .'
C~ROUX-DESTRAY, J. Un co·upllollvrid, tr.aditio"nel, La vieille garde alltQgesiion- .
'Iaíre, Paris: Anthtopos,l ~74. !! . .
••
. ,. .
17 .yANDERo/IELEN, Lise·,. Lise' du PiaI Pqys~ romano LiJle: PUI:. 1983, Posfácio de
Françoise Cribier.
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42
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43
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tapltulo 2

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As FILHAS DE 'KARL'MARx:-

"
CARTAS JNÉDITAS* ,

-' ,
~u gosto das Correspondências. de seu tom de c::o~dência, de suas
" singularidades, de seu gosto pelo detalhe fútiI~ daquele "insignificante" - tão
repleto de sentido - que tece q cotidiano_ Se~ escapar dos c6digQS que um
século epistolar sabiamente estabeleceu, elas têm "3 vantagem. sobre as auto-
biografias, de apresentar uma maior espontaneidade, uma encenação n!enor.
As ·pessoas aparecem ali não na postu~a de seus sonhos, mas no desencanto
do instante. com suas dores de cabeça e suas mudanças de humor, seus pro-
blemas e·seus proje'tos. As Men\órias racionalizam e dão status, selecionarp e
flll~liza~i as pequenas pinceladas pontilhistas das cartas, em sua fugacidade.
-, < incerta, d-esenham os contornos pouco nítidos de existências' em progresso.
Nada está definido ai~da, tudo é possível. Ao menos,o -
autor ~ensa assim.
-
Para nós que sabemos, é úma fonte' suplementar de melancolia: a melanco-
"
lia de Deus, talvez, se ele for bom ...
! As Memória-s são monólogos·irr,tperi9sos; ato de um poder que sele-
.-' "
I .-'
ciona e censura sem afelação e sem cOl).traditor. As Correspondências, s,e não

/ -,
. ' '. ,
tentam um diálogo, buscam pelo menos uma .troca com um mterloçutor
cúmplice ou incliferente, pr.6ximo ou opaco: Os encontros, os mal-entendi-
' . I

. dos, os silêncios. pelos quajs vive e morre um amor, uma amizade, uma rela-
-~

I ,
"
I
-,, ,
Introdução a Les Filies de Karl Marx. LettTes i,:u!ditf!S;. Traduits et présentés par O lga
Meier et Michel Treb itsch. Paris: Albin Michel, 1979; p. 9-50.
_.

"
"

45
,
I:
,e,rte 1 Clp{tu/(,2
• To"llfOl Asfilhm lli! Kaf/ Marx; cllrtus hrhlifus

ç,30, esboça'm ali uma arte da fuga. Longe das cerimônias oficiais, as Corres- Sinceramente. escreva-me de tempos em tempos"" diz ela a Laura, cuja in-
pondências introduzém-se ~o interior dos casais e dos grupos. Elas l110stram dolência deixa às vezes suspeitar uma cert~ indiferença: I?a mesma fOl:ma,
o avesso do .espetáculo, as fadigas do herói, suas dúvidas e seu dia-a-dia. Por após a morte de ]enny, Eleanor deplor,a o mutismo daquele que ela chama
i~so; os turiferários hesitam e_m torná-las públicas. Nem tanto por respeito d~ apenas de "o pai" - seu cu nhado Charles Longuet - que a priva de seus so-
intimidade, tão faci!.l.nente violada para o inimigo"mas sim por temor da brinhos, Esta correspondência é também o longo lamento de um coração so-
sombra que a mOnÓtonia da prática COfre o risco de lançar sobre os esplen- litário diante das cartas que se espaçam, a exemplo dos laços que se. desfa-
dores da teor~a. Por eSta razão, talvez, 35 Correspondências, abordagem de zém. O conçerto acaba num solo, assim como a vida.
.verdade, tocam-nos tanto atualmente. . Eis então uma correspondência de mulheres, mulheres de uma mes-
Ma~x - o rei Marx - tinha três filhas de lindos nomes so nor?s: Jenny, ma origem, que .se compreendem e se amam, cuja sonorida~e não é, no en-
Laura, Eleanor, criadas na sombra protetora e devorante do Capital. Elas são tanto, isenta de nuvens negras. Jenn.y, a Sábia, acolhe e compreend e; sua mor-
as autoras e as principais de.s tinatárias destas cartas, em proporções muito te, aos trinta e nove,anos; desequilibra o trio para sempre, Com Laura, a Bela,
rr I ~esi~"uais e variáveis ao longo do tempo. Até os anos 1880. ]enny e Laura, as . as relações são mais conflituosas desde o inicio; ela julga Eleanor uma ('b ra-
duas mais velhas, dominal1! o coro fa~iHar que seus casamentos aumentam va jovem':· mas descon fia de sua s fantasias, como mostra uma história de
_ com vozes francesas. Laura desposa Paul Lafargue em 1868, )cnny, Charles uma ca rta perdida: Thssy teria mesmo enviado aquela carta da mãe mori- .
.~
Longuet em 1872. Depois da anistia dos Ilarticipantes da Comuna de Paris e -bunda à sua filha Jenny? E nos amores contrariados da .irmãzi nJ"ta, ela se
I '
a partida para a Fqmça dos dois jovens casais, a pequena Eleanor - onze anos , mostra áspera,e fria, tomando o partido da ordem: do Pai. Entre elas existe
no inicio da história - torna"-se a grand~, e logo a única epistológrafa de uma uma fenda em que a confiança se-quebra,
correspo ndência que a m~rte dos pais e da irmã mais velha reduze~ (a par- Aqui os homens intervêm pouco. , Eles escrevem entre si e para maté-
ria s nobres: Paul Lafargue dá ao "Caro Senhor Marx" notícias da Internacio-
tir de 1883) unicamente à relação com Laura.
nal que el~ tenta im plantar no Sudoeste. Se ele escreve para sua cunhada) é
A, cativante figura de Tussy anima esta corre~pondência da qual ela é
por razões de negócios: e~a o lamenta. Co mo em lodos os casais, os homens
finalmente a maior artesã: 69 cartas etn 106, metade das quais ende~eçadas
para Laura,levam a sua assinatura. Ardente para escrever - ela possui de.§de
a
acresce nta~ um postScrip~m, ou colocam sua assinatura· no fim das cartas
de suas esposas, responsáveis pelas relações familiares. O gênero epis tolar
1889 uma máquina de escrever de que faz uso, na realidade, unicamente pai"ã"'"
não escapa da divisão sexual dos papéis.
os textos ptofissionais e militantes . . . , a afetuosa, a ansiosa, a ativa Elean9r é
Bastante espontâneas em sua escrita, aparenteme·n te feitas sem rascu-
ávida· de notícias. Quando criança"ela as rei~indica de seu pai, melhor cor~
f ,. • . nho, rapidamente, terminadas ao· chegar ao fim de uma página ou com o
resli"0ndente ,com os outros do que com os seus: «Tu não podias ficar ausen-
apagar de uma lâmpada. estas cartas têm um tom de coriivênci~, uma ironia
te toda uma quinzena sem escrever"," assim como mais tardé ela as su plica
zombeteira qu~e c,!i bem em uma famflia tão imbuida de s,ua superioridade;
para a distante Laura: Seduzida pela comodidade dos recentes cartões pos:
elas são apimentadas com anedota~ e até mesmo mexericos. Co mo convém,
tais, ela introduz · ~ seu uso:;':õ.penàs umª pa,l avra para diz'e r-me que e$tais o cotidjano ocupa ali um lugar essencial, infinitamente precioso para n6 s.
bem me bastará" (1881), chegando a lasti mar, mais tarde, o abuso de sua uti- 'Mas a atualidade polltica, ao longo do tempo, torna-se mais il)vasiva. Tratan-
lizaç.ão: "Não me contentarei apenas com
um mesquinho pedaço de caqão." do-se desta família, espaços privado e público interferem um no outro, a
- .- .
18 . Carta 6, EJeanor a Karl Marx, 26-1-1867\
I. .-, 19 .C.'84, E.. L., 22-2-1694.

46 47
, '-
,
,

Porl, I fÃpltlllD 2

""'"
.AI folhas de Karl Nane ttJnas in&lrttu

ponto de confundirem-se às vezes. Os acontedmento.s da crônica familiar RETRATOS DE FAMíLIA


.,
ritmam a história do socialismo. A entr~da em cena, a saída de personagens •. ."-
I
ao .sabor do estado civil, articulam a peça.
Desta correspondência. 3 furnilia Marx é então o teatro e o ator. Sur-
Ato I (1866 - 1872): a cena se passa em Modena ViUas, a grande casa
preendente familia, judia em sua estrutura muito patriarcal, vitoriana em seus
. I dos Marx, em Londr;s, cheia de crianças e de gatos, de amigos e de ctisdpu-
cost'umes, e atravessada' por um grande projeto qué fa z sua uniClade e solda se·u
los. Este ato se chama Aurora: no interior,,;J. juventude das meninas, se us pra-
destino. Folheemos o álbum; aliás, não faltam fotografias: os Marx são ávidos
zeres, seus amores; dois casa~e ntos; no 'exterior, o livro I do Capital (1867),
·deste substituto do retrato. Jenny emoldura ela mesma 3 fotografia "em gran-
o desenvolvimento da Internacional, irrupção da Co muna de Paris. Esperan-
de formato" que envia a seu pai, "espl&1dida, perfeitamente pareqda. Nenhum
ças. Decepções. .
pintor teria podido fazê- la com ·mais ~ressão'~ E Laura cqmenta:."Tua foto-
1872 '- 1880: Intermédio. Tod?s estão recolhidos em', Lóndres; toma-
. grafia a~radou-me imensam·ente. Admiro sobretudo os ,olhos, a testa e a ex-
da, pela fprça das circunstâncias, a capital do socialismo. Poucas viagens. ".
pressão: os primeiros têm aquela autêntica centelha travessa que eu tanto amo
poucas cartas. Silêncio. Nos bastidores, Elemor ama Lissagaray.
no original, e é a única de tuas fotografias em que se encontra tanto a expres-
Ato II (1881 - 1883): Noite e brumas: Paris e sua periferia; Londres e
, a ilha de Wig!lt. Cenários: quartôs de doentes, velórios, cortejos J1lortuá(ios
são·de sarcasl!l0 e de prófunda bondade!'; ela. identifiCai ali, no -entanto, "uma,.
.
ponta de maldade (... ) temível para teus inimigos"."
por ]enny à mãe, por 'Jenny à innã, Karl o pai , o peque nó Har~ra Longuet.
Eleanor rompe com Lissagaray. ./ Marx, - "o .f-.:1.estre", Mohr) ChaUey, Qld Nick, etc., a abundância de ape-
Ato m ( 1884 - 1890): uma mulher, Eleanor Marx'Ave1ing, tenta viver· lictos sublinham su"a pres~nçâ - domina com sua estatura esta tribo sobre a
intensamen"te. Cenas múi~iplas: Paris, Londres e o campo,!l Suécia, a Améri- qual ele reina, désEota afetuoso e tirânico. Suas filhas dedic~-lhe um vercla-
C' l. Amor, teatro, viagens e politica. O desenvolvimento dos partidos operá -.
. deito culto. Vaidosas <;0010 colegiais, elas procuram seus nomes em suas car-
rios, o nascimento da Segunda lryternacional marcam o apogeu da co~abora­ -tas, fingi~do ciúmes se ele menciona mais uma do que o~tra. 'Cú mplices, elas
ção das quas irmãs, sob a tutela do "Bom General", Engels, cuja casa é man- lhe fazem provocações sobre sUas amizades mundanas ou femininas , preoçu-
tida pela fiel serva HeJene Demuth, até a sua morte· ( 1890). padas também em mostrar-se à altura dele, por suas leituras ou sua cultura
Ato i\r (1890 - 1898): fim de jogo. Para Engels, cuja cas; torna-se, at€ poBtica. A temporada que Marx passa na Alemanha, em 1867, para a edição
1895, o centro doe uma ação muito balzaquiana. Pândegas. Disputas de mu; d.o. Oapital é à oportunidad.e de efusões epistolar~s em que somente Laura,
Ihere~: Louise Kautsky expulsa Pumps, a sobrinha.bêbada, e em seguia. Elea- ocupada por seus anlores com Lafargue, é mais ctistantE;! <CComo sentirei tua
nor. Hist6rias de herança: quem terá os Manuscritos de Marx - O prodigio .. falt~ no l ° de maio" escreve Jenny que agradece se u presente de~anive~sário, ao
I .
so ljacMpss, este tesouro?~ quem receberá o dinheiro de Enge~s? Fim de par- passo que Lafargue escreve a respei to de Thssy: ~Parece que eJa preeis, de .vós
tida também para Eleanor, que coloca, ela mesma, um ponto final neste jogo, para poder viver'~21 No dia seguinte às suas núpcias, Laura .escreve de Dieppe
erfl 31 de ma~ço d.e ·) 898, ao tomar uma forte -dose de ·veneno "para cães". Sua para' o se u "VeU1Q Mestre": "Não consigo imagin~r que os deixei todos, para .
última carta I?ublicadá aqui, escrita trê~ meses antes, deiXa perceber ~seu sempre. Se. eu devesse estender-me sobre este assunto contigo, eu tomaria
grande "Ca~saço, sem pressagiar -esta sa1d~. Ei. la, ·no entant~, toda vestida de . muito de teu tempo'~n /
branco deitada em seu quarto do Den --:3 toca - aquela casa que ela amava .
. Enfun calma. Só. . ' - I ,... , 20 C. 8, La K..M., 5-1867; C.9, L., K.M.,8-5-1867.
l. l fi C. 7. P. L a K. M.• ~vr./mai 1867.
.,
~ . I ., 22 C. lO, L·, K. M., 3-4-1868 .
.-

I· ,.
48 '._ .... 49
j
i, 'Par'e: J
1}uço,
Olpflu/o 2
AI fil/w! de KQ'" MI" K: ( Qmu inttlitm

Pai afetuoso, sem dúv.ida nenhum a, atento às pequenas coisas da vida,


'I ficaram até a alienação. "Tussy, so u eu", dizia ele: é preciso temer estas identi-
. ao ritual da s festas ou dos aniveFsários. àsa úde e ao futuro de suas filhas, como ficações proprietárias,
ele fora, no passado. atento a suas brincadeiras. Marx era tambérn um pai Em contraluz, a Mãe, aten ta e discreta, misteriosa presença de traços
. muito co nformista que tinha, em matéri a de educação, de relações amorosas, apagados pelos seus como se temessem alguma sombra"algum buraco. v Aque-
,
de alia!lças matrimoyiais e de estabelecimento, as idéias de seu meio e de seu la que fora outrora "a rain ha do baile de Trier", a bela e brilhante Jenny von
tempo,U Prudênciá, convicção, indiferença?! dificil de dizer. Ele não parece se \>Vestphalen, de nobre fa mília protestante, que desposou, não sem problemas-
esforçar muito. Pouco favorável ao trabalho de suas filhas, ele também não os dramas advindos da péssima aliança com um judeu alem~ão - é chamad a
aprecia muito' que Jenny' trabalhe como prof(ssora (ela o faz às esco~ didas), 'apenas de Mützchen (para ela, poucos apelidos), uma mulher envelhecida,
ou que Eleano r queira tornar.,.se atriz. Ele lhe paga suas aulas 'com uma reti- ca nsada de dar tanto. voltada para as coisa.s do lar, sempre carregada de com-
~ência que culpabiliza a pobre Th?sy: "Eu ficaria desolada de custar tão caro a pras e pacotes, mulher caseira como as pintadas por Vuillard, cozi nhando e

~;I Papai", esc::reve ela a Jenny, acrescentando imediatamente: "Gas tou-~e muito c9s turando interminavelmente para suas filhas e seus netos. As "roupa s do pe-
pouco para a minha educação",:U pensando provavelmente no custo da educa- queno Fouchtra': "seu d lapeuzinho", nutrem sua agitação inquieta qu e prova-
ção de suas irmãs, Das três filhas, foi certall1ente Tussy, a caçula, quem mais velmente teria gostado de ter outros alimentos; uma de suas últirnas preocu':
sofreu com a autorid ade do pai. Ele a impediu de desposar o homem que ela .I paçôes foi saber se "as c.1lças do pequeno Johny lhe caem bem ou não?" "Sua
amava, Lissagaray, que não considerava um partido conveniente: mais velho, agulha sempre ativa começa enfim a enferrujar'~ es~reve Laura a algum as se-
este basco impetuoso e loquaz erã libe;tário, pob re e aventureiro demais. manas de sua m orte, à guisa de oração fúnep re.
Marx partiu o co ração de sua filha e.irritava-se com a sua depressão:- Eleanor A ela, esçreve-se pouco, e sobre o insignifica nte: as fofocas de doenças,
está histérica, diz ele, Como. todo o seu século, TratanClo-se de mul~ere.s, o' D,r, o calo r que está fazendo, uma bolha nos pés devido a m eias grandes demais ...
Marx junta-se ao Dr, Freu.d, Ele a transform a em com panheira de suas .tem- compõem as raras cartas que, ao menos nesta coletânea, lhe são endereçadas
poradas de tratamen to em Car~s~ad, seguidas com uma pontualidade higiêni- por suas filhas, Filhas que falam dela com uma condescendência zombeteira,
ca. E depois, não sem remorso, fa z dela a enfermeira particular de s,ua frágil ,
até mesmo irritada, como de uma boa pessoa, um tanto "bizarra", di straída a
velhice. Durante sua pleurisia, ela cuida com .temor e tremores "daquele pa- ponto de aparecer pouco vestida diante de visitante amigo, "vestida apenas
ciente terrivelmente resmungão",lS apreende suas cóleras e tern e confiar-se..a cOm as peças necessárias dispostas de tal maneira que revelavam mais do que
ele: "Nun ca me agradou queixar-me a Pa par; ele ,!l'te repreende vigorosameh~ escondiam"; provinciana o bastante para percorrer as grandes lojas de depar-
te, copW se eu me 'del~itasse' em fica r doente às expensas de minha famílla",16 tamento.f, no teatro, desejar ver "algo qem parisiense" e aplaudir Vert- Vert, que
I; A fà,I'nília. para Marx. ~ra sobretudo sua obra, pela qua l todos os seus se sacri.. fazia as delíciªs da metade fem in ina de Paris;lI além di sso, cheia de reyerência
I . .
---,-,- pelo Gr~nde Homem, de quem ela sempre acompanhava 'as conferências, co-
I· I
23 Entre as biografias recentes de Karl Ma rx, ver sobretudo: LtVY. Françoise P. Karl piava os manuscritos e relia as provas com apl icação: "Parece que MOtzchen
Marx. Ilistoire d'u" bourgeois allemand. Paris: Grasset, 1976 (alén1 do acerto de con· estudou co nscie nciosamente o livro" (o Capital), escreve Jenoy, a intelectual, a
tas pessoal, um novo olhàr); RADDATZ, ,Fritz. Karl Marx. Une biogmphie politique Charles Longuet. .
J (1975). Paris: Fayard, 1978; SEIGEL, 1errold. Marx's Fate: The Shape-of a Life. ,
Princeton, NJ: Pririceton U niversity Press, 1978 (um a soma que se esforça para

.,,
lig3f a existlncia ~ a obra de man~eira pcÍ'tine.nte).
24 C.42, E.• ).: 18·6·188L i ,
\ 27 Sobre este ponto, ver RAOOATZ, Fritt. Karl Ma rx. Une biograph ie politiqllt ( 1975).
P3ris: Fayard, 1978, a ma ior parte das cartas entre Jenny e. Karl desapareceu;
25 C ..43,E.• )., 18· 10·1881. '. I aparentemente destruída pelas filhas,'provavelmente por Laura.
26 C. 47,E .• ).,8· 1· 1882. · I "
28 C. 14, L. , )., 9-5· 1869.
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50 5\
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• Ctp(IIIIo 1
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"""" AI filhas J~ ~rl Marx alrfAS i"álit/u
,

Estas pequenas lOlnbarias não impedem uma real afeição por aquela em 1868, com Paul L..'1fargue,·" de 26 anos, chamado de O "Negro'~ devj..do às
que fo! o que se costuma chamar de "uma mãe exernplar'~ Com a idade, ache- suas ascendências cubanas, ou, mais freqüentemente, de Tooley. Filho de uma .
gada da doença, O tom ganha nuanças de terna piedade. de gratidão emocio- familia (bastànte) rica de Bordeaux, 'ele deixa um pouco de lado seus estudos
nadaI sobretudo para as duas mais velhas, suficientemente engajadas na vida Ide medicina para' dedicar-se ao jornalismo, c?mo tantos jovens do Quartier
conj ugal para compre.ender o que foi a existência de sua mãe, aquele modelo . Latin efervescente do fim do Segundo Império. Ele colol;>oro, com o Rive Gau-
·obcecan te. "Temo/<Íue Mamãe não se sinta bem estando sozinha quando tu che, órgão radical fundado por Charles Longuet: seu futuro cunhado, e par.ti- ,
também tiveres part.ido~ escreve Jenny a Laura que preparava sua partida para cipa da organização do primeiro congresso internadonal de estud.antes, em'
Paris."S realmente cruel que. envelhecida e doente como ela está, da deva per- .Liêge. Expulso da Universidade de Paris por haver preconizado o uso unica-
der todos as 5u,as fLlhas no momento em que teria mais necessidade de1as,"J' . mente do vermelho corno emblema, ele sé refugia em Lon?ces, freqüenta la
Estas cartas são um precioso teste~:nunho sobre a clausura de uma vida invadi- casa dos Marx, enamora-.se de' Laura} tão bela vestida de amazoníl. Marx, que
da até o fim peios se us: "Mamãe nunca está tão doente a ponto de perder o o julga "~uito bon? menino, ~as u'ma cdança minl<lda e demasiado esponÚ-.
mais vivo e terno interesse por todas as pequenas coisas que fazem tua vida' co- nea':" negocia o casamento cómo o mais cuidadoso dos notários e consente
tidiana", diz Laura a Jenny, Sua última palavra a se u marido, aqúele que ela somente após receber garantias formais sobre a sua f'!rtuna: "0 pai (LAlargue)
chamava outrora"de seu "Selvagem': foi: "Bom'~ Assirn morreu a companheira escreveu-me de Bordeaux'; conta ele a Engels (23 de agosto de 1866); "ele pe-
de Marx que não ousamos chamar de mãe do marxismo, Imaginamos o IllO- diu p~ra seu filho o tltulo....de noivo e apresentou-me, do ponto de vist:t fUlan-
numento que lhe teria sido erigidd por uma República do estilo da Terceira Re-, ceiro, condiçõe~ muito favo'ráveis'~ Em 2 de abril de 1868, com um tempo mui-
pública: inspiradora, anjo vindo do céu e coroando o pensador, ou mulher. to .frio, Marx ·vesti u sua sobrecasaca para casar sua filha. O jovem casal instala-
ajoelhada, pasmada, estendendo-lhe as flores da terr~. O Homem dt Mármo- se na França, onde Lafargue,.por amargura e p~r inclinação, ocupa-se mais ga
re recusa tais alegorias: o homem da iconografia socialista mantém-se vlril- . imprensa do que da medicina, o q\le inquieta Marx: <"~emo que o pai Lafargue
mente só .. .)O suspe, ~te que eu levei seu filho a uma a~ão política prematura que -o faz negli-
genciar seus deveres profissionais': n A guerra, o recolhimento em Bordeaux.
transformada em capital, assim como, mais tarde, a morte de seus três filho s,
, '
PAI E GENROS acabam de afastar Paul de Hipócrates: ele será o introdutor na França dõ "ma-
terialismo científico", futuro fundador, c~m Guesde, do primeiro p:trtido ope-·
No início da história, Jenny é 1,.:aura têm vinte e dois e :vinte e um anos. rário que reivindicav:a o marxismo. Naque.le momen,to, era um jovem pouco
Saq'duas belas'jovens morenas, travessas e alegres, de excelente 'educação e · ~ falante, um tanto desordenado, que se esforçava para escre~r e gostava de jar-
, . . dÍnagem, bom pai, quando se tratava d'"e br~car com seus filhos, bom esposo,
boas maneira~, às quais não faltavam pretende,n tes. Laura casou-se primeiro,
, no sentido tradicional, cheio de habilidadé e, de zelo para desenvolver a Inter-
,. nacional ~a Aquitânia. P:tra quê, aliás? MaEX não dá mais nenhum valor a 'uma
i 29 C. 41, J.' L, 22-4 -188 1. ' o
30 O estudo da estatuaria e da iconografia, tão reveladoras das represe.ntações 'das e
ideologias, é um domlnio novo na hiStória. Ver os trabalhos de AGULHON. 31 "Ver o verbtte sobre. Paul La.faf!Ue no Dictionnaire biogrrtphique du mouvtl1lcn.t
Maurice, Marianne au combato I:.imagerie .erJa sy",boliq'~t: rtpublicailles de 1789 tl.- ouvrier français, publicado nas tditions ouvrieres, organizado por Jean Maitron,
1880. ~ri~: Flammarion, 1979. e o arti~o-de HOBSBAWM, tric, $exe, symh?les, indispensável para. o conhecimento dos militantes franc~.
vê:tement et socialisme. Act(~ de la rec'*rche en scietlcçs sodales, n. 23. sept. 1~78, 32 K. M. a Enge~, 23-8-1866.
; ,que mostra a virilização,progressiva da Iconografia socia lista , sobretudo soviética. 33 C..1S, K. M. a J., 2-6-1869.
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52 53 ·
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Pllnlll Cnpltulo 1
Th.1fol As filllllJ de KAI'I M Im e. t/trttU il!hli~tU

associ",ção ameaçada pelos anarquist~s, este câncer que, segundo suas suspei- ' neira mais conjugal) com aquele hedonista por convicção e por temperamen·
ta~. teria atingido Lafargu e. "- to. separado de uma primeira esposa, e que já gozava de uma"reputação duvi-
Aliás, Marx não confia nos franceses, estes pequeno-burgueses proud- dosa. Dizia·se que ele corria atrás das saias, que era cínico, alcoólatra, pouco
honianos. Os participantes ga Comuna de Paris refugiados em Lôndres inspi- escrupuloso em matéria-de dinheiro, eterno endividado e pedinte indelicado.
ram- lhe apenas uma confiança limitada. Porque suas filhas foram sucumbir aO Em todo caso, a opinião de pessoas tão diversas quanto Hynd.man, Kautsky,
~

seus charmes? Ao1vinte e oito anos, Jenny, que quis ganhar sua vida come) pro- Liebkn~cht- o velho Library tão 6.1- e Olive SchTeiner, intimQ amigo de Ele.-
fessora primária e fez tentativas no jornalismo sob O pseudônimo de WiUiams, nor, era nitidamente desfavorável. Eles a colocaram em alerta; entretanto, ela
eoamo,ra-se de Charles Longuet, cinco anos mais vellio do que ela, um. nor- agiu segundo o seu coração. Sua ligação tornou-se pública em 1884; ela çlura-
mando bem-falante, ativo mijitante da Internacional, presentemente professor ria quatorze anos e teria seu desenlace na morte. Eleanor falava muito rara·
no King's College de Oxford: competência de que Marx se servirá, jenny lhe es- mente ?aquele que ela chamava de Dr. ~veling. corno para melhor sublinhar
creve cartas de amor um tanto co nvencionais, desposa-o em 1877 e o segue a sua autoridade, 's empre na-defens~va, muitas vezes para justificá·lo ou descul-
,r
I
Paris, após a anistia. Eles tiveram muitos filhos, o que não é necessariaménte . pá-lo. Neste ponto, Engels, pouco inclinado ao moralismo, g.poiou-a. De resto,
um si nal de felicidade a julgar pelas ca;tas deprimidas de Jenny a suas irmãs. militiln te ativo, jornálista "instruído, Aveli ng, convertido, podia ser ~ pon~a de
Mais radical do que socia1jsta~, ·L onguetagradava moderadamente a~Marx:Du­ j
lança do marxismo no movimento operário inglês: uma vantagell} que não de-
rante as exéquias da Senhora Marx, Charles houve por bem evocar o drama veria ser negligenciada.
I· quase racial que fora a união "d e urna protestante com um ju.deu. Marx, que de·
testava ser lembrado df; suas orig~ns, pediu-lhe, por intermédio de JenIíy, que
evitasse, a 'partir de então, mencionar seu... nome em seus escritos. JS~ria pqr ROSTOS DE CRlANÇAS
isto? Depois da morte d~ Jenny, aS relações entre as duas irmãs e o cunhado
,
viúvo se degra~am, envenenadas também, por inçessantes q~estões de dinhei- Ao longo das páginas, os velhos rostos se esmaecem, submersos por fo-
ro_E, oito anos 3.pQs a l1)orte de sua mulher, quando Charles tem uma ligação iografia& de crianças, de que Jenny e Lama foram tão fecundas. Ao tempo. da
muito conjugal com uma jovem da Normandia, sUas cunhadas se melindram , avó, sobret~do, as cartas são repretas de suas mímicas e de seus balbucios: "Que
e reprova'" esta blasfêmia. Aquela família' é t~o exclusiva. quanto um clube fe - 'delícia é para nÓS a leitura de cada pequ~na história e anedota que os conc~­
cilada: é tão dificil de entrar quanto é complicado de sair; os laços afeti""s. ne':)4 Seu modo de criação - aleitamento materno, artificial, ama~de-Ieite? -,
sua ~aúde tão del.icada, suas· roupas so~re tudo - "o en cantador ·vestidinbo
acompanham-se de uma adesão inteJectual e 'de engajamento paBtico e de
um,a vassalidage quas~ fe udal. .
J
1
, azul '
de Tia Lolo',: "o famoso terno de ve~udo","o terno de marinheiro': .. -, aos quai~,
I Ed\,:,ard Aveling, por sua vez, nunca fez realmente parte da família. Ele:"~­ como perfeitos atores, elçs parecem dar bastante importância, são a opol'tuni-
n~r o' freqüentou desde 1882, no entanto, amou·o somente apÓs a mort~ dé ,," dade 'parà comentários extasiados e emocionados. Eis ttienne, chamado de
seu pai, temendo talvez a hostilidade previsível de Marx àqueJe professor de Mimi, ou Fouchtra ou ainda Sclmaps, tão engraçado com seu carrinho: '''um
I •
Ciências, imbuído de darwinismo, adepto do livre pensamento e do malt,h usia- verdadeiro macaquinho,que imita cada palavra que se pronuncia e cada gesto
nismo, amigo' do radiçal BradJaugh que, após a,Çomuna de Paris levantou-se que se faz", a pequena Schnapine, a Magricela, cuja morte culpabiliza Laura.
contra Marx e a ln~ernacional. amante d,~ poesia e de teatro: um daquel~s so- Contra a opirúão de Paul, adepto do aleitamento artificial, ela quis alimentar
cialistas. "boêmios" e líricos pelos quais fMarx. homem de ordem, tinha uma ela mesm,a o seu recém-nascido, Marc-Laurent; quandp ~Ie definha, por sua I
profunda aversão. De qualquer. maneira j foi preciso muita coragem e amor a
Tussy para impor a ~~a união ~~re (um Pp uco forçada, e que da vi~eria da mll- 34 C. 42, E. a j., 18-6-1881.
,. , ...

54 55
Alfte I C4p'rulo i
T.... AI fi/luu tk K.rl Mtlrx: mrt<u i"lrlitlU

vez, Jenny a exorta a servir-se de uma ama-de-leite: "Escute ós conselhos de Ma- para .quem o sfmbolo da felicidade era "~m Château MargaUx 1848", tudo isso
mãe a este respeito'~J.S Marc-Laureot expira, sem ter tido tempo de ganhar um chocava a-sensibilidade mais discreta, o COrp9l:11a.,is frág il, a decl!ncia das se- o
apelido; e pouco depois, na idade dolorC?sa de quatro anos, o querido pequeno' " nhoras Marx. Os Marx zombavam dele. c.hegayam 'até m esmO '3 escn;ver sobre
Schn aps sucumbe, deixando Laura e E~eano r inconsoláveis. Dezesseis anos de- isto; conseqüeptemente, com a ~&rte de Kari, Eleanor empreenpe a d~puração
pois, Eleallor escreve: "Eu olho a" pequena mecha de cabelos qourados que m e da correspondência: t'lnútil dize~-te que cuidarei, co m a maior ate1tfilo (sic),
é tão preciosa e ~mé lembro'~)(, Testemunho de uma mortalidade infantil que pala que o nosso bom General não veja nada qué possa lhe ca4sar tristeza,"'7
continuava elevada na época: das nove crianças, apenas quatro sob reviveram, EJean or, Jque tanto aproveitara, quando criança, da casa calorosa e rue-
os Iilhos de Jenny - Johpy, Wolf, Par, Mémé, doce e frágil, que finalmente vive-
gre de Titio Engels e de Titia Lizzie (Lizzie Burns, ~ companh eira de Engels',
r,a até os setenta anos, continuadora apaixonada da le~brança familiar. Sobre
~ m9rta em 1878), tão diferente da atn:tosfera mais pomposa de seu próprio lar,
eles é transferida toda a afeição frustrada das duas irmãs.
retoma, por sua conta, toda a repulsão puritana.. Ela apreende os intermináve' . is
Aniversários, fotografi~s, ·. rellquias respeitosamente conservadas em .
medalhões: tantqs sinílis de um a vida familiar in te nsa que se alimenta também
com as férias comuns, ,!S visitas, as conversSls das quais as cartas são apen"as as
. almoços d,ominicais - "sempre o melimo ritual: almoço, bebida, . cartas, jantar
e novamente bebidas" -, e as festividades de Natal, "estes horríveis folguedos':
.

substinitas. cada vez mais in~uportáveis para a sua melancolia. -Q uando.., após a morte de
Em .to·rno do núcleo ceniral, ,c ruzam ainda muitas silhuetas vistas ape- Helene Demuth, Pumps, a sobrinha dt: Lii..?ie,-assume a direção vacilante da
#nas de relance: tios e tias, primos e primas" dispersos nos quatro can tos do casa de Engels, a repugnân'cia de Tussy aumenta: "No final das cl>ntas,'é com a
mundo, até na Cidade do Cabo, mas sempre ilegftimos na Inglaterra, centro da" sua enfeitiça nte bêbada Pumps que o General é mais feliz'~" Eleanor se alegra,
civilização. Sua chegada, seus casamentos, seus problemas e às vezes, sua incô- . \ nicialrnente, com à chegada de Louise Kautsky, divorciada ~ logo casada ,no-
moda presença é evocada pejas irmãs: uSe tu quiseres me liberar de aJgumas vamente com Freybergeri mas ela não demora a desenca ntar-se quando ",valia
tias e primas, palavra de honra que eu.. ficarei muito ag~adecida " ,lO
a gravidade do jogo: a tentativa de controlar os mânuscritos de ~aIX. ,"As p es-
soas q ue vivem co m o General podem manipulá-lo à vontade': escreve Tussy.
que descreve Engels "com o urha criança entre as mãos daqu ele casai m on's-
o GENERAL ENGELS
"
truoso" (os,Freyberger). "Se tu soõbesses c0!1l0 eles o tiranizam e Lhe ca usam
medo."» Suas ca rtas mostram o espetáculo Iam_entável de um homem à deri-
Estes laços familiares desenham uma ilha privilegiada de legitimidade: va', naufragando em um;' ,irremediável senilidade alcoól atra. 'Mas, pode-se"
mais que ele 'faça - e o que ele fião fez pelos M'arx, dlegando até a .
PO'f acreditar complet~ mente nesta imagem? Não haveria ali uma 'dose de fantasia
en9'ossar a paternidade de'Freddy Demuth, o filho n.tural de KaÍl e de Hel~n : aljme~tada p~Io s~ntiment~, parcialmente fundado, de ser excl uída?
a criada, para evitai um
escân dalo a seu amigo -, Engels não será jam ais total- <-
, Outros testemunhos, outros indícios - por exemplo, ~ Correspondência
mente .d a família. Seu modo de ~da, mui to mais livre, seus amores, geralmen-
J com Paul e Laura Lafargue, editada p.o r ~mile Bottigelli..o - mostram um ido-'
te desclassificados, sempre ilegítimos, seu gos to pela festa, pela boa comida e
pela pândega em companhia de seu inseparável Jollymeier (Sch orlemm er), sua
lingu~gem livre, às vezes ao estilo de Rabelais, que fez corar Eleanor, tudo o· 37 C.54, E.aL.,26-3-1881. ,
que faz a atração daquela força da na.turfza, daquele temperamento generoso 38 C: 76, E. 3 L., 6-8-1891. .

.r " ,
39 C. 87, E. 3 L., 5-11-1894 .
40 Correspondance. Engels-Paul et mflra La/argue" Tatu recueillis et pr~ent6 par
35 C. 30,j.aL., 18-4- 1871.
36 G. 61 , E. 3 L., 12-4-1885.
,
i, "
~mile Bottigelli. et traduits par Paul Meier. Paris: &itions sociales,'1950-1959. 3 V. ,
t.1, 1&68-1886; t. U. i887-1890; t. JII.. 1891-1895. Fonte fundame ntal para O con-
. )

' 56
'. 57
:1 Pune 1 • 61'ptfll lo 2
Troços A I {rl/inl de Karl Marx: t"rtal il1Mirltl

50 ainda ativo, lúcido e bem illformado. De resto, era menos pela família do com nostalgia o "Strand enlameado" e seus reclamesi ela não se habitua à tris~
que peja obra de seu companheiro que Engels se sentia requisitado. Ele não ti- teza dos subúrbios de Paris, que Laura co njl:!!a com grandes jardins fechados,
nha, e com razão. aquela paixão peJos laços de sangue. tão forte entre os Marx. dá mesma forma que Eleanor não gosta de Nova York, "ciaade fl1uito suj a e
Ainda que tivesse respeitado os direitos das herdeiras. e até mesmo ido além - muito medf?qe'~ enfeada pelo vício das "iniqüidades capitalistas"~1 que mas-
di~so. pois legou a c~da ú~a delas somas confortáveis que não lhes devia, ele caram o panorama. A geografia aos Marx ~ européia e urbana, eles se deslo-
considerava provavelmente que elas não tinham necessariamente prioridade cam muito, contagiados pela mania de viajar que o-vapor deu às classes mé·
no que se referia aos escritos econômicos e poUticos. E, aJ ém disso, eram mu- dias, mas em um perimet.ro comumente estreito, desenhado pelas residências
llieres. Talvez o mais feminist;:l dos marxistas desconfiasse de suas capacidades familiares ou pelos locafs dos Congressos, em torno do _Canal da Mancha ou
em matéria de teoria, área q\1e ainda hoje continua a 'ser um apanágio ampla- do Reno, ' Lonçires, Paris, Bruxelas, Haia, Genebra, Hamburgo; estações de
mente masculino. O autor de O~igens da Fatnflia deixava para mais tarde a re- águas, sobretudo estações balneárias da costa sul: Hastings, Margate, Eastbour-
visão dos papéis; o momento da revanche sobre a "grande derrota histórica·das ne, Ramsgate, a ilha de Wight ... são seus lugares de predileção. Doente, á'vido
I· mulheres" ainda não havia chegado. ; de ~Ior, Ma..rx se aventura até o Mediterrâneo. Na verdade, os 1y1arx não são
Em todo caso, estas q~e[elas envenenaram os 9ltimo.s 1)nos d~ sua vjda; viajantes, são apenas turistas; eles não se interessam nem pela natureza. nem
. suas relações com Eleanor e, po,r certo tempo, com Laura. Elas dão à· corres- pela arte; os livros contam para eles, muito mais do' que as paisagens; as con-
pondência deste período.J.ll1l tom triste como O de Balzac, ou até, antes de seu versas ou os encontros, mais d o que os passeios ou o devaneio. "Tenho vonta-
te'mpo, CO II'I O o tom de Mauriac:fUffi '~ N6 de moras" que se sufocam pelo seu de de te falar um pouco das pessoas ~: esCreve Eleanor - na verdade, o que mais
enlaçam enço. fazer em Carlsbad? "Todas as descrições de paisage~ não conseguem dar con-
ta da reaHdade."c
Aliás. Eles detestam o subdesenvolvimento e seus estigmas.o }enny se ir-
INTERIORES rila com a inexatidão e a ineficácia dos operários franceses: "O que torna a vida
di6cil aqui é a impossibilidade de obter que as coisaS" sejam feitas; as pessoas
o cotidiano é mais amável, mais banal. Sob este ân gulo, nada - ·ou mui- daqui são os piores vagarosos que eu já vi. Dar-te-ei apenas um exemplo para
to pouco "::" distingue os MarX", ao menos nesta época de seu estabelecimento, que tu compreendas. Três operários, um depois do outro, tentaram, em vão, fi-
dos Brown ou dos Smith. D.o cwnento etnológico, esta Correspondência "ÕS 'xar uma roda do land:,u, o que não a impede de se sc;>ltar após poucos minu-
introduz
,
na intimjdaqe de uma, famllia middle
)
clasi, com suas práticas e sua es- tos. E as coisas são assim para tudo".~4 Ela se se nte dominada pelf' estupidez:
tét~ca, sua· linguagem e sua visão. das coisas, mistura inextricável de .ternura "Tenho ·a impressão que alguns anos, algun s meses até, desta vida em país es-
ve~dad·
."
eira e de gestos co~binado"s, que emociona e irrita ao mesmo tempo. . , tran geiro· e entre estra ngeiros tornar-me·ão incuravelmente idiota".45 Áté
·Como são inglesas, estas Senhora~ Marx com seu senso do caltt, que ." 10hm'1y, que "não se entende. com os pequenos fTanceses encontrad?s aqu.i"; o
perturba justamente o laxismo de Engels. Nada se iguala, a seus olhos, a "esta
querida e velha lnglaterra'~Lq ndr~ ~seus jornais, Shakespeare e o sabão Pears 4L c. 68, E. 3 L, 2 L-8- L888.
(inlpossível de enc~mtrar em" Paris). · Do ~deserto de Argentt;uil': Jenny evoca 42 C. 35. E. a L., 5-9- 1874.
. "

43 Sobre este ponto. ver L2VY, M. L Modernit~, Mort.1lit~. Populations er Soâétés, n. 192,
hecimento do socialism.o e a in:rodud~ ~o' marxis mo na França. Para uma apre-
, p. ISO et seq.• juin 1985.
sent3~o detalhada deste m cinumenlo.lver M. Perrol, (1.1 e 11 ) e C. WilJard (t. III ).
Annali de:lI'lsrituto F.t!ltine:lli, Anno Te$. 1960. p. 740 el seq.
'-
- 44 C.39, j.aL,4- L88 L.
45 C. 4L, j, a L.,22-4- L882
-'

r: ... , .
. 58 59
/
,
Pllrte I C4pitu/o 2
T>vfo. AI fJI'4$ de X"rl M"rx: CArtas íPllditas

futuro Jean Longuet, admirador e amigo apaixonado de Jaures,oti fedla-se me- m ais, caro demais", segu.(ldo MUtzchen, q~e fica mu.ito inqujet~ com as dfvi -
drosamente na compaJ~a apenas de seus irmãos menores. das. Eles deixarão a Modena Villas, em 1875; para morar em uma casa mais
Mais .sociável. Laura também compreende mal as reações do povo de modçsta, a alguns números de lá. Desta época feliz, as meninas conservaram ó
Paris que ela julga "grotesco" cUante da invasão alemã, subestima suas capa~i­ gosto pelas grandes residências. Elas estiverem sem pré em busca de wna casa
dades de resistência e, logo, engana-se completamente sobre a seqO-encia dos com 'jardim que desse o ar puro indispensável à saúoe e aos jogos das"crianças,
eventos . .E. verdadéque ela estava enclausurada na casa de seus sogros em Bor .. propícia às plantações e às brincadeiras dos mimais da mrnilia (Marx tinha
deaux. De resto, os Lafargue chegaram a compreender realmente o m ovimen - três gatos: Tommy, Blacky, Whisky). Laura passa muj.to' tempo à procura da
to operário francês? Esta é um a questão colocada também pela leitura de sua ~asa ideal: não muito longe de Paris, não muito isolada devido aos riscos de
Correspondêtlêia, aliás tão in.teressante, com Engels. roubo - a periferia ~ tao 1 pouco segura 4' - , e das 'voltas tar~as ~e Paul. De
O relato inge'n uamente s,:!r.preso que a jovem' Elea not fa z do enterro de Neuilly a' Draveil, os L1fargue mudam sem cessar de casa, segundo a prática
Plantade, um dono de restaurante gascão cujo.estabelecimento servia de pon- ainda nômade de se.u tempo. .
to de reunião a todos os participantes da Comuna d.e Paris em Londres.. ilus- Mais boêmia, sempre tentada pelas carroças das pessoas em viagem,
tra a dificil percepção das diferenças culturais. Procissão ~regando uma cruz, Tussy é dividida entre as necessidades profissionais da presença em Londres e
enterro civil, banquete regado a vinho branco após os funerais parecem, para a atração peJo campo inglês. Em 1887, ela instala-se com ~veling. em um cot-
Eleanor, tanto "cenas muito. curiosas" quanto "coisas bizarras'~ As mesas esta- tage em DodwelJ, perto de Stratford-on-Avon. o que responde simultanea-
vam cobertas de bolos, de biscoitos, de laranjas, avelãs e todo o tipo de coisas . . me~te ao seu populismo - uma "casa de trabalhador diarista" -, à sua necessi-
Parecia mais urna boda do que um funeral. E a Senhora Plantade não parava dade .de identificação teatral - "lU te dás corita, Laura, é a região de Shakespea-
de dizer: "Vamos, meus \filhos, coma.in!·~~7 Os rituais africanQs não foralt:l mais re" -, e seu remorso utilitàrista~ "Temos um quarto de arpento de jardim 9nde
surpreendentes para os primeiros explorádores. O ex~tico' é coticüano, a dife- podere!f1os cultivar mais legumes do que temos ncccssÚlade':.JO Provavelmente
rença constitui o Selvagem. , em razãp da reputação perdulária de Edward. Eleanor sente sempre a necessi-
dade de se justincar neste aspecto. Suas relações com o dinheiro não são ~im ­
pies, de qualquer maneira. ! ,
CASAS E]ARDINS ' O casas, ó castel os! As duas irmãs rivaliiam em sua paixão imobiJiária :
" ~'Ni.tnmy faÍou'-nos tanto. de vossa bela casa e do jardim (trata-se da r~idb~cia
é
Naquele fim dI> século 19, a Illoràdia um elemerito de posição social, em Le Perrel/x) do qual Edward ficou terrivelmente enciumado. Vós ultra pas:
disf riminatório do s níveis e dos modos de vida; ela distingue a classe média do · r sastes por completo o nosso castelo'~ escreve Tussy à sua irmã que ela encora-
p/~Ieta,iaq.o. Os Marx. participavam deste simbolismo e sua inquiet~ção imo- ja a "vender uma parte de vossa produção. Com tal jardim, vós poderíeis ob-
biBá;i; não era ~úramente material. ... Muito mal servidos .nÇ> ink io de sua -' " ter um bom re.ndimento~ JI
e.:ostê'ncia conjugal, os Marx instalaram-se confortavelmente, a partir de 1864, Graças
. à sua parte da herança de Engels, elas
, acabarão por adquirir a
( .
na Modena \liUas
.
(Maitlana Hampstead),
, . "um verdadeiro palácio, grande de- casa de s~us sonhos, a soberba residência de,Draveil, nas bordas d~ floresta de
Sénart para L1ura: trinta peças, bilhar, estufa para as plantas no inverno, casa
)
46 Ver seu ver~te no DjctjOnnajre.biOg~i' hie de Jean Maitron.
47 C.34,E.a j.,7-11-1872. . . 49 y. 20; L a j., 9-6-1870.
48 Lt.VY, M~ L. Modernit~; MbrtaLité. Poiflations et SociétéS.J n. 192, p. 180 ~t stq.,juin 50 C. 65, E.-a r., 30-8-1887.
198 5. , " 51 C. 67, E. a L., 9-8-1888 . ,-

v

60 \ ..
, .\ 61
i~l Pllrtc J
, Qrprrulo 2
II ThlfOJ ÁS filllUs de Karl Marx: {artal inMitas

do guardião. parque e horta, cujo luxo de "palácio" choca Eleanor.n Ela mesma cissitudes. Ela educou todas as crianças Marx, cuidou dos doentes - ~'Tu sabes
compra uma casa bem mais modesta no bairro de Sydehham - "Sinto um or- que b03 enfermeira el~ é"S4 -: assistiu os moribundos. A prete.:cto de férias, ela
gulho completamente judeu de nossa casa de JeW's Walk': escreve a única Marx vai ajudar Laura e Jenny a se instalar, auxiliar ~s jovens mães atrapalhadas com
que reivincUca sua,condição de judia. Ela a descreve, como o faria Georges Pé- , para emprestar~ cOmo no céle-
,
seus bebês. Se lhes falta dinheiro, ela oferece-se
rec, com a precisão que mo-stra um certa organizaçã-o da vida e do tempo: ~'An­ . bre folhetim de La Semai,te de Suzette, Bécassine O fará para a Marquesa de
dar térreo: grande peça (simultaneamente escritório de Edward e sala de estar); Grandair: C(Agradeça Helene pelos cinco francos, diga-lhe que neste momento .
. . sala de jantar (que se abre para o jardim dos fundos), cozinha, copa, guarda-
estamos ricos, mas, que se daqui a al~s meses, quando de nossa mudança,
comidas, adegas para o-vinha. e para o carvão, armários. grande entrada. Uma
tivermos necessidaae de dinheiro, dirigiremo-nos a ela>: escreve Paul. J7 No en-
I; escada (fácil de subir). Quarto de dormir. Quarto de hóspedes (o vosso), quar-
to de empregada. banheiro (suficientemente grande para servir, se preciso. de
tanto, ele lhe escreve apenas indiretamente: "Diz a Helene ..... j Pal,a m dela no
possessivo "Nossa Nim"j ridicuJarizam 40cemente seu apego ingênuo a se us
I.'
quarto ~tra). Meu escritório!!!" Eletricidade e aquecimento a gás. JJ Para COf-
r tar imediatamente os mexericos sobre Aveling o 'aproveitador, ela acrescenta
pequenos tesouros~ Diz a Helene que eu não acr~dito que se possa fazer algo

'r.
!
que ele pagoú os móveis ·hipotecando uma propriedade: '(Seria injusto que tu
pensasses que" sou eu quem paga tudo". O De1l será sua derradeira ICtoca'~
por seu broche de ouro; mas que ela não pense que renunciamos ". Por Deus!
, Seria dilapidar sua fortuna! ~', escreve Laura não sem uma cruel 'ironia,'" SOI11-
br~ fu:tiva e atarefada, Helene - seu~ puddings, suas ninhadas - está sempre
presente, mas nos bastidores, como devem fazer os bons. criados, preocupados
!,.
AS EMPREGADAS -' em ficar '.(em seu lug~r". No fundo, sabe-se muito pouco sobre ~Ja e até a sua
mor",te, em 1890, tão importante no desenrolar da intriga, não faz muito baru-
lho na COrrespondência.
A manute'nção destas casas requer temp~, sobretudo para consciências ,
domésticas escrupulos.,as ·que se atormentam com a desordem e a poeira. ~ . Pois Helene é uma testemunha incômoda: 'ela deu um filho a seu se·
toda .uma série de atividades que as donas-de-casa vitorianas deixam para suas nhor: concebido provavelmente na promiscuidad.e do' estreito apartamento do
domésticas, tanto s~bolo social quanto comodidade da vida.'" Os pais Marx Soho - o Soho, aquele sombrio período dos Marx -, durante uma ausência de
haviam tido Helene Demuth, e também, durante muitos anos, sua irmã maís Jenny: F;eddy, nascido em junho de 1850 (morto em 1929, em Londres" ), fi-
nova. Lençhen, Nym: é o próprio tipo de criada de grande coração d~ que o s.é- lho do mistério e do escândalo, cuja paternidade será assumid.a oficiosamente
e
culo 19 nos dá tantas imagens ambíguas,5' Corpo alma, ela deu tudo para por Engels, generoso e atrevido, $uas meio·irn:!ãs o ignoram por muito tempo
seu.s senhores, que serviu dura nte quarenta a11-0s (1850 - ,1890, dos vinte ~ ~~te , (Jenn,y morreu sem saber de' nada) e não teriam, talvez jam·aj~. sabido de sua
aos sessenta e sete anos: wna vida), ao sabor de' suas residências e de suas Vi~ existência se Eleánor não tivesse sido tocada pelo destino iníquo de Freddy:
"Freddy comp<?rtou-se admiravelment'e e~ todos, os sentidos, e a irritação de

52 ·A este respeito, ·ver TSUZUKI, C: The Lift of Eleartor Marx (1885-1898). A Socialist
Tragtdy. Oxford: .darendon P'e$$, 1967. p. 304. 56 C 53, E. a ).~ 9-1-1883.
53 C loo;E.• L, 10-12- 1895. 57 C I8.P.LaL. ,9- 1·1870. ,
54 Ver BASCH, Françoise. ús Femnles victoriertrttS. Roman et Société. Paris: Payot, 58 C I7,L..) .• 25-10-1869.
1978. p. 52 et seq,; ela 1,Isa correspond!ncias, privadas muito inte~ssantes a serem
59 Sobre Freddy Demuth, ver SE IGEL, Jtrrold. Marx's Fate: The Shape of a Life,
~ comparadas com as aqui apresentadRsI ainda q~e sejam anteriores, ,
Princeton, NJ: Princeton University Press. 1978. p. 275 et seq,; L~VY, M. L.
55 A titulo de comparação, ver-FUGIER, Ánne.Martm ..La Place des bontlts.LA domes- Modernité, MortaJit'é. PopularioflS el Sociétés, n. 192, p. 187 et seq.• juin 1985 e sobre·
ticité féminine ~ Paris en j 900. Paris: Grasset, 1979. .... " . tudo KAPP, Yvonne. Eleanor Marx. Fami/y Life. London: Lawrence & Wishart, t9n,

62 .'
63
I

!• AI/te I

"""'.
Engels com relação a ele é tão injusta quanto compreensív~l. Suponho que ne-
c.,p(tuID 2
AI fiJlrlU tk Kurl Marx (llfttU ilJúlitas

o fatal veneno, na manhã de,31 de março de 1898. Gerry, seu último rosto, a

:
c ., nhum de-nós gostaria de encontrar seu passado em carne _e .osso (.. ,). Quando primeira testenlunha de sua morte.
'1
'.eu vejo Freddy, tenho sempre uma sensação de culpa e de injustiça. Q ue vida
a deste homem! Ouvi-lo ioÍlar dela é um sofrimento e uma vergonha para

A QúESTÁO DE DINHEIRO
ti ll1im'~" Ela volta à carga dois anos depois, quando Freddy tem' graves embara-
.-
•~ ços financeíros: c(Não posso impedir-me de achar que Freddy fÓi, durante toda

.',•
a su"a vida. vítima da injustiça. Quando olhamos as coisas bt;rn de frente, não é Para tudo isso é preciso .dinheiro, muito dinheiro. sempre mais dinhei-
extraordinário ver a que ponto praticamos raramente as viftudes que prega- , ro. Não que ele tenha, no fundo, faltado aos Marx." ~ verdade que eles ganha-
mo~? ", escreve ela, pensando em Engels." Engels que acabou por irritar-se com vam ppuco: o jornalismo fornece alguns ganhos, mas nem a economia poUti-~
I"
aq uela reprimend; silençiosa; ele fez saber a verd~de 'em seu leito de agonia, ca neJ~ o sociaJismo são muito·lucràtivos! Mas eles receberam, ao longo do
por Sam Moore, seu e,.xecutor testamentei ro. Para Eleanor foi um choque ter- tempo, todo o tipo de heranças e donativos, : pri~cipalmente (esta história' é

••
·,
rive!, cujas conseqüências é dificil avaliar. No entanto, ela aceitará o fato e fa rá
, de Freddy - seu irmão - o mais íntimo confiden te dé sua tr~gédia pessoal.
Mas Nim pertence a u~ tempo passado. As ~Jhas de Marx tbll muito
bastante conhecida) do próprio Engels que, vivo.o u morto, manteve a tOGas, •
inclusive Aveling. Os Marx "comeram" muito capital: a moral socialista não
encontrará nada a refutar sobre isto!

•• mais problemas com suas criadas. Encontrar uma empregada séria, honesta,
limpa, não muito simplória, o~ tagarela, é uma preocupação constante. Em
Os Marx têm O modo ·de vida da burguesia, mas não o. seu amor pela
poupança ou o seu esp!rito de acumulação. Vivendo mais de renda do que de

••. Paris, as empregadas ingl;sas não s~ aclimatam, assim como a~' suas patroas. h
melhor contratar alsacianas, apesar de seu terrível sotaque que elas correm o
risco de passar para as crianças.tl As' empregadaS são jovens, mconstantes; elas
partem; são _mand.?-das embora quando _mexericam. Decididamente - este é o
grito da época - não há mais meios de se fazer bem.servir. "Estive muito ocu-
seu espírito empreendedor, eles buscam ~vestimentos seguros: Lafargue. in-
veste em valores.ingleses as ,:erbas vindas de seus pais," mas Eleanor, após O
tUIbilhão da Grande Depressão, prefere as rendas do Estado às ações, para in-
vestir a parte dos filhos deLonguet que garecem não ter ficado muito satisfei.
tos; "EI~s colocam a nossa paciência à prova': suspira a tia, exten uada ae tan ~
~

.'••
pada pois não tenho mais criada", escreve Laura. 6S E como um eco, Eleanor diz: ta ingratidão.u ,
I _
"Renunciei a Jer uma empregada e: faço tudo sozinha':6oI Este ascetismo .!!ão Se os Marx estão sempre com déficit, é 'pqrque.eles gastaq1 ,muito, não
dura muito: é a jovem Gertrude Gentry - aquela que Eleanor chamara de "mi - '. . se' p;ivando de viagens, fériaS ou do teate'? e 'sua casa éj no final das contas,
,·1
nha excelente mas estúpida Gerry"" - que ela enviá à farmácia para comprar muito confortável, ao. menos no período de Modena VilJas, que qlarca o ap~~

••
- . , ~

60 C. 73. E. a L, 19·12·1890., .'


/ 66 Sobre este ponto, cf. L.E:VY. M. ·L Modemité: Mortalité. Populntions'et Soci&ts, n. 192 •

.-
., p. 171 et stq.,juin 1985. e}. ~igel, nfe structure of a domest;c t:COt10ffrr, p. 2S6 e,seq.:


61 C. 81, E. a L., 26-7- 1892. ' .
muito interessante informaçâo$Obre o tema do orçamento dos Marx. Nos anos 1860,
., 62 C. 39, J. a L., 4· 1881: ~ crianças terão curiosos instrutores e- PegarãO um sotaque
,. . a renda fumiliar dos Marx tslav:Í em tomo Cle 300 libras por ano; na mesma época, o

.•
execrável~
salário anual de um operário qualificado era de cerca de 50 a 60 libras; Helene
,
63 C. 96; L. a E., 23·9-1895.
.:,
e'l . ~
64 C. 65, E. a L., 30·8· 1887
~a de Eleanor a Laura, 23-12018'. acervo de Amsterdã, citada por TSUZUKJ~
Demuth, além da casa e da comida, recebia como salário cerca de 10 a 15 libras por
ano. Ver tamWm KAPP. YvoMe. EleJwor ~a.rx, Ftimily Life. London: La~rence &
Wishart, 19n .
' 65 ,
C. The Life Df Eleanor Marx (1885-1;898), A Socialisr Tragedy. Oxford: Oarendon 67 C. 26, P. L a K. M., 15·1-IS'1.
Press, 1967. p. 317. que relata esteS ,aJontedmentos. .~ 68 C. 106, E. a l., 2-1-1878: "todos exceto·Mémé". ,

•• 64
.'

I'

• \.;, 6(5
~II Ptutc 1
, Caprtrllo 2
---
TYaçol Ao, fi /Iras dt K4r1 Marx: la r·tas inéJitllS

geu da famUia. Da,1 trê~ filhas, Eleanor, até a morte de Engels, é


L. 3 menos favo-
recida. Para o aniversáriQ_da morte de Marx, falta-lhe dinheiro para colocar
le, peso do cotidiano se a função destas cartas é justamente contá-lo? E como
surpreender-se desmesuradamente do caráter burguês. daquela intimidade?
\,
, ,
flores em sua tumba: "Como ontem era p dia 12, fui a Highgate levar algumas Não se escapa tão facilmente de seu meio, sobretudo quando, no final das
flores. Não pude comprar~ muitas pois éstava com pouco dinheiro"," "Tu não. contas, este meio nos agrada. A vida burguesa tem seus charmes, sobretudo
"
podes saber em quc;:. . estado de penúria crônica nós vivemos", escreve ela a Lau- ,'.
paTa os homens. Para as mulheres, é uma outra história, como veremos. ~ pre-
ra10 naqueles ano; negros em que suas esperanças de sucesso teatral se dissi- ciso ainda reconhecer e saber quç o ~arxismo não amadureceu unicamente

, pam. Em 1891. ela lhe diz que não tem fundos suficienteS para fazer a viagem
para Le Perreux: "Parece que as férias e eu nãQ entramos em acordo"," Mas ain-
da aí, trata-se de uma penúria relativa, cuja referência nã~ é, evidentemente, a
do proletariado. De resto, .Elean9T, ào contrário dos Lafu~rgue, perpétuos pe-
dintes dos cheques do General, sempre recusou-se a viver às custas de Engels,
nos estrondos da luta de classes, mas também na atrnosfer.a agridoce de um
home inglês.

o "MOVIMENTO"
1'1
'. colocando como um p'pnto de honra o fato de ganhar a sua própria vida. Por
II
, . outro lado, A~eling, folgazão inve.terado, encarrega-se de arruiná-la, ainda que
ela seja, neste ponto, de um pudor extremo.
,
1866 -18,98: em trinta e dois anos o mUlldo muda ainda que os atores
percebam apenas ~ma [ooga e cansativa estagnação. Em uma conjuntura eco -
Após a morte de Eng~ls, com os problemas de sua suce~são, a questão
de dinheiro invade a correspondência das duas irmãs, chegando à obsessão.
fi I
nômica contrastada, marcada pelos anos muito negr~s da "Grande Depressão"
,J
" Eu fic~fei muito fel.iz;s~spira Eleanor, qU,ando nós pudermos novamente ~s- , geradora de desemprego e de tumultos (por exemplo Decazeville, na França,
crever a respeito de outra cois~ além desta~s estúpidas (" .) q~estõe~ de dinhei- ! em 1886, Black Monday e Bioody Sunday, na Inglaterra, em 1886 e 1887), de
I
ro."n A questão financeira deixara a su a mãe quase louca; ela envenenara a pró- ,I qu~ se percebe;;' os ecos aqui muito c1arament~, desenham-~e restruturações
pria vida cotidiana de Eleanor e fmal.mente a matara. A maquinação que a le- <,. que prenunciam a Segunda Revolução lndu.s trial: depois do têxtil decadente, a
I . vou ao suicrdio repousa, em grande parte, em sórdidos cálculos de Aveling que revolução dd ferro e do automóvel. A paisagem social 'modifica-se: a despeito
desejava livrar-se dela, mas sem romper oficialmente, a fim de conservar o be- de uma longa e maciça persistência da pequena empresa,n ~s grandes fábricas
nefi'~io dõ testamento que ele lhe extorquira e que deveria permitir-lhe pagar e seus operários COm maior ou menor qualificação tórnam-se o pólo de atra-
as suas div,idas "e manter sua nova - e legal - família. Aqui, o melodrama tor-
na-.se dramq, muito spmbrio. Balzac, revisto por Gaston Leroux. Diríamos um
,, ção, ao menos para os marxistas, que vêem no novo proletariado a ponta de

. r'}~ance folhetilJ.l, t;o em voga na época. Cô~~o se nenhuma v ida escap~sse ..


,
.,l'" lança da Revolução. Nlineiros, operários do gás, metalúrgicos, sucedem os ta-
\ . Ihadores no voca.bulári,o profissional-da Corresponclên'ciã.
à·HueJa.encenação coletiva que ~onstituía o "estilo" de uma época. •
" O movimento operário conhece um crescimento vigoroso, inscrito ini -
/ i Eis ai , então, com aquele témpo brumoso e as preocupaçÕes co nstantes '
cialmente no desenvolvimento prodigioso das greves, grande arma do s traba-
Icom os fr:igeis corpos - pequenas dores, doenças graves, presença insistente
lhadores, e depois: num grau acima, no florescimento do sindicalismo cujos
, da morte -, ~ trama desta~ c~r.tas familia'r es: Como surpreender-se com aqu~-
1 efe~vos e funções aumentam. Sindicalismos com ambiçÕes variáveis: revolu-
>
69 C. 56, E.' L.;13-2-1884,'
.1 73 Cf. SAMUEL, Raphael. Tha lVorkshop of the World: Steam Powcr and Hand
7.0. C. 63, E. aL., 31 - 8-1~&6 . . Technology in mid· Victorian Britain~ Histo ry Workslrop. A journal 01 Soc;alis
71 C. 77, E. a L.. 12-8-1891. '. II
Historiam, printemps 1977: mostra a ~rsist~nda do trabalho manual e das estru-
,
,i
F

+
. n c. 99, E. a L., 24-1O ~ 1895. turas artesanais .

, , 1
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66 67

L '.1.
~j
-, ~

PQftt I
Cllpftulo 2

""" AJfill1t" tk Karl Marx tartrU inM.tól$

donário e autônomo na França, onde a C.G.T. nasce em 1895, reformista na Esta Çórrespondência não fornece nenhuma crônica continua da histó-
Grã-Bretanha, subordinado ao Partido, na Alemanha, às
ria do .socialismo. devido suas lacunas,' nem revelações fulgurantes sobre os
O socialismo se afirma, de (ato, como uma força política candidata à eventos e os homens. Alguns momento~ cruciais encontram ali, no entanto,
conquista do poder, ainda que hesite so~re o, caminho a seguir: âa revolução uma luz mais viva: 1869-1871, os tempos da guerra franco-prussian,a e da Co-
iminente à participação
/ ,
..
eleitoral. No confronto das linhas, na dilaceração das
seitas e nas que.rel5s\das pessoas, ele se organiza em Partidos nacionais
.
Em nível int~rnacional, depois da Uquidação da Associação Int~rnacional dos
rivais.
muna de Paris (vista do exterior); 1889, e a fundação da Segunda Internacio-
nal. De maneira' geral, coJ.l1o Eleanor era a principal epistológ~afa, ? socialis-
, mo inglês é beneficiado com a melhor informação.
Trabalhadores - a: Primeira Internac.ional- que no inicio,. ao menos, Marx gos- Mas os processos impor...tam aqui mais do que os acon tecim entos, Per-
taria que fosse "um vinculo mais db que um poder~ minada pela guerra fran- cebe-s'e, do interior, como foi fei~a ~ dificil construção do marxismo, tanto no
co-prussiana e pela luta en~r.e Marx e Bakunln, a Segunda Internacional, fWl- q~e se refere ao texto, quanto à organização, os métodos empregados, os terre-
dada em ·l889, afirma-se co ~o a' Internacional dos Partidos. Ela é dominada nos privilegiados, as resistências encontradas,
pela poderosa social-democracia alemã, considerada como a ~erdadeira ner-
deira de Marx, a única em que a,autoridade do Partido ;óbrepunha-se à vila-
' lidade sindical. Pois este período'Íoi também o momento el1l: que o pensa men- o NOVO TESTAMENTO
to d~ Marx se difundiu e se tornou "marxismo': sujeito a interpretações diver-
sas, a despeito de suas fiéis guardiãs.7• Primeiramente, a obra do Pai. Quando vivo, Marx apoiava-se, não sem
Mergulhadas na rotina do cotidiano, as filhas de Marx. não pOdiam, evi,- reticências inquietas, em seus familiares, fazendo-os reler ou copiar seus manus-
dentemente) abarcar este"panorama. De tudo isso, elas foram ,n Q ent~to as·tes- critos, verificar traduções. Mulher" filhas e genros foram mobilizados sem cessar
temunhas, ao mesmo tempo privilegiadas e prejudicadas, por sua posição cen- para este fim. "Papai me cham'a': escreve Jenny a seu noivo Longuet, monitor em
tral: é preciso ser Jeremy Behtham para hcreditar que se'vêtudo do centro! O Oxford; "ele quer que leiamos juntos a segunda entrega que acaba de chegar"
" .
marxismo foi inicialmente, para elas, quase u~ dever filial, antes de ser uma (trata-se da pri,!,eira tradpção francesa do prim.eiro fasdculo d'O Capital que
opção poU,!ica. ~ntretanto, elas aderiram pessoalmente ao "movimento': corno .seria publicado por r.."hàtre em agosto de 1872): e três horas mais tarde: "Te-
diz.Eleano.r, que prefere esta expressão à imagem màis parcelada dos ( parti- nhQ o pesar-de dizer-vos que a tradução é muito relaxada, até m~smo negligen-
dos". Se Laura não se{,U pesar, por intennédio de seu marido, Elea~l or roi,
age, '. ciada de fato. Será preciso fazer inúmeras correções. Papai estat;ia até com von-
no entanto, uma militante. corajosa; devotada, .eficaz, e muito preocupada em tade~ de ir a Oxford pa·ra,fazê-Ias ..... Chamam-m~ novamente'~75 Assim, a única
sair do isolamento do serralha para combater ao lado dos próprios operários. carta de amor desta coletânea é invadida pela presença insistente d'O Capital.
Ela foi; aliás, mais lange neste sentido após a morte ~e Engels, .reticente diante Depois da morte de Marx, a obsessãÓ tornou-se um impe.rioso dever,
,. sobretudo para Eleanor, por suas re~ponsabili.-dades diretas neste assunt~. Pri-
do reformismo da "Social ·llemocratic Federation", fundada por H. M.
meiramente quanto à reunião dos escritos, Se Eleanpr aceita perfeiiamentç que
Hrndman em 1881 e êlas'organizações inglesas em geral. As.lutas operárias es- I

tã~, nas cartas de Thssy, cada vez mai~pr~ent~s. .


os textos "cientlficos" sejam confiados aos membros da social-democraqa ale-
mã - era mesl!la apelará para Bernstein e Kautsky -, ela considera que os pa-
péis privados, as cartas pessoais devam ser propriedade da familia. " Isto nos
74 Sobre a históri3 do socialismo, vér DR3z,J 'Le Socitllism~ démocratique. 1864-1960. concerne. e a' mais ninguém. Os documentos, em p,articular todos os docu-
P3~is: A: ~Iin, J 966. (q,U. U); HistOj~d.E~"iralt du sodalisme,..publica~lJ pOr PI~ ~
unlverslt31res de Fr3nce, sob 3 organliação de I, Droz. com Madeleme-.Rebénoux
para o socialismo
. franc!s, François BéJ,uida, para o socialismo ingl~s. ,
~ 75 C. 32. J. a Charles Longuet, 4-1'872.

'.

· 68
·69
PIII'ttIJ
TroÇDJ
.. J. "' Cupfrulo2
As filhus de IWd Murx: (arraJ int!diras

1. . ,
mentos p~ssoais, concernem a IIÓS, é a nós que eles' pertencem. e nem mesmo )desconfiando das edições piratas. Tudo isso supunha um<;'l vigilância constan-
a Engels."" Entre 1890 e 1895, ela trav~ uma 'guerra pela sua posse,lnici~men-. te, uma enorme correspond~ência, pois os editores- mostravam-se muitas \'ezes
te, uma guerra surda; em seguida, cada vez mais aberta, complicada pelas lu- reticentes e exigiam cortes. Estes livros não eram, evidentemente, best-sellers,
tas de influê~cia em t~rnó d~ General e as Q1anobras bastante astutas do Par- ainda que suscitassem um real interesse: Tussy anuncia com júbilo que, em al-
tido Alemão para assegurar-se do monopólio do Nachlass. Comhate solitário, guns meses, foram vendidos quatrocentos e..xemplares\ de A: Revolução na Ale-
pois a despeito de . .s~as
. objurgações - "Cara Laura, vem, vem, vem"" - !-aura manha u que parece ir muito bem': ótima vendagem, de fat~, em relação às ti-
Itunca veio. Engels, após cenas melodramáticas que culminam no Natal de ragens da época.
1884, faz dela definitivame~te" a depositária-dos documentos familiares, sobre-
tudo de todas as cartas escrÍtas por ou para Marx; com, no entanto. uma exce-
ção importante para a sua própria correspondência com Marx, confiada a Be- . UMA QUESTÃO DE FAMíLIA
bel e cuidadosamente guardada" cadeado em um cofre cuja chave apenas'a1-
I guns intimos, entre os quais Louise m~ s não Eleanol:, possuíam. Quando ela o
Com a implantação de organizações que defendiam a linha de Marx,
descobre, Tussy tem o sentimento de ~er enganadà novament.e." Na esper~nça suas filhas mostram-se muito ativas, a tal ponto que o marxismo pareceu, ini-
de recuperar ao menos as cópias'de todas as cartas de seu pai a seus inúmeros cialmente, «uma hislória da família Marx':7t desta "velha' cbaga que é a nos~a
correspondentes, ela lança apelos na imprensa socialista, tentando associ3! . fanrília':'" escreve Eleanor, que sofre com este juJgamento. É verdade que, no
Laura, mais negligente, a esta gigantesca empreitada. Ela sonhava escrever uma ~

seu início, 9 marxismo apoiou-se no núcleo das filhas e ~os genros e na rede
biografia daquele Mohr que tanto.amara e que continuava a devorá-la após. a dos ámigos. As reláções interpessoais foram .ali fundamentais; todas as.intelli-
sua morte. M.as Marx .d~ixara de pertencer a ela. Ao tornar-se ln?Ix.!smo, a . gentsias, quer se trate da época das Luzes ou do século 20," funcionam de ma-
obra de Marx escapava necessariamente aos seus. neira informal. Conversas, encontros, visitas, jantares. correspondência cons-
Sobre a complicada história da edição desta obra, os marxólogos encon-
tituem o m.eiô de comunicação habitual, cuja persistência, em paralelo ou no
trarão, aqui 'e ac'olá, muitas informações citeis, por exemplo sobre o delicado
seio das organizações estruturadas que justamente começam a se implantar,
ajuste do tomo IV d'O Capitalleito por Kautsky, e que seria publicado apenas ' foi uma fo'nte inevitável de\contlitos. .
entre 1905'"e 1910; ou ainda sobre as coletânea~ de artigos que Eleanor, admi-
Amigos ou inimigos de Marx, os Nossos, os Outros: esta é, mais "Ou me- .-
. radora do talento jornalistico d.e seu pai, tentava publicar, sem, aliás, distinguir
nós, a linha dlvisória deste Juiro Final. Nas associações, nos coçgressQs, tenta-se
a participação de Enge!s, que, corno se s.abe,~erviu muitas vezes de "negre" (es-
promover.~s seus contra os outros, ' ~vançar seus piões, co~ manobras que se
crit.óc anônimo) para .seu amigo: como no caso'da Revolução e COlltra -revo.1J:l-
equivalem às .dos adyersários. _~Leremos a carta em que Tussy conta ' 'como fize-
çãd na A.lcmanf,a em 1848 e de éliversos artigos d~ Questão do Oriente. Foi pre- "
/ .' _ . ' . mos nosso Baxie tornar-se delegado no congresso': por meio de pisc.adeJas e ca,-
ci~o que se ~ublic.asse a Correspmldência de Marx-Engels para que se pudesse -\
maradage!"", para contornar Hyndman que, seguramente, não lhe era devedor.-'l
~valiar a contribuição-intelectual que Engels dera ao marxisl)1o.
Eleanor esforçava-se também para· desenvolver as traduções, em russo
bem como em italiano, ocupahdo-se co~ Cuidado da esco~a dos tradutorés, 79 C. 69, F. a L., 8-4-1889.

, 80 C. 71, E. a L., 11-4-1889.


81 Pensamos aq~i no estudo de DEBRAY, ~gis. te Pouvoir imeJlututl en France. Paris:
76 C. 87, E.,aL., 5-2-1894. , Ramsay, 1979. -
77 C.88,E.a L,22-11-1894. '. 82 C 58, E. a 1., 19-03- 1884. Trata-se de um escritor. E. BcJford Bax. amigo de W.
78 C.I04.E. a L,2-1-189i'. ... Morris e dos Aveling. militante da Social Democratic Federation fundada por
Hyndman em Ja81. .

70 71
~
_ . -1.
~

~rle I Q,p(flllé 2

. """" AI fiJhtu d, /VJrl MIlnc Qlrl.u j"áI'fdJ

As intrigas culminam com a fundação da Segunda InterrtaàonaJ.1J Evidente- anos da Grande Depressão que apresenta O espetáculo da confusão eçanõmi-
mente <!ivergências fundamentais rnõflvam estas discussões; mas o estilo de in- ; ca, uma crença 00 desmoro~namento irnkente do çlpi talismo, um mes~janis­
tervenção continua tanto personalizado quanto possessivo. "Nosso congresso~ m o revolucionário que fazi~ os militantes levantarem-se em sobressalta certas
dii Eleanor que, em um deslize sem ântico revelador, usa li ~pressão "mez naus" noites, ao ouvirem
, rumores 'nas ru as. Percebem-se
"
se us ecos abafados nas car-
(em nossa casa), tántp pata falar de sua residência, o nde se reúne efetiVamente o tas de antes de 1890; ao menos, em certos momentos, o sentim~nto exaltante
es~do maior mar.clsta, quanto do Partido. "Se ele se choca contra um a recusa, de um desenvolvimento irresistivel, q.e úma urgência sempre ~a expectativa.
ele desiste e vem para casa (...) Este con gresso internacional é o 110SS0,"&<I Mas..a1ém deste tronco comum, as diferenças aparecem,e dividem os so-
Esta personalização choca os trabaLhadores, habituado'"s a mais demo- cialistas como a árvore de Jessé. Para Marx e os seus, é preciso constituir o pro-
cracia e conscientes de estarem se.nd o manobrados. U Ela expli ca a irritação que letari ado em "partidos operários',' organizados, ~apazes de tomªr o poder, o '
chega às raias do ódio, que os militantes operários da "Social Demo.c rati c Fe- aparelho de Estado, para abolir a propriedade privada dos me}os de produção,
deration" 'ou do possibllismo fran cês puderam sentir contra a "súcia" dos inte- prelúdio indispensável à abolição da exploração do hom em pelo h~ mem . A-
,
lectuais marxistas. Ela leva, por outro lado, a um olhar singularmente miope noção d~ "Partido" nã~ é, aliás, muito clara: ela vai de um'a co ncepção federa-
sobre a geografia socialista. Elea~or opõe a Paris pos~ibilista "à província ( ...) tiva das orga nizações operárias à idéia que começava a surgir de uma organi-
na sua quase totalidade marxista"," o que nos leva ao riso, se pensarmos que so- 'zação estru turada de adeptos, com estatutos, cartas, congressos, delegações,
mente dois por c-e'n to da classe operária francesa votava, antes de 1905, para o etc. O qualificativq "operário" tem uma significação ideol6g~ca mais d o que so-
Partido Op~r~rio de Guesde.Il"Pr~ticaménte toda a Europa socialist., estava co- ciológica: trata-se menos de ser operário em si'do que de traba~aI pela ascen-
nosco", escreve ela em I 889. . u Taís fan~asias leva m inevitavelm ente à desilusão. I são da classe operária, motor da luta de classes e d'a História, Sente-se em Elea-
nor, al:iás~ m~ito mais do qu e entre os Lafargue, uma real fascinação pela elas':
se operária, que a faz co rrer de greve ea: greve, de comício em comício.
A LINHA JUSTA Na panóplia das arm~s. ~ violência não estava exclulda. No entanto,. a
p~rtir da década de 1890, tanto na.Alemanha corno na França, a via democrá-
,
As rivalidades de grupos ou de .pessoas esco ndem diferenças de estraté- ti ca da conqui sta do podér pelo sufrágio urii"ersal parece abrir-se e modifi ca
gia. de "linha", pouco explicitadas né~ta correspondência e que recapitulamQ.s pouco a pouco o discurso e a tática."
r
breve,mente. Todos os socialistas de ~ntão acreditavam na Revt>luç'ão So~ial" , - ~ Os marXista s também se opõel;n aos blanquistas que ainda ~onham co~
que.'eles imaginavam tanto inevitável quanto ,iminente. Há, sob retudo. nos ataques de surpresa e mo tins .urbanos. 'assim' como àos ·anarquistas90 .e ainda
mai$ aos possi biliha.s. Na Grã-Bretanha, bem como na França, os possibilistas
eram os principais rivais, na m edida em -que o ~áter 'concreto de sua l~~ua­
I 83' ~s de 1889, 69 a 72. "
gem e de seu p(ogra~a , sobretudo ;0
p~ano municipal," atraIa para eiFs a
! 84 c;.7í,E.aL., 1-6- 1889. ,
85 Ver, por aemplo, a reaÇão de Stepnia,k, C. 72, E. a L., 1·6·1889;
86 C. 80, E. a L, 30-5-1892. 89 Sobre estas muta~s. ver PERRbT. Michelle; KRIEGEL, Ann ie. Le SociaTisnre
87 Sobre os Guesdista$, ver WILLARD, GJ~lIde. te MOllvement socialiste en Fnmce. Les'r , frrmçais ef le pollvoir, Paris: ED I, '1966.
(;lIesdistes, 1880·1905. Paris: Editions sOcial~, 1965. Sõbre a' introduçilo do marx-
ismo na ·França, ver LlNDEN8ERG~. Daniel. Le "Marxisme introuvable. Paris:
90 MAtTRON, }. Histo;re dll mouvement anarchiste ti! Frani:e (J{l80-19 4). Paris:
Sua, 1951. . . . r.
.Calmann-Uvy,1975. " ! 9J Ver a tese inédita de OFFERLE, Michel. Les Socialisres ef le Gcnseil municipal a Paris . ,
88 ' C.7I,F.nL..11-4- 1889~ . \ ....: (1880-1914). Paris: [S.I.: •. n.l, 1979. 1.
"
,
'.
" 72
"
73
~ I,
.r
Parte I Clpírulo 2
l •
' 1m"" As filhas/le Karl Marx: cartiUinMiras
,
clientela operária mais sólida. Daí a aspereza das oposições, que obcecam esta Os ~arquistas con~ti tuem O segundo pólo de repulsão.}obretudo pela
correspond!nGia: Hyndman e a 'S.D.F. na Grã-Bretanha, Paul Brousse e, depois sedução que exercem sobre Bax-e pela folerânciaIeticente de· Morris para com
da -cisão de Châtellerault, -Jean Allemane, são os b.o des expia't6~ios dos Lafar- eles .. "Os anarquistas serão nossa maior dificuld~de aqui", ·escreve Ele~nor em
gue.e dos Aveling que retol1)am, por sua ve,z. a cólera de Marx contra Proud- , 1885, em UI~ momento em que, efetivamente. os' anarquistas, apostando noS
hon. Hyndman é ';0 makfi'n 6rio dos manipuladores", segundo Ele.anor que de- movimentos d<?s sem-trabalho, .tentam. fazer um avanço efica.z: "Temos um
nuncia."suíls baixás""intrigas. "Tu, quç conheces ~s broussitas, não precisas que bom número d~Jes em nosso conselho e, na seqüência, eles nos farão aceitar
eu ~~ conte detallies."'l Ela fica indignâda contra "estes ign"óbeis patifes possi-' outros, de todas as cores. Nem Morris, nem Bax, nem nenhum dos nossos
. ,
bilistas':u contra "aquele pe~sonagem perfeitamente repugnante que é Allema- sabe, na verdade, o que são estes anarquistas", geralmente estrangéíros que
neJ>,~ desconhecendo completamente o valor daquele autêntico militante ope- Eleanor suspeita de "serem, ao menos a metade deles, da polícia':" ·segundo o
rário. São apenas. lutas de frações. em torno da redação dos
. jornais e das dele· julgamento 'n o mínimo su mário dos socialistas de seu tempo. Pouco depois, os
gações de congr~ssos para eliminar os tepresentantes da tendência adversa. anarquistas tomam a direção da Socialist League c. do COIn/l1omveal e f os Ave-
t Tussy decla~a-se. diversas 'vezes, "enojada" com esta situação, e consola-se ao ling se retiram, a partir de '1886, sob a pr:essão de Engels.
pensar que "é inevitáve1 no início de todo movimento",'~ vendo. provavelmen- No fim de sua vida, foi Bernstein quem 'inquietou Eleanor que ma, com
te, no possibilismo, uma "doençà infanti.l do proletariado': melancolia, a subida das águas do "revisionisl'no~·. Apesar de manter a co nfian-
No interior da S.D.F., os conflitos culminam em 1884 e levam à ruptu- '- . ça total no homem e na sua lealdade - Ede é um amigo fiel, ném um pouco
ra que Eleanor descreve em um-i carta interessante." Esta cisão dá origem à dado a intrigas -, 'Tussy deplora o pessimisll)o critico ao qual ~e se abandona,
':Socialist League" com·,William Morris. o futuro autor c.las Nouvelles d~ nulle · após a mort~ do ·General. "O Vorwârts cai cada vez mais sob a influência de
part (1890), uma das m~is poderosas figúras do soci'alismo inglês e ,os Aveling, Bernstein, e seus artigos desanimadores não são n.em um pouco oportunos.
Evidentemente, uma atitude crítica é necessária e útil. Mas, há mQmentos em
que animavam o novo jOl:nal, Commonweal. t7 Est~ organização continua a ser , -
esquelética; os Avellng deixam- na~em 1886, Morris em 1890, e em 189·6, após que um pouco de entusiasmo. ainda que sem muit~ espírito crítico, tem mais
a morte· de Engels, os Aveling-reintegram a S.D.F.. muit.o mais representativa. .. valor. A posiÇão de Bel'nstein é nefasta pata o movimento ( ...) .Sua atitude é in-
A rec~nci!iação, no entanto: é apen;s aparente: "NÓs v~mos oficialmente tra- ",..defensá'vel ( ... ). -Infelizmente, ágora que não temos Inais o General, n;to há mais
balhar juntos. Tu sabes o que significam estas amizades oficiais" escreve .Elea- ninguém' que possalter influên'cia sobre ~erl)stejn ê fazê-lo cair em si':'OO escre-
nor a Laura." "'Edward e H~dman não têm mais afeiçã~ um pelo outro' db ve Eleanor em sua última carta em que tudo vacila.
que.,PauI e Brousse, mas é útil .para o movimel).to, sopretudo em·vista do· pró- '"Agora que não temos mais o GeneraL," Apesar de toda _a vivacidade
xiglO congresso." Movimento, congresso, o eter~l.O recomeço. ·das críticas que Eleanor dirigira ao mod~e vida -e aos q!le cercav~m Engels,
ela confiãva neJe plenamente: no que se refere ao socialismo, e estas cartas con-
firmam a freqüência e a força de suas intervenções n~ vertente inglesa do so-
92 ' C. 59, E. a L., 31-.12-1890.
cialismo,·assim como a Correspondência Engels-Lafargue esclarece seu papel n~ ,
93 C. 80, E. a L, 30- 5-1892 .•
lado ftancês . Após~ a morte de Marx, a casa de Engels é o Q.G. da social-de~o­
94 ,C, 78, E. a L., 25-9-1894.
àacia e da Segunda Internacional. Sua il1flu_ência na construção do marxismo .
95 C. 60, E. a L, 31-12-1884.
e no rosto qu·e lhe é dado então, não poderiam ser.subestimados,
96 Ibi<!.. '. ,:~. , ' .' --\
~ 97 Sobre 'WiUiam Morris•.ver MEIER, plul. 'w Pemée utopique de William .Morris.
Paris: -editions soéiales, 1972. ";' l' . ' 99 C. 61\-E. aL., 12-4-1885.
98 - E. a L.," 5-3-1896.
C. 102, I , 100 C. 106, E. a L, 8-1-1898.
'.
74 75
!'dITe I Clpf~1o 1
r ....... AI fi /h41 de JG.rl Mane m114S ínMltw

Guardiã vigiJante das memórias, ~leanor o é também da ortodoxia do nor é importante, orientada para a' crônica e a informação concretas. Jornalis-
«movimento': A concepção do "caminho reto" é mu'jto forte para ela. "Bax ~ a' ta, atriz: eis ali algumas vias (te emancipação para as intelectuais, o estreito ca-
bondade em pesSoa': escreve ela a respeito deste militante tentado pela genero- minho da criação que o século 19 consentia às mulheres.
si dade libertária que atrai os melhores. segundo O reconhecimento da própria. Para os seus homens, é 'de certa forma um ganha-pão e uma profiSsão,
Tussy. '(Ele precisa ."enas estar com pessoas que o mantenham ' no caminho ao mesmo temi'<? que wn modo de expressão indispensável para o sociaUsmo.
correto,"IOI ~te vocabulário' da retidão traz, em'estado latetite, a idéia da "linha Todo órgão de imprensa era um objeto de lutas. Nestas cartas em que são cita-
justa", e o seu corolário: a idéia do desvio, da dissidência, ! surpreendente ver das diversas dezenas de títulos europeus, tem-se um eco das lutas que mobili-
como o marxismo foi co ncebido, desde o seu nascimento, pelos seus zeladores, zam os Aveling pela direção do To day, Justice ou Commo1JweaI, ou os Llfargue
não co mo um método, 11Jas cQmo uma ver~ade revela~a, wua marcha a seguir. pelo controle do Citoyell ou do Cri dll Pellple, o brilhante cotidiano fundado ·
por VaUes eQl 1883. Elaborar uma imprensa do partido é um projeto retomado
sem cessar. cuja continuidade no lado francês nos é mostrada peja Correspotl-
TERRENOS DE LUTA: dénda EtJgelf-Lafargue. Deste ponto de vis~al os guesdistas tiveram mais su.ces-
sos do que seus homólogos britânicos, Qu'e alegria quando. nasce a esperança de
A IMPRENSA E OS CONGRESSOS
um jornal, lançado geralmente'no período ele:itoral e sem muito futuro. "Eu não
,.
" posso dizer o guanto estamos felizes ao saber que vós tereis vosso próprio jor-
A luta',é menos a luta de classes do que a disputa entre linhas e frações . .
nlaI em Paris. Se ao menos tivéssemos a m.es~a perspectiva", escreve Eleanor a
Dois têrrenos privilegiados: a imprensa e os congressOs,
Laura em 1892, pedindo que lhe seja confiada a correspondência com a Ingla- _
lira a idade de ouro ,da imprensa, Por volta de 1900, os quatro grandes
jornais franceses - Le Perit Parisien, Le Perir Journal, Le Matin, te Jõurnal, têm
terra.tO) O projeto não deu resultado, pois os ~esdistas tinham uma implanta- •
~çãp fraca demais em Pari~, para conseguir uma tiragem suficiente. Quatro anos
uma tiragem de cerca de um milhão de exemplares cada~m. ~ filha> d·e Marx
mais tarde, quando Guesde, Lafurgue e Chal:ivin - o "triunvÍrato" - 'entram no
eram leitoras 'ávidas que consumiam facilmente ?iversos jornais por dia~ an-.
- La Perite Répllblique, jornal socialista independente, Eleanor se inflama: "f. uma
siando sobretudo, onde quer,que estivessem, por jornais ingleses, que elas con- noticia muito boa,"Se ,30 menos pudéssemo's t~r llnl jornal em Paris, todos os
sid~eravam:mais bem informados e construidos. No fim do Segundo Império, o~tros (eu quero dizer os outros "partidos") estariam rapidamente acabados': 1001
Laura deplora o,pr9vincianismo.dos jornais parisienses e seu pouco conheci:- ~ás, os dois casais prestam·se assistência mútua, trocando notídas e artigos. d
mento da Grã -Bretanha, ]enny, no uq.ílio" na França, sente sa udades, "todos os caráter poliglota das duas irmãs lh es permite desempenhar um papel muito efi- ·
dias/ das bancas de jornais londrinas que permitiam estar em comunhão com cai: de tradução e transmissão das il1formaçóes,'e de constituir empicicamente
ser~s q\1~ vivem e combatem'~ tOI Separadas, as três irmãs trocam jornais, recor- ~uma pequena agéncia-européia de correspondência socialista,
teS de -ryotlcias, ~omentam os artigos de tal ou tal jorn'al: a imp~ensa' fa2 parte , Esforço retomado sem tr~gua, pois estes jornais têm wna vidcr caótica,
de sua existência de cada ,dia. J , " cheia de barulho e;le furor - os duelos .e ntre jornalistas são frequentes em, Pa-
Elas ambicionam eScrever. ]enny faz Uma t~ntativa em 1970, no La Mar- . ris -;. uma existência efêmera ligad.a à sua fraca tiragenl, sobretudo na' Prahça, .
seillaise; sob a assinatura de Williams. ela ênvia correspondências sobre a irlan- ooae eles atingem apenas aJguns milhares de leitores. Nem por isso eles dei-
da, saudadas com entusias mo por sua iurã Laura. A obra jornaüstica de Elea· xam de constituir um poder, cuja importância os Marx tinham compreendido
,
101 C. 56; E. a L, 13-2-1884 .. 103 C. 80, E. a L., 30-5- 1892.
102 C. 41,). a L., 22-4-1881. , 104 C. lOi,E. a L., 17-1- 1894.
·V

76 · 77

1
Porte J
TfllfOJ
Cnpítulo 2
A, {lUu" de Ktlfl Mime: (anal illMilll1
••
perfeitamente. De resto, Ê.lean~r admirava em Marx o jornalista talvez mais do
••
••
dos papéis e dos espaços, definido O «lugar das mulheres" com um rigor apoia-
que o te6rico. E ainda a1 o Pai mostrara o caminho. do no discurso científico. ' .
O ou6-o frotTt são os congressos. Ser neles representado confere t30,; 0 le- O que' era, então. ser filhas de Marx'? Senão a dificuldade suplementar de
gitimidade quanto publici4ade.. Daí a intensidade das intrigas para a escolha
das delegações. A influência dos AveJing sobre a delegação enviada ao congres-
so do Partido operári~ fràncês (guesdista) em Rouba~, em 1884. tem' como
entrever uma saída se~ poder atingi-Ia. o sofrimento de sonhos frustrados, de'
desejos.insatisfeitos? E é. o 'espetáculo, terno e cruel, destas vidas esquartejadas
que fascina sobremaneira. Como tr~s "abelhas em Upl aquário':I06 estas mulhe-
••
conseqüência a explosão da S.D.F. A preparação dó congresso de fundação da
_Segunda lnternacionaf é apenas uma seqüência de intrigas. proporcional ao que
estava em jogo, da qual Elean~r, que desenvolve uma atividade febril nesta-oca-
res se debatem sob o peso do.que constitui. para elas, "a dupla tarefa": o comum
das mulheres: ser filha , esposa,.mãej o extraordinário: a imagem prestigiosa, o ••
sião ("Enviei hoje quinhentos e.xemplares da última circular e cerca ~et:em ~ar­
tas e ~ar tQes postais, e estou morta de cansaço"!O$). dá diversos testemunhos.
legado ~o Pai pelo qual eJ~s se sentem responsáveis e até mesmo culpadas.
Elas ti~eram a sorte (no universo limitado da s mulheres vitorianas, sim,
. era uma sor te l07 ) e a infelkidade de viver o ponto de partida de uma aventura
••
Ço nsciente da repr'esenta tividade dos possibilistas, Liebknecht opõe-se a excluí~
los e Eleanor tem muitas dificuldades para mudar a péssima imagem dos gues-
distas na Inglaterra e na Alf;:manha. Finalmente, dois congressos rivais realizam-
inaudita, que ia agitar radicalmente o mundo, infelizmente, sem mudá-lo. Elas '
foram as primeiras a ver o caminhar do trabalho subterrã,:eo ~omo o da tou- ••
•~
peira e O surgimento do pássaro de Minerva. Esta trajetória liberou-as e acor-
se em Paris em julho de 1889 - no momento em que se celebra o ce ntenário da rentou-as, de um s6 golpe. Elas não eram, nã~ 'podiam ser burguesas como as
Revolução Francesa, nos fastos da ,Expo.sição Universal, à sombra da Torre Eif- 04tr3.s: Hegel substjtui. paTa elas, os romanc~s de folhetim e as re~stas de
fel ..!; o congresso marxista sai ganhando. A Segunda Internacional será a.Inter- moda; muito do' que c~ nta para o pensamento moderno passou um dia pela
nacional dos partidos, dominada pela 'Social-democracia alemã.

=
casa dos Marx, elas encontraram, conheceram ou entreviram a alta intelligent-.
Obsolescência do detalhe, modernidade do processo. O que se esboça a sia, a vanguarda operária ou política. E co mo eram. talentosas. sensíveis. in.te-

~
nossos olhos é uma certa profissionalização da política, tão monopolizadora ligentes. elas sentiram curiosidade, prazer e talvez até felicidade com estes en-
que exige dedicação em tempo integral e disponibilidade total, e torna-se aS- ' contros. Pode-se imaginar - é preciso imaginar, pois estas cartas são apena-s
sunto de especialist':l5, acostum;dos com o jogo duplo, com o d~plo se~tido, as um. pontilhado de uma vKla - momentos brilhantes', ou ap meóos excitantes. ~
~
jogadas florentinas e os efeitos de estilo. O ,::rescimento da poütic~ profissional · Um grande vento atravessou suas vidas: Elas sentiram tremer o mundo. e vaci-
perturba Eleanor que. em,.seu cansaço, opõe a estas intrigas repetitivas o "ver..: " lar.as co isas. Elas foram tragadas por este IIMovimento" cuja força impetuosa
dageiro movimento" dos trabalhadores: o movimento das greves e das lutas . adivinhavam e cujo sentido ignoravam: tanto.quanto os homens, as.mulheres
cotidial13s, a ação de ~lassa, em suma,1que ela. parecei após a morte.de Engc:.1!, . "ignoram' a l~stória que elas fazeJ1l'~ .)
ter tedesfoberto com 'UlTIa paixão intensificada. Ma s~ ao. . ·mesmo tempo, nada nem ninguém - e sobretudo se u Pai - as
I
dispensava do res~o: assumir seu papel, ocupar o seu lugar e até a sua posição.

DESTINOS DE MULHERES . ,
'- 106 Retomo aqui o belo título da resenha publicada em Le NOllvel Observateur por
Jean-Louis. Bory. sob re o filme de ~ric Tanner. Messidor:. que conta o vagar quase
~er mulher nunca é fácil, sob'r etud'o naquele século 19 que, em sua ra- transcendental de duas moças em uma Sulça impávida e indiferente. Que seja uma
ciona.lidade triunfante, provavelmente le*ou a seu paroxismo a divisão se>..-ual maneira de homenageá-lo. nesu dia ( 12 de junho de 1979), em que se anunciou o

-. I· ' ' seu suicídio.

,
105 .C.72,E.aL, 1-6-1889. .I1 "

I 107 -Ver BAS:cH. Françoisc. Les Femmes victoriennes. Roma;1 ct Société. Paris: Payot.
1978, e também BWARlDA. Ela famille victorienne. L'Histoirc. n. 8.

78 79

.
P~rt(J 1 Úlp(llilo 2
Tr~fOl AI fil/uu Ile Ka,l M~nr: cal"t41 i"III"'1I

Em muitos ~pectos, elas eram mais do que outras assoberbadas de deveres e quanto s'eus maridos assombram os locais dQS intelectu{'is masculinos: as bi-
mandamentos: a casa, as cri~nças~ O socialismo, que não era"menos exig~te do' bliotecas, as sat.\S de redação, as reuniões públicas;o u até mes mo as prisões
que a Igreja das donas-de-casa. alemãs. Ei- Ias duplamente presas à casa: em públicas (pouco temíveis, naqueles tempos republicanos), ou perco-rrem a
seus lares e no socjalismo, confunctido com o amor devido e dedi ~1d() ao Paí. 'França e 9 estra ngeiro, Elas co nhece m o torme\lto de ter filhos, a dor de per-
Boas filhas, devotadas, devotas, cuidadosas, discretas, secretas, secretárias, co- , dê-los, o pesar de não te-los ( uma tia é verdade.i ramente uma mulher?) , a
pistas, tradutoras;....eÍas se casara,m. quase. corno 'Marx desejava: com hom~ns tristeza,\a amargura da i.ngratidão dos filhos crescidos, herdeiros indolentes
aparentemente bastante abastados para permitir-lhes Viver, bastante co nvenci- óu críticos. As filhas de Marx foram boas mães, escrupulosas, inquietas,·aten-
dos par. difundir O Capital. , tas,' ternas, co mo se deve ser.
Donas-de-casa, mais do que patroas, como deviam 'ser as joyens bur- Boas esposas também, elevadas ao grau p.e colaboradoras, única pro-
guesas que reservavam para si a parte nobre d o trabalho da casa, dei,x ando o moção cons,!:ntida, no:f\.mdo;-pelo s· esposos de esquerda, ainda que evoluíd,?s.
se rviço sujo para suas empregadas e a jardinagem 'para seus esposos, pode- "Tu sabes que outrora Tooley nã o queria ouvir falar de mulheres fora da co-
mos vê-las amassando bolinhos, envernizando m6veis t caiando muros, re- zinha ou da sala de baile", escreve Laura, surpreendend~-se - um tanto enciu-
nundando a escrever para usar uma vasso ur a e um vasculho,1N sem cessar ~ada ? - ao ver Paul admitir a presença de uma amiga na Biblioteca Nacio-

ocupadas com mudanças. A orde,m e'a limpeza são a herança qué, em sua cal- nal, aquele santuáiio da masculinidade. l " A uniã~ livre não muda grànde coi-
xa de trabalhos manuais, Sua mãe lhes deixou. Herança da qual elas se sen- sa quando o modo de relação, do casal, continua o mesm'o: um a troca desi-
tem indignas, O remor~o que se }eveste de zombaria. gual tend endo à explorarçãoi da pode até mesmo constituir uma comodida-
. para o homem, liberado de qualquer obrigação, "raposa livre
de suplem entar
As maternidades, os filhos·-são uma outra preocupação. Marx co ntra .

em galinhei ro livre", para ap licar às relações dos sexos 'a célebre frase de Fré-
M.lthus? Jenny dá à luz seis filhos em dez anQS dé casamento. Laura te ve três,
déric List. Aveling permitia-se todas as liberdades, inclusive a realização de
em quatr'o anos, antes de re~nunciar a tê-los, provavelmente. Filhos que des-
um casamento secreto, ou torgando-se as vantagens suspeitas de uma quase
gastam seus corpos: maternidades difíceis, abscessos no seio, e tudo o que o
poligamia. Eleanor( concubina pesarosa, que se fazia nomear Marx-AveHng,
pudor esconde, chegando até a levar à morte. Jenny morreu de um câncer da
recusava para si qualqu er liberdade. Das três irmãs, foi a que mais sofre u com
bexiga tratado muito tardiamente e cujas dores ela pensava serem o sintoma
de uma nova gr.~videz, aparentemente pouco desejada .~Mas·, podia-se falar ~e ,
'os homens. ,",
Estas contracliç~es vivid.as, ou ao ~enos ass':lmidas, dão" às cartas uma I
se u ventre, de .seu corpo de mulher, , mesmo para as suas irmãs? Nestas cartas tensão contida, na maior parte das vezes murmuradas, como se faz entre mu- I
em que a doença ocupa t" nto es,paço, é da d oença dos outros que estas per- lheres - vizinhas de andar, .co mpanheiras d'e tanque, amigas de pensão, pri-
péiuas. ~nfern;eiras- escrevem, evocando som eA"t~1 no que lhes diz respe"ítõ, mas 10U irmãs - e que às vezes explodem em soluços- desesperados, até mes-
suaS freqüentes dores de cabeça; sua asma, suas enxaquecas ou as insônias em
'. mo em gritos de revolta. Todas as três, em mome~tos e graus diversos, expri.;
que se refugia a ansiep.ade de !antas mulheres. . mem a vontade, 0 1desejo louco de escapar ao ãestino habii:ual das ;"ulheres,
Aquelas crianças frágei s lhes criam problemas: o aleitamento é um de não mais viver por procuração intelectual.ou politica,.e a desilusão d e não
\
conflito em que se en frentam as ~ozes contraditó rias dos médicos, das partei- poder fazê-Ilo. Daí aquele desencaQto que prenuncia geralmente !lma "cons.
.ras e da tradição feminina . .Crianças doe ntes que co~roel11 seus dias e suas ciência feminista~
noites. Crianças am adas e devorado ra'S ~ujos cuidados elas assum~m s6s en·
,
, ,
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, 108 C.44,L.'J .. 10-188J. I, '"
109 Ver, a esie respeito, as gravuras 'de época.

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PaHt: J Úlp('1I10 2
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AI /i1l,1lS de Karl Mm'x; Ca,'aJ illl!dj'll$

"ESTA PRISÃO. QUE É UM LAR" mente .. . Tu 'se mpre me acusaste de ser um tanto misa ntropa, agora perdi toda
, minha vitalidade; os homens não me agradam e tampouco as muUleres'~II)Era
Elas contam o "mal-estar da dona-de-casa"'lO diante da litania do coti-' deplora seu endausuramento "nesta prisão que é um lar': u6
diano, o peso das coisas O1'!.teriais, o tédio da costura, das casas 's empre em de- Elas contam a eterna espera das mulheres - "esperar indefinidamente"
sgrdem, das criança.! todo o tempo doentes. Elas compartilham muito pouco geme'Eleanor - que não dispõem nem de seu tempo, nem de sua v!da. O so·
o gosto de sua mãe'" pelos trabalhos' de agulha: "A costura não é o meu forte. Cá cialismo as convida à luta de classes ... mas à paciência em suas reivindicações
entre n6s, também não é o ~ teu.': escreve, gentilmente cúmplice, Eleanor a " femininas . Novà~ Penélopes cujo Ulisses é a Revolução que não chega nunca.
Jenl~Y) desculpando-se pela "execução pouco, brilhante" de anáguas para as Feministas, .as "filhas de Marx? Não realmente. Elas não participam das
crianças. 11I Jenny reclama das ~'desagradáveis pequenas misérias da vida de ca- lutas ou das organizações feministas de sua época e seluem até mesmo irrita-
sada que me parecem majs pesadas' de suportar do que grandes problemas!)1': ção com relação às mulheres emancipadas, como Paule Mink, que Laura con-
Eleanor, ehl coro: "Colno eu'gostaria que não vivêssemos em casa e não devês- sidera um ~anto ri~ícuJa, Séverine, que (dá nos nervos" de Elea~or, ou Anoie
semos cozinhar, fazer doces, lavar roupa e limpar a casa! Tenho receio, que ;pe- Besant, que ela inveja por suas antigas relaçqes com Edward. Sobre a "questão
sar de todos os meus esforços, eu nunca chegue a tornar-me uma Hallsfrau das mulheres~: Tussy escreveu u"m opúscuJo com Edward, Th~ Womml Ques-
conveniente. Tenho gostos terriv~lmente boêmios".''' tion (J886i. inspirado no livro de Bebel cuja tradução inglesa Women jn 'til.
Elas falam dos maridos au~entes, da solidão das mulheres isoladas do Past, É'resent ,and FUhlre acabava de ser publicada, e que subordin a a", questão
vasto mundo pelos filhos. Laura, durante a Comuna de Paris, s6 em Bordea~ dos sexos à das classes
. e sua solução
, ao advento da Revolução Social, na mais
co m seus dois filhos e seu_bebê doente, imagina - erroneamente - Palll nas estrita ortodoxia "marxista. No entaritõ, no mesmo momento, ela se apaixona
barricadas: "Eu não me importaria se estivesse com ele, pois eu tanipém l~ta-. pelas heroínas de Ibsen - a Nora da Casa de Bonecas - e traduz Madame Bo-
ria. Eu tinha vontade de ir a Paris, mas não coqhecia ninguém aqui a quem p.u- vary, aquela Emma de quem ela se sente às vezes tão próxima,
desse confiar as crianças ( ... ): Quanto a senti~-me solitária, tenho o hábito de
estar sozinha.
. .
Há muitos meses, Paul não ostá.nunca em casa eu não saio de
casa há seis.ou oito meses".U4 Cansada, muit~cansa da. Jenny ousa .confessar a ELEANOR, MINHA IRMÃ...
fadiga infligi da pelos "caros pequenos" que ela. gostaria de mandar ao diabQ;
"De.sejo, às vezes, livrar-me de qualquer maneira da tarefa incessa.n te de cuidar Eleanor tento\.1 viver diferentemente a sua condiç~o de mulher e sua fé
deles." À imagem piegàs' da jovem mãe realizada) necessarian~ente feliz, que se ' socialista, coloear em acordo teoria e prática cuja distância t~o freqüentemen-
rep,~te no- discurso'
'
oficial, ela opõe a imagem de 'uma mulher cansada,
~ ,
fatig;'..
. : te a perturbava, reconciliar moral e política, lutar contra a esquizofrenia do
da /de berços, frases.escand,alosas·, aos olhos da moral ambiente: "Eu me sinto· militante. Seu e.sforço patético está no coração desta Correspondência ampla-
. . I
miseravelmente, dese~peradarhente nervosa, ,d esco nfortável mental e fisica- mente utilizada po~seus biógrafos,lU mas cuja public<\çâo feita aq~i pela pri-
.' meira vez, ilumina totalmente este singular rosto de mulher.
110 $. de Beauvoir, Le Oeuxieme Se:xe. 1949.

\
111 C. 49. E.• J.,25-3- 1882.
112 C.4 1.J.• L.22-4-188L
II - " ,
j 115 C. 5O.J,aL.,firn de mnrçode J882.
11 6 C.4I,J .• L ,22-4- 188L
11 3 C. 61, E. a L., 12-4-1885: 117 Além da biograf13 já citada de Tsuzu.ki, há a biografia, fundamental, de KAPP,
114 C. 29. L a J., entre 7 e 18-4-1871. .\ Yvonne. Eleanor Marx. Fami/y Lifo. London: l.awrence & Wishart, 1972.
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82 . -. 83
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PIlNC.] Capitulo 1
., AI fJIHu tk KArl Mwxz CQr1'W i"álillU
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A mais jovem das filhas de Marx carregou, mais do que suas irnrãs, o feros: "Não ~ melhor, no finaJ das contas, do que beber, e é quase tão perigoso'~
pesado fardo da familia, O peso dos pais idosos, as exigências de modelos con- Ela se recusa a ent~egar-se a médicos tão limitados: "O que eles nãol podem e
traditórios. Contra tudo isto, tentou revoltar-se. Ela. recusa o modelo femini- não querem ver"é que os tormentos morais,são uma doença do mesmo nível de '
no que sua mãe lhe oferece tantQ quanto.a tirania de seu pai. Ela ama contra a qU'alquer afecção fisica", A histeria das mulheres é o resultado deste impasse que '
vontade de seu pai"entu$iasma-se pela causa irlandesa, pelo teatro i tenta , ape- enlouquece, a vontade e a impossibilidade de escapar: "Não consigo abafar o
sar dele, tornar-se attiz. Trabalhar, ganhar sua vida, parece-lhe a via necessária . meu desejo de tentar algô'~ I2O Pouco depois, não ousando enfrentar seu pai até
para a independ~ncia . Ela fala longamente dçste assunto com Jenoy, sua con- o" fim, ela rompê o interJünável noivado com Lissagaray, não sem uma «luta
fidente preferida, em junho de 1881 , completamente feli z por ter encontrado terrível': "Pergunto-me. às vezes, comQ,pude sob~eviver." Ela mergulha, ae cor-
resumos de artigos para uma revista científica; com duas libras por semana, ela po e alma, no trabalho: "O trabalho é o que mais importa".
espera poder pagar aulas de dicção: tlEspero ter sucesso, seria um grande alí- Ter; encontrar, manter um trabalho: obsessão const~nte, fundamento' da
vio, De qualquer maneira, tentarei e se fracassar, azar, ( ... ) Sinto que desperdi- , independência. meio de não estar s6, de realizar-se'. Hiperativa, Eleanor procu-
cei minha ' vida por muito tempo e que é o momento de empree nder algo",1II ra, por todas as vias, por todos os caminhos, no acúmulo da atividades - tra-
Alguma coisa que lhe permita ter aquele "quarto para si" cuja importância, duções, jornalismo, vi~a de teatro, luta pela divulgação das obras de Marx, mi-
para as mulheres Virgína Woolf qlostra'r ia mais tarde. litância '- um remédio par, a sua an siedade profunda, para a sua irremediável
Mas todos os obstáculos se acumulam contra da. Ela passa por p.iversas solidão. '''Não temos realmente tempo de nos perguntarmos se a"vi~ vaie a
, crises graves: depressão nervosa acompanhada de anorexia mental no verão de ' pena ser vivida ou se ela é perfeitamente odibsa':Ul .
1881; segunda crise em janeiro de Í882. Ela reside então na ilha de Wight, var- A morte de ~arx é para ela, áo mesmo tempo, dor profunda e lib"era-
ri~a' pelos ventos do inv~rno, co-tn se u 'pai doente e rabugento. que se irrita ao 'ção visível. De 1883 a 1890, são, talvez,. os melhores anos de Eleanor).Cômo He-
vê-la deprimida e a julgaI egoísta e até mesmo histérica, Ela escreve então a Iene tornou-se governanta de Engels, ela fica sem testemunhas: ela procura es-
Jenny- Jen'ny que vai morrer - unla c~rta pungen te e lúcida, em que conta seu c.apar daquela infância que a mantém, prisioneira, Muda de ~mbiente, encon- "
sofrimento diante da incompreensão dQs seus, sua ansiedade diante da, fuga do tra Aveling, compartilha seu amor pelo teatro. por Ibsen 'que eles introduzem '
~
tempo e de sua inatividade forçada: "O que nem Papai nem os médicos, nem na Inglaterra, corre o 'mun,do - Suécia, EstaCtbs Unj<los -, traduz Madame Bo-
nin guém qu..er compreender. é que são os tormentos '!.10rais (ela sub1inha, co-",o yary, leva um po~co ...:. muito pouco - daquela vida boêmia que lhe dá a ilusão
O faz muitas vezes para se fazer entender melhor) que me afetam. Papai me'falí!
de "repouso" e de '''retomar as forças" antes de tentar qualquer coisa e não se dá
de liberdade, preocupada também t:m reencorftrar suas raízes judaicas que os
s~us haviam reneg~êlo. Tudo isto implka em coragem, em vontade de ser ela
J I
e
coilta de que o "repouso" a última coisa de qu~ preciso e q~e eu retomaria mesm,!l, de enfrentar e de confrontar-s,e, .r
cert~mente minhas forças se tives$ê'algo bem definido e um trabalho, ao invés Breves anos do que ~ão ousa~s chamar de felicidade: test~munhas -
de ? ~aLesperando, indefinid.amen~e. ( .. ,) Quase enJouqúeço p~r ficar aq~, en- r' Bernard Shaw, Olive Schreiner, sua única amiga verdadeiramente íntima e que
qu,anto. talvez, a minha IUtima chance de fazer aJguma coi~ s~ esvai. (, .. ) Não detesta Aveling -lançam um olhar ·duvidoso sobre aquela relação, falam-cios
sou mais tão jovem para perder meu tempo eS,perando e se não puCler fazê-lo boatos de ruptu..ra desde 1885 e até mesmo de tentativa de suicídjo .. , I

logo, não, valerá mais a pena tentar. 11.' Dores de cabeça. ,insônias'- "desde que A partir de 1888-1889, a vida militante toma 9 lugar da vida de teatro, ·' 'I
/
estou aqui, I,1ão dórmi seis' hçras" -, contra as quai s ela se recusa ã tomar sonÍ- cheia de frac:,ssos,-E também neste plano~ Tussy tent,o u ir mais longe, ÇallSada '
, li
,
118 C. 42,E.a}:, 18-6- 1881. do C. 48, E. a i., IS-I - 1882~
119 C.47,E. a}.,8- 1-1882.
-. 121 C. 73, H a L, 19-12-1890.

84 " 85
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,
P,Iff~ J Gapfrula 2
TmÇDI AI frllltu dt Kn/1 Marx: cartaJ illMitM
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das querelas de escolas, ela busca o contato com ameia operário, liga-se a Keir 'opressão de sua prática, em tantas outras mulheres. Em qualquer estado de coi-
Hardie, chefe de fila de um sindicalismo de novo estiro. de massa e de comba- sas; a emancipação das mulheres só pode ser a obra das próprias mulheres.
te,' in'tervém como ora~ora - -€onta-se .,\ue ela se destaca - nos comícios de gre- Depois delas, outras tomariam o mesmo caminho; -a própria Laura, em
ves, entre os mineiros da &,.cócia, os ~talúrgicos; ela faz o secretari~do do çon- 25 de novemofO de 1911 , em circunstâncias bem diferentes, é verdade: c9m ses-
g resso dos vidreiros: "Dúrante toda uma semana ( ... ). tive que traduzir e este-
~. I
e
senta seis anos, nwna noite de festa, ~om Paul, seu velho companheiro, e p~o­
nografar os debates, e agora estou datilografando O" relatório a partir de minhas vavelmente para antecipar os ataques da velhice. O que não impede que duas
l1otas'~ A máquina de ~crever substituiu a agulha de sua mãe. Ela apóia as gran- , três filhas de Marx
das - tenham escolhido a morte. Escolha serena de livre von-
des greves, "questão de vida ou morte para toda a nossa indústria vidraceira': tade? Desejo c~sado de acabar com tudo diante dos limites do possível? Quem
ameaçada, ali como alhurei pela "reorganização" daquele fim de século. Na o dirá? Teriam elas s~ntido a terrível vertigem dada por um discurso libertador
mesma época, apenas Louise M~chel, na França. pode ser comparad'l a ela. confront~do ao impasse de uma realidade carcerária? Como mulheres?
. Mas a calmaria - febril- é de curta duraç.ão. A partir de 1890, sente:.se, Como qualquer morte voluntária, a das fiUlas de Marx interroga os vivos .
novamente, 'a subida da maré da solidão: por parte de Engels. tanto quanto por ·Express~mos, para terminar,.a nos~a gratidão a ' ~l11ile Bottigeli que foi o
parte de Aveling, cada vez m-als galante e ausente, exceto quando doente, apro- iniciador generoso e sutil da publicação destes arq)..livos excepcionais, doando)
veitando de seu pseudônimo - ' Alec Nelson, seu nome de teatro - para ie.var há ~l1te 3110S, os três volumes da Correspondência Engels-Lafargue;
uma vida du'pla. "Eu ficaria feliz de receber uma carta de vez em quando, diz a MarceUe BottigeUi por ter seguido o mesmo caminho de abertura e de
empreendimento; .J
ela a Laura, pois mesmo estando muito ocupada, estou também ipuito só."
a Qlga Meier, enfim e sobretudo, pela presente tradução. e publicação, fei-
C<, mo Jenny outrora, ela se sente !'morna e boba", queixa-se' de seu cor.poi. a
ta com tanta ciência, tanto talento e respeito.
proximidade das festas, sempr~ temidas, é para ela um supl1cio: "Estes horrí- .
veis festejos q~e se tornam cada vez mais penosos, à medida em que se tem
cada vez menos disposição para se regozijar':.
Por seu companheiro, ela mantém, no entanto, um indefectível apego;
ela o desqtlpa, insiste em seu mau estado de saúde. A carta que encerra esta co-
letânea, escrita três meses ;tntes de sua morte, mo~tra-a, ao mesmo tempo, can-
sada, s'olitária, ~~as sempre confiante no' movimento operário e fiel a Edwal:d.
Ele ,acab~ de ser operado, ela projeta levá- lo c;:onvalescel' em Hastings, "longe
do nevoeiro de Londres': como ela fizera no. passado cOm ' se u pai. Ele~~r
nunca quis - nunca ·ousou? - ;evoltar-se contra os homens que amou e que,
cada um à sua maneira, a~ dev~raram .
- ,
~ Três meses mais tarde•. a descóbert~ ~as mentiras e da s traições acumula- _
das (o casamento secreto de Aveling com uma jovem atriz, a questão de di..nhei- .
ro sempre recomeçada ... ) levà~-na ao s~iddio como a única saída possí~el.
Antes dela, muitas mulheres' sociaMstas ou feministas tinham saído assim
de uma vida brutaimente enclausurada~ Penso nas ~ulheres saint-simonistas, ~ ...
~m Claire Démar, alertadas pei~: vibrant4 palavra de Enfantin e amarradas p~a ,
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. Esta história começa
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como um conto ..' !
'"Georges Ribe.ill. d'escobriu ·este diário, nã? em.uf!1 velho baú, mas no
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I,
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merc3.do das pulgas, substituto de nossos sótãos perdidos, com um vendedor
, ,
de livros usados, onde acabam os restos das bibliotecas vendidas nos leilões,
~I

.'•
depois que os livreiros e os amadores extraíram delas as obras mais cotadas .
'
. Este grosso caderno marrom,. enc,adern~dq, de for~ato in-8°, tinha
uma etiqueta com a men~ão man~,scrita: "Diário de Çaroline .Brame: 17 de
~'
:~
março de 1865'- 12 ge abril de 1865,24 dé novembro de 1864 - 16 de março

.'.'
. I':,",
'I
de 1865," Urna' escrita delicada cobria as 300 páginas desta agenda. cUi?adosa-
, mentenatada, Na seção "Teologia e Religião" onde estava classificado, ele divi. '
,, '

~ia ·ó espa,ç o' com divers;1s obras de devoção, d~ mo-r~ e civilidade cristã - en-

.
tre as quais quaúo da rorq.ancista católica do Npt:te, Mathilde .l3ourdon - pro-'
,

.'•••
" ;
' ! " venientes, evidentemente,.da mesma biblioteca. TO,d os estavam igualmepte en-
, ' , . ' .

! I
. cadernados de maneira s~bria e ~legante, em tela 'ecartão, as bordas conteçdo
, " ,f :

' , , o título gravado, a data, e às vezes uma flori uma pequenll etiqueta numérica
--
.', .
' . . \
I sugeria uma classificação. Só um deles tinha iuna dedicatória, ", livro do aba .

... de Chaumont, Du gOllvernement d'une ma;S01t 'cltrétiel,ne (Pàris, í875): "A Ca-
~,

.'•
•.,
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':' roli~1e 'Orville: Lembranças afetuosas" (assinatu~a ilegivel), Esta biblioteca de
" I·
I, ' "
I
I
, ,",:"

*- "Caroline retrouvée": Présentation, .[n: !ournal int!me de Carolillc B, fnquête de I


.1
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, MicheUe Pt;.rrot et Georges Ribeill. Paris: Arthaud-Montalba. L985. p. 1. 11 ,

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P(/neJ
T"'fO , Cop(wlo J
Carolillc r~",:o l1t ..ada

mulher devota e di stinta fora visív~lmente liquidada há pouco. Acima d,aque- . quisa: busca do autor, p'esquis~ sob re ' a sua família, sobre os lugares e os
les destroços obsoletÇ>s, pairava uma certa a'tmosfera de ruína. meios, que nos foram facilitados pela abundância de nomes próprios registra-
E'ste documento ti$a algo de insólito e de, exemplar, ao mesmo .tempo. ~M~~ - -
Tais diários íntimos n~o são ,raros; mas eles chegám apenas excepcionalmente O pai de Caroline, Édouard Brame, era um brilhante funcionário públi-
ao público. Seus auto~es· ..::.. ·mulheres, na maior parte das vezes - os destroem ,co do corpo de -Pontes e Estradas, autor de projetos futuristas de "metrô" aé-
geralmente na che~fada de sua ve1hic~1 preocupados em não se expor ao oIliar

reo. Seu necrológio forneceu-nos as primeiras pistas e permitiu encontrar tan-
indiferente ou irônico de seus herdeiros. Este exemplar deve sua sobrevivência to a famUia materna quanto a paterna de nossa heroína.
provavelmente '3 uma morte prematura e seu acesso a nós à sua encadern~ção ·Por parte d~ sua mãe"Pam éla de Gardanne, cuja morte em 1862 paira
que"o confundiu com os out~os livros da biblioteca. Seu próprio e~quecimen- sobre esta texto, Caroline pertencia aos meios da arte oficial parisiense: lngres,
to o preservara da destruição, ou da.censura, Perdido em algum canto escuro,
este diário, puro valor de uso, Jora provavelmente vendido a baixo preç~~ tal- \ ,
. .
, Hyppolite ,Flandrin eram ós protegidos e os amigos de seu tio-avô hdo uard
Gatteé)WC, cuja famf~a havia sido mu itas vezes pintada por eles, Deve-se a Flan -
vez na pressa de uma mudança ou de uma partida. Ele nos entregava, como. drin um retrato de 'Paméla, hoje no muse u de Lron.
num, furto, a vida íntima de· uma j~vem - -de uma jovem mulher .- do bairro .' Os "Brame pertenciam, a'o contrário, à burguesia industrial de Lille: Sua
Fau~ourg Saint Gennain, ~o fim do Segundo Império. ! , fortuna considerável fora' adq'u irida por Louis Brame, empreiteiro de obras "
O caráter'Au,ase etnográfico deste texto interessou-nos de ime:diato. Por
sua repetição, ~té mesmo por sua banalidade, ele testemunha ' s~bre um modo -
de vida e,de pensa,mento abolido, inclusive, em suas manifestações de'devoção,' -..
II públicas. A segunda geração, a de t douard, 'aum entava suas' af!1bições: O têxtil, '\
a política, a Escola Polytechnique e até mesmo o Institut de France entravam
eru. seu horizo~te ·por estratégias. variadas em q ue os cas~ mentos
. pareciam ter
cujos ritos tornaram-se ,estranhos para nós. Era, vIsta quotidianamente e de tido parte importante.
seu interior, um a certa "civilização dps co~tunles" que, por muito tempo; as_o , Recente, esta dinastia ~ostrou-se frágil e p'rovavehnente ~ós os capta-
sombrou a sociedade francesa como um modelo de perfeição, mos ~ m um pon\o de inflexão. O ramo de Lille prospeIOu:Foi deste lado que
, ' Mas ta~bém, passadas as primeiras páginas que cheir:a'm a um exame se conservou a memória, Há cerca de vinte anos, ,um descendente atual con- .
de consciêncía, m um certo' tom pessoal nos impressionou. Ficamos tocádo,s fià~ ao Senhor Jacques Foucart a tarefa de fazer um; série de pesquisas genéa-
.,
p~la expressão de um sofrimento, de um desejo, o esboço logo abandonado lógicas e notariais cujos preciosos resultados. estão depositados na biblioteca
'de um ~ aventura, e o co nsentimento final ao ~remediável destino da s mulhe- - municipal de Lille. Encontr a-se ali, sobretudo, uma "confissão" em que o pri- -
res: um \casameIúõ arraJ".ljado que se procura ~ransf()fmar em úm~uriiã-o es-
\ ,
mogênito dos Brame, Jules, homem poHtico, dá expliqções sobre o longo co n -
colp.ida-. Ficamos ,se.nsibilizados por 'esta vo~ clé. uma desconhecic:la, mullrer flito que o.~opós a seu irmão mais novo, f:douard"o pai de Caroline, Ela faz alu-
.\
(, enlre .t<;>,das as Jnullie~es. Tivemos vontaêli de lhe da! a p~lavra q,u'e talvez elá sões indecifráveis a ,este drama que dilacero\,! a,família e, por vezes, determinou
,.., o destino das mulh'eres. Tanta violência por trás daquela doçura triste ... ,
nunca tivera. 1

Mas quem era e~tá' Caroline Brame, Orville quando casada, que víam.9( -' I O ram o parisiense teve menos so rte, P~ovavelmente foi vitima ,de sua
escolha de um model9 aristocrático ultrapassado. O irmão mais n ovo de C~­
. ~m seu dia-.a-dia?. Foi 'o' início de uma busca e ·de uma .p.es~
assim'viver quase
,.
roline, P~ul, católico convicto, dedicava-se àiilantropia; perde-se C!s traços de
seus inúmer9s filhos. As duas filhas de Caroline, Marie e Ren ée, ca'saram-se
122 A fim de poupar o leitor das fustidio* meditações e exames de conscf!ncia de
Caroline, escolhemos tornar o 'texto rrfais leve, em ~eu primeiro terço, essencial. ., ' bem, co mo sua mãe, já falecida, sonhara, sem dúvida. ?>.1as aquel e mundo de
mente. M;U uma fotocópia rlo manusc~ito ~stá depositada na ,Biblioteca Histórica castelos resistiu mal às guerras e às crises que acabaram por vencer a resistên-
da Cidade de Paris. ' I' ' ... cia do An,tigo Regime, Desta forma, a residência.da rua Sáint-Dominique, que
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ficara mais de um séc ulo na (amUia, foi vendida em 1969. O castelo de Ma- Capitulo 4
reuil-en-Brie, propriedade dos Orville e passado a Renée d~ Vibraye, a segun-
'da filha de Caroline, é hoje gere!1ciado.por uma Sociedade civil florestal. Si nais
de avatares que não nos cabe descrever.
Uma excuISão aos locais que Caroline evoca deu-nos a imagem sensivel
de um universo de;~p~recido. O castelo de La Cave, no Depart~nento da Nie-
CAROLINE,
')
UMA JOVEM DO -

vre, onde encontrava Albert Dumont, que ela provavelmente amou: é hoje a
,FAUBOURG SAINTC.GERMAIN
. ,
sede, em mau estado, de uma colônia de féri:U j urtigas cobrem a escada que le-
vava ao lago que ela via de se~ quarto e que compõe uma paisagem mais soJi- . DURANTE O SEGUNDO IMPÉRIO'"
tária do que nunca. A igreja vizin};1,a de ~.eaumont é a sede de uma per~gri na­
ção anual, e é aberta apenas nesta "época. No cemitério, encontramos o túmulo
de AJbert, morto aos vinte e quatro anos, em 1871 , durant~ a guerra.
Caroline so ube desta morte em Spa, onde, um tanto refugiada, um tan- , Este diário, comprado no Mercado das Pulgas, com um lote de livros
to doente, ela fazia um traçamento enquanto seu marido, Ernest OrvilJe, fica- devot~s, prov~ nientes da me~ma biblioteca,1lJ cer~ de cinqüenta livros encon-
va na Pa~is sitiada. O Senhor Foucart, com quem entramos em contato, e a
trados em segu'ida, é tudo o que nos resta atu3lment.e de Caroline· ~rame
quem somos infinitamente devedores, assim como a s~ u filho, teve a gentileza
I " , . (1847-1892 ), nascida e falecida na rua Saint-Domiruque'- em pleno Faubourg
de nos comu~car cerca de 'cinqUenta cartas endereçadas por-Caroline a Er-
- onde ela 'viveu o essencial de sua b~eve existência. :e: pouco, e finalmente é
nest. Estas cartas têm um interesse tanto púBlico quanto individual. Elas co.m-
pletam O retrato de uma jovem mulher que tenta, às vezes desespe.radamente, mais do que para a maior'ia, desaparecida sem deixar marcas. ,
realizar utn ideal de casal mais igualitário e mais terno, em suma, atingido pela Não estamos completamente s:guros· que seja o primeiro texto. Uma ·
modernidade. Mostraremos-aqui aJgilmas delas. ausência total de rasuras, algumas precisõe.s acrescentad~s na margem, como
Assim, o caderno marrom tornava-se o centro de uma meada cada vez se faz ao dassificar velhas fotografias cujo nome dos modelos se teme esque-
mais apertada e, no fim das contas, infinità. Através de arquivos públicos e pri-
vados, monumentos e museus, casas e cemitérios, e até me~rno algu.ns .teste-, I' ,
*. "Caroline, une jeune filIe du Fautiourg' SainCGerma in sous le Second Empire", . ,
munhos orais mais frágeis, aparecia toda uma '~rqueol.ogia fami.11ar que oasta- pesquisa sobre Le Jburllal intime de enroli/le B. Enqu~te de MicheUe Perrot et
va proc urar para descobrir. Evideritemente, as famílias notáveis, sobretudQ I Georges Ribeill. Paris: Arthaud-MontaJba, 1985. p. 169-224.
graças às· suas mulheres "de lazer': deixam mais traços do que óutras. Traços 123 Estes livros atestam 'a perman'ê.ncia das ~ferblcia.s cristãs e feminmas de Caroline
emique s~ inscrevem até seus se~r'edos. A partilha desigual continua até na me .. Brame-Orville. Encontramos assim o abade CHAUMONT. H. Du góuverneme~t
, - d'une ma;scn ,chrtriennt!. Paris: Palmé, 1875; destinado às donas-de-casa cristãs. ele
mória. No '-entanto, elas- não detêm o mOn'opólio da memória, ,
nestes tempos , comporta os ~ápítulos clássicos deste gtnero de publicaçi'io: "Da arte de governar .~.
em que a escrita 'e ,logo a fotografia tornam- se de uso mais corrente. E elas tam- sua casa'; "Do mobiliário~ "Das despesas': "Da to;alete", 'IDas recepções do Dia e da ~
bém conhecem p $ra~de noturno do esquecimento. visitas", "Das refeições", "Dos saraus", "Da estação do vtrno~ "Do controle dos
serviçais'~ Em certos aspectos, O diário é a aplicação destes princípios. Encontramos
Entretanto, estes tesouros das famílias vêm enriquecer nossa compreen- igualmente obras de padres.sobre a fé e a moral: do abade AUBIN, Victor. Actualitls
são de uma história em que o público"'elo ptivado se misturam de maneira
, ou ripomes aux objectiÓtlS de la scienq:. atlrichrétienne. Pa~is: Auteuil, 1879; do mon-
,inextricável. Aqui, através de -vet;,t0s e ~rists, acreditamos ve! ern~gir um novo senhor d 'H UlST. Vic d~ la ",m Mflrie-11Iér~ fondatrice de la Congrégation de
l'Adomtion réparatrice.. Paris: Poussielgue, 1887; e muitos livros de mulheres: de
e estranho personagem: uma mulher qu.e lquer ser uma pessoa , . '-
, , Mme MARCEY, M. de. De I'observarlce des lois de I'Sglise dans It: Monde. Questions

,'
92 93
,
Par,,..! Cap/fll/114
• 1rnfQ Cnro/j,ie. uma jcwtm dQFalllxmrg &lint_Gcfmai"
duranle Q ~gw ldo ImplriQ

ce,r. A1g~mas estranhezas forma.is - como a separação entre a apresentação ma- do s os qu e a cercam . Mas o pequen o sa lão é un~ espaço mais propriamente fe-
terial e se u enunciado 124 - sugerem que se trata talvez de uma c6pia, eventual. ~ minino. E CaroUne é a única mulher da casa: su a mãe morreu em 26 de maio
mente feita por CaroHne. Seu g?sto pronunciado pelo rememorar autoriza que- dé .1862.
I?ensemos assim. "A lembrançà é urna das gt.andes doçuras da vida': escrevia No outro e."Ctremo, outra relativa incerteza. O diário acaba na última li-
ela na noite de seus dezoito anos. Reprod~zir se u diário pode ter sido para esta nha de registro, quase no meio d o relato de um dia: este fi~ mate,rià! seria um
nostálgica, uma~aneira de reenco ntrar o tempo perdido de su a adolescência, fim real? Devem~s observar, no entanto, que desde·o seu casamento, Caro line
o tempo em que ela ainda tinha um "futuro'~ ~ escreve apenas excepcionalmente o seu diário, sobretudo para evocar lembran-
Não estamos certos, tampouco, de ter a totalidade do que e1a escreveu. ças. ·T ransformado em peregrinação, o diário mudou totalmente d·e função. Na
Começado em 24 de outub~o de 1864, na volta de uma viagem ~ Itália, possí- verdade,·ele deixou de sê-lo. O casamento, como quase sempre, matou-o. Um a
vel encerramento de uma vida de internato, o presente caderno pára em 26 de moça tem segredos de que uma mulher n ão pode dispor na câmara éo njugaI ,
ou tubr<:> de 1868, em La Cave, no Nivernais, lu gar privilegiado d e uma felici- mesmo
, que ela o s autorize a si mesma. Sinal dos tempos: ·Michelet coloca a
dade esmaecida. Caroline está. casada desde 18 de abril de 1866 com Ernest Or- "co nfi ssão" conjugal no centro das 'relações d o casal moderno, 'e reivindica
viUe. Talvez trate-se de um-fragmento de um diário mais extenso, ainda que
. . J
para o marido o ~eito 'de ser o único confidente, o único amigo. m Assim, O
certos indícios nos levem a ver, nele uma totalidade. . diário preencheu seu papel de companheiro da adolescente inqui eta , de co nfi-
Nas prim eiras páginas deste texto, Caroline escreve: "Riem muit? dos dente das incer!ezas do coraçã o . Rito e testemu nho da passagem, ele encontra
m eus trinta e seis j;;adernos (... ) Itodos orgap.izados no pequeno salão." Cader- ai a sua unidade e, provavelmente, a sua unicidade.
n os de escola, .cadernos de viagem ou diário anterior? Certam ente, temos di- Manter seu diário é, no século 19, wna prática relativamente co rrente, e
ficuldade em imaginar, nos dias de hoje, um diário intimo ao a1cance de .t o- cada vez mais difundida.'~ As origens e os significados de tal âesenvoh~mento
I
são múltiplos. Encontramos nel,e o aspecto de '(agenda" dos livros de notas fe-
aauelles. Paris, 1866; de KARR, Tb~rese·Alpbonst. Dieu t i stS dom. Chatillon, 1864; minjnos, preocupados em registrar as despesas e O tempo que está f.1Zendo) em
tncontramos sobretudo quatro rom~nces de BOURDON, M.lthilde. (Mathilde regular o s recurso~ e logo, o bem mais precioso.: o uso do tempo. IV Por meio da .
Froment). La Vie réeIle. 18. ed. Paris, 1872; Andrée d'Effauges. Paris, s.d., Catlltrine .'
Hervey, Paris, 1872; Un Rive accompli. Paris, 1880; enfi';:', algumas obras sobre o .
campo e. os camponeses. O livro que Caroline leu co m mais atenção, como o 125 Michelet, La Fmnce, p. 275, 1860.
mostrarn..as numerosas passagens sublinbadas no tato ou na margem, é o .do pa·dre 126 Importantes estudos soc io·histór icos foram feitos sobre o diário Intimo.
MARQUIGNY. Une Femme forte. La Com tesse Adelstan. tfIldc biographiqllC ct A.ssinalemos~spedalmente: LELEU, Michêle. Les JoumllllX intimes. Paris: PUF,
morale. Paris: Leroffre, 1873, publicação edificante do diário de uma jovem mulber : 1952; GlRARD, Alain. Le ]ourt/a/ imimc. Paris: PUF, 1963; DIDIER, Béatrice. Le
.. devota que tomara partido contra Victor Duruy, na querela sobre o ensino das ' JOllrtlal intime. Paris: PUF, 1976 (renovado ppr contribuições da sodocritica e da
Jlleninas de 1867, que se casara no mesmo ano, aos vinte e Cinco anos e morrera em psiCanálise.); urro, v. Del.· Le ]oumal intime ct ses formes littéraires. Paris: Orol;'
: .. , 1871. Carolirre sublinhou com uma particular insis t~ ncia tudo O que € relativo ao·
/ casal, ao amor cristão, à morte. Julia foi casada por sua famflia com um "nobre e
1978. A abordagem de B. Didier, insistindo no diário como "refúgio matricial" e
como tipo de esc.rita "femini(lo" ~ paro nós particularmente lnteressante.
/ valente oficial ~ Henri, cristão mas pouco fervoroso, que ela tenta convertere que,
após a morte da.jovem mulber, decidiu publicar seus escritos íntimos. Verdade ou
ficção,'Caroli ne provavelmente SOrulOU Str uma Julia e penSou que Ernest parecia '
127 A agenda, "pequeno ,livro destinado 3. anotar as coisas que St deve fuzer" (Littri),
parect ter nascido por volta do inicio do século 18. Aurore Dupin (a futura George
um pouco com Henri. ... Sand)· era apelidada, no convento das Inglesas, em Paris, durante a Resta.uraçi\o, ".
"Miss Agenda" de'vido à sua mania de anotar tudo. ~arc·Antoine Jullicn, pe:dagogo
124 Em 28 de junbo de 1865, um limples traço de Stparaç'ilo acompanba esta menção: figado à escola de Pestaloz:z.i, ape:rfciçoara uma "Agenda Geral" para dar às crianças
"O que colocarei neste novo cadernor-, como se tivessem sido copiadQ$ de cader. , ,
o bábito do balanço diário, prevtndo a l~ mesmo sistemas de notas. Ele tscreveu um
nos originalmente difúentcs. Mais ad~ante.junto a uma data d aramente etrada, há
I ... Essa; sur I'emploi du temps ou nrillJode qui a pour objet de bien régler I'empfoi dll
um " ? .. nã mar~em. .
, , temps. premier moyen d'ttre heureux. Paris: Firmin Didot, 18:08.
.-

94
95
-, C.plflllo .-
Pllrtll I
ClroIine, UIfUI jovem rio FllU bourISa;m·Gtrmain

""'" d_"rwIk *' Squ,w Imptljo

crônica das doenças, o corpo tern. ali um lugar. A ,alma também. Pois as [an tes trerno, é verdade, o diário en~ar n a o ato principal do dia; até me~mo a totali-
religiosas do diário intimo são essenciais. Do lado protestante, a tradição pietis- (jade de uma vida, um fim em si mesmo. Ej11 todo. caso, o movimento de apro-
ta alemã, t,ão viva nas igrejas protestantes americanas do fim do século 18, do priação do diário pelo eu íntimo é geraL
inicio do século 19, reco~enda a sua prática, sobretudo entre as mulheres,' Na Ainda que o apetite. de escrever seja, no século 19, uma paixão comwn
Genebra calvinista, ~miel tinhaj desde os treze anos, um "directorium': "regis- que faz cair ~s fronteiras sociais,'· o diário co ntinua a"'ser, apesar de tudo, por
tro com bordas ,dé'"ouro e fechadura", para anotar suas boas resoluções e suas razões, materia.i~ e intelectuais, o apanágio dos mais abonados. Duas categorias
fahas. O diário torna-se então exame de consciência e modo "de controle de si são particularmente levadas a ele: as ad.olescentes e as mulheres. Companhej:
mesma, cujo uso é aconselhado às jovens internas ao sair do convento. ro de solidão, obra de solteira, o diário acompanha geralmente a passagem de
Mais reticente diante ~os riscos de 'transbordamento de um eg~ intem!. um estado a outro. Ele sofre, em seguida, com e~ta situação transit6.r.ia. Teste-
pestivo, a igreja católica orienta o diário intimo para a ação de graças e a refle- rnunh~ incômoda que pode fazer <corar, ele é tão bem escondido que acaba
xão edificante. No entanto, moilsenhor Mermillod, consellieiro ouvido pelas sendo perdido; e chega até a ser suprimido. Provavelmente restafl\ muitos mais ·
mulheres cristãs durante o Segundo Império, elogiava a força apologética de do que se .acredita, nos arquivos familiares, precios.!l-s marcas de escritas e de vi-
escritos privados, como os de Madame Swetchine ou de Eugén'ie de Guérin das, que de outra forma e~tariam. perdidas. Mas muitos foram destruídos por
cuja publicação, segundo ele, provocara diversas conversões/UI O padre Mar- seus aut9res que temiam um olhar insensível de herdeiros indiferentes. Quan~ \
quigny (da Companhia de Jesus) publicava, com o título c(e Une Femme forte, to papel queimado na noi te de uma vida, para preservar esta parte de $egredo
o diário e a correspondência c~njugal da condessa Julia Adelstan, pseudônimo que está no centro de, toda existência!
de uma aristocrata de Lyon. morta aos trinta anos em 1871. 119 Este livro figu- '. Caroline conservou se'u diário. Ela não quis apagar seu.s traços. A me-
, rava na bibliot~ca de Caroline, que sublinhou numerosaS passagens cuja esco- nos que, surpreendídà pela morte, ela não tenha tido tempo de faZê-lo. Talvez
ela: tenha mesmo querido transmiti-los a nós? Toda escrita é, de certa man ei,-
lha diz muito sOOre suas própri.as obsessões. Evidentemente; Caroline não
pode ter sido .diretamen te influenciada por esta obra, publicada em 1873i as si- ra, vontade de viver. ou de.. sobreviver. Toda escrita é mensagem, e mistério.
-,
milaridades de estilo, de fu.ndo, ~om seus próprios escritos são, t.odavia~ im-
pressionantes. t: somente a prova da força dos modelos em circulação que se
impunham às "d}aristas" cristãs. A ESCRITA DO DIÁRIO
'Mas, paralelamente, o diári<.> tende a s.e afirmar .como u m espaço de à-
pressão pessoal. O in~ivíduo, às vezes abafado peJo «terrorismo" familiar tão Em,1864 e 1865, Caroline escreve seu djMio quas~ todo dia, sobretudo
fort~ naquela idade de ouro da-vida privada, 'à~pira a enco~trar, 'à noite, um no período de intensa angúsrlà existencial que ela atravessa: Escreve à noite, no
canto para si, onde~pudesse respirar, enfim . Para alguns, coJ?lo Amiel, caso ex- > silêncio de seu quarto, antes da última prece. Ela· faz o exame de sua consciên-
cia, e ,ainda m·ais, o exame de seu tempór "Empr~ei bem o meu dia?", intér-
I .'

128 "Que belas e nob-res almas lancem, neste .momento, sobre o papel, sentimeOlos que,
-.
r
roga-se -ela, "~ste deveria ser sempre"meu primeiro pensamenw quand.o estÓu
depois de ter feito o chàrme e.o suslen'to de sua solidão. atingirão out.ras almas, perto de Deus: pedi ndo-lhe que me ajude e me perdoe!." (17 de junho de
para eJevá-líls também ~ sustentá-Ias 1"1escreve o monsenhõr Mermillod, que cita 1865) . Ela enu~era suas ações, boas ou más: atos de dev~ção, obr~s de carida-
MOle, Swetchine. "uma honra para o ~airro': e sobrerudo Eugénie de 6 uérin: "Esta
obra já levou, segundo. meus conhecimentos, cinco almas protestantes b fronteiras .
da verdade", apud MARQUlGNY. 'Unf' Femme forte. La Comtesse Adelstan, bude , 13Q Como o mostram sobretudo as 'o bras de RANCIÍRE, Jacques, La Nuit des prolé-
biograpltique el /IIora/e. Par~: Lecoffre.l1873. p. 134 . 4
tlúres. Archives du rlve ouvrier, Paris: Fayard, 1981 e Louis-GabrjeJ GauMy. Le
129 Cf, n. L i ,- philosophe plébéien. Paris: ~ ..s'pero, 1983, os Qper.srros ttm
. .. paixão
, pela escrita. '
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de, no lado bom; saltos de humor, gestos de impáciência, tentações mundanas, para nós. Códigos irrepreensiveis decidem sobre a aprese ntação de si e tornam
no lado negro (não tão negro). Exal}1e de devoção cotidiana, O diári~ conta, ilusória a transparência. Precisamos traduzir os sinàis, ler nas entrelinhas, ca p-
minuciosamen~e. as práticas de uma moça devota.
Ca roline recapitula suas ocupações mundanas: compras, visitas~ janta~
:1 tar as alusões, insinuarmo-nos nas brechas e nas rachaduras, apropriarmo-nos
dos espaços' em branco e das meias-palavras. Avido pelo' segredo das almas, o
res, recepções, sa raus. E'lanlénciona com precisão seus mínimos deslocamen - historiador - sacrilego? - gostaria de ser Deus.,Ou, no mínimo, Freud.
to~ em Paris e, sobr€Íud~, as pessoas que visitou ou enco ntrou,_as que vieram ,Caroli ne data se u diário com uma precisão de tabelião: o dia à esquer-
ao seu "çl ia" de quarta -feira. da, o dia , mês e ano quotidianamente repetido à direita. Ritm<;>s mundanos ~dos
. Ela avalia, enfim, o conteúdo de um dia por sua felicidad~. "O que co- "dias": ordem _litúrgica, deslocamentos sazo nais - férias de verão, caçadas de
locarei neste novo cad erno? Al~grias ou penas?" (28 de junho de 1865) . Ela faz oJ.lton o -, aniversários fam iliares aos quais Caroline conti n~a muito fiel , bus-
de seu diário a testemunha de seus prazeres e de suas ap reen sões. Esta função cando na coincidência das datas alguma misteriosa significação; estas tempo-
aumenta, sobretudo a partir do verão de 1865. O casamento de sua prima p~e­ ralidades quadriculam um tempo privado indiferente ao mundo exterior, e
ferid~ , Made Ternaux, apre, para Caroline, um. tempo de inquietação sobre se,:! cujo relato detalhado dá a impressão de infinitude. Estranha sensação de repe-
futuro e sobre sua vocação: religiosa ou nlulher casada? O diário é O substitu:- . tição infima e de"peripécias intermináveis no' seio de sociabilidade"s fechadas
to da mãe: que ela perdera , ou ao menos o meio de lhe falar ainda. '·0 bom ami- que formam vá rios sistemas planetários. Através de tais escritos intimos, en-
go co nfide nte de tudo o que eu sinto" (20 de junho de 1865) torna-se um ins- trevemos modos de percepção e de regulação do tempo que as grandes mídias
trumento de introspecção, ou pe!Q menos de .desabafo. No outono de 1965, modernas modificaram radicalmente. ' . .
naquele breve mom ento de liberda~e em que ela respira enfim, Caroline fala . Caroline escreve "eu'~ Ela diz tu à sua "mãe. sua principal interlocutora,
menos de Deus do que dela mesma e de Albert que ela parece amar. Menos..de juntamente com Jesus e a Virgem. A eles, ela diz "'vós", relatando sob retudo os
contri ção e de ações de graça, mais de preocupação consigo m esma. O tom re- diálogos de ação de graça em que Jesus responde. Sua linguagem exclamativa _
ligioso recua em proveito de uma expressão mais pessoal. "oh!-ah! que ... como!" - é a linguagem da prece e da poesia. Ela usa abundan-
Esta expressão, no ~ntanto, continua contida: O eu não conquistou ple- temente as ·reticências. Se u estilo, no entanto, evolui, notadamente .a pós seu ca- .
nameo"te o direito de existir.. sobretudo na paróquia Sainte-Clotilde, onde os S'a mento, ficando mais sóbrio e seco. Em quatro anos, Caroline amadureceu. A
~
pregadores convidam as moças a desafiar os seus nervos: "Há, em nossos dias, pequena aluna interna l suj eita aos ataques de riso e às lágri~as tornou-se uma
belas e magníficas invenções; m as há uma delas de qúe eu não gosto nem ~ jovem mulher m ais grave, menos pronta a divertir-se po r qualquer motivo. t
i pouco, é o sistema nervoso", diz-lhe" padre Bazin (23 de março de 1865). A · verdllde que ela não tem mais um "quarto para si': para a escrita da noite.
i.
I. psicologia, triunfante no final do século, ainda nãb"invadiu o romance e a co n . . . . Quand?, em 1870-1871, ela se encontra só em Spa, separada de seu marido
vers~ção. As barreiras do "manter a distância" contÍl~u3m ~ólidas na etiqueta" pela guerra, ela lhe .envia cartas em um tom pessoal e determinado que sur-
I .' ,
do Faubourg. Sobre os movimentos do coração, Caroline mantém -se alusiva, preende. Como se, em circunstâncias excepcionais que legitimam seu interesse
como se não fosse permitido ir mais longe. "Meu Deus, há neste mom ento algo
.,l
pela vida pública, ela -se tiVesse liberado, afirmado, ao menos provisoriam ente.
que eu desejo", ~screve ela (4·de janeiro de 1866) e é uma audácia. "Meu Deus, De 1864 a 1868, foram então quatro a~os da vida de uma muUler, d~s
o que escrever ~qui! ...
. Posso abrir
- . meu coraçãO!" ( 15 de janeiro de 1866). rOl- ·dezessete aos vinte e úm anos. O diár.io desenha seu universo, testemunho-co-
possível confissão! A dec,ência conté!l1 as palavras que fariam as coisas exi~tir. " tidi ano sobre uma etnia 'q uC\ não acaba nunca de m orrer. Ma; ele nos dá tam-
, "Eu OUsari3?", "I?evo dize-lo?" ela arriscólj às vezes a e~crever! e esta é toda a bém a existênci~ singular. de uma moça às voltas com os papéis e as conveniên-
questão. O pudor pesa sobre. este diário a~sim co mo sob re seus p.e nsa mentos. cias que a sociedade lhe impõe, encurralada entre sua s aspirações e seu desti-
Palavra e vida, cativas de uin r:node1o de I:omportamento
, f continuan; opaca\
. . ~o. Conformista, provavelmente, resignada-, talvez. Caroline não é, no entanto,
,- .'

98
,
-"
99

L
--
PturcJ Caplllll6 4
".,.. ~ro/iM, u"'#jClICm do NI"lJotl'l $4IiHt·Gnmllirr
dll~lrk" Sqllndo lnrpbw

,
uma "jovem lDodelo" se.m apetite o u desejo. Ela tem uma natureza que supo-
.
tdouard Brame, por sua ve.z, é também um parisiense declarado. Suas
mos ardente, um coração amánte, um 'corpo dançante, insônias e sonhos. Esta
relações próprias - engenheirôs, industriais" arquitetos - o levam · mais fre-
tensão entre o mundo e ela faz o charm e deste texto. Ch arme perverso, ao es-
quentem ente p~ra os novos bairrós da Rive Dr~ite (Margem Direita), O Bois
tilo de Patricia Highsmith, com q uem, entretanto, ~la se parece ~ tão pouco:
de Boulogne e a avenida dos Champs-áysées. Amante dos bulevares, ele arras-
charme dos caminhos de que se conhece a salda, mas não sem desvios, histó-
rias de que ~e conhece"'o final sem que por iS$O o suspense esteja abolido; char- ta consigo os seus filhos: sor vetes no Tortoni. Ópera Cômica, e até as comédias
m e das armadilhas que se fecham , inelutavelmente. ~a Porta Sai~t-Martin. Ávido pelos prazeres urbanos, ele leva 'sua t1lha casada
a ~rría festa à -noite no CírcuJ~ dos Patinadores;. ela fica "encantada com .os re-
flexos da luz elétrica" (10 de janeiro de 1868). Ele aprecia o luxo, os cavalos e
EM PLENO FAUBOURG as belas carrocerias: Con stantem ente nas estradas e nos caminhos, ele mono -
p~liza os veícul os e os cocheiros, para grande desgosto de sua filha, sempre à
Relações familiares e frequentações mWldanas definem o esp:i~o de Ca- procura de um fiacre, impossive.1 de encontrar, sobretudo quando chove. Uma
roline. Paris, Lille, alguns castelos, rústicos, em maior o u menor gra"u, formam . moça d~ boa soci}edade não pode circular s6. Madame Loupot, a governanta,
os pólos principah de deslocamen~os que a estrada de ferro tornou fáceis' e re- Bertha, a camareira, ou ainda alguma senhora amiga acompannam Caioline,
guJares. Duas incursões ao exterior, à Itália e à Bélgica, a Rom a e 'Florença, Bru-
na maior parte das vezes. Ir ao M'arais) ver seu orientado~ de consciência, o
Xelas e Antuérpia e seus museus, abr-em um pouco esta área estruturada pelas
abade Chevojon, antigó vigário de Sainte-Clotilde, nomeac/'o para Saint-
relações p~ssoais. Espaço limitado, ~m sum a, cuja ~treiteza é ainda "3wnenta-
-' . I . . Denys-du-Saint-Sacrement,1ll é uma o..-peclição problemática e sempre relata-
da pelas restrições colocadas à circulação femi nin a.. mas que Caro? ne transfor-
ma em um espaço to..!al mente seu. Ela s6 se sente realmente à vontade em sua
d~. E que aventl!;a estar sem cicerooe! "Eis que eu parti sozinha com Marie
(era 3" primeira vez) para ir à casa de meu ~o ( ... ). Nós ri~os muito, Marie e
~estimada capital'~ sofre com a fadiga das viagens, execra a província e consi-
dera Ulle sinistra. el!' pensando que ninguém estava atrás. de nós e parecia-nos que todos nos
Paris é a cidade de seus ancestra is maternos, os Gatteaux,.'uj a presença olhavam" (25 de novembro de 1864). Da rua Saint-Dominique à rua de Lille,
é atestada'aoJTIenos desde o início do sécul o 18.m Famma resolu tam ente pa- o-trajeto não: é muito lo ngo. Todavia, Mme. Loupot vem buscá-la na volta. Para
risiense: a bisavó G~tteatix não havia "recusado absolutamente conceder ~ mão _. Geo'rge Sand, circular sÓ era o próprio sí mbolo da liberdaQ.e: "Estar .complet.a-
fi
• • • r . •• •
de sua neta a um maria o que não mo rasse' em Paris': ob rigando .Ç:douard Bra~ mente sozinha e dizer a mim mesma: 'jantarei às 4h ou às 'Zh, segundo minha ~
me, futuro pai de Caroline, a entrar para a reservn ,do corpo de Pontes e Estra- vontade; passarei pelo Jardim do Luxemburgo para ir àsTulh erias ao invés de
das, nara desposar Paméla de Gardanne? Co nscieritemente ou não, ~olin;'­ p assar pelos Champs-f:lysées, se tal for meu capricho' eis
C0q10 clivertir-:-me
reedi,tará esta história: se u apego à rua Saint-Dominique sem dúvida pesou
~ -
mais d9 que com as frivo Hdades. dos homens e a rigidez do s 5alões'~ Outra
'- -
I))

~muito na recusa de Ernest Or ville( seu mari do, em ir para O interior, etapa ne- mulher, outros costumes.
. .. \

cessária na carreira de uri-t ma~istrado,~e em SU,3 deci são fmal de' demjtir-se. Na /

residência da rua de UlIe, onde ele reuniu belas coleções que pretendja legar-o
'\ · 132 Esta igreja, construfda de J826 a 1835, no loca" do CQnvento das Beneditinas do
ao Louvre,
. tio tdouard. Gatteau..x,
. amigo de,,Ingres
.e de Flandrin, reunia ",rtis- 5:1010 Sacramento, no número 68 da rua de Turerne, é uma das principais
tas. Seus saraus das quintas-feiras eram dedicados 'à música. paróquias do Marais. Ca roline, que escreve Saint~Denis (ao invés de Sa int..: Denys)
. i , podia 'a~irar ali a piet~ pintada por oelacroix. ~m .tiroa capel.a lateral, mI 1844.
. I t33 SAND, George. Corresporidatlu. Paris: Gamier, 1964,1. I, (1812-1831). Editada'por
13 1 Para a pesquisa so br~" fu m!lia, deixo a pa\avra a Georges Ribeill . " Georges Lubin, p, 887: carta_o. 390, para SU 3 m1\e (3 J"de março de 1831).
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Parlt I
Ctlrolill~. I11lIa jO"tm do Nllolbo'lrg SQ;llf,G:rmai"
'-'-'" duru/III: o $q:.mdo Impirj()

.. Também, ,com exceção das incursões quase semanais ao Marais p~lfa se Ernest de sua condescendência por mim ?" (.9 de março de 1865). Eis recol"lsrituí -
confessar" ~roline quase não sai do bairro de Saint-Germain e de sua "cara pa- do O hotel de famHia, sonho aristocrático da grande burguesia de então, desejo-
róquia" de Saínte-Clotilde, cuja importância está na mesma medida que o espa- sa de fincar raízes em plena cidade, como a nobreza fazia em suas terras. 1J5 Ca-
ço ocupado pdós exercícios de devoção em sua organização do tempo: missas roline morreu em "sua mansão", em 15 de janeiro de 1892; e Ernest, em 1910.
matinais na capela da Vjrge~ ou de Sainte-Valere, oficios da tard~ reuniões do' A mansão de Tavanne e seu pátio sombreado foram o verdade iro hori-
catecismo ou das fLllÍas de Maria na capela dos Catecismos, na rua Las Cases. Esta zonte de Caroline, seu "ninho". EJa elogia os charmes de "meu delicioso apar-
última é hoje ocupada por uma empresa de restauração de monumentos religio- tamento,. meu quartinho, meu quer~do salão", a estufa, tão agradável para os
sos. Mas a igreja mudou muito pouco, exemplo quase único, em Paris, de "revi- ja~ta.res ~e verão. A fronteira do público e do privado passa através d.estes lu-
vai" gótico, homogêne~ até nC!s detâlhes dos vitr~is, dos afrescos e ~té mesmo-do . gares. O grande salão é reseryado aos "dias", a depo'is dos jantares dos enge-
mobiliário. Construída entre 1846 e 1857, era então uma igreja nova em folha, nheiros em que CaroJine sai de cena rapidamente. ·O pequeno salão é dedica-
aliás, muito contestnd~. Criticaya-se Gau, seu arquiteto, origfnário de Colônia, do às co nversas Íntimas, entre amigas: ao "pé do fogo" - ponto focal da intimi-
pela sua frieza "germânica" do conjunto! Ballu, que rematou a obra, tentara reme- . dade - evocam-se lembranças, olham-se fotografias, fa zendo algum ·bord.ado·
diá-la com o esplendor das decor~ções, e sobretudo as pinturas das capelas, exe- para os pobres ou pa~a a igreja. Bem ao lado, Car'oline manqou fazer um "pe-
-,
cutadas por cinco artistas entre os quais Lenepveu (capela Sainte-Valere) e Bou- queno oratório': de que se sentia particularmente orgulhosa.
guereau (capela ·Saint-l..ouis, terminada em 1859).'~ CaroLine se sente bem em Mas o verdadeiro espaço privado de uma moça é o seu ql1a~to: "Meu
Sainte-Clo tildê. Ela é sensivel ao ambiente do culto católico, cujos fastos~e1a apre- quarto que eu tran sformei em santuário de meus pensamentos. de meus dese -
cia: flor::s, luzes, cantos e música, naquela paróquia em que César Franck'era or- jos, de minha vida intima inteira" (20 de junho de 1865), m<inha "cela", diz ela
ganista. Condensado da ~rte religiosa de seu tempo, Sainte-Clotilde lla1"!.0oniza- ainda, no fundo de sua crise mística. Em toda a parte, onde ela vai, Caroline,
se com o universo estético e o modela. Nos museus e nas exposições~ é .a pintura
~
graças
.
aos objetos pessoais que leva e que constituem reUquias para ela, recria
seu canto. Em Fontaine, o castelo dos Brame, perto de LilJe, ela escreve seu diá-
.
religiosa que Caroline vê e comenta de preferência. _
. Não são necessários ~luitos passos para chegar ao número 5 da rua Saint- rio "diante de um Cristo, a estátua de Noss~ Senhora das Vitórias e a imagem
~ Dominique. Os ,pais de Caroline fixaram-se nesta rua,-logo após ~eu casamento, de Santa Teresa, no. meio de meus livros amados e de minhas caras lembran-
inicialmente na residência do duque de l\astard. em seguida na residência de Ta- ças"Ú9 de junho de 1865).'" Quando ela volta a Fontaine, casada, Caroline
v:mne. Ali, eles sucederam a sua amiga Madame Swetchine, que manteve, neste mostra seu "quartinho" a Ernest; mãs a cama de solteira é muito estreita; o ca-
local, de 1826 até a SUa morte, em 1857, um salão que foi um cadinho do 'cato- sai ocupa "o ·grande quarto amarelo": "nós estávamos muito be.m ali" (16 de
,,1 licismo liberal; Mo,ntaJembert, Lacordair~) Falloux, mais raramente Tocqueville .
o tfeqüentavam. Na década de 1860, a velha construção do séc~lo 18 foi aluga- . 135 Roger Martln du .Gard I~ansformou-se no pintor-desta nostalgia dos hotéis de
em
da', ipartamentos; em 1864, os Barbet de ]ouy ocupam o andar superior; de família 'em seu romance póstUIllO Le Lieutenallt-Colonel de Mal/mort. Paris:
vez em quando eles "descem" ·para os saraus dos Brame, seus vizinhos. Após o Gallimard, '1983. La Pléiade, 11- parte, cap. XVI . "Blaise Saint-Ga11e sua fumnia", p.
553 et seq., enc'o ntramos ali a descrição da residência dos Saint-Gall que o au1ror
casamento, o jovem ca'sal Orville 'retomará seu apartamento: "o que me causou situa na rua Saint-Guillawn e: "Era uma velha casa da margem esquerda, uma anti-
um infinito prazer, diz Caro.Line, pois eu ficar~i assim perto de rrleu pai" no meio , ga mansão que for" dividida em apartamentos~ , "
de todas as minhas amigas, em minha ca? paróquia; como agradecer o Senhor 136 ROSENBAlJM~DONDAJNE, Catherine. L'/mage de pibi en France (1814-1914 ).
Paris: Musée-galerie de la Seita, 1984, catálogo da exposiçllo "Vn siecle d'images de
, . I, '' piété" reproduzido. p. l OS, pl. 138. uma imagem intitulada "L'En,fant de Marie. 50n
travail ", representando uma jovem costurando no quarto, que poderia ser a
134 WilIiam Bouguereau' (18"25-1905), Catálogo da exposiç:1o do Petit-Palais
(fevereiro-março de 1984); sobre_a de4>raç:1o de Sajnte-Clotilde, p. 85 et seq. '- imâgem de Caroline .
.'

I .

102 103
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PArttt J Clpftlllo4
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ClIrolíne, uma jQvelt. rlb F/lultou'I' S4int-Gerflltli"
rlUfAnte o SeJundo Imptrio
'1
ou'tuoro de 1867). Casar~se, é, em sumà. mudar de quarto, As mudahças da estava há tanto tempo comigo, com' quem eu podia faJar de todos os que eu
e.'listência inscrevem-~~ no espaço interior. In amava tanto. nós a perdemos em menos de algumas horas" (12 de dezembro de ' r

O quarto e o salão, estes dois pólos da vida, são,' aliás, os dois únicos 1868):Assim desmorona'Um muro de lembranças. Na margem. ela acrescenta,
cômodos de que Caroline falai na sua casa ou na de suas amigas, ela não men- mais tarde, pro.vavelmente: "enterrada no cetnitério de Neauphle'~I3'
ciona ou tros. Raramente faJa-se 9.3 sala de jantar, nunca çla cozinha ou dos toa-
Nem ,pensar, tampouco, em falar qa decoração da casa de seus parentes
letes; bem como nãó'se fala de comida ou de cuidados com o corpo. Os janta-
ou de suas amigas. Uma só vez, ela descreve o salão,de LiJle de sua prima Ma-
I res são. para 'Car~line, reuniões familiares ou'
mundanas; não refeições.
rie WaHaer~, como o salão de seus so nhos: uQue bela casa! Como ela é bem ar-
Caroüne diz pouco sobre a organização deste interior de que ela é a
rumada! O salão, sobretudo, é delicioso! As cortinas são em, ~etim azul céu, o
dona-de-casa. Don~-de-casa jpvem demais pata tomar muitas iniciativas. Ela
móvel, igualmente, com medalhões Luis XV, o pequeno console em que estão
faz "arrumações" ·m.ais do 'que modificações. Visivelmente apegada à ordem
espaUlados mil ninharias tão graciosas. Tudo é fresco, delici<:,so" (30 d.e março
das coisas, esta cos'mologia das m~Jheres burguesas, ela se entrega a classifica-
de 1865), O salão de Mude de Layre, sua outra prima, é "charmoso, em damas-
ções sem fim, toda contente por ter uma (( bibliorhate" (?) para c1a~sificar ,suas - . ,I

cartas, ab,u ndantes sem dúvida: a corresRondência a oçupa muito também. , éo amarelo; o quarto de dormir é uma verdadeira jóia em musselina branca e
azul" (4 de dezembro de 1865). Este gosto de Caroline pelo mobiliário do sé-
Mais tarde, ela mandará encadernar seus livros com elegância, distinguindo
.culo 18 (de 'estilo, se não puder ser semp re de época), pelas tapeçarias ~ os es-
cada um deles com uma' flor diferente. Assim, elês acabaram num sebo onde
nós os encontramos. tofados, pelos· tons pastel, pejas "mil ninharias:: os bibeJõs que submergem os
Aparenternçnte bem "servida", ela coloca pouco a 'mão na massa, para inter;iores. é o gosto de seu meio e de seu tempo! o gosto de uma buxguesia fas-
cinada pela aristocracia, modelo da distinção e que: em matéria'estética, nun-
empregar um vocabulário de livro d.e cozinha burguesa que não é o seu. Ela ofe-
I
rece urna recepção? São "ordens" que precisam ser dadas, A direção dos empre-
- , ca termina de buscar a sua legitimidade. Ut Gostaríamos de saber corno Caro li-
gados, capítulo essencial dos manuais de savoir-vivre das mulheres, sobretudo ne mobiliou a sua casa e se ela teve prazer ao fazê-lo. Ela apreciava as obras de
das cristãs, a pr~ocupa, Ela anota corno uma vitória sobre ,ela m~~a este ato de arie ~o ti~-~vó Gatteaux: que parece ter sido um verdadeiro amador d~ arte? E ,
autoridade: "Foi preciso', hoje, dar provas de firmeza e mostrar minha autorida- do cenário de sua vida, d.os objetos que o povoavam , o que resta hoje?
- \ .
de, ora, nada me custa mais do que isto! No entanto, eu dera uma ordem, eles , Caroline alna, Paris tanto quanto_detesta LilIe, a cid.de paierna dos Bra-
não obedeceram e chamando Leopold, perguntei-lhe a causa desta conduta; de-- e
me. Çada partida, vivida como um exilio, o momen_to de exaltar uma e dene-
pois que ele m e deu suas razões, eu, que conhecia -a principal, fi-lo compreen- , grir ~ outra: "esta cidade negra onde vou ser condenada a ver o sol de um qua~- .
der com uma calma e un13 severidade de que não me acreditava capaz, e eu lh~ to quente e sem ar" (3 de dezembro de 1864). "for todos os lados, vêem-se ape-
dissé que quando eu pedia ~lguma COis..1, eu exigia ser obed.ecid~! Foi o meu pri- ~ •nas fábricas, o que não é nada alegre!" (4 de dezembro). Ela execra o "calçamen-
m9ro áió de autoridade para com os .empregados e cohfesso, custou-me mui- ; \ to miúdo e os canos das chaminés" daqueJa.cidade industrial, como, de manei-
tOi prefiro dizer sempre: "está bem! " (10 de dezembro de 18ç4): Destes "eles"
anômmos,' conhecemos, eVidentemente, apenas os prenomes: Bertha, Jean, Ed-
138 MARTlN-FUGIER, Anne. La Place des bonnes, Paris; Gr.lSU't, 19?9, mostrou todos
mond, modesta criadagem. Carolini: fala deles apenas quandO· fazem falta, por
os aspectos desta questão; Genevi~ve Fra'isse, Femmes tou~lS mains. Paris:.se~i1, 1979.
ausênci~, doença, ou pela morte, suprema traição. "Minha pobre Bertha, que 139 O diá~io de Caroline Brame traz uma confirmação à tese desenvolvida por MAYER,
Acno. Ln 1'ers;sf(lIIce de J'Ancien Rtgjme, L'Europe de 1848 d la Grande Guerre, Paris:
.' ,, I ,.
Flammari9_n, 1 98~ A cópia do Antigo Regime' é paÍticulannente acentuada em
137 A este respeito, 'os trabalhôs de Anne !Martin-Fugier, sobretudo La Bourgeoi.se, matéria de cenário de vida. E o estilo Segundo Império apenas reproduz, de
femme au temps de! Paul Bourgct. Paris: qrasset, 1983, "Le Décor au féminin." "- maneira mais pesada, os estilos do século J8. ,
, "
.'
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104 "
105
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PlU1f11 Cllpl,ulo oi
Th", Curo/ine, uma jovem da NWOOllrg S/linr.Gcrmui" ,
d1l1'<lUl~ ti 5clurrd; lm~rjo

,
ra geral, tudo o que cheira a indústria, associada à poluição, à tristeza e à pobre-o vontade d'e rir ao ouvir a pregação do pároco, cujos. "gestos e o estilo das fra-
za" "Um passeio nos bairros impossíveis( Fábricas que exalavam um odor de ses" lhe' parecem cômicas. E as práticas funerárias que presidem o enterro de
água sanitária" - o hdlito das periferias em sUI1)a1fO - estragam um dia de seu cur- seu avÓ lhe são m suportávei s: entre o enterro e <Ias ~issas", uma semana de-
to noivado. Em UUe, frio,' nojte, nevoeiro, fumaças:. ela congela e entedia-se -ali. pois. eles não devem , em princípio. mostrar-se em público. Conseqüentemen-
A casa em que o avO......Bram; está morrendo é sinistra, sobretudo a sala--de jantar,,- te. a família org"niza uma fuga tudStic..1 para,.,a Bélgica! Ela visita os museus de
, solene demais. CarÓline se encolhe em seu quarto e na sua cama. Ela se. levanta Bruxelas e de Antuérpia sem complexos ou sem remorsos.
tarde para escapar do frio. Não havia ninguém para ~er. Os sáIõ~s de Lill~ são Somente o castelo de F~ntaine. em Croix. a alguns .qui,lômetros de Lil-

I mais fechados do que os de Paris; as damas, mais 'afetadas. E além disso, as da-
mas Crouan serão sempre as damas Crouan! Ela encontra,Mathilde Bourdon, "3
famosa autora de Vie réelle" que, z:10 entanto, "tem muito pouco a aparência de ,
le, tem realmente alguma graça a seus olhos. Longe d as poeiras~que fazem tos-
sir, ~li' se pode respirar "o bom ar'~ Vida de familia, caridade e "liberdade dos
ca mpos" dão muito charme a esta temporada. Singular "liberdade dos cam-

~ . pos" a ~aq~ehis jovens, esmagadas pelo calor sob suas crinolinas, incapazes de
uma mulher literata pedante"(23 de julho de 1865).'" Como uma órfã, escolia-
"o
da por Bertha, ela percorre solo gelado e úmido do Nor~e", inveja seu pai qu~, dar alguns passos em um parq!J,e sem receber o SOCO(l'O da carroça puxada por
'h" como sempre, apenas passa por lá, e espera o momento de partir. ' um.asnof Cadicho'n nunca está mui't dlonge ... Na.verdade, a celebração da na-
Do Norte,. ela critica tudo: a sociabilidade. o falar, os costumes. Ela jul- J ureza , para Caroline, está revestida de certas marcas um tanto estereotipadas.
ga os saraus tediosos e os jantares intermináveis. a conversação sem arte. Os assim CO mo a sua percepção d~s campo neses. MuUleres lavando roupa ou
habitantes de Lille continuam a jogar 'cartas, ao passo qu~ em Paris, int.e rpre- amarrando os feixes de linho, camp'oneses acolhendo os castelões no oficio pa-
tam-se comédias. Na missa, a devota Caroline tem dificuldade em conter sua roquial, são ~m elemento pitoresco Cta paisagem. estruturados à maneira de
um pjntor pouco talen.t oso. As relações são, entretanto, diferentes em Fontai-
ne, castelo de recreio e em La Cave, castelo dos Dumont no Nivernais. vercla-
140 Número especial de Recherches, n. 29. déc. 19n: "Ville. Habitat e Sant~ au XIXf:
si~c1e':
, .
141 Mathilde ,Bourdon 0817-1888), nascida em. Gand, vinda para Lille por seu casa-
. deira propriedade de exploração rural. Quando os caçadores reunidos, na co.
zinha do castelo, no dia de Santo Humberto, brindam com ela e Albert. que á
mento com Um jornalista; ela se casa em segundas núpcias com Hercule Bourdon,
juiz sàint-simbnista. Ela escreveu cerca de 200 livros. romances, biogrofias.livros de
,
apresenta a eles, Caroline está e>..1:asiada. A senhorita da rua Saint·Dominique

devoção, manuais de comportamento, peças de teatro, etc. Diversos de seus livros


imagina-se uma castelã do Nivernais? ('Gosto tanto do quê nos aproxima dos
dirigiam-se par;ticularmente às moças: Auxjtllnes perSOntles, PolittS5t~ tt savoír-fajiê. camponeses'; diz ela (3 de novembro de 1865). "
Paris: Lethielleux., 1864, Journée dlfétienne de la jeulIe filie. Paris: Putois-Creité; Mas este idiUo ca;mpestre é breve. C1foli,n e, por inclinação e por neces- .
1867, Le Mois des servitcurs de Marie. Paris: Putois-Cretté, 1863, el'c. Caro line tem,
sidade. não tem nada de uma George S.a nd. Resolutamente y,rbana e parisien- .
i en1 sua biblioteca diversos romances de M. Bourdon dos \quai6 Vie rée.Ué, um d~s
, . mais célebres, foi traduzido para O inglêstwl 1876. Mathilde' aourdon, assim como se, ela reencontra sempre COm alegria o seu Faubourg, "meus caros háb itos":
Julia Bécour ou Joséphine de Gaulle. outras romancistas católicas do Norte, desen- «es ta cara vida que eu tanto amo. entre a minha casa e minhas' amiga~. eu es-
volve q qu~ Bonnie Smith chama. de um "feminismo domktico", em que as m\,ll-
I heres incarnam, por suas virtudes, herolnas positivas, diante dos homens que
vigiam sO eus negódos, o dinheiro, o mundo,,em suma. Sobre tudo i~to, cf. SMITH,
tou tão feliz" (3 de dezembro de 1864).

Bonnie. Ladies of file Leisure.Class. The Bourge.oises of Nortllern Fr'QI1(e. i" ,the. 19th
Ce.~tury. Rrinceton: Princeton University Press, 1981 . Este livro notável é ext~ema­ OS DOCES LAÇOS DE FAMÍ~IA -
rr;tente .precioso para o conheCil}lento do meio das burguesas do Norte que era a
verten te provincial e familiar de Caro~l1e. Muitas análises de B. Smith poderiam
aplicar-se a Caroline e, invhsamente, ~ertos episódios do diário de Caroline, 1)0 \,. Definitivamente, os lugares ,importam menos para~ Caroline do que as
Norte;poderiam integrar-se às fontes ~e B. Smith. ~ '- pessoas. Cheios de presenças, eles são o pretexto para rememorar os seres.
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Qntlillt, U'fll jo,.rm do F,u~boll'l StI.int .ae,.",ain
dlltatlk fi .se,undo 1"'pino
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•• E pFimeiramente Paméla, sua mãe. morta aos 38 anos. Esta mãe tão fmpé,rio' católico consolidou, enquanto o o rientador de cQnsciência assegrna a

• •• . amada assombra O seu diário. CaroHne faJa dela, fala com ela, invocando-a em
suas dificuldades, interrogando-se,-sem cessar, sobre o que sua mãe teria di,tol
feito ou mesmo pensado. Thda é pretexto para evocá-la: os lugare.s e as datas.
conduta da alma, a mãe é a iniciadora das regras mundanas e dos .segredos do
. coração da adolescente. 10 .
Antes da morte de sua mãe, Caroline felizmente teve o seu primeiro

, •• Em Li1Ie. "este quarto...~m qu"'e mamãe morav?"; em Fçntaine, o quarto dando
para o pátio em qué"mamãe me fazia est~dar l .. ) e onde tive muitas distra-
baile, este rito de passagem que en~oniza no mundo. "Ãh! onde está este dia
"que não esquecerei por toda a minha vida, em que peta primei,ra vez eu cora-

••e
ções ( .. ,), Ali, fui talvez repreendida , mas também beijada muitas vezes!': ( 16 de ' I cava os pés em um salão repleto de flores e de luzes! Era meu primeiro baile
outubro de 1967); em Neauphle, a residência campestre do.s Gatteaux) ela se e mamãe apreciava minhas primeiras tentativas e meus primeiros sorrisos!
I~mbra' do pequeno salão onde ,a viu chorar tantas vezes. O calendário marte- Quando estava cansada, eu ficava inativa, enco~trava os olho~ de minha mãe
la a memória, com suas coincidências, cujas correspondênçias são feitas por : quê· me sorriam e que pareciam dizer- Ine: não tema nada, estou aqui" (17 de
, Caroline: o.aniversário da morte d~ sua mãe é também o da sua primeira co'" .

•• munhãó (num .26 de maio, também , em 1859); ela se casa vinte anos depois
dezembro de 1864) , Apartir de então ela deve,agi r só, assumir só aquela ta-
refa de dona-de· casa que considera, às vezes, tão pesada. Como vestir-se, esta

,••
dela, que o fez em 19 de fevereiro de 1846. A crônica familiar tem a precisão
.. , dos anais de um soberano. .
, - coisa tão grave, como se comportar? Como respeitar estas conveniências e es-
tes códigos que regem a vida mundana e fazem dela um percurso cheio de
Freqüentenlente, Caroline contempla O. retrato q'u~ Flandrin fez de Pa- emboscad~s para uma jovem debutante? Na véspera de cada récepção, Caro-
méla em 1861, um ano antes de sua, morte. Ela spfre ao vé-Io emprestado à ex- li!le invoca sua mãe assim como um cavaleiro invocava Nossa Senhora; antes
'posição das obr~s do pintor: "conft::.sso que ~ãO foi sem tristeza que vi ali o re--

••e
de llqla disputa.
o trato de mamãe! Esta lembrança
, , viva de minha mãe, esta relíquia que me lem- Ainda mais pe:;> rque aquela -mãe era, para Car~line, o modelo de perfei-
bra tão bem a~uela que eu coi1s~to em minhas hesitações, que me consola em ção com)o qual ela gostaria de se. identificar. "Meu únko desejo é tornar-me
'. minhas penas, eu gostaria de.guardá-Ia apenas para nós e ~ão expô-la ao olhar co-mo tu e ouvir dizer: ela é com o sua mãe! .t. o mais belo elogio pa;a uma fi-, .
,
de todos" ( 15 de fevereiro de 1865) , Profanação de uma intimidade que aspira, lha, é o único que encontra hospitalidade em meu coração" (17 ·de abril dê
e ao segredo. Nó mesmo momento, rFlaubert, evocando o local de um e~contro 1865), Este modelo é tanto mais, impo~ente pelos louvores q ue toda a (amIlia

•e '
)H •
amigável com George Sand, eScreve: "Foi tão bom que eu não' desejo que .ou- tece à morta . Existe, a seu respeito) uma espécie de.lenda heróica:: a lenda da
I, tras goiem dele. Se vós vos servirdes de Croisset em algumJ.ivro, procurai 010- . mãe, ,da mulher ,do m undo q ue, q uase em sua agonia, insiste em assum ir até O

•••."
o

difidí-lo para qu~ não se o rec~nhe~'l (... ). A lembrança d~ vossa presença aqui ' fim ,os seus deve;';s, O necrológio de' ~doual'd Brame, em 1888, é també;n um
)
é para nós dois; para mim. Este é o meu egolsmo".141 ._ pouco'o elogio fúnebre de sua mulher e talvez Caroline tenha aí alguma ,respon-
n I
. A mo.rte de sua mãe mergulhou Caroline em wna grande ,s olidão. Ela sabilidade. ceNo Domingp, 3 de maio de 1862, abriu-se o retiro de prinieira co-
• I ."
perpeu a.ternura,.as palavras e <> carinho nos quais seu pai, conforme o seu pa- munhão (de Paul, irmão de <::aroline), a mãe não cedeu a outros o cuidado de
per, é pouco pródigo. "Sou amada, eu sei ( ... ) Mas não recebp mais carinho, levar seus filhos. Na capela, fazia um calor sufocante: Mme. Brame saiu dali


••
I ' .
eXiste a afeição severa, ainfànci~ desapareceu e acreditam que meu coração se·
guiu o curso dos anos!" Ei-la, sem guia, num momento crucial em que uma
'atingida pele:;> calor de mane,ira irremediável. Todavia, opiniática contra a doen'-
ça, ela continuou em pé até a noite e recebeu 'seus parentes e alguns ·amigos para
'.

.'•
moça entra no Jllundo e na vida. De acordo com uma partilha que o Segundo '

e, Á importância da ligaçllo mãe ·filha na educação na~uela ~poca foi particularm~nte


,I " 143
colocada em· relevo por L~VY. Marie.Françoise. De Metes ef! filies, I'éducation des
142 Correspondaflce Flauberr·Satld. Paris: Flrmmarion. 1981. p. 92. carta de. 13 de
e dezembro de 1866. '-
fmnça ises (I8S0· 1880). J>aris: Calmann·Lévy. 198.4:
, '

••• 1'08 109


Pllrtc J Capftllkt.., _
, ""'" CamUllt, III11t1jo.'t1ll do Falloollrg Sai",·Gtrmlli"
durantt o Stgl/tldo lmpirio

o jantar'~I« o código de honra de uma dona-de-c.1sa é tão imperioso quanto o


metendo a meu pai amá-lo para s~mp re ... Eu me (sentia tão só, e meu coração
de wn capitão de n~vio. No dia seguinte, c0t:lta-se que ela se deitou e morreu.de
se part.ia ao pensar que não seria minha mãe qu~m me conduziria ao altar; no
uma pJeurisia. Era o dia 26 4e maio de 1862. Caeoline tinha quinze anos.
entanto, elevando meus pen~mentos e meus pesares mais altõ, vi m,!mãe no
Mãe suplime, Paméla morreu como uma santa. Numa noite de verão,
céu bendizendo-me, delicioso êxtase que me devolveu a calma".
na viatura que os leva de Lille a Fontaine, a tia Céline Ternau.'"( faz à sua sobri-
Caroline nos dá 9 retrato idealizado de sua mãe: o retrato de uma jo-
'nha Caroline, o relato de seus últimos instantes: <eAlgumas horas antes de sua
~em mulher séria e terna, respeitadora de seus deveres, razoável e submissa,
morte, minha mãe, que já estava bem perto do céu, parecia sofrer muito, quan-
não necessariamente feliz, e que chora em segredo. Caroline, casada há dois
L do, de repente, seu rosto se iluminou, ela· pareceu perceber um ser invisível,
anos, desolada por não ter um "baby": evoca sua mãe novamente. no pequeno
sorriu-lhe e adormeceu! ... Qu~m era? Jesus que vinha buS?á-la? ... A Santa Vir-
salão de Neauph1e: "Se tu estivesses ainda aqui, como nÓs serramos todos mais
gem que lhe prometia velar por nós? Ou um dos dois anjos que Deus -Ihe' ha-
felizes. Parece que tua filha seria uma co n'lpanheira para.ti pois ~reio que nos-
via tirado?" (20 de junho de 1865). Evidentemente, tais narrativas fazem parte
sas idéias seriam as mesmas. Esta tristez.1 que sint~ freqüentemente me apro-
da litera t~lfa edificante das "belas mortes".ld Mas sua devota encenação impÕe- , ~\
xima de ti. Eu te vejo neste pequeno salão, chorando algumas, vezes sozinha;
se aos agonizantes assim como aos que os'cerc~am, e até à própria memória. Há
então eu era criança, louca, alegre, feliz, e não cQmpreendia as lágrimas" (4 de
muitas maneiras de morrer naquele século 19, em que multiplicam-se as cren-
dezembro de 1867), escreve Caroline em uma das últimas páginas de seu diá-
ças e os ritos. Esta mantém a grande tradição, acrescentando-U:e uma conota-
rio. Paméla não é mais para Sua filha um modelo inacessível, mas uma irmã
ção familia r extraordinária. Bordado de luto, o céu torna-se o circulo dos inti- l '
nas provações do casamento, nesta ii1sondável rncl; ncolia que parece ter sido
mos. O diário de Caroline comport~ dois outros relatos de "boas mortes":"a da
, ,

o que elas compartilharam. Em suma, a figura de seu destino.


jovem Claire de Bréda e a do avô Brame.
I Com o pai, as relações são necessariamente diferentes. Ex-a!uno da ~co­
Assim heroizacla e santificada, Paméla BrameTequer de sua filha uma ve-
le Polytechnique, engenheiro das Pontes e Estradas, administrador das estra-
neração
, crescente. Como estar à altura de tal mãe? Este modelo\ angustiante
. de
d·as de "ferro, autor de projetos notáveis e futuristas sobre. il circulação parisien-
perfeição leva, de certa Il)aneira, à desistência. "Tua filha compreende o que __tu se, amigo de Baltard e de tudo o que Paris tem com.o organizadores do espaço.
eras, o que tu és e ela não qu~r ser indigna de ti. Oh! como' não dizer ao mundo membro do Círculo Agrícola, perfeitamente integrado na sociedade parisien-
um adeus eterno para abriga~- se sob as asas-do con~nto quando se tem diante- se e na modernidade da cidade, tdouard Brame é um ho.mem público que a
dos olhos uma tal' prova da sa ntidade de sua mãe..." (20 de junho de 1865). inércia do Faubourg devia irritar às ve~es . Um homem ativo, muito otupado,
Não é desta man~ira, mas sim pelo casamento, que Caroline imitará sua ' - sempre de um lado para outro -fato simbólico, ele rry.orrerá em seu carro -,).Im
mãe, Ela a it;voca:a cada instante de seu e"';'contr·ô co m o "Senhor Ernest" é at~ .ausente que é sempre esperado, geralmente em vão, e que detest.1 esperar.
na pr6pr,i-a noite de seu casamento,·em 19 de abril de 1866, ainda solteira, em Acompa nhando Caroline a seu confessor, ele se impacienta ao, não encontrá-
uni texto que mistura curiosa~ente o presente e o pretérito imperfeito, como lo. "Meu pai, que detesta esperar, não agüentava mais... Uma, meia hora passo u
se tivesse sido completado mais tarde. "Minha mãe, minha mãe querida, há assim, meu pai se'ieVàntou e declarou que não ficaria nem mais· cmco mim~­
I '
vinte anos, em 19 de fevereiro, de 1846, tu também, tu estavaS de branco, pro- tos" (lo de dezembro de 1864). Ela quer trocar,de roupa? "Meu p~i me deu
, ' I
apenas um mmu!.o para fazê-lo".
144 Necrológio de Mouard Bra'!le. O tempo dos homens é medido, precioso e legitimo. Ele apressa o tem-
145 ARNOLD, Odilt. Le Corps el ,'''me. LA vie des religieuses au XW sitcle. Paris: &uil, po das mulheres. !douard perturba muitas' vezes os projetos de Caroline. Ela
1984, fuja longamente destas..maneiras cj.e morrer nos 'Ol\~n tos do. século 1-9. Cf. blasfema quando ele traz algum convidado imprevisto para jantar. Ela se quei-
também os livros de Pnilippe Ari~ e M,chel Vovelle.
I ,~ _ . " '- xa de ser obrigada a modifica r sempre 'seus planos, Com o sentimento de não '
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ser levada em, conta. "Meu pai não desconfia da tristeza que ele me faz ,sentir tro espaço social e material, um outro rilmOi ' uma outra linguagem, outros
ao obrigar-me sem cessar a fazer outra coisa diferente daquilo que me ocupa" .. pensamentos. Entre-os ~omens, menos devoção, menos lazer, ainda que ~te
(26 de julho de i865), À imagem de um poder dos homens que não se exerce , laZer faça parte do sistema como a distinção 'suprema,141 os neg9cios, a cie.ncia,
somente na esfera pública, mas rege até os detalhes da vida privada. a técnica. Car?lin ê detesta aqueles terríveis jaatares de engenheiros em que, de
Jovial e sociável no Circulo, na cidade, Edouard, en; seu laf, que ele con-
, temp~s em tempos, ela deve fazer as honras da rua Saint-Dominique: "Eles s6
sidera como o rep6~~o do guerreiro. é sempre "triste e\cansado'~ Ele tem "negó- falam de máquinas, nada é ·mais tedioso ( !.. ). Penso que não serei nunca a mu-
cios", preocupàções. "um fardo" um tant9 misterioso para Caroline que fala dis-
lher de um engenheiro" ( 11 de gezembro de 1865). A estes jantares, que os ter-
so co m meias-palavras e interroga-se sobre o seu papel. "O que devo· fazer?
nos sombrios dos homens tornam tão Ifnegros'~ ela prefere o farfalhar das fa-
Como traier alguma doçura np meio de tantas preocupações? Qual é o ni.eu de-
zendas femininas e a companhia de suas amigas! Será que ela endossaria o jul-
ver de filha?" (5 de d~zembro de' 1,864). Esta incerteza. atinge um grau tão' insu-
"_ ga~l1ento ~e Bauqelaire, que via nest~s assembléias de roupas negras "um
portável na Lille sombria e gelada, que Caroline chega a "desejar sua partida", e
imenso desfile de agentes funerários. Coveiros politicos, coveiros amorosos,
recrimina-se em seguida. Então, ela fica muito tempo perto dele, ".c onversando
coveiros ~urgueses. Nós celebraremos todos algum enterro~u,
com ele para fazê-lo sorrir" (7 de dezembro.). Mas o que faz Édouard sorrir?
Nada a esperar de Paul seu irmão. qua!To anos mais npvo dO" que ela. Ele
Entretanto" ~douard Brame se preocupa com sua filha . Atencioso, ele
é também uma preocupação constante para CaroJjne que sente responsabili-
lhe oferece "Um charmoso buquê" em seu aniversário, convida:'a a ao con- ir dades so bre,o irmão, com grande dificuldade em assumi-las. Paul tem a saúd~
cert~.leva-a à casa de seus amigos) passeia com ela nos g'r~ndes bulevares e até
frágil; ele te.ve, c~mo sua mãe. uma pleurisia, cuj~ sinistra I~mbrança pesa. so- _
no Bois de BouJogne, oferece-lhe a viagem para a Itália, alargando, em suma ,
bre toda a família. Ele é pálido, fraco, fechado, distante, " Porque Paul é tão tris-
o mundo um tanto confmado em que ela se move. Enfim~ ele se inquieta com
, - te? O que ele tem?" (5 de junho de 1865), interroga-se sem ceSsar Caroline. "Eu
o seu futuro, ou seja, com o seu casamento, ao contrário de certos viú~os que
me pergunto sempre, co m tristeza, porque ele é tão sédo, tão frio até" (2 de ju •
. procuram conservar suas filhas. No d ia de Ano Novo de 1866, ele dá a sua mão.
lho). Pa~ é interno em um colégio parisiense. Ele vem para casa nos feriados,
Jove'm ~ulher, Caroline apreciará mais o seu paU unto do qual. aliás, ela
e nas férias, tardias naquela época. I'" NaJua ·Saint-Dominique, ele parecI! en-
procura ficar. Quando solteira,.ela pensa que ele não a compreende. "Meu pai
tediar-se e G.1roline não sabe o que fazer para dis.traí-Io, Ele se anima um po u- .
é muito bom para mim, mas ele compreende muito pouco o que eu sinto, o . , I: I
co quando vêm seus ªmarad.as, ou em 4 Cave, aquele lugar bendito onde pa-
que é muito natura!!" (10 de junli,,-de 1965).
rece"divertir-se enfim. Paul'sai mais com seu pai que o leva ver exposições parà
Natural, porque o mundo dos homens se opõe ao mundo das mulhe-
completar asua educâção. E Caroline se sente inútil: "Eu me p'eigun'to secum-
r~s, naquele coração do século 19 em quç: o público e o privado formam dlJ.itS
esfebs tã9.distintas que homens tão d.1fer~ntes quanto Michelet e Tocqueville, pr~ inteiramente meus deveres de irmã" (28 de maio de 1'865), Ela gostarta de
e aindã mais os Republicanos,·.t6,começam a deplorá-lo. ~ud? os opõe:-um ou- lhe falar, de_acarinhá: lo, mimá-Io_ Mas o "pequeno Paul" chega aos seus quin-

146 Foi provavelmentt durante o Segundo Im~rio que a distinção,das esftras e dos
Mmc. Swetchine, lO-XI-I 856, (Euyre.s completes; t."XV, v. 2, Correspondance d'A. de
Tocqueville et de Madame Swetchine. E.ditée par Pierre Gibert. Paris: Gallimard,
pa~is sexuais atingiu seu grau mais forte. Mas ela começa a ~r contestada e é o
1983. p_ 292.
que faz a as~reza das discussões sobre 3 educa~o das meninas nos anos "1860, que
Itvam a uma verdadeira cri~ em I 867:Cf. MAYEUR. Françoise. L'ElISeigncnlcnt 147 Thorstein Veblen, 1iJt! 1iJeory 01 the Ltisurt Class ( 1899).
seco1Jdaire , des jtuna filies sous la ~sieme ..Répllblique. Paris: Fondation Nat. ~ 148 C. Baudelaire, Curiosités tsthétiqucs; UI, Salon de 1846: XVIll, De I'hérolsme de la ~jt
$ciences Po. 1977 e L'2dllcah01J des filIes au XJ)(t sitcle. Paris': Hachette, 1979. . modertle (1846). Paris: Gallimard, La Pléiad~, (Euvres, t. li, p: 134,
Tocqueville dtplorava o desinteresse d~s mulheres ptla coisa pública. Cf. carta ~ 149 As férias de verão começam entllo por vo lta de 15 de agosto e duram at~ ou tubro.
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ze anOSj ele faz seus estudos, .seu s e.,,<ames, tem outros pensamentos. Caroline , Estes conflitos explicam a quase ausência, nas relações c no diário que
choca-se cOJ~tra a opatidade de um adolescente que se furta e talvez se retrai as relata l do tio Jules e, em um menor grau, da tia .I;:miLie que não apreciara
diante do universo feminino. ~aul é um homem, um outro mundo o espera. muito a~ condições do casamento de sua filha. Ambos reaparecem no momen-
Ele ainda não sabe que sua Íl,ltura mulher, Marguerite I!vain. já cruza aquelas. to do próprio ~samento de CaroLine, como se esta te~imônia marc."lsse uma
paragens. Marguerite que morreria, ela também. aos trinta anos ... ~régua (uma reconciliação?) na longa rivalidade que opôs os ramos mais ve-
A família, erií:~tantoJ hão se reduz'àquele estreito núcleo. O ramo ma- lhos e mais novos da família, e sobretudo, Jules a l::douard, aliado de sua irmã
terno é representado· apenas pelo tio-avô Gatteaux ( 1788- 1881), cativante per- Cél.i~ e, esposa de Mortimer Ternaux. ,
sonalidade, amigo de Ingres até o cemitério, pois se u túmulo ladeia a sepultu,- Com estes últimos - o tio Louis, a tia Céline e sua fLlha Marie -, Caro-
ra do pintor no Pê.re-I.:.achaise. Amigo dos artistas e colecio nador fervoroso, line tem , ao çon~ário, relações quase cotidianas ... ainda que e·les morem na
este solteirão tivera um grande pap.el na educação de sua sobrinha Paméla, órfã margem direita, na tua da Pépiniere. Tia Céline mantém Caroline com a lem-
desde cedo; ele se ocupa também muito de Caroline, que menciona com calor brança de sua mãe ~esaparecida; mas ela tenta também suprir a sua falta, Ela
os jantdres freqüentes e as conversações com o velho homem que será seu pa- assiste a jovem em seus deveres mundanos assim co mo em suas empreitadas
drinho de casamento, como havia sido do .c asamento de sua mãe. Ao jovem ca- de caridade. Ca~am enteira obstinada, foi provavelmente ela quem tramou a
. sal Orville, ele abrirá co.mpletarnente a bela casa de Neauphle-le-Vieux, que aliança. com Ernest Orville, assim como, dez anos mais tarde, a união entre
ndouard Brame, empresário impenitente, se compraz em transformar. Paul e Marguerite Évain cujo pai fora colega de seu marido na vida parlamen-
Os, Brame são muito mais numerosos. Uma verdadeir~ família do Nor- tar. Tia Céline, figura e..'Cemplar, como existem em todas as famílias e em todos

'J1 te, de empresários e de mulheres d_evotas, daquelas que fazem da vida domés -
tica um culto ,..e que entrarp na religião quando ficam viúvas, como no Antigo
os romances,1lI0 provavelmen te teve' um p~pei(:)ecisivo no 'destino de .Carolin~,
para o melhor e para O pior.

Regime: como Marie Brame, filha de ~mile Brame e de ~milie, casada contra
a sua vontade com Achille Wallaert, de uma poderosa dinastia têxtil, que aca-
. -
De resto, Caroline compartilha de todas as alegrias da famílja, Assim, a
recepção do tio ao Institut de France: "Boa nova! Meu tio Terna'ux foi recebi-
baria s~ u s dias co mo superior.3 de convento. Os Brame ocupam, .~m Lille, os do no lnstitut! Ele é membro deste corpo de sábios de que nossa França tem
altos postos 9.aquela sociedad~ que Caroline não aprecia muito. Eles se encon- tanto orgulho! Na seção de ciências morais e. ·políticas! (.. . ) Obrigada meu
tram bem c~m a expansão do Segundo lmpéri?; alguns ade,rem ao bonapar- Deus ( ... ) Te Deum! Eu me lembrarei de algo doce; no momento em que meu
tismo, como O tio' JuJes, O mais 'velho, que faz uma longa carreira de deputado: tio foi nomeado, nós estávamos no Oratório, minha tia, Marie e eu, rezando
abre, em 1867, um baile oficial com a lmpera~iz e será até ministro, ministro para que tudo desse certo! E esta prece, vós a atendestes, meu Deus, obriga-
....., ·de última hora, pOUCO antes da derrota de Sedan!. Nem todos. os Brame, de res_.... ..
. c!a" (11 de março de 1865), Mais d~ que a estas prece5, .o tio Tttrnaux devia a
I
to, compartilham de sua opção política. . sua eleição a suas _obras- hlstóricas, que o Nouveau Larou.sse fllustré descreve
A niorte do patriarca, Louis Brame, grand~ empreitt:iro de obras públi-
/
. como sendo "nitidamente contra-revolucionárias e infelizmente muito par-
cas - o bom papai Brame - sacode um edifício familiar já bastante desgast~do ciais": Ln Chute de la .Royauté (1854), Le Peuple aux Tuileries (1864) e L'His-
toire de la Terreur (1862-1869)'~' cuja leitura esclarece-a fisionomia política e
. Fontaine,
e /sobretudo abala . aquele local de reuniõês assim como de cobiça.
Castelo, que nas combinaçõ"es familiares, acaba sendo atribuído a Marie e
Achille WaUaert. As tensões 'de inter,esse são muito vivas e escurecem as tem- ISO Ver, entre cem exemplos, o pusonagem de tia. Ma, ela tambtm esposa de um mem-
poradas em LiUe. Caroline, que detesta o~ conflitos como um rasgão num te- bro 9.0 Institut. em Le Ljelltet'UmL~CoJonel de Maumort de Martin du Gard.
cido, evoca-os com um pudor que não d.elxa suspeitar a sua intensidade, Nos- . 151... Este último livro, inac3bado na ~poca da recepção ao Institut, valeu a Mortimer
Ternaux o grande prêmio Gobert em 1870.
sa pesquisa nos mostrou como ~les forarri dJ:amáticos. ...
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• ' """, . Úf1'Olint, """" jovem do f,1II/1(1IIrg Saint-Gcnllllltl


dUNnto:" Sttutwk [mpirio

ideológica do faubourg Sflint-Geclllain naquela época, ao menos em sua fra- , ras': escreve ela, já nostálgica: ".Finalmente, nós não somos tão numero.sas,
ção mais conservadora. muitas desertaram o aprisco" (27 de novembro de 1864).,
Quanto a Marie Ternaux, "minha prima bem-amada", tem em seu C3- As moças da paróquia fazem o catecismo, realizam as coletas, animar;n "

sanjen t9 com O Barão Edmond de Layre um episódio deéisivo do diário e da as obras, organizam bingos. Elas estão em todos ~s ofiçios e ém todos os ser-
existência de Caroline, â primeira bred13 séria naquele grupo de moças ao ' m ôes. Elas bordam. ornamentos sacerdotais
, e visitam os padres, confidentes
, de
qual ela é tão apég;da e cuja dissolução. muito rápida a seu ver, mer~ulha-a suas alegrias e de seus pesares. Nos saraus familiares, elas os cercam de seus
na melancolia. cuidados e de suas traquinagens. O Senhor de L'Escaille, pároco de Sainte-Clo-
,tild.e, assíduo nos jantares Intimas. é um con~iva apre~ado, "bom, alegre, tra-
quinas'; quando ele não cede à sonolência: "Hoje, ele buscava apenas urna pol-
o CíRCULO DAS MINHAS AMIGAS' o')rona para nós esquecer todos nas deHcias do sono" (9 de maio de 1865). Esta
brincadeira, um tanto travessa, um tanto maliciosa. fa z parte dos hábitos ede-
,. o grupo das moças, o "circulo" comd diz Caroline,lSl é, neste caso, im- siásti~os. O clero veja, com U(U cuidado enciumado, sobre suas jovens ovelhas,
plantado no. Faubourg e, mais aj~da, na p~ar6quja. Nem pensar, aqui, naquelas cuja importância futura ele conhece bem. Ele está mais interessado em fazer
amigas de internato que marcam por muito tempo a vida das mulheres. como ,delas ,futl:1ra s mães do que virgens, No m.omento em que um grande debate so-
foi o caso de George Sand, por ex~ll1plo. 1S) br~ ' 3 educação..das moças abre-se, na França, a paróquia de Sai.l).te-C)otilde
O grupo tem duas d.i~ensÕesJ que co rrespondem à sua dupla função., mima as suas meninas e as educa devotamente no seu colo.
religiosa e mundana. Primeiramente, ele é ligado ao rito de p-a ssage m maior As' moças têm. entre elas. todo o .tipo.d~ conivências: a devoção, eviden-
que é a primeira 'comunhão lS4 (1859 para Caroli~D e), seguiqa pelo catecismo de t~mente, mas também as saídas, as compras, as cartas, as confidências, inter-
perseverança, os retiros e a recepção na co nfraria das .Filhas de Maria. Caroli- mináveis tagarelices, o riso e' as ·Iágrimas, esta dupla COflspi~ação. "Somos
ne encontra alj Marie Hol.Kert Marguerite de Fontanges, Th·érese de Bréda e é ' crian'ças quando estamos juntas! Não há IQucuras que nãO façamos de imedia- .
em term os delaixa etária, quase como uma coorte, <l,ue ela evoca suas prá~icas to! Desde que riamos, o resto pouco importa" (13 demaiço de 1865). Rir de
.,
co n"luns. Grande local dos encontros: a capela dos Catecismos, na rua Las Ca- , .
tudo e de nada, rir às gargalhadas, às escondidas, acessos de risos e risos 10u-
ses. "Caro catecismo, asilo de meu s primeiros' anos, capela ·t ,em-amada.. .. -O cos: ':Os acessos de riso são algo,terr'ível" quando ,ele~ as toma~ na igreja; com- ,
Maria, co.mo eu estava bem p~rto de vós, no meio de ininhas caras companhei- placentes, os ·padres associam-se a estas pequenas conjurações. "Dizer boqa-
gens", divertir-se, fazer-se de loucas. Beija.r:-se, acar~,ciar-se. Jogos inocentes aos
i , qu~is, no en~an to, todas se fuqam quando to.(nam -'Se sérias. co'm o as pessoas
52 . AGULHON, Maurice. u Gude dans la France bourgeoise. 1810-1848. Erude lI'une
nlUtatiotl de jociabilité. Paris: Colin, 1977. Neste estudo clássico, M: A. mostrou o. adUltas. Como Matguerite de Fontanges, aquele pequeno diabo me~a morfo­
'caráter masculino. do ICfr~ulo. ~ interes~nte ver Caroline retomar esta expr~o seado subitamente: " Como ela se tornou razoável e séria! ... Fico es tupefata.
'para o grupo informal ~e suas amigas. • . . ,
Apesar de tudo, ela ainda é alegre e até mesmo louca, Quantas Dobagel,ls dis-
153 Histoire:de ma vieó Sours ·la direction de Gebrges Lubin. In: cruvres autobio-
grafiques. Paris: Plélade Gallimard, 1970·. I, p. 870 et seq. semos! Por mais q~e eu a beijasse, 'ela g~alrnenteo~ão estava disposta a devol-
154 BONNET. 5.; COTTIN. A. La eo""mufiotl solemlelle. Paris: 1969; R05ENBAUM- ver .meus beijos, então co mecei um a gllerra contra ela" (28 d~ no'v embro de
DoNbA:~}iE, Catb"erine. L'flllage de P\été erl France (/814-1914). Paris: Mu.~e- ' 1864). Privada dos carinhos de sua mãe, Caroline suspira: "Eu p(eciso, mais do
galerie de 'Ia Seita, 1,984,' d~ uma séri~ Jde im;agens desta época, Caroline ·fez sua
qualquer outra, de beijos, de..carinhos. eu preCiso desabafar no ~oraçã.o de uma ;
comunhão de maneira muitô clásska, aps dQze anos. . .
, . ,_
,I .,. amiga" (3 de maio de 1865).
.... ' \

116 . ,
~
117 .-
1'Ilrtt I . Cnplwlo4
n.", QllvU/te, uma jÓI'tm rio Fauboll/'g Stlint-~;rllaill
dllranh! o ${>grmdo Iwl'irio

Chorar também. A5 lágrimas, que a decência manda secá r em público,


. ,
irmã de Albert, enfim: Thérese, a ~miga de inverno, Stéphanie, a amiga do ve-
exceto nas grandes çircunstâncias - assim, quando morre o bom par Brame, rão, desenham duas vertentes da vida e do 'coração de C1roline . .
'''todos nós chorávamos", inclusive os homens -. é importante contê-las. Orando, rin'd o e d10rando, as moças se'apóiam para abordar o mundo,
"Quantas vezes tive 9ue'conter minhas lágrimas'" Apresentar um rosto Uso é este novo mundo que ~ ameaça e as espera. As recepções são os' acontecimen-
fechado, inexpressivQ como o das virgens de Bouguereau, controlar sua apa- tos e as provas de suas existê.ncias. Depois da missa, o baile é sua principal preo-
rência: tal é o ideãí de wna civilidade que, em matéria de pretenção das emo- ~upação, Baile d~ moças, como Avy o pintou: imaculado, sem as manchas ne-
ções, atinge eptã.o seu ' apogeu e faz da impassibilidade uma m etafisica. LSS "O gras dos homens. l~ Primeiro baile, no qual, sob o olhar vigilante e indisçreto
riso e as lágrimas não podem :se deixar ver no paraíso das delícias. Eles são das mães, elas faz~m sua "entrada", como outrora um monarca em sua ~dade.
igualmente filhos do pesar e yêm porque o corpo do homem nervoso não tem Baile de festas, como os da Terça·feira gorda ou da mi-cnrbne, em que a auste-
fo\rças para os limirac", escreve Baudelaire,'56 ridade relativa do Faubourg tem dificuldades em conter o apetite sensual do sé-
Chorar privadamente. às escondidas, como fizera sua mãe. C:qn.1 ami- cujo. Bailes mundanos de todo tipo, em que se esboçam apresentações porta-
gas, es te par.tilhar das emoçõeS" e da~ lágrimas é petmitido. qaroline chora com doras de 'futuras alianças. Elas dança m, ah, como as moças dançam! E Caroline
.Th~rese de Bréda a morte de sUa prima Claire, levada ainda muito jovem pf;la vibra: " Eu amava aqueles salões tão aleg res, aquelas danças, aquela alegria ..."
febre tifóide, no castelo da famma de Plessis-Brion. I .f1 Estranha doçura: "cOmo Frágil esquife naquele "mar agitado do mundo': O grupo das moças.é
apenas uma sociedade passageira, um pequeno grupo informal. e transitório
eu me sentia bem junto de minha, querida amiga, hoje que . ela estava triste. í
a prerrogativa da verdad,eira amizade, compartilh;lc os pesare.s e as alegrias dps que n ão terá a solidariedade dos camaradas dos colégios, futQros "bandos" e

! que se ama e estar sempre presente quãndo eles sofrem" (17 de fevereirQ de
.
1865). E que alegria suprema, quando se pode comungar juntas, unidas !los
m~smos pensamentos, na 'mesma emoção, na mesma prece.
. -'
franco-maçonarias de negócios, mantidas pelas associações de ex-aiunos. mui-
to ativas no ~éculo 19. O mundo ameaça as moças e Caroline inquieta-se cQm
as suas marcas: "Infelizmente, o mundo já tem dominio sobre ela!" $uspira Ca- ,
roline, a respeito_,d a bela Diane de Brou. Ela se tranqüiliza .lo vê-Ia como in-
Este privilégio é dado apena$ a algumas amigas: Marie Hglker, Margu~­
ten,d ente no ca tecismo, O casam en to, sobretudo, dizima o grupo de.moças que
rite de Fontanges, Thérese de Bréda sobretudo, que tem a imensa superiorida-
.Caroline vê dissolver-se como a neve sob o sol: ela não tem muita certeza de
de de ser ~ma vizinha, morando no número 26 da rua Las"Cases, e em cuja
que este sol seja o sol da felic.idade.
casa se pode ir sem acompanhante. Thér,ese, a p.rimeira a quem Caroli~e anun--=- \
C1 roJin,e faz a crônica, destes caSamentos com mais ansiedade do que
da "~ grandF novid,ade"; Stéphanie Dumont, lJ~ais terrestre e mais alegre: a
com alegri,a. Volta da Itália: Berthe Debange "casa-se tàmbém! Decididamente
' todas as miflhas amigàs partem e Thérese tem ra~~ ao dizer qu~ quanto mais
155 ·2.UAS, Norbert. La Civi/isarion des mreurs (19}9). Paris: Calmann-Uvy, 1973, , envelhecemos, mais nos privamos das coisas doces e agradáveis. Apesar de nos-
(CoU, Pluriêl). Anne Vinceni defendeu wna tese sobre !<L'H,istoire des larmes au
sos dezessete anos, já s?bemos usar esta linguag~m" (25 de novembro de 1864).
XJXt sikle': Paris VII, L985.
O casamento d~ Senhorita de La Rod1e inspira-lhe "pensamentos tanto tristes
156 BAUDELAlRE. De 1'esse~ce du fire. Paris: La Pléiade, 1855. Oeu'vres, t. U, p. 168;
sobre as funções do riso eritre .os adolescentes', ve r as observaçOts muito sugestivas _ quanto alegres" (27 de-dezembro de 1864) e o de Marguerite Desmazieres, esta
de SARTRE, J.· P. 'L'/diot de la fnmiIJe. Paris: Gallimard, 1~71. t. li, p. 1,227 (o aces- obs(:rvação desenganada: "Não. sei por que todos os casamentos me entriste-
so de riso), "a seriedade do cómico e o c?'mico da seriedade", etc. cem" (25 de março de 1865).
157 O castelo de Plessis-Brion, a cerca de dk quiló~etro$ de Compi!gne, foi adquiri- , ,
do pelos de Bréda em 1786.,Ele contin10u nesta fumflia até logo após a Primeira \
Guerra Mundial. I .. 158 AVY. Marius-Joseph. Bal b/tlne. Paris: Museu do Petit Palais, 1903.
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118
119
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Pa/'te I
Cap',ulo .,

""'. CÀroIin~. ,muI jovem "" fim/to"", Sdint-Gcrlllgin


dUfAnte" SqUnDo f.lllpüio .

o casamento de Marie Ternaux, sua prima. m.ergulha-a 0.0 desencanto. · ,Caroline fal: quotidianamente a sua lista. liVro de contas, carnê de~ baile ou de
'~N6s estamos contentes com sua felicidade! No e,n tanto, não esc.o ndo, custa- visitas: o mundo tema , ua economia, tão séria quanto a dos negóciQs. Uma .
me pensar que nossa intimidade de moças vai desaparecer» (lO de abril de'
\ - ' -
centena de nomes formam' a lista dos Brame, 'alguns habituais (de Bréda, de
186~ ) . Ela volta a este assunto sem cessar, nos dias 'Seguintes: "Há momentos ' Fontanges, de Missol, de Layre, Bnrbet de Jouy, Baleste, Holker, Bourgóis, U~
tristes para mim, não posso dizer o que s~to ao pensar neste casamento" (21 pine... ), outros mais ocaslonais (de LihUSi de Mortemart, de Beauveau, de Da-
de abril). Ele aumen~a a sua solidão: "Não se compreende o q~e há de dolQro- inas, de Ségur, de Pitray... ), outros, enfim, excepcionais (de Vassart, de Beau-
50 para uma moça ao ver uma amiga casando-se; se a afeição continua a mes- mOrit. .. ). Os no~es com a ,Particula nobre "de':'compõem a metade deles, com
ma, a ~ntimidade se enfraqu ece."·O sofrimento é ainda mais forte porque Ma- um equilib~io relativo entre a .~ntiga aristo~racia e a rioqrcza do Império (ps
rie é mais do que uma amiga: ,uma prima, wna irmã. "n.
minha última prima, tvaln, os Reille, a princesa d'Ess)jng). Belo salão, em sum.a, para um a familia
eu continuo a única solteira e este .pensamento me entristece profundamente» de origem burguesa"cuja fortuna vem do servi.ço do Rei (os Gatte~u."() e mais
(3 de maio). ãinda da indústria, -mas que parece ter buscado obstinadamente um sofiho. de '
Caro Une acaba de fazer dezo ito' anos e eis que pass~ a ser a "decana" das ascensào aristocrática, para as mulheres, ,c omo o sugerem o casamen to de Ma-
filhas de Maria. "Este título me assusta e com razão! » (12 de maio de 1865). O .rie Ternaux e, mais tarde, O da s duas filhas de Caroline ...
es tado de moça s~lteira é precário', $obretudo no Faubourg; onde elas Se casam Diversas redé's se encontram e s~ sobr!!põem: os pintores e os artistas do
jovens, à maneira aristocrática, com homens o13is velhos,'" às vezes, muito círculo social do tio Gatteaux: as viúvas de lngres e d~ Flandrin, qs Héb~rt, os
mais velhos. Berthe Debange desposa um "'3migo de seu pai que tem o dobro · Lépine - Jules é um amigo Último -, Gustav~. Doré tão elegante; os engenhei~
de sua idade': o que otVsca Ca roline: "Isto não me agradaria nem um pouco" ros, ex-alunos daJlolytechnique, arquitetos, médicos .. : ligados a E.douatd Bra- '
(25 de novembro,de 1864). Sinal de q~e ela tem outros desejos. .1 me; os vizinhos de castelo ou de paróquia ... No con.jpnto, este meio não brüha
Este sentimento da (uga~idade das coisas alim ~nta '3. nostalgia
, de Ca .ro - por sua ousadia filosófica' ou estética. Nenhuma Ie1ação com o salão intelec-
line, tão sensível à fuga dos dias. Ele lhe coloca, ao ~esmo tempo, o problema .tual e lipera] que Madame Swetchine mantinh;1. no mesmo lugar alguns anos·
de seu fu turo. . antes. Sua arte é a arte do século, se u gosto, o meio-termo, sua politica, a do po-
der. Os Brame, por se u lado, aderiram com maior ou menor entusiasmo ao
" Império. o tio jules é deputado bOJlapartista do Norte. O pai de Caroline re-
· -
o MUNDO .
pr~senta bastante', ~em esta elite sa ínt-simo~ista qu~ -viu· em seu desellvolvi-
menta econól~lico e no progr;esso técnico do regime - o progresso da s~Exposi­
Além da família e das amigas, as relações mundanas desenham U~l ter:- ções Universais e das estradas de ferro - o coroamento de .seus des~jos e de seus
cei~a.círculo, facilmente identificável, graças ao cuidado nllnucioso com o.qual talentos. Mas l eria necessário,conhecer mais sob~e eles, ~a realidade é sem dú-
vida
1
mai; complexa, não excluindo
'. ,
-as divergências e as rivalidades.
De tudo ist~. nada é tratado no diário de GarolWe. indiferente à políti'
/ 159 SEGALEN, Martine. Sociologie de la famille. Paris: Armand Colin, 198 I. p. 108 et seq. .I
LEBRUN; François. lA vie conjugaJe sous I'Allcien Régimt. Paris: Plon, 1960, identi· . ca, assunto de homens, e à técnica, domínio dos engenheÍ.!'o5-:' Somente duas
ficou este modelo do casamento aristocrático caracterizado por uma idade relativa· vezes a atúalidarde aRora. Enquanto passa ao longe - nos grandes bulevares - o
mente baixa (vinte e um anos para os homens, dezo ito anos para as mulheres). No cortejo fúne,bre do duque de Morny. Caroline deplora q~e a cu~iosidade pas
s~c ulo 19, a idade do casamento avança,lentamente; em lMl -186S, ela ~ em média
d~ 27,S para.os homens ~, dc: 24,4 para ~ mulheres. Caroline e suas amigas casam-
, massas esteja tão pouco interessada 'à salvação de sua'3.lma que é esperada peIo
r
f>~ jovens, com homens nitidamente 1l1ais 'velhos. Dez 'anos 'de dlter~nça entre purgatório {13 de março de~ 1865). Mais t~rde. e ml;lÍto mais longamerit~, a res-
Çaroline e Ernest. " peito do heroismo dos zuavos pontificais que defendem, em Mental13, o Pap,a
" '.

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contra Garibaldi ( 12 d.e novembro de 1867). A política s6 entra em cena pelo Ela f~z do Faubourg Saint-Ger main um local 'privilegiado da memória e do
viés da moral ou da religião, ou peja 'guerra, como mostram as cartas de .1870- tempo perdido, cuja procura é a busca de um absoluto e até mesmo de uma
1871, de um tom completamente diferente. eternidade.
Caroline torna-se, so'bretudo, o éco de uma vida mundana cóm dom i- Mas ter um '''dia'' não seria algo bem ousadQ qu~ndo se era uma órfã de
e
mUlte feminina cujas vi$itos os "dias" são os ri!os e as obsessõ~s. A partir de dezesse te anos? As jovens solteiras habitualmente não os têm . U~la 'amiga. lhe
1888, anuários tespe6a'!izados, como Le livre d'or des Salons, fazem a lista dos tonta um mexerico do Faubourg. <lEia me di sse que achavam singular que eu
salões e dos dias em que as donas-de-casa recebem. Passa-se ali maior 'o u me- tivesse um dia. Soube que era a Senhora C. D. quem o dissera. O que não m,e
nor tempo, se~do suas conveniências, idade, posição, -grau de intimidade. surpreende em nada; Esta senhora nunca me agradou." E Caroline medita sua
Caso se esteja apressado. deixª-se um cartão para lembrar a dOI~a-de-casa . Ca- vingança, prova que um ponto se'nsível foi tocado: "Evidentemente, f,e um dia
ratine dedica"" maior parte de 'suas tardes às visitas. Ela chega a ir à casa de dez eu for Senhora, ela não receberá de mim nenhuma visita de boda!" (27 de ja-
I pessoas diferentes: quantas escadas! ela susprra, sinal de wna fragmentação das neiro de 1866) . Ter seu di)1 é reto mar a chama das mãos de sua mãe m orta, se-
mansões em apartamentos. Este dever pesa-lhe muitas vezes: "Dia per(eita- guir os seus passos, afirmar-se como mulher do mundq;.ter sucesso é ser reco-
mente .a tordoante ( ... ) Precisei fazer visitas o dia inteiro!" Ela julga estas "obri.: nhecida como tal. O que está em jogo é tanto in~ividua l quanto social.
, - -
gações de sociedade (... ) às vezes. comparáveis às pesadas cruzes , que se deve Jantar~s íntimos acabam o dia. Ao núcleo familiar sempre ampliado pOF
carrega r." (2 1 de dezembro de 1864). Um calvário, em suma. Uma ucomédia" tios o u tias, juntam- se alguns am igos próximos e alguns daqueles "Senh ores"
. também: l'definitivamente, diz-se sempre a mesma coisa ou, quase" (7 de mar- do clçro. Estes jantáres comuns term inam cedo, g~ra1mentepor volta das. nove
çO 'de 1865), sob retudo em Lille, onde, na ausência de relações pessoais, o ar- í horas; onze horas ~ uma aven~ura: "Nunca nada igual me aconteceu!': excla ma
bitrário aparece ainda mais. Caroline. num desses dia s de excesso, (14 de m arço de1865),
Ent~etanto, rçspeiti dora da etiqueta - ela chega até·mesmo a lastimar o Ao lado destes jantares amigá~eis existem os obrigatórios que s50 wn
seu enfraquecimen to -, Caroline curva-se; tQdos estes- usos. E ela até mesmo peso para ela. "Penoso fardo", diz ela, sobre um jantar de oito talheres em que
os interioriza a ponto de ver na afluência à sua-\<Quarta-feira" e na qualidade a cOlwersação esmorece sem que ela consiga animá- Ia. '(Ah! o papel da dona -
dos visitantes, não somente o .s~.G,aJ da afeição que se tem por ela, mas também de-casa nem sempre é invejável!" (2 de dezembro de 1864). Quanto aos janta-
o índice de sua inserção e de seu sucesso. A enumeração dos presente~ asseme- res de ho mens, caros a seu pai, na tradição burguesa insta urada provavelmen-
lba-se a um quadro de caça. E a cliegada dos notáveis inesperados tem' um va- te à maneirajnglesa, durante a Restauração,:'" sabemos o que ela pensa deles.
lor d~ sacramento. Quanta emoção,. no d~a 8 de março de 1865: 'lEu vi mais Os saraus mundanos;ao contrário, vão facilmente até à meia-noite. Eles
uma vez a porta se abrir e o conde e a condessa de Vassar:t entraram! Madam~ são muito ~ais ~a}iados e~1 Paris do que ~o jIlteri~r. Lil1e perde seu tempo nas
de V-assart é muito distinta, foi perfeitamente arriá~el e me disse que agora ela " I~oitef d~ cartas" gue não têm mais vez na capital. Aqui. a mú sica, o canto têm
viriá, vei'~íne. algumas vezes. Como eles são bons\ de pensar assim em mim, isto um lugar importante. Mas con~ém distinguir os
trechos para a distração, exe-
coritinua a me surpreender." Observemos, no entanto, a degradação do ritual. cutados pelos familiares, sobretudo pelas mulheres (Caroline passa· muito 1
N,enhum lacaio para anun9ar o...Ic onde e a condessa de Vassart. "A porta se tempo ao piano) e os concertos de amadores esclarecidos, como os que o tio
. abre': empurrada provavelmente pelo Senhor de Vassart,- afastando-se leve- Gatteau.x organiza. A ida à Opera Cômica é basta nte co rrente: O "Senhor Er-
mente para deixa~ passar a sua esposa. E que condescendência: <lMin ha crian- nest" é um habitué dos Conce rtos Pasdeloup.
ça, eu virei algumas vezes ..... O. que não imp~diü~.que o brilhó enfraquecido do "
~ cerimonial de Corle sobrevivesse naquêle~ salões derrisório s e patéticos cuja ' 160 l.-N. Boilly, Les J~unes Felllmes, Paris (durante a Rest3uraçlo), 2 V., aconselha as
vontade-d~sesperada ~e imitaçã~' e de. per~etuação>atinge urn grau Il'letafisico.,, ....; 'jove ns casadas a aceitar ~m irrita~o os jantares de homens. .
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Os jogos de sociedade são praticados sobretudo em família e no campo, minuto sequer para ela", de estar submergida, estafada, a ponto de renunciar a
Em Fontaine "jogamos charadas cujas palavras eram bagagem e'charuto. O que j::m tares , de abandonar, às vezes visitas para as quais já estava a caminho, com
foi dito sobre estes pobres fumantes! Até co mpará-los a chaminés!" (29 de ju- O sentimento de cometer uma falta. Voltando da Nievrej ela opõe "a 'vida cal-
nho de 1865). Mas O furor é inte.rpretar comédias. Scribe, apesar de bastante ma, doce, simples" de La Cave a "este verdadeiro caos que vo~ enq>ntrar em
fora de moda, forneçe um inesgotável repertório: Michel et Christine, Les Paris" (27 de maio de 1865). DeZ anos .ntes, Madame Swetcl)ine, após uma
Adieta ali comptoir;"Le Menteur véridique fazem as delícias dos saraus de La ;empór;ada em Fontainebleau, ao 'reencontrar esta mesma rua Saint-Dotnini-
Cave. Caroline se fantasia em "bom pai de Cámília", o que par~ce desagradar Al- ,que, queixava-se a TocqueviUe do "aturdimento' da volta a Paris'~ I~ O terna do
bert, que a prefere como moça... Visivelmente, Caroline é excelente na comé- "turbilhão" parisiense, quer seja mundano, devoto ou de negócios, é wn ,tópi -
dia'. A baronesa de Reille soli ci,ta de ~douard Brame que ela participe do sarau ~o do discurso, mas provavelmente também uma realidade. Estas mulherés da
teatral oferecido pela princesa d'Essling para a Segunda.:.feira de Carnaval de , "classe de lazer" devem ~star sempre ocupadas.l63
1.886. São ,encenados Le Baroll de 'FOIlrch~jf eLes Deux Timides. Caroline efl- O que impressiona', de resto, é o horror ao tempo percUdo, a ausência de
cama uma criada: "Eu estava muito engraçada daquele jeito, sem crinolllJ;t!" ociosidade reconhecida, como tal, a nece~sidade constante de legitima; o em-
( 12 de fevereiro de 1866). A metamorfose do teatro convé~, àqu~a tímida prego de cada instante, de justificar sua utilichtde, seu trabalho. Esta palavra vol-
imaginativa. ta fr~qüentemente sob a plumâ de Caroline. Ela anota cuidadosamente as de- -
Nos saraus abastados, convidam-se artistas: Raoul Pugno, "este peque- darações de um padre jesuíta na conferência ~int-Maurice, em Ulle: "A confe-
nó prodígio que faria crer na ressurreição de Beethoven ou de Mozarr" é, ~or rência era hoje sobre o trabalho! 'O trabalho é obrigatório e faltamos com est..'\
algum tempo a coqueluche dos sal~es. Aliás, é menos ~ 'arte, do que o insólit~ obrigação: 1) Não faiendo nada ou coisas insignificantes. 2) Não"fazendó aqui-
que atrai, naqueles tempos de vulgarização do' magnetisl'!lo e sobretudo do es- lo que dçvemos f.zer. 3) Fazendo m.l .quilo que fazemos" (12 de dezembro de
piritismo. '" Daí o sucesso dos prestidigitaqores e até mes~o dps sonâmbulos, · 1864). Ainda que ã 19~eja não tenha realmente elaborado uma .teologia do tra-
quase sempre mulheres às quais se a.tribui, de maneira clá~sica, ,uma comuni~ balho no 'século 19,16oj sua mensagem é atravessada pelos novos valores. Ora, O
cação p'rivilegiada com o além das ~parências. Caroline vê uma d,elas na casa ócio é, naquele momento, um valor contestado. A Igreja o co ndena assim como
do conde de Verges: "O que me interessoU' muito pouco e até me assustou ( ... ). os socialist~s. "O ócio, o !ar-niente é a aniquilação, é a morte': p.iz monsenhor
Estou intim'3mente persuadida que ela não estava dormindo! Mas apesar de , Dupanloup. A noção de utiliaacJe penetra as consciências e o~ costumes. Pela
tudo, é impressionante!" (31 de janeiro de 1866). vida associativa ,ou~pela filantropia, o ocioso deve servir para algo, à ma,neira in- ..h
,
Os bailes coroan~ a estação mundana: eles culminam na Terça-feira ,Sor- glesa: Até mesrno os motáveis devem ocupar-se,dos assuntos públicos, procurar 'f
da. A m eia-noite, tudo pára; entra-se na aus terid àde da quaresma, interromp,h "faZe~ carreira", o'que não significa necessO;lriament.e g~ar dinheiro.
. - I _
da somente pela mi-caréme, cuja legitimidade é contestada por Caroline, em
nome ao Evangelho. Esta vida ~ coercitiva, fatigante. Corre-se o tem~o todo,
162 Correspondancc de. Tocqueville, op, eit., 14 d~. 1856.
sempre se está apressado, falta tempo. ocNós conversamos sobre todos os pra- , , I
163 Numtrosas observações a este res~ito tm SMITH, Bonnit.lAdia of the. Leisure I
zeres de inverno!,A infc~:li z (u'lna aIt~iga) teve dez bailes! ... Meu Deus como êla
Class. Tile Bourgeoises o[ Nort/re.rn Fra/ICl! in the' 19th Century. Princeton: Princeton
deve estar cansada" (8 de março de 1865).,Caroline se queixa por "não ter um ' University Press, 1981, sobretudo p, 96 et seq.: "Space, tirnt. matter, causality and
aetion':
'-:-.
164 Na verdade, a Igreja é desprovida sobretudo de uma teologia da prod.uç3o. Ela não a
161 Cf. EDELMAN, Nicole. Les Tables tour~'àntes arrivent en France. L'Histoire., n. 75, \ ....
distingue da reprodução. Assinaltmos os anais de um interessantt colóquio: Oisilleti
fevt. 1985 ê também ROÚDINESCq t:lisabeth. La bataille. de "Cem ans. Hisroire. de.
et loisirs dans la sociétés occidentala au X~ siede. Pfésenté par Ackline Daumard. "
' Ia psychanalY5e e.1I France.. Paris: Rarnsayt 1982. v. l, 1885- 1'939. ' Abbevillt: Paillart, 1983. (Ócio e lazer flaJ 5Ôciedades ocidentais fiO 5h:uJo XIX)
'\ 1 ,
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124
.... 125

lI: PllIul Ctp(llI/o .,
7l'uço Úirolinc, um,1 jOI'eru do Fm/bo u1}:' &im-Germain
! d'/Nnlc o Scgunllo Império

o ócio, no final das contas aceitável para os homens, é sempre mau para Hne. Ela evoca o mon senhor Mermillod - !lo meado por Pio IX!,bispo de Lau-
as mulheres que são ameaçadas pela tentação do devaneio. Além disso, Caro-o sa nne, contra a opinião do Co n se1ho~ Helvético - co ntando sua sagração em
.J
tine, filha de engenheiro, dividida entre o ideal a_ristocrático do Faubourg cuj~ Roma: "Pio IX, no meio de todos aqueles bispos que ele' acabaya de. consagrar,
plenitude se exprime 'ainda na harmonia de uma roupa e na perfeição de l:lfl13 enviou-os às diferentes partes do mundo onde havia almas a salvar! ( ... ) Que
I --
recepção, e a atividade produtiva dos industriais do Norte e de seu pai ex-alu- belo momento ele teve ao falar da nêc~ssid8.de de um templo para o Senhor!
! no da Polytechniq:', pode sentir um certo mal-estar. Em todo caso, é signifi- Depois. ao dizer como os pobres também tinh:ul'l necess idade de festas, de es-
cativo que sua opção religiosa, quando ela se questiona sobre a sua possf~e1 vo- petáculos, e onde poderiam eles encontrar espetáculos mais ,belos <lo qu~ no
cação, seja ~ de tornar-se irmã de caridade, não ca:rmelita contemplati,va: de templo do Todo-Poderoso, e na pompa das cerimônias, na harrnon,ia dôs can-
preferência Marta do que M"ria! tos. Eles também precisam de distrações e de, amor!" (lo de maio de 1865 ),''-~
. Um dia de sucesso é um dia bem cheio, em ,que CaroHne terá concilia- A única página política do diário, muito interessante, é relativa a Men-
do três típos de deveres: familiar~s. mundanos e religiosos. A pura "preocupà- tana, evocada Ilao vivo" da casa dos Benoit d'Azy que recebe~n na Nievre O jo-
ção consigo", o direito 'de "esta: no po usio" segundo a expressão do psicanalis-
ta Winnicott, tem finalrnent~ pouco espaço ali. Mas é preciso faze r um grande
, ,
vem casal Orville, por Madame de Saint-Maur, fazendo a leitura das missivas
de seu irmão e de seu fLlho, ambos alistados voluntariamente 'pela defesa do
espa~o para Deus. '
Estado PontificaI. Caroline vibra com o relato das proezas dos zuavos que pa ~
ram os gari~aldinos às portas de Roma, aquela Roma que ela visitou com fer-
I vor em 1864, admirando sobre tudo as pinturas da Capela Sistina em São Pe- ,
MEU DEUS!
dro. O heroísmo dos soldádos só é igualado pelo das irmãs de caridade, pre-
sente~ pela primeira vez no campo de batalha, vanguarda de um II feminismo
o diário, os dias. os pensamentos de Ca;olin,e ,estão imersos na devoção.
Provavelmen te o leitor de hoje,-pouco' habituado com um modelo de cujas re- \
cristão", do qual a parisiense Irmã RosaHe, 'célebre por sua atividade e Sua in-
lativa proximidade, insistê!lcia e influência ele nem des~nfia, terá a ,tentação dependência de espírito, é uma outra figurante, l" Traços de coragem e fonte
de impatientar- se e, do alto de sua liberdade razoável, olhar esta jovem como milagrosa: falta água. "As irmãs .de Sã'o Vicente começaram a rezar e no mes-
uma retardada, um espírito fraco totalmente imbuído em preces. Entretanto, mo instante, descobriu-se uma cisterna escondida por pedras e havia água

I ele deve ter cuidado. AH está talvez a coerência de uma visão de mundà e~ de para todo mundo! " (12 de novembro de 1867).

.
urna sensibilidade, a chave de uma educação e-de uma existê ncia, como foi a
.
de um gr,a nde número de mulheres do século l,? e até mesmo do sçculo 20._
Este catolicismo últramontano e deric~ é muito tradicional em suas
formas. . de devoção e de crença. Assistir à m.issa, confissão, freqüente co mu -
Q Faubo ur'g é um lugar priviiegiado do c~toÍicismo, Catolicismo div~r­ nhão são seus ato~ maiores, C.1roline d,eixa de lado as m,issas tardias, munda-
1 .
S6: !l so' ~bra çle Madame Swetchine, cujo papel na busca de um catolicismo li- nas e distraídas de que seu pai tanto gosta - "Somos empurrados, rezamos m al,
1 11 beral é conhecido, paira .sobre a rua Saint-Dominique. Ainda que ela tenha
.l, sido uma amiga de seus pai·s,. Caroline jamais fala dela. Sua devoção, católica e 165 Monsenhor Mermillod escreveu, al~m de tudo, diversos livr(;s para as mulheres
romana, é inteiramente dirigida pelo clero secul~r, da hierarquia, o clero das cristãs, Conftrence5 aux Dames de Lyon, LA femme du monde selon I'bvangilc. e uma
paróq'uias, que se apraz 'em i~sistir sob re.. a estrutura da Igreja e a primaziã do pub~icação- sobre lA Quwio/l ou't'riere (1871 ), etc.

.1, ' Papa, cuja infalibilidade será logo éroc;:l~'mada, A "constituição da Igreja cató-, \ 166 Sobre o prest!gio da Irmã Rosalie, ver ARNOLD, Odile. Le Corps ct 1'~l1Ie. 'UI vie des
rcligieuse5 du ~ s;ecle, Paris: Stuil. 1984, e LANGLOIS, CI:l.ude, Le CatllOfjcjswc
lica", a "consagração das igrejas~: a justifitação dos faslos romanos, necessários au ftminin, Les congrégatioTtS françaises à sllphieure gtntralc au XJX.C siecJe, Paris:
para a fé dos humildes: eis alg~s dos tdmas de pregação anotados por Car~- Cerf. 1985,

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Curo/illc. do FaUbollrg Snillt.Ct!rmn;n
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não vemos o padre. Seria isso assistir à missa?" - e.prefere os oficios matinais ao qual ela associa ainda m ais"a ~embrança de sua m ãe, por ela ter fa1ecido em
em que, no silêncio e no recolhimento d e uma capela absidial, el<J. prolonga sua um 26 de I)laio (1862). .
ação de graças. Reçeber o Cristo é para ela, um privilégio e uma alegria. que ela Jesus, $eu nascimen to. s ua~paixão, seu coração, seu sacramento formam
solicita a seu confesso r e que ele lhe recusa às vezes, um ato temível também:. o essencial de uma liturgia antes de tudo cr(stica, que culmina coril O ciclo pas-
é preciso de.sconfiaj: dás comunhões i.Q.completas, comungar apenâs em estado cal. Caroline vive cada instante da Semana Sant.a com fervor, angustiada 'n a
de pureza. Np diário, pequenas cruzes na margem indicam ?s dias de comu - Quinta-feira Santa, tris.te na Sexta-feira,' espera'n ~osa no Sábado, eXultante no
nhão: no dómingo, freqüe ntemente na segunda-feira, raramente mais de três Domingo: Sua emoção corre nas cerimÔnias edesiais. Juntamente com o.rosá-
vezes por semana. "Ele me permitiu comungar .três vezes", anotil ela, como ' rio, o crucifixo é o seu objeto de devoçâó favorito. "Ê preciso ter um crucif.xo, .
.. uma exceção. ~ preciso manter com De us a distância. do sagrado, Nestes , dias apertá-lo freqüentemente sobre seu co~açâo, consultá-lo sempre" (24 de mar-
abençoados "em que Jesus desce-no (seu) coração", ela lhe fala, ele lhe respon- ço de 1865).·Ele preside os oratórios que Ca roline gosta de organizar.
de. "De repente, no meio do silêncio, esc uto aquelas' palavr~s que o Meniiio .. A devoção mar iana, em pleno florescim ento,'6f é um outro pólo desta
Deus me dizia quando eu lhe havia "Confiado as minhas tristezas, o isolamento
em que eu me encontrava tão n:iste: Criança querida, eu não sou tu~o para ti? -
" âevoção que, exce.tuando São José, indispensável complemento da Sagrada·Fa-
mOia e intercessor renomado, ou o. anjo d~ guarda freqüent~mente invocado, '
~- .
Oh! Jesus, ~u ,lhe respondi, sim vós sois tudo pp.ra mim e nada exis te sem vós!" negli gencia os comparsas e a maioria dos santos, coni exceção de Santa Ter:esa,
(25 de dezembro de 1864). Para ~Ie, ela abre o seu coração. Até m esmo o dia de Todos os Santos é uma celebração menor, e o hábit~ de ~i-,
E a com"unhão .é ainda m "is doce quando é compartilhada com um a. -sitar os túmulos, que co.m eça a se manifestar, todavia/O ainda não entrou na
amiga muito cara·ou com O g(~PO da moças. "Para miin, não fico nunca tão falJ1íLia de Ca rol.ine. Sensível à morte. ela não o é muito aos en.terros e quase
f~z quanto nes"tes devotos e ferven~es instantes .em que Jesus se d{a rii.~ (...). - nada às sepulturas e aos cemitérios, de que não fala nun ca.
Haverá felicidade comparável àquela de ouvir seu Deus dirigir, ao /'utl'lo do . Maria , virgem e mãe, mobiliza. ao contrário, os fervores. O ciclo maria-
coração, e~tas palavras' que fazem tanto bem" ( 12 de março de 1865). Na fuSão no enriquece-se, em 8 de dezembro,.coni a festa da Imaculada Conceição, cujo .
oficio 'i mul~o apreciado por Caroline. Nas noites de insônia ela pega seu ro- .
. . I'
. dos corações, Caroline co nhece a plenitude de .sua alegria.·uO silêncio, o canto
dos cãnti~os, a devoção, o recolhimento, tudo cativa; tudo penetra, tudo en'- sário. Mas a sua principal ambição é teceber "este belo titulo que cI.esejamos
·canta! Estamos·ali em um santo êxta se ( ... ). O coração é inflamado pelo amor t~Í1to. o· de filha de Maiia~~ cp~ "o libré de Mari~, branco e a~~l. Puro e deli-
cioso"! Ela se prepara paca·isto com um retiro'de vár.ios dias, verdadeira assem- (
e quando nos aproxirpaI?os do amável Jesus, quando os lábios se entreabrem
p.ara recebê-lo, a alma se ~ala, ela ado'r ai ela agr~dece, e dep ois, ela escuta"-(.25 ..'. -bléia de"jovens, rito juvenil cujo 'recolhimento não exclui a a1egria~ , "
il·
de março de 1 86~). Doces palavras, beijos ardentes, penetração delicada, CO" fv1aria é, paca Caroline; dUl?lamente sua mãe: ela ~evotou-se à Virge~
rriunilão íntima dos corações, fusão total: cO mo este modelo de amor 'divino y . no dia da morte de Paméla. Mas esta consagração doóra sua emoção: '<Filha de
I~indo da mística cristã e do amor romântico, será dificil de igualar nos amo - , Maria, quem poderá~r~llir o quanto este título glorios~ e abençoado co~-
I c.es terrestres: O mais ~elo dia de sua\cida, "o grande dia" incomparável, ~~m­
167

tinua <lse'c p~ra Caroline o de sua pri~neíra comunhão, em 26 de maio d~· 1 859, 168 MJCHAUD, Sléphane..MlIse et madame. Visages de la femme rédemptrice en Fmnce
- , et en A/lemagnc de Noyalis ~ Baudelaire. Pa ris: Seui11 885, dá numerosas indicaçOes

as.·m~neiras,é1e
àmart ,cf. Pier~ Viallaneix e Jean Ehrard (edit.), Aim~ en ' .~.
e este .
. respeito. to témpo das aparições:
. 1846, la. Salette;
'
1858, Lourdes.
167 'Sôbre ' °
169 Philippe Aries mostrou como culto dos mortos se instala depois de 1850, quan-
. France (1760-1 860), col.ó-quio de <tlermont-Ferrand (1975)1 publicações' da do o cemitério torna-se "um objeto de visita. um lugar de meditação~ cf. L'Homme
Universidade de Clermont -Ferrand. 1980,2 v. "' devant la mort. Paris: Seuil, 1977.
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lia 129
Capitulo 4
. Partc 1 C:lroli"c, lima jOl'CIII do Nl1IPol/r"t S4lj",-Gt!rlll~j"
Tm,. dUr"al1tc o Stgllndo lm~rio
) .

tém de alegrias, de amor,. de consolações. Ah! Uma filha de Ma~ia ~a seu do sacrifício e da comunhão dos santos. "Que bela vocação': diz ela a respeito
Deus, ela ~ãQ teme as crUzes, as provaçõ~s, os sacrifíciQs e suas alegrias verda- das carmelit·as da avenida de Saxe: "sofrer assim sernpre, p~r Deus, para remir
deiras são aquelãs vividas ao pé dos santos altares ou dó santuári.o de ?>4aria! o~ crimes que se cometem aos milhares e contrabalançar tudo o que se,faz no •
P3ra ela, o mundo é apenas ~!Da palavra vã e, se às vezes o dem~nio coloca suas mundo!" (3 de julho de 1865). Lembramos de Teresa de Lisieux oferecendo sua
armadilhas, ela se le!llbia que sua Mãe .esmagou a cabeça da serpente, ela agonia pela conv~rsão de Pranziui, um' grande criminoso condenado à mortt,
triunfa!" (12 de má;ço de 1865.). Mari~ é, antes de tudo, guardiã da pu.reza e e espreitarydo os sinais de seu arrependimento.
modelo de sacrificio
. . ,
e de al:megação. Caroline a invoca nas grandes escolhas de Daí a importância dos "atos de "virtude" que, segundo ll!l1a pedagogiâ
sua vida. No entanto, nao. tem por ela os arroubos d.o coração, os acessos de . provada, disciplinam a vontade e forjam os bons hábitos, "nem que seja o há-
fervor que Jesus lhe inspir~. bito de se levantar a uma hora fixa, sem acariciar demais seu trav~sseir~;ou aü;-
A oração tece os· ruas, com. a prece privada revezando-se com a preCe
'. da conter uma palavra picante que faria so rrir ao excitar o amor-próprio': o que
pública, marcada também por uma certa i!1~imidade. Caroline dá .um ~&ran­ efetivamente a mortifica. Mas também o catecismo e as obras. O catecismo, sob
de valor a: seu ·oratório,· fazendo ali diversas estações durante o di.a, às vezes, a impulsão d uma p~storal m3is moderna, da qual o monsenhor ~upanloup .
r
acompanhada de uma am~ga queii~aj ela termina ali as suas n~ites: Ela ·o bs- I se torna o zelador/11l m·u da de método: "Não recitainos maís o catecismo: mas,
'tina-se pata obter do bisp.o a autorização para rezar a missa na capela do ca~­ em cóntrapartida, interrogamos sob re as instruções precedentes após a leitura
telo de Fontaine,·de cuja ornamentação ela se ocupa pessoalmente, esvazian~ de uma ata: Como os tempos e as coisas mudaram!" (27 de novembro de, i864).
_ do as lojas de objetos religiosos do bairro de Saint-Sulpice. Quanto orgulho Ela recusa} no; entantó, ocupar ali qualquer função, em razão de. seus encargos
quando, graças ao ap·o io de Tia Émilie e d~ boa vontade do pároco de Croix, de dona-d.e-ca.sa, e se retira da atividade, um pouco mais tarde.
preocupado em contentCif os paroquia~os generosos, o ofício é ali çelc:Pr.a~o! .Os pobreS têm-o rosto das crianças dos asilos e sobretudo das moças ·
No entanto, não há. nenhum quietismo nesta devoção. A Igreja de Pio das casas de beneficência de que ela se ocupa, te m Paris, em Neauph1e ou em .
IX é ~ilitante, porque ameaçada pela incredulidade.lncredulidade·que provo- Fontaine, e 'que são geridas por religiosas. A casa de beneficência parisiense
ca em Caroline inquietud_e e espanto.:Como se pode pensar que a hóstia é so- não vaj muho"bem; falta dinheir~; não se pode fazer_nada pelas órfãs que se '
. mente um pão? Como se pode não .crer? O pensamento dos descrent~s a per- - apres(ntam. O conselho de administração fica "tempestuoso': a~ benfeitoras .
turba; ela gostaria de conve~tê-los; ela sublinha com alivio a afluência à igreja · são _solicitadas e cada' uma decide dar cem francos; organizam-se coletas e
\
e a presença dos"hQxnens. 0 céu é, para ela, uma evidência que',atenua a mor- bj~go s. Este dinheiro serve pa.ra o estabelecilÇlento de moças pobres; Caroli-
te, eS,ta pas~agem su'prema sobre a qual ~la insiste muito: neste 'instante,em que , : ne vai a Batignolles, fara excursão em um bairro' ma}s popul<l:r, para .visitar
a c?municação estabelece-se com o além, a ~·a~eirél: de morrer é ·.tanto. ato e
. Maria Juliej , ela" fica erttocionada
,. com o reconhecimento
. "daquela~ boas me-
quant<) .sinal. Cada. uIl} deve manter seu papel neste drama da partida que é ninas" (7 de março de 1865). As mulheres riqts ajuqain e moralizam ·as mu -
ta~bé;n a alegria da ~olta. O relato da morte do avÔ Brame-é, deste ponto) de lheres pobres.
vista, notáyel. No Norte, sente-se mais fortemente a misérifl. No asilo de Croix,locat-
I

1'1 Simples e até mesmo ingênua. Caroline crê no poder da pr.ece , espiri- dade de operários da indústria têxtil, em que as mulheres· devem trabalhar,
tual, ma~#temporâl também: Em suma, el~,acredita no milagre. Depois da .p ro-
cissão das Rogações, em Croix, ela esàeye: "O lavrador pode ter confiança, a / ,
,. 170 Monsenhor Dupanloup: em se~s Et1tretiens slIr /c Catéchisme, l'reuvre par excel-
colheita será abundante, Jesus pas;ou'~~r pobr..es ter50 pão e compreenderão , , let1ce, pede que n110 se faça mais "gaguejar" o catecismo às crianç..u, mas que lhes
que fqiJesus que lhos deu:' (25 de junhÔ de 1985.). Em Mentana, a prece das seja ensinada a "língua da Igreja': Ele requer a ajuda das .:noças;"est3S devotas pro-
r!ligiosas ·faz jorrar água: Lourdes. nã.o ..e~tá longe ... Ela a<õredita nas virt~d~s fessoras do zelo~
....
. ...
130 , 131
1 "
Qlpfrulo <I
Pi'rlt: I
CÃroIiut. U1VA ~'" no Fllubcmrg 5.:Iint-Gen""in .
""'" dUfIlIlt. o. ~undo ImJ>h!o

quando não estão carregadas demais de crianças,l7I duzentas e cinqüenta o árbitro desta moral é O orientador de consciência, O abade Chevo-
crianças são reunidas em um anfiteatro co~ arquibancadas-çomo as dn s salas jon,'" ex-vigário de Sainte-Clótilde, a quem Caroline e su~s amigas continuam
de um asilo existentes então, para resolver os problemas de enquadramento: 1n
"Nós fomos' sufocados por um odor dos meilos agradáveis" (18 de julho de
'c
.
a se confessar, ainda que ele esteja em terra distante, no. Marais, transformado
.
em objetivo de expedjções semanais. Missa do abade Chévojo n: "Qual" não foi
1865). Terrível "fedor do pobre", "secreções da miséria",m O ·inverno foi rudé. minha emoção, ao vê-lo em sua cátedra! Parecia-me estar. ainda naqueles feli-
"Alguns fizeram dfv(das, outros ficaram doentes, outros ainda estão sObrecar- zes momentos em gue ele -nos falava em"Sainte-Clotilde'" (15 de março de
regados de filhos e de fadiga! Meu Deus. quando se vê assim a miséria de per- 1865). Casula para a estréia do abade Chevojon: "Esta cara obra que me tor-
to, como não podemos mais nos queixar da .$orte que nos foi dada! Ah! 'Corn o nou certas vezes tão feliz, pois eu pensava no instante mil vezes bendito em que
são leves as minhas privações ~iante dos rudes comba tes que estas pobres pes-
ela seria usada no san to altar por Senhor C:' (30 de dezembro de 1864). O aba-
soas devem travar para ter seu pão!" (2 1 de Junho de 1865). Seria excessivo ver
de Chevojon parecia ter uma grapde as~endência sobre aquelas moças, o qu,e .
aí um corpeço de consciência social. Não é menos signjficativo que, no Norte,
. serve para justificar Michelet e todos aqueles, cada vez mais numerosos naque-
o pobre tenha o rosto do operário. Aliás, Paul Brame continuará, mais tarde,
le fim do Segundo Império, que denunciavam a ipfluênda dos padres sobre as
esta via do catolicismo social.
~ulheres, sem, nem sempre, saber por que razão. O abade Chevojon sabe ser.
Há. em Caroline, uma certa reprovâção ' do IlL'{o. Ela critica o alto custe _
apaziguador, mas é austero. Ele tem o sentido do pecado e o temor do mundo.
das caxemiras oferecidas por ocasião dé suas núpcias, o refinamento excessivo
-Caroline lhe confia a aceitação de um baile, num Domingo Gordo? "Ele me re-
da roupas do enxoval de Marie Te~naux, ~ turbilhão dos bailes da mi·carême, a
comendou não dançar com muito entusiasmo, conter-me, ter Deus com~go!
atração de sua ~iga Thérese pelas corridas de cavalo: «ThéJese foi às corridas, ~
Sobretudo nada de .valsas, acrescentou ele" ( 15 de fevereiro de 1865). Ela obe-
ai"da estou estupefata com isto" ( 11 de junho de 1865). Ela considera exagera-
deceu parcialmente: sua dança - galope, polca 01) cotilhão _ é sempre "desen_
do o gosto de s~u pai pelai belas viaturas: "Meu,pai veio buscar-me em um novo
freada': nunca langorosa, mais perto do "eXercido" e do jogo coletivo do que
veículo, uma soberba carroça, mas para quê ela nos servirá pois, no ·momento,
do duo. no qual a Igreja vê despontar a sensualidade da dança moderna, este
não temos nenhum campo?" (9 de outubro de 1865). Cároline ou o anti·dân-
corpo-a-corpo. No entanto, é ainda demais. Trata-se de uma noite de teatro na'
di? Na verdade, trata-se menos de Wl'! julgamento social ou econômico, do que
residência da princesa d'Essling? O Senhor C. "não' parecia muito contente-que
moral. Os ticos têm deveres, a começar pelo de não fazer despesas inúteis e de
eu representasse a 'comédia em Paris porque isto faz falar muito de si': "~ver­
pensar nos pobres - nos bons pobres. Sobretttdo, o luxo é a sedução do mundo
áade':, reconhece da. escrupulosa ( ,12 de dezembro ae 1865). "Não adulai vos- , .
, que aJ~eaça as moç;s-modelo. E isto é ainda 'mais verdade para Caroline, po is
so corpo': diz também o Senhot de l'Esca ilJe. ~ ,
ele. constitui para ela a tenmção, à qual, no fundo, ela é bastante s~ns(vel. . (
i . Caroline dedica-se, de fato, a reprimir, a apagar este corpo, que a devoção
dos conventos"modeJo da educação ~as m~ninas)' transform.a em inimigo a ser .
d71 A condição o~rária no Norte foi objeto de muitas publicações, sobretudo. combatido.'" O .silêncio sobre os lugares do corpo na casa iguala-Se apenas ao.si-
PIERRARD, ·Pierre. La Vie ouvritre à LiJle som le Second Empire ..Paris: Bloud et Gay,
lêncio que pesa sobre as aparências fisicas. Caroline não fala jamais de seu c6r-
1965; LA Vie qllotidie,me dans le Nord au XIX' silde. Paris: Hachette. 1978. Sobre o
trabalho' das mulheres, número especial da Revlle du Nord, "Histoire des femmcs
du Nord", juil.l.sept. 1981. .
174 Padre de vocação catequista 'confirmada, ele é o autor sobretudo de La Perfectjotl
172 Mkhel13Qui llé mostrou o funcignameç.to destas salas de asilo 'em Pédagogies du
des jtu,lIt'S" filies (1856), de um Manuel de la jeune filie cljrtt'ientle (1860) e de um
corps (XV~le.XfXC siêcles). These (DOct4rat d'·e.ta t). Paris.vm, 1984. ' . I _ , NOUllt!iUJ manut'l da catühis,,(c.s que terá cerca de_quinze ediçÕes.
173 CORBIN, A1ain. Le Miasm~ .ella jonqrJiIlt'. L'odorar el l'imaginaire social. XVlJ~­
175 ARNOLD, OdiJe. T~ Corps et l'''mt'. La vie des religieuses tlU X~ silc1e, Paris: Seuil,
XIX! silcle. Paris: Aubier-Montaigne, r 982, sobretudo a IÜ· parte, Cap. I, " La
1984. atribui 'um papel particularmente importante às atitudes ligadas a9 corpo.
.Puanteur du pauvre-. • '-
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Ptlrte I Ctlplrulo 4
C<lroJint, !l1I1Il jcmmJ do Ftwlwurg $airlt.Q:rmai,v
""" dUllllllt o Segulldo Império

po. a nao ser quando doente: um corpo que sofre é perdoável. De seus traços ou
,
Freqüentemente taxado de individualismo, o século' 19 'subordin a, ao
de sua silhueta, não sabemos nada, assim como nada se sabe da aparência ~e sua 'contrário, o eu íntimo aos objetivos da vi<L1 privada e da família, figura cen-
mãe ou de suas amigas e talvez seja significativo que não tenhamos encontrado. tral. A Preocupação consigo (Le Souci de sai) não é ali valorizada como foi nos
em nosSa~ investigaçm:~, ne~um retrato, nenhuma fotografia dela. - dois primeiros séculos' de nossa era, por exemplo, en~re os estóico~ cuja ética
Não h á, em Car9line, nenhum traço daquela fisiognomonia de Lavater, foi an aJi,sada por Michel Foucault.In EI.emento possivel de desequilíbrio, '0
que fazia correspondências entre o fisico e a moral, que levari~ á descrições "mais tirânico dos companheiros': segundo Flaubert, o eu é um conviva a ser
sem fim. No entanto, ela elogia a beleza 'e a graça, mas sempre vestidas. ~ d'o s vigiado, um inimigo a combater, sob retudo na adolescência, esta i~ade dupla-
vestidos que ela nos fala, n~o dos rostos. Isto está provavelmente ligado ao pa- mente "clÍtica" pa.r:a o indivíduo e para a sociedade. Rousseau dedica todo o li-
pei do teatro, co mo encenação.da vida cotidiana, que é interpretado nos salões vro TV do Emite a descrever os perigos e a esboçar uma pedagogia destinada a
e nas recepções. Está sobretudo lig,ado à importância do "traje" nas funções de ~ canaliza r as pulsões e a "desviar de si'~
representação das mulheres. Arrumar-se, "esta coisa tão ~mportante e !ão fú- , Em um certo 'sentid o, o diário é um meio de impor-lhe silêncio, n50 um
til" (2 de dezembro de 1864) , tão cans~tiva às vezes, é um dever. "Desde que eu instrumento de análise interior, m~s um exercício de contençãó .e de controle
. esteja convenientemente vestida, o resto me é indiferente", escreverá ela a. s~u" de si. j(Domar:minha vontade e não fazer aparecer nada': escreve Caroline. j(Re-
marido que cri~ic~ suas contas de 'costureira (ca rta de 2 âe setembro de 187q). primir tudo o que sin"to'~ Mas porque ela tem uma real personalidade. o diário
Indispensável acompanhamento de uma festa, a~ roupas são eventualmente torna-se o teatro de sua dúvida e a expressão de se u desejol, este desejo queen-
descritas. IH Nestas roupas, a forma' importa menos ,do que as cores: rosa, azul, fim ela deixa murmurar antes de afastá-lo, talvez para sempre. Ele nos entrega,
ve rmelho às vezes, verde excepcionalmente. (é .excêntrico e.. . americano!),' e. co mo numa surpresa, uma história patética em sua própria banalidade. e um
sempre o branco {riunfan,te das moças. Consubstanciais aos ,próprios aconte- retrato de mu1J;er ao.qual as cartas de Ernest ( 187~ - 1871) trazem um co mple-
.,' cimentos,.,elas lhes emprestam suas tonalidades. :(Eu usava, naquele dia .. .", dirá mento muito substancial e retoques não negligenciáveis. Uma mulher que, de-
uma mulher que s~ lembra. A memória das mulh_eres é vestida. E Caroline pro;- cididamente, não c~)J1segue impor silêncio ao se u cor~ção e que sofre por isSo:
. vavelmente nunca esqueceu os vestidos que usava nas noites de outono de La "Ora, eu so u bem punida pela minha afeição pelo Eu (sic). Um pouco de entu-·
Cave, quando siasf1:!o me teria feito tanto bem" (carta a Ernest, 16 de fevereiro de 1871).
,- já começava a fazer frio... '
Esta jovem moça, assediada pela melancolia, tem grand~s momentos de
alegria. Caroline aprecia este mundo co ntra o qual é colocada em ale1'ta:.o bri-
E EU? ,' lho' das cores, a suntuosidade do s buquê's, d cintilar das luze~, a delicadeza de
uma j6iq, a elegância de um ve~tldo ou de um' penteado. Ela experimenta a
: SQfrendo com o dever de inclina.r-se semPre diante d~ seu pai, Caroli-" vida de sOciedàde, feminina sobretudo, os saraus ·animados. Adora a comédia
ne/'dividida entre a revolta e o remorso, grita: fjAh! o egoísmo é um defeito ter- onde se pode mudar de. rosto, de sexo e de papel. Ama a música)'o canto, e aei-
rir ei e, no entanto, quantas vezes so mos tentados a di2:er: e eu?" (7 de dezem-
bro de 1864), , ' ,~ 177 FOUCAULT, Michel. Histo;re de la sexualÚé. Paris: Gallimard. J984. v. 3: U Souci
d~ soi, p. 56·57; ele distingue "3 atitude individua lista': "a vaJorização da vida pri-
vaoa" sobretudo fam iliar. e "a intensidade das relaç~s com si". Parece-lhe que nas
176 PERROT, Philippe. Le .Travai! des appàretr"ces, ou les tmruformations ãu corps classes burguesas do século 19, a vida privada é o "centro de referências das condu-
fém;1f;" (XVll re-xlxe siecle). Paris: Seuil ,1198i1. cap. ,vl, "te Simulacre d u matureI" e " tas"; "por isso mesmo, o individualismo é fraco e as relaçõe§ de pessOil a pessoa nllo
Lts Dessow de la bourgeoIsit,j .Une II istoite du \'~temem nu ~ siêclc. Paris: Seuil, . são muito desenvolvidas". Estas observações parecem·me muito esc.Iarecedoras
198 1. ' , para O nosso objeto.
,/ '-..
"

134 135

;.
' Pnrr~ I Ôlpirulo If
. 7>"", Curolltft, U"UI jo''tIUdo f"ubourg SoIin' ·Gtrntain
, DUfrlnlt o Sqlmdo Impbio

ma de tudo a dança que ~e dá gran~e prazer. Agradar, em suma, seduzir, ser o presente, cujo gozo lhe é dillcil. Álé';l'd~, fatores pessoai, - a sombra proje-
reconhecida: da, que duvida de si mesma, fi~ exultante ao ter sucess? Longe tada dã morte da,mãe - podemos nos perg~tar se ohorl.zonte do Faubourg,
do abade Chev?jo n e de ,sua fac,e de quaresma, ela se realiza, naquele outono afeito à ruminação _do passado. mais do que à imaginação do futuro, percebido
,.
de 1865, que foi talvez o melhor de sua vida. ger;aLmente COmo uma decadência,·não influencia sua representação do tempo.
Caroline tem nece.ssidade de afeição, jde ternura, d~ amor. Amar, ser Caroline tem um corpo frágil. resfriados freqüent'es. Ela tem uma tosse
amada: tal seria o seúáesejo. A amizade, o a~lor são comUnicação, a efusão, a iriquietante que compârtilha com diversas amigas: ~Marguerite tosse e parece
fusão, A palavra. tem muita importância , l)a troca. Mas também as cadeias, os muito séria. O que esta cara amiga tem?'~ Deve freqüentem~nte ficar em se u
beijos'de que esta criança) privad~ de mãe, diz ter muita fome, "Os beijos, com ~ \ quart.o. Reclama sem cessar de seu cansaço, ".E; terrível estar semRre doente des-
. .
plemento indispensável a toda .espécie de felicidade" (.50 de novembro de
.
1864), Carinhos infantis, adólesce~lt~s, amorosos? O pudor fcclta os lábios das
te modo'~ (7 de junho de 1865). "Eis-me aqui sofrendo! Como é tedioso est.r
assim" (23 de junl~o ~e 1865). Ela sente mal-estares, tem, o que chamarí~mos
J~10çaS, Mas fecha os seus sentidos? . -de taquicardia: "l\1eu pobre coração fazia tique-taque!... Eu não coriseguia
Caroline tem o coração terno. Ela sofre co m as inquietações de seu pai, mais respira~. Precisei de éter e de mil cuidados" (26 de niaio de 1865). Dores
com o afastamento de.. Paul, com O luto de sua amiga, com a miséria dos po- de estômago, insônias freqüentes. "Não fechei o 011:1;0 ~ noite inteira. Por isso,
bres, com o sofrimento dos cavalos', Compartilha a sensibili~ade nascente-de 'estou terrivelmente cansada e minha tosse recomeçou'~ (14 de junho de 1865).
sua época li respeito destas questões; ~m Lille, no Carrossel, ela obriga seu pai Suas jns6nias são povoadas "dos maiS terriveis pensamentos'~ Ela -tem idéias
a partir diante d<l indiferença que atalhe as suas quedas; ela se inquieta que negras, "aqudas idéias negras que farão a minha infelicidade" (22 de julho de
"est.es infelizes anim'ais que. sofrem tanto não tenham uma recompen sa um 1865). Em .Spa, onde, cinco anos may tarqé, fazllm tratamento, Caroline se
dia. Isto me atormenta sempre" (2 de maio de 1865). Um I'~~so par'a os cà- queixa: ."Recu~erei-me de minha dor habitual nas costas e no peito!' (20 d~ .
valos lhe pareceria totalmente natural. '7I agosto de 18'(0). Como não pensar na tuberculose que fez tanta devastação en-
Mas ao mesmo tempo, Caroline'duvida de si mesma e dos outros: dos tre os jovens, causa plausfvel,da morte de Albert Dumont sob o sol de Nice, lo-
homens sobretudo, e de sua sinceridade. Sua nostalgia alimenta-se do tempo cal de esperança dos doentes "do peito".
que passa. Thdo lhe serve de pretexto para as lembranças. Tão jovem, ela já vive Carolin~ é hipersensfve! ao meio ambiente - ao clima .- , e às circunstân-
no passado, q~e gostaria de transformar em sua idade de ouro: "Quem é que,' cias. Depois.do ,c asamento de sua prima Ma.!ie, ela se sente deprimida. Em, Lil.
, mesmo ainda jovem, n.ão gost~ria de.reencontrar os ,dias pa'ssado~?~' (29 de no- -- le.. te.fi crises de asma. Ao contrário, em La Cave, ela transborda de energ~a,
vembro Qe 18(4)~ Os artivers:trios a deix~:m triste - ~inda ql~e s~ja o de seus de~ , ' sempre pronta a prolongar os saraus "dançantes. "Sempre ficamos cansados
zoito apos - tanto quanto os fins de ano, os dias primeiro de janeiro, pretextos quãndo nos divertimos? Não acredito nisso.", escreve ela, lúcida (15 de ~ovem­
para sombcios' balanços,'angustiantes prospectivas. Cada fest~ é a ocasião para bro de 1865). A jovem imaginativa que evoca seus sonhos sem contá.:.los, que
con tar os ausentes. 'Ela vive cada partida como uma morte e cada volta aos lu- acredita nos presságios, nas misteriosas correspondênci as, que se en;tociona
gares amados como uma peregrinação. A idéia que as coisas ~o acabar estraga com as tempestades e que tem às vezes estranhas visões, estaria suj~ha a estas~
, .,- afecções "nervosai que se atribuem freqüentemente às mulheres e q\1e impa-
, ' ·dentam o pa~re Bazin. pregador .do retiro? AS pessoas murmuram, pensa~ ,
178 AGULHON, Maudce. te Sang des bétes. Le probl~.me de la protediQn des animaux
sentem seus corpos com as paJavras de seu tempo.
en France au XIXt sieele. RomantislPle, "Sarigs'~ n. 31 , 1981;A Sociedade Protetora
dos Animais. fundada em Paris em 1846' por um m~dico, imitando oi Inglaterra, , Mas o que merguJha Caroline em uma melancolia sem fundo é a incer-
teve inicialmente como objetivo a defesa do cavalo de tração, cujo m~ssacre era um teza de seu futuro. Ela gostaria de prolongar o estado de adolescente, em qJ.le
verdadeiro desperdlcio.
ainda não se vêem os espinhos das rosas - segundo uma metáfora de que eJa
"

136 .'
\. 137
'.
Pltrf~
. 7h1fO,
I
allvlint,
Olp/lUto • .
11/1111 jovem
do Nwbowl Stlillf.Germ"in
d,mmte o &gllndo Impirio
•••
gosta muito - e no qual , entre Deus e suas amigas, ela se sente bem. Mas suas
com panheiras desaparecem , tragadas pelo casamento. Casa r-se? Ela teme a le-
d urou três sema!las."Elesa casaram com um cadáver", dizia-se na famflia.Ca-
roUne não ignoraria este drama.
••
viandade dos homens, sua's mentiras, os dias que se seguem indiferentes. "Não
tem os, infelizmente,. tantos exemplos de jovens mulheres que encontráram,
naquele ma'r iao que ~es prÓ~etia tanto, apenas logros e en ga nos?" Do casa-
O casamento da outra Marie co.m o batã~ Edmond de Layre tinh~, ao
contrário, mais do que a aparênçia de um casa mento feliz. Na busca de um ••
mento, o que sabe--aquela jovem que evoca-som ente ~ seu cerimonial? Estaria
ali a felicidade, l
, aquele doce estado estaCionário,
.
aquele "céu sem nuvens" na
Inodelo tranquilizador, Caroline atribui-lh e um lugar decisivo. Ela descreve
seus fa~tos - a oferenda da cesta das bodas. a eXposlçãQ do enxoval:-. com uma
indiferença que-dissimula mal um desejo aprazível. Vestido azul, chapéu bran-
••
••
.

com unicação dos corações c,o m o qual ela so nha? "Meu pobre coração que
co, ~Ia é dama de honra e todos predizem que ela deverá ser a prçxi ma. "Oh!
ama tanto precisa também s'e~ amado:' (14 de fevereiro de 1865): Mas isto exis-
não. t.udo isto não me faz inveja! Aliás. porque eu desejaria casar-me ( ... ). Ape-
te? Por que este pessimismo que sua prima Marie Ternaux, serena e alegre,
comb.ate ~anto?
X. verdade que ela estava cercada de d::eirlplos sinistros. A pesquisa fami-
sa r do não sei quê de delicioso que se deve sentir neste dia, ele 'não me tenta.
Prefiro menos fasto e mais certeza) prefiro o véu negro ao branco· e o crucifIXO
' - ,
á todos os enfeites!"' (6 de) unho de 1865), Ela dec ide, naquele dia, dar-se a
••
liar, feita po r Georges Ribeill a partir de uma importante documentação reu-
nida sobre este ponto por Jacques FO\~cart, nos informou co mo se concluí ra o
casa mento de Mari e Brame, filh a de ~mile e de' ~rnilie, algu ns anos mrus vêlha
Deus e aos po~res. Ela será irmã de carida.de. "Adeus, então) futuro brilhante".
No entanto, o verão aumenta a su<!, pérplexidade:Ern Fontaine, o jovem
casal de Layre, em plena I~a -de- tllel - eles partiri\o para os Alp~ Suiços em
••
do que Ca roline. O Tio Jutes deixou, a respeito deste acontecimento, um do-
cumento co r rosivo, matéria-prima para M!lrx e Mauria~ acusando Edouard
viagem de núpcias, um po uco mais tardem - é enca ntador.'Marie "continua a
mes ma': e Caroline i!,siste nesta identidade preservada a despeito do casamen-
••
••
de ter empregado todos os meios, da sedução mundana às ameaças_de morte,
to, cuja misteriosa metamorfose ela apreende: Entretanto. nenhuma solenida-
para i~pedir a uni ão de Marie e de se u primo Georges, filho de lules., Os dois
jovens amavam-se ternamente. Mas sua aliança faria pender a bala nça da he- de, nenhum desconforto: mas uma nova imagem do casal, novas maneiras de
rança a favo r do ramo mais velho e sobretudo Fontaine, o castelo desejado.
&louard, apoiado por seu cunhado Mortimer Temaux, opós-se a ele com a
mais extrema violência, se acreditarm os em JuJes, cujo papel também nãp é
. ,
amar que emergem naquela década de 1860 e que enfatizam wna sensualida -
de cuja realização satisfa~ória se deiia perceber pelos ,que estão 'próximos .
"Como eles são engr!çados, os dois. Eles se provocam e.em seguida se beijam,
••
perfeitamente cla ro nos aco ntecim entos. Viúva, Tia .tmilie tomara abertamen-
te o paJ·tido de SU3 filhai ela pensara 3té mesmo em fugir para um convento
com ela. Mas ~o final d3S contas, el.a ·fora obrigada a ceder à pressão fam iliar.
-,
no meio de acessos de riso e de conti nu as cantos!" (23 de junho de 1865). Re-
cato cristão? Comedimento aristocrático, à maneira da avó de George Sand
que "nã~ usava nunca ~ palavra a'moe'!to e tornou .sua s man,ifestações proscri -
••
Maiie ~ã9 desposaria Gçorges. mas sim o herdei;o de uma rica familia da in-'
:.. dúptriâ ~êxtil (os Wallaert), provavelmente doente. t:, ao m enos, ó que Tio Lu- 179 MARTIN. FUGIER, .A-. ta Bourgeoise:, fcmme nu tcmps de Paul Bollrget. Paris:
~ let insin~a em uma última carta ao patriarca, Louis: ~Meu filho tem um nome Grasset, 1983 ..p. 73 et seq. Eles se adaptam às novas práticas que desejam que se
dos mais.h o nrados, do .qual vós sois o fundador: eu me esforcei para mantê-lo evite a viagem imediata e a Itál ia se tornara vulgar e banal
, 180 SANO, G. Histo ire de ma vie. Sous la direction de Georges bubin. In: Oeuvresfauro_
na altura em que vós o colocastes. Nós edUC31'110S nossos filhos de maneira a
biograjiques. Paris: Plérade: Gallimard, 1970: t. I. p. 4b: "Ainda que ela não usasse
, . que eles não O deixassem jamais d.ecair. e eles preferem , ao invés de Geo~ges, nunca a palavra amor, que eu nunca o~vi sair de seus lábios, a respeito dele ou de
uma família que epítetos ferinos designam co m o não merecedora ,da estim~ ninguém, ela sorria quando ouvia-me djze ~ que me parecia impossív~ 1 amar \1In
velho. ·..Um velho ama melhor do que um hO,m em jovem (... ).~ E ainda, acrescenta-
geral. GeQ rges, todqs s\lbem .·é \1.ma ,plant~ de futurQ, o o utro. é uma planta já
va ela, "éramos velhos naquele tem~? Foi a revoluç:io que trouxe a velhice para o
l1~urcha~ entre outras càisas, por um vicip primitivo de saúde". O' casamentq, . mundo".

138
139

~
~, ~I !..

,. P4"fll ' Clpfwlo -.. ~,


Ctlrolitrt. uma jo'l't!lII do Flm/x)utg" Sajnl'~'mojll
""" durllll4! o .scgundo Jmpt,io
'-~

ta.s? Caroline diz-se chocada: "Não sei o que o futuro me"reserva; mas digo mulher no casal (~de novembro
, . de 1865). sobre "o primeiro sentimento qu'e
aqui que nã'o me ve;ão nunca tão terna publicamente" (27-de julho de 1865). deve guiar um j«?vem ou un'la moça no casamento. E1:l não posso compreender
Para Caroline, tao vigilante com relação a seu corpo, as relações amorosas de- qun~ja o dinheiro!" (12 de no,,-embro de 186$):Neol ele, visiv~lmente. "Estas
I , \ .
vem. manter- se noturnas e secretas. Mesmo seu cliário não deve saber naeia de-o doces conversàs me fazem bem, Que tetnura, que seri~daae! Oh! meu Deus.
las. l ll Mas como lhe e~cre-ve~á mais tarde seu marido, não sem irritação, Caro"- vós vedes o desejo de meu coração" (26 de novembro), Com .. no entanto, aque-
line é um "vulcãõ'Vápenas esperando p~ra explodir. la nota inquietante, como um eco' do abade Ch'evojon: "Como somos j~vens
Marie e Edmond são fraternais. Marie elogia, para ela, o casamento, Ed- para a nossa idade!" Eles têm, os ,dois, dezoito :anos.
mond ~e fala de sua mãe: "Ele me tompree~de'~ diz ela, Seria então P?ssível \ Quanta tristeza quando é p~eçiso p~rtir! "La Cave é para mim a vida que
encon t.t:ar um marido que fosse u~ t~rno amigo, a qu~m ela 'pudçsse contar sempre ambicionei (.,,), Ali, sou verdadeiramente ' amada", Melancolia dos
confidênCias? Mas ela mesma não seria "triste d~mais parà poder fazer wn ma- , adeuses: "ComO" a vossa partida me deixa triste, dizia Albert. E eu, será que, ele
~

rido feliz" (22 ,de j!Jlho de 1865)? No entanto, seu spleen diminui. Ela retoma o pensa que não estou totalmente ~balada" (1° de dezembro de 1865). Albert dá
gosto pela vida, deLxa-se levar "por aqueles sonhos que me chega~1 aos 11,l0n- a Caroline uma pequena cadela, chamada Guerriere (Guerreira) que lhe faz '
tes, para povoar a minha solidão'~ Ela arrisca novos gestos, Atira 'com pistolas! companhia na rua Saint-Dominique, "Eu o nomeei seu dono. Ah! se ele esti-
Usa: um belo traj~, "Vestido brarico, fitas rosa'~ "Este traje jovem e sorridente vesse aqui. Mas nossos pensamentos estariam distantes um do outro? Não
me toca profundamentej cle combinava, aliás, com minhas idéhs. que eram creio!'1 (3 de dezembro de 1865). "Não paro de pensar eli, La Cave".1:m 7 de .
alegres; sorri~do para oJuturo, esperando muito e pr~nuncia~do sem tremer fevereiro ,de }866: "Hoje ·4 1bert faz dezenove a~os». Em 14 de fevereir~. ela re- ' )'
, \ . .
a palavtafelicidade!" (Zi'de julho de ·1865). ~ .. cebe de Nice, onde Albert passa o inverno, diversos "n~o me esqueceis':
. ,
E c~ega o, outono resplandecente de La Cave,na residência de St~phànie , Ao mesmo tempo, em Paris, ela brilha: decididamente, não se pode
e ,Albert Dumpnt. Caroline explode de alegria e de entusiasmo, interpreta a co- mais reconhecê-la. Menos salvaç.ão e mais saídas; um grande apetite de viver e
média com frenesi, sorri ao estar atrasâda' pa'r a a mi ssa e d~nça com j\lbert "ga- dr. dançar. Aba<;l~ Chevojon, onde estais? Muito longe,_ao que parece', O mu~­
do ganha a partida contra o Marais. Em 30 de ~dezembro de 1'865, às oito ho-~
lop~s desenfreados'~ Caróline está até mesmo pr~~ta a r~voltar-se um pouco .
ras .da noite: "Tive a idéia de ir ao ,baile. Era u~ pouco' tarde para me decidir,
para, prol<?ngar os saraus q~e as pess:oas mai s veJhas encurtam sempre. "Não
ma~ gosto do ,imp'revisto. , Diverti-me;' Madame Loupor. que. a imaginaya'
me reconheço mais:' diz ela (27 de outubro de 1865). , pronta para dormir, não acr~ditava no que via. Em janeiro, durante um baile
Albert está presente a ca9a página do diário. ImpQssLvel calar séu 'nome.
, : que c~nsidera de maneira significativa como seu "primeiro baile': ela faz mui-
Albert é charmo~o, atericioso, terno, Na noite de-Santo H~mberto, ele leva os
. . ~ to suces~o. "Em minhas polcas, eu deixava a metade de 'meu vestido" (27 de ja- I
caçadores_e seus serviçais a aplaudirem Çaroline e canta em duo cO,m ela, como
neiro de 1865). Ela se abandona â este voto secreto: '''Meu Deus; ·há .neste mo-
se á totri~sse publicamente a sua Dama, Conversas sérias e' doces com Albert ... -menta, algo que desejo':
.,1 " . .
qté pa~ece ter a sa~d~ fr~gil: sobre o' casamento~ as r~lações ,do marido e ?a
, .
E; no entanto,.um outro roteiro começa a se desenvolver, com uma sur-
preendente rapidez, A fanúlia de earoline teria medo destes amores com um ho-
181 E:LIAS•. Norberr, La Çivilisation des nUEurs (1939). Paris: Calmann-Uvy, 1973. m~I1) tão jovem, provavelmente doente? Estaria ela assu~tada com o novo ardor
cap, 6: Les relations suu~ lIes: descr~ve 3.privatizaç.3o das funções corporais d~sde de Caroline, este ardor que g,e ralmente leva a que se casem as moças? Nada é
a Renascença e a "estranha divagem que se opera no interi'or do homeh)", entr~
dito, tudo é ·possível. Na verdade, após .sua vol.ta iI Paris, em 2 de dezembro de
os àspectos, s~iais e segr~dos intimos. d que se.in:icia nos ànos 1860 é então uma
inversão da longa tendência ele recalcar bs se ntimentos e sobretudo sua expressifo 1865, Caroline se casa em' 19 de abril de 1866, batendõ·os. recordes de sua prima
corporal. ,I '....:. Marie Brame. pois o ~'arranjo" de sua aliança. durara apenas dois meses e meio!
'!
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140 .'
141
Parrc J Olpftu/o "
Tmç. .I OlroJi'It, l/rua jol"tm do Fllllbourg Sajnt·GermQi~, .
dllffllJfC o Segundo Impüio

"

o diário permite acompanhar-seu ritmo acelerado, que não deixará de ' única resposta, ela lhe "estende a mão': gesto de tal familiaridade que' equivale
intrigar 'o leitor. O abade Chevojon, a Tia Ternaux, sobretudo, parecem ter tido
. '. a todos os "sim" do mundo,1U "Então conversamos muito."
ali um papel decisivo. Caroline espera o dia 16 de dezembro para ir se confes-
, A noite •.Caroline recebe um buquê de lilases e çie rosas bra~cas, que ela
sar, temendo
. °
talvez que vão . lhe dizer.
, No dia 17, ela escreve "à (sua) cara Sté- acolhe como o início dos "mimos" que nrio parecem ter sido muito faustosos.
phanie uma longa carta.de-moral". Desconfiança. Em 27 de dezembro, são fei- Ela vê o Sen'hor'~rnest todo dia, mas, preferencialmente em jantares. 'à noite; e
tas, visivelmente, as-pr"imeiras investidas:'''Parece-me que aquilo de que me fa-
, I , ele dorme cedo! Ela conhece sua futura família Orville;-re1ato de um passeio
Iam é para~ a minha felicidad.e. Esta conversa deixou-:me muito emocionad~".
~astante' sinistro. A Tia Émilie Brame, que tem 0 hábito dos casamentos tris-
Na véspera, ela ~u ~antp a Tia Jules Bra~e qua~to a Tia Céline: âlerta!. Ela in-
tes, vem instalar-se na rua S.aint-Dominique para-guiá-lã na escolha de seu en-
vo~a sua mãe. Janeiro pass~ na incerteza que seu çiiário evoca em meias-pala-
xoval. Ela fala muito de afeição; mas, e de amor?
vras. No dia 17, ela recebe a visita' 9a avó d~ Albert, Madame Mathie.u: "Não .
Em 19 ge. abril, depois de um. período de noivado cuja brevidade era!
posso dizer 'o bem que me fez lembrar, em meu cor.ação, o Nivernais onde fui
en~retanto, habitual naquele meio, ela casou-se com uma sobr.iedade que-não
tão feliz!"
era sua, No mesmo dia, ela confia uma ~ltima vez ."os seus sentimentos de-moça.
Mas .as coisas se aceleram em feyereiro. No .dia 10:."Minha tia levou-me
\ solteira a-seu diário: tristeza, confu$ão) confiança,
e. falou-me com m.uita ternura~ Meu Deus, dirigi meu barto corno desejais!"
Ela o re"tomará apenas um mês depois) para fazer o relato pouco exalta-
No dia 14: "Acontecera.m muitas coisas hoje e estou bastante pertu'r hada. É um
I
,"
i'i momento tão gra~e que n'ão se pod~' pensar nele ~em treme~". Enquant~ Alpert 'do de
. sua lua-de-mel: oito dias de «viagem
. de núpcias" a Versalhes (talvez
. . na
casa dos Orville" que ali residiam?); em seguida, "visitas de núpcias" em Paris,
I.. lhe envia de Nice seu$ "não me esqueceis!", no dia 16, ela tem uma con~ersa sé- . ,
ria com o Tio MortillJer: "Tudo ê tão Y'Jgo em meu espírito", - -',' Angers, Nantes, Tours e enfim em La Cave, de onde ela escreve., Rever Stép,ha-
Em 18 de fevereiro: primeira visão, na missa em Sainte-Clot.ilde, daque- ,nie e Albert"emocionou-a m,uito'~ Ela elogia a condescendência de Ernest, sua
J
j, le que ela chama inicialmente 'de Senhor.", e que lhe foi designado como seu afeição, Elá fala 'tanto de "céu sem nuvens': quanto de "algumas nuvens".em sua
futuro ' possivel. "Meu Deus, que vossa vontade seja .feita,. é tudo o que posso meteorologia da felicidade.
dizer'" No d~ 22, primeiro..encontro no Louvre, local do qual Baudelaire di,- A partir· de então, o diário é apenas o confidente muito episódico de '~
zia:'''! Q lugar de P?ris ond~ sé pode melhor corversarj é aquecido, pode-se es- ~ uma jovem mulher..submissa e nostálgica que repudiou f(a loucura das Jovens
. '... \
perar ali sem se entediar, e aliás, é o lu~ar de en'~ontro mais conveniente para cabeças ex~ltadas", e desola-se por não ter filhos. l'M inha1,grande tristez..1 é não
uma mulher": lU ·Em ,companhia d~ Madame Loupot, ela atravessa as salas de ter um baby ·q ue eu amaria tanto e que me faria aceitar a viqa séria que levo)'
\. .
pintu.ra, "não o vendo, o que tornava a minha imp~ciência cada vez maio!~ En~~- (lo de janeiro de 1868). Dez anos mais velho que ela, Ernest -...:-isivelrheilte n~o
-, fim, fereei>l-o e ele foi o: ~;nais encant~dor cicerone"... N~ dia 25, novo encon- é um f9lgazão. "FOrilOS dançar em Azy, uma noit~, Foi toda uma história pa~a
110
t.ro m~seu dQ Luxemburgo. No dia 26, enContro com os pais daquele que que Ernest aceitasse iri,unto" (11 de outubro de t868 ).
- elafchamará de Senhor Ern~st até o,aia seguinte ao seu casamento; o nome Or-
ville aparece pela prirpe~a vez: Em 10 de março, nas estufas do Bois de Bou-
183 O "shake-bands" é -uma prática 'inglesa que começa a ser adotada na França na
logne, aonde' ela vai escoltaçia pela Tia Céline, ele a pede em casamento. Como década df: 1860, As mulbf:res f:Stendem a mão primf:iro, mas não as moças solteiras,
que devem abster-St: deste gesto. Em 1857, o gesto de apertar a mão é ainda tão
" ,I _ audacioso que os Goncourt citam uma jovem que constituiu para si um relicário
, 182 BAUDELAlRE~ Correspondance.. Paris: La Pléiade, 1973. t.I, p. 148, çarta à sua mãe das luvas com âs quais ela "aperto\t a m30 das pessoas que ama ou estima: apud
JMme. Aupick, 16 d~e deun;lbro de 1847, _ \ , lsa~eUe BritardC<Sois Belle' et tais-toi", manuscrito.
:--'

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142 143
.; .
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I'ilrlc I Clplllllc .,
rmf" CÀroIi"c, lima joytm fi" Faubourg Sa;lIt,Gt-rmni"
dimmtt o &gulldo 1"'#.1;0

. La Cave continua
. a ser seu lugar de predileção,
, Stép.hanie arrasta uma ciou a amar. Ela gos~aria de obrjgá-Io a um amor que, para el~, não poderia
incurável melancolia:. ela a repree,nde .ternamente: coA felicidade estaria nesta , existir sem alguma paixão. A jovê'm que os beijos dos recém':casados Layre ir-;
vida imaginária?': Ela deplora que Albert"que eu gostaria tanto de' ver feliz" es- -. r~tavam é uma mulher cuj~s palavras exprimem o ~esejo do al1~or, de manei-
teja "cada vez mais triste, Por quê? Eu lhe pergunto freqüentemente, màs será
ra às Vezes qua~e incongruente com aquela que conhecêramos. Uma questão
que ele mesmo tem consci.ênda das 'razões? Meu Deusr'c onduzi-o àquela que .de códigos, de conveniências? Quando se é uma mulher, assume-se a lingua-
deve fazer a sua felici~ád~': A felicidade, q'ue é apenas, no final das contas, "a
gem chamada das · mulheres? Tçrna, Carolirie chama Ernest de "minha cara
realização do devei", a aceitação deste obscuro desígnio que chamamos de "a
jóia", p.rocJama-se sua "mulherzinha" e declara «cobri-lo -de cAricias e de bei-
vOl)tade de Deus", Destilado por toda uma educaç~o, o consentimento sela es-
jos'·', assinando "sua .mulher devotada': O tratal1.1ento em "tu" é a regra e a :vol-
tes destinos de mulheres. de manei.ra irrevogável. ,
ta ao "vós" é ex~epcional. '
O diár~o acaba aqui, com o pró'prio caderno.
.1 O mínimo que se pode dizer é que Ernest pare~e não responder muito
Mas a história ainda não termina' ali. As cartas que Jacques Fou,cart nos
à sua expectativa; ainda qu'e 'se mostre um coriespondente ~uito reguJar. NoS '
, , ulteriormente e algumas das quais pudemos' le~ conrinuaram, de
comunicou
I' momentos mais trágrcos, ele lhe' faz .cr(ticas sobre uma nota de costureira que
ma~eira completamente in,esperada, nossa relação com Caroline casada, c;an-
. jul~a. excessiVa. Rt;;:voltada e submissa, ao mesmo tempo, çaroline explica-se e
'fir~ando e infirmando simUltaneamente a imagem q~e podíamos ter·dela, de
seu casamento e de séu destino. .
Seria o efêito de 9rcunstâncias e.xcepc!onais, de uma separação que lhe
I, lhe propõe de passar com ele um dia para esmiuçar suas contas. Caroline tem
uma pensãC! e um livro onde anota seu orçamento. "Sou ~ primeira a. desejar
confere uma certa autonomia apesar 4a presença. constante da família' e seu /fazer tudo para' o melho~, e asseguro-te que faço o maior esforço para gastar O
marido e de uma importante criadagem? Caroline revela-se, em suas cartas} . menos possível e 'ficar bem vestida ( ... ) Tu me dirás .o que consideras exagera-
muito mais determinada e viva do que em seu diário, submergi.d o em mode- do ou nãe razoável e não será nunca por uma questão de dinheiro que eu cria-
los e contenção religiosa e moral. A despeito de seus proble~as de saúde - rei a ~enor dificuldade" (2 de setembro de 1870).
também percebemos melh9r o sofrimento de um corp.o do qual.ela fala mais " Mas o mais duro a ser suportado é aindolência de Emest, a pouca soli-
frequentemente.-, ela se mostra ativa, apaixonadam~nte'~nteressada pela guer- citude que ele te~ para ir encontrá-Ia ~m Bruxelas' ou ~m Lille, q~ando a guer-
ra, sempre à pró'cura de jornais e de notícias, ardente patriota, e até o seu cris- ra acaba, a tal ponto que ela quase chega a ter vergonha diante do seu circulo
. tianismo toma uma outra dimensão, a de uma ideologia política: Mas, aO.lnes- soei·ai. ~a. ironiza: C'Trato dt; sa'iv.ar a minha rep'~taçã~, pois enfi~, a'o ver-te tão
mo tempo, ela manifesta se.u desejo da pessoa e do amor de·seu maridoj' com inct1ferente, o, que pensarão de meu caráte~! Não deixarão~e Pizer:· pobre Se-
quem gQ·staria . tanto de estar, e quexiesejaria muito ver vo.ltar rapidamente, ,. nh~r OrvilJe, seu casamento é então um infe~no!" Sobretudo, ela se sel;t~ deses-
com a ~L~r~~ _te!minada. ,NO' fervor da história e sobr~tudo no cerco. de' Paris, -, perâdamente só .."Não possó compreender como a razão pode sobrepor-se tão
ela lhe confere uma estatura heróica, sublime; ela o imagina como um cavalei-
I , ,
ro sobre as ' 'muralhas" .,...;lS fortificações de Paris emprestam à cidade ares de .~
I completamente a'o coração ( ... ). Há momentos em' que se tem dificuldade em \
submeter-se" (12 de feve~eiro). Provavelmente Ernest critica seus sentimentos I !

cidadkl~ feudal qu~ devem tocaro.seu imaginário - e..xpulsando os "monstros" r' eXc~ivos; e!a replica que "o vulcão procurará tornar-se um mar de gelo". (
. pru~ianos para fora da ~rança. Caroline, mulher de ação, enfurec,e-s~ por es- A disfânCia de Ernest, jun~a-se a imensa tristeza caus~da pela morte de
,t ar numa estação de águas; ela se resigna mal·a seu exílio na Bélgica, cujos sen- A1bert, em Nice, no dia 8 de fevereiro de 1871, cuja notícia ela recebe no dia
timeptos germanófilos a choc.am profu';damc;nte~ · ' 15. ,Ela se sente, então,' completame'!.t~ abandonada e, em uma carta patétiéa
. ,
Não é mais a Deus que/elà se~rjge, m~s sim a um ~omem que, co.n tra ·..{ 16 4e fevereiro ), e>"'Pressa seu quase desejo de morr~r. A conjugação da infeli-
. ' I '
tudo e todos, a despeito de uma frieza que faz seu torm ento, ela não renun- cidade pública e da dor privada assinala o desmoronamento de um mundo.
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Porque elas são \lma relação direta com os outros, as cartas, melhor do
que o diário, mos.tram que Caroline era finalmente' o contrário de uma resig-
nad,a. Sua ob.stinação em todas as coisas foi a razão de sua es"terilidaqe, que
Caroline'recrimina em Spa, co.m o se ela fóss~ a ?esponsável. conforme aS opi-
niões ~ecebidas? Sabem~s que ~Ia teve, quatorze anos depois de seu casamen-
Parte 2

••
"

to, o "babt' tão dese(ado: uma fllha que chamou de Marie, como ela havia '
prometido; alguns anos depois. teve uma segu~da filha, Renée, que continuqu MULHERES NO TRABALHO ••
na rua Saint-Dom~ique por muito ,tempo ainda, casada com o conde de Vi- ,
braye. Ironia do destino, em qu~ Caroline poderia ter visto algu~ pressjgio:
este nome, o de uma amiga encontrada em La Cave, é o último mencionado
••
em seu diári,o: "t com um verdadeiro prazer que vejo Inais intimamenle Ma-
rie de Vibraye'~ , ••
,
Mas a história não pára aí. Graças à sua neta que nossa. publiCação
, ~

cara, tivemos acesso ao diário que Caroline mantivera quando ~o nascimento


e da primeira infântia de Marie, Vamos lê-lo em seguida, como o testemunho
\
tQ-
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de uma busca romanesca e, de certa. maneira, exemplar, daqueles traços, per-
didos e reencontrados, que tec~m a memória vacilante. das ~nulheres, ••
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.A questão'~do trab~o constituiu um front pioneiro da


' , pesq~jsa sobre
as múlheres. Em sociologia, inicialmente, com os trabalhos de Madeleine Guil-
, bert, Éve!yne' Sullerot, Andrée Michel d~sde ~ metade da década de sessenta,'
·Em história, tanto na Grã-Bret~nha quanto na França. I

~ - Foi ta~bém um dos fronts em que fo'ra~ questionadas as fronteiras


tradicionais, sobretudo com a s~ciologia da família. Com relação à"s muui.eres.
o status matrimonial, primordial, condiciona a relação çom o mercado de tra-
balho, ao menos a partir do rnoolento em-que a industrializaç.ão separa cada
vei mais radicalmente o domicilio e o laçaI da produção assalariada. "Women, '"r
,"

Work and Famiiy~' são realidades inseparáve~:s, diziám, no próprio ti,tulo de. seu
'. li.:..ro, Joan Scott e.Louise TiUy.2Sua contribuição sublinha um outro fáto, bas- ,,', '

- ~
tante geral: a conversão precoce das,historiadoras do "mundo operári o à híst~- .'
ria das mulheres como· se houvesse ài um·a substituição de objeto: um desloca :"
mente, de uma figura da opressão para U~ à ou'i ra'. Isto'explica igualmente que
(
as categorias e ·os .termos da an4lise marxistas, então dominantes no campo do
, "
.I :
'/
i
GUILBERT, Madeleine, Les Forlct;ons des femmes datJS 'I';ndtlstrie. PariS: Mouton. '
1966; Les FC1!,nres et I'organisntion syndicale âvant 1914. Pa.~is: CNRS, 1988; com
LbWIT, Nicole; ZVLBERBERG-HOCQ"UARD. Marie-HC:lene, TravaiJ ct có"dition
fémi'nine (bi~/iograp"jecommetltée) . Paris: La CoUrtille, 1977. SULLEROT. Evelyne . .
Histo;re cf sociologie du tmvail fé",;"i", Paris: Denoel-Gonthier, 1968; MlCHEL.
Andrée: Activ.ité pr~fess;o""elle de lafemmt! et vie. conjuga/e. Paris: ÇNRS, 1974.
2 TILLY, Louise A.; SCOlT, loan W. Women, Work ·a1,d· Fami/y. Holt: Rin chart and
'- .' Winston , 1978;!trad. franc oLes Fenl,;ies, le 'travail ct la famille. Paris: Riv3ges, 1987.
~

149
Alrte 2
M;llhereJ no tr"b"lho
Parte 1
Mulhem 110 Imballro
.'••
ft

••
trabalho tenham formatado, inicialmente, as categorias do feminismo:"Classe Duas inovações a assinalar: por U,I1l lado, a incorporação do '''gên ero'',
de sexo", "lut<l de sexos" e patriarcadó (no lug<lf de Capital) embalaram as coo- \, no 'estudo do terciário, a partir de então o' grande setor de emprego das mu-
cepções mais ~utilmente saussurianas e derridianas do "gênero". Chri~tine lheres, que se desdobra em um dédalo de escritórios.' Por outro lado, a inclu-
Delphf rep~esenta bastante ~çm este "feminismo materialista" que préfere as
práticas sociais às rep~seni~ções, e atribui um lugar central ao ~onceito de ex-
são, recente, de uma problemática da,violência, do "assédio sexual~ e,'conse-
qüentement~, do -corpo, do corpo sexuado, objeto de poder e de desejo.' Ain- ••
ploração, estendido'do econômico ao famiJiar e ao sexual. A evolução inversa
de uma .Ioan Scott ,ilustra a influência do linguistic
Atlântico. Em sua côntribuiçào para a História das Mulheres
ttlrn ,do outro lado do
110 Ocidente, ela se
-da que o droit de cuissage (direito à primeira noite) nunca tenha constituído
,uma categoria jurídica real, çomo sublinhou com justiça A1ain, Boureau,lO sua
.representação impregnã o .imaginário social, o ima'ginário dos executivos, que ••
interes.sa não pelas práticas de trabalho das operárias, mas sim pela maJ;leira
"
çomo este t~abalh~ era percebido en1 três tipos de discursos: patronal, sindical
acredita,m que podem tud9, o imaginário do movin~ento operátio qú.e apare-
ce nas palavras e nas imagens da feudalidade, Isto nos permite ver como a his- .
·toriografia das mulheres tornou-se co mplexa nestes vinte anos.
••.,
e da economia politica.~.Atualmente, a questão de:;> "gênero" penetrou ampla-
mente a sociologia e, mais timidamente, a'história,s
As historiadoras, por sua vez, interessa ram- se prioritariamente pelos
, Os textos que se seguem, reprod·uzidos mais 'o u menos em sua( 9rdem
cr~>t101ógica, ilustram ,uma pesquisa pessoal profundamente ~mbricad'a nestas ••
••
prohlemáticas que ela, às vezes, con tribuiu pára introduzir. Se' existe um setor ·
"trabalhos de mulheres", as "pro'fisj.ões "de mulheres'~ Enfermeiras, parteiras; o
em que "gênero" me parece pertinente e"eficaz, este setor é o do trabalho, em
domésticas, operárias da costura ou das tabacarias ... Em seguida, elas p,enetra- todas as su~ dj~ensões. A p~:H~to de desejar dedicar um dia ao tra.balho· das
ratU nos locais de trabalho misto - ateliês da passamanaria de Saint-Étienne,'
. manufaturas, e fábricas, pa~a alj perscrutar os modos da- divisãO sexual do trà-
mulheres, uma sintese renovada por to.das estas contribuiçõt:s múltiplas. '
Foi na greve, <!bjeto de minhas primeinis pesquisas, que percebi a dife-
' rença dos sexos no trab~ho. Esta diferença é marcante nas greves e, no entan-
••
balho. De resto, a história industiial àbàndonou progressivamente sua ~ntiga

••
, .,

to, eu a abordei com um a certa timidez, com uma tendência a tratar em ,ter-
indiferença a est~ respeito. Serg~ Ch~ssagne, Denis Woronoff atr~buem-Ihe
mos de disposições, naturaisAue me fez qualificar o mundo ~as operárias de
urn a importância não neg~genciáve1. '

••
"universo de derr·o ta e de submissão".
\, Cinco anos mais tarde,"as perspectiva's mudaram e "a mulher popular e
3 JAÓ<SON, Stevi. Christil1e. De.lplIY. London: 5age: 1996. .~.
rebel'de""minha contribuição para a Histoire sam qllalités (Histó~ia sem qllalida-

t•e
4 SCOTT, Joan W. La tr:lVaillellse. In: Hísioir~ de.s fcmmescn Decidel1t. Sous la direc- , des) é o contrário· de unia mull1er resignada. Devido à iniciativa de Pascale Wer-
tlon de G. Duby et M. Perrat. Pans: Plon, 1991 -1992 t.IV: Le XIXe slecle, p. 419- ner) es'te foi um dos primeiros livros coletivos dedicados~ na França, à história
'.

•,
i 4~5. Cf. igualmente SCOIT, J. W, Gcitder ,and Poliries of Hi~tory. New York:
C9lúmbia Univel'sity Press, 1,988. . , das ' mulher~s. Ligadas ao movimen~o, cntã'o em seu apogeu, as autoras - Chris- _
Is '"0 MACE - Mercado do trabalho e Cênero- foi criado em 1995 no CNRS' e publi- ,
cal~s. Cahiers du ,Mage, inteiramente dedicados à atualidade destas questões. So~ rf
8 GARDEY, Delphine. Les elllployés de bureaux II Paris entre lcs dcux gllerres. These ~

••
"7 / a evolução das p.roblemálicas em história, vamos. nos reportar a THíBAUD,
,UlJiversi té Paris 7, no prelo, integra completamente a problemática da divisã,o
Françoise . .'tcrire I'hi~t~ire des femmes. Préfuce de Alain Corbin, Paris: P~esses de .
Fontenay, .1998.,
sexual do trabalho.· ' , ~ ~ .,
9 LOUIS, Marie-Victoire. Le Droit de euissage. Franee, 1860·1930. Paris: L'Atelier,
6 ÓUBÊSSET, Mathilde; ZANCARItjl, Mithell~. Pareoltrs de femmes: réalitês · et
~ '. représentati~~s. Saint-~penne I 880-1950. iLyon: Pressts Universi taires, 1993,
7 CHASSAGNE, Serge. Le ,Cotou. et ses patrom. Paris: EHESS, 1991; WE>RONOFP,
lJe·nis. Histoire ~e l'industrie ~n Franee. i:>u jxVlt siecle it 110S jours. Paris: Seu~ •.1994.
1994 . _
tO SqUREAU, Alain, Le droit áe cuissagc. LAfabrieation d'un mythe, X11JC-~ siec1c.
,

Paris: A1bin Michel. 1995, DELPHY, Christin e. L'Enflemi principal. Paris: Syllepse,
,
••
, .
,

. . - .-'1 '- 1998. l: ,l'konomie politique du patriarcat; 11: Penser le genre (no prelo).


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, "
-,
Putlw2 Ame 1
Mull"f'f' no tn.lbaU", MlI/lteta 00 rnllbaIllo

tiane Dufrancatd, Arlette rarge, Christine Fauré, Genevi~ve Fraisse, :hlisabeth Enfim. membro do comitê de red~ção do Mouvenrent social desde sua origem.
Salvaresi - universitárias em sua maioria, acreditavam introduzir em suas pes- eu -tive o desejo de importar pa.ra ali a problemática das relações entre os se-
quisas as questões da atualidade, convencidas que "fazer história consiste em xos,.de levar a cónhecer tamb~m as pesquisas que se desenvolviam a este res-
obs~rva~ as duas margens e a ser ativo tanto de um lado quànto de outrO'~lJ peito'IOs textos a seguir cQnstituem a apres'entação de d.~is números especiais.
As discussões f~~am .âcirradas, tanto sobre a economia do livro, quanto ° primeiro, "Trabalhos de mulheres': é essencialmente sobr~ o século 19. Tra-
sobre sua apresentação. A escolha
,
do título. sobretudo, mostrou-se complica- . ttl-se então de tornar vjsfvel. a partir de exemplos tomados na domesticidade.
da. Nós não o desejávamos claramente explícito. nem sexualmente definido nos cuidados de enfermagem, nas lojas de departamentos, nas manufaturas
demais. Haveria nesta hesitação a marca de uma "singularidade" francesa que dos Tabacos, os caracteres destes trabalhos chamados comumente de " bons
busca a integração. mais do que a distinção sexual? Este primeiro emb<l{aço é para uma mulher".
retrospectiv30lente interessante. Em todo caso, o titulo, que foi final e unani -
O segundo, publicado quase dez anos !TIais tarde, concerne o século 20,
memente escolhido, era suficientemente enigmático e musiliano para dissimu- é- procura problematizar mais o que chamamos de "profissões de mulhe~es". A
lar se u co~teúdo e, apesar de algumas boas criticãs e de traduçÕes ulterior'es, reflexão sobre a divisão seXual do trabalho progredira muito, neste meio tem-
este livro, que nós havíamos desejado transformar em uma espécie de mani-
po, sobretudo em sociologia, graçàs a Danielle Kergoat, Margaret Maruani,
festo para a história das mulheres., teve apenas uma repercussão limitada. De- Helena Hir;ta e suas equipes. ' . '.
cididamente, nós '1uase não tlnhamos a noção de publi,cidade. _ Nos últimos dez anos, o emprego das mulheres, a despeito da crise, de-
I •
Minha contribuição leva a rvarca de um certo populismo de tpoca, cuja senvolveu-se, mas, apesar de uma formação cada vez mais'acentuada, as desi-
I .
critica será feita, mais tarde, por Jacques Ran'ciere. 1l Sente-se ali õ desejo de gualdades se deslocaram mais do que se atenuaram, a tal p~:)flto. que se pôde fa-
romper com o miserabilismo da mulher vítima e de afirmar a historicidade lar do "falso sucesso escolar das meninas" que_não ·obtêm no mercado de tra-
das práticas cuJturais femihinas. '~ mulheres não são nem passivas, 'n em sub- balho O beneficio de seu' investimento nos estudos.1 4 A sociologia das relações
missas. A miséria, a opressão, a dqminação, por mais reais que sejam, não bas- sociais dos sexos tem belos dias diante de si
tam para contar a sua Qist6ria".
"Mulheres e Máquinas"' respondia a uma solicitação de Romaut1sme,
desejando dedicar um número à Máquina do fim de século e sempre .muito
preocupada em il)duir as mulheres. Este pedido chegava em boa hora pois.a..
interrogação sobre os efeitos sexuados do maquinismo e da industria1i~ação
..

•••·
atormentavam os sociólogos e os economistas. E:>..'ploração reforçada? Promo- '-
ção das,;nulheres, como se pretendera para a máquina de cO'stura? Ou"mais
, '

suylment~, novas divisões das qualificações e dos poderes? Este artigo tenta fa- ' La Révollltiotl des aiguilleJ, XIxe_XXt sjid~, Paris: EHESS, 1996; 'esperando a
zer um levantament.o ~?bre um tema que, desde então, deu origem a diversos publicação dos tl.lbalhos de Helen Harden-Chenut, sobre a indústria chapeleira'
trabalhos, sobretudo sobre a,máquina de Troyes. de Mõ"nique Peyriere sobre a~ máquina de costura, e de Delphine~
' de costura e o trabalho em domkí1io:P
.
I - ,
Gardey sobre a m;1quina de escrever no qual ela trata longamente eni sua tese

•• 11 SCHuNK. Bernhard, L< Li"., (1995). Paris: Ga11imard, 1996. p. 170. trad. fr.
12 RANCltRE. Jacques, Courts l'oyqges nu ~yS du pellple. Paris: Seuil, 1990.
sobre os empregados de escritório em Paris entre as duas guerras.
14 Podemos, a este respeito, nos reportar;\ sirie de breves atualizações apresmtadas
no colÓQuio da Sorbonhe (novembro de 1992) ,e publicadas em FemmtJ et Hiltoire.

••
'
Sous 'la direction de G. Duby e M, Perrot. Paris: Plon. 1993, "Femmes d 1Europe :
13 CO.FPIN. JiúJith, I1le Poliljq ,ofWomcl'~ Work, Til!! Paris Carmem Trades. 1750.

.
aujourd'hui", p, 126-192. com algúns dos melhores especiali'stas. Françoise de
7915, Princeton. NJ: Pril\ceton Universittl Press. 1996; BERGERON. Louis. (Dir.) . Singly, Linda Hantrais, Mârie Duru·Bellal.
. r ' ,
!

••
v :1
152
153
" --. "
Capitu lo 5

, \

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GREVES ,fEMININAS*
I

I,
I
/
As muUleres formam cerca de 30% da população industrial ativa".Ç, na-
quela segunda metade do século 19, sua participação aumentou '(30% em
1866: 37,7% em 1906): a estagnação da população, francesa, possível freio à in-
dtistrialização" 'evou a buscar, sem cessar, cada vez mais mão-de1obra'no re _ iC

, " selyatório" feminin o. Se a metalurgia, a construção, as min as ... continuaram '3


ser setores viris, as mulheres, no entanto, aum entaram na indústria qulmica
(30% ~os efe~vos no recensean.1eDto de ] 896, sobretudo por causa d.os taba-
cos, destinados ao segufldo se.-xo), na indústria do papel (280/0; mesmo recen-
seamento); elas conservam sua primazia na indústria tê.xtil (5 1%) e reinam em r.

, maioria na indústria de v~stuárió.(87%). Têxtil e vestuário concentram ent50


73% das trabalhadoras; como a confecção é praticada ainda .amplamente em
r , '
~omicílio. as (o perárias da agu!hà' lencarn am. ilOS olhos da opiníão pública. o
este'reótlpo da operária. As afirmações de um relat6rio operáfio de 1867 con-
tinuam verdadeiras: "0 destino dá mullier é a famH ia e a costura'~16
i ,.
l-
I ... Greves féminines.ln: Les Ollvriers 'etr greve (France. 1871-1"890). Paris: Mouton, '
1974,21.,1, p, 318:330,
J 5 Para O conjunto deste capitulo e lodos os problemas evocados aqui, eu remeto às
publicaçOes de GUILBERT. Madeleine. Les Fonctirms tles femmes dam l'irrdustrie.
, Paoris: L1 Ha ye Moulon, 1966 (l966a) eLes Fel/lllles ef I'organisatjoll sY/ldicale
, -" 1'- ...... " avant 1914. Paris: CNRS, 1966 (l966b). Para os dados de emprego. cf. este último
1- livro p. J 3-14, onde estão agrupados os r~1I1 tados dos recen~eamentos. .
i
., I,
_ 16 Relatório dos funileiros na Exposição de '1867, apud GU fLBERT, Madeleine. Les
'-' Fotlctiofls de femmes dam l'i"dustrico Paris! La Haye Mouton, 19660 p: 50.
~
.-
,
"
,:
155 '
• P~rte Z Clp{fUfo $ ~
Mlllheru fiO mun~lI",
G~W1 ftlllini"as

Relati~amente recente, sem tradição, oprimida por uma dominação bj~ A atitude das mulheres diante da greve merece então ser aprtendida em
céfala em que o homem e o patrão se apóiam, o proletariado feminino ofere~ diversos níveis. Mas seu estilo aparecerá melhor n as greves femininas propria~
' ce todas as características do exército industrial de reserva: emprego 'flutuante, mente ditas,
sem qualificação, suas remunerações são jnferiores a~ cerca da metàde das re~
°
Illunera,ões dos homens. Para os operários. salário feminino representa so-
bretudo um compl{mento, temporário, em maior ou menor grau. A mãe de CARÁTER DAS GREVES FEMININAS
família deixa de trabalhar e todas as monografias de famílias descrevem como
crucial o tempo da maternjdade ativa. A operária sofre uma dupla opressão: Limitadas em sua amplitude (194 grevistas/greve em média) e em s.ua
como mulher e como operári~. , duração {8,5 dias: 43% duram somente de um a dóis d.iàs),\elas se concentram,
Há razões:suficientes para se revoltar. No entanto, a desproporção entre na
maioria do tempo, a um estabelecimento.: Fábrica têxtil, manufatura de ta ~
o lugar d,\s operárias na indústria' e nas greves_salta aos olhos: de ·1871 a l890,
. ~bacos; contam~se ape nas cinto greves generalizadas e ,quatro greves rotativas,
173 coalizões puramente femininas. 5,90/0 do total, representando 33.368 parti:.
Geral,mente súbitas '(87%), defensivas (57%), pouco organizadas (61% sem
cipantes (3,7%), indic~m uma propensão à g,.eve bem medíocre (0, 123). ·Em
forma de organização), aindamenos sindicalizadas (9% somente), elas protes-
muito maior núrÍ1ero, é verdade,.as mulheres partidparam de greves "mistas";
tam mais do que reivindic3l1l. .,
nossos documentos assinalam expressamente 361 (12,3% do conjunto), e, pro~
Oitenta e seis por cento milit31l) apenas por um único obj~tivoJ o. salá~
vaveúnente, a maioria das greves da indústria te.xtil pêrtencia a esta categoria.
rio (76%), sempre ameaçado. A reivindicação de redução da jornada (Í2%)
As greves mistas se caracterizavam
, por
. uma forte, agitação: 37% comportam in~ . concentra-se não nas dez horas, pólo dos desejos.. masculinos, mas apenas nas
cidentes (média geral: 2'1%), 31% fazem manifestações de rua, cerca de 10%
- \
apresentam problemas e. conseqüentemente, taxas elevadas qe intervenção das doze horas previstas pela 2' República. Este é 'o objetivo de um iinportante
forças da ordem (policia: 16%, exército: 5%) . Bem longe; de levar à apatia, o ca~ movimento (junho-julho de 174) 'das fiarideiras de seda de Annonay, de Valle-
ráter misto destas greves forma wna mistura explosiva. Contrariamente a todas raugues e de Ganges (Departamento do Hérault); trabalhando das 5' horas da
as expectativas, o setor têxtil, como veremos, mantém seu lugar na cena social, manhã às 7 da noite, elas aspiravam a fazer apenas a vólta do relógio: de 6 às
,18 horas. 11
,
sem que se 'Possa medir o peso exato das mulher~s. Elas se mostram sobre tudo
dinâmicas nas passeatas e nos tumultos menores, dando-lhes voz e gesto, hábeis O mesmo ocorre com as operárias da fábrica de cordões de Saint- Cha-
para segurar as ba'ndeil'as, apl1par os P!trôes e quebrar vid~aç.as. mo~d·." As tecelãs da fábItica Pochoy-Bruny ,(Departamento da Isêre) referem-
Como esposas de grevistas. as mull"leres desempenham um {'apel vari~ , se à lei d~ 1848 com nostalgia: em 1876, elas ~abalham dezesseis horas (das4h
ve l -segu.~do a relação que mantêm com a profissão ou a fábrica de seus mafi~ às 20h30);" em 1884, elas fazem ainda quatorze horas e meia efetivas (de 5 ho-'
do,s:.a mulher do mineiro, muito integrada ao mundo da hulha, combativa e ras da manhã às 8 da noite, com uma paJada de meia·hora para o almoço), e
presente, como Maheude*, contrasta com a companheira mais distante do
qperáriO urbano:17 MU·~to g~ralmente. as dopas~de~casa inclinam à prudência,
18 ~rqu ivo I?epartamental do Hérault. 4 M 3613 (94), Greve geraJ das operárias (11
mais acessíveis, l)? entanto~ à breve chama de uma greve do que à austeridade ~OO) de t,!das as fábricas, de 30 de junho a 10 de julho de 1874 .
. do engajamen.to sindical. 19 Arqu ivo Departamental do Loire, 92 M IS e Arquivo da Prefeitura de Polkia B A
~
172, sobre este impof1!inte movimento de 1878. Elas se queixam da "duração de
....
* Personagem de "Germinàl " cle ~mile ~ la . (N.T.)
i ,
'. nossa jornada de trabalho, que é atuilLmente fixada ~m 13 horas e meia sem nenhum
repouso ou interrupção e que gostarbmos de fixar em 12 h o ra)~
17'- S~bre o papel ambivalente das mulhereÁ de grevistas.. cf. a terceira parte. '-
20 ' Arquivo Departamental do lsCre, 166 M 1, 'carta ao prefeito, 29' de janeiro de 1876.
"

,
.,
') 56
157
\
Pm'1t:2 Capiwlo 5
Mulheres no trllb/lllw
Grc,~ fcmi"j,,~
,,

o inspetor' Delattre descreve a vida.dos trabalhadores não alojados pela Fábri- pel timbrado, ca~tas respeitosas: " Nós v.bs rogamos, Sen hor ?l'efeito, que use
ca que "têm 3 a 4'quilõmetros a fazer para voltar para casa, de maneira que, se us d.ireitos e intervenha neSta questão para que cheguemos a um. acordo '
chegando para jantar às 9 horas da noite e partindo às 4 da manhã ... eles têm", honro~o'~z, dizem ao preFeito do Departamento' da Isere, as te~e1ãs de Voiron
apenas seis horas, no máximo, para repou sarJ>. ~1 que acreditam em sua bni"potência. Segundo 0. prefeito municipal da ~idac;le,
Não há reivind~caçõés propriamente femininas, apenas, talvez, uma ên .. "ontem, espalhou-se entre esta;s mulheres, a ootfcia de que o Senhor Preféi-
fase -no cansaço esniágador, ou nos rigores de uma disciplina particularmente to deveria cheg~ r às 1) ho ras para Ul.es fazer' valer a justiça e bom númerô de-
maçante: em uma petição ao prefeito, as tecelãs de Sain!-Deni.$ de Cabanile "pe- las se aglomerou na estação". l1 Vêem-se as dobad~iras de Lyon, apesar. de do-
dem par{l ser liberadas para rezar ou não na Fábrica. Pedem também que as tadas de uma câmara sindical, prganii.ar uma reunião pública para que se as -
rnl!ltas infligidas ... às operária~ sejam empregadas no casO em que as operárias sine um<f ca rta das operárias para Madame Grévy.lI Sinal tanto do prestígio
estejam doentes" (sic),U Nem sombra de urna invocação "feminista" pela igual- de que são aureolados os representa.n tes da República nascente quanto da es-
dade dos ~exos. Mais do que rccri'minar, as mulheres se queixam, membros "de p~rança operária. Quando, por acas.o.. o sucesso coroa estas diligências, co- .
uma humanida~e sofredora, vítimas de um,. destino cego cujos promotores elà's municllte decepcionantes, o reconheCimento aparecc. Para agradecer ~o pre-
, .
não conhecc::m ou não ousam den~nciar: "eles': vag~ figura do destino.n ," Cida- . feito, a quef!1 elas atribuem a transferência de um d.iretor detestado,!ls ope-
dãs, nossos sofrimentos não seriam os m esmos? Não nos mantiveram na mes ~ rárias fabrkantes de cigarros de Marselha fazem uma passeata para lhe ofe-
ma, ignorância, ignorãncia restringindo a inteligência natural da mulher ,e _não recer flores.»
lhe permitindo qU'eixar- ~e altamente das injustiças de que ela é vítima .. :: 2t As mU~leres mostram-se inquietas, legalistas. As empregadas da ~anu-
"
O tom co ntinua moderado, preocupado em justificar: "Os ~onside­ " tenção de Vals solicitam ~utorização para afixar uma convocação par,a uma coa- '
randos desta ,demanda são justos, razoáveis e legitim'os'fu marcado pela 4efe- '
lizão:)O As preparadoras de fios de Saint-Chamond rogam ao 'p~efeito qU! "nos
rência. As operárias não deix~m de chamar seus patrÕe$ d<~Se nhores"i elas
outorgue a permissão para 110S colocarmos coletivo\l!l.ente em greve'~)I Muitas
se dirige,lU com ' freqüência às autoridades (em 7% dos casos i média, getal:
.são reprimidas por uma tradi ção de respeitabilidade que,. nas regiões de d~ifo­
5%), sobretudo aos preJeitos*, aos quais elas descrevem,
. sobre o mágico pa-
, '
ção c~t6Iicà, enraÍ"Za-se no sentido do péçádo. !'las Cévennes, as católicas hesi-
tam mais do que suas camaradas protestantes. Em Ganges, estas' últimas "leva-
.21 'Arquivos Naciona is. F 12 4658. relatório do inspetor divisionário do trabalho
, "
,das por seus maridos, haviam feito tratativas junto às operárias católicas pa.ra
Delattre ao.min. tom.• 25 de fevereiro de l884.
engajá-Ias a execu tar seu projeto. Mas as católicas não quiseram aceitar a insti-
. 22 Arquivo Depn.rtamental do' Loire. 92..t.130. peça ,97, petição datada de 23 de agos-
gação que lhes fora feita pelas protestantes. Com esta recusa~ elas não ousaram
to de 1889.
.23 Chama-nos a ate.nção o uso dos pronomes "i1s,"õn;' nas entrevistas das operárIas ,
.
,.
: que fecham o livro de Guilbert. M. 1966a. Fantasias femininas? O personagem de ·
26 Arq~ivo Departamental do [sere, 166 ~ 1. carta ao prefeito, 29 de janeiro de 1876.
. um romance de Henry Bordeaux, Tia Dinne, vive com medo dos "eles" que
ameaçam a casa (cf. Ii' R'obe de Lnil1e). I 27 Ibid., carta do prefeito municipal de Voi ron ao prefe:ito, do Departamento, 2 do
fevereiro de 1876:· .
.\ 24 Arq~ivo da Prefeitura de Policia, ·B A 178. Apelo às operárias. de Saint-Chamond,
junho de 1878-que exorta as operárias a formar associações para se tornar "a igual. ' 28 Lt Rappel, 4 mai 1879. '"
a digna companheira do homem'~ 29 Le Cri du Pellple, 17 fevr. 1887, relato de Duc-Quercy que deplora que na última
25 Arquivo Departamental' do Loir~, 92 M 15~· Petição das preparadoras ' de 60S ~o reunião das grevistas,·"se tenha sobretudo feito elogios:\o prefeito" e que O resulta-
prefeito. ' . , do da.greve. que havia mobilizado todas as energias soc ialistas, tivesse sido confis-
Os P;efeitos (PrHets) são os representdntes. nomea'dos pelo' governo ce.ntral para cad6 pel?S polfticos burgueses: "Chafurdamos :\qui em ple~a podridão'~
I cada um dos Departamentos, d iferen~ement~ dos Maires, prefeitos municipais 30 Arquivo Departamental do Ardkhe. 141 M l . junho 1882.
eleitos pelo Conselho Municipal. (N.T.») '- 31 Arquivo Departamental do Loire, 92 M 15. carta .de 6 'de ago~to de 1878.
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entrar em greve".Jl A Igrej., que brandiu seus raios,lJ jogou seu peso contra as mulheres, escreye o prefeito dá Loire, é preciso proceder tanto quanto possfvel
,mulheres e suas. representações. Mesmo aparentelnepte liberadas, elas têm um pela intimidação e empregar a força apenas na última circunstância'~)t Em
sentimento de "vergonha" que Edgar Morin discerniu muito bem entre as bre- suma, elas não são levadas a sério.
tãs de Plozévet Sentimento do qual a moral laica, infinitamente prudente para Os próprios operários, nem sempre as apóiam . Na Fábrica Lebaudy, as
a educação social em geral e para a das meninas em particular, quase não as li- sucateiras de açúcar, pagas por'peça, choc.1m-se contra a inércia do~ ho mens,
bertará. Fazer greve,/par'1 muitas, aparece como um ato o~sado. quase temerá- . remunerados por dia." Em Lilte, quando as bobinadoras da Fábrica Wallaert
rio, que corre o ris~o de manchar a honra de uma "mUlher honesta'~ fazem uma paralisação, o patrão fecha a fábrica: «os tecelães adlam justas as
As greves femininas se chocam co m a;incompreensão 4e uma socieda- reivindicações das operárias; mas eles desaprovavam por sofrer de~do a estas
de para a qual a feminilidage já. é dificilmente compatível com a ~ituação ope- reivindi cações':~1 Acontece que os sindicatos ~e recusam a apoiá-las porque elas
rária, e é ainda menos com a situação de grevista. Os policiais insultam as ope- . não são sindicalizadas.u ou porque eles-éo nsideram sua ação intempestiva.o
rál'ias. ).I A.imprensa burguesa as caricatura, insistindo so bre seu aspec~o pito- Estes obstáculos explicam a tirpidez., a irre~olução das mulheres. Uma
resco, sempre no limite da obscenidade. Zombam das espartilheiras - 'Ia greve admoestação basta para faz!:-Ias encerrar a greve. Em Decazville, sessenta cali-
da roupa de ~aixo,,}5 -, das garçonetes dos ,Bouillons Duval que recusam "pa" bradoras protestam porque, para o mesmo trabalho, o salário dos homens fora
gar os pratos quebrados)); estas "empregadas" são tratadas de "amazonas". Ou
aumentado e não o das mulheres, um procedimento clássico: "Algumas obser-
.ainpa, em um tom de indulgência zo mbeteira, declara-se a irrespOnsabilidade. vações severas do Senhor Vigné acábar.a m com este começo de greve'~~ Inex-
, Aquelas l'pobres cabeças 10ucas",)6 j'vítin~as", 'perdidas"," aparecem 'c omo inca- perientes, elas não sabern comó agir, hesitam ao designar delegadas,'yoltam-se
pazes de agir por ~ua p'r6pria iniciativa. Atrás delas, procura-se o condutor muitas vezes para os homens, como se fossem seus tutores naturais. Em Paviot,
masculino. )t Aquelas "inofensivas", é preciso tratá-Ias como cJianças: "Com as
, (
em 1884, enquanto 90% dos grevistas são mulheres, elas escolhem como líder
Henri Barritit, um solteiro, tecelão da, Fábrica, e como secretário sindical um
32 Arquivo Departamental do Hérault. 4 M 3613, rel,a t6rio com. PcL, 24 de junho de çerto Roger, de Moirans." Dai, curiosamente, uma taxa um pouco mais eleva-
1874. ,da de intervenções políticas em seus conflitos (12% contra 10%). De fato, es-
33 A este respeito, ver os belos exemplos citados por GUILBERT. 1966b, p, 226. tas intervenções se produzem sobretudo num meio em que a organização é
34 Arquivo Departamental do Loire, 92 M 15, pt:ça 95: as preparadoras de fios ,
queixam-se, ao prefeito dos insultos que lhes lançam os policiais colocados eJl! ;
torno das fábri cas: "No entanto, Senho r Prefeito, não insultamos ningUém e n30 187?,. Em Decazville, "O' Senho r ,Bras acredita que a' leitura· do Cri du Ptuple, a
queremos que nós~ mulheres, sejamos insultadas'~ (sie) . greve de Decazville e talvez alguns individuas . de ViLlefranche tiveram influ~ncia
35 Greve das espartilheiras da casa Salomon, na avenida de ltalie, Arqui\'O da sobre a delerminaçilo das operárias" costureiras de sapatos de sua fábric'a (1886),
- J Prefeitura de Policia, B A J82 e Le Cri du Peuple, 2';.9 sept. 1886. etc. ...
f
'S;gu~do os Senhores Pochoye Brunny, carta publicada em Le Républi~Qi'l d~ J'Isêre,

I
I
/ 36
14 f.vr. J884.
37 Arquivos Nacionais, F 124653, Opt:l'árias das fábricas de ciga;ros de TouJouse.
39 Arquivo Departamental do Loire, 92 M 15, peça 66.
40 Arquivo da Prefeitura de Policia, a,A 172, 1888.
41 Le Rappel, 23 aolll 1880.
,
i
3f Arquivotla Prefeit~a de POlícia, a A 182, peça 7: "Há diversos dias, as brochado- 42 Isto ocorre com aS tecelãs do ateliê Prel em Lyon em 1882, Arqui~ Nacionais, F
ras de diversas casas, parecendo obedecer a uma palavra de ordem, procuravam ., 124662.
uma ocasião para deixar em massa seus atdi~": Seu "insuflador" seria um certo 43 Isto ocorre com a manufatura de tabaco de Lyon, em 1882. ,
Vjdal, do jornal Le Petir Ouvrier.#Em; T?ulouse, ? prefeito denuncia nas manifes-
,taçóes das ·operárias_das fábricas de cigatros "levantes que pareciam ter sido surda- '44 Arquivo Departamental do Aveyron, 52 M I, prefeitura municipal de De:cazville, 2
de setembro de 1872. .
mente preparados por indiViduas já cO?lprometidos e cujas figuras reapareceram

~
subi lamente na -,nuhidão" (Arquivos Na'cionais, F 12 4653, pref. Min" 7 de abril d(.
., ' ,. ,
45 Arquivo Departamenta l ~o Isere, 166 M 2 e Arquivos Nacionais F 124658.
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algo novo. Os· líderes. ao verem naquelas terras incultas uma possibilidade de Chainond, etc.) ~urgem "çomitês de iniciativa de Múlheres" - roupeiras, cos.
implantação. propõem seus serviços. Lisonjeadas. sentindo-se seguras com es- tureiras, tecélãs ... - suscétlveis de transformarem-se em câmaras sindicais. En-
.tas solicitudes. as mulheres as aceitam; mas elas se esquivam ou se retraem tre 1878 e 1884, a maioria das greves femininas do Sudeste é efetivamente di.
quando se sentem usadas.~ No final das contas, elas desconfiam da pOÜtlca e rigida por tais 'câmaras.
pr~ferem, em todas as)ituações. os moderados, a franqu~za radical, à violên- As mulheres participaram na grande esperança republicana da década
cia anarquista.·' / de 1980. Parece que elas viviam obscuramente, na, espera de uma liberação.
Elas desconfiam ainda das incitações feministas. As lavadeiras de Meu- Percebe-se o seu eco nos discu.rsos de MademoiseUe André, ~e Mademoiselle
don, organizadas, desprezam uma ' reurlião em .que Léonie Rouzade engaja, -Marie Finet, "a·oradora habitual do direito das mulheres",sl zeladora, da aSSQ-
sem sucesso, as ouvintes' a forinar uma sociedade de socorro mútuo.···D~ran­ ciãção no vale do R6dano, assim com~ nos considerandos de estatutos sindi.
te a greve das tintureiras de pele da Casa Tissier (Paris, Bulevar Arago) que, por caisSl ~u nas afirmações de certas grevistas: "Somos mulheres, 89 nos transfor-
sua virulência, fez certo barulho. o jornal L'!ntematlonale des Femmes tenta fa- mou em cidadãs", proclarytam as garçonetes dos Bouillons Duval que declaram
zeci dois cQmicios: um no Alcazar d'ltalie, com Louise Michel e Madame Astier
,
de Valsayre, redatora do L'Uníon des Feimnes, reúne seiscentas pessoas, mas a
- confiar nos ((campeões da democracia"'l para defendê-las:
A "cultura" das mulheres, naquela época, torna-as particularmente sen-
"assembléia continua fria";" o outro, com Tortelier e novamente Louise, tem sfveís às·ondas mess.iãnicas. A emoção que o 1° de maio de 1890 despertou en-
pouca repercussã.o.50 O feminismo, naq~ela época, continuava a ser um movi- tre elas nos dá um outro exemplo.s.I Sinal de potencialidades que os líder'es me-
mento burguês. sem audiênci~ entre as op~rárias. nos impregnados de civilização latino-cristã teriam podido fazer jorrar, mas
De resto, a maioria das tentativas de organização estável 'Se choca com a que foram per{?etuamente reprinlidas, desapontadas, desviadas ...
inércia, ou ao menos com a pusilanimidade gerada pelo temor e pelo ceticis- Tributário de toâo um certo ambiente, o movimento operário francês
mo. Houve, no entanto, paraJelamente aos primeiros congressos operários, e às tomava consciência lentamente do problema feminino. A questão da "mu-
lher", freqüentemente presente no programa dos primeiros congressos ope-
vezes enxertada neles, uma onda de esforços e de criações, inscrita nQ aumen-
rários, tende a desaparecer em segu.ida das orde;ls do dia. l i As diversas cor-
"to geral da sindicalização qu~ marcou o triunfo da República. Em Paris, em
rentes socialistas ou sin~ca is mostram-se pouco preocupadas ou até mesmo
Marse.lha, eJ\ll. Lyon e em sua região (Vienne, Saint-ttienne, Grenoble, Saint-
pOlJco favoráve.is à emancipação fem inina. Para os revolucionários, ela seria
resolvida somente "pela <!propriação coletiva de todos os instrumentos de
46 Arquivo da Pre(eitut:,a de Policia B A 171, peça 20, relatório de polfcia de 27 de
dezembro de 1888: "A greve das tintureiras não terá nenhuma organização; por
estar di'lidida entre os possibilistas, os blanquistas e os independentes. Os membros 51 Arquivo DeRartamental do Loire, 9"2 M 15, peça 66, julho de 1878.
I da oomissão pediam até anteontem para serem dispensados de suas fun ções>: . 52 Arquivo Deparf:amental do Isere, I;statuto da C~ mara sindical das "ope rárias de
47 Ar,quivos Nacionais, F 124662. Greve das picadoras da C'\sa Celle-Mauco em lyon, , e
todas as corporaçOes reunidas de Vienne": ..... é material moralmente impo~­
1886: em um comunicado à imprensa, as operárias recusam a ação dos anarq~istas
I que queriam influenciá-Ias. -
sível que as operárias continuem ainda por muito tempo em um isolamento que
atenta gravemente contra Seus interesses: ... seria soberanamente injusto que o
trabalho das mulheres continuasse constantemente insuficiente para sua vida e
48 Arquivo da Prefeitura de Polícia B A 176 e Le Rappe.l. 3 jull. 1880: entre 600.
operárias, 400 grevistas e 65 pr~ntes na reunião. - sua indepe~dência", etc.
· 49 Arquivo da Prefeitura Ide Polícia B- A In , peça 57, relatório de policia de 28 de 53 La Marseillajs~, 2-2 juil. 1878.
, dezembro de 1888. ! 54 A este respeito, cf. a primeira parte das Ouvrih-~s ~n grtv~, J: ·u mC;lUvement des
50 , Arquivo da P~e(eitura de Palleia B A 171. peça 58, relatório de polteia de 28 de greves.
. dezembro de 1888. .., l ' , ,' 55 A este respeito, cf. GUILBERT, I 966b:. p. 155 et seq.
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produçi'io",S' Para OS proudhonianos - e sobre 'este ponto a maioria .dos ope- , trinta tostões e n~o de vinte e cinc~" e depois entoam a "Marselh~sa" e voltam
rários O eram! - o trabalho industriaJ contraria fundamentalmente a nature- para a casa. Para estender seu rtlovim'ento, as operárias de Bóurg-Argental
za (eminina: a mulher em casa, esposa e nlãe. continua a ser o ideal. Até mes- ,,'for".:lam grupos, levando na frente uma pequena bandeira carregada por dois
mo os socialistas revolucionários conse,rvam uma ótica populacionista; o garotos de doze a treze anos fl." Em' Renage. as tecelãs, "para chegar à prefeitu-
blanqujsta Chauviere funda o direito das mulheres sobre a maternidade: <IA . ra munjcipal at~avessaram uma parte do vilarejo canrondo) e uma delas carre-
mulher... tem o dirêito a todos os cuidados ~ a todas as conside~ações possí- gava urna bandeira tricolor... Em seguida, urna·centena delas entra.r.am e~ um
veis para dar ao país crianças robustas: Se lhe faltar o necessário, ela dará café ... onde beberam, dançaram e cantarám até às oito horas e meia da noite"~61
apenas crianças doentias e fracas. " Reconstrnindo o mundo, Pataud e Pou- Ná vida cinzenta das mulheres, a greve reveste-se freqüentemente de uma apa:-
get mantêm, sobre o capítulo p~~ l1~ulheres. uma prudente reserva. H rência de fuga, de festa. tJ ' •

A ausência de organização sindical, juntamente com a recusa particu- ' Gostaríamos, naturalmente, ~e conhecer as in~tigadoras de %reve. Mas
larmenle acentuada do patronato em discutir cóm as mulheres, facilmente . - .~. a obscuridade, o anonimato, o preconceito, as dissimulam mais ainda do que
substituiveis e dispensadas, torna a negociação ditkil e favorece os incidentes. seus camaradas masculinos .... Mais do que eles, elas são suspeitas, ainda que di-
Eles acontecem em 25% dos casos (média geral 21 %; somente homens: 18%). -- ferente.J)lente taxadas não de "espíritos fortes", mas de "costumes levianos': não
incidentes aliás, pouco dramáticos: saidas em massa, algazarras, passeatas so- _ de possuir convicção, mas "exaltação", não de ter audácia, mas "atrevimento':'
bretudo (manifestaçÕes de rua em 1'7%, das greves; contra
. 6,7% para os ho- A respeito de Clotilde Pardon, tesoureira do comitê de greve das tintureiras de
mens). Ainda, as mulheres cantam. rarame~te outra coisa além da "Marselhe- pele, diz-se que ela "tem mais topete do que inteligência':.s Louca, devassa, ou
sa", gostando de cantar em reuniões "romances sentimentais";SJ e elas agitam a virago: a instigadora não escapa ao destino que lhe é fixado pela opinião pú-
bandeira tricolor. Cinqüenta 6.andeiras de Privas cujo patrão, éom o prete.xto blica. Mulher jovem~ em todo caso, (entre 75 instigadoras de idade conhecida,
de que "a Mariannelt não arrebentou" nas eleições legislativas,~ acabava de di- 69% têm de 15 a 34 anos). at~ mesmo muito jovens (42% têm de 15 a 24 anos).
minuir o salário, saem da fábrica cantando com toda a força: "Precisamos de sobretudo nas fábricas de seda, como reflexo do pessoal empregado. Ao con-
- trário.:'nas manufa;uras de tabaco, em que se faz carreira, as velhas emprega"
'da~ conduzem o jogo, instruem as jovens~ como guardiãs dos «direitos" e de
56 L'EgaUtt, 28 juil. 1880, moç."io apr~sentada por L'E$aliré (guesdista) no consresso
regional socialista do Centro, ?leis: "A questão do direito das mulheres será resolvi· uma tradição em formação.'"
da e não poderá ser resolvida senão com a questão do trabalho pela apropriação.. . Nomes, algumas idades, constituem quase que a totaHdade de nossa
~oletiva de todos os instrumentos de produção':
,~' . \ , .
.provisão. Apenas algumas silhuetas emergem aqui e acolá, captadas num des-
57 Le Crj du. peuplt, 24 d~c. 1888.
vio de wn.a rua, na soleira de uma fábrica, revoltadas de um dia que o vigor de
fato-:
58 1911 , p. 288-293, ultimo capttuto dedicado à'' ' La libérntion de la femme" ~, de
I .um retrato idílico da vida futura da mulher, liberada pelo progresso das c,!rvéiai .
seu protesto levou à delegacia de polícia. Eis Angélique Faligonde; sessenta ,
I domésticas, e plenamente dedicada à "sua alta função de maternidade".
I 59 At;quivo
I
da PreCeitura de Policia B~ 171, peça 43 , relatório de policia de 6 janeiro
de 1889, relato de comkio: " Diversas mulheres cantam romances- inofens ivos. Mas
61 Arquivo Depart'lInental do Loire, 92 M 17, peça 19.
I
62 Arquivo ··Departamental.do Js~re, 166 M 2, s-pref., pr~(. , 13 de março de 1883.
.0 5 homens n3.o fazem o mesmo':
... A República ~ simbolizada por uma mulher, muitas Vt2es usando o boné frigio, que
63 Outros ex~mplos de greve-festa, terceira parte, Le Cours dt In grtve.
é chamada de Marianne. (N.T.) "" 64 ' Sobre os instigadores de greve, cf.· a terceira parte, p. 450 e seguintes.
, Encontraremos ali alguns retratos femininos.
60 Arquivo departamental'do Ardh:he, 141fM l,segundo o comissário de poliqa, 9 de
nove~bro ~e ~885, este patr.ãO anti-re~ublic!1no, Gamer-Lafon, anunciara a sua.s 65 Arquivo da Prefeitura de POlfcià, B A 177, 1875.
õperárias q~e use a Marianne nao arre~entasse" nas eleições de 4 de outubro, os 66 Caso típico da greve dos tabacos de TouJouse em 1875 (Arquivos ~acion3is, F 12
~alários seriam redutidos. "- 4633), conduzida pelas "velhas enroladoras". '
.'
'.. '..
,
164 165
Pàrt~ 2 Caplt'UloS
MlIl/r~fthlO rmbldJto Gftvt"f~millil/(u

a.r:tos. bretã de Nantes, dobadeira de lã na Fábrica Poiret, no bulevar de [talie, da sed~. Sociologia que explica uma 'geografia dos co nflitos, concentrados no
e~ Paris, solteira, que leva sua pequena tropa de contestadoras, também sol- sudeste do pais (57% em ~ez depart~mentos deste setor).7'O Ao fat~r industrial,
teira~, de vinte'a quarenta anos." Eis Ltonie Verget, nascida em Marselha, lri.n- será talvez preciso acrescentar outros fatores: influência do protestantismo, do

I
ta e três, 3nos; ela vive marita1m~nte co~m um jornalista, paga um aluguel de. radicalismo? A mulher dá a impressão de ser mais livre, de fala r mais franca.
120 francos por mês, trabalha desde os quatro anos como debulhadora de fei- mente, Ela encontfa um apoio mais firme por parte dos republicanos locais."
jões na Fábrica Apperr-(Xx° distrito ), penando das cinco horas da manhã às Diversos tipos aparecem: tomaremos apenas três deles. No grupo dos
onze horas da noite por 0,70 francos; ela foi presa por injúrias aos' não-grevis- couros e peles e seus anexos (calçado s, luvas) (5,9% dos conflitos), a influên-
tas que não queriam, como ela, reivindicar 1 franco; segundo sua ficha poli-
cia da tradição masculina de organiiação se faz sentir. Acãrnara sindical dos
eial, "ela não tem opinião política precisa, mas é exaltada':"
curtidores de peles do Sena apóia ativa men te a g~eve das tintureiras de pele da
As "organizad.oras" (membros de comissões, oradoras de reuniões. até
C~asa Tissier em 1888, convoc~ diversas reuniões, entre as quais uma conferên-
mesmo responsáveis por sindicatos), ~enos preocupadas' co m o brilho, esca-
cia-concerto, com renda em seu beneficio, e as incita a organizar-se.12 A solida ~
pam-nos ainda mais. As filh~s ou mulheres de 'militantes, adossadas 'em um
riedade dos dois sexos mostra-se particularmente forte na 'indústria de ca-Iça-
meio que as compreende etas apói.3, têm entre as mulheres um papel seguro. Ein
dos: as picadoras d<:! Casa Celle-Mauco, em Lyon, em 1886, são apoiadas pelo
Lyon, em Saint-Ch,amond, as esposas·de Charvet e de Georges Payre, tinturei.- ~ ;'I '
sindicato dos sapateiros, de tendência anarquista; e apesar de desaprovarem as
ros, ativos militantes, animam, junto com Marie Finet, as "corporações das da·
tentativ~s de greve geral. a exemplo de seus camaradas, elas constituem um
mas reunidas" (1878); em Vi1lefranche, a jovem Liégeon, companheira de um
sindicato, Mas o caso mais notável se dá em Fougeres: em 1889, as picadoras
anarquista notório, redige moções e ocupa a tribuna dos comícios." A nülitàn-
sindicalizadas desencadeIam um mov.i mento para obter aumento de seus salá-
cia feminina não pode~ia dispensar a aprovação familiar. Desenraizado, solitá- ,
rios, os ho m ~ns param sem reivindicação própria e as manifestações bastante
rio, o iristigador é geralmente ~m indivíduo em ruptura: si tuação inviável para '
agitadat, sob retudo contra a Casa Houssaye, misturam indistintamente o pro-
uma mulher, ao menos,operária, que não p.ode agir se não na esteira do homem.
letariado dos dois sexos." Nestes diversos exemplos, as operárias parecem bem
integradas ao mundo operário'.
SOCIOLOGIA PROFISSIONAL DAS GREVES Nas manufaturàs de tabaco e nas fábricas de seda, as greves apresentam
necessariamente mais autonomia, mas de maneira bem diferente. Fiações e te-
FEMININAS '
,I

, esboçar brevemente"a sociologia p.rofi~sioJ1al 'das greves femini-


Resta 70 A saber: R6dano; 22; lsere: 18; BOllches-du-RhOne e Gard: 15; Loire: 11; Ardeche:
7: Hérault: 5; DrOme: 3; Haute-Savoie: 2; Vaudust: I. '
Ifas. Sessen.t're dois por cento (ou seja 105) pertencem ao grupo têxtil-vestuá-
7 1 Os·jornais democratas•.em I.:.yon assim como em Vien ne ou em_Marselha parecem
rio dai quais mais de um terço (e 24% do conjunto) estão ligadas à indústêia
I ' , . particularmen tt atentos 3S greves femininas. Por diversas vezes, os Círculos repubH- ,
canos oferecem .seu5"locais às operárias pa ra suas reuniOes, O pa~ dos círculos rad-
J ' icais ~ denunciado pelo comissário de polícia de Ganges em 1874 bem como. em
67 Arquivo da Prtftitura dt Polícia, B A 177, 1875, 1880: cf. Arquivo Departamental do Hérault, 4 M 3613.
\

.:
,
68 Arquivo da Prefeitura dt Polícia, B A 177, per' 5. 18?5, 72 Elas formam um sindicato. ao término da greve. Encontramos, aliás. estt mesmo
69 Arquivos Nacionais. F 124662. Grtvedas tintureiras de Villefranche, 188 1: papel processo em 7% dos conflitos: sinal de uma tomada de consci~nciaaa necessidade
"I importante das mulhtres nesta 'grevt mista; participação nas reuniões, prestnça ... de agrupamtnto, .1
regular,de duas mulhtres no' escrit6rio co""o assessoras: 3 margem das reuniões
gerais. rtuniões especiais para as mulheres, dc.
,i -r -
,
73 Sobre esta grtve, cf. Arquivos Nacionais. F J2 4665 e sobretudo Arquivo
Departamental de IIbet-Vilaine. 60 M 6 1. ' .!
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, 166 167

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Mu/l.(F'tI no tmlwalho G~ fomi,.i"iU

celagens do sudeste, descritas de longa data por ViUermé, Reybaud7~ e tantos fevereiro a 20 de m arço de 1884), C0m numerosos episódios. Greves m ovinlen - '
outros autores, empregam uma mão-de-obra de o rigem rural , temporária e . tadas, vivas, juvenis, revoltosas;' fuci1mente contagiosas; mas efêmeras. instá-
, I
geralmente tom contrato: na Casa Bonne4 em Jujurieux (Ain), onde, por vol- veis, veleidosas no plano da organização, e minadas 'pela passividade, e até
ta de 18,80, trabalham um milhar de jovens de onu a vinte anos, os pais assi- mesmo pela hostilidade das famílias camponesas. e por uma conj untura de-
nam um co mpromisso de três anos e meio;' em caso de ruptura, eles devem pa- , gradada. O que explica qU,e, a despeito de uma boa eomhatividade, as coalizões
/
gar 50 cêntimo~ por dia!" o que explica suas reticências à paralisação. As Fá- se esgarçam. ,
bricas alojam. as operáriâs em dormitórios: lotados, severam ente mantidos por As manufaturas de tabacos apresentam wna ~estru tura o~iginal: "forte
religiosas, alimentam -nas miseravelmente, Obrigam-nas a rezar. As jornadas concentração de uma mão-de-obra essencialmente ' feminina," estabilizada
vão de treze a dezesseis horas, por saJá rios deIri~6 rios, pagos .diretamente às fa- por relativas vantagens de carrei ra (aposentadorias).- "Nest~ profissão, o
mílias. Estes es~abele.cimentos. fundados inicialmente segundo o modelo do aprendizado dura diversos anos; conseqüentemente, o ~to de um a demissão
Lowell americano, assemelham-se, n; realidade, às workhouses britânicas o u provoca um grave prejuízo ' àquela que é demitida. A admissão é ~concorrida. e
japonesas. Os economistas burgueses, co mo Paul Leroy·Beàulieu/' elogiam- a administração favorece a este respeito as filhas de antigos operários".'1 Enfim, '
nos; os democratas ·os denunciam com um vigo r aumentado pelo antiderica- a existência de um só patrão, o Estado, unifica as .c ondições e as aspirações. Daí
lismo da época. Estas ~'d ticas ajudam as trabalhadoras a tomar consciência de o desenvolvimento de um sindicalismo feminino (ele próprio precedid~ de
sua exploração? Ou a crise, sucedendo a um "golpe de sorte"," agravando ain- uma tradi ção mutualista) precoce ( 1887: em Marsellia, primeira câma ra sindi-
da mais a sua condição, as levaria a abandonar a resig'nação? A verdade é que ' cal das cigarreiras), maciço (~m 189 1,7800 sindicalizadas, 40% dos efetivos),
entre 1874 e 1890, numerosos·conflito$, inicialmente inofensivos e focalizados unitário, e no fim das contás, muito corporativista. 12
mais sobre os horários, em .seguida mais defensivos dos salários, agití!ra m os As ope~ias dos tabacos disti~guem-se entre as mulheres por uma pro-
"conventos" da seda. A Casa Poç.hoy-Bruny, em Pavi'o t (Isere), ~ipo híbrido pensão à greve particularmente forte: 32. Formando apenas 0,5% da popula-
pois combinava o internato das moças e as "casernas" para casais," conheceu -
três conflitos, entre os quai s um que .se estendeu por quarenta e seté dias (10 de
. , l' ção feminina ativa industrial, elas fornecen) 16% das grevistas femininas. De
1871 ·a 1890, elas s'ustentaram nove conflitos, amplos, màs comumente bre-
'ves," ca racterizados pela vivacidade da negociação, o vigor da solidarjedade,··
,
74 GUILBERT,.1966a. retomou uma p3 rte destes textos, p: 37 e segu intes.
75 Segundo B. M3Ion ;e;n Le Citoye/l de Paris. 15 janv. 188 1'. 79 ' Em 1890, vinte mnnufaturas ocupam 20.000 trabalhad~ ras.
-\

76 Le Trewail desfetll/lles au XlXe siecle, 1873, p. 4 14 et seq. insiste nas vant3gens 80 A este respeito. cf, A. P: O., t. l, p. 627. O montante das aposentadorias, no inicio
familia res do sistema: "Esta patronagem tão eficaz .e, entretanto, t30 pouco tir~ni­ 1 derrisório, ~ o principal objetivo visado pela Federação d.os Tabacos constitufda em
<a; esta liberdade, que n30 leva quase a nenhuin aBuso; este decoro, esta postura, novt"mbro de 1890. ./
Iestá Çlignidade, esta previdência, esta ~abedo ria en tre as jovens moças. senhoras 81 BlIl1etin de J'Office du travaiJ, p. 401., janv, 1907,
/ de si mesmas ..... , .
79 Sobre a situaç30 econ~mic;l da indústria da seda . cf. LEVASSEUR, E. Qucstiolls
82. Além d< A. P. O., ~ I, p. 603 .. seq., cf. GUr~ERT, t 966b, p. 93;99, estudo vivo ~
detalh3do das SC!SSOes dos congressos da Federaç~o.
J ollvritres et industrielles .sous la Traisitme République. Paris: [s.n.1,·1907. p. 107 et seq.
, . '83 Máxima duração: greve de Marselha, de 6 a 2l de janeiro de 1887.
78 Descritas por Le Réve.iI du Dau.phiné, 17 fevr. 1884: o enviado do jornal entrevistou em
um quartinho de tábuas mal juntas, um casal e seu bebt; ·'lcvantar.4 e meia da manhã 84 A respeito da greve de Toulowe, em 1875, em que sucesSivamente as jovens apren-
... deitar. dez horas e assim, seguindo~da ~ma Q. fábrica, dois passos, da fábrica à dizes c«usam-se a fazer um trabalho rejeitado pelas mais velhas, em seguida eslas
últimas insurgem-se contra a demiss3Q das mais novas, cf. Arquivos Naciona is, F
ClIserna, pagando 1,80 fran'cos J>C?r dia," O o~rário declara ganhar 45 francos em todas
. 124653, pref.-m in., 7 de abril de 1875: "As palavras de so l~ dariedadel confraterniza-
as cinco semanas' nas quais i p~eciso descon}ar 7,50 fra ncos para o alojamento e 30
ção e dedicaç~o pass."lram então de' boca-a~boca e em um pi.~ar de o lhos, as
toStOes por mês p~r:1 o "lidado do bebê pelat religios.."lS. Resto: 36 francos.
" cabeças das velhas enrÔlãdoras estavam cheias'~ r
.- \
.: '.
168 169
~I PatTcl
MuJltcrtJ 110 rrllbn/l,o

I'
a vari edade das for~ as de organização, O lugar, nas queixas, das questões de Capitulo 6
disciplina (multas. puniçõés. repreensões ...) e das relações· com a direção. Cer-
ca'de mil operárIas se mobiliza m, em Macselha, durante quinze' dias, pa ra ob-
ter a demissão de um chefe de seção detestado, Roustan , "um verdadeiro fei-
to r"; este du elo apaixona a o pinião pública local." Os estabelecim'e n tos do Es-
/ -
t.a do não oferecem o-éxemplo do liberalismo: "Dá até vo ntade de estar nas ga-
o ELOGIO DA DONA-DE- CASA NO
lés" exclama uma veLha ciga rreira," No entanto. as poss ibilidades de mediação DISCURSO DOS OPERÁRIOS FRANCESES
e de negociação parecem ser ali mais fáceis, pois o ministério:~n ão apóia seus
funcionários tão firmemente qu~nto 'o faria-um patrão privàd~. Dai, para um NO SÉCULO 19*
m eio ho mogêneo e co mbativo, que tem sua l inguage m fran ca, a existência de
um jogo mais aoerto e com maior sucesso.
Exceção em um univer.so de derrotas e de sub m issão.
"O destino da mulher é a família e a costura ( ...). Ao homem , a madei-
ra e os inetais, à m ulher a fam Uia e os tecidos." Eis aí, expressa de'maneira ra-
dical po r um delegado o perário na Expos ição de 1867," a gran de divisão sexual
do trabalho e do -espaço social que a racio nalidade .do século 19 levou aos seus
mais extreulOS limites. Na sinfonia concer tante' dos discursos spbre a natureza~
femi ni na, chave de um inevitável destino, sobre a especificidade dos papéis 90S
sexos definidos pela relação co m a fa mília fu ndam ental e necessá ria, o discur-
so operário, à primeira vista, destoa muito pouco. Vam os nos inte.rrogar sobre
as suas modalid3.d~s, po r meio de alguns exemplos, e mais amplamente, sobre
a realidade que ele recobre e se u grau de concordância com esta realidade. Se-
ria um a descrição idealizada de um a prá tica relativamen te adequada a este dis-
curso? o u. ao contrário, o.pesar nostálgico de um mundo que se desfaz? o u ain-
da a expressão de um m odelo presentem ente fora de alcance? Que .função - H-
'.- rica ou no rmativa, queixosa ou o fensiva - tem aq~i o d.iscurso?

/ 1
I ,.. L'~loge ·de la ménagere dans le discours des ouvriers fra nçais au XIXe si~c1~. ,
Ro mantis,,!e~ "Mythes .et représentations de la femn,1e': p. 13: 14. 105~ 121, oct.fdéc. -
1976.
85 Le Cri du Ptup/e, 15 janv. 1887. -
87 Rapport des-délégations ouvrieres à l'Exposition de 1867, t. I, p. 4. Para um comen-
86 Pa~licipaçãO das greves agrkolas no 'Conjunto das greves: 1864-1870: 0.3 % - \871-
1890: 1,1 %-.1894-1913: 4,' % - 1919- 1935: 3,2 %. Pa ra o estudo das greves agri- tário recente e novo sobre este próp rio tema, pode-se ler o artiso de Jacques
Ranci~re e Patrice Vauday, ulndo à exposiç30: o operário. sua mulher e
col~, cf. GR.ATION, P. Us lUtfeJ de di'USer la campagne. Paris: Anthropos, 1 9~0. 35
m:\quinas". w Rh:'oltes Logiques, n. 1, hiver 1976.
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171
170
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Pllff,2 ClpltlllrJ6
O tkJfio dQ dollQ·dt.ttUll
Mullltn:f no frubllllro
IrYUIUJa
110 discvl'lQ do1 oJH!rdrios M IiaIkJ J,

CABET E PROUDHÓN, CLASSICOS DO POVO to 'à sua existência, parte sem a qual sua existênci", está incompleta e privad'a
de felicidade"."
Os escritos dos sociali~tas sobre a mulher e a família são prolíferos e di- I
Proudhon, por sua vez, intérprete de um mundo embarcado no cresci-
mento econômica, enaltece a superioridade da castidade sob re a sensualidade,.
versos." Mas os sufrágios do povo não vão nem para Enfantin, defensor da
do trabalho sobre o prazer e vê 'na família o melhor meio de domesticar a ener-
reabilitação da carne, ry,..em para Dézamy. partidário da união livre e do fim do
enc1ausununento familiar em proVeito da comuni~ade; vão preferencialmen- -
gia libidinal para orientar todas as forças para a produção, pe,rfeita ilustração
da grande "repressão' sexual" atribuída à sociedade industrial e da qual WlIhem
te para os \mais 'conservadores neste ponto, para Cabet nos anos .1840 e para
Reich será O analista. No que se refere à mulher, Proudhon ad~re totaJp>ente ao
Proudhon, vinte anos_mais tarde. Cabet dedica, é verdade, um opúsculo a La
discurso médico sobre a inferiorida4e fl'sica do' sexo frágil, retomando por sua
Femm~,' son malh.~urfLtX SOft dans ia société acttl~lle, 50tl bonh~ltr dans la Com- çonta toda a sintomato,logia desta fraqueza: tamanho, peso, menstruações, cai.'
munautf.' (A Mulher, seLI j'lfel;z destino na sociedade atual, ~ ua felicidade l1a xa cranjana ... A5 funções da mulher inscrl!vem-se em sua conformação: uma
Comunidade). Sua denúncia tem ênfases concretas (a mulher agredida ... ); vagina para receber, um ventre para carrega.f, seios para aJnan;tentar - como os
mas seus remédios visam o melhor funcionamento de uma célula familiar es· pedaços dos melões - marcam seu destino, feito pelo homem e pelo·filho. Ne-
sendal. Icarie mantém a segregação do masculino/ feminino, com a exclusão . nhum lugar além do lar. .
das mulheres do direito de1cidadania que, outror~l Condorcet reivindicava, ao "Cortesã ou dona-de-casa': eis a alternativa .
menos para as mais privilegiadas dentre elas. O ~asamento é obrigatório
como garantia de moralidade, o celibato é deso~rado como "'ato de ingrati-
, .Ora, Çabet e Proudhon gozam de ampla audiência popular. O primei-
ro chega a mobilizar em toda a França uma verdadeira rede q~e se pode con-
dão"; O adultério e até meSmO o concubinato, pergoáveis em uma sociedade' siderar como o primeiro esboço de um "partido operário"!',O segundo foi, por
desigual, tornam-se "crimes sem desculpas". A escolha do cÔnjuge está subme- muito tempo, tanto o mestre do pensarrl~nto quanto o intérprete dos operá-
ri~s profissionais que formam a ossatura das"associações operárias e a alma da
tida às necessidades da família ti do grupo, e o convívio dos jovens se desen-
autonomi.a federal.
rola "sob os olhos de suas mães", censoras dos bons costumes. No· atetiê bem
como na escola, os sexos s30 separados; no baile, a mulher dançará apenas
com seu marido; a ~rte bane a nudez na pintura assim como nos romances. A PALAVRA OPERÁRIA: O CONGRESSO DE
O sentido de pudor se est~nde até os cadáveres. P"ara a autópsia, "o corpC? das .
[ MARSELHA (1879) .
mulheres é confi~_do so mente às mulheres: é uma relíquia sagrada. que não
I
deve ser profapacla pelo olho do homem". Na família, onde reina uma rigoro-
,Na segunda metade do século 19, há muitas outras maneiras mais dire-
sa div~~ãO -d;s tarefas, o marido tem c'voz preponderante" e a 'mulher é defini- tas de ouvir a voz operária. Entre ou·tras, os relatórios dos delegados nas expo- .
da cofno 'isua primeira companheira, ( ... ) sua primeira sócia, ou mais ainda, sições e nos congressos constituem wna 'fonte interessante por seu caráter're- I
I
parte integrante dele mesmo, pa~e que, sozinha, pode servir de complemen- lativ~entJ coletivo. Os delegados são os yorta-vozes de. grupos mais vastos '

88 O trabalho fundam'ental, infelizmente: intdim, ~ o de DEVANCE. Louis. Úl qllestion 90 DOUZl leNres d'u'~ commun;stt à IIn rtfomliste sur ÚJ communauté, p. 49; apud Loujs
de la famille dans la pensie socialiste frarçnise de Fourie.r à -Proudhotl. Th~ . Devancc:, a quem devemos .~Ias análises.
(DoctQrat de·3··cyde), Dijo.n; 1972. t
. '. l 91 , A este respeito, ver JOHNSON, Christopher. Utopian Commutlion in Frlmce. Cabet
89 .4. ed. Paris: Bureau du populaire, 1844. 30 p. . atld file ICJJr;a!U (1839-1851). Ithaca: CorneU University Press, 1974.
.' ., '"

J7i 173
POlrtc 2 Copfflllo6
MuJ/ltrr$ 110 fralllllllo O dogio dll dOIIll · de-tasa
110 duwrso dos oprTtkio$ t,.rmctJtJ 110 ú culo 19
. ,

que os indicam para expressar seus pontos de -vista e os censuram se eles os


RENOVAÇÃO DAAÇ,ÃO FEMININA
substituem por uma mensagem pessoal demais. Em Marselha, um represen- -
tante dos operários joaUleiros da cidade é chamado à ordem porque se pro-
Outras razões explicam à ênfase colocada na condição feminina em
nuncia contra a emancipação da mulher, contrariamente aos de~eJ.os de sua câ- 1879, lnicialmente, a ação das próprias mulheres, esom''ulada peja nova con-
mara sindiCal; seu relato é interrompido por vaias e não será publicado (que juntura polític;. Após o obscurantismo da <?rdem Moral tão culpabilizante
pena!). Por outro lad<>: este discurso de tribuna é mais normativo das regras para as mulheres (com a Escola, elas não seriam sempre culpadas pelas derro-
admitidas do que descritivo da prática s6c~al. tas J!li litare~?))H eis a República enfim conquistada. O que fará ela pelos prole- '
~· O imdrtal congresso de Mar) elha" é a mais notável das três assembléiâs
tários e pelas mulheres? Estas últimas expressam sua esperança de diversas ma-
(Paris, 1876; Lyon, 1878) q~e m~rcam o surgimento da cl3.sse operária fra'n'ce-
neiras. Hubertine Auclert fundou em 1876 Le Droit des Femmes-(O Direito das
sa como força nacional, o advento do "Quarto Estado" em busca de suas for- frlu lh e.res) e, em ,Marselha, ela se torna cc a delegada de nove milhões de escra-
mas de organização e de seu projeto político. Notável por suas resoluções fi-
vas': Associações corporativas feminina s - câmaras sindicais de operárias, ou
nais ~ uma "maioria se pronunciou pela coletiviza"ção dos meios'de produção e
de Senhoras r~un"idas - foram formadas em Paris, Lyon, Marselha, Saint-Étien- "
pela implantação de uma Federação <te tedos os grupos operários -, este cOn..:
ne, Vienne, etc.; até m ~s mo greves oclodem (garçonetes dos Bouillons Ouval
gresso também o é pela variedade das participações individuais e coletivas':
de Paris, operárias das fitas de Saint-Chamond em 1878, tecelãs de Vienne em
pela liberação de uma palavra abundante e entusiasta e pela amplitude dos
1879) durante a; q~ais expressa-se, com força não habitual, 'a reivindicação das _
problemas abordados. . , . trabalhadoras.
A-questão "da Mulher" figur~"ali em sua acepção J.1~ais ampla. Um su:n-
Tudo 15so subentende a palavra feminina excepcionalmente prese nte no
pies levantamento efetuado a partir das ordens do dj a dos diversos congressos
congresso de Marselha. A despeito· de um status men orr pois elas têm apenas
corporativost2 mostra, ulteriormente, o encoUllmento do enunciado, a partir
um vo to consultivo e deliberativo, sete delegadas (entre as quais, cinco costu-
de 1888, reduzido unkamente ao " trabalho das mulheres" quase senlpre junto
reiras) intervêm n ão somente na sessão, dedicada à Mulh.er, mas nas outras, ,
ao trabalho das crianças; em seguida, há o desaparecimento completo da quês- ,-)' como portâ-vozes, mas também como assessoras ou secretárias e nas diversas
tão; depois de 1900, ela não é nunca mais inscrita no programa dos congres-
comissões. Leremos, neste mesmo número o notável relatório de Hubertine
sos nacionai~ e apare'ce somen'te sobre a fQrma indireta das "creches para
Auckrt. Mas ela não é a única, e as palavras de Louise Meuni.er Tarctiff ou Ju-
crianças" (Congr~·so das Bolsas, 1913). Tomaremos, aliás, o cuidado para não -
lie Martin mereceriam ser reproduzidas. Retomando a herança d e 1848, elas
dar demasiada importância a este sinal isolado. Mais d.o que um enfraqueci-
vão bem mais longe e por mais tímidas que nos pareçam atualmente, repre-
mento da questão da mulher no meio oper,ário, ele"testemunha a mutação d0-
sentavam um avanço, tanto que foram Certamente mal entendidas. Os turbi-
- discu/rso. Uli1itante ligado 'à mudança da própria ínstituição sindical, tornada "
lhões provocados na última sessão pelas resoluções de Hubertirie Auclert rfios-
ma d funcional, aplicada a pontos precisos de reivindicaçãõ mais do que à ex-
tram ) enl todo caso, a resiste.ncia enco ntrada. Seria importante "detalhar este
prrsão global de um meio de ~da."
contexto para avaliar o di scurso masculino que nos ret~ m aqui, mas que s6 po -
deria ser bem compreendido na sua relação com o discurso ,do outr"o sexo.
92 B~CY, Robert. te mouvement syndicaJ ef! France (1871- J921)'. Essai bibfiogmphique.
Paris:..Mouton, 1963. dA as ordens dp dia de tod~s os cOngressos 3 partir de 1886.
93 GUlLaERT~ .Madcleine. 'Us !qllmes el l'qrganisnlion sY'ldicafe avanr 1914, Paris:
CNRS. 1988, q~e foi a primeir~ a utiliza r sistematicamente esta fonte, constata este 94 A este respeito. ver OZOUF, Mona. L'Scofe, f'Sglise et la Répu"blique (1871-J~14):
sil~ncio (ver"p. 201, por exemplo), mas mjnt~m-se prudente em sua interpretação, Paris: CoLin, ~ 963. (CoL! . Kiosque)
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DA MULHER E DAS MULHERES gualdade da mulhe.r" afiançado por uma falsa' ciência e fundamento de toda a
., sua opressão: "Nós pensamos que da crença na desiguaJdade da mulher nasce-
Nunca se falou tanto, nunca se falará tanto da mulher em um congres- HtDl todas as causas de sua inferioridade moral e inteJectual (,.;) . Tudo foi con-
so operário, O relatório da ses$ão dedicada a ela ocupa quase um décimo do. tra a mulher" (p. 213). No entanto, Joseph Bernard, vinte e três anos, serralHei-
volurne (78 páginas ef9 .831) ." Nesta sessão, apesar de seis relatórios femini- ro, militante anarquista, acredita que somente a Revolução pode corrigir, as re-
nos, os homens continuaram majo~itários: 9 relatórios. Mas eles falam das 'laçôes entre os sexos e que "não há porque nos preocup~rmos com a mulher
mulheres em muitos' outros lugares, não somente a respeito das condições de mr sociedade atual, mas sim devenlOs nos preo'cupar com o que ela será na-
trabalho (há muitos elementos para um retrato da operária têxtil), ou da edu- nova sociedade~ (p. 185) . Nuances que se fundem na harmonia de um discur-
cação, mas, quase o tempo, todo" .por alusão, não d Mulher, mas 'sim à .sua mu-. so unânim e, Irlfeliz vítima da natureza' e da sociedade, a mulher,' longe 'd a
. Lher. . àquela da família e do lar. E en~ão o tom muda. Os desenvolvimentos es- fábrica hostil, deveria ~nco nt.rar proteção" na família para ali dedicar-se à sua
tereotipados sobre a missão feminina contrastam com as insinuações relativas familiao e à educação de seus filhos.
,
à vida conjugaL Vemos Godefroy, delegado dos cocheiros p..arisienses, evocan-
do as recriminações femininas dian'te das exigências da ação sindical, ~ema -
aássico e recórrent~: ''A vossa jovem mulher vos abraçando e 'dizendo, entre'
trejeitos e com O ar amuado que lhé cai tão bem: - O quê vai fazer nesta socie-
. FRÁGIL."
"A MULHER, ESTE SER TÃO .
dade? Seria melhor que....ficasses comigo. E também, o dinheir'o qu~ vais dar,
Sobre a infelicidade da mulher, todos· estão pe acordo. "Seria ela feliz e
por me{lor que seja, faz falta em noss,a casa, Diz-me, na verdade, para que .isso
livre? ( ... ) Seria·e1a emancipada? Não" (p. 44). "·Pobre", "infeliz" são, com "frá-
te serve? Para nada. Tu trab,alhas, não é? Estás em um bom ateliê; 9ue os que
gil, fraca", os qualificativos que lhe são aplicados mais freqüentemente, "A si-
não trabalham. . façam como tu: ao jnvés de se ocupar~m com' a politica, que
tuação da mulher é precári~" (p. 135). "A situaçãó preparada para a mulher é
consigam trabaLhó. (... ) Quando terminarfl: as recriminações, a pequena egoís-
deplorável" (p. 19-1). Para a mulher s6, sobretudo, não h:I alternátiva: "morrer .
ta senta-se em vosso colo, dá um grande beijo, um o utro, acompanha tudo
de fome ou perder sua honra, conseqüência lógica do aviltamento dos salários
com deliciosas provocações e, mais frágil do que uma criança, eu vejo que vós
da mulher" (p. 135). _ \.
resp.ondcls covardemente ..... " A distância entre os relatórios de princípios, um
tapto afetados, e a -éhac~ta dos incidentes sugere a mesrnl} distâ'ncia" q~e sepa- - Ao invés de 'torrigi-la, a sociedade agrava a desigualdade ~ativa da mu-
ra a tribuna de um cõngr,esso da vida cotidiana. • lher. A referêpcia q~ase constante a uma natureza feminina de ordem fisiea
Observaremos, por outro lado, diferenças segundo os oradores. En-_ q"!e determina o lugar, o papel e as·tarefas é um' o utro traço marcante. A 91 u -
I
-quanto Irénée Dauthier, ex-Internacionalista, cinqüenta e um anos, dos.selei- lher é, inici~e!lte, um corpo ~<fraco'~ com "órgãos delicados': "frágeis", suj ei-
ros d~ p~s, inco..rna o pensamento proudhoniano típico que ele já desenvol- tos a ~'indisposições periódicas", corpo que condiciona seu humor instável. "O
vera rio Congresso pe.Paris, Ferdinand Vedei, delegado dos co.ladores de papel o'rganismo feminino está submetid_o a certa indisposiç~o devido à sua nature-
de parede. de Marselha, denuncia, em termo's vibrantes "o preconceito da desi- za, desde ã puberdade até a menopausa. Entre estas duas revoluções corpo rais,
há ' periodica!11ente mal-e~tares ou sofrimentos 'que a mulher suporta com
95 Séancts -tiu Cotlgris Ouvrier Socialiste. 3' ~o" Il!alizada em Marselha. de IDa 31
maior ou menor facilidade, segundo o bem-estar, as fadigas e"as privações que '
de outubro de 1879 naSaJa da~ Folies Berg;res, MarseLha, 1880,831 páginas: O mais ' influem sobr~ O seu caráter e. o tornam doce e violento" (p. 174). O mundo fe-
importante, o mais com~leto d~s relat.óriqs dé congressos a nt~ de 1914. • minino é o mundo do orgânico e para descrevê-lo é preciso falar a linguagem
96 p: 246-247, com a menção "Risos e apJaus~s~ ,
, , da medicina e da higiene,
,-
.' .,.
_.
176 177
CilplfllJo 6
Polrte 2
I Mulll!r"tIIlD tlllb,llho
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110
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disc'l ~ dos OptrtlriOI fnmusc. 110 $&1110 J9

Este corpo é ameaçado pelos trabalhos industriais, pelas máquinas que Jul es Ferry tornará obri"gatório. por exemplo, o ensino da 'ginástica. Mais am-
lhe infligeln posições deformantes, doenças intimas q~e "(as moças) nãô deve- plamente ai n'da, o vigo r das mulheres do povo condicio n<l\o futuro de uma
riam nem mesmo conhecer de nome" Cp. 283). Particularmente suspeita, a má- húmanidàde que ·a decadência burguesa enfraqueceu: 'j Da conservação da
quina de costu ra, invasora desde oSegundo Império e que é den~nciada tan- saúde da mulher depende o vigor, a energia, e a boa conformação dos seres
to pelos inconvenientes. de uma fadiga Úgada às longas jornadas, quanto pelos futuros. Não esqueçamos que a melhora da mulher depende pa civilização;
riscos ginecológicos"reuco rréias, amenorréias) e pela perigosa potência eróti- nenhuma consideração. prevençãb, n~nhum cuidado e respeito podem ser ex-
ca. "Tal instrumento, por seu movimento contínuo, excita o delírio histérico" ·cessivos para com o ser que carrega em seu seio a human idade que nos suc~­
Cp. 17lT. Oa'u thier cita longamente uma dissertação da Academia d~ Medic~a derá" (p. 221 ).
(1866) s~undo a qual o uso p~olon'gado destas máquinas ocasiona "uma"ex-
citação geni tal bastante viva para coloc~r (as operárias) na necessidade de ces· )
I
sar momen~aneamente qualquer trabalho ... e recorrer a loções de água fria".(p.
"A VERDADEIRA MULHER DO LAR"
176). Seria necessá rio encontra-r uma m ecâ nica que sub stituísse aquele inces-
sante movimento da s pernàs. Inquietantes máquinas, aquelas m áquinas cheias 1
de desejos... t •
Se eles retomam, por sua conta, a tese da diferenciação sexual, à qual a
medicina do século 19 deu o aval da ciência, os -operários celebram também a
, I' famflia, "pedra angular do edificio social" (p. 161) e forma privilegiad~ de so-
I ciabilidade popular e de apoió econômico. ·"A mulher operária não pode se se-
"O AVILTAMENTO DA MULHER, O RAQUITISMO
DA' CRIANÇA, A 'nECADÊNClA DA RAÇ~'
I parar do hom,em operá.ri o, pois só, ela não é nada, e o homem' igualmente; reu·
I .nidos, eles formam a f301ilia" (p. 185). O operário é, antes de tuao, um pai de
família, provido de mulher e de filhos e sua reivindicação saJari~1 ou outra, seu
~ indústria destrói a belez~ e, sobretudo, a saúde da mulher e a desvia
pensamento, sua educação, o trabalho, o aprendizado, a segu~ança ... apóiam- .
de sua flUlção essencial: a ma~ernidade. Os temas da transnlissão,da vida, da
se consta ntemente nesta realidade. For; de qualquer discus~ão, ela apa rece
importância da saúde da mãe para a saúde da criança são sublinhados diver-
como a estru~a normf'l de uma ex.ist~ncia em que, evidentemente, o paren·
sas vezes. "A s aúde da criança vem da boa co'nstituiÇão da mãe que 'a maioria
tesco conta muito.
das indústrias arruina na saúde e na bel~a" (p: 164 ). Grávida ou no resguar:'-
do, a mulher não deve.r:ia trabalha.r. Apoiando-se nas estatísti cas, Dauthier , E todos dizem e repete m: eis o lugar da mulher. "Acreditatnos que o lu-
gar atual da mulher não é no ateliê ou na fábrica, mas no lar, no interior ,I<"fil-
mostra o recuo da mortalidaqe infantil em Mulhouse após a instauração de-
,- um a Íicença maternidade de seis semanas, prática completamente desconheci- o
j mília, porque a 1)1ulher que t.rabaUla no ateÚê deve deixar seu lar sem direção
da g'elo 'p~tronato francês. Da m esm a forma, s'ão denunciadas as devastações e não pode manter seu interior": diz o moderado.Irénée Dauthier. E 'em eco,
Ug,das à prática de se deixar ãS--crianças com .amas-de-Ieite. E nesta segupd,~ B~rnard, o anarqujst~ de Grenoble: ('Educa r seus filhos no amor da liberdade
metade do século 1.9, i1 criança torna-se um a preocupação operári a.
Além da (amília, é a saúde da ra ça, cuja debilidade é mostrada pelo re-
. e do trabalho, executar os trabalhos de costura e outros necessários ao lar, tal
deve ser o papel da mulher" (p. 185). "Se, do ponto de yista d'- independência
crutamento mili~. q'u·e está em causa. Enfraquecidas pelo trabalho na fáb rF e da moral, a moça deve trabalhar e receber um salário para viver, o mesmo
,, ca, as mulheres seriam "incapazes de 'dar à~uz uma geração forte e sã, como a .
não .acontece para a esposa; pois aI, a muUler não pertence mais a si mesma,
reconstrução de nosso país rei~.dica" (p. ~83). A idéia de um<\. necessária re- · ela pertence a seu marido e a seus falhos; reunidos, eles formam a famUia. E se
generação fisica da Nação se -aqr;:na na dé~ada de 1880 e é em seu nome que , dizemos ao hor~em, que tem a saúde, a força muscular: para O ateliê(j dizemos
;, '

178 179
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M./U.tlft 110 trrWtllho .1 O tlof;" dei d"NII,u-c.a.u!
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à mulher, que tem a'fragiJidade, a beleza, a doçura t o amor: para casa, para a todo ser humano" (inclusive as mulheres) "terá que produzir para consumir"
famí.lia! Sim, este é o papel da mulher·~t7 , (p. 185). Na maioria, a emi ne)1te dignjdade de produtor é questão dos ho men s.
Ela deve ser, antes de tudo, uma dOrla-de-casa. "A verdadeira d-o na-de- O ideal seria que o salário do pai fosse sUficiente. "Prefeririamos que a
~ casa que sabe cuidar de seus filhos e colocar ordem em suas roupas, esta ver- mulher casada se ocupaSje ape,nas do trabalho do lar e que se colocasse em prá-
dadeira amiga da famllia pobre, deve ser co nsiderada como o ministro do in- tica esta máxima: que o homem deve alimentar a mulher" (p. 222). ~nvém,
terior e das finanças'do operário e seu trabalho é muito superior, como valor, aliás, desco nfiar dos, que procuram as indústrias próprias p.ara mulheres: 100 ob-
ao trabalho do homem" (p_ 165) ..0 pai, ausente, delega seus poderes à sua mu- jetivo real é sempre realizar uma baixa dos salários" (p. 771). Na prática, no en-

•• lher para a gestão do orçamento e a priníeira ~ducação dos filhos. Como o ca- 't anto, o trabalho das mulheres é geralmente necessário para o equilíbrio do or-

,
·1·
sai camponês da Ant.iga Franç~, do q ual ela é originária e qll:e, provavelm~nte çamento. ~ um complemento indispensável. Mas isto não significa qu e a mu_-

•,.
I· co ntinua a ser um dos seus modelo~IN a famUüroperária se. define por uma ri-
gorosa div,isão do trabalho, dos pa'péis, das tarefas e dos espaços (interior I ex-
terior; lar, casa I ateliê, fábrica). Daí a resistência à indústria que vem mudar ~
. I , ' .lher d~va ir par~ a fábrica! A higiene" e a moral deveriam levar·à proiQição da-
: - - queles "infernos industriais" às mulheres. O ateliê corrompe as moças solteiras
... e degrada as muJheres. J\s primei;as "perdem ali a sua 'c andura e sua inocência"
radicalm ente este equilíbrio e todo um co njunto de atitudes e de reivinclica- (p_ 203)_ ~ preciso "afastá-Ias dos <xemplos pouco edificantes e da linguagem

i•
çàes relacionadas com as modalidades do trabalho feminino. familiar demais, geralmente suja, dos ateliês" (p.- 404). Sobretudo, elas são alvo
de "caprichos vergonhosos" do patrão e dos contramestrés. "Estas infelizes mo-
ças resignam-se a saciar a paixão brutal destes seres ignóbeis", mas a maior par-
ELOGIO DO 1'RABALHO EM DOMICíLIO

•I*
te do tempo "sua demissão segue-se à sua desonra'::(p: 80). O protesto contra a

Raros são os que, ~omo Ytier, delegado dos trabalhadores de Avlgnon,
"1ubricidade" dos contramestreS"é um leitmo tiv da imprensa operária, especial~
mente nas regiões têxtei si a leitura de jornais corno lA Défense des Travailleurs
pensam que a igualdade dos sexos passa pelo trabalho: "I?ar~dários da 'e man-
de Reims ( 1883-1887) ou Le Forçat do Norte é, a este respeito, edificante.
cipação cor:1pleta da mulher, nós não po~eriamos, sem incons.eqüên~ia, recu-
Alguns preco nizam a retirada pura e simples das mulheres das fábric-·

.
11' sar à mulher, o direito ao trabalho que reivindicam os para nós mesmos. ( ... ) a
t as. "Sua emancipação ' é ser retirada -da indúStria para ·tornar-se dona-de-

;
mulher deve trabalhar; ela tem todo
. O interesse em fazê-lo i ela se tornará. de-
u casa." Se ~ imp,?ssível, que ao menos, CQmQ para o caso. das crianças, às quais
vido a este fato, igual a seu marido no lar (p. 202).,A idéia da. necessidade de..
. ,
um traba,lho produtivo para todos, êara aos saint-simonistas, é quase ausente. I a mulher é freqüen.t em ente associada) tomem-se mectidas de proteção: proi-

:•
bição do trabalho noturno,limiiação das Iioras para que -ela possa dedicar-se
Somente Bernard evocà uma sociedade, futura "baseada na necess idade que
à casa, proibição de certas tarefas, fim do trabalho mi sto, ao menos n?s ate-
üês do Estado. 1oo Mas, sobretudo,lpede-se que trabalhos apropriados sejam
'97 Eis aqui, ainda, Roussct, delegado da União sindical de Bordeaur."O lugar da mulher

,.•
" i na fumilia, onde tantos cuidados de cada dia a chamam, e não'em unia fábrica ou
". num atetil, onde, na maioria das vezes, patrões, contramestres e operários não t!m . -
.99 . Alim dos acidentes, das mutilaçOes, das más posiçõe$j das doenças - anemia, tisica
I

todo o respeito e o comedimento que a mulher deveria sempre inspirar. A moça - são denunciados "as emanações nocivas", "ª
atmosfera infectada~ "os miasmas
solteira não deveria jamais aprender outras atividades alim das que. mais tarde, toz;- deletérios': "aquele ar que mata". Os o~rários estão imersos na medicina hipocráti-
nada esposa e m!le, ela poderá exercer no interior de seu lar, ~m deixar seus filhos no ca que reina entre 1750 e 1850.
abandono e expostos às irúh~ncias mais Pernicios.-u e aoS acidentes mais perigosos,
~ \ , 100 Na França, as primeiras medidas legislativas de prot~o do trabalho feminino são '

••
po'r fuJ~ de. ~ma vigilância ativa e- benevolente" (p. n I).
.- , muito 'tardias: lei de 1892, O argumenlo da conservaçllo social e da proteçãO da raça
·1
98 Ver'o notável catálogo da exPosiÇãO do MuSeu de Artes e Tradições Populares, Mari foi preponderante na sua adoção. A este respeito, ver p, Pie, ús lois ouvrieres, 1902,
'et Femme dems la Frcmee rumle tradirionAelle, Paris, 1973. ,
, P; 503_

•• -'

.'

•.-
180 181
"',
C.p/fu/o 6
PoneJ
O elogio tM dO'III -de-uIJII
MuI/lere, 110 rra/ull/lO
110 discurso dos optrJrios fnmcaes 110 século /9

reservados à mulher "em harmonia com sua natUIeza e seu temperamen toJl virul ento, alimentado pela aliança da Igreja com o lmpério. Tirar das, religio-
(p. 195). "A mulher não deve fazer nenhum trabalho co ntrário à delicadeza sas, verdadeltas rivais das operárias. "aqueles mil trabalhos' de confecção que
de seu sexo" (p_ 75 1)_"Os trabalhos que exigem pouca força lhe pertencem permitiriarry ,a nossas mulheres trabalhar cuidando de seus lares e de seus fi-
naturalmente." Convém deixar-lhe "os trabalhos que se harmonizam melhor lhos" (p. 281), confiá-los a associações que empregavam, sob o controle da Fe-
com sua conformação, com ~uas forças e suas aptidões" (p. 202) . deração Operária, "mães, mulheres, filhas, irmãs dos trabalhadores", constitui-
A costura reúne, uma vez mais, todos os sufrágios. A agulhaJlãO seria o ria uma medida de proteção da mulher e da família operária.'Ol
,
((instrumento feminino por excelência" (Jules Simon) e o tecido, por sua flexi- A reivindicação de um salário igual ao dos homens figura, é verdade,
bilidade, a própria matéria do sexo frágil? Ainda mais porque a costura pode m~s de forma menor, e sobretudo por referência às mulheres que devem pro-
ser exercida em domidlio. Par,,; Jules Sin'lon, para os industrialistas preocupa- ver sozin has suas necessidades e para as quais não há saida além da "morte ou
dos com ::I moral, eis a panacéia, o meio de conciliar os devctres da mulher no d~ vergonha': Denunciada como uma fa talidade econômica, a prostituição - já
lar e as neçe~idades da produção; a preservação da Família e o poder econô - se cliz "o tráfico de escravas brancas" (p, 602) - suscita horror e reprovação,
mi co. LOI Por outras razões, os operário.s não estão longe de pensar desta mes- sendo às"veze~ atacada ferozme'1te, aliás, pelas "damas': A cidadã Chansa rd, de-
ma forma. legada das Damas rel.!-nidas de Lyon, difama ás "cidades pro"sti tuídas'> que pre- ,
Dai sua cólera contra o trabalho nas prisões, nos conventos e nos ateliês feriram "um luxo vergonhoso a este i.nferno que a classe operária chama de
de. todo tipo, tornados respoI).s'ávéis pelo aviltamento dos salários femininos, lar" e deplora que "as mulheres desavergonhadas que estão em Saint-Lazare se-
Em 1848, petições assedja~am a CÇ>missão do Luxemburgoi manifes tações, às jam .mais felizes dO'que nossas mães de famjJia" (p. 182).
vezes de uma extrema
, violên~ia 'tiveram
. , Lyo n, em Saint-"
lugar em Re.ims, em Definüivamente, a prioridade dada aos valores familiares faz que a rei-
Étienne, contra certas penitenciárias e sobretudo contra congregações religio- vin'dicação de' u~a igualdade p~lo trabalho, de uma "liberação" das mulheres
sas do tipo Bom 'Pastor ou'Refúgios para moças ~'arrependidas': Um decreto de , pelo' trabalho externo não seja uma das prioridades do movimento operário,
24 de março ordenara a sua suspensão "considerando que os trabalhos de agu- , E é talvez sobre este ponto que haja mais diferenças entre os dois discursos,
lha e de costura organizados nas prisões aviltaram tanto o preço da mãc;>-de- masculino e feminino. Inclusive no Congresso de Marselha, onde as declara-
" obra, que as mães, as mulheres e as filhas dQS trabalhadores não podem mais; ções das mulheres têm, a este respeit.9, um tom totalmente diferente, O relató-
apesar de um labor excessivo e..de privações sem fim, enfren tar as questõçs de "rio final, eJaborado' po~ HU,b ertme Auclert e aceito. declarava: "Quem diz di-
primeira necessidade': Medida se~ conseqüências, Em 1879, a queixa ressUI~ reito, diz responsabilidade: a mulher deve trabalhar, não sendo menos' resl;lo n-
giu, contra os c..onventos sobretudo avivada pela força de um antic1ericalismo sável em produzir do que o homem, visto que ela consome. Assim, o Congres-
so emite' o desejo que haja para os dois sexos a mesma facilidade de produção
e aplicação rigorosa desta fórmula econômi ca: para produçã~ igual, salário
101 Jule.s Simon. L'otlvriere, 3&" edição, 1861; L'ouvrier de Iwit IHls; 1867; é o própriÓ
intérprete ,deste pensamento e do dilema da família/necessidade da produção, Sua. igual'~ E se el,e propõe: "na ordem do trabalho, uma divisão eqüitativa" • fun~
obra mereceria um3 análise aprofundada. Sobre o pensamentd dos industrialistas dada nas capacidades,flsicas, ele sugere esta idéia, em muitos aspectos, inova-
do início do sécu lo 19, ver, por exemplo "DUPIN, Charles. Le Pctit Producte:llr
Français. Paris: Bachelier, 1828. 208 p" t. 6: L'ouvriere. A "Bonne Marie", que ele
transforma em sua heroína, mãe de. três fillios que ela amamenta e vacina desde 102 O papel das salas de lavores dos conventos como utilização da força de trabalho d.1S
cedo, faz taDlbém costura em domicilio: A ideo'ogia e a prática do trabalho em mulheres e das religiosás como eduCldoras, e até mesmo como contra mestras
domidlio foram relançadas no início do ~culo 20 pelàs possibilidades do parCela- , (como nos internatos de seda do Sudeste da Françb) é atuaJmenté o objeto de diver-
mento da energia fomecidâ peja e1etri~ida"de., Ver rURON. Anoie. ú travai( des sas pesquisas tanto na França quanto no exterior. Ver o artigo de VANOLI ,
[el1Ulles d dOtllicile de 1900 41. 1914. d Pahs. Dissertaç30 (Mestrado). Paris 7, 1974 Dominique, Les ouvrieres enfermées: les couvents soyeux. Le.s Révoltes logiques, 11. 2.
(datilografada). . " I 1976..
\ " "'" .'
,
182 183
- OIpftulo 6'
Ame .2 O elogio da dona.dc-ctUOI
MuU,tr'tlllO tmlu!U,O 110 dÜ(lI rso dOf ope:rdncu fmncesa /tO Jkvlo 19

doca,JU que os músculos não dependem do sexo: "que aos seres fracos, homens para-nos convencermos. Influência' que foi pais freqüentemente funesta do
ou mulheres, sejam atribuídos os tr~p31hos que requerem ~a habilidade: aos se- que benfazeja, como tudo o que era clerical, çle onde ela buscava a sua inspi- ,
res fortes, os trabalhos que exigem o emprego de uma grande força museu-' ração. Ninguém ignora que quando uma iluminada ou uma devassa se apro-
lar'~lot Acrescen[em~s que Hubertine Auclert não era uma operária e que nãQ. ximava do poder, tínhamos ou excesso de fanatismo e de into'erãncia, como
se poderia, sem exame crítico, tomá-Ia como intérprete do que pensavam as no reino de Charles LX, etc.; ou excesso de depravação como durante a Regén-
próprias pperárias......... . da! em que se dizia que o'que havia de mais leve do que . o vento, do que a plu-
ma, do que a poe,ira, era a mulher; ou às vezes, os dois reunidos, como duran-
te o último Império. E não seria ain~a pela influência da mulher que havíamos
"ELE, A LUZ, ELA, O APAGADOR" tido a terrível guerra de 1870l:' (p. 2 19). A mulher, gênio do mal do homem,
-, ' • I
Corno o mito da eterna Eva é tenaz!
A r~ivindicação da igualdad"e política. por sua vez, é singularmente fr~a­ No pre~enle, não' é possível dar a igualdaclé política às mulheres. Mes-
da pelo argumento que será, por muito tempo, o argumento de toda a esquer- °
mo Bernard, libertário, insurge-se contra es ta idéia: "... o direito pol1tico é
da: as ligações da mulher com a Igreja - a mulher, o padre, sombria e'temivel um direito .perigoso quando se encontra entre m ãos que não sabem ou que
imagem. em que a mulher, mais uma vez, tem o papel de mediadora, de por- não têin a independência material para usá-lo. A mulher não estaria nesta si-
., tadqra do irracio nal.
Em todos estes textos. apa~ece um rancor éo nfesso contra a il'n::om-
'I . " .
tu ação e nao estaríamos dando-lhe uma arma p~rigosa ao lhe dar este' direito?
Não seria matar a Revolução no dia seguinte à sua vitória? Não seria, em uma
preensão das ~u1heres p,elas ativrdades sindicais, sua resistência às "saídas", às palavra, .a vitória. do clericalismo?" (p. 187). 'Sestetti, delegado dos sapateiros ··
cotizações de seus maridos, se us ciúmes talvez por esta troca- viril da qual ~las de Paris, recebe "vivos aplausos" quando se' pronuncia pelo "reconhe,;imento
estão excluídas. Obstáculo à vida militante, há o risco, também, de a mulher se do djreito à igualdade da mulher, m as com a reserva qQe é absolutamente ne-
tornar uma educadora perigosa, p'erpetuando na família"e sobretudo de mãe .cessário que sua educação cívica e poUtica seJa.feita" (p. 540). Tal igualdade su-
para fllha ; as influências cle~icais, Por ela, pelo confessio~ário, a 19rejà insi- põe uma mudança total da mentalidade feminina: "Em uma palavra, que elas
nua,nte se infiltra no lar. O marido se sente espionado pelÓ padre que mantém . se tornenl seres realmétuc '~Umarl0$1 tendo razão para compreender e que elas
a duplicidade, a discórdia na família.: "Não' é mais aceitável que, ao co nfessar deixem de ser os brinquedos das slasses ricas e as agentes do clericalismo nas
nossas mulheres e nossos filhos. que eles sabem atrair, os' padres nos confes _ classes ·p ob rês~' (p. 187) .
sem, a nós, apesar da no~sa vontade" (p. 405). E~te agravo, muitas vezes fo~inu­ , A su perstição das l11ulh~res, motivo para recusar-lhes o dir' ito de voto~
' Ia,do e até- nossos dias amd~ (quantas primeiras comunhão "apenas para agr~,:." o é também para justificar/a plena a'u toridade ,do .pai' de fal11((ja. ".o
homem,
dar á burguesia" .. ,) dá a impressão de um real problema cotidiano. , que em geral não professa nenhuma religiao, não demora a ver em sua com-
I _ lnêgá'~el ainda que escondida, a influência histórica das mulheres foi;
Pi isso~ ,sobre~do perPicio~,a. 'iNã~ é preci~o voltar m uito te~po na his tór~á
panheira uma agênte do clericalismo. Ele se encontra assim na necessidade de
dâminar, de co mandar e de se fazer obedecer; pois ele sabe que, se obedecer ~~
, sua mulher, não será o servidor de sua muJher, mas sim o servidor do c1erica ~
103 Ver o recente livro de "SAMUEL. Pierre, Amazona, guerritres et gaiUardes. lismo que a dirige" (p. 184). Isto legitima a autoridade do marido e do cida-
Grenoble: Presses Universitaires de Gre,noble. 1975; pesquisa'· atravéS dos tempos, dão,' a subordinação da 'mulher na famma e na .:.cidade. Os proletários reto-
dos mitos e do (olclore d3S mulheres cujas proezas fisicas igualam e ultrapassam
mam, por sua vez, contra as mulheres, o argumento das luzes e das capacida'":.
as dos hom~!l s ... o menor vigor das mul~eres niJo t \Im fato biológico inevitável".
des que, durante ~eio século, $ervi~ para excluir a 'eles mesmos.
104 p, 804" O voto deste te.xt~ não acontecerl sem confus3o 'como f~, i ,!,ostrado pelo
.
relatóno, p. 805. '
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184 "
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Purte"2 Caplrulo 6
"lu/llem 110 trnb<l/lw o tl,ogio do dDllo · Je-</Uo
'10 diJ(Uno dos opudr;cH fmn(tJftJ 110 s/cuIa 19

"PRECISAMOS DE .. , ESPOSAS MATERIALISTAS" Assim, ent~o, se os relatores operários admitem freq üentemente o "in-
feliz des tino da mulher na sociedade atuar', se eles acusam facilmente a Igreja
- Mas de quem é a culpa deste obscurantismo? As respostas confluem: "A . de desvio de menores, por outro lado, eles quase não abordam as razões desta
;
pr~leira caUSil da inferiorid~de moral da mUlher. diante do hom em, é a falsa. .desigualdade e desta exclusão, A suspeita de uma fraqueza original da mulher
instrução que ela rece~e. A mulher, já fr~ca por sua natureza, é ainda enfraque- afiora geralmente em sua s decla rações. Evidentemente, eles reivindi<Ã1m , afir-
cida pela s,uperstiçãoq ue lhe é ensinada em sua juventude e mais tarde, que lhe ~
é dadapelo padre" (p, 184), "A mulher quer aparentar que não acredita e, geral-
. rilam a necessidade da igualdade. Mas, a partir- do momento em que se passa
às medidas práticas, os limites aparecem rapidamente, sobretudo na or~em
mente menos forte de caráter do que o homem, ela tem <l maior dificuldade do política, a~su!1to de homens, com o qual, para a paz das famílias, é m ~Ulor pro-
· mundo para se liberar desta i~strução religio,sa q',le recebeu quando criança e, vavelmente que a mulher não se envolva. lOS A idéia dos papéis dos sexos forte-
que se transmite de m ãe para filha :..O meio feminino no qual ela vive a m antém . _~ente especificados co ntinua fundamentaL Ao exigir da s mulheres um a dupla
fatalmente,nos erros do clericalism'o. Os séG.ulos passam, o pro.gresso industrial, tarefa, um trabalho exterio r para o qual elas .não foram feitas, a indu&triali za-
comercial e 5,?cial segue com rapidez sua marcha ascendente e ela continua,
sempre, deVido à sua primeira instrução, nos mesmos erros" (p. 404). Assim; a: .
ção - a fábrica detestada - perturbou a harmonia da família, Como restabele-
cê-la? E O remédio é, novam ente, a retirada,
, '

educação dupli'ca os efeitos de uma fraqueza na'tiva, -


No entàntá, raros são os que tentam analisar as razões desta influência
· da Igreja sobre a instrução das moças e desta consti~uição de um "meio femi -;
PONTOS~EINTERROGAÇÃO
nino" supersticioso e cleric,aL Some!lte Vedel,·um pouco mais radical, sU,bli.n ha
que esta ascendê~~ja da IgreJa s~ explica pelo abandono no qual se deixou a ,
Muitos problemas se cqlocam. De quem, do qu ê este discurso é repre-
- mulh-er. "O papel da mulh~ r foi pouco conhecido ,
pela sociedade laica;
, somen-
sentativo? O ideal - a ideologia, se quisermo s, desde que vejam os aí, cõmo
te o ca tolkismo compreendeu sua importância e se u poder e que precioso au:-
Piert.:e.Ansart, apenas "um sintoma enigmático" - aqui expresso pelos operá-
xiliar de poderia obter ali. Foi-lhe ainda mais fácil ganhar a sua causa, porque
, ela era rejeitada intelectualmente pela sociedade civil, que a considerava ,como rios de profissão, seria compartilhado pela massa dos trabalhadores da indús-
um se r inferior, feito somente para a sedução e para a galantaria.' A Igreja ou o tria? E pelas operária;? Até que ponto elas interiorizavam os valores de seus .
budoar, estas deveriam ser suas ocupações", Esta mon opolização é apenas o re- , '( homens"?
sultado de um abandono. E ~o m ? ,s ituar es te discurso no tempo? Qual é a sua duração, sua dura-
, ~ preciso integra~ a mJlher na sociedade civil . .. ~ tempo que, ~Ia viva.a_ bilidade? E.le evoly.iu, sobretudo no início do século 20, marcado pe,lo in icio da
_ ,nossa vida': J;.»ara is.to, é preciso criar para ela esc~las em q~e..receba u~ en'- . segunda revolução industrial, muito mais vigorosa na Fra~ça do que se acre'-
'! . -
sino profissiQnal que permita à' moça escapar à .fábrica, mas sobretudo, uma ditou, por muito tempo?
ed~cação laica que faça dela "uma '!tulher (.. ,) ú~l na sociedaqe': a saber, uma , ,
· esposa e lupa educadora esclarecida. tlPrecisamos, para as necessidades de nos- 10,5 t a opinião de Rousset da Un ião sindicál de Bordeaux: "Quanto aos direit,os'políti-
, 5a causa, 'de esposas materialistas" (p. 405), "uma ensaiadora, para, nossos fi- 1 cos que alguns reivindicam para a mulher, acredito que seu exercício poderia tornar-
,: lhos". Ma~ a indefinição destes planos de-e1ducação, comparados aos concebi- se um elemento de discórdia no seio das fam ilias, e que a mulher perderia a influên-
cia moral que pode exerce~ sobre seu marido, dando-lhe conselhos e fu zendo-o co-
dos para os meninos, é muito visfvel. fala~se pouco de educ~çãÓ com um aos
'I nhecer sua maneira de ver sobre as questões na ordem do dia; e13 será certamente
dois sexo's, ê: sim, ·de educação seoarada, E ~ sempte a formação maternal e do- menos ouvida quando ele puder ver nela -uma opositora às suas idéias, pronta a
, t. I#"
m éstica que é tratada, \ " fa zer, por meio de seu voto, alianças com seus advers.iriQs polfticos" (p. 77 1).
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ClpfW/o 6
P~rtc 2
M u/lrerel no trwtJ4/11D
O t/Of/O dQ Mntt· dcoCIUQ
no disa/f'KI dos Opcntriol f mnusollO IMUO 19

A que realidade, a que ~vivência", este discurso corresponde? Qual era a Neste último setor, conhecem-se tQdas as reviràvoltas provocadas pelo caso
trama cotidiana da vida familiar operária naquela segun<la metade do século Couriau,I07 caracterislico da reaç-ão de rejeiçã~ provocada pe1a chegada das
19 e qual era, ao certo. o trabalho feminino? mulheres em um apanágio masculino.
A estas questões, simples em sua formulação, não existe resposta garan-
tida. Muitas pesquisas estão atualmente em curso e permitirão, provavelmen- '"-\
te, responqê-Ias. A.$.--óbservações, que se sçguem, um tanto pontilhistas, têm SEMANA INGLESA E VIDA DE FAMíLIA
apenas um caráter provisório.
Entretanto. o trabalho das mulheres fora de casa progride de maneira
inelutável. Como preservar a famUia nestas condiçõe~? A Semana lngles_a seria .
UM DISCURSO POUCO MUTÁVEL um meio, , para a _mulher, d~ conciliar sua dupla tarefa.. A CGT fai, em 1912-
1913, uma campanha sobre este tema, baseada na opo.sição do dJptico do lar
No nIvel dos textos de congressos, que teriam podido fornecer um "cor- com Isem a Semana Inglesa. Sem: Domjngo sombrio, "Ao invés de poder fazer
pus" homogêneo, não é muito fácil captar uma evolução. Como ctissen~os, a ) co.mpanhia ao marido, ir com ele e as crianças aproveitar o descanso de uni
questão da "Mulher" torna-se unicamente a questão do "trabalho das mulhe- pass~io ao ar livre, no campo, no verão, longe do bairro triste 'e co nhecido,. a .
'.
res': em seguida desaparece. Mas muitas outras fontes análogas poderiam ser pobre criatu.Ta deverá se atrelar ao trabalho de:: manhã à noite e resignar-se a
exploradas, como os jornais e congressos profissionais. De maneira geral, a cri- deixar o homem arrastar a sua pesocupação de cabaré em cabar~, de onde se
se das profissões qualifiC3:das, ligada à penetração do maquinismo e à divisão ·teme que ele voltará de bolso :"'bo e de espfrito ausent~; a recompensa da bpa.
do trabalho, parece' ter somente reforçado esta oposição aQ trabalho das mu- dona-de-casa será, na maioria das vezes, ser ,maltratada ou até mesmo espan-
lheres na grande iridústria.Em4umll. representação operáriâ não d,esp~oVida de . cada. ES,te é o destino miserável da operária; a menos que, despreocupada, ela
fundamento econômico, a mulher é um prolongamento da .máquina eseu sur- também -abandone o lar. Há' então a completa ruí~a da família e a criança que
( ,
gimento significa baixa dos salários e desqualificação, Daí, nas profissões cresce el'!l tal meio torna~se freqüentement'e um dejeto social",'
ameaçada's:-uma verdadeira crisp~Ção ~ntifeminista, que é expressa, pQr exem- Com: ~A mulher em posse de seu pagamento, tem diante de1a a tarde do
plo, por este.artigo ,de La .Fonderic, jornal dos operários moldadores: "A mu- sábatlo. A manhã de trabalho não a impedirá de fazer atenta e alegremente
lher não sabe .defe~der O produto de sel,f trabalho, e é lógico, pois trabalhar não_ suas compras jUhto aos comerciantes. Ela comprará com discernimento e es:'
é sua obra natJlrar~ Mais do que a fábrica. onde ela está totalmente fora de ru- tará mais capaz, tendo o tempo. de co mparar e escolher. Em seguida, ela con-
gar, "o lar é o lugar apropriado ao exercfcio de seus sentimentos", Às objeçõe~ sertará as roupas, dará à casa um aspecto agradável. Com a aj uda da 'limpeza,
que ele percebe, o autor do artigo replica: '~Algl!'ns feministas me dirão -Amu-
o homem-se sentirá mais atraído pela sua casa, abandonará tOd~S os cabarés'~I~
Iher, .como v~s, tem o di,reito à vida, e para viver, é pre'ciso qu.e ela trabalhe-,
Estou de acordo com eles sobre o primeiro ponto, sÍJn, cada ser tem o direito
à vida. Mas é preciso que não seja em detrimento de um O~tJ:OJl. I. no caso, o 107 A seç.1o sindical dos tipógrafos de Lyon, em 1913, recusa a adesão de uma ope.rária ~
tipógraf'a, Emma Couriau, por ela solicitada, e, ainda por cima, ~clui seu marido,
homem. Ora, a ,n~vida,de do início do sécuJo 20 é a ~xtensão d? maquinis~o culpado de ter infringido uma decisão da Assembléia Geral que proibia, "a todo
'a domínios até então viris: vi~raria, metalurgia, indústria do couro, tipografia. operorio sindicalizado, unido 3 uma tipógrafa, que a deixasse exercer a tipografia,
sob pena de excluslo': Neste caso, que mereceria um estudo, W!,t Madeleine
Gúilbert, oI?:. cit., p. 63, 409-412.
106 La Fo,nderie, 23 aoót 1903. âpuçl GRAS, C. L'ouvrier mouleur à travers le journal de 108 La Semaine Anglaüe. Dimin~lOns nos heu,.es de travail. Rcvendiq~ons la Semaine
sa fédération. Mouyement S~ial, oct.ldéc' I'1985. Alrglay e, brochura ed .itad~ pela Maison des Féderations, 32 páginas, ~m data
.... . " .....
.'
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188 "
189
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Pt3rte 2
MlIllrc'ret /lO rmblll/ao O elogio d" dOHa·de· f:lUu
riO diJ<.'IlND'do$ oj)4!mr;lIJ fr(m{nel riO J«1l!(I 19

E a iconografia nos mostra uma jovem mulher - tecelã, passadeira durante a pio por Edward Shorter,lU Mas em qu e proporção? Por um lado, se Os sinto-
I ,
semana - , lavando a louça, varrendo, no sábado e no dOlningo, sentada na gra· mas desta demografia selvagem quase não são co ntestados, é preciso ver neles
ma junto à toalha de um 'piquenique. eIl:tre seu marido que pesca a certa dis- um simples mau funcionamento, uma desregulaçãõ provisória ligada às cir-
, t:lnci~. e uma criança, cuida,da, assexuada, vestida com um daqueles vestidos- cun stâncias (por exemplo à carestiã do casamento para um operário urbano
sarau que se: usavam entãb' nos p'r imeiros anos, colhendo flores junto de sua desp rovido de meios)? Ou os elementos de uma contracultura popular em que
mãe,l~ Estas imageií~, 'ricas em conte6do, que exigirkun um novo Philippe se elaboram novos modos de co mportamento familiares? Ou até m esmo um
Aries, são de interpretaçã~ delicada, Muitas representações misturam-se nelas: verdadeiro esboço de revolução sexual da juventude comO go~taria E. Shorter?
o grande sonho intacto da dona-de-casa perdida, mas talvez també~1 , o'esbo- Tudo isso se presta a controvérsias lU e é preciso esperar O resultado de estudos
ço do casal na sociedade urbana moderna, célula restrita, mais íntÍlna e mais precisos, como os realizados por Mkhel Frey e Jeffry Kaplow,l l~ sobretudo so-
'.
solitária. Tem -se aE, em todo' caso, um testemunho da força p;rsistente e até
bre o concubinatq e o casamento em Paris na primeira metade do século 19.
mesmo teavivada do modelo familiar na linguagem sindical e, provavelmente,
Podemos arriscar algumas observações. Inicialmente, a primei ra Revo-
além dela, (podemos formula~ uma hipótese), nas classes populares às quai s
lução Industrial nem sempre pro voco u deslocamentos espetaculares de popu-
ela se dirige,
lações porque ela. se efetuou freqüentem ente no ',!mpo, e as m anufaturas ou
fábricas se implãntaram mais perto das fontes de mão·de-obra para utilizar o
, - potencial familiar sem destruí-lo, De fato, os industrialistasl se querem servir-
RESISTf.NCIA DA.FAMluA
, NO MEIO
. OPERÁRIO se do reservatório das--mulheres e das crianças, mostram -se preocupados tam-
bém em preservar~ família, pivô do·si~tema produtivo, da moral do trabalho,
A estrutura da ~mília tradicional foi, provavelmente, abalada Relos
ef,eitos conjugados do d~senvo:l vimento urbano e da primeira Rev-olução In- bem como da reprodu ção da força de trabalho e das relações sociais. Da mes-
du strial llo e os movimentos ry1igratórios qu e eles provocaram , Nascimentos il~­ m a forma que~ o patronato usou as capac}dades operárias pagando com preço
gítimos, abandonos de crianças, concubinato, deplorados pelos m oralistas e f LXO o trabalho de equipes autÔnomas, por muito tempo persistentes na meta-

registrados pelos estatísticos, são os sinais de uma d eso rganização há muito lurgia, este mesmo patronato se servip. freqüentemente da célula familiar aC3-

'1 tempo sublinhada por Louis Chevalier ll 1 e estudada em um contexto mais am- ba~do por absorvê-Ia completamente. Assim a 'vida familiar pôde ser reforça-

( 19 13), Arquivos da Prefeitura de Polícia, fi A 1605, apud BURDY, Jean ·Paul. Les
-- da por certas fon~nas de implantação industrial.
, Em segundo lugar, as migra ções não eram fruto unicamente do acaso,
grel'~s tt It syndicalisme révo/utionnaire dam la Sejllc en 1913." Dissertaç~ assim corno não o são as migrações portuguesas de .hoje. Seu esquema era ge-
(Mestrado), Paris 7, 1974. ralment~ guia'do pelas relações de'pa rentesco ,q ue lhes forneciam epi'centros,
jl09 · Mesma fonte. A iconografia é abundante, -A da Federaç30 dos Metais, cheia de possibilidades de revezamento, redes de ajuda e de informações. Isto é verda -
humor e de alegria, IJirige.se ao "camarada" e tem um discurso mais igualitário; ;(Tu

I gozarás um pouco mais de teu lar; a m am ãe arrumará as crianças e o papai colo·


cará um pouco de o rdem na casa", pode·se ler sob uma vinheta en; que o marido,
com a v3ss0ura na mão e upt pano de lustr,?r nos pés, olha "a m amãe" que penteia
112 . SHORTE~, Edw3I'd. Naissntlce de la fa;~ille modcrne. Paris: Seuil, 1981,
:
113 Podemos nos interrogar sobre o alcance de uma revolução sexual para as mulheres,
. a " pequena~ enquanto um menino lava, con"scie nciosament'e, as orelh~.
q ue, na ausência 4e meios de contracepção eficazes e femininos. continuaram a ser
110 O desenvolvimento urbano na segunda~metade do século 18, precede a Revo lu~o "'timas da gr.;avidez indesejável, confron tadas ao problema da supressão, do aban-
Industrial e é de natureza CO lllpl~tamelj tedj fere nte, dono ou da m anutenção solit:\ria dos filh os. '
111 CHEVAÚER, Louis, Classes )aborjtllse~ classes dangereuses a Pa.ris pendam la pre· 114 }effry Kaplow trabalha sobre a formação da classe operária parisiense e Michel Frey,
".;ere moirii du XJxe siêcle.·P3I'is: Plon, !1958.
,... sobre a família operária em Paris. na primeira metade do sécuJo 19.

. ,
190 191
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Pi'rfl! 2 Clp('l/w6
MIIUIl!1U fiO rl'llllHll',o O tk>fio da doN · dl!-cIU4l
no diKuno doi O~TIÚ"tfn fnma:su M sklllo J9

I
deiro para Martin Nadaud, pedreiro da Creuse, assi m .como Jean-Baptiste Du- pareça, o sentido do combate operário pela fatn.ília nos escapa em "parte. Ele
may, mecânico de Le CreusQt,1IS que vai de tios a primos, para voltar, após um não é ~a pura reprodução do discurso dominante; ~e tem sua fmalidades
longo périplo, para trabalhar na Casa Schneider, sob a pressão familiar: As co- próprias: a defesa de J..Ima identidade, de uma autonomia, de um espaço, de
munidades provinciais com seus quartos d e aluguel mO,biliados, suas tabernas, uma intimidade, de um lugar para si (de um por sua conta) subtraídos da vida
seus r~~taurantes, seus bailes, eram muito animadas nas cidades em que os dQ trabalho, do controle da fábrica. 11'
bairros popula(es . . thmarn
. sido, por muito tempo, apenas um aglomerado de No fim do século 19,3" familia aparece, em todo caso;como uma gran-
etnias de vilarejos. Aind:t em nossos dias, jls relações de parentesco continuam 'de realidade da vida operária. Traços novos a aproximam, em certos pontos, do
muito intensas nos meios popuJares llt que encontram ar um ' modo de organi-
\
modelo burguês descrito por Philippe Aries: valorização 'da criança cuja saú-
-
zação mútua, um alívio ao anonimato urbano, à assustadora solidão do mún- de, educação, futuro, tornam-se preocupações 'pr~oritárias; vida familiar mais
do industrial. intensa, sobretudo nesta noção moderna"de tempo fora do ~rabalho que clla-
"En:fim, estas migrações, ao menos na 'primeira metade J o século t9,
eram geralmen te temporárias. A familia de origem exige do rapaz, até o alista ·
I mamos de "lazer"; aceüação das formas legais do casamento, cuja influência é
reforçada pelas vantagens salariais ligadas à fam.ília e pela seguridade social.
mento militar (o serviço militar não teria um papel de rito deln iciação?), uma A família é ~ssim um terreno de luta, um jogo de forças opostas. O dis-
parte de seu si!1á~io. A volta ao vilarejo é periódica e um duplo circuito de mu-
Uleres e de relações sexuais tende a se estabelecer: na cidade, concubinato e re-
- .
I curso s06re a mulher operária deve ser substituido nestas perspectivas. No que
se rcf~re ri ela, estas forças confluía!"n, mais do que se opunham, para reforçar
a ~statUIa da Dona-de-casa. Era essencial para todos -: para os operári~s, mas
, curso às prostitutas que não são Be uso unicamente burguês; mas casamento.
no vilarejo, com preservação de uma regra do jogo em que os usos e os costu- também para a sociedade de acumulação capitalista que pagaria muito caro
mes, o papel das famílias~podem ter muita importância. O caso de Martin' Na- pelo custo do trabalho doméstico, q ue até então fora quase gratuito, que a mu-
daud ou de Dumay, que se esbaJdam na cidade; mas, quando vem a idade, to- . lher ass umisse este papd, contra tudo e todos, chegando até a acumular uma
mam esposas ~m sua região ~atal) é bastante característicO."Bem entendido, es- . dupla tarefa. A organizaçãoldo tempo proposta pela Semana Inglesa é um de-
tes exemplos ~solados não poderiam substituir os estudos estatísti.cos reaUza- monstrativo desta situação.
dos, sobret:lld~ a partir dos registros de casamento. Os
estu.dos existentes ma--
nifestam, em ge~al, uma endogamia persistente.
Também, muitos 'índices sugerem uma real vitalidade INDUSTRIALIZAÇÃO E TRABALHo'D~S
. da família popu-.
lar e um legado do mundo rural para a cultura opetária urbana. A man"uten- MULHERJ;S
/
ção da família pÔde co nstituir uma bóia de salvação, uma forma de autodefe-
saj de r esistência aos ataques da industri~ização. Por mais tradicional ql}e nos. O trabalho
,
das mulheres na fábrica era evidentemente, a principal I
arpeaça para uma faroHia que continuava a ser prioritária. Por isso, o mundo
. \'
opcrárip opunha a este 'trabalho urna tão forte resi stência. Mas ele teve suces-
./ 115 NADAUD, M. Méllloir~ de UOllard,.allcien garçon nmçon. Bourganeuf, 1895; nova.
edição Paris: Hac,hette, 1976, com int~rodução e notas de Mau'rice Agulhoo. Jean.
Baptiste Dumar, M~moires d'u" militam ouvrier dú Creusot (1841-1905) .
Introduçllo e notas de Pierre Ponsol, tespqnsável pela publicação deste inédito, 117 A recusa dos operários ~m mo rar nos alojamentos. de empresa, ou sua repugn~n.
da aos conjuntos residenciais o~rários, no inicio da industrial..izaçao, é uma
M3:5pero!.,~entro Un~vers itãriô de Gre.rfble. 1976. .
forma, entre Outras, desta resistbtcia. Ver Lion ly'Iurard e Patrick Zyl berman. VilIes-
116 Ver por exemplo, ~y. 1. P:ersistance de la famille étendue dans un miHeu inqus·
triel urbain. Revue Frarrçaise' de Sociolo1ie~ a"o(tt 1967.
usincs, habitat ef jflt;mité - L'uemple' des cifés minjeres nu XJXl! siede. Redlerches, tl
~~ l ~~ ' ,
, ~ '-'
..
' 192
. . r

,
193
"
Cnpftll lo 6
Pnrtt! 1
O elogio (ltl dOlla·dll· castI
MIIIIIl~rtJ 110 frabalJro
no discllno dos operdritJS frollCIlUSno s/cu/o 19

50? Trabalhos recentes, com o os de Joan Scott e Louise TiUy, en~e oU,tros,1II Enfim, o trabalho industrial absorve apenas uma pequena parte da
convidam a !iesconJiar das visões excessivas do lar aband onado ,peIa ,mãe. O mão-de-obra feminina. Segunao O recenseament~ de 1906. dentre 100 mulhe-
trabaÍho industrial feminino conserva, no
século 19, muitos traços da;socieda- res ativas, conta- se somente 25% de operárias. p erto de 36% de trabalhadoras
de rural. Trabalho complçm.ent.a r; ele é efetuado na dependência da família e ' em domicilio e 17% de domésticas. uo Em sum a, 53% das mulheres trabalham
segundo suas necessig~des; é por isso que ele é intermitente, em fun ção do ca- nestes setores mais tradicionais, mais domésticos em todos os aspectos. Con-
sa mento e do númé-ro de fllhos. As moças solteiras'trabalham muito jovens, até . ta-se ainda apenas' 8% de em pregadas e, no entanto, as m4,lheres já ocupam
seu casa mento, ao menos até o ~asci111 ento de seu primeiro filho , pa'r~11l para 40% dos empregos no (terciário". Aí está, todavia.. a grande novidaqe. Em tor-
reco meçar eventualmente um pouco mais tarde, ou pelas limitações ~a viuvez. no das "damas", secretárias, das "senhoritas" dos Correios~ começa a verdàdei- .
' Elas ajudam a fechar o orçamento 'com trabalhos de costura em domicilio. al- ra mutação do trabalho fem inino, seu caminho de futuro,
gumas horas de limpeza, ~lgumas ."jornadas" de lavadeiras. Mas as mulheres A imagem da operária continuará a ser repulsiva e, para muitos, era a"
casadas que trabalham em tempo integral formam uma minoria, 38 % so~nen­ antítese da feminilidade. Sob a aparência graciosa da datilógrafa, eis que avan-
te segundo o 'récens,eamento de 1896. E são, ainda 'assim, a maior proporçã.o do ça o proleti}.riado dos tempos modernos,
mundo ocidental. Não será a fábrica, mas o Escritório que devo rará 'a Dona-de-Casa.
, Sub-qualificado, ligados às ' m áquin as e às matérias que exigem pouco.
manipulação, este trab"lho é exercido sobretudo no setor têxtil que abso!ve
, três quartos das operár~as. Ele é mtal pago: a' velha noção de salário de; status,
herdado do Antigõ Regiin e, não sobrevivell na noç,ão de. salário complemen-
tar. «As operárias p.odem aceitar que o tipo de ocupação de que são ca pazes:es-
teja abaixo do nível em que a extensão de su~s" necessidades as colocaria," Pois
qual dentre estas mulberes que' nãó é C<m ãe ou filha, irm ~, tia ou sogra de um
operári.o que a aiimentaria me"s mb que ela não ganhasse absolutamente nada",
escrevia Jea 'l-Baptiste Say ~m 1803. m Por volta de 1900 .. muitos se confort;m
ainda co m este pensamento. Além do m ais, diz-se que a mulher tem menos ne-
cessidades: nas prisges, 'as rações alimentares destinadas às detentas são rueno =--
res do que as dos hom en s_ Até mesmo nas greve.s, o soco rro atribujdo às ope-
I'
. ' . ' \
r;'irias é inferior. ' . i'

118 SC.OIT, loan; TfLLY, Louise. Wom~n>s work and the fami ly in nineteenth century
Europe. Comparative Studies in Sociery atld History, n, 1, 1975. As duas autoras
J
preparam um imp6rtante estudo sobre o trabalho das mulheres casadas na classe
operária no fim do século 19. Para a ,etapa anterior, da proto-industrialização.
provavelme.nte importante, ver o recente levantamento de "MEDD fCK, Hans. The
,, proto-industrial fami ly economy: ,the structural nmction of household and fatnily
during the transition froln peasant society to industrial capitalismo Social History,
n. 3. 1976. :. 120 Em detalhe: chefe de estabelecimento: 12,2%: trabalhadóras em domicílio 35,9%;
11 9 Traité d'écollo/llie publique. 1803. \
"
, emp regadas 7.9%; domésticas 17,4%; operárias 25,1%; desempregadas 1.5%.

.\'

I'I .'
., 194 I 195
; •

, ~

•• . Capitulo 7

••
••
~
/'

.'•,
" A MULHER POPULAR REBELDE"-
,


e, . . - ,."
Da HislPria, a mulher é diyersas vezes excluída. Ela o é,. inicialmente, na
-


narrativa, que, passadas as efusões românticas, cnnstitui-se corno encenação
dos acontecimentos poHticos. O positivismo opera um verdadeiro refluxo no
'.
à
tema feminino el mais amplamen te, no cotidiano. austero Seignob~~, gran-
~ de mestre dos estudõs históricos na Universidade, expulsa Eva, ao passo que as
paredes da Sorbonne ~obrem-se de afrescos em que flutuam diáfanas alegorias
femininas. "Santa Genoveva vela por Paris'~ "o Arqueólogo contempla a Gré-
. -<:ia", Ele, abótoado até o ~larinho estreito de seu redingote, ela, vaporosa em
seus véus -,. A "profissão de historiadoc"'é um trabalho de homens que escre--
vem a história no masculino_ Os campos que .eles abordam são os da ação e do

,",.
"

e
" / -.
,I
poder masculinos, até mesmo~ quando eles se aventuram pqr nQvos territórios.
Econômica, a história ignora a mulhe~ improdutiva. Social,. ela privilegia as
classes e n ~gHgenci~ os sexos: Cultural ou "mental': ela fala do Homem .e m ge-
ral, que não tem mais sexo do que a Hum;mi,la.de, Célebres - devotas ou es.
candalosas - as mplheres aliment;am as crônicas da "pequenaJ~ história, b?as

,.j apenas para a revista Historia. J J 1


I r
>,

:
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( "
• f.
'
~
I,
-T·
I,
"
• la femme populaire rebelle. ln: UHistoire sans qualité5. Essais. Sous la direction de
Pascale Werner: Paris: Galilée. 1979. p. 125-156 (artigo traduzido em inglh, alemão,
italiano. espanhol. portuguh). -
l21 Observa~mos como um fato sintomático que o primeiro número de uma nova
revista L'Hisfo;re (Seuil) seja aberto por um artig~ de Georges Ouby sobre OCA mU-
I, I , lher medie.val " ( 1978). '
" )

E .~ 197


"
"
' Pane 2 Copftulo .,
Mulheres no fml'alho A mulher popular rebelde
,-
f,
Tamb~m - e esta é a segunda volta da chave - os materiais utiEzados pe- ciedade, esta imagem tranqüilizadora da mulher sentada, ~m sua janela ou sob
los historiadores (arq uivos diplomáticos ou administrativos, d'o cumentos par- uma lâmpada, eterna Penélope, costurando inte~minavelmente. Rendeira ou
lamentares, biografias ou publicações periódicas ... ) são o prdduto de homens remendeira, eis oS arquétipos femininos. Destinadas ao universo da repetição,
/
que. têm monopólio: da escrita ~to quanto da coisa pública. Observamos_
O do ínfimo, as mulheres têm uma história?
muitas vezes que a história "das classes populares era difieil de fazer a partir de Elas não pertenceriam mais à etnologia, tã? apta a descrever oS' fatos e
/
arquivos que emanam do olhar dos mestres - prefeitos, magistrados, padres, os gestos da vida"comum? t verdade que existe ai uma cO,n tribuição, um pro~
yoliciais ... Ora, a exclusão feminina é ainda mais forte. Q uantitativamente pe- cedimento indispensáveis. Mas O risco é também grande dê se fechar mais uma
quena, a escrita feminina é estreitamente específica: livros de cozinha, manuais . vez as mulheres na imobilidade dos usos e costum es, estruturando o cotidiano
' de educação..., contos recreativos ou morais constituem sua maiori·a. Trabalha-
dora ou ociosa, doente~ manifestant~, a mulher é observada e descrita pelo ho-
mem. Militante, ela tem dificuldé.lde em se fazer_ouvir por seus camarada's mas-
I na fatalidade dos papéis e na_ fixi~ez dos espaços, Visão tranqüilizadora de um
mundo rural serl1 conflitos, O folclore é, em certos aspectos, a negação da hi s~
t6ria, um a certa ~aneira de transformar em ritos tranqüilos as ten sões e as lu -
culinos q ue co nsideram como normal ser seus porta·vozes. A carência de fon· t~s. No entanto, são.as muUleres em ação que interessa encontrar, inovando em
tes diretas ligacfa a esta perpétua e' indiscreta"mediação forma" um qu~dro te~' suas práticas, mulheres ~njmadas e não mais autômatos, mas <:riando elas mes.
mível. Mulheres e~paredadas, c?m'o e.ncontrar~vos? " r
mils o movimento da históri<;l.
Esta exclusão é, aliás, apenas a tradução, redobrada, de uma outra ex~. ,
c1usão: a das mulheres da vida-e do espaço público na Europa Ocidental no sé-
enIo 19. 1\. política - a direção e a administração do Estado - const.it~em-s~ de AS MULHEI3ES, ÁGUAS DORMENTES
imediato, como um ap"3nágio masculino. A burguesia, faJocrata- de nascimen-
to, impõe aqui a sua concepção dos papé.is, esta rigorosa separação dos sexos Tarefa difícil, pois os mitos e as imagens cobrem esta história com uma
que leva a um imenso abismo,"este C<deserto do amor" que Mauriac descreveu: espessa mortalha tecida pelo desejo e pelo medo dos homens. 1lJ N? sécuJo 19, .
"Apenas isso~ o sexo nos separa mais do que dois planetas". lU Ass[m, o si lêncio a mulher 'está no centro de um.a discurso abundante, repetitivo:. obsessivo, am~
sobre a hist6t:,ia-das mulheres vem também de seu mutismo de fato nas.esferas piamente fantasit?so, que toma çmprestado aos eJementos as suas dimensões .
. políticas, por muito tempo privilegiadas como os únicos lugares do poder. As vezes é. a mulher fogo ) devastadora das rotinas familiares e da ordem
O século 19-1evou a divisão das tarefas e a segregação sexual dos espa- -
burguesa, devoradora, calcinando as energias viris, muUler das febres e das
'ços a seu ponto máximo. Seu "racion;Úsmo procurou definir estritamente o lu-
paixões românticas, que a psicanálise, guardiã da paz das famílias, .colocará na
gar"de ~ada um : Lugar das mulheres: a Mqter.nidade e o Lar a delimitan~ total:.- -
categoria de neuróticasi 'fiUlas do 'diabo, mulher lou ca, histérica, herdeira das
- m"ente. A participação no trabalho assálariado é temp~rárja, ritmad; pelas ne-·
- ,

feiticeiras de antanho. A ruiva heroína dos romances de folhetim, a~uel a mu-


cessidades da familia, que' comanda, remunerada c~m um salário complel'pen-
lher cujo calor do sangue ilumina a .cabeleira e a pele, e p,gr meio de quem a
tar/ condicionada às tarefas chamadas de nãoMgualificadas, subórrunadas ,e tec~
infelicidade chega, é a encarnação popular desta mulher de chamas que deLxa
,llologicamente especificas. "Ao hOlllem, as madehas e os metais. À mulher; a apenas cinzas"e fumaça.
fa~üia e o~ tecidos", diz um texto .operári~· (l8~7). A lista dos C<trabalhos de
mulheres" é codificada e limitáda. A-iconografia, a pintura, reproduzem à sa-
I! 123 Ver M~hes et Représe.ntations de la Femnte ali XJXt siêcle. In:' Ronltmtisme. Paris:
, Champion, 1976, e: a re(]o:ilo de C. Clément e H. Cixous, La Jeune Nêe, Paris, IOMI8,
122 Lc Désert de l'ilmour, La PLéiade, p. 769. t , 1975,

•• ,
198 199 -
,
"Pfll'tel ( ~pltulD 7
Mlllhcrr:. rIO lrahllJlw A mu/ht:r populAr ubtUk

. Outra imagêm. contrária: a mulher água .. fonte de frescor para O ?uer- virilidades do esporte e da guerra -, 3S mulheres, cimento do povo, sangue das
ceiro, de 'Ínspiração para o poeta, rio sombreado e tranqüilo onde podemos . ,
cidades, foram ,rebeldes à chegada da ordem industrial .
nos banhar, onda lânguida cúmplice dos almoços sobre a relva; ~as támbém.
água dormente, lisa corno um espelho, estagnada como.um ~elo lago submis- " r
- 50; mulher doce, p~ssi"9' an~oIosa, quieta, instintiva e paciente, misteriosa, um .1
A DONA-DE-CASA E SEUS PODERES
tanto traidora: sonh'ó dos pintore.s impressionis~as.#.
Mulher. terra, enfim, aquela que alimenta, a fecunda, planície que se âe~­ Diferente da "fazendeira" (rural) e da "patroa" (burguesa),.a Dana-de-
xa apalpa r e fustigar, penetrar e semear, onde se fixam e se enraizam os gran- casa é, n,:, cidade do século 19, um tipo de mulher importante e relativ~mente
des caçadores nômades e pr~dadores; mulher estab~izadora, . ?vilizadora, recente. Sua. relevância está ligada à importância fundamental da fàmilia, ve-
apoio dos poderes fundadores, soclo da moral; mulher entranha que sua lon-
1I lha realidade investida de múltiplas missões, entre as quais a gestão da vida co-
. ~-- tidjana. Sua novidade reside em sua vocaç..10 quase exclusiva, para os "traba-
gevidade excepcional transforma em amortalhadora, mulher das agonias, dqs
lhos domésticos" no sentido mais amplo do termo. Na chamada sociedade tra-
titos m'ortuários, guardiã das \umbas e dos grandes cemitérios's~b a lua, mu-
lher negra do dia dos mortos ... I, diciona!, a fan;tília é um.a empresa e todos os me~bros colaboram, juntos. na
medida de suas possibiHdades, para a sua prosperidade. Ainda que haja uma,
J Cesia. Podmnos amar sua beleza, mas recusamos ?ua pretensão de con': divisão,freqüentemente muito definida dos papéis e das tarefas, continua a ha-
tar também a história das mulheres, mascarada sob os traç?s de uma drama- ver UJÍ1a certa fluidez dos empregos. Os trab~lhos da casa não são o apanágio
turgia eterna - e~ algum lugar, sempre, o coro das mulheres "7, e de uma sim- exclusivo das mulheres e os homens podem colaborar neles: por exemplo. a
bologia fixa no jogo dos papéis e das alegorias. t preciso se libertar destas ima- -preparação de certos alimentos·é suá tarefa. A indústria têxtil em domicilio te-
gens porque elas modelam a história em uma visão dkotómka do masculino e ria acentuado esta fluidez: testemunllOs e imagens mostram trocas de papel em
do feminino: ~ homem criador I a mulher conservadora. O homem revoltado quê (j homem cozinhava ou varria e a mulher terminava a sua peça. A unida- i

t a mulher submissa, etc. Por exemplo, a visão das mulheres eQmo substitptivo de de lugar, associando em um mesmQ espaço domicilio e trabalho, produção ·
do poder que seria, no século 19, amplamente responsável pela instauração 'de e consumo. é favorável a esta alternância) de resto, limitada. Por outro lado, O
aa
uma "poUcia ~amília" (Jacq ues Donzelot), U4 mulheres-policiais da sociedade, .i chefe da família ~o homem. O "dono-de- casa" - o "termo aparece no século 16
parece-me my.ito contestável. Ao menos pode-se ver o outro la~~ do .aegumen': ":'" . - designa o chefe desta empresa que é a família.
to: se·as mulhere~ eram tal alvo para o poder, por um lado, era devido à sua im- A dona-de-casa herda suas funções. A novidade d~ sua situação, no sé-
portância verdade~amente axial 'na família e, p6r conseguinte, na sociedade;-:"' culo 191 reside na acentuação da divisão do trabalho ~ na separaÇão dos locais
- mas rmbém, pro~velmente, em raz..'io de s~a opacidade. à cult'ura do alto, da de produção e d~ consumo. O hom~m na fábrica,' a mulhe~ em casa, , ocupan- ~
inérda ou da resistência que elas opunham às estratégias de dominação do
por. Mais do que os homens,. tragados pel; fábrica e pelos imperativos d? pro-
t- do-se de sua familia . Este 'é o esquema tfpico, ainda que no détalhe de se com-
plique e se mi~ture. O 'vocabulário não se confunde: a "dona-de:.casa"'n~ fim
dução, pegos nas malhas da modernidade, produzidos pelas instituições disci- J
do sécuJo 18 ofusca définitivamente o "dono-de-casa", que cai em desuso ~o
- século 19. h às "boas donas-de-casa" que Par';;entier se dirige, em i789, para
plinares - a escolâ, o ex~rcito. - que os concernem inicialmente. fascinados pelo
"progresso": a escrita e a democraciaj as maravilhas das ciências e da técnica, as
, aconselhar "a melhor maneira de fazer seu pão". No- mesmo momento, ei-Ia à
- I . . . 'margem dO$ ass~lariados"Seu trabalho não é remun~l'ado (supõe-se q~e este

D-O-'-N-Z-E-W---'~~,~J~Cques. lA P~liC: des fa"'iII~. Paris: Minuit, 1977.


- -1-24-' "
o seja pelo tr~balho do pai d~ familia). Ela tem acesso ao dirlheiro apenas por
melo dos trabalhos complementares que se esfo~ça sempre em coloca~ nos in- .
.- " "\

200 .'
261

,,"
Pm1e2
Mulhcrei'no rrulHllho
CÀpftulo 7
Ao mulher popular rebelde .••
te.rsticios de tempo deixados pela família:_atividades mercantis - venda em \
uma barraca ou com uma cesta, à maneira <tas camponesas, persistente apesar
animam perio.dicamente os bairros da periferia, se o maddo demora mais do
que o. necessário no. bar. Em Saint-Quentin, por volta de 1860, os donos de ca-
••.
·
de todas as re~]amentaçõeS que exigiam cada vez mais patentes e autorizações
- mas também, ainda mais horas de limpeza., de lavagem de roupas, trabalhos , .
baré construíram hangares diante do.s cabarés para as mulheres que.. no sába-
do de pagamento., esperam cho.rando. '~ Em Paris, "as donas-de-casa colocam- ' •• •

••..
de costura, cuidado de crianças, compras ê entregas domésticasj a carregadora se à janela, descem para as soleiras das portas, e. às vezes, impacientes, com o. •
/
de pão, silhueta familiár. é quase sempre uma mulher casada. As mulheres em- coração angustiado, pode-se vê-Ias saindo ao encontro dos maridos, no cami- ,
pregam uma extrema engenhosidade para encontrar nos múltiplos tráficos das nho do ateliê. Elas conhecem bem os seus exageros, desde 0.. momento em que
,
.... cida,des, das quais ~as conhecem todos os recantos~ recursos complementares
que elas empregam para fechar o orçamento da família ou para dar-lhes alguns
pequenos prazeres, ou ainda que ~Ias separam como reserva para os dhls difi-
eles sa~em que têm a}guns to.stões no bo.lso! ( ... ) E, na rua, vozes retum~atn;
nas casas, injúrias voam, sujas e cheias de cólera, mães se levantam'~m O dia de
pagamento, acontecimento da vida popular, dia de júbilo em que a dona-de-
••
ceis que as estações mortas trazem periodkamente. Em tempos.de crise,'ou de casa paga suas dividas e presenteia seu mundo, dia de cólera contra os patrões
injustos e os descontos arbitrários que COI'rOem o salário, dia em que freqi;en- ••
••
guerra, est~ contribuição marginal torna-se essencial. As mulheres ativam-se,
então, em todos tis sentidos. Elas , nu~ca trabalham tanto quanto' nas situações temente se decidem as gt:eves - munidos de dinheiro, pode-se ' agüentar - é
em que os hom ens estão sem trabalh·o. Há uma vivência das crises, e das guer- também um dia de afrontamento dos sexos, em que a dona-de-casa se rebela ,
ras,'diferente Pilra cada sexo. Um tempo economicamente diferente. contra sua impossível tarefa: sem "gran~': encher as panelas.
A gestão do pagamento é, sem dúvida, uma difícil conquista das mulhe-
. Apesa., de· tudo, a dona-de-casà depende çlo salário de seu homem. Ela
~
sofre CQm isso e recrimina,'Chegando até a ser agredida. No sé!=ulo 18, ~s mu:'
lheres que vão se queixar aÚ\comissário de policia - Arlet!e Farge encontrou
res, o resultado de uma luta cheia de emboscadas, em que o patronato, preo-
cupado em favorecer' um "bom" uso do salário, estendeu completamente, para
as mulheres, a mão generosamente caridosa. Assim como naquela sociedade
••..
••
seus de,poimentos nos regi stros do Châtelet - deploram que seus maridos não
industrial do S,oisonnais, descrita por Le Play, por volta de 1850: '~E.xercendo
dão O necessário para manter os,filhos. E quando, em 1831, a prefeitura muni-
I há dois ~nos um patronato benevolente sobre a população que ela emp~ega, (a
cipal de Paris, em plena crise, fecha às mulheres e às crianças as oficinas de so-
.. ( f. empresa) ad?tou o. costume de pagar cada semana às mulheres o salário ganho.

••
' ,
corro, para res"ervá-Ias aos homens, ~ mães saem efl.1 passeata nas ruas co m .'
por se us maridos': I~ ,Estas são as armadilha~ do. salário familiar: a mulher está
se us filhos: com o quê elas vão viver? Elas reivindicam 'receber e gerir o paga-
sempre sem saída. Em todo caso, a mulher do povo mostrou-semais comba-
'\. mento, e parece qu~/obtêm sua reivindicação. Po.r voltá da metade do século
19, a maioria dos C?perá~ios entrega seus pagamentos a suas mulhe'res. Em suas
monografias de famflia, Le Play insiste na'extensão desta prática na França, que
tiva, mais informada do que a burguesa a quem o marido dá uma mesada para
a manutenção 'da casa, reservando para' si a direção do orçamento, no caso, fre-
qüente, de comunhão n13trimoniaJ. Em suma, a dona-d~-casa conquistou o. ,
••
el,e opfe • .~:este ~onto de vista, à Grã 'Bretan'ba. 1l5 Aquela que os min éiros de
Montceau; antes de 1914, chamam de '~a patroa", deixa para se u marido uma
I .
peq~ena soma para beber. Tu~o isto não se faz sem conflitos cujos estilhaços
"direito ao pagamento". Atualmente ainda, as operárias apegam-se ao que cha-
. mamos de "matriarcado. orçamentário':m Ele lhes impõe encargos, preocupa~ ••
125. Le Play, Le.s Ollvriers européens, segunda s~ri~. t.l, 1879. p. 270 d seq.: "Les travaux
126 SIMON, Jules. L'Ouvriere. Paris: [s.n.l. 1861 . ,
••
I. ••
127 LEYRET. Henry. En piei" faubourgtMreurs oflvritres). Paris: Charpentier, 1895. p. 50.
des femmes': As monografias de fam11ia cohtidas em Les Ouvriers ellropúlIS e us
, Ouvr;ers des Dw;c·Motlde5, a ~e$~ito de Slf ideologia conservadora, 5<10 uma das . 128 Le Play, Le.s Ouvritrs europétns, t, VI, " Bordier du Laonnais", p. 110.
,
raras descrições sobre o trabalho dombllco e os poderes da dona-de-casa na 129 MICHEL. Andr~e. Acriviré professiotlnelle de la fel1lllle tt vie cotljugale. Paris: CNRS,
França do século 19. I, . "
1974. p. 84.
,
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PIlf'fe 2 \ Capíw lo 7
MulJ.~rtl"" 'mb41hel J!. "1II111~r pqpWIIr rr:bdtU
I
ções, até mesmo privações: sendo obrigadas a "fechar" o mês, a mãe de famf- mento e o nível dos preços. Q uando uma penúria se anuncia - mercadorias
Lia - é clássico - -retira o dinh_eiro que falta de sua parte. Ela reserva ao pai - muito rapidamente esgotadaS, começo de filas - ei-Ias em alerta. Quando uma
trabalhador' "forçado" - o vinho, bebida quase exclusivamente masculina, os alta se esboça, elas.murmuram. O boato infla-se nas r.uas, nos pátios, nos bair-
melliores pedaços de carne, e às crianças, o leite e o açúcar. Solteira ou casada, ros, e~lre as vizinhas. Na feira seguinte, os preços disparam. Então as _mulheres \"
a mulher é, no século ~9, uma subaJimentada cr4nica. E, em valores médios, intimam seus fornecedores de grãos ao preço costumeiro; se ele~ recusam, elas
sua despesa com roúpas é menor do que a de seu marido, e~, que é chamada tomam os grãos, fixam o pre~o e os vendem sozinhas. Se o cometciante ,escon-
de frfvala! Gerir a penúria é, iniciahnente, sac.rificar-se. Apesar de tudo? é tam- de seus sacos d~ grãos, elas atacam o açarnbarcad~r, reviram as bancas, perse-

••• bém a base do poder das donas-d~-casa, O fundamento de suas intervenções, guem-no com grit01 e chegam a golpeá-lo, até os fundos das lojas dos padeiros
geralmente barulhentas, na cid;lde. cÚlnpliçes. Na madrugada, elas se aglomeram nas po;tas da gdade, para espiar
a chegada das charretes e tomam os sacos ·que dividem perto da fontê ondF as
. mulheres se reúnem . Q uando as feiras se esvaziam. elas espiam o movimento

••
'I
A DONA-DE-CASA, TIÇAO DA PERIFERIA
_ Se n:'lo há pão em caS3, a mulher se inlromete,
- Mais perto das coisas, ma,is violenta, mais raivosa, ela
dos grãos; se corre O boato que uma carroça circula em direção a certo local, .
elas saem, colocando-se nas.estradas ou junto aos canais. Estão sempre prontàs
a ~e amotinar então. a passar a palavra de ordem que põe em movimento a co-:.

:
'I traz ClT) suas cóleras muito mais paix!l.o do que seu munidade das mulheres! Elas levam freqUentemente s~ us filhos, atribuindo-
marido: "Ah! Se eu fo~ o homem, eles veriam, lhes um papel: ficar à espreita, levar uma mensagem, tocar o alarme. .As mães
As mulheres são o ti~o':
, de família, as'donas-de-casa mais carregadas de filhos, aleitando, às vezes grávi-

• "
Henry Leyret, En pleitJ faubourg, Paris. 1895,
das, ahiruam estas tropas revolt"das, mas pode-se também ver ali jVClhas mulhe-

í
res, guardiãs da feira, jovens solteiras que mantêm pais idosos ou solitários, dia-
As dona~-de-casa não fazem um orça m ento propriamente dito, A que
ristas, remendeiras, lavadeiras de salário magro para quem a carestia do pão é
serve fazer contas, num déficit perp'étuo? Os ritmos do pagamentp - a se'm a-

•;
miséria. Du.rant~ os grandes tumultos de 1817, diversas d~enas d~ mulheres fo:'
n'a, a quinzena":' eis o seu horizonte. Mas elas observam os preços, atentas à
ram condenadas à prisão, aos trabalhos forçados e .at~ mesmo à I!l0rte, a des-
menor varia'çãe, aceitando apenas as al~as sazonais, ligadas às fatalidades da
peito da indulgência ansiosa dos tribunais pejas mães de familia. L)O ,
·natureza. Em caso de carestia excessiva, elas se revoltam. As revoltas de 'subsis ___ \
N~stas revoltas, as m~lheres intervêm 'coletivamenfe. Jamais armadas, é
tência, grande ·forma · de tumultos -populares áinda no séc-ulo 19, são quase \
CO~l seus corpos que elas hitam, com o \rosto· ~escobertó, as mãospara a fren-

••
.
sempre desenc~deadas e a.nima~<ls pelas mulheres. A insuficiênci<l de meios -d~
te. buscando rasgar as r,o upas, suprema devastação para estas costureiras, agar-

.'•
• comunicação, que torna cada região exclusivamente tributária de seus pró- rando-se aos sinais da autoridade - as insígnias dos uniformes dos 'policiais _
prids' réc~rsos, cria pontos de estrangulamento, rigidez geradora de altas. Bas- mais preocupadas com a derrisão do que com os fer'imentos. Mas, sobretudo,
I •
elas usam sua VOZi ruas "vocif~rações" soam das' multidões famintas. Qual~do
ta que uma intempérie - chuvas, seca excessiva, gelo precoce ou tardio - acon-
I ' .
teça e eis a rari~ade dos produtos, logo explorada pelos mercadores, campone- elas lançam projéteis, são os produtos da feira, ou pedras com as quais elas ~n-
ses ricos, ri-roJeitos e até mesmo' padeiros, bastante fortes para esperar, qu~ es-

",
~ ~

•:

peculam. estocando seus grãos ou seu pão" mais raramente. suas batat"as, como
valores da bolsa~..E;ltãO as mulheres íntenfm . . '
Sua vigilãilêia se exerce n&~ feiras, g~ande local das mulheres. Em perma-
nêocia; elas vigiam a qualidade e as qua~dades. a regularidade do abasteci':
--
- ,
130 O estudo do pa~1 das mulheres nas revoltas de subsistf!ncia nunca foi feito siste·
maticamente. Baseio-me aqui em um processamento parcial dôs dadol dos dossies
de arquivos que concernem as revoltas de 1816-1817, Arcllive5 nationalcs, F 11 n2-
736 e diversos dóssi~s de BS 18.

204 , -, 205


"
. ~,.,'. .1
>
PQrtc2
Cap{lulo 7
Mu"hc,~s no Imbàll,o A mulher poP"lul' n:~ldc

chem seus aventais, em casos extremos. Comumente, das não destroem nem momento de confljto com os proprietários, os zeladores" seus representantes.
pilham, preferindo a ve nda taxada. Impedindo-se de roubar, elas exigem ape- e a polícia.
nas o tCp!eço justo': impondo-o. elas mesma~ diante da carência das autorida- Nestes afrontamentos com Pipele~ e Vautour, a~ donas-de-casa têm um
des. U1 .~ntra os açambarcadores e os poderes inertes\ elas encarnam o direito papel de primeiro plano, feito de astúc.ia e de fuga. Quando a família não pode
do povo ao pão cotidiano. pagar, elas organizam mudanças clandestinas chamadas de "com sino de ma-
/ .
! Este é o roteiró clássico, - com varia,ntes, deslocamentos cuja trajetória deira" porque eles não fazem barulho (diz-se em Lille "à São Pedro"). As pro-
diria provavel~ente muito sobre a evolução ~o papel das mulheres no seio do cissões de charretes puxadas manualmente, sobre as quais ~e empilham os far-
povo - comum às r~voltas de subsistência cuja ressaca enfraquecida dá o rit- rapos da famUia, animam periodicamente as ruas das grandes cidades.
m!, do século: 1816-1817, 1828, 1831, 1839-1840, (sobretudo na Oeste), 1847- A intervenção feminina, em tempos de revolução. pode tomar formas
1848. 1868,1897; últimos tumultos ~m que a carestia do pão está no centro do . mais agudas. Assim, em 1848. em Paris. o povo pede a revogação dos venci-
protesto popular. O aumento da produção,. O desenvolvimento dos meios de mentos. As mudanças tornam-se menos numerosas, menos furtivas e fre- ')
comunicação e singularmente das estradas de ferro, as fa~ilidades de importa- qüentes incidentes ocorrem nos bairros pobres, de La Villette a Charonne e na
ção puseram fim às velhas penúrias. Com .elas, desaparece um t.erreno privile-· Rue Mouffetard. Na maior parte dõ tempo, eles têm a forma de falatórios em
giado ,de intervenção direta das mulheres: a luta pelo pão, O grande conflito que as mulheres, al iadas aos marginais - os trapeiros. por exemplo - estão na
moderno é a greve, mais viril do que feminina. Porque ligada aos assalaria9.os vanguarda. Aos· gritos de "os recibos ou a morte;', batendo panêlas e ~aldei­
ent re os quais a mulher, inici(llmente. tem apenas um papel secundário. rões, barulhentos agrupa'mentos se formam sob as janelas dos proprietár,ios,
para exigir os recibos sem pagamento. Homens e ,?perários parecem hesitar
diante desta ilegalidade: as mulheres os chamam de "vagabundos", suprema
CONTRA O SENHOR VAUTOUR injúria, e entregam-se de,coração à luta, insultando. ameaçando o Vautour e
seu Pipelet. ainda mais detestado porque mais quotidianamente presente. "Se
Guarcü ãs do viver, as mulheres tambéil?' são as guardiãs da casa. Nas vós não quiséreis,'queu:n aremos vossa casa, depois a pilharen];os.e a demolire- .
cidades popu!osas do século 19, pouco' equipadas para receber as ondas de mos. Quanto a vós, nós vos faremos comer feno, e vos enforcaremos." "Os
migrantes, o problema da moradia nunca foi resolvido. Solteiros, os recém- proprietários
, . patifes e canalhas. Os porteiros são vCIhacos ta~\bém.
são todos
chegados se aglutiiia~ em -quartos ou aparta,mentos n'}obiliados alugados às - ~ preciso matá-los e incendiar os Mestres". Por tais fatos. diversas donas-de-
-vezes por uma noite. Cas~dos, ele,s se ap~rtam 11.9s pequenos apartamentos casa vão para a prisão.
d~ um ~ ou duas peças nas velhas casas, ~ mais tarde, praguejando, nos con--C- No fim do ' século 19, os companheiros ana rquistas transfonnnm est~
. I
. -junt~s resid.enciais ,que eles execra.m. 9 alojamento, não é uma hábitação, tipo de ação em suá especialidade. Ao apelo das donas-de-casa ~m dificuldade,
mas um lugar de agrupamento diário da família, um abrigo mutável, pois a~ . os Cavaleiros do Sino realizam .a mudança cland~stina. Tímidos esboços des-
partidas são freqüentes. As classes populares ainda não lutam 'pela moradia, tas lutas urbanas cujo terreno são o bairro e o consumo. O espaço da cidade
m,as pelo a~ugu el, sempre caro demais para aqueles habitantes rurais acostu,- pertence às mulheres e aos que, áe resto ainda muito numerosos, não ficam fe-
mados a não pagar na~ pelo fogo e pelo local.~E o dia de vencimento é um chados doze horas por dia no ateliê ou na fábric~ e que .conhecem a rua ryão
I apenas superficialmente.
131 Juntamo-nos aqui às observações de THOMPSON. E. P. 'PIle moral economy of the
En~ish crowd in the eighteenth century. Ppstand Present, 1971, (71-136) . Personagens de "us Mysttres de Paris" de Eugene Sue. (N.T. )
I ~

206 207

I I.
;
~
PIlrfe 2
MI4fJlem no trabAUICl
Clpltulo 7
A. mulher popular rebelde

•• AS MULHERE$ CONTRA AS MÁQUINAS'" da, fonte de dinheiro fresco, ne~essário para pagar os impostos. As revoltas "
maiores ocorreram em Alençon. em 1665, quando um certo Leprevost decidiu

•• Na luta contra a introdução das máquinas, destruidoras do modo , de


trabalho tradicional c portadoras de novas disciplinas, as mulheres trouxe-
ram também toda a ,S}1{l.....energia. EhiS animam as multidões vingadoras que,
forçar a mão. "Ele agiu com toda a insolência de um novo rico, declarou que
de saberia como triunfar sobre suas resistências, e que as moças da região_
' e~am muito felizes de vir ganhar dois tostões por rua na fábricll. Mllis de mil

• na primeira metade do século, assaltam as "máquinas inglesas", ainda com


mais ardor porque, às vezes, revóltas de subsistência e luddismo (expressão
inglesa para a quebra das máquinas) se misturam em u'ma mesma co njuntu-
mulheres se revoltaram, perseguiram-no e o teriam matadó se ele não tivesse
imed.iatamente procurado refúgio na casa' do intendente."Ul Foi preciso nego-
,dar e compor com aquelas "boas mulheres'~
ra de cri~e. Em Vienne, e~ l819, quando chegou a "Grande Tosadora" desti:- . Em Rouen, em novembro de 1788, suas netas boico_tam a máquina de
nada a substituir os tosadores de.lã à mão, as donas-cle-casa dão o ~ ina l de , , Barneville, instalada no claustro Saint-Macou, sob o patronato do pároco e d'as '
destruição; gritando: "Abaixo a tosadora!." "A filha de Claude Tonnegnieux, , ~ - idnãs e que, segun'do elas, provocam jornadas incompat[veis com os cuidados
açougueiro, jogava pedras nos dragões e excitava as operárias com gritos: da famUia. Em 1791, 'l.uando se quis introduzir jellllys (máquinas de fiaI algo;
<Quebremos, quebremos, audácia!' Margperite Dupont, fiandeira de Saint- dão) em Troyes, "as' fiand<;iras se revoltaram-contra elas: elas foram então ins-
Freny, tratou o tenente-coronel d'e 'safa~o', A mulher de Garanda gritava: '~ , taladas nos campos~ Em Paris, dUrante a Revolução, as mulheres brigam para "

•:•
preciso quebrar ~a tosadora'. Um dragão ruzia ao povo: <Vamos~ meus amig~s, obter trabalho em domicilio, e são tão barulhentas que às vezes eles acabam ce-
, nós .somos todos franceses, retirem-se!' e. às mulheres: 'Vamos, Senhoras, r~­ dendo: "Há, e":tre as mulheres, sobretudo, aquelas que são terriveis, e vós sa-
tirem-se, não é O seu lugar. As Senhoras deveriam estar junto .a seus filbos'. be~s, com'o eu, que temos diversos ,exemplos de revoltas executadas por mulhe. .
Elas responderam: 'Sim, é o nosso lugar', e retiraram-se resmungando': Em res': I\4 escreve um administrador, traumatizado pela lembrança dos dias 5 e 6
I de outubro de 1789, dias em que as donas-de-casa de Les HaUes (o Mercado)
Saint-etienne, em 183 1, elas-ajudam os operários da manufatura de armas a
destruir uma nova máquina de perfurar automa'ticamente os_canhões de fu- forarp a Versalhes, buscar o "Padeiro, a Padeira e o pequen'o Aprendiz'~ E um
zil, c o procurador do rei deplora: "E o que é penoso de dizer . os
, é que entre outro: "~ preferível deixar as m~eres isoladas ~ o~upá-Ias lem suas Casas do.

:
I' .'
mais obstinados contra a guarda nacional se faziam so bretudo notar as mu- que reuni-Ias em aglQmerfições, pois as pessoa~ deste estado são como as plan-
lheres que, c'Om seus aventais cheios de pedTas, jogavam-nas .el~s ,mesmas ou tãs ,que fermentam quando agrupadas'~m

•••

as davam para sere1!l jogadas",
Não contentes de ser auxiliares, elas mesmas se insurgem contra os ata-
ques às formas de produção doméstica às quais e-s~ão particularm~nte Iigadas_
Graves tUmultos eclodem em maio de1846, em Elbeuf (a fábrica e a casa
do fabricante são que,imadas), qu'ando um indústrial quer introduzir uma má-
quina de triar lã ingleSa, destina,da a substituir as mulheres que, até então, fa-

.'••
Bem a~tes das máquinas, no tempo de CQlbert, as mulheres 'de Alençon, de ziam este trabalho em suas casas e pretendiam conservá-lo. Em 1848, as mu-
Bourges, de Issoudun levantaram-se contra o monopólio das manufaturas ,lheres reivindicam a abolição do trabalho 'concoHente nas comunidades reli-
\
reais e a ameaça de um ilppossível enclausuramento. Aquelas. mulheres, ocu':" l giosas. Na r'egião de Lyon, onde se multiplicam os internatos de: seda que, spb
padas com suas famUias, recusavaIn ~se a ficar nas manufaturas, paSsado'o tem~ a direção de congregações religiosas especialízadas, recrutam as jovens campb-
po de aprendizado, Elas queriam fazer em;suas próprias casas a preciosa ren-

•••

iI' J
~ , ' J
132 Para mais detalhes, ver PERROT, M, Les ~uvticrs ct les o~achines co France dans la
133 Segundo LEVASSEUR, E. Histoirt da classes ouvrihes en Franceovtlnt la Rtvolmion.
Paris: Guillaumin, 1859. t.1, p. 203 et seq.

••
premiere moitié du ~X( siede. Rcchercl'fl.' Le solJat dll travail, oct. 1978. de que '134 Thetey, L'Auistatlct publiqu,e d ~ris pelldant la R~ollltion, t. lI, p, 401. ' ~

'me sirw aqui. I' 135 Id ., t. II, p. 594. juil. 1790.


"
i'

••
208 2'q9
I Purte 2
MulllcrtlllO "'ablllho .

nesas, a revolta é particularmente violenta. Em Lyon, em Saint-~tienne sobre-


tudo, as mullieres assumem a lid~rança dos cortejos tumultuosos que 'assaltam
CÀp{"j/O 7
A mulher popular rdxldc

A natureza da participação da mulher é o. refie.:<o, está em correspon-


I' . as beneficências ~ os conventos, aos gritos de "Abaixo os padres! Abaixo oS'con-
dência com O se u lugar real na cidade. Em toda a parte onde há o "povo", a mu-
lher está vigorosamente presente. Michelet o sentira. :t-!0 conceito das classes,
"\"
ventos!", elas queimam máquinas de ilidir e teares mecânicos. entretanto) ela tem mais dificuldade em encontrar seu status,'porque as classes
As mulheres pressentem nas máqvinas, não somente as concorrentes de são estruturadas em torno de elementos que não lhe são familiares: a produ-
seus homens, mas também as suas concorrentes, inimigas diretas dos trabalhos ção, o salário) a fábrica. Na cidade· dos bairros, elas são surpreendentemente
manuais em domicílio que lhes permitem fechar se u orçamento conservando. presentes.
um certo controle de seu tempo. Elas percebem ali o caminho de seu enclau-
sura~ento. A fábrica é muito pouco apreciada pelas donas-~e-casa. Elas co-
nhecem sua servidão. E a qualidade de operária somenle será revalorizada no A DONA-DE-CASA NO ESPAÇO DA CIDADE
início do séçulo 20, como contragolpe aos abusos do '(sweating system" (traba-
lhp em domicilio enquadrado na indústria da confecção), ligados em grande . A.estreiteza da moradia urbana reduz a muito pouco o que se pode fa-
parre aos ritmos impostos pel~ máquina de costura. E a relação com a máqui- zer ali. Qs "trab·alhos de casa'Lnão são (Carrumar a casa", mas sim fazer ~s com-
na de costura é uma outra rustória,'a história de.um sonho subvertido. Inicial- pras, preparar as refeições - cozinhar é um meio de tirar partido de matérias-
mente objeto do desejo das mulheres que vêem nela o meio de conciliar suas primas baratas e dificeis - ocupar-se co m a roupa, cuidar das crianças. ~ isto
tarefas e talvez de ganhar tempo - a Singer fez mu~tos corações baterem - a que desenha o tempo das mulheres - um tempo fraglllentado, mas variado e
máquina de costura t?rno\u-s~ assiih. o instrumento de s'ua servidão: ·a fábrica rei<itivamente autônomo, nos antípodas do tempo industrial - e seu espaço:
em domicílio. Neste
. caso, a outra é preferível. '
,~
nãQ o,"interior" que, para elas, ainda não existe~ mas o exterior. Quando os ho-
lniciádoras de revoltas, as mulheres estão, aléin disso, presentes na mens partem para' o canteiro de obras, para o ateliê, a rua lhes pertence. Ela
maioria dos tumultos popWares na primeira metade do século: revoltas flores- tem o barulho de seus passos e de ~eus rumores.
tais em que as mulheres defendem o direito à'lenha, tão importante quanto o O que chama a aten.ção, inicialmente, é a sW'preendente fluidez das mu- .
pão, para os pobres; revoltas fiscais, tumultos urbanos de tO'do tipo, pequenos . lheres do povo naquelas cidades a\nda pouco compartimentadas. "A mulher
choques com"a jurisdição dos Marecllais de França ou com a policia nas gran- ·como é preciso ser (com me iI faut)': que Balzac descreve, espectador fascinado
des revoltas que pontuam o século. t verdade que a forma de sua participação - e nostálgico dos limites que a conveniência burguesa estabelece na cidade, é
muda: de iniciadoras, elas passam a ser auxiliares. Ao se militarizar, a revolu- , uma muUler afetada em seus cuidados,. canalizada ·em seu itinerário. 1J1 Ela co~
I Ção t<?rna-se masculina e relega as mulheres à cos~ura e ao (orno. D~rante~ <L- bre seu corpo -segunda_um çódigo estrito que a aperta em espartilhos, a cobre
I - Com~na, por exemplo, elas são toleradas· apenas como enfermeiras ou can tÍ- · de véys, a enluva· da cabeça aos pés. E a lista é longa dos lugares em que uma
neiris: ÉI;s devem vestir-se como homens St; quiserem portar armas. A frente mulher "honesta" não poderia se mostrar sem decair. A suspeita a pers~gue em
das /manifestações ou.dos cortejos, elas aparecem como sí mbolos. E se a Repú- seus deslocamentos: a. vizinhança, espiã de sua reputação, até mesmo seus em-
blita é encarnada na Marianne, esta é talvez uma última maneira de transfor- pregados a espreitam; ela é escrava até em sua moradb na qual o salão lhe é atri-
,m~ar a mulher em obj~to. '" buído. Ela tenta conquistar sua liberdade na s0l11bra e em um código de sinais

,,
,
136 AGULHON, M. Un usage de la femme aulXLXc siecle: )'allégorie de la République. , ,
I sofisticados - cartas dobrad;s, mensagens levad-as, lenços caídos, lâmpadas ace-
sas - que cl\amamos de astúcia feminina. Eis a.. mais prisioneira das mulheres.
In: Mythes et Reprhentatjons 4e la Fem~t. op. cit., e seu livro publicado atual-
mente: Marianne ali comMt. Paris: Flamn1arion, 1979. 137 Balzac, Scenes de la vie pri\'ée, t.JI, 1842, "Autre étude de femme~ .
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210 21l

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PolrlC 2 OplhJ10 1
Mullluu n" 'rab,,/Jw A ltIull,ftr I>OPIlIIl' r<t:#tcIdc

A mulher do povo tem mais independência gestual. Seu corpo continua ~he, ~m pl~no coração das-Halles (região dos mercádos), ordena ao~ sacristãos
livre, sem espa;tilho: suas amplas s'~ias prestam-se à fIaude: no passado, as mu- 1 "que reprimam aqueles que causam tumulto na igreja; que impeçam que se .
lheres simulavam a gravidez para passar sal ~ob o nariz dos guardas da alfân-'
dega, como o fazem em seguida, nas barIeiras de pagamento de impostos, nas
'I entre ali com pacotes e compras; que não sofram com a presença de pessoas
que usam papelotes, a quem eles devem advertir calmamente para que saiam ,
r
fronteins. Arquétipo da mulher-esconderijo: a ancestraJ que, nas primeiras alguns minutos para se apresentar com major decência':'" Calmamente, pois
páginas do romance·de Günther Grass, O Tambor, abrigà sob seu vestido um 'se teme muito as explosões de suas vozes!
fugitivo procurado pela policia. A dona-de-casa vai, com os cabelos à mostra Elas correm, as mulheres, como elas correm. Mas elas esperam também,
(as damas do~ Mercado lançam às clientes mais iinpertinentes: "não. ~ porque 'j em uma série de locais obrigatórios cuja Iista,crescerá ao longo do século, com '
" /
tu tens um chapéu" insígnia de. burguesia), indiferente à moda e a seus man- o ~umento dos deveres maternos - a escola, div~rsas vezes por dia, quando se
damentos que tiranizam as mulheres da "classe de lazer" lll preocupada apenas tôrna imoral deixar as crianças irem sozinhas - e a complicação dos equipa-
c~m a limp,eza' que-as dificuldades para a obtenção de águ,a complicam .singu- 1 'mentos urbanos. Pouco a pouco, as a~a mbulações das donas-de-càsa'deixarão
larmente. Ela tem o gesto pronto, assim como a resposta. Esta mulher é. um ar- I de divagar para se mover em 'itinerários mais rígidos, canalizados pelas lojas,
tigo inflamável cujas reações são temidas pelas autoridades. pelos equipamentos coletivos, pelos horários da escola e da fábrica, un anime-
Para aquela eterna apanhadeira de ervas do campo. a cidade ê uma flo- ' mente 'harmonizaclos pela "hora certa'~ a hora-da estação ferroviária. A tudo
resta onde ela mani~esta sua. incansável atividade, sempre em busca de. uma isto, aS donas-de-casa serão por muito tempo rebeldes.
oferta de comJda ou d~ combustível (as crianças tarn~éin passam muito tem-
-po juntando esterco). Ela bisbilhota. junta aqui e acolá, revende, rainha das ~e­
quenas profissões e do pequeno comércio parisiense que, de resto, se masculi- MULHERES NO LAVADOURO
niza progressivan:tente ao I~ngo do século. A margem do Mercado, vêndedoras
de frutas e legumes, com suas cestas, vendedoras de'ervas, de buquês.,. atraves- Paremos, por um instante, neste local privilegiado da sociabilidade fe-
sam a cidade, apresentando, em cada canto, em cada esquina, sua "coleção" de minina, que desempenha um papel tão grande na vida do bairro. Local ambi- .
legumes, de frutas, de flores, de nada. Em tempos de crise, as mulheres buscam valente, rico em incidentes entre as próprias hiulheres, cuja violênàa freqüen-
algum recur~o vendendo até mesmo suas roupas usadas e defendem com temente ganha livre curso; rico em escânda-los daqueles 'que, em nome da res-
unhas e dentes seus direitos de feirantes ~ontra as regulamentações cada vez- R~ta.bi1idade, recusam às mu lher~s o direito à cól~ra, aos gritos e à confusão;
lócal de conflitos) igualmente, eri~e 'as mu Uleres e (, poder que se irrita com es-
mais draconi"amisldos . d ~legados" de polrcia que ficam inquietos_com ~stas reu- '
niões sem co ntrqle. As mulheres deslizam, insinuam-!e em tod~ a parte, com_ tas explos?es e ainda mais com o tempo perctido p~las mulheres,. Quando, sob
_" densrdade~ mais fortes em torno dos mercados e dos pontos de água, uma pre-
_dile1ãopelas bordas dos rios, populosos e populares, ao sabor de suãs co~pras"
e de uma geografia ainda ba,stante flutuante. Para elas, nada é sagrado; elas não
!
~
I
,
o Segundo Império, são instalados lavadouros _co~partimentados para evitar
as brigas entre as mulheres e a tagarel.ice, as donas-de-casa protestam e boico-
tam. E acaba-se então renunciãndo a es tes lavadouros. '
G lavadou~o é, para elas, muito mais do que um local funcional onde
I
heJitam, por exemplo, em atravessar as igrejas em roupas matinais com suas
cestas. A' tal, porito que, em 1835, o .regulamento da paróquia de Saint-Eusta-' 1 lavar a roupa: é um centro de encontro onde se trocam as novidades do bair-
. ro, os bons endereços, receitas e re·m édios. dicas de todo tipo. Cadinhos do em -
138 Veb~en, Thé~r!e de la classe de loisir, IS;9:;uceleptes observações sobre o papel do ,
consu mo "ostentatório" dà es.posa na burguesia e sobre seu papel, em suma, de 139 LA BED0LLlmE. Les lndustriels. Métiers et P}o!essiolls1 en' France. Paris: (s.n .].
"mulher enfeite': i . '-
1842, p. 3,

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212
I 21J
Pllrfel ..
Mulhcr.:$ 110 Imbll!!JO
Úlpfllllo 7
'" I/III/lttr poplllllr rtbc:ldc
••
pirismo popular, os layado uros são também uma sociedade aberta de socerro
••
I •

••
digentes, O sentim ento de ordem, o amor pela regularidade e Ul1"'la luta ené rgica
mútuo: se uma mulher está em apu.ros, é acolhida, fa z·se um a' coleta para ela. contra a ação dissolvente da miséria~ul Trélat, o a.lienista, o célebre autor de La
A mulher abandonada por ~eu homem, no lavadouro, onde a presença mascu- Folie /ucide (1861) é um aos relatores.
lina é redu zida aos meninos irrequietos. goza de uma simpatia particular. Uma
criança abandonada certamente enco ntrará ali uma mãe, como conta o ro-
mance po puhir de Ca rdóze. La Reille du Lavoir (1893). Os lavadouros são lo-
. Lavar, lavar-se. sempre m ais. Mas também ganhar tempo, este tempo do
qual as donas-de· casa são pródigas, mas que "elas poderiam empregar alhures
mais proveitosamente'~ escreve Barberet que calcula o núm ero d; horas passa-
••
cais de feminismo prático. As mulheres os freqüentam djversas· vezes po r se-
mana, duas ou três, ~m média, geralmente muitas vezes po r dia, no caminho
da escola. A cada ano, a mj-,arêm~ festa das lavadeiras, atrai toda a população
das e seu equivalente mo netário: em Paris, trinta a trinta e cinco milbões d.e
irancoJ por ano. Começo de uma rep exão sobre o tempo e o valor do trabalho ••
..
••
doméstico, o lavadouro é também o canal de .s ua mecanização. Depois de
do bairro para a eleição da rainha. Seria o triunfo da lava deira sobre a peixei- 1880, cria·se·u.ma verdadeira indústria do lavar, com grandes lavanderias mo-
ra, sobe ran a do Ca rnavaJ? Na metade do século, a m;-caréme sobrepõe-se à
dernas a vapo r, o nde o trabalho é concentrado, dividido, o rd enado, hierarqui- ,
Terça-feira Go rda na o.rdem das festas urbanas .. "O
No lavadouro. enfim, esboçam-se formas de organização origin-ais. As
lavadeiras profissio nais estão entre as mais turbulentas assalariadas, prontas
zado, o pessoal reduzido e masculinizado. Os homens controlam as máquinas
e as mulheres conservam os empregos O1a~u a i s subordinados. Provavelm en ~e ••..
••
O sofrimento do corpo é dim inu ído. mas, COntO sempre, esta diminuição é
para a coalizão e a greve, tanto em Paris quanto ~o interior, profundamen te li-
paga com O aU.I1} ento do con trole. O lavaao uro torna -se menos acessivel, me~
. gadas às febres da cidade. Em 1848, ~s lavadeiras parisienses formaram uma
nos fe minino, menos engraçado. As donas-de· casa .são bombardeadas com

••
sociedade, lançaram cooperativas e. em Bondy sobretudo; acolheram· em suas
fileiras as mulheres - prostitutas geraJmente -liberadas de Saint-Lazare, assim
prescrições. têm suas práticas criticadas: é preciso deixar dê lado a escova o e
batedor, lavár cientificamente. O q ue era às vezes um prazer, pretext~ para en-
comd os militares fugidos da prisão militar de Saint.:Germa.in-en-Laye que,

••
contros, torna-se um dever pesado, uma. necessidade codificada. Decidida-,
graças à Revol ução, tentam viver de outra maneira. Apaixonante e breve expe·
mente, o lavadouro não é mais o que era!
riência. Experi ência que tem razões para suscitar a cólera do poder.
Napoleão IH, que fugira da prisão em wn veiculo de la~adeira) sabe
quanto estes lugares são perigosos? Seu reino começa o grande .desmantela:
menta dos barcos-Iayadouros que usurpam o espaço da circulação fluvial e a A DONA-DE-CASA, GUARDIÃ DA PERIFERIA ••
implantação dos lavado uros em terra, cada vez mais distantes do centro d'a ca-
. pital, com o a clientela popular, expulsa para a periferia pelas modi(icações ur· ._
banas liromovidas por Haussmann.
A dona-de·casa é a alma do bairro e,'por isso, o ,nó ·de uma cultura po-
. pul~r original que se· opõe a.o modernismo uni ficador. Mui!as vez.es, fe·i-se das

,.
••,.
- IMais~'~umerosos, mais r~gulamentados, os lavado uros to rnam -se as 01101-
van c,s d.e Uma campanha.d.e higiene, em q ue a limpeza ~ apresentada como a
irmã,- da moral: "A limpeza não.é ~o menle uma condição de sa úde, ela auxilia
nuilh.eres·os agentes plásticos das novas m oqas. Em nossos dias, a publicidade
as assalta e tenta agradá-las para melhor governá- Ias. No passado, as sed uções
do ve ndedor a mbulant~· o u da loja' não tinham o poder de envolvimento da

também a dignida'de, a rTloralidade humana, ela saneia, emb'eleza o mais pobre
r~ca'nto, a mansarda mais miserável, e supõç,~ nas famílias, m esmo -as mais in-
r mídia. Bem ao contrário, a mulher do povo urbano aparece'como a trama das
tradições dos migrantes e, na medida em que a autonomia cultural é uma ga-
rantia de independência, como fermento de um c~ntra-poder. . .
. . , \
. I
1'40 FAURE. AJain. Paris Car~me-p,.ellant: Du <:;"arnavalll Paris ali XIX! sitele. Paris:
, Hathette, 1978. p. 133 et seq. ! 141 BARBERET, 1. Monograpl1ies professiomrelles. Paris: Ikrge(· Levrault, 1886. t. 1, p. 280.
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MuI/lera no tnWlIlIlO Ao !tU/li/o- pop •• ~r rclldde

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Na Paris do século 19, os que chegam agrupam-se por bairros cuja uni .. A palavra das mulheres co,{,Serva muita liberdade de expressão; ela ~e­
dade é a casa-pátio, sobrevivência da fazenda do vilarejo. As mulheres reinam ~ siste à polidez, à beatice de Louis-Philippe. A sexualidade não lhe faz medo,
sobre estes pátios superpovoados onde, nos dias de fes ta , paira o odor dalj'co- tampouco a escatologia. As h.istórias de lavadouros enfurecem os filantropo;.
unhas regionais. As refeições familiares são o momento de "falar da região'~ A Contida nos bairros da periferi~, reguiada pelas feitas, 'esta palavra livre, rude
corporação de operários manuais devou à dignidade de "mães" estas mulhe- e abundánte, explode nas cidades nos dias de Carnaval, festa da zombaria e da
res estalajadeiras qu-e ~bergam os "passa ntes", informam-nos sobre as possibi- i~júria. \U Descrevendo. por volta de 1846, a sala comum das mulheres no De-
lidades de emprego, servem-lhes de secretárias, de tesoureir.as, única mulher- pósito de Paris, Alhoy e Lurine 'se surpreendem: "Todas aquelas ciganas (eles
é verdade - ;dmitida no banquete corporativo anual. Enquanto se cria uma falam em sentido figurado ) cantam com vozes roucas, juram com vozes char-
"grande culjnária burguesa, n~asculina, açucarada e gordurosa, preocupada
Ol
mosas, dançam com seus tamancos, falam de amor blasfeman~o, traduzem a
em afirmar por sua riqueza a ruptura co"m o rústico, as mulheres cozinham as p,~esia 'em gíria, parodiam a justiça, "Zombam da p'olícia cor.recional, brincam
receitas.prQvinciais. Os "chefs" zonlbam do conservadorismo das cozinheiras. ,-alegremente com a caddra de rélJ, com a golilha, com a guilhotina, cantando
O confli to das cozinhas é tanto cultural quanto sexual. a ária de urna ' nova romança. Comparada à .sala das mulheres, a sala dos ho-
Mestras das panelas, as mulheres também são as mestras das palavras. mens mereceria um certificado de boas maneiras e bons costumes~144
Boatos, rumores, notícias são trocadas nas escadas, nos pátios, na fonte, no la- Por sua falta 'de respeito, sua ironia, sua espo~taneidade, a palavra das
vadouro, em todos os locais dê mercado espalhados ~o longo'das ruas antes de mulheres é cheia de subversões. Ela mantém esta reserva, esta dhtância que
serem fechados nas lojas. Por volta de 1840, 'a.5' leiteiras instalam-se a cada ma - ,perriiite aos humildes preservar a sua identidade. Salvar sua memória. ~ tam -
nhã sob os portais. "Enquanto o mercador de vi nho vê a chegada de uma muI: bém pelas mulheres - mulheres crepuscuiare$ - que se transmite, e geralm en-
tiôão de clientes freqOentes, homens, aliciados pela isca de um copo de vinho te de mãe para' fUha, a longa cadeia das histórias de ou dos vilarejos. Enquan-
branco, de uma gota de aguardente, ou de um jornal, a população feminina se to a escola, as formas modernas de organização, o próprio sindicãlismo, cons-
aperta em tor'n o da leiteira. Lá eSLí estabelecido o entreposto, das notícias do troem histórias oficiais, depuradas e finalizadas, as mulheres conservall,1 o tra-
dia e dós mexericos do bairro. A mulhçr do primeiro andar apanhou do mari- ç<rdo que se gostaria de 'rejeitar. Para escrever a h~stória popular da Revolução
do; o ve ndedor de refrigerantes foi à falênfia; a filha dos locatários do, quinto Francesa, Michelet interrogava as mulheres. Através delas, sobretudo, conser-
andar está sehdo cortejada por um estu'dante; o gato da porteira morreu de in- vou-se, no coração das Cévennes, os gestos dos Camisards ( protest~.ntes calvi-
~ digestão; o padein? vendia com o peso errado; 'o serralheiro voltou para c~sa­ nistas). As lembranças da escravid50, a~olida somente em 1888, pers:istem no
bêbado .. .'~ Id La Bédollier.e esboça aqui a duaHdade dos espaços; de umladoJ no .' póvo brasileiro pelas velhas ancestrais_E os pesq"uisadores d,e história oral sa-
cabaré, os homens, o vinho, a política (o jornal); de outro lado, na rua, as ~u._
lh'?res, o leite. . as histórias dó dia-a-dia. Mas, por trás do insignificante, esta pa-
bem,
, .
po r sua experiência, que diferença de relações homens e ,mulheres ali-
menlam com o passado: homens mudos, que esqueceram quase tudo o que
'" lavr~ das ~nl1lheres mantém toda uma rede de com unicações ho(izonta~s que 'não tem relação cóm a vida"do trabalh?; mulhe~es falantes, que devem apenas
escapa aos ouvidos do poder. Por terem sido os primeiros alfabetizados, os ho· deixar brotar as lembranças, desde que as interroguemos sozinhas: o homem
m~ns são capturados pelas ·redes de' uma escrita que, para começar, ve~' de tem de~~js o hábjto de impor o silêncio às mulheres, de taxar s'uas afirmações
' cima, e pouco a pouco os modela e os normaliza, ao passo que as mulheres ..I como bobagens, para que as mulheres õusem faJar e,m sua presença.
màntêm, com seus murmúrios, a independência do povo.
- - - -o-'--, I . 143 FAURE, Alain. Paris Carlme-Prenant. Du Carnaval d Paris au )(J)(,e silcle. Paris:
Hachette, 1978, sobre' a linguagem das pe'iXeiras, p..65 et seq. ' ,
l0-
142

<
ae:OOLLlt:RE.,1,es lndustriels. 'Méri1s el Professions en Francc. Paris: ls:n,l. '
1842. p. 27.

"
• ,,' _\" ....
.
144 .AJhoye Lurine, Les PrisOIlS de Paris, 1846, p. 5.
'

2 16 , 217
Ptlrt.: 2 Cnpltulo 7
Mul/,cres 110 rrllbll/lra Ao "'lll/tU papu/nr r~bcMc

RESIST~NCLA DO IMAGINÁRIO
, '
trair-se ao ol~ar médico, este ol.har que ausculta, mede, classifica, elimina e,
para terminar, envia a pessoa ao hospital maldito. I.'
Fazer as mulheres se calarem. -Civilizá-Ias_ Ensinar-lhes a ler. Mas·o ima-
ginár:io feminino foge,. recusa"7se a deixar-se colonizar pela via da ciência e da
razão. L:eitoras de rom;ances populares, as mulheres fazem o . .sucesso de Euge- .FAZER AS MULHERES SE CALAREM
ne Sue e de todos a'q~eles autores baratos cuja libertinagem e a persistente in-
disciplina são deploradas por Alfred Nettement e Charles Nissard.'~s Da-r boas Esta cultura cobre o povo como uma carapaça isolante e protet,o ra ao
leituras às mU,l heres torna-se wu tema do regim e imperial. A cr,iação do Perir · me~mo tempo. Dissonante em ,relação ;0
djscurso do p'rogresso, ela é perigo-
JoumqJ, em 1863, as facilidades que Ule são concedidas (dispensa do controle sa não 'SOmente pó~ se r sempr~ s~scetível de alimentar uma resistência, mas
prévio) para pennitir,
, servido pelos servjços de mensagens Hachette e pela es- ainda mah por manter na dissidência um povo ";e1vagem:', escondido dos
trada de ferro, que ele chegasse antes de todos os outros, são uma tentativa olhos do ,poder. Daí a irritaçjio que se manifesta cada vez mais contra o "atra-
bem-·sucedida para colonizar o imaginário do povo. Trata-se de substituir pelo so" das ' donas-de-c~sa e,a vontade de educá-Ias. '
charme do folhetim regular -1! decente ":' as broch'uras aleatórias dp vendedor A separação dos sexos na cidade, o recuo da convivência mista são um "
,ambulante subme tido aos riscos da viagem a pé. O fulgurante sucesso do Petit dos caminhos da ordem que suspeita das promiscuidades duvidosas. 00-
JOllrnal (um milhão de exemplares por vo lta de 1900) repousa, em grande par,:, rothy,Thompson mostro,u como, no fim do século 18, as mulheres inglesas
te,/na atração de ~eus folhetins sobre suas "fiéis leitoras". No entanto~ ao olhar- ficam junto do'S homens, seus companheiros) nas tavernas) inns ou ale hotl-
mos de pe~to, ele só pôde ter sucesso ao -se adaptar a seus gostos. Definitiva-' ses, bebe~do ou cantando com eles, e..toman·dQ parte das discussões p~líticas.
mente, o folheti~l , é ~bral\apen",~ por seu fim que exclui os ca~amentos co m ~ voz das mulheres explode nos tumultos radicais do início do.século. D~­
pessoas de classe inferior, faz morrer os usurpadores, devolve o filho a seus pais . pois, 'elas são observadas, olhadas, fazem-nas sentar,se. auto.rizam-nas a to.
legítimôs e desmascara os falsários. Suas peripécias,.cheias de barulho e de fu- !..mar a' palavra: como na s primeiras assembléias cartistas: Enfim, por volta de
ror, refletem uma violência singular.I'" 1850, os Pllbs tornam-se locais purament~masculinos, onq,e as ,mulheres não
É ainda de cultura do corpo que convém falar: Antes de serem as au.u- são "dmitidas, excluídas, ao mesrt;lo tempo, das trade-ulIio/15 que fazem ali
Bares reverentes, ansiosas e sempre culpadas dos médicos, as mulher~s do po,:,~ -se us encontros. lU
foram , ao contrari'o, suas principais rivais e as continuadoras de uma medici--
na popular cujas virtudes se tende a reavaliar nos dias de hoje._Elas usa m to-
147 Numerosas anotações sobre este tema em Le Play, A mulher do carpinteiro de Paris
dos o,s recursos de uma farmacopéia multissecular, çophecem cem maneiras de~
"acredha se r experiente em certas prátiéas da medicina usual, e trata eJa mesma as
- aliviar a.s pequenas dores cotic!.ianas que deixam tantas vezes a me'dicrna eru'"- indisposições que acontecem na família. Con fiante nas idéias higiênicas' de um
dit~desarmada. Analisando de perto, estes "remédios de mulhú" revelariam, pr.itico popular, ela faz grande uso de água sedativa e dC" preparações C<lnforadas
prd~avelmente um real saber sobre o~ sofrimentos do povo, pl,"eocupado em (...) A maioria de suas práticas de higient'. muito habituais em outras regiões, são
ev{tar a despes~.. rn.~s tainbém em conser:var' su~ autonomia corporal e 'sub-
encontradas comumente ent re as mulheres dos operários parisienses que têm, (re...,
qUentemente, na família a atribuição das (unçOes de médico e, transmitem, entre
si, também. um certo número de receitas tradicionais": Ouvriers des Deux-Mondes,
t. I, p. 31, li158.
145 A. Nettement, Srudes critiques Sllr le feuilleton-roman, 1847, sobretudo t. li. p. 442, . ,
148 Dorothy Thompson, "The missing presenc<. The withdrawal of Women (rom
. , car;ta a "La femme d'intérieur': .
\ working dass organization in the Early Nineteenth CenturY.', inédito, parcialmente
146 'Segundo as ' Pesquisas de tvelyne Oiéboit e sua tese sobre os folhetins do Petit retomado em MITCHELl... l.; OAKLEY. A_ Tlle Rig/lt5 and Wrongs ofWomen, New
Journal. ' York.: Penguin Books, 1976.
"
, '"
218 '. , 219 .
""""
' Mulheres no ImOOlllO
Ctpltulo -'
Ao mulher popultlr rebcld.

.,
Com as modalidades cliferentes, o mesmo movimento de retirada dese- PRÁTICAS FEMININAS E SINDICALISMO
.',
nhau-se na França. A alegre liberdade das festas e dos bailes de barreiras com
. suas damas despenteadas - "ali, dançam sem sapatos e rodopiando sem cessar, o movimento operário, mesmo fazendo o elogio da dona-de-casa, prefe-
homens e mulheres que, ao cabo de uma hora, levantam tanta poeira que no re que ela fique em casa e desconfia de suas intervenções intempestivas. Pode-se
fim, não se pode maiS vê-los", escreve Sebastien Mercier, a respeito do baile de ver"'in\1ito bem esta posição, nos tumultos de carestia de 1911. QuaI?do, no verão
Vaugirard 10 - dá lugar a composturas mais afetadas em que se inscreve a
I " .
his- c!e Í911, os laticínios e cettos produtos secos começam a subir, as donas-de-casa
tória' da dança. A rigorosa separação dos sexos do círculo burguês irn'põe"'seu do Norte da França se agitam como o faziam outrora para o pão. Os incidentes
mo'delo às associações populares. Na Baixa Provença, por exemplo, as Cham - coriieçam nas feiras da região de Maubeuge, estendem-s~para todo o Norte mi~
brées~ antigo modo de reuniõe~ plebéias. expulsam pouco a P?UCO as muUle- neiro e têxtil, e multiplicam-se um pouco em toda parte, de Saint-Quentin .a Le
res pois elas não votam. O sufrágio universal acentuou a tendência à separação Creusot, para terminar, nos portos industriais do Oeste. De ·maneira geral, o
dos sexos, Q.3 medida em que a e~:hicação política do povo pelo direito de' votO mapa dos t\lmultos é industrial: as mulheres de operários são o motor do movi-
dirigiu-se por muito tempo ao homem, e apenas a e1e. no Ora, o sindicalismo mento. Elas manifestam ·cantando a "lnternacional da manteiga a quinze tos-
funciona segundo o modelo parlamentar. Em Roubaix, em Lille, por volta de
tões" e se organizam em."Ligas de Donas~d~-C~sa" para obter. das l'refeituras
1880, os estatutos das' câm;\ras sindicais estipulam que qualquer mulher que municipais a taxação dos produtos. Em segwda, greves edodem em toda a par-
quiser tomar a palavra deve apresentar um pedido escrito por intermédio de , te, os operári·os - seus maridos - seguem os seus passos; há afrontamentos vio-
um membro de sua família! Mesmo nos sindicatos mais feminiza'dos, como o
lentos e mortes. Diante delas, no entanto, O sindicalismo se ctivide. Alguns vêem
dos Tabacos, que contam com excelep.tes oradoras, é muito raro ver uma mu-
na ação m~ciça e "espontânea" das mulheres um "l1].ovimento. soberb·o': exemplo
lher ocupar a tribuna.
de ação concreta, popular. democrática, capaz de sacudir os operários "indolen-
Um exemplo ainda~ tirádo das Memórias de UOflard, de Martin Na-
tes" efatalistas diante da alta dos preços. Mas a maioria teme a vil>l!ncia daque-
daud, levará a 'compreender este silenciamento dãs mulheres, até nos vilarejos,
l~l<movimento CUIioso': a fugacidade de tais irrupções de cólera, a efemerid;de
peja modernidade masculina e urbana. Q uando, no início do iriverno, ós pe-
l das Liga~ ,e sonha em tra~"Sfdrmá ..Jas em movimento I\viril': consciente e orga-
dreiros da Creuse voltam à região, aureolados do prestígio de Paris, a visão de
.nizado: "o sindicalismo deve alçar o povo à possibilidade de uma revolta mascu-
sua bolsa ~eia de dinheiro n'ovo, faz chorar as mães, seus presehtes encantam
lina': Em diversos locais, os militantes tentam transformar as ~gas em I<sindica-
as moças, seus relatos fascinam os que ficaram: quer-se saber ·mais. E sua jo-_.
tos de donas-de~casa'~ ensinar às mulhéres os méritos da organização permanen-
vem e máscula palavra, onde brilham os fogos da Capital, ;eduz ao mutismo
t~, tomar o movimento nas mãos para educ:.\-Io, canalizá-lo. No ano seguinte, no
as velhas mulheres guardiãs da memória - como a Fouissounei parteira e mé=-
congresso da CGTJ na cida~e qe Le Havre, preoon.iz.i-~e a "educação _da Dona-
dica do vilarejo - cujos contos embalavam as vigüias. Elas se retiram, aos pou-
de-Casa para a melhor. utilizaçãQ de seu orçamento e para a aquisiçãÚ\de noções
cos, parà a sombra, tristes e silencÍosas. ' .
de higiene alimentar'~UI
, Este episódio ilustra um dos n\l~erosos mal-entendidos
,. --
- , que..naquela aUrora do sécu1~, separavam sincticalismo e movimento das ~ulbe-t
res. O sincticalismo retusa as. formas de expreSSão das rrlUlheres como selvagens,
,
149 Tableaux de Prlris,' 1783. sobre as festas. "Ver o estudo de RÂNCItRE. Jacq;es. te
)51 Sobre estes tumulíos, o livro de h-mile W3te1et, Les rkenteJ. troubles du Nord de la
I',.
bom temps ou 13 barriere ~es plaisirs. Réfltet logiqutS. n. 7, printempslétt 1978.
France. e sobretudo l.-M. Flonneau, ..Crise.de·vie chere. Rlamons populairtS el ~hzc­
15(> AGULHOM, Maurice. Histoire et ethnolpgie: les Chambrtei en Basse Provence. tions syndicales. Dissertação (Mestraçlo), Paris, 1966 (inédita), resumida em "Crise
Revue Iristorique, àvril/juin 1971. 1
de vie jchere et mouvement syndical~ ?eMOlll/emen t social. juiJ./sept. 1970. '
....
.
~

220 221
Pane 1
Mul/IUCJ no tr'tlba/ho
.,

irresponsáveis, pouco adequa~as à dignidade dos trabalhadores. Em Montceau- Capitulo 8


les-Mines, durant~ a grande greve de 1899, as mulheres vão em passeata a Chã-
,
lons para pedir audiência ao sub-prefeito e quando ele, pouco preocupado em'
recebê-las, aparece na sacada, elas se voltam e, num perfeito movimento de con-
junto. que supõe conivência, elas lhe mostram os fundilhos. lnversãe,-derrisão:
armas clássicas das mulheres. Este traço, transmitido pela tradição local, chocou
a respeitabilidade sindical que _o apagou de seus relatos. Ainda um outro exem-
plo: em Vizille. durante a longa greve das tecelãs de seda (cem dias de 1905). as
-MULHERES E MÁQUINAS NO SÉCULO 19*
mulheres organizam algazarras .noturnas; armadas de panelas e de utensílios de
cozinha, elas apupam os patrões, o prefeito municipal e se us assistentes, por di-
versos dias seguidos, na mais franca alegria, como outrora, na companhia dos jo-
vens do vilarejo, elas faziam para os velhotes que se casavam com jovenzinhas.
Até o dia em que ~s );ocialistas da cidade, temendo tanto os afrontamentOs com _' Segundo uma lenda tenaz, a m~quina seria, no século 19, a grande alia-
as forças da.ordem quanto o ridículo, pediram-lhes para abster-se e utilizar ou- da das mulheres, abri'ndo-llies, com'o Moisés, a terra prometida do assa'laria-
lras formas de ação, mais decen~es, A greve não poderi;" ser uma festa, ,
men,to e, com isso, a igualdade e a promoção. Tecnicista, ou mais sutiln,l ente
Um ideal conjugado de viriljdade e çle respeitabilidade rejeitou a rusti-
marxista p~r ser mediatizada pela dialética social, esta tese vê na industrilliza-
cidade camponesa, as truculências populares e a~ formas de expressão femini-
ção a chave do progresso feminino, em que a máquina conjura a inferioridade
nas que ge ralm ente as prolongam. Entre o sindica.1ismo e as mulheres, há ~ais
biológica e fisica.
do que um problema de desorganização: um conflito sobre os modÇ>s de inter-
ve nção e de expressão enc?brindo uma diferença de,cultura e de ~stên(;ia.
Neste momento da história, os homens são mais políticos, as muUleres mais
"folclóricas" no sentido mais profundo do termo e, por isso, rejeitadas, recusa- . MÁQUINAS LI~GENDÁRIA~
das pela -modernidacje.
As mulher ~s não são nem passivas nem submissas. A mi s~ria , a opres:...;. Na primeir;a metade do século, a mecanização do setor têxtil provoca o
são, a dominação, por mais reais que sejam, não bastam para contar a sua his- afluxo' das mulheres nas fábri cas mistas, pivÔ de sua soci~lização e de sua
tória.·Elas estão presentes aqui e acolá. Elas são diferentes. Afirmam-se por ou- emancipaçijo. Na segunda metade, a máquira de c?stura lhes permite a impos-
. por outros gestos. Na Gidade: até mesmo na fábrica, elas_têm ' o~-=-:.
tras\. palavras, sível conciliação entre as tarefas domésticas e o assalariamento. Por meio des-
tras' prâtieas cotidianas, formas concretas de resistêllcia - à hierarquia, à disci- ta inovação, "a mais inlportante na produção dos bens de consumo desde ·a in-
p~ra - que frustram ~ ~acionaíidade do poder e estão·diretamente enxertadas venção do tear mecânico ( ...) ,as mulheres podiam Liberar~se de uma longa es-
em seu uso próprio do espaço e do tempo. Elas traçam um caminho que seria cr,avidão", escreve David Lmdes" s2 A "costureira de ferro" coloca, de certa for-
preciso reencontrar. Urpa história diferente. ma, a fábri ca a seu,s pés e as consagra como rainhas da técnica. "Parece que a
Uma outra história.
,
'.
,.
·1 .I . ...
'* Femmes et Mach ines au XIXe siecle. ROllullltisme, "1..'\ Machine fin·de·siecle~ 4 !J,
p. 6- t7. t983. · •
, 152 -bANDES. David. L'Europe tecluticienlle. Paris: Gallirriard, 1975.
-'

222 223
\
""""
MulhU't.J no trnlHllho
Qlplrulo ,
MII"'att~ I/IIi1l"imu noSÚtlIo 19

mulher conheceu sua maior glória com a máquina de costura", diz Gaston Bo- o idiVo continua no trabalho do.méstico, A mecanização diminui a di-
nheur. "O fato de que est~ máquina fosse destinada à mulher parecia conferir- ficuldade.libera o tempo, permite que as mulhere~ burguesas disponíveis en-
Lhe definitivamente a realeza da casa. Os homens estavam ainda com seus ca-
valos, suas charruas, suas grandes manobras vestidos com calças vermelhas e ~
.I treguem -se à cultura do corpo e do espicho, e que as mulheres do povo, pro-
duzam mais. A lavagem da roupa, primeira operação doméstica a ser raciona-
com seus charutos. 9 século 20 escolhera a muUler."") A propaganda republi- . 1iz.1.da, se faz em grandes lavanderias modernas que, aos poucos, substituem os
cana para <;onq~iStar a opinião das mulheres apóia-se n~ dupla imagem d~ . antigos lavadouros, locais essenciais de sociabilidade feminina, assim destrUÍ-
'" água, mais bem distribuida pelas fontes públicas, e da máquina de costu,ra, am- dos, I$7A máquina de costura permite executar "sozinha" encantadores "mode-
plamente import,!da mas freqüenlemente fantasiada com nomes patrióticos los': sem recorrer necessariamente aos serviços da costureira. O aspirador, pri- -
. para esconder uma origem alemã"'" Eis Jules Re~ard, candida~o' à prefei~ura mogênJro da fada eletricidade, tal qual São Miguel Arcanjo, arrasa o pó, veicu-
municipal: "Eu co nvers~ com as mulheres, exceto com as viúvas, e para a má- . lo da tuberculose. Na cruzada da dona-de-casa .contra a sujeira, ele é o aliado
quina de costura, faço o elogio do século 19) da República". ISS ,. - mais fiel. A mulher re.ina sobre seus escravos domésticos, liberada tanto do
Mais tarde, a máquina de escrever introduz as ~ulheres nos escritórios, oiliar das empregadas sobre a sua intimidade, quanto de duvidosas promiscui-
'as datilógrafas, necessariamente "gr~ciosas-: expulsam progressivamente os co: dades. Os trabalhos domésticos passam a ter a dignidade das "Artes", das quais
a mulher ,é a ordenadora" u .
pistas com jeito de clérigos e fazem ruir o velho apanágio do escriba: o apaná-
gio do manuscrito e da escrita. As mu.lheres penetram no coração das àdade-
las do poder: nos ministérios onde aparecem desde 1895, não sem pr$)vocar
I Nesta união mulher-máquina, celebra-se um · perfeito casamento de
conveniênciaJ. fruto de uma harmonj~reestabeleçida. O discurso sobre a má-
quina é também um discurso sobre a natureza feminina. Frágil, a mulher não
m~to mau hurnor;l56 nos negócios, cujos segredos elas desvendariam, se' uma
pode tratar diretamente com os materiais duros que requerem' o esforço viril:
secretária não fosse surda por princípio. A iconografia, a publicidade sobretu-
ela é destinada ao mole, fios ou tecidos. Incapaz de inve.nção, ela convém às ta-
do divulgam estas nova s imagens da muUler e do casal amoroso que ela forma -
-refas .parciais, repetitivas, originárias de uma divisão do trabalho que a máqui-
com sua Singe,r ou com sua-Remington.
na ~umenta. "Âs mulheres não têm im~gjnação': escreve Jules Simon, "ou ao
menos elas têm apenas aquele tipo de. imaginação que lembra e representa os
I S3 THUTLLlER, Cuy. Pour une Iristoire du qllotidien ali xxe siecle_en Nivcrnais. Pari~ objetos que se percebeu. Elas não criam, mas reproduzem maraviUlOsamentej
Mouton, 1_~77. p. 180. nota 145. . ._
são copistas de primeira ordem'~'s, Sedentária, a mulher está. confortáve~ junto
154 Office du Travail. La Petite [ndustrie. Salnjres 'et Durée du Travail. Paris, 1896. t. TI:
Le Vêtement à Paris, p, 33,:'0 sistema de venda qas máquinas alemãs consiste geral-
d~s máquinas frxas, cujo alinhamento esquad~inha a' calm a ordenada do ate-
mente em designá-Ias com "apelidos patrióticos franceses'~ Os antigos fabricantes liê, c\1ja visão arquetipica nos é dada por tantas gravuras ou fotografias. Quan-
franceses toman{-se POl!co a pouco os depositários de seus antigos concorrentes de do .se pod~ introduzir a vigilâ~cia religiosa, como' nas tecelagens do Lyonnais,
. além-Reno': O atraso francês em matéria de máquinas- instrumento é um leitmo- ,
tiv da época: r.tlzes antigas de um problema atu31.
155 THUILLfER, Cuy. Pour une Ilistoire. tlu quotidien ali XXe si~cle' en Nivernais. Paris: 157 PERROT, Michelle. F~mmes au I~voir. Sorciue5. n, 19, lA Salttt~ No casQ dÓs
Mouton) 1977. p, 155. nota 98, lavadouros. a mecanização modificou completam~nte 3 relaç30 das mulheres com
156 THULLIER, C. La Vi, quotidienne dam les Minisreres au XW sitcle. Paris: Hachette, o espaço, com o trabalho; mecanizado.. o trabalho do lavadouro torna-se um tra-
1976. p. 195-203: "uma revoluç30: as mulheres nos escritórios"; lA Machine d écrire balho de homens e as mulheres pássam a ser apenas ~ clientes passivas,
I,ier e.t de.nlt~Jn. Colloque de 1' 1nstitut d'étude du Livre, Sous la direction de ~ge r 158 Ver o n. 3 especial de Culture TWltlique. "'Machines au foyu", sobretudo Martine
Laufer. Paris: Solin, 1982; sobretudo G. RibeiU, "Resumo histórico sobre o trabalho Martin. "ba rationalis.ltion du travail ménager en France dans I'ent,re-deux-guer-
da datilógrafa';; Annie Sornaga. dissert~ção de .mestrado inédita, Paris VII, )98l. res': 15 scpt. )·9~O.
N30 trato desta questão aqui. Uma imc)tsa qUÇ5tão lpor si só. , 159' Jules Simon. L'OlJvriere, 3. ed., 186 1, p. 2 19.

"
'224 225

l.
~' . ,
Parte 2 r
Cnpihllo'
Mull.e/"/!$ e tlldq uimu 110 detilo J9

~
M;/1I1d'll /1O II'II/ia//w',

,
,
t tem -se a impressão de se estar em um convento, modelo obsessivo da disci pli- "dedos de fada"; negam -lhe a ciência que por si só funda um e.n sino. Empiri-
f na própria das mullieres. l60 Conseqüentemente, ei-Ias úteis e prótegidas, pro- co, ou mágico, o seu s~ber é sem qualidades. ,-
dutivas e vigiadas. Passiva, a mulh~r tem necessidade de recebe, ordens; servir A máquina, ao dividir o trabalho, ao torná-lo mais fácil e menos mus-
a máquina, obedecê-Ia, corres~onde a seu temperamento. Seu corpo, dócil e cular, permite o uso das capacidades femininas e reergue o prestigio da s mu -
mille~vel , adota a sua caqêntia. Acuidade visual, exercitada em sua fineza com lheres, tornando-as úteis e mais iguais aos homens. Segundo paull;eroy-Bea u-
/ "
os bordados de pont6s miúdos, destreza manual, habilidade em dedilhar, agi- tieu, até mesmo a igualdade de salários entré os sex.os"Se rá a conseqüência da
lidade dos pés. que pedalam assim como dançam, ritmo dos gestos, fazem da mecanização, por seu corolário, o salário por peças, em que , íJ,S mulheres
. po-
mulher uma 'espécie de apêndice.'vivo da máquina, transformada assim em dem. com seu zelo, alcançar ou ultrapassar os homen s,lfol apagar sua condição
mulh~r, erotizada na linguagem do ateli ê assim como no movimento artístico pelo rendimento. Esta é, ao menos. a opinião, dos economistas liberais, que
do Art Nouveau. acreditam na expansão de um mercado de trabalho homogêneo.
\ Toda máquina nova entregue às mulheres é apresentada como inscre- A feiticeira cavalga uma viga metálica. A nova Eva nasce do vapor.. Mas
a técn.ica teria tais poderes? Às mulheres, a famUia, os tecidos, as máquinas
vendo-se em uma seqüência natural de movimentos- que exigem uma sim ples ." \ "

simples ...
adaptação. Da máquina de estrever, diz-se que ela é, logicamente, a seqüê.n cia
do piano. "Entre -ás ~ovas 'tarefas às quais a moça parece adaptar-se admiravel-
mente, é preciso citar as de este nógrafa e datilógrafa. Os ~edos da moça -são
suscetiveis de uma grande, agilidade 'q ue até aqui só brilhavam no piano. Esta
DOMíNIO T~CNICO E PODER DÓS HOMENS
agilidade pode se m~nifestar a partir. de agora em teclados mais- utilitários".l6l
As mulheres foram promovidas pelas máquinas? Algum~s. p.rovavel-
Passa-se, assim, da bordade~ra à costureira da fábrica, da pianista à datilógra-
mente. ! possível que os pioneiros do maquinismo tenham tentado apoiar-se
fa, e depo is, à mecanógrafu, da costureira tlmida à mC!ntadora de transistores,
nas mulheres. John Holker leva para a França contramestres britânicos e esfor-
c;omo conseqüência lógica, se~ que fosse preciso aprendizagem ou reciclagem,
ça-se para formar um pessoal de acompanhamento feminino. Não é raro en-,
mas simplesmente daquela "destreza" que se atribui geralmente às mull~eres,
contrar, tanto na Normandia quanto na Provença, mulheres supervision'a ndo
ao' passo que.. lhes é recusada qualquer outr,3 "qualifi cação'~ Elogiam-se seus homens nos ateliês no fim do século 1 8 . '~
Mas no século 19, encontra-se pouco este tipo de situação. Olhando
l60 ARl'{OLD, Odile. Le Corp5 et l'anle. La vie des rtligieu5c5 du X1)(t siêcle. Paris: Seuil, " bem , como fez Hélêne Robert em um estudo minucioso ~obre as mudanças de
.1984.
, ' cond ição induzidas pel~ técnic:a. a derrota das mt,tllJeres é bem mais eviden- ,
161/ D'AZAMBUYA, G.,lA feunefille et l'évolution modcmc: Paris: {s.n.), 1905, apud-- '"

l
• te. l &4 Assim, a prime'ira fase da mecanização do,setor têxtil, o da fia ção. faz de-
- I SORNAGA, A. op. cit" que indicn diversos o~tros textos, sob~tudo os seguintes: M. .
Haende1 , Ce q"uc doit ltre la sténodactylograp1le: "Se: as ofertas de emprego vão de
1 prefer~ nci a para a m.ulher, é devido 30 fato de que este tipo de trabalho é mais pas-
162 LEROY-BEAUUEU, Paul. Le Travail des femmes duo Xlxe siecle. 2. ed. Paris:
; . sivo e lhes convérh mais. ~ão se pode imaginar um homem visoroso, submetido à Charpentier, 1888. p. 142- 143" '
. manipulação de uma máquina, do começo.a9 fim de um ano, enquanto o comér-
cio sofre com a penúria de~mpregados aptos à luta efetiva, tanto por sua cultura 163 PERROT, Michelle. Us ouvrieces ef les machines en.France dans la premiere moitié
mais geraJ;quanto por sua grande resistm...cia flSica", Se: a mulher não tivesse podi- du XIXt siêcle. Li Soldat du travail, n. esp. de Rechercltes.
do adaptar·se a eSte trnbalho, o homem teria se tornado "o primeiro empregado 164 ROBERT, Htlene. Lt Machinisme et fe rravail fiminin all XIX! siecle. These
dos' escritórios ( ..,); na.ll"!ão dos homehs; -esta tarefa teria assumido um dos (Doctornt de 3' cyde), Paris I, 1980; trabalho lfundamental. No ~so da fiação, s30
primeiros lugares na hierarquia do escritório comercial': A simples pr.eseriça do os homens que tiram o trabalho das mulheres: "Entre 1830 e 1830. tr~s anos bas-
homem qualifica uma profissão. I '-
t~m, em Reinu, para pas~ da fiação manual. feita em domicOio por mulheres,

"
226 227
Ame', Ctpj'u/~ !
Mul/len,"o tmb,dlto M.,lhtrt:Jc ,,..!quIIIAS no Ikulo 19

saparecer muito rapidamente as fiandeiras de roda, figuras clássicas dos ca,m- porcelana, é uma questão deste tipo que provoca a grande greve, t30 ~iolenta,
pos, em pr6veitQ. de equipes de fábrica sob a direção masculina. Em tomo da cuja história foi con.tada. por Clancier (Le Paih "~ir).'"
novas máquinas de fiar inglesas, assiste-se a uma recomposição do trabalho A altetnativa é O convento-fábrica. Nos internatos de seda da r~gião de .
cujo beneficiário é õ chefe -de família, transformado em chefe de equipe; ele Lyon, desenvolvidos a partir ?e 1835 segundo o modelo do Lowell americano
emprega" seus ftlhos e até mesmo sua esposa, como auxiliares. O pai é o con- e dos quais-Os e.stabelecimentos de Jujurieux (no departamento do Ain, fábri-

t tràmestre e recebe para isto um salár iõ familiar global. De maneira similar, na


fabricação de tecido de algodão, a introdução do cilindfo m~cânico, põe volta
de ] 836-1840, suprime as mulheres e a~ crianças e reforça a masculinidade da
,'O ca Bonnet) e da Sea\lve são os' exemplos màis' ilu.stres, o acompanhamento é
confiado a religiosas; em 1851 , uma ordem espeCial, dos Sagrados Corações de

;;1
Jesus e de Maria, em Recoubeau (Departamento da DrÕme) é fundada com
profissã!>. '" A partir do ll1omen~o e m que ~rna máquiha é considerada comple- esta finalidade. 'Nestes e~tabelecimentosj as mulheres entram muito jovens
o xa (e esta cOmplexidade seria ápreciada) os homens conservam o seu domínio. (por volta de dez-onze anos), geralmente por interm~dio do p,adre da paró-
Cerca de trinta anos mais. ta~de, a 'mecanização da t~celagem , por mui-
_ . --o

quia, e elas ficam até seu casamento, Seus salários, comumente pago.s dheta-
to tempo atrasada pela resistência masculina dos tecelães em domicilio, tira- , .hlente às famílias camponesas das quais a maioria delas é originária, servem
dos da autonomi~ de seu modo de vida, levou ao res.ultado inverso. Desta vez, para engordar as pequenas propriedades familia~es e para constituir seus do-
foi a equipe familiar, cujo responsável era o tecelão, manipulando o pes,ado tes. Nas montanhas do Lyonnais, diz-se que um homem que tem fiUlas é um

: tear, assistido por sua esposa e sua prole, que se dissolveu. Nas tecelagens me-
cânicas, a mão-de-obra é infantil e ,feminina e dedica-s.e a amarrar os fiOSi 'os_
homens ocupam os empregos qualificadps de preparação. ~ de a~bamento, em
geral inteiramente. manuais. refúgios dC?s saberes e dos segredos relativamente
bem pagosi eles garantem a manutenção das máquinas e o acompanhamento.
homem de sorte. Ce~ca de cem mil moças trabalham nestes internatos por vol-
ta de 1880, data
. em que\ começa uma longa decadência, pontilhada de greves.
~s mulheres mostra.m -se cada vez mais combativas, trazendo para estes con-
flitos suas formas de ação e de expressão próprias. Uma delas, Luc.ie Band, " (0 -
mentadora" da greve 'de Vizille em 1905, deL"wu uma curta dissertação auto-
"

Os contramestres das fábricas têxteis consideram freqüentemente as mulheres, biográfica, útil testemunho ~obre a condição das 'operárias das tecelagens me·
jovens em sua ~ai~ria, cokno suas vassalas, exercendo' sobre elas um verd~dei­ cânicas, onde aumenta a participação das italianas. I'?
ro droit de cuissage (direi to à primeira noite), causa permanente .de conflitos. A mecanização, como se pode ver, não tem efeitos unívocos. As vezes, ela
, '
Jornais como Le Forçat, a Voix du forçar, a Revanche du forçat, em que estão'êx- , reco~põe o trabalho, requaJifica-õ e O masculiniza (fiação); outras vezes, ela o
pressas as queixas'~os operá-rios da indústria t~il
, . do Norte. estão repletos da- .fragmenta, parcela-o e o feminiza (tecelagem). O lugar das mulheres não é de:..
litania de seus maleficios lúbricos. Em 1905, em.Limoges, em uma fábrica de terminado pela técnica, mas por .qu~tões de status Rue tradicionalmente - Na-'
·1 talie Davies verifica esta q~uestão no "século 16 em Lyon '" - atribuem aos~ho-
sol)re "a roda de fiar e a roca~ 3 fábric..1. de fiação, o~de o conjunto do trabalhQ é , .' _ ~ens o;s postos de comando, dé acompanhamento, os in-strumentos com~JiC<t
parcelado em diversos ateii~s' , diversas opernções; a última, operação por excel~n­
cia de acabamento aa "fieira':, sobre uma máquina complexa ~ muito aperfeiçoada, . \

será requalificada. ségundo as novas normas de quaLificaçilo do sistema produtivo ~ 166 Cf. LOUIS, M. v. Le: Oroit de cuissage, France, 1860'-1930. Paris: L'Atelier, 1954:
'cap itaJista: E ela será atribuída exdusivam~nte a homens, No.. entanto, a força m'w· 167 Importante literatura sobre estes con~entos-usinas. · Ver sobretudo VANOLl,
cular é menos do que nunca exigida par~ condurir uma "Mu I! Jenny self acting". Dominique, Lts Ouvr;êres tn so;e du Sud- Est de la France (1890-1914), Disstrtação
t'nica máquina automatizada que Jltinge b nh;el d~ maquinismo mais elevado, ao r (Mestrâdo), Paris VIJ, 1975. e artigo em Révoltes Logiques, printemps 1976. " ~s
qual as mulheres nunca t~m acesso~ O fi;nde.iro é um "suboficiãl" da fia~o. ouvri~res enfermées: les couvents soyeux".
165 CASPARD. Pierre.l..a manuracturc de Cd,taillod. Nciissance de la classe ouvrib'e en 168 DAV1ES, Natalie. Women in the Aro Mechaniques in 16th century Lyon. In,
FratlCt. n. esp. de Mouveme:/lt ;ocial, octJd~c. 1976. , Mélanges ojJerts tl GascoTl. Lyon: [s.n.], 1980. .
,
I
>

:
".

228 • '.
"', 229
1

/ Parte 1
MullrcrÚ'IIC/ tr/lbtllllo
Mljllu!rtl c
Úl pltlllo 8
",dquim" 110 liculo 19

do's, e às mulheres. as tarefas de auxiliares, de assistentes, os trabalhos de execu- .


Barneville, instalada no claustro de Saipt-Madou, sob o patronato do pároco
ção, efe tuados com as mãos nuas, pouco especializados e até mesmo casuais, e
e da~ irmãs (a aliança da igr~ja e da máquina é freqüente) e que, segundo elas,
sempre suhorcliriadps. A mecani~çãoJ se 'ela sign~ca a saida da casa da fa'mília
obr.iga-as a fazer jo!nadas incompatíveis com os cuidados domésticos. In Em
e a en,t rada mais maciça dâs mulheres no mercado do trabalho industrial, não.
1791, quando se quis introduzir jentlys em Troyes, "as fiandeiras se amotina-
implica em sua libertaçãc:>. nenl em sua promoção,_ou seu acesso à técnica. O
ram contra elas: elas foram en tão instaladas nos campos, e depois, mais tarde,
medp que ~ste _de suá emancipação se.xualleva OJ,té mes mO a vigiá-las ainda "
na cidadc': m Em Paris, durante a Revolução, as mulheres brigam constante-
mais. Na fábr ica, a máquina reprodui, e mesmo agrava a divisão das tarefas e -a
mente para obter trabalho em casa, Outro exemplo: em 1846, durante graves
subordinação feminina, a autoridade do contramestre ou da' religiosa. substi-
distúrbios, a fábrica e a casa de um industrial, Jules Auroux, fora'm incendia-
tuindo a autoridade do pa~. E 'c om isto, 'ainda mai.s devido ao ciclo de trabalho
das porque este industrialmtroduzira uma «triadeira" de lã de fabricação in-
feminino. temporári<? e intermitente porque determinado pelas necessidades da
glesa, destinada a substituir as mulheres que, até então, faziam este trabalho
família,l" a revolta é dificil e a orgariiz.1ção na maior parte das vezes, impossí-
em casa e pretendiam conservá-lo. Em 1848, as mulheres conduzem grupos
vel. Para os próprios ope rári.os, .a greve é um ato viril 'e o sindicato não é uma
que, em Lyon, em Saint-Étienne, sobretudo, assaltam conventos e casas d.e be- .
questão de. mulheres. A máquina as ifitroduz no espllço público, ao passo que.
neficência acus~dos de fazer concorrência ao trabalho das donas-de-casa'; res-
se quer, obstinadamente, co nservá-1.as no espaço privado; insuportável co'n tra-
peitando os objetos do culto, elas queimam as ~rdideiras e os teares mecânicos
dição que fará, por certo tempo, o sucesso da máquina de costura.
,I cujo introdutor foi freqüentelnen te o clero, curiosamente modernista a' este
De mais a mais, as mulheres ~eralmêntê manifestar.ar.n muita hostiüd~­ I
de pelas máquinas, e é preciso desmentir aqui a tese,de sua passividadé, coro-
lário d~ seu consentimento a uma mecanização promocional imaginária.:'"
'. respei to. Assim c-xplica-se o caráter anticlerical destes tumultos em que duas
mulheres são·mortas. U4

Sua ati tude é, na realidade, inuito m'ai~ nuançada e, logicamente, variável com
As mulheres defendem assim o seu direito ao trabalho e aO trabalho em
domicilio. Elas s~ insurgem contra a'conce.l1tração e a destruição do modo de
o tempo. As mulheres aceitam e até mesmo procuram, as pequenas máquinas
das quais elas podem se apropriar e que podem domesticar, ~o mo a~ pequenas produção doméstica que regera, por !anto tempo, a vida cotidiana. Donde a
jetltlies inglesas, as muito populares "jeannettes': que lhe permitem fazer, em.. , sua presença ativa nas luddites (ou quebras de máquinas) que, sem ter, certa-
domicílio, u,n a produção aumentada e, ao menos no início, ter ~um ganho mente, a amplitude dos movimentos ingleses) existiram s?brerud o no Sul, du-
mais elevado. Elas r:ec.usam as 'máquinas cujo tamanhQ supõe a concentração, _ rante a Restauração, especialmenle na indústria dO a lã, mostrando a resistên~ia
como suas ancestrais haviam, no tempo de Colbert, recusado se deixar enclau- da, economia familiar e dos profissionais artesãos. Como mulheres de operá-
surar nas m;lnufatura~.17I Em Rouen, em 1788, elas boicotam ~ máquina de rios, as mulheres desempenham seu papel tutelar de donas-de-casaprotegeo-
" . - I· do o níveJ de 'vida da famíÜa que precisa de "trabalho e de pão". E isto ainda
mais porque as revoltas de subsistência e luddismo se misturam, Em Vienne,
16~ SCOTI, }63n; TILLY, Louise. WOl11ell, Work and Family. New York: Rinehart a.r:d
por exemplo, em 1819, durante os terríveiS'd.istúrbios contra a -introdução da
Winston, 1978: ~ndamenta l: tr. fr. Les Femtllu, le travail et lafntllille. Paris: Rivages,
I
I
1987. . ~ . "

170 BRANCA, Patricia. A new pe:l"Spective on Women's Work: a comparati\'e typology.


172 EVRARO. F. Les ouvriers du textile dans 13 r~gion rouennalse ( 1789-1802). Anna/fi
Joumal o/Soei,!1 History, v. 9/2: 1975. '
Historiqlles de la Révolurion FranÇQist, 1947. .
171 Sobre os tumultos de 1665-1667, contra Q enclausuramento nas manufaturas na
173 BALLOT, C. L'lnrroduaiotl dll mas.hinist/le dons I'itldustrie fratlçaise. Lille: {O.
" , ~pooa de Colbert, no Befry e no Alençon~ais, ver E. Levasseur, Histoirt des classes
Marquantl , 1923. p. 44, 53.
ouvrieres ef! Frímce aVllnr 17-89" t. 2, p. 201 .!
. , 174 PERROT. M. Les ouvriers et les machines en France dans la premi~re moiti~ du
I '-
X1Xe siêcle. &clrerclles. te soldar du travai/, oct. 1978.
/

230 231
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/'Qrte 1 ~ Cap{twlo 8

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• M,,/Ittrf!l nQ : U'jfltem t. mdtfllJn4S no Jkulo (i
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, !

••• "Grande Tosadora" - assim se personificava a máquina ingle~a Douglas que,


como uma besta, devora os tosadores de panos. trabalhadores muito 'qualifica-
dos. independentes e rebeldes - elas dão.o sinal da destruiçãO. A filha de Clau-
'pelas mecânicas, o horror pelo pão caro e, na.quele outono de 1831, a "grande
decepção do poro parisiense. Mas,.?o final das contas, elas são, apenas mulhe-

••
res, logo, são negligenciáveis, derrisórias. "Revolta de anáguas, república de tou-
de Tonnegieux, açougueiro, lançava pedras nos dragões e exGitava os operários ca': com'cnta a Gazctte des r,ibunaux qúe se surpreende que as c~Jpadas sejam
aos gritos de: "Quebremo~1 quebremos, audácia!" Marguerite Dupont, fiandei- tão pouco conformes ao modeJo da virago: "Jovens e belas na maioria, elas

••• Ta d~ Saint-Freny, tratoú o tenente-coronel de "safado". A mulher de Garanda

gritava: <cf: preciso quebrar a tosadora'~ Um dragão dizia ao povo: "Vamos.


mantinham seus"olhos timidamente baixos, justificavam-se balbuciando e ne- .
,

.'.,••
nhuma delas apresentava os traços masculinos e marcados, a voz forte e rouca, .
' meus amigos. nós somos todos franceses, retirem-se!" e às mulheres: ceVamos, enfim, o conjunto de gestos, de órgãos, de rosto e de movimentos que nos pa:
Senhora s, retirem-se, nã.o é o se~l lugar. ru Sen horas deveriam estar junto a recem ser o tipo constitutivo da m':1lher-revolta'~~~ Como é forte a representa-
seus filhos". Elas responderam: "Sim , é o nosso lugar" e retiraram-se resmun- ç~o do mascutino e do feminino, papéis e imagens, naquela época do século 19.
gnndo. Duas ~dentre elas foram presas. L " Estes exemplos, por mais fragmentados que sejam , desmentem a versão
Podemos reencontrá-las'e.l1l Limoux (j ulho de 18l9), em Carcassonne do consentimento alegre das mulheres à m áquina. A mecanização lhes coloca
(maio de 1821 ) elas são uma centena a juntar·se, com seus filhos, aos quatro- um duplo prol>lema: o de sua desqualificação. na medida em que, na fábrica,

•• cento~ homens reunidos fora da cidade. Em Saint-Étienne, o procura'd or. do


Rei deplora: "E o' qu~ é penoso de dizer é que entre as mais obstinad~s contra
a guarda nacional se faziam notar soqretudo as mulheres que, com seus aveJ?-
,
lhes são confiadas ape?as as máquinas consider~das simples, com salários me-
nores; e o problema da concentração. tendo como corolário ou a sua el.imina ~
ção pUIa e simples da esfera produtiva) por uma boa parte de sua existéncia)

•• tais cheios de pedras, jogavam -nas elas mesmas ou as davam para serem joga-
das'~ Em Salvages" ( Departa~ento do Tarní em 1841 ), elas levaram os homen~
a quebrar uma 'nova mâquin~ de torcer fios, chamando~os de covardes, se. eles
ou a dificil éonciliação da dupla tarefa, doméstica e da fábrica.
Decorre dai o interesser ao menos conjuntural que) em um primeiro

•• não o fizessem . Descrições clássicas do papel incitador e expressivo que as mu-


lheres têm em todas as for~as de reuniã'o populares, do Carnaval e do Chari-
tempo, a máquina de costura suscitou.

•.\

" va.ri às manifestações de greve, e onde não é muito fácil separar a realidade do'
estereótipo. Enumera-se, em todo.caso, mulheres entre.os 7ulpados.
'~Operárias, · as . mulheres defendem também, comô os homens, seu pró- __
MAQUINA DE COSTURA E TRABALHO
FEMlN1NO

. prio direito ao trabalho. Com'o no caso da revolta da rua do Cadt:an, em Paris, " r
Na virada d.o século, ao invés de recuar,' o traba~ho em domicilio conhe-

•- em setembro de 1831. As cortador.s de xales do Sentier.mobilizam-se contra as '


rnáqui.n as importadas de Lyon que fazem em um dia 6 trabalho de cinco o,:, reis
operátias: Elas se indignam que "se queira fazer com a ajuda de uma máquinJ .
ce uma expanSão considerável o~ !11aioria dos paíse~ da ~uropa Ocidental; so.-
bretudo na Alemanha e na França.In Este fenômeno está ligado ao desepvolvi •

•• I '
O que, desde tempos imeQlo,riais, era o oficio das mulheres". Nã? ho uve ainda
demissões, mas uma baixa dos preços de feitio, contra os quais as trabalhado-
ras se unem. Elas enviam delegadas aos patrQes, que s'e recusam a recebê-Ias.
mento da indústria de v~stuário em série, a "confecção", e responde 'ao lugar
real e simbólico do vestuário e da roupa ~ranca) grande fàrma de cons~o fio

.'••
Dai as rew1Íões t~ultuadas durante cinco dias, em que se e~.·pressa m o ódio 176 GazetudesTribunaux, 12ocl. 1831. \..
e , - - - - -. . I 177 Sobre a máquina de costura na Alemanha, artigo de HAUSEN, Karin. Progres tem·
nique el travail des femmes au XIX t siecle. L'hisloire de la machine à coudre.
17!; GALLOT, Francine. La Résistance ouvritre qux maclri"e5 en France de 1815 d: 1847. G~hiehte und GesellscIJaft. n~2. 1978; e minha resenha no Mouvement sodal. 1978.
~isSertaç!o (Mest, r ~dO)" Par;s, : II. 197.7. dt ilOgrafuda. 186 p. X-Xli, Travaux de femmes dans la France du)(JXt siêele. .
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Plmel COplfU/o 8
Mu/lttrCIIIO Irllballto Mullu:l't J t mdqui/Hu 110 Jkt</o 19

século i9. Muito racionalizada, esta indústria ass~cia fabricação em domicílio rã se reconstituir, para grande proveito não somente da mçral, mas ainda da si-
' das peças, com uma intensa divisão do trabalho, e montagem elli. ateliês de ~uação m;terial e pecuniária da famllia", medita Leroy-Beaulieu, que esboça um
centros urbanos. quadIo idílico: "Como se via, no passado, em nossas.!choupanas de colmo ou '
E~ertada sobre este sistemª de, tipo antigo, a,máquina de costura o r~­ em nossas mansardas, o pai, a mãe, os filhos agrupados em vorta de um tear, di-
e
nova completamente o leva ao' paroxismo da produção dê: massa. lnicialmen- vidin~o as tarefas: assim poderemos ver a mãe, as filhas, a avó também, pois a
te usada nos própriós-a(eliês, ela se- difunde até mesmo nos domiálios das ope- máquina não cansa a vista; trabalhar junta s, uma a fazer a peça, outra dando o
rárias. A predominância anglo-sa.xã sofre a concorrência, a partir da _década de acabamento, outra costurando à máquina. O maior desenvolvimento das má-
1890, da produção álemã: 500.000 unidades por ano em 1890, um milhão, em quinas levará ao restabelecimento da indústria .doméstica':I" Observemos: em
1907. A A1!!manha fornece ent~o um terço da produção mundial. Entre uma linhagem puramente feminina. A máquin~ de costura é a fábrica-gineceu.
150.000 máquinas usadas em Paris por volta de 1896, não há 20.000 fran cesas . . Seu sucesso repousa sobre a mobHização de um exército de reserva femi -
Possui,r sua máquina de costura é, para uma 'operária, inicialmente um . nino aumentado pelo caráter decente do próprio traballio. As mulheres de tra-
sonho, depois, uma necessidade, em razIio da concorrênci~ . Ela compra a sua balhadores necessitados, da pequena burguesia incomodada, que por nada no
máquinà a crédito, em assinaturas 'do tipo pufayel. Em um primeiro momen- mundo.s'e empregariam em uma fábrica, pratica m a confecção. Mas as princi-
to, a máquina faz os salários aumentarem. '~ remuneração das mecanizad~s é pais clientes co~tinuam a.,ser as mulheres da classe' operária, c~stureiras de sem j
superior em pelo menos um terço, freqUentemente em metade, e às vezes ao I , pre, e principalmente as mulheres casadas, pouco resignadas a serem apenas do-
dobro à çlas simples costureiras", esc~eve Paul Leroy- Beaulieu, em 1872. 171 Re- . I
nas-de-casa, e preocupadas em trazer assim seu "salário complementar" ao or-
duzidas a quase nada, estas últimas são levadas a mecanizar-se. A tarefa da fi- çamento familiar do qual elas são geralmente as administradoras .
. lantropia é, a partir de então, de acelerar o movimento: "Deve-se aproveitar Em 1904, conta-se, na França, perto de 800.000 trabalhadores em caS3,
dos ensinamentos da ciência e convencer-se que a partir de então o melhor dentre os quais 86 por cento de mulheres e mais de 80.000 somente em Paris.
modo de aliviar e de prevenir as misérias é propagar ôs bons métodos de tra- No recenseamento de 1906, entre cem mulheres ativas, perto de 36 por cento
balho e difundir os bo-ns instrumentos".I" ' , trabalham em domiciüo.
Para os moralistas, como' Jules...5imon, a máquina de costura realiza o Esta oferta potencial_conjugada com uma produção aumentada por uma
ideal feminirio: A "pequena fada do lar" permite à mulher conciliar toda s as ati- rnec.1nização crescente faz baixar os salários, de maneira catastrófica, no inicio
. vidades e, sobretudo, ficar eQ1 casa, em seu único universo. '~ mulheres são fei- ._ do século 19. Entre 2 I 7 muIJle(es interrogadas pelo Oficio do Trabalho (1905-
tas para. . esconder suas vidas. para buscar a felicidad.e nas afeições exclusivas e 1908 ),60 por cento ganham menos de 0,15 francos por hora! Todos os observa-
para governar em paz est~ mundo ,restrito da famHia, necessário para sua ter_O dores insistem sobre .a impossibiljdade 4ç viver'com tais,salários e sobre a misé-
_nura J{ativa'~.lto A.mulher, "costurando em 'seu interior'~ esta pacífica imagem ria das mulheres sós, solteiras ou viúvas, reduzidas a este trabalho. É o sweari,'g
que ~/pin'~~ra burguesa da época repete à saciedade;- de Fantin Latour a Vuil-' system, caracterizado por um mínimo vital declinante, uma condição miserável
lard r eis que ela tambélU. é possivel para a operária, devolvida à sua dignidade. tanto no que se refere à moradia quanto à alimentação: A mecânica alimenta-se
Por~eiotfa máquina de costura, ((o ateliê doméstico que estava perdido, pode- de café com leite, e a sua "costeleta" reduz-se a um pedaço de queijo Brie"'2

178 LEROY-BEAULlEU, Paul. Le Travail des 'femme$ ali XIXe si«Ie. 2. ed. Paris:
181 LEROY-BEAULlEU, Paul. Le Travail des femmes ali XIX! sitcle. 2. ed. Paris:
.\ Charpcntier, 1888. p. 409-410. ' ; , Charpentier, 1888. p. 409-410.
I 179 Ibid., p. 406. 1, I 182 Oficio do Trabalho, EnJuétl! l ur le travail d domicile datls I'itldustrie de la !ingcrie. t.
.... , ISO SIMON,j.op.cit.,p.81.
. ,I. I. 1907. Observemos, no entanto, que nem todas ~ optrárias aqui descritas pos·
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234 235
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PQrtjl2
M"nlf!lti IIeI Ir<ÚHll/lO
Úfpfmlo ,
Mu/litrel' IIIÃIJ'II1mu no Jén.'" 19 1
,

Filantropos, moralistas, higienistas emocionam-se, então, com este pedais: '~Tal instrum en to, CO m um movimento contÍnuo, excita o delírio histé-
pauperismo. No início do século, pesqu'isas e tomadas de posição se m~tipli­ rico".lu Em certos atelies, a máquina de costur~ "provoca uma excitação geni~
cam , como as do Oficio do Trabalho. Marc Sangnier e o Sillon desenvolvem ex- tãl tão viva que as operárias necessitam ( ... ) recorrer a loções de água fria".lt-l
posiç.ões itinerantes que mostr~m "O Museu dos explorados"~pa.ra comover o "Os inconvenientes da máquina de costura devem-se à ação~muito danosa [.... ]
público. A Senhora Jean Brunhes, ligada à escola de lo Play, cria uma Liga So· dos movi mentos dos pés que agem alternativamente sobre os pedais; ou ainda
ci~l de Compra4ores-pa;a alertar os consumidores e, sobretudo, as co nsumido-'~ aos efeitos da trepidação do instrumento, que se pr-opaga pelos membros su-
ras, sob re as conseqüê n~ias de seus atos: as encomendas precipitadas, apressa- periores à cavidade toráxica e até mesmo para toda a econom,ia".llS Fato curio-
das, aceleram as cadências e prolongam as vigílias das operár ias. ~ CGT tenta so. os médicos se in teressam ao útero mais do que à visão e dão mais atenção
sindicalizar as operárias, mas em 1912, entre perto de 100,000 trabalhadoras aos peClais do que às horas, as cadênc:ias, às próprias c,ondições de trabalho. Dfl
em casa em Paris, há apenas 270 q~e se sindkalizam .... Algumas greves, mas mesma forma que o casebre é considerado' o único culpado pela tuberculose,
vindo principalmente dos ateliês: as operár ias em domicilio nã'o as aco mpa- -' 0 pedal é investido de todas as respo ns~bilidades, em uma. perspectiva em que
nham. En tre elas, o contato é praticamente impossível: chega-se ao cúmulo de a tradição de Ramazzini, ligando doenças profissionais e gestos de trabalho, \
impedi-las de conversar nas lojas onde el~s entregam seu trabalho! De manei- conflui com a visão da mulher h.ist~rica dominada pela sua sexualidade.
ra geral, o sindicalismo cristão tem' mais sucesso. Estes inconvenientes são um a causa possível de esterilidade. As jovens
As v~speras da guerra,'muitas operárias c..um na realidade. O trabalho operárias serão "incapazes de dar à luz uma geração forte e s~ udável , como exi-
em domicilio torna-se a fábrica em s'ua casa, to m O mais terrível dos regulado- ge a reedificação de nosso país'~IN Causa de interesse geral: a Academia das
res de tempo: as próprias operárias. Conseqüentemente, o melho'r s.eria a ou- Ciências atribui um pr~m io às irmãs Ga rcin por terem inventado uma máqui-
tra fábrica, a verdadeira: ali, as jornadas são mais curtas, os salári os mais altos, na de-costu ra a·Otomática:"í preciso dar à operária uma máquina quê a libere
mais garantidos; se está menos só e mais protegida. ParadoxaÍmente, a máqui- dos males cau~d9s pelo jogo de pedais; é preciso encontrar um meio de colo-
na de costura foi a propedeuta da fábrica para as mulheres casadas que vão car um mecanismo em movimento independentemente do pé da operária. 117
afluir para ela 'durante a guerra. O pedal: eis ó ininligõ. Por ca usa dele, diz um delegado operári o no ço ngres~
so de Marselha, "elas têm doenças cujo nonte elas n ã~ deveriam nem lDesmo .I
. , conhecer '~ 'u

MÁQUINAS E CORPO FEMININO Histérica, erótica, a máS}uina toca a mulher até em sua. .intimidade mais
" \ secreta. O ca~a l que elas form a~ torna-se suspeito. Aqudas pernas em perpé- .,
; Os médicos faziam à máquina de costura outras restrições, de ordem fi~­
siológica. -Um relatório, apresentado na Academia de Mecticina em 1866, de- 183 Segu"ndo o Congres ouvr-jer de Marseille, 1879, p. 171.
nuncia os danos ao corpo feminino: leucorréias, amenorréias e, talvez, esteri- 184 Congrb de Mat:seillc, p. 176; segundo'uõl relatório m~dico, Academia de Medicirra,
lidade. O que se recrimina, sobretudo, é o movimento das p'er'nas: ligado aos 1866. .
185 LEROY-BEAVUEU, Paul. Le Trmia;} des lemmes au XIX! siede. :1. ~d. Pari;:
Charpentier, 1888. p. 407 et seq.
suem máquinas' de. costura e que_os salários mais baixos se encontrnm entre as 186 "Corlgrà de MaruiIJe, p. 283.
operárias manuais. V~r tam~m GEMAHlING, P. Travailleurs ém mbais. Paris:
[s.n .), 1910. Sobre a histó ria da máquina.1de costura e da indústria em domkllio. 187 LEROY-BEAULlEU. Paul. Le Travail des femmes tul XJX.C siecle. 2. cd. Paris:
ver BIRON, Annie. Le Tramil dOl1liciJe fiminin à Paris (1900-191.o(). Dissútação ' Çharpentier, 1888. p. 461.
. (Mestrado), Paris VII, 1974. \ .. . . " 188 Congres de M€Jrseifle. p. 283 . .

236 237
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tuo movimento não produz.iriam o gozo do orgasmo? Esta simbiose entre mu- da máquina 1900 [... ]. A máqui.na é para o homem o que a Mulher é para a Na-
lher e máquina meca niza a mulher e sexualiza a máquina. A máquina torna-se tureza ou para Deus: o equivalente·facticio. artificial, e assim, humano, da cria-
mulher. O homem constrói as m"áquinas, el~ as cria assim 'como Deus fez Eva. ção natural o.u divina".''' Seria uma I'interpretação regressiva" da técnic.a, como
Ele é o seu mestre e senhor. Ajustador. construtor, ele co nhece, com ela: a pro-
... \ -- .
moção e o prestigio. Da construção mecânica, as mulheres são excluídas. Elas
sugere: Walter Benjamin, assim recolocada no afrontamento do princípio ma-
cho e fêmea? O ModeTII Style (:Art Nouvcau) tenta, de fato, captar O desconhe-
nunca fubrica~ as máquinas, elas as servem, e ainda apenas as mais simples
das máquinas. As mulheres admiram as "máquinas. Elas admiram a força dos
- °
cido 'Pelo 'conhecido, para tranqüilizar-se. conj urar novo, a modetnidade, re-
colocando-os. nos ·mitos eternos. Daí, em certos aspectos, seu arcaísmo·formal.
homens que faz'e m as máquinas e se servem d.elas. Dominar as máquinas, é, Assim, tanto no nível do cotidiano dos ateliês quanto no nível do sim-
para os homens, uma outra man,eira de dominar as mulheres, como eles o fa- bólico da arte, a técnica é vivida e percebida através das relações do masculino
'Ziam com 6 instrumento. lU e do feminino, relações de subordinação mais do que de partilha, que q>nti-
. Nos ateliês) dá pse às máquinas nOliles de mulher. As pessoas 3S persona- nuam a ser, em 19~O. uma (orma maior de organização do mUlldo .
lizam, falal1),COO1 elas, falam delas no feminino, como de uma namorada ou de
J uma harpia, depe.n dendo dos dias. Elas são apalpadas, batidas, traspassadas. Os
símbolos fálicos abundam na fáb rica. O ateliê das máquinas., aqueles "seres de
meta!" ', é um local da proeza viril e~l que a mullier é fisicaúlente exdu'ída, mas
constantemente presente no imaginário, na palavra. nQ desejo. ou no desafio.
e
Entre o· homem a m~quina-fêm~à. se estioçam relaçõe~ de amor -e de domi-
nação, de ternura ou de ódi9. cUja sublimação literária mais forte é repre~en­
tada pelo casal Roubaud-La Lisonj-em LA B~te Humaine (A Besta Humana).
Esta confusão ~lltre a Máquina e a Mulher· está no ce ntro do simbofis-
r ~o e do proprio funci~namento do Modem Style: Claude Quinguer niostrou-
o.'~ f'E m um ~ível var iável, a mulher está subjacente na maioria das imagens

189 A este respeito, ve r o artigo fundamental de TABET, Paola. Les mains, les outils,les
armes. L'Holllme. Revlle f;ançaise d'mrtrrropologie. Paris: MOl.lton, t. XIX, n. 3/4, p.
5-62 , juil./déc. ·1979.. Para Paola. Tabet, o·uso diferenciado dos instrumen tos consti ~ _
. tui o fato r fundamental da divisão do trabalho..e dá dominação masculina sobre as
mulheres. A partir do momento' em que uma atividade flutuante se mecaniza por
/ uma melhoria técnica, ela se mascl.lliniUl e os homens conservam o, controle sobre
{ os instrumentos mais sofistica~os. assim como sobre as :umas. O "gnp" tecnológi-
I co", com milhares de anos de idade, que separa homens e mulheres. é então uma
.criação culrural; seus efeitos 's ão d uplicados pela valorização das atividades mas-
culinas que apresentam geralmente um caráter prestigio~ ou esportivo", A história
da mecanização·e das relaçõeS- masculino/ fl;minino, no século 19 me parece confir-
mar as hipóteses de Paola Tabet no ~ontexto etnológico. .~
190 QUlNGUER,'Claude. Fenuries ~t Machjnes~e 1900. Lecture d'une obsession Modern 191 QUINGUER. Claude. Fe"''''eJ ct MachineJ de 190(). úcture d'une obsession Modern
Style. Paris: Klincksiec.k, 1979. . I Style. Paris: Klincks.ie~k, 1979. p. 251.
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238 239
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DA AMA-DE-LEITE À FUNCIONÁRIA
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pE ESCRITÓRIO ...
TRABALHOS DE MULHERES ,!:lA FRANÇA DO S~CULO 19*

•• "

• ••
Este titulo, plural e parcel~do, indica os limites deste número. /'Ião en-

, .
contraremos nete uma história global do trabalho feminjno que, em seus de-
t.alhes. assim como em seu conjunto, ainda est.rpa.ra ser escrita, mas simples-

(;
•• mellte a ilustração de algumas de suas múltiplas formas.
- Será nece~sário lembrar? As mulheres- sempre trabaiharam. A valoriza-
ção, abusiva mas significativa, do trabalho "produtivo" no século 19, erigiu
como únicas "trabalhadoras" as assalariadas e relegou à sombra de auxiliares

•• o
conjugais as lojistas e as campo nesas, chamadas mais tarde de "auxiliares de fa-
mília'; e, mais ainda, as d.onas-cle...casa, aquelas mulheres, m -ªjoritárias e maio:
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.\ .

••
res,-sem as quais a sociedade industrial não teria podido se desenyolver. A s(:-
paração crescente entre ]o~al de' "trabalho", e domicílio privado, consecutiva à
regressão do trabalho doméstico e à co ncentração industrial, fez do, trabalho

•• ,- doméstico un1a especialidade, economicamente desvalorizada porque não


guantificáveJ - um trabalho sujo que ,?S burgueses confia~ a suas empregadas

•• I '- e, d.o lar, o lugar do consumo 'e da despesa. Visão dicotÔmica simples de"1ais
~ que leva a ocultar o problema da reprodução e da manutenção da força de tra-
/
balho e a negar o imenso trabalho não pago das mulheres "do tar". _1

•• ~ donas-de-casa-ocupam, no entanto, nas cidades do século 19, um lu-


gar essencial. Na primeira metade ao século, elas têm aliás, uma ativa partici- '
r .

••
l. ,.. De la nourrice n :employÚ. Ttavaüx de femmes dans la France du X1X~ siêde. Le
Mouvement social, lOS, X-XII, p, 3-10.1978:

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241
CapfflllolJ
paru 2 Dd ama - d~- Iritc u f'lTIâontlda dc cu ritdrio...
MIIII'~ftIIlO trnballUf 1l-abdl!'OJ de II",/bcft$"oi Fllmf~ do Jkll/O 19 •
,

~ pação na produção artesanal, seja porque esta produção continua a ser feita Sobre ela, no entanto, não encontraremos'nada aqui, senão a confirma- .
nas casas-pátios, caract;r(~ticas da - cidade antes d~s mudanças fe itas ' por ção e's tadstica de ~eu papel no artigo muito recente que Lowse TiUy, ourives \
Haussmann, mi's tura de fazenda e de conjunto residencial, onde, ao menos em desta matéria, dedica ao emprego das mulheres casadas em duas comunas do
Paris, agrupavam-se por etnias ~s migrantes da provincia, seja porque elas pra- Norte: Roubaix, cidad.e têxtil, Anzin, cidade mineira. O levantainen.to dos da-
tiquem em casa uma forma de" terceirização que, mudando de natureza, nun- dos-das listas dos recenseamentos qUrnqüena is da po~ulação. que comportam
/
ca deixou de existir a010ngo do século 19, trazendo então para casa, um "salá_ um .. enumeração bastante precisa dos lares com menção das ocupações de
rio complementar" ·que se torna fundamental em caso de crise ou de guerra. ~ .seus membros, mostra, em ambos os casos, o pequeno número de mulheres
preciso geralmente que aconteçam grandes dramas para que o trabalho femi-' casadas que trabaU)an1 fora como as~alariadas completas. 1:. a estrutura d.a fa- ~
nino seja estimado. E ha, decorrente deste fato, uma "vivência" das crises e das inília que r~ge o trabalho assalariado das mulheres e, sobretudo, o número de
ftlhos, sendo a sua capacidade de trabalhar modulada por sua idade e pela prá-
guerras específica para cada sexo.
tica social. N limitações legais do trabalho das crianças (leis de 1874, 1892), e
Todavia, é ainda mais no nível do conSUmO - esta forma de produção
ainda mais a sua escolarização, imp useram exjgências contraditórias às mães
de "pessoàs sociais" - que a dona-de-casa contà; Na França, mais do q ue em
r de ~amília: seu papel materno é reforçado (é a mãe que supervisiona os deve-
outros lugares - mais do que na Grã Bretanha, se acreditarmos nas observa-
res e as Uções dos jovens escolares) no mesmo momento em que seu salário
ções de Le Play - , ela dispõe do pagamento do marido, não sem batalhas ou
complementar torna-se mais necessário para compensar a s~ída das crianças
conflitos que balizam os acontecimentos das periferiàs do século 19. Ela é o
do mercado de trabalho. Esta ~ituação conflituosa ilustra bem, aUás, a situação
"ministro das Finanç~s'; das famílias loperáriàs; o equilíbrio dos recursos de-
da mulher, dilacerada pela multiplicidade de suas tarefas. Ela e>'l'lica, provavel-
pe')de dela em-muitos aspectos. Dai O apego 'd as classes populares ao 2asamen-
mente, a penetração acelerada de. um malthusianismo prático na classe operá-
to (legal ou não) como empre~a e à famiLia como modo .de gestão autô"noma. '
' ria francesa no inicio d.o século 20 c, na fa lta de outros1métodos contracepti-
A familia não é uma invenção burguesa, ainda que as classes dominantes a te-
vos além do v~lho coito interrompido, os progressos do aborto, cada vez 'mais
nham investido de funções- múl,tiplas, em C3;zão de sua centraHdade_ ~ uma
praticados pelos casais operários (em muitas famílias de mineiros do Norte, a
realidade ambivalente, ao mesmo' tempo r~fúgio, abrigo para seus membros, e maleta' de instrumentos para o aborto fará parte do equipamento familiar) e
alvo do poder. Jlasta ler Les Enfants de Sanchez (Oscar Lewis) ou os textos que pel~s mulheres c~sadas que recusam tanto os horr~res do infanticídio quanto
emanam do quarto-)Uundo para compreender' esta função da famiLia para O a fa~alidade dos nascimentos não desejados. Será preciso, assim como para An -
sub-proletariado de hoje. gus McLaren, ver no desenvolvimento do aborto na França de então, uma for-
A dona-de-casa tem, na realidade, grandes poderes, desde que não os ma origina l de feminismo popular? Em todo caso, as atitudes diante da crian-
.~

avalie no nível formal que é o dos poderes'nl<;tsculinos 1 inclusive no desenca- ça e da vida mudam' nas classes populares daquele tempo.
. ' .
deamento' dos movimentos sociais: papel direto, quando o pão encarece, na- ' ' Esta situação permite também compreender a recuperação do vigor do
quelas revoltas de subsistência que, no início do século 20, dão lugar às revol- trabalho em domicilio na maioria dospaíses.in-dustrializados no início do s~­
.
tas de carestia; papel indireto na decisão de fazer g(eve quando se torna impos-
. . cuia 20, e o florescimento da máquina de costura, descrito, para à Alemanha,
sível fechar o mês. "Tição da periferia" (Henri Le)'l'er), a dona-~e-casa é tam- por Karin Hausen em um artigo sugestivo de que apresentamos um amplo re-
bém a sua guardiã, o sangue de urna cultura amplamente fundada na palavra sumo. Estudo que mostra a que ponto' a história das técnicas não poderia ser
e na vizinhança, pivô de toda UPla sociabilidade horizontal que se opõe e fre- diss<?ciada do con.texto social em que elas se enraízam. A máquina de costura,
qUentemente resiste às formas modernas de relações verticais, às hierarAu.ias . com sua aparência complacente de grilo do lar, capta. 'os braços desemprega-
da dominação. , dos. Eis a força de trabalho pas mulheres casadas, por sua 'vez tragada por um

242 243

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Pu,'" 2 DIIa ma·dc- k ill: d fUllcwlI/Jria dl l Krit'Ório. ..
Mulht:reJ "" ,rAballl(l
n.bdlItof dl mu/hem",,1 Fnmf" dei Jkulo 19

mercado bulímico e cada vez mais segmentado. O rendimento se imiscui .nos proporção amplamente ultrapassada nas grandes cidades. Em Paris, que con-
poros de uma jornada cujas aparentes vadiações suscitam cada vez mais a ir- ta, nesta época. com duzentos mil domésticos (ou seja, 11 % da popuJaqào), há
ritação dos empresários _e a cobiça dos vendedores. Através da máquU:ta de cos- até mesmo urna crise de recrutamento ligada ao aburguesamento da capital;
tura, as donas-de-casa perdem o domínio de seu tempo. Este último bastião de verdadeiros caçadores de talentos percorrem as redes p~roq.uiais e se esforçam
gestão autônoma sucumbe à ordem indu.strial. A máquina de costura é a fábri- para reunir as peque;nas Bretãs: Bécassille, a heroina derrisória de La Semaine
ca em casa! Aliás, nestás condições, a fábrica propriamente ,d ita seria preferi- de Suzette, nasce em 1905. A organização doméstica muda; as grandes casas ,
vel. Muitas trabalhadoras em domicílio, esgotadas pelo sweating system, come- com criadagem, ao estilo de Guermantes, desaparecem, substituIdas pela casa
çam.a fazer este cálculo: é melhor la.butar nos .ateliês! Como muitos.pequenos da pequena família, estimulada pela existência do automóvel, mas sobretudo
camponeses sobrecarregados ou .tecelàes encurralados acabam por se resignar da empregada única "que faz tudo,': cujo exércÍto pO\q)a o sexto andar dos pré-
à fábrica, muitas mulheres vçem nela ;um mai menor. No final das contas. ali dios da capita1. Entretanto, excet~'ando algumas "servas fiéis", vestígio de uma
j
se está nieno.s s6 e mais protegida ..A possível revalorização da qualidade tão -feudalidade decadente, raras são as mulheres,que continu'am a ser empregadas
desprestigiada de operária, a reivindicação do direito das mulheres casadas ao
Lr domésticas Eor toda a sua vida. Ser empregada representa, para a maioria, um
trabalho assalariado,. que se aviva no inicio do século, enraízam-se provavel- - I momento da existê_ncia, O infeio na vida ativa, ou mais ainda um modb de acli-
mente nesta situação çle exploração- excessiva. Ao menos, podemos fazer esta matação-à vida urbana. Elas se empregam pa!a migrar, para fugir da mediocri-
hipótese. A máquiná de costura foi a propedeuta da fábrica para as mullieres dade do vilarejo, do peso das obrigações-familiares, ou para esconder uma gra-
casadas e - cruel hi~ória - a antecâmara das fábricas de guerra. videz cuja desonra cai apenas sobre as moças. Na ddade, pode-se esperar refa-
t preciso reafirmar! a- história do trabalho fern'inino é inseparável da \
zer uina virgindade, juntar_algum dinheiro e ,casar-se. Por mais mal pagas que
, entre ~s sexos e de seus papéis sociai~. A. faml ...
história da família, das reiações . fossem - em 1900, em Paris, elas come:ça~ ganhando 25-30 francos por mês,
lia, mais do que o trabalho que ela condiciona, é a verdadeira ancoragem da "éom casa ;: comida" - as empregadas.são, no final das contas, mais bem remu-
existência das mulheres e de suas lutas, G freio ou o motor de sua mudança. O neradas do queunla operária e; sobretudo, pelas virtudes da distância, elas po-
trabalho, por si s6 , não pode libertá-Ias, ainda que possa contr'ibuir p~ra i~to. dem dispor mais livremente de seus ganhos. Daí a dizer. como Theresa McBri- - .
Na verdade, O traballio já libertOu algu ém? ·de. que.a domesticidade é, para as mulheres, um modo de promoç,ã o social, é,
provavelmente' ~uvidoso. Thberculose, sífilis - o maJ de Paris, como dizem os
bretões -, prostituição, são também o seu prêmio. As vantagens monetárias de .
A ATRAÇAO DOS SERVIÇOS COLETIVOS sua situaçãQ acompanhal1'l-Se de uma condição material indigna, de uma su- "'
jeição insuportável, de uma solidão às vezes dramática.,O recuo da domestici-
Da ama-de-leite à funcionária de escritório: os casos apresentados aqui ' dade é irremediável, as duas ~erras O completarão. Domesticidade que já é
são eXemplares de uma trajetória - do serviço pessoal aos serviços chamados apenas um estágio-da vi~à , talvez um rito de passagem, uma forma de apren-
de te,rciários - e da natureza dos empregos-lemininos. - diz.1do e também ' um formidável canal de mediação cultural cujo papel.inila
I A am~-de-Ieite, cujo enfraquecimento naquele fim de século nos é con- não foi avaliado.
tado por AJ:me Martin-Fugier, introduz-nos no mundo da domesticidadet A atração.dos "serviços" coletivos substitui o desgosto de sUvir. Ser ~e­
s.rande setor de emprego feminino. se é que existe algum. A despeito de um re- 'nhorita da s lojas, dos correios, ~u secrelária: eis alguns trabalhos limpos, dis-
/1
cuo iniciadp a partir da década de 1880, pode-se enumerar ainda pe,eto de um
, , tintos, e para uma peq4ena burguesia proletarizadaj em busca de empregos'
milhão de émpregados domésticos( três qua~tos deles sãO mulliéres) às véspe- para su~s filhas, u~a salda horlrosa à'humilha!lte entràda no-trabalho assala. .
ras da guerra, Em 1906, entre -cem mulherel ativas, dezessete são domésticas, " pado feminino. As candidaturas afluem: 5.500 concoirehtes para 400 vagas em
,

244 245
PQne2
Mul/lereJ110 "'Iv/dlw
CIlp(flllo 9
D/I mlll1,d~·Ieit( dfimâomldd de (scrit6rio.. ,
Tmblllllosdt mul/ICre. UA FmUç# do Jtculo J9
•• ,

um concurso de recrutamento da PTI (Postes Télégraplle et Téléphone - Em-


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-efetivos em 1896, sobretudo dev,i do aos Tabacos destinados ao segundo sexo)
presa dos Correios) em 1894. A penetração acelerada das mulheres no ~etor · ~ alimentar (muitas mulheres nas refinarias de açúcar parisienses, nas fábricas
terciário' constitui uma das novidades deste início de século. Em 1906, elas · de conservas da Breta nha ou outràs)' e nas tipografias, onde sua intrusão pro-
oc up~m perto de 40% dos empregos do 's etor; no comércio e ne;> banco, elas são
38% (25% em 1866, a títuloíndicativo, pois os recenseamentos da época- são
voca mu~a perturbação, quando, não contentes em ser brochadoras ou recep-
toras de folhas, elas pretendem tornar-se tip6grafa~ (caso Comiau, 1913).
••
••
duvidosos). No entanto: há muito lllajJ humor por parte dos colegas\ masculi" Operárias da indústria da seda de Lyon e operárias dos Tabacos repre-
nos, sobretudo nos ministérios. onde elas surgem em 1895, co nside radas como sen.t am aqui duas vertentes do trabalho industrial da~ ~ulheres. O traclicional
reservaS masculinas. :f:! mais wna vez. através da m áquina - de .escrever, 4e cal- . set~r da seda está em plena mut~ção, analisada por L.1ura Strumingher; as mu-

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cular - que as mulheres fazem.a sua en trada maciça I!0s escritórios. Os ho- lh eres sofrem ali, em cheio, as conseqüências de uma mecanização em que a
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mens abandonam para elas baixo esca1ão, refugiando-se nos cargos superio- · Igreja, aliando o altar à máquina, desempenha um papel de primeiro plano. Os ,
res e conse(vam os postos de comando. As cobradoras dos Correios conse- famosos internatos, da seda) freqüentemente mantidos por religio~as - fun-
guem apepas ter acesso à direção dos escritórios se~undários. Nos ba ncos, as-
sim como nas 'lojas de departamentos, os chefes de serviço ou de seção são.
sempre homens. A descrição da disciplina-das lojas de departamento, militar C'
dam-se, para este .fim, ordens especiais - são o exemplo típico da utili zação das
formas tradicionais de acompanham ento ~ serviço da discipli~a industrial. A
despeito das revoltas de 1848, em que as mulheres foram muito ativas •. toman-
••
paternalista ao mesmo tempo, onde os inspetores, geralmente ex-militares
condecorados, exercem
. sobre as vendedoras
, uma vigilância severa e minucio- I
~. I
do, em Saint-t?enne, ai nda mais do que em Lyon, a-i:niciativa,das manifesta-
ções contra os conventos, o sistema se amplia na segunda metade do século.
PO,r volta'de 19'00, cerca de cem mil mulheres -: moças solteiras em sua ~aio-,
••
sa, é um dos aspectos mais interessa~tes do estudo que Claude Lesselier dedi-'
ca às funcionárias das lojas. Seria preciso fazer ,pesquisas idênticas sobre o sur-
gimento a~, funaonária de escritório, esta desco~ecida. AH são forjadas as no-
ria - trabalham nos "conventos da seda", mas a revolta ali é grande. Pode-se ler,
a este respeito, o testemunho notavelmente concreto de Lucie Baud, operária
••
vas formas do trabalho feminino, seu caminho do futuro. Depois da costurei- .
rinha ga lante, da costureira co~esã, da jovem óperáda de costura, tod~s, de
certa forma, Ugadas à costura, a silhueta da datilógrafa - que se tornará "a, pe-
.da se.d a, primeira secretária do sindicato dos tecelães de Vizi~e.
Naquela época, aliás, a indústria da seda de Lyon, entran do numa irre- · ••
••
mediável decàdência, é apenas um trabalho de mulheres, como mostrou Yves
queml amávd" ... na década de I ~30 - assume um lugar no longo cortejo dos Lequin, segun do o processo dáss~co pelo qual as mulheres tê;' acesso aos es-
empregos - e dos mitos - femininos. · pa·ços desertados.
..
No recenseamento de 1906, as operárias fprmam 25% do empreg~ fe-
minino, dos quais, três quartos estão no setor têxti1-ve stu ~ rjo. A costureira, a__
~_ operária da agulha, en carnam, aos ollios da opinião'pública, O rosto amável da - '.
O caso das operárias dos taba cos, descrito por Marie-Hélene Zyl1;>er-
berg-Hocquard, é original. Ele oferece, em razão das irstitui ções d.e seg~rança
ligadas aO monopólio de Estado, o exemplo raro de operárias permanentes,
••
operária, o único co~patível, em suma, a suas vocação natural. "O destino da;J
'mulher é a família e a costura", declara um relatório operário dt; 1867. ,"Ao ho-
que fazem "carreira·.~ fundando até mesmo dinastias e manifestando uma ati-
vidade sindica1 bastante excepcional. Prova que as formas do militantismo são ••
.•-
mt;m, a madeira 'e o metal. À mulher, os tecidos e as roupa s." O que a costura

••
talvez menos uma questão de natureza do que de status! Se as mulheres se sli1-
!epresent~ na vida das mulheres é a imagem de uma sociedade em que a 'r(>u- dicalizam pouco, é em parte porque a vida profissional é, para elas, tem porá-
pa branca e o terno são os grand.es bens de ,consumo marcados por toda uma riá e secundária, um entreato nosampo de seu trabalho. Mulheres entre elas,
simbologia. Pode-se conceber em que marapmo' ~ ruina da costura mergulhou

••
,
.1 . operárias da seda e operárias dos Tabacos são a prova, aliás, de um alto grau de
as mulheres. MutáÇão decisiva: após o 6m das amas-de':leite, a morte das cos- dinamismo e de consciência. Por isso, elas mereceriam ser comparadas às ope..!
. tureiras:' Entretanto, as mulheres 'aumenta,f na indústria química (30% dos: . . . rárias das fábricas mista s.

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EXIG~NCIAS T~CNICAS E CODIGO DE . quétipo - que são sucectidas, sem dificuldade, comq por deslocamento, pelas
confeccionadoras com sua} Singer, pelas datilógrafas ·com.seus teclados. N mu-
.DISCIPLINA
lheres manipulam pequenos !nstrumentos que vêm a elas. Os gestos' do traba-
lho feminino misturam exigências técnicas e código de cti~ciplina.
Por meio destes exemplos se observa uma forte especificidade do traba- I Ou a.inda, o corpo feminino fornece sua própria substância, ou sua tex:-
lho feminino: traba190 intermitente (exceto no caso excepcional dos Tabacos),
. tu~a: amas-de-Ieite dando seu seio, e que são tateados, como as prostitutas que
ritmado pela cóndiçâo matrimonial, pelas necessidades da famma, alojado nos
entregam suas vaginas. As mulheres dão muito mais do que seu suor.,Seu cor-
iflterstícios do tecido familiar; mal pago, por ser considerado como .um traba-
po está no centro de um dispositivo - da vida, do desejo - que faz dele o óbJe-
lho que co ntribui com um salário complementar, o que torna difícil a s,ituação
to de um perpétuo invest~mento, alimentando fantasias das quais Anne Mar-
da mulher sozinha, a tal ponto que certo ~iretor de pessoal aconselha q~e uma
tin-F:ugier dá alguns exemplos.
candidata a um emprego arranje um protetor; pie:tensamerite não qualificado,
Mas o ~ais tocante reside provavelmente na natureza da disciplina im-
no sentido,'muito atual aliás (conhece-se 'toda a arbitrariedade das grades pro-
posta às mulheres, cuja condição de eterna menor se agrava pela habitual ju-
fissionais de hoje), em que não se trata de qualificação intrinseca, mas sim de
ventude das operárias ou das funcionárias de escritório, e pela perpétua sus-
posição estatutária em uma classi~cação aleatória. Na realidade. as mulheres
peita que pesa sobre a sua seXualidade. Daí o caráter austero de uma vigiJancia
freqüentemente realizararh longos aprendizados, no conteXto, por exemplo,'
maníaca que excede sempre o/trabalho (entre os homens, ela tende a se redu'-
das casas de benefi~ência que, desde.o século 17 (vide as rendeir~s de Caen ou
zir à produção), a importância das exigências morais, um sistema de punições
de Valenciennes)J constituíram finas redes de introdução ao trabalho indus-
(ou de recompensas) infantil, um discurso que oscila do paternalismo à gros-
trial das mulheres, -E as profissões'da costura exigem destreza manual, acui~a­
seria. lJm ateliê de mulheres parece sempre, em maior ou menor grau, urna
de visual. atenção, cuidado meticuloso, tanto quanto a mecânica d~ precisão
sala de aula, uma cása de beneficência. O acompanpainento, enfim, acentua es- .
para a qual as mulheres se revelarão particularmente aptas. A noção de "traba- tes aspectos j religiosas ou pequenos chefes tratam sempre a~ mulheres como
lho feminino" 'está ligaQa à idéia que se faz do <~lugai" das mulJleres. Até mes- alunas a educar. E O desejo dos homens - desejo 'de senhores - não ajuda em -
mo a força fisica é um critério contestável. No final das contas, até a aurora do nada, muito peh contrário. Evidentem.e nte. do internato de seda ~às lojas de
século 19, mwtas mulheres trabalhavam na construção, em cante~ros de tcrra- 'departamentos ou à manufatura dos tabacos, os.tipos de disciplina diferem em
plaoagem; encontt'amq!nas ai~da (por 'yolta de 1850, nos canteiros da estrad,,- suas. modalidades, mas finalmente as semelhanças surpreendem. É sob este ân-
,
. de ferro, para grande escândalo de Le Play que vê ai sobretudo o, riscos da
imoralidade. Qua~do, em 1831, a prefeitu.ra municipal parisiense admite ape,=-
guJo, provavelmente, que se ayalja melh6ro que O f.1.to de s.er mulher,acrescen-'
. ta ao fato de ser operária.
i
_ nas homen s, as donas-de-casa, estupefatas, manifestam a sua indignação. E- E, no entanto, estas mulheres não são oprimidas. Operárias da seda de
.,
Ii
durante as guerras mundiais, muitas mulheres descobrir~m que o trabalho na Lyon, operárias dos Tabacos, vendedoras de lojas ... resistem, à sua maneira: I
fábr ica não era, fina1mente, 'mais cansativo do que os trabalho~ domésticos. Ainda que a ênfase t.~ha sido colocada sobre as ;"tralégias de dominação, 5.0 -
Uma outra caraterística do trabalho feminino reside, justamente._no es- bre a conctiçã<? mais do ~ue sobre a condu~a das mulheres no trabalho, encon}
paç~ dado ao.corpo. Exige-se dele uma docilidade particular, impondo-lhe uma . -traremos numerosos elementos para o estudo das práticas femininas que será
postura apropriada - decência ·da apresentação, da roupa, retidão do gesto - ou necessário d~screver ma is amplamente mais tarde; práticas muito variadas se-
determinando-lhe uma posição especifica: mulheres sentadas, fixadas em suas , gundo os contextos mas que não deixam de comportar pontos comuns: papel
costuras,
. presas &s suas máquinas, com os 6lhos
, . ·abaixados sóbre seu trabalho, da p~I(\VFa, da tagarelice, dos cantos, da derrisâo, grande ~ma feminina , e de '
mulheres que se deseja silenciosas; imagen~ da costureira, da rendeira - este 3r-..... todas as formas individuais de resistência à disciplina - como a sarda, o absen-
'\
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M,i1hcfl!l 110 tmbldllo
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teísmoj e nas m;mifestações co letivas. uma predileção pela ação direta, concre- CapltulQ 10
••
ta, capaz de atrair a simpatia da com unidade do bairro. As manifestações f~­
se
mininas têm ares de fest.a ,... elas inscrev~n~ nos recônditos dos t:itos aldeões; -" ••
como.,o Carnaval ou O charivari, e isso às vezes choca os camaradas masculi-
nos preocupados com 'ulpa respeitabilidade um tanto obstinada. Não convém
julgar a ação das mulheres pela ação dos homens e chegar à conclusão de sua
••
. passividade, por exemplo. dian te de um b~ixo ÍI;ldice de sindicalização ou de
g~eve. Específica, sua ação'se enxerta em sua forma ' de expressão partiaular,
dissonante~ até mesmo dissídent.e em relação à ordem dominante. Nesse mo~
o QUE É UM ,TRABALHO-, DE MULHER?><- ,

••
menta da história, a cultura masculina é mais política. a cu ltura feminina mais
folclórica, n9 sentido forte dd terIl1o. ••
-- , As mulheres sempre trabalhararn. ~Ias nem sempre exerceram «profis'-
sões':'Este artigo gostaria '"de dar uma contribuição à história desta n"ação, re-
••
la?vamente contemporânea. ltz
A despeito das disposi~ões legais sobre a igua'l,,"ade sexual diante do em-
prego, o mercado de trabalho fe~inino é hoje, na França - e alhures - bastan-
••
,
••
.-
,)

te estrejto. A metaâ~ ' das mulheres ativas se concentra ert:l 20% das ocupa-
ções,I') As qjscriminações de fato enraízam-se nos costumes, produto de repre-
I
I,
sentações de longa duração, rer;nodeladas ao sabor das necessi,d ade,s do tempo.
. Atualmente, ain~a mais do que outrora, as/~protissões de mulheres': ••
••
aquelas que se ,àfirma serem :'boas para uma mulller': obedecem a certo núme-
'

ró de critérios que também determinam limites. Consideradas como pouco


monopoli zacloras, elas d~vejn permitir qu.e uma mulher realize bem a sua taré-

,fa p,rofissional (menor) e doméstica (p rimordial) , A.feminização elo énsino se-


cundário repousa ~Qb~'e esta idéia de um meio petiodo consagrado ao estudo
,

••
I
I Qu'est-ce qu'un métier de femme? Le Motlvement social, 140. VIl-IX, p. 3-8, 1987.
192 Este artigo continua a reflexãÓ iniciad; por Travaux de Femmes dam l{l France dli
••
)
Ji ' XfXC sjecl~ Le Moúvement social, (n. 105. oct.ldéc, 1978) e inscreve:se resoluta-
n~ente no século 20. '
193 Cf. HUET, M. -Oéchiffrer le droit à J'emploi. No r/veIles Questions Féministe5, n. 14 ~ " ••
,
>,
,
15, hiver 1986, intitulado Fernmes. Modes d'emplQi, Este nlunero é particularmente
rico para nossos propósitos. ' Da~ mesl1la forma que Le Sexe du Travai/. Structlires
fall/iliales et systcme productif. 'Grenoble: Presses Universitaires. 1984, obra ' de um
co njunto de 27,autores.
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pelos clérigos, equivalente ao tempo dedicado pela mulher à família. A tal pon- -. desenvolvido nós classes médjas em que a boa educação das meninas é uma
to que qu,\ndo ul}1a professora obtém um verdadeiro ",heio período': ela tem forma de distin ção e Wll mei o de promoção.
dificuldades para dedicá-lo a.seus objetivos próprios (Marlaine Cacouault). Qualificações reais fantasiadas como "qualidades" naturais e subsum i-
Esta s profissões inscrevem-se no prolongamento das funções "naturais': das a um atributo supremo, a feminilidade: tais são os ingreclientes da "profis-
maternais e domésticas. O modelo de muUl.er que auxilia, cuja dominação são de mulher", constr ução e produto' da relação entre os sexos. De certa ma -
quase biológica, no nfu~do ruraPt~ foi descrito por,Yvonne Verclier, mulher que ' n~ira, es tas qualidades, empregadas inicialmente na esfera doméstica, gerado-
cuida e consola, realiza-se nas profissõe~ de enfermeira, de assistente sociapH .Ias de serviços mais doqu'e de merc..1 dorias, são valores de uso mai~ do que va- '
ou de professora -prim~ria. Crianças, idosos, doen tes e pobres co nstituem os lores de troca. Elas não têm preço, em suma. Os empregadores serviram -se de-
interlocuto'res privilegiados de um a mulh er dedicada às tarefas caritativas e de las por muito }tempo, mas de maneiras diferentes, segundo a organização do
mercado de trabalho.'
socorro, a partir de então, organiza~as no trabalho social.
Enfim, estas profissões
I Na talie Ze mon Davis sublinhou a pouca especialização das l11ill.heres
, colocam
, en1 ação as qualidades "inatas!: físicas e nas artes mecânicas em Lyon, no século 16j empregadas como tapa-buracos ou
morais: flexibilidade do co<po, agilidode dos dedos - aqueles "dedos de fada':
auxiliares, muito pr6ximas dos operári os "casuai.s" de boje, elas executavam
. hábeis na costura e no piano, propedêutico do teclado da datilógrafa e da es-
operações variadas, descontínuas, complementares, aprendirl:as no local de tra-
tenotipista - destreza que faz maraVilhas nas montagens eletrônicas de preei-_
balho, sem aprendizagem formal que, por si 56, confere um status. Casadas,
são, e até mesmo passividade que predispõe à execução, doçura , ordem. Os
elas "labutam" no ateliê, sem r~munera ção. Verdadeiramente "sem qualid~des'~
empregadores elogiam es ta s 'íqualidades femininas': na realid~de, frutos da
elas não têm nenhuma identidade profissional. ''''
tr?dicional educação das meninas, que fazem das Senhoras dos Correios, tão
A industrialização, desde sua primeira fase proto-industrial, introduz
convenien tes, excelentes cobradoras, da; enfermeiras, os melhores auxilia.rês
. uma segregação sexual mais rigorosa em uma divisão do trabalho m ais acen·
do médico de hospital, ou das operárias das grandes fábricas au tom obilísticas tua9.a, que 'induz ~'especialidades" para as mulheres. A fabricação da chita-da-
do entreguerras, uma mão-de-obra habituada aos gestos monótonos e à di sci- índia é, sob es te ângulo, um laboratório de e.xperiências. Trabalhadoras da te-
plina das cadeias de montagem. Qualificações reai s fantasiadas como qualida- celagem, p ico tadoras, rem endadoras, as mulheres recebem um salário que não
des "naturais".
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Protótipo da• profissão feminina ': a• secretária
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de direção, «apegada" a seu' - .
te~n nada a ver' com sua s reais competências. "Apesar dos três ~ nos de apren-
dizag~, as remendadoras chegam apenas a igüãlar o, salário dos serventes sem
exe ~ utivo como um cipó à sua á(vore, cujas características .são analisadas p·or qualificaç ão'~"7 Marginais, seus empregos são 'liquidados pelo progresso técni -
Josiane Pinto. Intuitiva, discreta , semp re dispo nível, ela sabe se adaptar às mais
diversas exigências, da carta co mercialaô buquê de fl ores ou à xicara d e fhá.-
.
co, a partir do momento em 'que deixam de ser . "
va.ntajosos. São "trabalhos de
mulh.eres'~ comumente.
temporários,
, exe rcido ~ em certos momentos do ciclo
-Sua d~.ç ur" realça a ativo virilidade do mestre está fado. Sua proverbial "genti- da vida ou no contexto doméstico. . \ .
leza'f antídoto da sedução, exorciza uma sexualidade f~ ra de p~op6sito. ~em
, - - -- -- - ,
intelectual nem coque te, ela deve 'ser impecável e adequada a qualquer sitlia-
196 OÀVIS. N. Z. Women in the Arts M&:aniques in 16th century Lyon. In: MélcH1g~
Çã~J ~em vestida/ se~ excess~ ou ostentação. Tal imagem corresponde ao ideal Cascon. Lyon: PUL. 1980.
197 Ver os trnbalhos de P. Gaspard sobre Cortaillod•. l,e Mouvem(!tft sodal, aoQtldéc.
e
1976 sobretudo: W pinceleuses d'Estavayer. Stratégies patronales sur le marché
194 VERDIER, Y. Façons de dire, façom de {aire. La laveuse, la couturitre, la cui5;'litre.
Parfs: Gallim Md, 1979. , .' d u travail féminin au X'VIIIe siede. R~vue Suisse d'Histoire, 1986; CHASSAGNE, S.
lA Mallllfacture de toiles imprimées de TOllrnemjne-les-Anger~, 1752-/820. Paris:
195 KNII3rEHLER: Y. Nous, les assi;;'antes sotjaj~s. Paris: Aub ier, 1980.
, . ,K1incksieck, 1971. .
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MuUlercs /w t"Abtlll!o ·\
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O que I UIII trllba/llo de uru/llcr!

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A noção de "profissão fem inina" loma corpo, verdadeiramente. no sé- grandes fábricas, as mu lheres substituem os homens (franceses·, ao menos),
culo 19, em uma co njuntura geral de profissionaHzação e, ~a França", e!u ~m que assim liberados, retornam para o .artesanato terceirizado e para as oficin<ls
equWbrio demográfico favorável à convocação.das mullieres. Uma reflexão.so- . mecânicas' que os salvam da desqualificação.
bre a ,segmentação do n{ercad~ de trabalho se esboça, tendo Jules Simon e Pa~l Mas as mulheres ficam, em seguida, presas a estas atividades que as mo-
Leroy-Beaulieu como testemunha~ e porta-vozes, de maneiras bem diferentes. nopolizam e além disso lhes oferecem pouca perspectiva de promoção salarial
O primeiro. muito rêstritivo, ressalta a incapacidade das mulheres para O tra - ou social, por serem v:oluntariamente limitadas. "Fazer carreira" é, de qualquer
balho criativo - "elas não criam, mas reproduzem maravilhosamentej s~o c<?- maneira, uma noção pouco femininaj para ,uma muUler, a amb}ção, sinal in-
pistas de primeira ordem'" -, os perigos morais da fábrica e as vantagens de congruente d~ virilidade, parece deslocada. Ela implica, em todo caso, em uma
trabalho em domicílio, concilia~or de todas as virtudes. Intérprete do libera- certa renúncia, sobretudo'do casamento. Na França, não existe uma·"barreira
lismo moderno. o segundo insiste. ao contrário. na noção de "p~ofissões pró- legal" para o casamento, como em outros paises europeus, embora muitas pro-
1 prias par'a as mulheres" e na possibilidade de aumentar o seu espectro pela for- fissões suponnam o celibato. Nas minas,lOO assim como nos hospitais. A5 enfer-
mação e por um judiciosQ uso das aptidões do sexo. O setor terciário, sobretu- meiras de 1900, intern adas, são objeto de lu ma estreita vigilâ ncia (Véronique
do. lhe parece conveniente: a instrução - "as m ulheres têm, instintivamente, o Lerç>ux-Hugon), ao passo que os homens podem 'ir dorm ir na cidade. Dois ter-
conhecimento da infância" -, mas também o comércio, os bancos,:as reparti- ços das cobrador~s dos correios sã,? "senhoritas"; e ainda e~ 1954, mais da
ç~es públicas, os correios e t~égrafos. 1M A feminizaçãp ponderada de certos se- metade das professoras dos liceus. No ateliê familiar de p~ssalllanaria, revigo-
tores permite uma melhor utilização das capacidades produtivas. rado pela elçtricidacfe, em Saint-:f:ticnne, a fllha m'ais velha, par,a continuar a
O caso dos Correios, estudado por ,Susan Bachrach, é ,exemplar de tal empresa, fica solteira, ou casa-se tarde (!Matl,1ilde Dubesset. Jean-Paul Burdy,
processo. O emprego de mulheres progride ali, de ma~eira espet;cular, nos MicheUe Zancarini) . O celibato significa exigência de disponibilidade. Parece
anos 1870-1890, momento de grande florescimento das comunisações postais: normal que uma cobradora não tire férias, a enfermeira não conheça a exis-
no campo, inicialmente, onde as cobradoras "caseiras" selam as cartas fazendo tência dos domingos. e a secretária não tenha horário fixo. Há alguma coisa de
o seu tricÔ; na- cidade, em $eguida,' onde lhes são designados os escritórios religioso nesta espera do devotamento das mulheres a seu trabalho, algo tarn-
bén~ do tempo fl uido e estendido das donas-de-casa, fora dos rigores do reló-
tranqüilos dos bairros nobresj as boas maneiras da's pequeno-burguesas à pro>-
cura de trabalho fazem maravilhas. A mobilização das muUleres permiti~ não gio salariaJ.lO' O celibato é também o "preço a pagar" por uma vontade - ou
apenas o aumento' dos efetivos a ba~o custo, ela promoveu também os ho- - uma necessidade - de trabalhar em um tempo e um ,meio que sonha com a
mulh er caseira: as funcionárias dos correios não desposam seus colegas, e ge-
men ~ a uma categoria superior e corrigiu seus problemas de. carreira. Daí sua
'ralmen te ~cam sós, sem nem sempre ter escolhido e,ste destinojlOl assim como
aceitação, relativamente fácil do recrutamento das .mulh eres ,isoladas em um-
..:.. estrato que não lhes faz nenhuma sombra. Vê-se que as mu lheres não têm exa-

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tam t nte O papel de um "exército de reserva"; mas,.io contrário, são uma mão'- 200 DRESSEN. M.La (ernme,le mineur et la compagn ie. No uveUes Questiol1s fémi"istc.s.
... de-bb;a cujas qualidades específicas, cuja formação escondida, aj udam a resol- p. 117-129, hiver J986 .
201 THOMPSON. E. P. Temps, travail et capitalisme industriel. Librc, ·n. 5.1979) lev3 a
vei problemas ti:'nto qua~titativos quanto qualita~vos. O mesmo processo se
desen.volve na indústria entre as duas guerras, como moStra Sylvie Zerner. Nas I observar como' o trabalho por tarefa , implica ndo em uma menor divisão
interior/exterior, é. nas socieétades tradicionais. o modelo dô trabalho masculino e
, (emi~ino; mas como ele I. desqualificado pelo salário pago em função do tempo -

198 'SIMON, J. L'Ouvritre. Paris: Hachette, 18~1. p. 219.


I O tempo do relógio - da sociedade industrial; logo, o trabalho por tarefa aparece '
I ligado ao trabalho ~om~tico, ultrapassado e irr~cional.
199 L-E.ROY-BEAUlIEU. Paul. .re Ttavail def femmes ali XlXt sitcle. 2. ed. Paris: 202 Além de :S. Bachrach, ver PEZERAT\ P.; POUBLAN, O, Femmes sans mario Les
Charpentier. 1888:, I ..... employées des postes. In: Madame ou Mndemoiselle! ltinérnires de ÚJ so~itlld, fémi.

254
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as conlrames(ras de Sajnt·~tienne, admiradas e temidas por sua audácia: ou- dução, que acabam de desvalorizar o trabalho doméstico. aos oUlos das mulhe-
sar exercer funções de autoridade. res. As mulheres de Saint-ttienne, interrogadas sobre sua trajetória, negam
"ter trabalhado" quando eram apenas donas-de-casa.: era uma punição, uma
ocupação, não um tra ~alho verdadeiro.
CODIFICARA~.PROFISSOES DE MULHERES Como pano de fundo desta história há, de fato, as ,próprias mul~eres,
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suas aspirações e suas representações, particularmente dificeis de conheçer,
As tentativas de profissionalização do sécul o 20 gostariam de homolo- pois o discurso ideológi.co recobre suas palavras, formata seu ser social e até
gar a existência de "profissões de mulheres'~ limitá-Ias, codificá-Ias. Elas pro- mesmo suas memórias. À primeira vista, o consentimento parece suplantar a
vêm de certos organizadores", desejosos de melhorar a qualidade do serviço revolta: consentimento às expectativas tradicionais que recusam às mulheres a
que esper.am das, mulheres e q~e, por outro lado, submetem-se ~o modelo ·de competência ("Ser competente é sentir-se um hon1em", diz uma secretária), a
esco larizaç~o vigente na época. Assim, os médicos radicais da Assistência PÚ- - - auto~idade (é bastante conhecido: as .mulheres preferem ser comandadas por
blica de Paris, .como o Doutor Sõurneville, que querem ao me~rn o tempo lai· um homem .. .) e o direito a todos os niveis de emprego. Uma certa inibição leva
cizar os hospitais e transformar as plebéias auxiliares médkas, vindas de urna as mulheres a isolarem-se nas "profissões fémininas", como em um apanágio
Bretanha um tanto rude, em "colaborado ras disciplinaClas e inteligentes dos que lhes é deixado e que é o único que elas podem ocupar sem remorso e s.em
mécticos'~ A t~c~icidade importa aqui, menos do que a limpeza e a polidez. As perder a futnosa "feminilidade" que as torna desejáveis. Submissão ou sabedo-
mulheres também querem Jer acesso a uma profissionalização que Uiés permi- ria? Escolha ou necessidade? As mulheres não sacralizam suficientemente o
ta transformar as "qualidades naturais" que lhes são atribuídas, em qualifica- trabalho para sacrificar sua vida privada por de. E, atualmente, a despeito 90
, úUica maneira de avaliá-Ias convenientemen'te.
ções oficialmente. registradas, . crescimento continuo das mulheres ativas, esta dup.1a escolha parect mais for-
I
Em um ~ sociedade de ~ames, não existe nen hu.m outro caminho senão a pas- . I te do que nunca.:') Pode·se
, compreender que ela seja geradora de tensão dua).
sagem pelo ensino e a sanção ~e uma nota ou de um concUISO. Mas como interpretar somente como uma adaptação às. circunstâncias,
A história,do trabalho doméstico entre as duas guerras, tanto na França -' e, sobretudo, às necessidades econômicas, a vó ntade de trabalhar das muLhe ...
. (Martine Martin) quanto na Alemal;lha (Annick Bigot), ilustra este processo. res, que caracteriza a situação francesa desde o fim do século 19? Sylvie Zerner
Faze; da dona-de-casa uma profissional, està ,é a ambição de uma Paulette Ber- mostra bem isso, analisando de maneira não global os recenseamentos profis-
!
nege, levada até a .caricatura. Fim das receitas de Tia Maria e os pequenos tru_ 'I sionais, cuj~s agregações ~ascaJam as evoluções setoriais: até mesmo o perío-
ques de Vovó! Nada igua'ia O ensino doméstico dos cursos e das ' escolas. .Ensino .do que se segue à primeira guerra, em que o azul-horizonte passa a ser azul-
magistral, mecanização, organização científica do espaço e do tempo que tran~.:.. . beb~, não interrompe o irresistivel movimento das mulh~res em direção ao as-
for-ma a cozinha em laboratório e a dona-de-casa em engenheiro tayloria,l1o, salarj~mento mais moderno. As superintendentes de fábrica, cujos testemu-
.t udo coroado pÕr um Instituto Superior Doméstico e consagrado por um Sa-. nhos foram analisados por Anne Fourcaut,l6oI. declaraV3!ll-se surpreendidas
lão organizado pelo CNRS, são os novos caminhos do prestígiç. E preciso ,tudo pela recusa das operárias em r~nunciar às vantagens (econômicas e sociais) Ide
isto para manter as mulheres em casa e desviá-las do assalariamento. seu trabalho: questão de ganho, mas também de s~tus. E os observadqres Ide
Pode-se.'apreender, ao mesmo tempo, as mudanças de mentaijdade, a hoje dizem a mesma coisê.\.
penetração do "valor trabalho" e a assunção das noções de utilidade!! de pro-
, 203 Pesquisa reaU:z.ada ~ 1985, por Dtmoscopie e pela Ager1ce Femme.ln!ormation (AFI).
tline au)(!XC silc1e. $ous'la direction de .(\. ~arge et Ch. Klapisch. Paris: Monta.lba, 204 FOURCAUT, A. Femmes à l'usine en 'France ·datu l'e.ntre-def'X-guerres. Paris:
1984. p. 117- 162. I, ' Maspero, 1982, .
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256 257
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Pal'te 2
MulhtreJllO tmballro
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Ficamos impressionados também pelas resistências opostas a uma ver- Parte 3
daaeira igualdade. As mulheres desvalorizam tudo o que tocam: o,exemplo das '
6andeiras de Saint-l!:tienne é, a respeito desta questão, muito significativo. Os
setores em que elas entram sãÇ> progressivamente desertàdos pelos homens
que preferem reconstituir, em ouuos lugares, espaços masculinos intactos. A
/
feminização não é neéessariamente uma conq~ista triunfante, mas a consagra-
••
ção de uma retirada. O emprego misto não é, nunca, uma indiferenciação. mas .
sim uma nova .hierarquia das diferenças. Ela permite que os homens distin- se
MULHERES NA CIDADE
••
••
gam. No ensino globalmente desvalori zado porque feminizado, existem maté-
rias nobres e prestigiosas, As quais o~ homens se apegam, em função sobretu- .
do das perspectivas de pesqu~isa ou de fuga, e outras que caem nas mãos das
mulheres."O ensino misto não impede a recriação perpét~a das tarreir.as s,e-
xuadas: como é 6 c~so nos IUT,* observados por Sylvie Chaperon.
Enraizada no simbólico, no mental, na linguagem , o "ideal" (M,auri'ce
••
Godelier). a noção de "profissão de mulher" é uma co nstrução social Ugada à ..
relação entre os sexos. Ela mostra as armadilhas da diferença, inocentada pela ••
natureza, e erigida em pripcípio organizador, em uma relação desigual.
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IUT - Institut Universitaire de Te.chnologie - estabelecimento de ensino superior


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que dá uma formação intermediária entre té<:f!ico e o engenheiro: (N.T.) .
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A história das mulheres interessou-.se inicialmente por seus papéis pri..!.
vados, observmdo-as, de cerrá for~a, lá onde elas estavam, em seus corpos, sua
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~sa, seus gestos cotidianos, correndo o risco de f~chá-las em unta repetição.
, Entretanto, a questão do poder colocou-se rapidamente, pois ela funda
(
a reiação entre os sexos, Ela-f9i declinada em todas as suas formas: o(os) po-
. der{es),' influêncja, força, decisão, etc. A distinção do público e do privado
apareceu como o que ela realmente é: uma categoria política, expressão e meio
de uma vont~de de divisão sexual dos papéis, das tarefas-, dos espaços, produ-
tora de' um real remod elado sem cessar.
.
A estas interrogações iniciais juntaram-se circunstâncias
, próprias à
r . .conjunt~ra francesa. As c.o~emoraçôes - do bicentenário' da Rev:olução Fran-""
I ,
cêsa l do cinqüentenário. do voto das ,mulheres - relançararn "a reflexão sobre a
l
"singularidade ' de uma cidadania tão tardia e, com isso, do modelo poütico
-francês reexaminado à luz do gênero. O movimen~o da décadã de noventa peja
I paridade homens/mulheres na política coloco.u exPücitamen~e a interrogação

1 ,,.
sobre o universal, ~obre a relação sexo/gê":ero/i ndivíduo, e as spluções pr~pos-
tas corresponderam a filosofias poüticas "p'iferentes, "
~ Daí _~ int~si~ade de uma produç.ã.o a p~rtir de então orientada priori-
-~
tariamente para a Cidade_ Somente no ano de 1991, m eia dúzia de publicações
I ,--
o,!
" "Cul ture ct Pouvoir des (emmes. Essai d 'histotiographic'; artigo col~tivo,. Anna/es,
I '-
p, 271-293, mai/avriI198~.

" .'

261 _
~
Parte J'
Mulheres nll cidad~

/
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I
inscrevem-se neste cal'npq.l Ao publiqlI os escritos ppHticos de George Sand i'
(1843:.1850)' e Femmes publiques,~ participei desta renovação h istoriográfica. ,-
I
Capitulo 11
, Os textos que se segu'em são Influenciados por U!TIa dimeqsão; presen- .f
!
te "desde a origem. mas singular!Dente intensificada há dez anO$. Cidade tem
aqui duas acepções: úm sentido jürídico e-político relativo à existencia dos di-
reitos e mais amplam-ente à <Cpubliada~eJ>, no sentido entendido por .]ürgen PODER DOS HOMENS, FORÇA
Habern:.as: a construção de uma esfera pública ~as mulheres, ou sua participa-
ção no espaço'; na opinião. na
comunicação públicos.. Em segundo lugar. um DAS MULHERES?
sentido espadaJ que toca O espaç~ urbano. Esta probl~mátic..'\ do 'espaço deve .0 EXEMPLO DO SÉCULO 19*
muito a Foucault, este "novo cartógrafo",! tão sens,ível à inscrição dos poderes
na materialid.ade dos lugares e dos olhares, a ponto de' ter suscitado um' ques-
tionamento geográfico.' ,
A publicidade das mulheres, 'a saber, seu lugar, sua função, seu papel ·no ; A questão do poder está. no centro da reflexão contemporânea, Ob!as,
espaço público, na formaç~o di!.. opinião e do imaginário publicos incitam a
como a'de Hanna Arendt ou de; Michel Foucault, são inteiramente, consagra-
cruzar mais vigorosatnente o Gênero e a C)pâde.
das ~ ela. Filósofos, antropólogos, sociólogos chegam a um~ visão complexa e
nuançada c;io poder, de sua artic~lação e de seu JuncÍonamento. Não há ape-
"
nas um, fi.as diversos poderes m.u1tiplicados no corpo social. O poder não tem .
sua se~e apenas no centrb, no Estado: existe todo um sistema de mic'ropodé-
res, de relações. e de revezamento. Por outro Ia.do, o exercício do poder não pas-
sa :somente pela repressão, mas - sobretudo nas sociedades democráticas ~
2 FAUru:.. Christine. <'Di r,). Encyc10pédie flistorique ef po/itique des femtlles. P~fis: ' pela regulamentação do ÍJlfi~no, pela organização ,dos espaços, pel~ m..ediaçã~, ·
PUF, 19~7; LE BRA5-CHOPARD, Armelle; MOSSUZ-LAVAU, ),nine (Dir.). Les _ pela persuasão, pela sedução, pelo cOJ)sentimento. Além dissô, O exercício do
femmes et la poJitique. Paris: I'Harmattan, 1997; CORBIN, Alaio;' LALOUETTE.
Jac'queline; RlOT-SARCEY, Mic'htle. Les Femmes dans 'la Çité au XIX! siec1e. Paris:
(ou. dos)
- poder(es)
. não se resume ao-constrangimento e à tomada de decisão;
Créaphis, 1997; PISANO, Laura; VEAUVY, Christiane. Les Femmes Cf la cotlstruc· ele consiste mais ainda na produção dos pensamentos, ?OS
seres e da s coisas
! tio" de l'êtat-natiol1 e/fi Fraricc et Cf! Ifalie. Paris: . A. CoIU;, 1997; "Femmes eo
.Politique;', n. esp. de Pouvoirs, 82,lX- 1997.
i por todo um conjunto de estratégias e de táticas em que a educação, a discipli~
na, as formas de repr~sentãção revestem-se de üma importância maior. O po-
3 SANO. George, Po/itique ct Polémiqllcs (1843-1850). Présenté' par Michelle Perrot.
Paris: Imprimerie Nationale. 1997, ... der é' uma maquinaria cujas fontes'de energi~, C\ljos moto,res e as engrenageI1s
"
Michelle. Felllt1les publiques. Entretiens avec Jean Lebrun, Paris: Textuel , variam ao longo do tempo, No século 19, a distinção lio público e do privado
;4 PERROT,
1997. ' . . é uma de suas modalidades; e a higiene tem um lugar central em uma polÜiq~.
,
•1
5 OELEUZE, Gilles, Écrivain, non: W1e no~veau cartographe, Critique, Xli, p. 1.207-
1.227,1975 .
I . ·. que é freqüentement.e uma "biopolítica" (M. Foucault)._

6 RAFFESTIN; Claude. Foucault aurait-il pJ révolutionner la géographie? In: Au 1


,
..1 risqué de Foucault. Paris: Centre- Michel fi,ucault et Centre Georges Pompidou, , * Pouvoir des hommes, puissance des fenunes? L'exemple du XIXC siecle. In: Femmes .
1997. p. 141-151; Géopolitiqlle et Histo;,e (avec Dario Lopreno et Yvan Pasteur). Pouvoirs. Sous la direction de L. Courtois. J. Pirotte. F. Rosart. Colóquio de
I'
el
. , .
·Paris: Payot,)995.
"
, Louvain, Nauwelaerts. 1992. p, 131-143.
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A esta representação co mplexa do poder superpõe~ se uma visão igual ~ der no sentido r~trito do termo, e~as t!m a influência muito mais difusa e efi-
mente mais 'complicada das relações entre os sexos que atravessa o conjunto do caz dos costum es. Em todos os tempos, os hom ~ns tiveram medo das mulhe~
campo dos estudos feministas e, conseqüentemente, a história. das mulheres. res. A Mulher .é a Outra, a e5lJangeira, a sombra, a noite, a armadilha, a inimi-
Seguindo as americanas/ distingue~se o sexo,~bioI6gico, e O gênero ( tradução ga. A Mulher é }udite ou Dalila, que se aproveita do son,o do homem para cor-
na verdade. insu6ciente.qe Gender), construção sociocultural, produto das re~ tar-lhe os cabelos': a sua força. Este medo ancêstral, primitivo, ligado talvez à'
lações sociais desenv~l~jdas no tempo ~ ~ue se pode, conseqüentemente, des~ "'" sexualidade (e que a: psicanálise tanto expressa' quanto tenta elucid'ar), encon-
construir. Tomar este ponto de vista, a meu ver muito fecundo, é interrogar-se tra, em cada época, sua expressa0 própria. 10
. sobre a evolução das relações entre os sexos, ao longo da l:ustória, em todos os Do século 17 ao século 19, tais discursos são recorrentes. A idade barro-
ruveis da t<;oria e 4a prática, das'maQeiras de pensar, de dizer, no nível da lin- / ca representa as mulheres triunfantes, e~ apoteose na pintura. 11 Celebra.::se o
guagem qué é talvez (esta é ao luenos a ~pinião de· }oali Scott) ;:instância de~' c'mérilo das Damas", como Saint-Gabriel (1640) que em seu livro defende a
cisiv~. ~ tentar refletir enl termos de front.eiras, de partilhas, de equilíbrio; de tese da superioridade do sexo feminino e o mal-estar senti~o pelos homens. u
sedução e de amor; mas também de conflitos e de concessões, de deslocame~~ No século 19, a idéia segundo â quat as mulheres têm o "verdadeiro" po-
tos, de poderes e de contra~oderes. São todas palavras-chave para estud..ar as der é m~ito difundida, sobretudo na França. "Embora legalmente as mulheres
,
relações dos homens e das m.ulher~s nos sistemas históricos çe poderes, de ma- ocup em uma P9sição muito inferior aos homens, elas constituem, na prática~
neira 'não des~ritiva e estatística, mas problemática c dinâmica. A tarefa é o sexo superior. Elas são o poder que se esconde atrás do trono", segundo.um
imensa, provavelmente interminável. Ela parece tentar cada vez maior núme- viajante inglês de 1830. 13 Segundo Balza~ "nas classes inferiores, a mulher é
ro de hjstoriadores" .A:presentarernQs como sem pretensão as observações que não somente superior ao home~, mas ainda, ela governà -sempre':u Barbey
se seguem, que se baseiam no século 19.' . d'Aurevilly diz das mulheres do povos, das comadres da rua, que elas são poe _ jC

tizas em miniatura ( ... )" matronas da invenção humana que modelam, à sua
. maneira, as reaHdades da histÓ"r;ia'~.u Poderíamos multipliCar as citações de au- ,
DA FORÇA DAS MULHERES: OS TEMORES DO tores, conhecidos ou obscuros, geralmente muito próximos, quando se trata da
SÉCULO -19- diferença dos sexos. Todas traduzem a idéia de que as mullleres controlam os .
, I ' .... .

"As niulheres: que .força!': exclama Michelet, traduzindo uma repres.en-


'-- 10 Sobre o medos das mulheres, cf. LEDERER. W. GytlOpllobia ou In .peur des femmes.
t~ç.:i.O comumente cómp~rtilhada segundo a qual se as mulheres não têm o po-: _ Paris: Payot, 1970. Sobre o pensamento filosófico da djferença dos sexos,l~remos,
em breve; os estudos de Genevieve Fraisse e de Françoise Collin respectivamente
nos t. IV (si<;ulo 19) e V (skulo 20) da Storia deUe DO/lne. Roma: Laterza, ~91 e
7 SCOTI. J03n W. S;etlder and the Politics of Histo ry. New York: Columbia University Paris: Plon, 1991 ~ 1?92. .. ~ ,
Press, I ~88.
1 t MOSIUS, Heiga. La Fetwne à I'dge barroque, Paris: PUF, 1985.
8 A titulo de exemplo, CHAUSSlNAND-NOGARET, Guy. La Vie quotidietlne des
femmes dll roi. D'Agtlts Sord ~ Marie-Atlroillette. Paris: Hachette~ 1990. "',
12 Comunicação de Dominique Bertrand no colóquio' de Reid HalI , Paris, dezembro
1989 sobre NLe pouvoir des femmes~ ' - ,
9 Este breve rel~to lnscreve ~ se em uma ref]e.x3p iniciada em Une histoire des femmes
13 Apud ZELDIN, Th~odore. Lo FranÇaUes. Paris: Laffont, 1933. p. 403.
t.Sl~ e.l1e Possib\e? &I. par M. Perrot. Marsdlle: Rivages. 1984; cf. Id., Les femmes, le
pouvoir, I'histoire. Ibid., p. 206-222; e el1\ um artigo das Annales, março/abril de 14 OEAUCOURT. Jean-Louis. Les' concierges d· Paris ' au XW sitcle. Th~se de
"
1986; Cécile Dal~phin, Arlette ·Farge et aI. ; "Culture el pouvoir de~ femmes. ESsai I'Universilé de Paris VII, 1989, U. p. 492:
d'historiog.r:.lphie~ p. 271-295. 1 lS Ibid" 11, p, 804 , '\
"
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, 264
I _ 265
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Cnp{tlllo 11
Ptlrtt: J
Poder dor /romem, forra deu nmllrtrt:"
. MIj/I,uil 1111 ddad~ .
O exemplo 110 liculo 19-
,

fios do poder político e da vida dom ésti ca. Ein suas mãos, os homens se riam Iheres ao pesado obscurantismo tão contrário ao progresso, o século 19 fan - J

outra coisa além de marionetes? tasia I) poder feminino.


Mas qual é, então, a natureza deste poder feminino? Ele é oculto, esco n- Ele lhe. confere também ur:na historicidade através do Matriarcado des-
dido, s~cre lo, encoberto pelas sO,m bras, na noite, doce ou maléfi ço, é da ordem crito pelos antropÓlogos: Bachofen, Morgan, inspira ndo Engels. As sociedades
da astúcia que envolve e surpreende. A mulher é a água que dorme, o pântano bárbaras eram matri arcais e matrilineares; elas'eram quietas, felizes, mas estag-
no qual o guerreiro se. .áfunda, o silêncio que dissimula. Um mundo do mis'té- - nantes. A irrupção da violencia na História - a "grande derrota do sexo fem i-
" (
rio, do desconhecido, angustiante, terrificante. Os homens do sêculo 19 so- nino" - é também O in ic io, o progresso: A virilidade é guerreira, mas produti-
nham c~m a idéia de enclausurar as mulheres; mas ao mesmo tempo, eles se va. A feminilidade é doçura lânguida: E sempre a afeminação ameaça enviscar
interroga m: o que se trama 'no m~ndo da s mulheres? Até mesmo <> rum or dos as sociedades. I' Esta representação reproduz a forma mais tradicional do olhar
lavado uros suscita inquietação. I' sob re a diferença dos sexos. Mas, ao m esmo tempo; ela os projeta em um tem-
Este poder das mulheres é, ao ~esmo tempo, ligado à Natureza e liga- po histórico ricó em evoluções possíveis.
do aos "costumes'~ A primeira ~rdem, pei'ú:nce a imagem da força da mãe re- Sobre o que repousa este temor do poder das mulheres, na família, na
produtora, assustador poder de vida escondido naquele ventre fecundo, mais · história, na sociedade? Ao colocar a sexualidade no centro de sua pesquisa, a
temivel ainda se ele recusa procriar. Junta-se a ele o temor dos estranhos sabe- psica nálise tenta responder a esta pergunta.
res da mulher feiticeira que escapam à cultura solar dos homens. Além di sso, O senti.m ento, tão angustiante, da ~alteridade feminina , fato funda·
quanto mais um grupo social está próximo da natureza, mais o poder das mu-
J m ental, foi reforçado no século 19, pela própria vontade de divisã.o sexual
Uleres afirma-se ali. Ass im como o Po,,:,o, selvagem e feminino - '" selvagem por- dos papéis, das tarefas, dos espaços, pela recusa do 'trabalho misro que leva a
que feminino. l ? um a segregação sexuàl mais viva. O distanciamento aum enta O sentimento
No que se refere aos costumes, é por meio del es que as mulheres, so- de estranheza.
bretudo as m ães~ "seguram os destinos do g~nero hum ano': segund o Lo uis - Enfim. este medo se alimenta das co nquistas femininas do sécul o 19,
Ai mé Martin . l ' Os hom en s do século 19 apóiam-se sobre uma dupla expe- deste ilnpulso continuo que as mulheres exercem em iodos os domínios e d,?
riência: a do poder dos costumes, mais,fortes do que as leis~ e contra os quais qual o feminismo é apenas a expressão mais aguda. Segue-se uma cr ise de
se chocam as Vo ntades revolucionárias m ais afirmadas, e a decisão poHtica vi- identidade sexual dos homens ~despossuídos de suas prerrogativas, crise ce- .
ril tropeça na socieaade civil repleta de feminilidade. A outra expe riência re- corrente, mas que atinge. se m dúvida, um paroxismo no iníCio do século-
20. M Ela pr.ovoca uma dupla reação: de misoginia tradicional (obscenidade,
I, ; side na resistência da família, na eficiência da educação, e, con seqüentemen-
te, n~ tç)ln ~da de co'nsciên~ia qo p;ô der das mães. O ~~culo 19 acredita nas 2a- derri&ão, sarcasmo, caricatura são suas formas mais banais) e de anti-femi-
·. pacidaáes morais das mulheres; por um lado ele as exalta, co mo uma força de nism~ pond~ra.do. .
regen~ração, uma trama de co ntinuidade; por outro lado, cle as teme como ' Século de ruptura ede m ode rnidade quanto à diferença dos sexos, o sé- o
um bloco de inércia que freia a modernidade. Da missão civilizadora das mu - culo 19 é também oséculo de seu m~l-estar.

16 SEGALEN. Ma rtine. Mar; et femme dans la société paysantlt~. Paris: FlammariOl1,


1980, ' , 19 GEORGOUDI, Stella. Bachofen. te ;natriarcat et le monde anlique. Réflaion sur
17 RANO~ Jacques. Couru·voyages au pay~ du Peuple. Paris: Seuil, 1990. 1- la création d'un mythe. in: Sloria delle. Don"elHistoire. des Fe.mmes. Sous la .direc-
tion de Pauline Scbmitt-Pantel. Paris: Plon, 1991. t. 1 (Antiquité).

i"

I,
" -
18 MARTIN, L. A. De. ,'édllcarion des meres de famille. 011 de la civilisarion _du'genre
illlmain par les femmes. Paris: Gosselin, 1834-
' : , '
20 MAUGUE, Anne-Lise. L'idenlilé masculine e.n crise. Marseille: Rivages, 1987.

266 ~
267

f "
Cupl1U11I lJ
~ Part' J
PoMr tlllslfOmtll.l, fll'flJ das mllU~tr
, Mull'tru "" ,Idade O ClttlllpW tio Jkuw J9
I

LIMITAR :g CANALIZAR OS PODERES DAS estão do lado da razão e da inteligênda que fundam a cultura; a eles cabe a de-
cisão, a ação e, conseqO'c nternente, a esfeu pública. A$ mulheres se enraízam
MULHERES. EXALTAR A MULHER
na Natureza; elas têm o coração. a sensibilidade, a fraqueza também. A sombra
da casa lhes pertç.nce. f: O que dizem - à maneira dos Antigos - os maiores _
o ~ue fazer diante deJal força das mulheres? Ouçamos o Parsifal de
Hegel, Fichte ou Cornte - e, num tom mais alto, o coro barulhento dos epígo-
Wagner: "A salvação ~o.nsiste em exorcizar a ameaça que a mulher representa
nos. Marca de um século 19 mwto medi~jzado: a referência ao biológico. As
pa~a que uma ordem dos homens triunfe)~
mulheres são doentes em seus corpos, em sua matriz, em seú cérebro, cuja prÓ-
Duas soluções: impor silêncio às mulheres; ou bem torná-las cúmplices
pria estrutura as exclui da criação. Estas afirmações são retomadas pelos orga-
dos hOlnens.exaltando a Mulher. "A Mulher é uma escrava que é preciso fre-
'nizadores da sociedade: políticos como Guizot, escritores ~omo Ruskin ..
qUentemente colocar no trono" (Balzac).
, A direção da Cidade s6 pode ser masculina, e, conseqüentemente, a po-
Convém limitar seus poderes, sua ascendência; ~onter sua influência;
- lítica, A Revolução Francesa reconhece a mulher civil, mas não a cidadã. Ao ex-
mas tambélTl usar o imenso potencial que das representam, não somente no
cluir as mulheres das novas formas de representação, ela provoca, em certos (3- '
domínio doméstico; mas cada vez mais no social, pela filantropia, e depois, pelo
sos, uma regressão de $ua situação em relação às sociedades do Antigo Regime. lJ
trabalho social. Dai todo um arsenal, juridico, educativo, e umaorg~zação ra-
O privado, do qual os homens continuam a ser os senhores em última
cional da sociedade do qual a teoria das esferas (pública/privada) é \lma das for-
instância, é, no entanto. deixado mais para as mulheres, cujo papel doméstico
mas mais el aborada~, Nestas soti~dades em vias de demoçratização, não é mais
.g.familia: se vê revalorizado e até mesmo exaltado. O século 19 não nega o va-
possível usar somente da violência (ainda que as mulheres continuem a ser um
lor das mulheres, bem ao contrário; 'apeJa-se para suas qualidades específicas
alvo privilegiado da violência);21 entre os homens e as mulheres, um novo equi-
no interesse de todos. Na segunda metade do século, sobretudo. elas são exor-
líbrio dos poderes se instaura. Por meio de quais discursos, de quais práticas se
tada s a exercer seu poder fora de casa: a controlar os bons costumes e as desi-
operam estas novas partilhas, esboçam-se estas fronteiras diferentes? São neces-
guãldades por meio da filantropia, gestão privada da "questão so~ial", Certos
sárias .ainda muitas pesquisas de detalhe, até mesmo de micro-história (qllal é,
setores lhes são destinados: as crianças. os doéntes, os pobres.,. Elas serão ,!-s __
por exemplo, o novo papel do Salão, cada vez mais feminizado .no século 19 e,
pioreiras do trabalho social. A casa burguesa não é nem um barém nem um
ao que parec~.t. despolitizado?) para chegar a um'a visão de conju~to. .
ginecf1u. Ela se abre para o mundo. E é .conveniente sair. dela.
Não se pode di zer que a divisão sexual dos papéiS, das tarefas e dos es-
A separação das esferas é muito mais sutil do que pareCI;. Não SO mente
paços esteja veédadeiramente teorizadíl. O pensamento filosófico da diferença"-
, exclusão, enclausura'm ento. fechamento; mas também distinção, utilização, li-
dos sexos é rela~ivamen te. pobre;ll e o ctisc'u rso erudito se aproxima, sobre este
. mites. Por outro lado, não há adequação 'e ntre os sexds e as esferas, Nem todo
ponto, do discurso popuJar. Ambos repetern ql;1e existem, em suma, duas "es
o público é mascUlino, ou o privado ~ feminino. A,espacialização' faz fortemen-
pécies" dotadas de qualidades diferentes e de aptidões particulares. Os homens
te o seu papel, no entanto, ela não comanda tudo. O exercício do poder não se
, reduz evidentemente a uma geografia,
/21 SOHN. Anne-M.uie. Les attentats ~ la pudcur sur les fillettes tt la sexualiti quotidi-
emlf! ell France (1870-1939). ln: Men talités. Paris: lmago, 1989. n. 3: Violences sex-
• ueUes. p. 71 - 113; de LOUIS. Mari~- Victoire. Le droit de cuissnge en France (111 ~ 23 FAUAA'christine. La dimocrotie sans It:s femmes. Essni sur le libiralismt: t:1I Filmei .
sikle. Paris: L'Atelier, 1995. Paris: PUF, 1985; FRAlSSE, Genevieve. Muse dt: la RaUou. LA dimocmlie exclusivt:
22 Cf. os estudos de Genevi~~e Praisse e FrnnÇfise..~l1in. Histoire d~ Ftmmts, op. cit. , , I ou la diffirenct: des sues. MarseiLle: Alinéa. 1989.,

. - I
t. IV e V; LE DEUFF, Mich~le . L'étude et It rouet. Paris: Seuil, 1989. t.

,
!
"
.i

268 -. 269
Pllrte J Ctlp(flllo 1/
Mu/ITerd na cidtlrle Podu dOI Jlllltlem, força das lIlulhenJl
O rJCtmplo do sklllo 19 .

A lei, expressão de um poder patriarcal cada vez mais condenado à con- I O âcesso à escrita, domínio sagrado, é também uma zona de an-onta-
cessão, faz do Direito urn terreno maior de afrontamento dós sexos. No inicip I mentos e de controvérsias. Se não é mai s possível "proibir q\!e as mulheres
do século 19, após as turbulênciàs e as modificações da Revolu ção, os Códigos, 'aprendam a ler e a escrever", como desejava Sylvain Maréchal, em um projeto ,
em toda a Europa, de"finem a ordem civil e cívica. Recusan do a mulher ávica,· de lei apenas ~l1aginá~io/f> ao menos pode-se isolá-l~s em modos de escrita~
a Revolução Fran cesa reconhecera a existência de uma....!l1u1her civil que pode privada Cá correspondência familiar, por exemplo ) e formas públicas especifi-
herdar, contratar, casat;se livremente (casamento ;:;:; c~ntrato civil), divorciar- cas (obras de educação). A «mulher autora': esta "pre'ten sa literata" qetestada,
se. O Código Cle Napoleão col6ca restrições em toda a parte, a tal ponto que atra i para ~i todos os sa rcasmos. v Uma mulher que escreve, e so bretudo que
para certas questões e par~ certas categorias sociais)o,..o Antigo Regime eca me- publica. é uma f!1ulher desnaturada que prefere abrigar-s~ sob um pseudôni-
lhor.l~ B sobretudo o casamento 9ue fa z a diferença. A mulher solteira é uma
mo masculmo. Seu sucesso provoca escândalo: ele é depreciado. Vejamos
"mulher maior" que dis'põe de direitos iguais. A mulher casada é uma menor,
George Sand e seus "romances rústicos", Relegados à prateleira da Biblioteca
submissa a s~u marido até no segredo de sua correspondência. Se ela trabalha} " , ' ,
Verde para adolescentes (La Petite Fadette, La mare all Diable), eles fizeram es""
ela não recebe nem mesm õ o seu salário.-E a··lei de 1907 que, na Fran ça, reco-
~uecer a obra niultifonhe de unla escritora imens~, que redescobrimos apenas
nhece enfim este seu 4ireito tom a como argumento a sallde da economia do- ,
nos d ias de hoje.
' méstica e o cuidado dos filhos, que, ao"menos, poderão se beneficiar do salá-
Os limit~s ao que as mulheres podem fazer não são somen~e de ordetp
rio de sua mãe, no caso de incúria do pai. Segundo o C6digç, Civil, a ord~m .
jurídica, evi?entemente. Eles repousam sobre 'a, opinião pública, amplamente
pública repousa sobre o "bom cidadqo': a ordem doméstica, sobre "o bom es-
modelada pelo sexo dominante, vigilante en:t ~efinir A Mulher- como,-deve ~ser
°
poso, bom pai': de que nos fala Portalis. Ao proib'i/o divórcio, a maioria dos
(A Mulher corume-il-faut). ,O interesse do sé~ulo 19, sua moderi'lidade, é que
Restauradores Cna França, léi Bo nald de 1816) agr~va ainda a suj~ição femini-
estes limites mudaram:-
na. Nesta s co ndições, compreend~- se a dimensão jurídica do feminismo: nos-
Fazer mulheres adaptadas a suas tarefas Un; turais" - esposas, mães, do-
sos "direitos': Dizem as mulh eres.
nas-de-casa - é o papel de uma educação que continuou por muito tempo pri-
I ' Outros tipos delimites: o acesso ao trab~lho assalariado, submetido, na
I prática, às vezes no ~1ireito (sobretudo nos países germânicos) à condição p,a-
vada. questão familiar e maternal, questão das Igrejas. A instrução propria:"
mente dita ocupa inicialmente, e por muito tempo, um lugar Il'ienor, ao lado
trir~lOnial e ao-poder do pai. Na Alemanha, por ext:mplo, o celibato é exigido
das práticas 'domésticas, morais e caritativas. Os vínculos entre mulheres e re-
no ensino. Vastos campos profissionais são praticamente proibidos às mulhe-
ligíão são antigos, poderosos, ambivalentes. Sujeição e liberação, o pressão e
res. Saber o que elas podem fazer é, aliás, Um debate da econom i ~ política que
constr6i, através de seú discurso,_a noção de " trab~dhos" femininos, de "profi,s- poder estão ali imbricados de maneira quase indiss·o lúvel. Os primeiros te>..'tos
'_sões" femininas, que se baseiam em supostas '.<qualidades inatas", dissim ulan- - a primeira tomadá da palavra das mulheres na hist6 ria ocidental - pIovê~1
do. de' fatb~' aptidões' adquir~das.n das mártires ~ristãs: 'como a carta de Santa Perpétua que ence,rra o primeiro
I' ( vo lume da Storia ...delIe DontJe.i • Se sua voz infla-se na Idade Média, ê graçafl às

~4 Ponto polêmico: cf. Centre: Georges Pompidou/Centre de Recherches


lnterdiscipli'naires de VaucreSson. La ràmilfe, la Loi; rEtat. De la Révolutiofl mi Code 2,6 , FRAISSE, Genevieve, Muse de la Raisotl. La détllocmtie exclusive ou la différence des
Óyi!. Testes réunis et présentés par lrene Thery et Christi3n Biet, P3,-is: lrnprimerie sexes, Marseille: A1inéa, 1989, eStuda longamente esta história. '
-Nãtionale. 1989. ' 27 PLANT~ Christine.LA petite soellr de Balzac. Essa; sur lafemllle alllellr au)([)(t sie-
~ 25 J030 W. Scott,, '~La tr3vailleuse", t. IV (~cul~ XIX) da Storia delle Domle/Hütoire des c1e, Paris: $euil. 1989. 1
Fe~"lIIes, estuda particulamlente como o d!scurso da economia poUtica constrói a 28 T. I. L'arrtiquité. Sous la direction de Pauline Schmitt-Panel. Roma: Laterza, 1990;
I noção de "trabalhq feminino" e COl)10 a dir isão sexual, ~o trabal~o é inici;.llmente ..Paris: Plon, 1991. -
I
umyefeito de linguag~m.: Paris: Plon. 1991, p. 419-422. ' '''-
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I·' , 270
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271

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Podu d OI homttll. forf" dtu mul/,eres? .
MIIUleft:l ti .. cidade
o enmplo do IkIlJo 19

)
Ordens e aos convent~s.u Eles não abrigam apenas a sua resignação e sua fugai . integração, apesar de._um ensil!o. não misto reafirmado sem cessar, para man-
eles lhes conferem poder, enca rnado em fortes figuras de santas ou de abades- ter as dife renças. Ela substitUía ""3 religião pela mor~l , de m aneira-constrange-
r o "-

sas. A Igreja trabalha pela proteção das solitárias e dás viúvas, pelo reconheci- dora. Mas ela contribuía também para a co nsciência..crescente da impoitânciã
mento da dignidade fe~inin a, pela necessidade do consen tim ento no casa- , ' ," d:as mu.lheres. Ainda que yalles escreves; e: "Esta Universi da.de! - Ela é tão ca~
menta de uma mulher)ndividualiza-da. Tudo isto não poderia ser s u~estima-. ·rola ,9,uanto a Igreja, e mais covarde! Prisão por prisãq, prefuo o convento io
do. Mesmo no séculá 19, em que a religião tende para O lado da submissão das liceu ~11fa meilinas;·Professores por professores, gosto mais,das religiosas ·t ta-.
mulheres, as coisas são complexas, com muitas nuanças e diferenças segundo _ dicionais do que as peonas envifldas pelo ministério'~31 Um espaço de indepen-
os credos, ricos em modelos educativos variado~ : ·dência - ou até de li berdade - era, sem dúvida, aber to às mulheres. Professo-
\. Entre os católicos inflexíveis contra o plUndo moderno, o chalnado .. ras primá;ias e ;ecundárias forneceriam um gqmde 'número de pioneiras do
constante das· mulheres para seus deveres de guardiãs da ordem patriarcal é o : o, femmismo.J!
mais forte. Às mulheres devem renunciar, obedecer e conse ntir a sua própria As relaç?es entre relig.iões, laicidade e relações entre os sexos são, em
sujeição. N~ entanto, a exaltação. da diferença, do feminino (figura da Virgem o, todo caso, um grande tema de reflexão e de pesquisa.
Maria) pôde alimentar uma for te consciência de gênero e, com isso, um. femi-
nism o cr-istão, às ve~s missionário ~ combativo, base-;do na promÇ>ção elos va:" ,
la res femininos como forma de· salvação.)!) . AS MULHERES: EXERCI CIO .a CONQUISTA
O protestantismo oferece mai~ brechás. Sua co ncepção da diferenç~ do's DOS PQDERES J
sexos é profundamente diferente. . Por' exemplo, em , nome da Bíblia, ~le faVO!~­ •
ceu " alfabetização ·das men'inas mais precocemente do que nos países católl- Em uma sociedade globalmente dominada pelo poder masculino, as
. coso Os Reyjya/s (Alvoradas), tanto na América qu anto n ~ Grã-Bretanha, fo- -mulheres exerceram, en.tr~tanto, todo o podei p9ssível. As mulheres do século
o
r,aro muito propícios à influência das mulh eres devotas. De uma certa manei-
, o
e
19 - provavelmente em todos os te~pos - não foram so ment~ vitimas ou su~
ca, as mulheres de pastores participa'm do ministérioi em pleno florescimento • . jeitos passivos. qiilizando os espaços e as tarefas que lhes eram ·deixados o·u
as diaconisas Jambém. A i'nfl uência das protestantes no desenyolvimento de confiados. elas claboraram; às vezes, con trap9deres que po<,iiam subverter os
numerosos mevimentos feministas (sobretudo os que lutam contra a' prosti-.. , papéis apArentes. Há abunda~tes irragens de mulheres resplandecentes, de
tuição) foi considel:ável. ,-- avós reinando sobre sua linhagem , de mães "abusivas", de donas-de-casa áuto-
Na França, o protestantismo, sustentáculo da República~ contribuiu for- " ritárias que dirigem se us emp regados, d o nas-de~casa populares que os homen s
tem ente para o estabelecimento de um modelo laico que não pode ser visto- chamam de "a burgu esa" porque eles lhe~ entregam seu pagamet:lto e elas con-
como á simples recondução de modelos reli giosos nem como o equivalen te da trolam seus lazeres, mulheres cotidianas ou excepcionais que investem SO,~re a
libef~ção feminina. A e'sco)~ laica permitia às menipas reais po.ssibillçlades de (
vida diária ou o social. 0 ,reforço da image1n da mãe e de seus poderes domés-
o o I
I ' , o

29 Daniê:le ~égnier-B.ohler, Voix de femmes, no 1. U (Idade Média)' da Staria delle 31 Jules Vallê:s, 1e Révcil, 24 novo 1881 . reproduzido e~ CEuvres. Sous la directiori de
D'cm ne/Histoire des Femmes, Roma: [s.n.). 1990; Paris: Plon, 1991. Organizado por Roger BeBet. Paris: Pléiade, 1989. t. n, p. 727~731 (a respeito da lei Camille Sé.e
Christiane Klapisch-Zuber. " ' organizando os liceus de meninas e o ensino secundário fem inino). .
.. 30 SM ITH, Bonpie G. 111C ladi~s of th~ Lei4ure 'Class, TlJe Bourg~o.iSes of NortlJelí1l 32 Cf. estudo recente de MARGADANT, Jo ~urr. Madame le Pr~fesseur. Womcn
Fr~.Jlie in theXlxr" century. Prmceton: Pri llteton University Press. 198 1; tr. fr. Paris: Educators in, ·the Third 'Re/JUblie. Princétoo: Princeton University Press. 1990;
Perri n, 19890 I o. OZ6UF, Jacques et Mona. La Rép",blique des institutCII;.s, Paris: EHESS, .1992.
'o "
'"
o' ,.
272 273
Capllulo J 1.
Parte J Pode,. dOI homcus.j<>rça das mullrc''Cl r
MulhueJ lia cidadc O exemplo do J«lIlo 19

ticos é um dos temas do antifeminismo do inicio do século 20. "As Mães!", es- 'espaço da casa, da rua ou da vizinhança, como elas mantêm ali redes de solida-
creve André Breton; "Encontr'!mos o horror de Fausto, somos tom"!-dos, como riedade que excedem amplamente a família, para estruturar às vezes o vilarejo
,ele, por uma c0Il1:0ção elétrica unicamente com o som destas síJabas nas quais \ ou o bairro, como elas organizam o"{cmpo do trabalho doméstico, tanto sobre-
se ~sc~ndem -as poderosas de~sas que escapam ao tempo e ao lugar".)) ~as carregado q~anto .frouxo, que pode lhes deixar liberdades, sempre wn pouco
como distinguir o que constitui justamente fantasia masculina, medo da mu- furtivas: a leitura, por exemplo, flgura por muito tempo como um gozo rouba-
dança, mutação real?.. . /' . do. Tais pesquisas esclarecem as modalidades do poder cotidiano das mulheres.:'6
- ,
,. As observ~ções
.. que se seguem não dão nenhuma resposta mas procu- .~ I
Essencial, a gestão econômif.a do lar, a relação co m o dinheiro e, conse-
ram esboçar um programa. qüentemente, nos- lares populares, cpm o pagamento. . As burguesas gerem o
A organização do cotidiaDo continua a ser o grande teatro da vida das que o seu marido lhes dá para o funcionamento da casa cuja contabilidade lhes
mulheres e a base de seu poder, o local de seu trabalho, de seus sofrimentos, é atribuída. As mulheres do povo, ao menos n(l França, exigem e geralmente
mas também de se us.. prazeres. Elas encontram ali compensações cuja nature- obtêJ.TI que seus esposos lhes confiem seus sa~ários, se m muito desconto, no dia
za deve ser questionada . .Pois se a massa das. mu lheres consente em seu papel, do pagamento, dia pe alegria mas também de conflito nos bairros operários;
encontra nele justificativa e freqüentemente felicidade, sentido de sua existên- elas lhes devolvem a ~e~ada que lh~ é necessária. Ao menos, este $eri ~ um
cia e até mesmo sentin~ento de superioridade em relação às independe~tes que ideal, longe de ser respeitad~ e, de quaJquer maneira, cheio de conflitos. No en-
recusa m a sujeição ao casan1ento, o destino _mais comum (90% das mulheres - . tanto; esle poder de Uministro das finanças" - as donas-de-casa são chamadas
e"ainda mais dos homens cas~m'l'se~l)o sé~u lo 19), não é unicamente pela fo~­ . assim - é menos brilhante do ·que parece. Responsáveis pelo ' orçamellto. as
ça das coisas.jAo menos, esta força da~ coisas reveste-se, nas socie4a~e mais de- . lnulher!~ també~ são culpadas por 'ele; ~m caso de restrições, as privações as
mocráticas do século 19, de formas mais doéês e mais sutis. ' , atingem em primeiro lugar. Elas são fr'eqüentemente subnutridas. Ao contrá-
À maneira de Baudrihard,~ seria necessário fazer a história dos prazeres rio, quando tudo vai bem, elas se empanturram e engordam. A relação das mu-
e das servidões da sedução: a galantaria, a coqueteria, a recusa e o dom de si· nas lheres com a comida é assim atravessada por relações de poder.
relações entre os sexoSi o papel do corpo e das aparências nas estratégias de ca- . Na área dOf!1éstica, as mulheres - a~ esposas sobretudo -= exercem pode-
,sarnento em que a beleza faz cada vez mai; parte dos termos da trocaj o poder reS, delegados e compensadore§, so bre seus subordinados: ascendentes, geral-
sexual das mulheres no casal. Fazer a história dos poderes do amor e no amor. 'mente maltratados, filhos repreendidos, empregadas domésticas, mulheres go-
O exerdcio do poder doméstico, do qual Frédéric Le Play foi um dos pri--- , veJ;nadas por outras mulber;es, O que coloca de maneira ruidosa a relação
, meiros observadores em ~uas famosas' monografias de fumilia, ~ol o objeto de sexo/classe. No caso de família ampliada--e de coabitação das gerações, rn'uito
nUfl:1erosos trabalhos que seria preciso recolocar em perspectiva sob o' ângujo~_ praticada ainda em certas zonas rurais, a autoridade das sogras .sobre seus gen-
. _ das relações de poder. Yvonne Verdier e Martine Segalen estudarám as campo- ros é gerall'hente inflexível. Assim se recon stroem bjerarquias, .pirâmides orlde
nesa~l; Arlne Martin-Fugier, Genevieve Fraisse, Bonnie Smith sobretudo (pára ~.:.. o poder patriarcal, sobredeterrninante, aparece, no entanto, como diluído, ex~
lar apenas da França) acompanharam as donas-de-casa burgue~si eu me inte.: terior, longínquo. ~
res/ei pelas donas-de-casa populares." Ver'como as mUlheres tomam posse do -'

1983; FRAlSSE, Gencviêve. Femmes toutes mains. Essai sur le service domestique.
33 Histoire de ·la yje privée. t. IV: Século XIX, dtad<! p. l 55. Pnr'is: Seuil, 1989; Michelle Perrot, Histoire de la vie privée, t. IV, p. l43-J46 e diver-
sos artigos.
~ 34 J. B~'udrillar~, De la séductiorl. _ 1_
36 Encontraremos uma notável análise das relações masculinas-femininas no mundo
35 Além das publicações já citadas de M. ~egal~n e Bonnie Smith, lcf. MARTIN-
operário contempor~neo em SCHWARTZ. Olivier. te Monde privé. des ouvriers.
FlJGIER, Anne. Lp Bourgeoise. Fel1lllle arl temps de PtIUI Botlrget..Paris: Crasset, . . .
, - Hom/!Ics ef femmes du.Nord .. Paris: PUF, 1990.
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274 - -. 275
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Pcdtr do. ha.J1lt.nlofotr~ dQJ nllln'n'Uf
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M ulhtrn IUI titltJd,:
O eumplo do mula 19

Tem-se o costume de opora artimanha feminina à violência masculina. Elas investiram todas as suas energias na construção de wna esfera pri-
Provavelmente se,ria necessário d~sconstruir a parte de estereótipo nestes dois , vada, autÔnoma, geralmente àlegre, que dava coerência à sua ,vida, que elas eri-
aspectos. A violência física e sexual exercida sobre as mulheres é, certamente,' •i giam em wn sistema de valores, até mesmo em uma verdadeua.mfstica femini-
cada vez mais reprovada no século 19j menos, no entanto, do que a violência na e fundamento de úma cultura feminina e de uma "consciência de gênero~")t
'So bre as crianças, para as quais .se esboça Uln3 proteção legal (na França, leis Com isso, elas edificaram um poder social muitas vezes conquistador e
de 1889 sobre a perãa' do poder pate,rnQ ,e de 1898 sobre as crianças maltrata- asswnuam uma missão morá1 da qual a filantropia foi a forma ma~s corren te. ..-
No sentido inverso', o exercido da mantropia as iniciava às questões da Cida- cI
das). Um silêncio cúmplice envolve as mulheres agredidas (sobretudo nos
de. Nos Estados Unidos, assim çomo na Grã-Bretanha, as matronas e dama s,de
meios populn.res, mas não somente). violadas, violentadas. Os pedidos de se-
caridade das décadas de 1830-1840 fo,ram. freqüentemente as miles das femi-
paração de corpos (em 80% de origem feminina) e de divórcio (quando ele é
nistas da geração seguinte.
legai: na França, entre 179 1 e 1816 ~ 'desde 1884) alegam, no entanto, majori- .( Hav:ia aí uma forma de femin1sll)0 menos preocupado em reivindicar a
tariamente as sevícias corporais, Uma reflexão sobre o poder não poderia eco-
igualdade com os homens, vistos às vezes COm uma certa pena condescenden~
nomizar pesquisas sobre as mulheres vitimas cujo corpo dolorido é a exata an-
te, do que em promover uma óutra visão do mundo,·apoiada n~s ideais femi-
títese do corpo glorioso e etéreo da Musa e da Madona." '
I -, ninos{qua se uma alternativa, critico da sociedade tal como os homens a fize-
A constituição de uma esfera privada autônoma foi uma outra tática. ram. 40 Isto podia chegar até a uma cultura .separatista, ao sonho de um' univer-
Eln uma carta a Madame Swetchine (1856), TocquevilJe deplorava que so feminino sem os homens, que encontram.os em diversos palses, particular-
a educação, e sobretudo a religião, ;tenham contribuído p~ra enclausurar as ,mente na Alemanha. O poder feminino como contrapoder e como poder mo_ o
,mulheres de seu tempo unicamente I)a esfera privada: delo, Ao mulheres como fermento de regeneração da humanidade. Não há
nada.Q.e espantoso no fato de que tal modelo tenha raizes e influências forte-
Vejo um grande número de mulheres que t~m mil virtudes privadas nas ql.Jais
a ação direta e benfazeja da religião se deix3 perceber. Que, graças a elas, são espo-
.m ente religiosas,
sas muito fiéis, excelentes mães, que se most.ram justas e indulgentes com seus em· , Enf~, last but ,10t [east, é toda a história das lutas feministas pela igual-
pregados, cariêlosas com os pobres, .. Mas quanto a esta parte dos deveres que se re· dade dos dois sexos, tornadas possíveis pelas contradições da Revolução Fran-
fere à vida pública, elas não parecem ler a' mesma idéia . Não somente elas nllo as cesa e da democracia nascente (mas excludellte): história imensa, relativamen-
praticam pará:si mesmas, o que é bastante natural, mas elas não parecem nem mes·
te pem conhecída, devido à multiplicação dos trabalhos" 1.Seria prtciso reler
mo ter o pensamento de inculcá-Ias àqueles sobre qúem elas têm uma inAuência, t - j
uma face ...da educaçã~ que lhes é invislvel. M •
"
':\ 39 Entre os estudos e;c:emplares, o de Bonnie Smith, já citado, de corr, Nancy. n,e
Muitas ~ulh~es ratificam, de fala, sua exclusão por seu desinteresst ou Bonds of Womattllood. \1'oman's Sphere in New Englalld, 1780-1835. New Haven:
pela,&esv~íorização das questões ijúblicas e da políticai a preocupação dos bo-' ,Yale University Press, 1977; VARfKAS, Eleni. 'La Rtvolte des dames. Genbe d'une
cotlscience féministe dans la Grece duJUXt siecle. These (Doctorat), Paris V1I, 1982.
mens, desinteressante, até mesmo fútil, não é para as mulheres. 40 ~ muito senslvel no feminismo saint·simonista, por exemplo: cf. RIOT.SAR~EY,
Mjeh!le. ParcoJlrs de femmts dam I'apprentis.sage de la dbllocratit (1830· 1870) . .
Désirée Gay. !ean;ft Deroi", Eugénie Niboyet. The5e de l'Université -de Paris I, 1990,
37 Além dos estudos de A, M, $ohn e de M. V.:Loois. citados cf. CLAVERlE, tlisabeth:
41 Vis10 de conjunto no"'t . IV da Storia delle Donne/Histoirt des Femmes. por Anne-
lAMAlSON. Pierre. L'/",possiblt m!,ria$t.~Violt;"e tI parenté en Gbaudan. Paris:
Mar ie K!ippelli, Scenes fémitfis re$; citemos também KLEIMAN, Laurenct;
Hachette, 1982. . 1-' . . ,
38 (Ellvres completes de Tocqu.c-~ille. Sous la'· direction de Pierre Gibert. Pâris:
ROÇHEFORT, Florenee. L'Sgalité en marche. Histo;re du fbnini$me $OIlS la
Trois;eme Rt!publique. Paris: Fondation nationale des Sciences PoÚti<fues/~itions
Gallimard, 1983. t. XV, p, 292 (carta ~e IO je
novembro de 1856),
'-
des Femmes, 1989. .

" ,
276
II
"
277
Pllrtc J
,
[, '. MulllcrN 1111 cillndc

es ta história sob o ângulo do(dos) poder(es). Que poderes reivindicam as mu- CapItulo 12
lheres? Q ue concepções elas têm da pol.ítica, ~sobret\ldo? Porque há ~nanirni­
dade sobre os ~ireitos civis, em 'matéria de educaçao e até me~mo de trabalho, j

e divergências sobre os direitos cívicos? Como compreender - por exemplo-


o conflito que opõe as feministas de 1848 ~ como Eugénie Niboyet, Jeanne De-
roin, Désirée Gay - a George: Sand, grande figura de mulher emancipada, que
faz da igualdade civil o preâmbulo absoluto para a jgualdade poütica: "As mu-
SAIR*
lheres devem participar um dia ga vida polít.ica? Sim, acre~ito que sirp [... ]Mas
este dia está próximo? Acredito.que não, e para que a condição das mulheres
seja assim transfonnada, é preciso que a sociedade seja tran sfo rmada radical-
mente", De~e-se fazer os escravos votar? Ma~ as mulheres são escravas? Juridi-
cam en te si m, socialmente, não:
"Uma mulher não deve sair do ((rculo estreito traçado em torno dela",
Como os costumes chegaram a este ponto em que a mulher reina no maior nú-
mero de famílias, e que há abuso (festa autoridade conquistada pela habilidade, pela • diz Marie-Reine Guindorf, operária saint-simo.nista, obstinada em quebrar
tenacidade e pela astúcia, não há nada a temer que a lei se encontre à frente dos cos-
. I
este cerco e q u~ se suicidará com seu fracasso,~l Os homens ~o século 1~ eu-
,
tlnnes. Ao contrário. para mim. ela se encontra atrasada em rela}ão a eles. U
- ropeu tentaram, de filto, isolar a fo rça crescente das mu.llieres, tão fortemente
sentida na era das Luzes e nas Revo luções, cujas infelicidades lhes seriam mui-
Então? Recoloca~ os relógios' na hora e agir por etapas: esta é a posição tas vezes atribuídas. não somente enclausurando-as em casa, e excluindo-as,
de Sand, ilustrando um do~ grandes debates do século'sobre a força e o poder de certos domínios de atividade - a criação literária e artística, a produção in-
dos dois sexos. dustrial e as trocas, a política e a hlst6da - mas também, e ainda mais. cana-
A modernidade do século '19 foi ter colocado estes problemas que, de )izando sua energia para D doméstico revalorizado, e até mesmo para O socia!
certa maneira, ainda são os n.9ssos, nos djas de hoje. domesticado. A teoria das "esferas", de que Ruskin se faz o intérprete (O!
Queen's Gardens, 1864L é uma maneira de pensar a divisão , sexual do mundo
e de organizar racionalmente, na harmon iosa complementaridbde dos papéis,
das tarefas e dos espaços, reconciliando assim a vocação "natural" cOm a uti-
lidade social.
As -mulheres souberam apossar-s~ dos espaços que lhes eram deixados
ou ccinfiados , 'para desenvolver sua inAuência junto às portas do poder. Elas
\ enconlraram ali os contornos de uma cultura, matriz de uma "consdênci., de
r
,. Sortir. In: Histoire des femmes en O«ident. Sous la dir«tion de G. Duby et M.
•1' I
PerroL Paris: Plon, 1991-l992. t. IV: Le XIXe sikle, p. 467-494 .
42 G~rge Sand, Á propos de la fetllme dam la société politique. LeNTe tUa membres du 43 La Tribune des Fcmmcs, 2° ano, apud RJOT-SARCEY, Michêle. ParcouN de femmes '
Comité central, em 1848, Souven;rs et idéd(
,
.
,,
,
dans l'apprentissage de la
. d~mocratie. Th~se, Paris I, 1990.
\

278 279
"

P~rltl J Cnplrlllo 11
Mulhtrcs fia tldftrk s."

gêne r o".4~Elas tentaram também "sair" deles, para tel~"e nfil11lugar em toda a fim do século na Alem ..mha. Sob 'o termo de "mâterpjdade soçjal", assiste-se a
parte", Sair fisicamente: ,deambular fora de 5ua casa, na rua, penetrar em lu- uma verdadeira mobilização feminina. em t~do o Ocidente. Movimento de
\.
gares proibidos - um café, um comício - viajar. Sair moralmente dos papéis fundo, acelerado:pelas epi.d emias (cholém morbus, 1832), pelas guerras e seus
designados. construir uma opinião, passar da sujeição à independência: O .. - feridos, pelas crises econÔmicas e seu~ sem-trabalho.e agravado pe~ gravida-
que pode ser feito no público assim como no privado. Eis aquj algumas des- de'endêmica dos problemas urban os: a1coolismo,' tubercuJose, prosti tUiÇão,
tas e.x;cursões. .-: ,..'
,.
DA CARIDADE AO TRABALHO 'SOCIAL
NA CIDADE
Para este «trabalho de amor", a's mulheres não devem esperar nenhuma
A car,idade, antigo dever das cristãs, conduzira, desde há muito tempo, i· r~tribuição: fazer a limpeza da cidade é tão gratuito quanto fazer a limpeza da
as mulheres para fora de suas casas: visi ti\c os pobres. os prisioneiros, os doen- 'casa, Dos grandes filantropos, honrados, condecorados e homenageados com
tes, traçava, na cidade, itinerários permitidos e abençoados. A amplidão dos est~tuas, todos se lembram; foi esquecida a maioria da~ mulheres que, ao me-
problemas sociais, no século 19, transforma este hábito em exigência. Na filan- _ nos no primeiro terço do século,'não orga'nizava assembléias ou'redigia re.lató- ·
tropia, gestão privada do social, as mulheres têm um lugar de importância; rios. Catherine Duprat teve muita dificuldad'e. em identificar as 'Cfiguras mu-
('the Ange1 in the house" é também (: the good wOInan ",ho rescues the fallen", I das,,'da Sociedade de C.'lridad~ Ma'terna' de Paris, tão ativ~, entre~anto"duran­
e Ruskin considera esta ativi.dade como extensão das tarefas domésticas, Cat6- te a Restauração e a Monarquia de Ju1ho.~ Assim como escrevia Sylvain Maré-
licoJs e protestantes - os primeiros, mais diretivos, os segundos, mais propen- chal,"o n~me de \fll1<). mulher s6 deve ser gravado no coração de seu pai, de se u
sos à au tonomja,u - exortam as mulheres do mundo a asslimira situação ma- marido ou de seus filhos"·' ou de seus pobres, seus outros filhos. Na obscuri-
terial e moral dos mais desfavo recidos. dade de um voluntariado anôn~o, uma im~nsa enetgia feminina foi engoli-
As,sociações cada vez mais numerosas, ligas de todo tipo - pela te'mpe- da, cujos efeitos sociais são diflceis dç avaliar.
rança, pela higiene, pela mo ralidade ... - concorrentes às v:zes, solicitam seus No entanto, a mantropia constituiu, para as mulhêres, urn a experiência
esforços, em particular os esforços das mulheres s6s, pois se teme que sua ocio- não negligenciável que modificou sua percepção çlo mundo, seu sentido de si
sidade - e es terilid.ade - transforme-se em amàrgura. Desd,e 1836, a Reinish _ mesmas é, até certo ponto, sua inserção·pública. Elas iniciaram-se à associação,
Wesifalia11 AssociCltjo~ Qj Deaconesses for;na enfer~neiras protestantes. mão-cle- ~o ~ontexto, d~ agrupaméntos mistos com direção . masculina, e dep~is, fémi-
obra voluntária dos hospitais, creches, as ilos, ~tc.: elas são ma is de treze mil no ninos que elas acabaram por assumir. Como as Elisabethvereine das mulheres
, -
,
católicas alemãs da .Renãnia, partk
. ularmente precoces (1830), • Weibliscller
Vereitl fiir Armet1-tlnd Kratlkenpj1ege da protestante Amalie Sieveking ,e m
4.4 céYi-r. Nancy F. Tire BOllds of WOlflallhood, "Wonfluw's Sphcre" in New England,
/ 780-1835. New'Haven: Vale University Press, 1977: SMITH, Bonn,e G.LAdiesofrlte Hamburgo em t832,~' <rLandon Bible Women attd Nu'rses Missiotl de EÚen
Ceisure Class, r/le Bourgeoises of No.rtllertl France in lhe Nineteent/l Gentil"'" '-
Princeton: Princeton University Pre.ss, '198 1; trad. francesa , Lt.s Bourgeoists du Nord
(1850-1'914) . Paris: Perrin, 1989; VARJKAS. EJeni. Ln rbrolle des dames. Cenm 46 DUPRAT, Catherine. Charité et Philanthropie d Paris 'au XJ)(t sj~cle, These
d'ulle cQnscience féministe dans la Grlce du)axt sicle. These (Doctorat), Paris VlI, (Docto rat d'ttat ), Paris 1.1991. .
1988. - ~- ' . . 47 Apud FRAlSSE. Cenev icve. Muse de la raison. La démocmtie excIu$.ive et la différence
,
45 POPE. B,-C.~
BRlDENTAHL, Renate; 4~~z.
Claud ia (Ed ,) . Buomillg Visible. , des sexes, Aix~en-Pro~ence: Alin~3, 1989. p. 31i.
.
. ,
WQmelJ in Ellropeiln History,' 'Boston": Hb u ghto n Mi fflin Company, ' ( 1977) . 2' 48 FREVBRT,·Ute. Womefl in German History, From BOllrgeoís Emancipario'l to Sexual
ediç1o, 1987. ~ .:.\ " Liberation. Oxford: Berg Publ ishers, 1989 (ed. alemã, Suhrkamp VerIag, 1986).
c
",
,
280 , , 281
,
"
PIlIUJ Caplwlo 12
Sair
t .' MuI/rem /In rifiadc

White em 1859 ou a Clrarity Organizarioll Societyde Octavia Hill em 1 869 . ~' As A distribuição dos fundos passa por uma muta ção idêntica. A visita em
mulheres ca'ridosas,levadas, em maior ou menor grau) por seus confessores ou domicilio, destinada a localiz.1f os "btlns pobres': torna-se cada vez mais exi- ,
seus maridos •. cujos nomes elas ilustram desta forma, são sucedidas por mu-. gente. Ela se transforma em pesquisa, biográfica e familiar, cujos dossiês se em-
lheres mais independentes. geralmente solteiras ou viúvas, indignadas com a pilham na sede das.associações, em um verdadeiro arquivo da pobreza. As mu-
miséria fisica e moral,~e animadas por um espírito missionário. Octavia Hill •. lheres adquirem assim um saber social e um hábito, um conhecimento do ter-
mulher de negócios sensata e membro de numerosos comitês, concebe a fiJaJi- . reno, quase profissionais. Ainda mais porque os pobres são, então, seguid os,
tropia como uma ciência -destinada a promover a responsabilidade indi0dual; acompanhados; trata-se de mudar se us hábitos, raízes de seus males) e de r~s­
, 't aurar suas famíli~ deterioradas . .Mais do que os hospitais, feudo de um<\ Flo- -
seu livro, Our Common Land (1877), marcado pela ideologia liberal, expressa
uma fé otimis ta na iniciativa privada que ela prefere à intervenção do Estado. renee Nightingale ( 1820-1910), ou das prisões, onde se ilustram ~lisabeth Fry,
Co neeption Arenal, Joséphine MaUet ou Madame d' Abbadie d' Arrast, seu do-
Inicialm~nte baseadas em uma elite aristocrática, expressão distinta da classe
minió de predileção é a famUia, coração da sociedade, e sobretudo a dupla
do lazer, as associações, à medid{l que elas se multiplicam, drenam. um públi-
"mãe-fLIhos".
co de classes médias, preocupadas enl divulgar os preceitos da ecopomia do: :
Antes de tudo, as mulheres, que é preciso conhecer, educar e defender.
méstica pelo viés da caridade, segundo o' desejo de Joséphine Butler (Wo llla,,'s
Wor/c and Woma,,', CII/tllre, Londres, 1869) . O recurso às mulheres do povo,
, A Londo" Bible Womell Missiorr organiza teas ou motT,ers' meetings para minis-
trar noções de economia doméstica e de puerioultura e insuflar o desejo de um
eventualmente retribuidas, é às vezes sistemátkoi as Bible Women da London
I ~ interior cIea" e cosy: uma toalha de mesa limpa sobre a mesa do jantar, corti-
Mission são conve rtidas cuja linguagem e familiaridade (são chamadas PQr nas nas janelas. Por meio das donas-de-casa, pode-se esperar lutar contra o.al-
seus prenomes) são muito apreciadas. coolismo dos maridos e a vadiagem das crianças; elas são o meio da reconquis-
Métodos e objetivos ritudam paralelamente. No início, trata-se -de "fazer ta e o pivô da paz social.
caridade" através das o.bras; em seguida, de uma vasta empreitada de morali,. Mas a moralização não exclui a compaixão, e nem mesmo a revolta co n-
zação e de higiene. A coleta de fundos vai das esmolas recoUlidas no dreulo fa~ tra a condição atribuida às mulheres. Duas fi~ra s, sobretudo, suscitaram o·
. miliar e na vizinhança, aos milhões reunidos nas vendas de caridade QU nos , protesto: a trabalhadora em domicUio e. a prostituta. Cont~a as devastações da
bazaars (mais de uma centena por ano na Inglaterra, entre 1830 e 1900). Estas I confecção, em plena expansão influenciada pelas lojas de depârtamentos c pela
Ladies' sales eram um trabalho de mulheres. ex:tasiadas por manipular um di- - máquina de, costura, filantropos fizeram pesquisas e tentaram agir sobre o
nheüo geralmente proibido e mercadorias passivamente consumidas. Elas ini: consumo. As america,!l3s organizam ligas sociais de compradores, que uma
davam-se nos niecanismos co~erciais e empregavam grande imaginaçã<J. Sob- discípula de Le Play, Henriette 1ean Brunhes, introduz na Frailça, para respan-
- a cobertura da festa, ela~ invertiam os papéis e, às vezes, faziam passa r: uma . sabilizar os .clientes; ao reduzir suas exigências ou prog'r amar melhor suas
mensagem mais pOlíliCc1: houve bazaars contra o livre-câm bio. na época das, conlpras, elas evitarão, às operárias dos ateliês,de costUl:a ou de moda, aquelas
Coln Laws, e arrrislavery bazaars nas cidades america~las do Nordeste . .
longas' vigHias geradoras de trabalho excessivo e de retorno noturno para casa.
Bem recebida por Charles Gide, ativo coope rador protestante, esta ação roi
muito Criticada pelos economistas liberais, descontentes ao v~r as mulheres
49 PROCHASKA, F.-K. Women and Philant.1Jropy in 19t/l Centllry England. London: : imiscuindo-se nas sacrossantas leis de mercado e ainda mais, regulamentando,
Clarendon Oxfo[d Press, 1980: BARRET-DUCROCQ, Françoi.se. Modalités .de
reprodudiofl socia/e et code de lIIora/e sexueIle dtJ cItwes laborieust.S d Londres da~s através do consumo feminino, a pcoduçâó, apanágio viril. Feministas. sindica-
la piriode viCtorienne. These, Paris IV, 1987; ROSENBERG, Úlroll Smith. Religion listas, tais como Gabrielle Duchêne e 1canne Bouvier, criaram um Escri tório
anil rl,e Rise o[AmcriCQn Oty.lthaca: Co ni.ell University Press, 1971.
, '- do trabalho em domicílio, fortemente doc~ínentado, e foram a origem da lei
!.

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I ,
282 283
Alrr~ J ,... - ClpftldQ 12
Mull.tftf,.~ cll1nlk 5.lir
,

de 10 de julho de 1915 , instituindo, pela primeira.vez. controle do trabalho em Na Fra~ça, expe ri ências similares de ~ducação popular ~ão realizadas
domicílio e tnínimo de sál:irio: duas medidas que inauguram um novo direito . nos bainos proletários de Charon ne (a União Familiar de Marie Gahéry) e de
social.'" A filantropia, decididamente, deixava seu domínio, e ~s mulheres Levallois-Perret, bairro de trapeiros onde a revoltosa Marie-Jeanne Bassot, ca-.
saíam de seu círculo. tólica sodal, próxima do Sillon e influenciada por Jane Addams e pelo mode.
Quanto às prostitutas, das damas de caridade às feminlst~s radicais, de lo dos s~Nlemellts americanos, quer fazer da Residência Social O embrião de
Flora Tristan a J.oséph·ine Butler, elas fazem a unanimidade ~a compab.."ào fe": . uma nova cidade. Este movimento. no entanto, tem menos amplitude em ra-
minina, ou ao menos da terapêutica. Saint·Lazare, prisão de mulheres, e hos· . \ Zãó da tutela suspeitosa dos padres e das tentativas de apropriação pelà direi.
pital das portadoras de doenças vené.reas, é U1n local privilegiado de ação, so· ta; àpós a Primeira Guerra, grupos como 9 Redressement Françals (Reconstru-
bretudo protestante (tmilie de-Moniei-, lsabelle Bo-gelot e a Obra das liberta- ção Francesa) (Bardoux, Mercier), moQ.iHza~ "o exército dos voluntários" e
das de Saint-Lazare). Enquanto Joséphine Butler desenvolve uma ardente crú- . sobretud~ as mulher~s "operárias da caridade" para "fazer recuar a barbárie'~
oU: seja, o comunismo. O primeiro congresso dos Settlements em 1922, mostra
zada pela abolição da regulamentação da prostiruição, as sociedades filantrÓ-
... c1aramentt; este efeito de arregimentação de uma ação feminina que, no caso,
picas reúnem, "contra o vício", no Hyde PaIk, em julho de 1885,0 maior comí-
continua a ser reticente. 51
cio "moral" de todos os tempos: duzentos e cinqüenta mil pessoas reunidas em
Sobre as relações eJltre os sexos na cidade, a filantropia teve múltiplos
nome da pur:j,ty, contra o "tráfico dos brancas". Qualquer que seja a ambigüj-
efeitos. Às mulheres burgues·as, ela leva a descobrir um outro mundo, e para
dade de tais palavras de o rdem, elas <!:olocam a questão central do \corpo das
algumas delas foi um choque. Elas iniciaram-se na gestão admjnistrativa e fi-
mulheres e de sua apropriação mer~antil '
nanceira; na comu.rucação, e sobretudo na pesquisa. Flora Tristan (Promenade.s
Na mutação da filantropia em "trabalho social", os sett1ements tiveram
um papel decisivo. Não se trata mais somente de visitas episódicas, mas do es-
,j dans Lolláres, 1840). Bettina Brenlano (Le Livre des pauvres) foram as primei-
,
.
.ras repórteres da miséria." "Colocai-vos no regime da pesquisa incessante",re- '-
tabelecimento, em tempo integral, nas terras 'da pobreza: periferia, balrros . -, /
comenda Henriette Jean Brunhes (1906), '
ampliando
.
- e banalizando - seus
afastados, "zona': east end de todas as capitais. De inspiração protestante ain- procedimentos. Assim, as mulheres acumularam saberes e práticas que lhes
da, o movimento começa na· Grã-Bretanha, coo) o casal Barnett, em TOyt!bee conferiram uma função de peri4lS em potencial. Através do modes to pessoal
(1887); outros se seguiran1, ali.imados por solteiros, mudando de ambient~1 às 'remunerado da Londoll Mission ou dos settlements, por meio dos "rel.atores de -i
vezes duplas de irmãs ou de universitárias (por exemplo, The Womel1'~ U1Jjve~r-_. t ambos os sexos" instituídos pela lei francesa sobre QS tribunais para ·crianças
sity Sértlement) .que prolongav~m a.ssiin as comunidades esboçadas no colégio. em,l912/~ ou ainda por meio das primeiras mulheres inspetoras d~s mulheres
Marlba Vicinus evocou o espírito convivial e as dificuldades destes grupos, J~~:.....
_. n<;ldos pela instabilidade permanente e seu aspecto emancipado r. Livres de cir- 1 (nas prisões, escolas, ateliês;fábricas), das têm acesso a funções de autoridade
e ao trabalho social em 'vias de profissionalização: Ensinar, cuidar, assistir: est'!-
cul,IÇão·t:·'de comportamento,'estas mu1heres - que tam,bém eram apóstolas da.
[amilia e da casa - recusam o destino conjugal tradicional e se compara,m a
52 FAYET-SCRlBE, SYlvie. Les associatio ns féminmes d '~ ducation populairc ct dj~c­
se~s irmãos combatentes. do Império. Os slums são sua África e suas 1ndi~s.JI:
, r·
" tion sodale. De Rerum Novarultl (1891) ao Fr~nt Populaire. Thm, Paris VlI, 1988.
53 HOOCK-DEMAREE, Marjc-Clai~ . Beffina Brentano YOtlAnim ou la mise eM a:llvre
-" d'une vic. Th~ (oOctorat d'ttat), 1985. PERROf, M. Flora Tristan cn9u~trice. In:
50 WlLllAMS; Rosalind H. Dretlnl Worlds: Mass Consumption in Ute Nineteenth-
MICHAUD, Stq,hane .( E,d.). Flom nistan: un fubuleux destino Dijon: Presses
Century Fr_a~ce. Berkley: University of C."lifornia PrtSS, 1982.
Universitaires, 1985.
, ~
51 V1CINUS, &iartha. ltldependcnt Women, :Work and Cotmmmity for Single: Women, • I ,

, . 1850-1920. LOndon: Virago Press, 1985, I


,
54 PERRET, tv1arie-Af!toinette. Etlqlléte sur renflince "en dt1nger moral". Maitrise, Paris
VU. 1 989~

'.

284
:
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M IOIIICI"f!S 1111 cidmlc
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••

tripla missão const(tui a base de "profissões femininas" que levarão, por mu)-
to tempo., a m arca da vocação e do voluntari ado. s,
que os sa int-simonistas hav iam colocad9 em evidência. "Gosto de agir sobre as
m assas, diz Eugénie Niboyer, porque é ali que sinto toda a minha força, Sou
••
Pelo campo social, as mulheres têm .reconhecida uma competência que-
legitima.seu desejo de autonomia administrativa. "Pedimos que nos co~fiem o
.l apósto la'~ " Em nome dos excluídos, dos fracos, das crianças e, antes de tudo,
das' outras mulhe~es, elas reivindicam um direito de representação,.local e
mesmo nacional. O local é s~u hori~nte verdadeiro. aquele onde s~as redes,
••
••
que é necessário p'ara esta missão tão especial': sugerem, em 1834, as senhoras
da Sociedade de Carid'ade Materna, "Homens administrariam meUlOr estabe- formais e' informais. agem mais eficazmente, sobretudo na primeira metade do
lecim entos e somas co nsideráveis; mas é àquelas qu e sa bem ded icar-se e su- século. Em Utica (Noya York), cidadezinha presbiteri ana sacudida por rcvivals
portar os piores procedim entos, sem deixar de amar, que cabe persuadir as
classes inferiores a subm eter- s~ a uma vida rude".56 A modéstia do tom se
transforma em crítica radical e em firme exigência para Octavia HiU ou Flo-
ardentes, existem , em 1832, qU3:renta associações femininas (Maternal Àssocia-
tions, Daugtl,ers ofTemperance, etc.), dedi cada s principalmente à proteção das
jovens solteir as, ameaçadas pela prostituição e o es tu pro, e operando C0l110
••
ren ce Nightingale. Fortaleciêia por sua experiênci a na guerra da Crim éia, es~a
óltima empreende.a reforma não somente dos hospitais, mas do exé rcito, "o
priméiro lu gar em que o investimento iniciarde muit~s mulheres lhes penni- '
uma verdadeira polícia sexual.'" As' ~ ufragi stas anglo -saxãs apóiam-se neste
tipo de poder para reivindicar o direito de vo to, inicialmente no nível munici- ••
••
pal. Em m enor grau, as mulheres intervêm no nível legislativo, como grupo de
tiu ter acesso à ciência e ao sab er". ~' 'pressão, pela associação ou pela petiçãÇ> (di ~ó rcio, proteção do trabalho, etc.).
Alegando sua aptidão para o "acordo sacia]", as fihlOtropas in tervêl')1 no Elas se tornam assim protago ni stas da êidade e do Estado.
habi tat e nos bairros, dos quais têm um co nhecim ento concreto. Elas con tes-
tam a gestão masculina. As burguesas do Norte da França entram em conflito
, SI
Desta f!laneira, elas suscitam O interesse renovado dos hom ens, prontos
a utilizá-Ias, mas ,ansiosos com suas prerrogatiVas, A medida em que o paupe- . ••
••
com os co nselheiros municipais que llies recusam os subsídios pedidos. ,. As ri smo se transforma'eJll "questão social", a intervenção masculina se faz rr.ais
dam as inglesas - como Lol!ise Twining - ~m, campanha co ~tra os adminis- premente. O patron~to, obra do Pai, não poderia ser deixado unicamente à be-

.:
trad ores das Workhouses, sistema cuja desumanidade anônima elas denun- \ nevolência femi.JVna. De Gérando (Le Visiteur du pau~re, 1820) já desejava ver,
ciam, e empree; ndem a reforma das Poor Laws.
Ministras dos pobres, sobre os quais exercem também um poder hão ,
desprovido cte: ambigüidade e de conflitos de classe, elas se consideram media- "
entre os visitantes, mais homens engaj~dos na vida ativa e ca pazes de arranjar,
trabalho. No fim do século, as grandes figuras da filantropia são masculinas:
Barret, Booth, fundador do Exército da Salvação, Henri ~unand, fundador da

..
dora s daqueles que, à sua imagem e sem elh ança, não têm voz ou vo to. Entre--
mulheres e proletários, c:xiste um vínculo simbólico, ou até mesmo orgânico.
Cr,u z Vt:rmelha, Max Lazard, organizador da primeira conferência inter nacio-
nal do desemprego ·( 19 10), etc. A gestão do social passa das mãos dos politicos ••
"
sr. i .
IÇN.IBIEHLER, Yvonne. Nous les assistantes sociale.s. Paris: Aubier Montaigne. 1981;,
Id., e diversos.. Corm!ttes el blouses blallche.s. Pa ris: Hachette, 1984.
às mãos dos.profiss ion~is: médicos, juristas, psicólogos, prontos a transformar
as mulheres em auxiliares isolada's nos em p~egos subalternos:' enfermeiras, as-
sistentes sociais. Começa um outro tipo de luta, pela formação profissio nal e
••
56 .Apud DU~RAT, C. op. cit o
/ 57 SM ITH , Bonnie G, Cltallging Uva. WOllletl i" Europeml History .sinte 1700.
Lexington: Toronto, De: Heath and Company, 1989. p, 2 18; SUMMERS, Anne. ' "
pelo reconhecimento de diplomas que ga rantem um sta tuS. Assim se deslocam
as questões em jogo. ••
Pridc: and Prejudicc:: ladies and Nurses in the Crimean War. History WorksllOp
!ourtial, 16, p. 33·57, aut. 1983, Eyu Yours, Florence N iglltingale Selected letters.
Ma rtha Vicinus c:t Bea Nergaard ~. London: virago. 1990. ,
59 Apud RlOT-SARCEY. M. op. cito(texto de 1831 ).
60 RYAN, Mary P. T he power of Women's networks. In: Sex and Class ;11 Women's
•••
••
~

58 SMlTH, Bon~ic:. Ladies of the. uisure C1a!S..77/e Bourgcoises of Nortlrern Fmnt:e. in History. Judíth R. Newton , Mary P. Ryan et }udith R. Walkowitz éd. 2. ed. l.oniJon:
, . tfl~ 19th Century.,Princeton: Princeton U,~jyersity Press, 1981 :

"
Routledge and Kegan, 1985. p. 167· 186.

"

286 287 ••
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!•
Pdrfr: , ClIpltLllo J1
MjjUI/~ru,./.I ddNlc SoIi,

A.ftlantropia t~ve ainda outros efeitos. Ela estabeleceu cQntatos entre as do.6-I Não há nenhum out.ró reconhecint en~Q para ela além do fato de ser mãe

•• muUleres das classes médias e contribuiu para criar, da Nova Inglaterra a Ate·
nas,..o embrião de uma "consciênáa de gênero", muitas v~es matriz de uma
con:;ciência feminina. Segul'!.do CaroU Smith-Rosenberg, as New Women de
ou dona-de-casa. A "Mãe dos companheiros': ou Mother Jones- aquela irlan-
_desa organizadora do sindicalismo mineiro nos Estados Unidos"- são as úni-
cas p;e;enças toleradas pelo movimento operário que deseja ser masculino

•, 1880-1890 são as filhas das New Bourgeois Matrons das décadas de 1850-1880," até mesmo em seus símbolos: torso nu"bíceps desenvolvidos, muscula t4 ra


. /
Este cadinho de identidades foi, nos limites do político e do social, do público poderosa. o trabalhador de força - o homem de mármore - substitui, na ico-

.'••
e do privado do religioso e do moral, um laboratório de experiências. nografia, a dona-de-casa com sua cesta ..s Nas passeatas, cada vez mais ritua-
lizadas e respeitáveis, desconfia-se dã violência e da fantasia das mulheres;
elas são toleradas, evidentemente, e mobilizadas, mas em seu Jugar. como
DO LADO DAS OPERÁRIAS porta-bandeiras, 'onlamento, ou cobertura protetora." Até m.esmo a memó-
ria as apaga: nas aUlobiogràfias militantes, essencialmente masculinas, trata-
Na cidade, -as operárias são duplamente negadas: como mulheres', por se pouco das mães e das esposas, geralmente apresentadas como choronas
serem a antítese d:J. feminilidade (':operária, esta palavra tmpia", diz Miche: maçantes, ao passo que se fala muito mais dos pais, vistos como herói.s por
seus filhos.
let); como' trabalhadoras, pois seu salário, ' est~tutariamel1~:: inferior ao do
As mulheres se retiram - como grupo - da r4.,a com o refluxo das revol-
homem,~ é considerado como um "complemento" ao orçamento di.! família,
tas de subsistência., grande forma de protesto das sociedades tradiciohais e de
que define sua tarefa e seu destind. Setores produtivos inteiro.ilhes são fecha-
regulação de uma "economia moral" da qual ~ram o barômetro. Através do
dos. E no século 20, a identidade operária se constrói segundo o 'modo da vi-
mercado e da exigência da taxação dos vlveres, elas tinham acesso à politica lo-
rilidad.e, tanto no nivel do coúdiano e do privado, quanto do pú!>lico e do
cal e até mesmo nacional: n,os d.ias 5 e 6 de out!lbro de' 1789, as mulheres do
político. P. Stearns sublinha o agrav,a mento das relações entre os sexos no ca-
mercado. das HaUes, ao trazerem de Versalhes pa,r a Paris a família real, modi-
sal operário inglês do fim do século.u Dorothy Thompson mostra como, na
ficam fundamentalmente o espaço do poder. Ainda muito numerosas na pri-
época do c'!itismo, as mulheres se retiram do espaço militante; sua voz se en-
meira·metade do século 19, com uma onda que culmina em 1846-J848, em to-
fi'aquece nQs comícios onde logo até mesmo a sua presença parece insólita, a

."
dos os países europeus, estas revoltas se rarefazem em seguida, com a melhora
ponto de serem exc1uida'S dos pubs e dos inns, a partir de então, lugares de
, '-" d?"âhaste~i~ento. Elas têm, além djsso, a lendência a se "13Sculinizar. pois os

••
pura sociabilidade masculina. u COIl''! muitas variantes, ,a evolução é, em toda operário~ de fábrica e, o sindicalislllo, passam a ocupar um lugar crescente.
a parte, idêntica. Objeto d:e violência na selva-urbana e freqüentemente na . Durarit~ a crise da "car,estia" que afeta as wn3$ ind~striais da Europa Ociden-
família, de assédio sexual no ateliê, o corpo da mulher do povo é aproprIã-
I

•• 7
I
61 SMITH-.ROSENBERG, C. Di,order/y COlldu", Vi,io", of g'I/der in Victoriall
Ámerica. New York: Oxford University Press. 1985. p. 176-177. .,
64 TOMES, Nanq. A torrent of abwe: crimes' óf'violence between working-c1ass men
and women in London (1840-1875). 17Je JOl/rnal ofSf'cial History, 11 /3, p. 328~~4S,
printemps 1978,

•.. , 6Z·'STEARNS. Peter. Working-dass women in Britain, 1890-1914. lo: VIClNUS,


Martha (Ed.). SuJfu and Be Still. Women in rhe V'tcroriatl Age. ·!..ondon: Indiana
Unh'ersity Press, 1972. p. 100- J 20. ~.
65 HOBSBAWM, Eric. Sexe. vetements et politique. Actt!5 de la recherche en scie,!ct!5
sociales, 23, 1978,
<>6 Ludwig-Uhland Institut. da Universidade de Tubingen. Quatld lt!5 Allemands

••
63 THOMPS<?~. Dorolhy. Women and liineteenth Century Radical Politics. A lost appriretlt A manift!5ter. Le plJbrome.n~ cu/curel dt!5 "mallifestarions pac/fiques de r::ue"
'dimension, lo: MITCHELL,}ulieu; OAfLEY, Ann (Ed.). The Rights and Wrongs 0$ " durant les luNcs pour /C suffmge Jltliversel en Prusse, Exposição, maio ~junho de 1989.
Women, New York: Pengllin Books, 197t). p. 112-139. " Paris, J989 (cf. " les fcmmes'~ p. 48·S5)~ ,
I ,

:• 288
-- ",

'. 289 .
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tal em 1910-1911, multidões de milhares de donas-de-casa (que na França rei- rios de poHcia, por exemplo), o número de mulheres nos comicios ou nas pas-
vin dicam a herança de suas ancestrais de outubro de 1789) pilham os merca- seatas ipdicà o grau de desco'ntentbmento do grupo em conflito.
dos e taxam os produtos aos gritos da Internacional da manteiga a quinze vin - As relações entre sexos. nas greves mistas ·mereceriam uma ate~ção es-
tém; Ç>rganiuQ1-se em ~ligasn q ue boicotam os especuladores e sofrem pesadas r pecial; infeli2mente nós as conhecemos mal, P?is as fontes têm a tendência a !
condenações;
. no entanto, os sindicatos criticam "este movimento instintivo,
~
confundir hom~ns e mulheres na pseudoneutralidade do masculino ("eles");
desordenado, cego" é tratam de transformá-lo em Urevolta masculina"." Mes- durante negociações, sacrificam-se facilmente as reivindicações proprianlente
mo roteiro, em 1917, em Amsterdã, durante a Potato Riot, sutil mistura de for- femininas e a desigualda~e do sa.lário é raramente questionada.
mas antigas e novas; o Lrder..do Df:ltclr Social Democratit Party exorta as donas- As greves de mulheres, por sua vez, são ainda uma outra história: urna
de-casa que pilharam duas barcª,ças a serem substituídas por seus maridos e fi- rebelião insuportável para o patrão habituado à sua docilidade; para a família,
lhos, incitando-os à greve." Sindica!istas e socialistas compartilham, em suma, uma contrariedade irritante, acentuada pela habituill Juventude das grevistasi
dos pontos,de vista ~os psicólogos das lnultidões: temem sua feminizaç~o, uma indecência para a opinião pública, que oscila da condescendência indul-.
11· ch eia,de violência." gente - "estas pobres cabeças ocas" -: ao .subentend ido sexual;_uma deson;:lem

I ·Gesto de produtores conscientes e organizados, a greve é ato vir il e cada '


vez ma is racional. A violência é, ali; com umente,contida e fin alizada, e, conse-
no espetáculo costumeiro da submissão feminina; um escândalo, em swna. O
mundo operário não gosta omito das greves de suas mulhere·s, e ainda menos '

I.• qüentemente, o uso das mulheres. As esposas dos grevistas têm, certamente,
seu papel: nos fornos das cozinhas ;coletivas e das "sopas cornu nistas", forma
original de socorro no início· do s.é culo 20, no~s "saraus cantantes" de so ljdarie-, I
das greves de suas filhas, e as leva a retomar o trabalho, às v_ezes brutalmente:
aquele marido ' ~!i oso leva, à força) sua esposa à fábr ica e lhe inflige, na entra-
da, um corretivo público (greve das refinarias ·de açúcar de Lebaudy, Paris,
dade, ou nas passeatas: ardentes para apupar os patrões e sobretudo 9s "ama~
relos""' .70 As mulheres de ~ineiros, as mai.s integradas à comunidade, conju-
I 19.13). Os sindicatos apóiam as mulheres com rdutância; em seus estatutos, a
taxa de auxílio garantida em caso de greve é nonnalmente inferior para elas,
.
gam todos os modos de ação .coletiva, cujo repertório um tanto ,épico foi des- . supondo-se que nã9 são chefes de famUia e que, de qualquer maneira, comem
cri t~ por um Zola fascinado (GerminaI, 1885). Para os observadores (comissá- a
,menos! As greves de mulheres ameaçam sociedade patriarcal que não lhes re-
conhece mais a'faculdade do direito ao trabalho.
,
67 FLONNEAU, Jean-Marie. Crise de vie chêre et mouvement syndical (1910-1914). Pod"e-se medir a força da dissuasão. Ousar fazer greve é enfrentar a opi-
Le Mouvemettr social, juil./sept. 1970. nião pública, sair da fábrica, é comportar-se como mulheres públicas. Para
68 DEKKER, Rudolf M. Women in Revolt, Popular protest and its social basis in . tanto, ê'prec~so a coragem de um belo dia de primavera, são -necessárias cir-
Holland in lhe seventeenth 3nd eigh teen th centuries. Tlteory and Socicty, 16, p. 337:.....: "<
cunstâncias particula res: a saturação causada por uma gr~cinha a'mais, a exal-
J362. 1-98,7; THOMIS, Malcom 1.; GRJMMETT, Jennifer. Women in Protest 1800- )
tação de uma "provocado'ra» que o público transformará ine~tavelmente em
1850. London: eroom Helm. 1982; TILLY, Louise A, Pnths of ~rol etarianiz."ltion
Organization of ,Production Sexual division of Labor and Women's Collective megera ou virago: comp aquela gorda operária de Bermondsey descrita por
Action, Signs 7. p. 401 -417.1981; KAPLAN, Temma. Femaleconsciousness and col- Mary Agnes Hamilton (Mary Macartllllr, Londres, 1925) que parece ter sido
lective action: the case of Barcc.lona, 1910-1918. Signs 7, p. 564 1 printcmps 1982.
I vista, certa manhã de agosto de 1911, à frente de um exército de trabalhadoras
69 BARROWS; Suzapnah. Miroirs déformants. RéJ1e:âo1lS sur la foule en France à Ia fin
em gre~e, mulheres com cheiro forte, cobertas de parasitas, "vestidas com exa-
du XIX! siêc1e. Pari~: Aubier, 1990 O- edição americana 1980).,
ger,?, com estolas de plumas e casacos de pele'~
Membros de organizações smdicais que tinham como sfmbolo uma flor amarela.
criadas no final do século 19, contra os sindicatos operários, ou os o~rários que se Excetuando certas profissões, como os tabacos, a propensão das muUle-
recusavam a entrar em greve. (N.T.) . res à greve era fraca: na França"entre 1870 e 1890, elas reptesentam 4% dos
70 ·PERROT, M, Le.s Ouvriers en greve (I87J-~89O). Paris: Mouton, 1974. t. J. , grevistas, ao passo que formam 300/0 da mão-de-obra. Suas greves, geralmen-

290 291

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Alrt. J o.plllllo 12
MI411rtm 1111 rídadc ~j,

te; defensivas, súbitas, pouco organizadas e meqiocremente argumentadas, sio o sindicalismo é menos ainda uma questão das mulheres. Cotizações,
mais protestos contra a duração excessiva e os ritmos arrasadores do trabalho, leitura de jornais. participação em reuniões vesperais ell) cafés, são alguns dos
a falta de higiene, uma disciplina dura demais ou arbitrária. "Elas sofrem há obstáculos. Mas há ainda outros fatores: o duplo 'Problema do direito ao tra-
muito tempo", dizem as ovalistas de Lyon (1869). De curta duração, esta coa-o balho e da representação. G:omo, em nome de quê. as mulheres poderiam vo-
lizões fracassam freqüentemente, tar? E para quem? Os homens não seriam os representantes naturais da comu-
/
Elas não deiXam de ser válvulas de escape. ocasiões únicas de "saída" e nidade familiar à qual supõem-se que elas p_ertencem?
de expressão da quais as protagonistàs se lembrarão mais do que o movimen:'· Nos setores de emprego viril, as operárias são proibidas de ter sindica-
to operário. Algumas delas foram grandes acontecimentos: greve das ovaListas tos (alfaiates, operários da livro)) sobretudo na Alemanha onde dominam as
(Lyon). de que a li In!ernaciol)al 'se apropriou, negando a Philomen,e Rosalie concepções de LassaUe fundamentalmente hostis a seu trabalho. Em outros lo ... ..:.
Rozan, Hder do confl.ito, qualquer poder de representação no congresso da Ba- cais, os sindkatos masculinos as acolhem , com reticências, e depois com mais _
siléia; greve das fosforeiras de Londres (1888) em que, pela primeira vez, as benevolência quando, no inicio do séc.uJo, eles tornam consciência do que está
mu~eres fazem greve senfpa~r pelas t~ade-ll1Jions masculinas, dirigindo-se em jogo, deplorando até mesmo uma passivjdade que eles fIZeram tudo para
a Annie Besant para formar um ~indjcato e levar ao público as suas reivindi- criar. Pois eles não fayorecem nem sua palavra (no Norte, por volta de 1880,
cações e, ainda por cima, conquistá-Ias; greve das mulheres tip6grafas de uma mulher deve enviar um requerim.ento por escrito com este fim, por meio
Edimburgo que, em um riotável memorando - We women - afirmam, em de seu pai ou de seu m~rido!), nem sU,a responsabilidade. Algumas mulheres
nome de sua competência e da igualdade. seu direito 'a imprimirj greve de vin- decorativas na.tribuna, poucas penn.anentes, ainda menos d~legadas nos con-
te mil CllStureiras de espartilhos de Nova York (1909), particularmente rica em gressos, locais de poder. Mesmo nás fábricas de tabaco e fósforos, onde as mu-
episódios, bem conhecida graças ao diário-reportagem de Theresâ Malkiel/' lheres constituem dois terços 'da mão-de-obra, os responsáveis são majorita-
Na rua, os operários temem squs alegres excessos - cantos, danças, auto- ri~mente homens. Daí as fracas taxas de sindicalização feminina (raram~te
.de-fé - ligados à sua juventude e às suas práticas culturais. No esp~ço proibi- mais de 3%) .
do do comkio1 elas descobrem a embriaguez da palavra e da comunhão. Nos As primeiras iniciatiyas vieram freqüen temente das mulheres exteriores.
~muros, colam carta.zeSi na imprensa, publicam seus rnanifest~s, conquistando ao mundo operário, engajad,..as no movimen'to associativo e que viam na união
assi~ uma parte do espaço público, Inexperientes, começam por solicitar o e na ,mutualidade um meio de:. auto-educação tanto quanto de reivindicação.
auxílio de seus córripanheiros; mas progressivamente, elas se. irritÁnt com sua--- Louise Otto e seu Allgemeiner Deutscher Frau,.enverein (Leipzig, 1865), Emma
tutela e se ~oltam para .outras muUleres socialistas ou, mais raramente, fem i- P<;lterson e a Women's Tradc UnioTl League'(1874), Jânet Addams e a New Wo- -
nistas; Annie Besant, Eleanor Marx, Beatrice Webb. Louise Qtto. CLara Zetkinr mcn's 'frade Ul1jon League (Bê)sto n, 1903), Marguerite Durand e os sindicatos
Paule ~ck, Lóuise Miche,l, Janet Addams, Emrpa Goldman, etc.• intervê"m que apóiam La Fr:onde, Marie-Louise Rochebillard CécHe Poncet e os «sindica-
em suaS lutas. Esboça-se, às vezes, não sem dificuJdades, u~a "frente éomum" tos livres" da região de Lyon são todas exemplos de m ulheres conscientes da
das mulheres que inquiet.a ainda mais os responsáveis do movimento operá- exploração específica das operárias e da àbsoluta necessidade do caráter;não
rib, se tenta instaiar-s~ na longa d,uração do sindicalismo. misto de sua organização, Qualquer que possa ter sido s~u "maternalismo':' elas
favorecerám o surgimento de militantçs operádas que soubetam conquistar
sua autonomia.
7 l AUZIAS, CLaire; HOUEL, Annick. lA Gm-e dei' ovalistes, Lyon, juir!-juj~et 1869.
Paris: Payo~, 1982; REYNOLOS. Si:m F. Britar!nica's Typesetters Womefl Compositors Não sem choques, Pois os conflitos eram inevitáveis, com as mulheres
ir! Edinburglr. Edinburgh: Edinburgh University. , Press, 1989; Theresa Malkitl. . também. A "consciência d~ gênero" se' desfaz diaryte das rivalidades de poder
fOI/mal d',.me gré"isre. Présenté par Franfo,íse Basch, Paris: Payot. 1980. , e· as hierarquias s~ciais ... As operárias censuram as "burguesas" por não as
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292 293
Pm1, J Cllplllllo 12
Mulllt."U mi cidadt Stl;r

compreenderem, em matéria de legislação social: na França, no início do sé i feminista de certas mulh eres socialistas (Louise Saumoneau) na França; Clara
culo, elas são favoráveis a uma proteção que ~s feministas critica~1 como dis- Zetkin contra Helene Lang: ~ Lily Braun, na Alemanha),·seu abandono do su-
criminatória. 12 Durante a greve das vinte mil, as militantes da costura - Ro.se fragismo. O antagonismo f~i particularmente vivo na França e na Alemanha. 7S
Schneiderman, Pauline New"r!lan - criticam as ricas sufragistas novJ-iorqui- "\ Na Grã-Bretanha, onde a sociabilidade feminina era mais desenvolvida e o su-
nas - Ava Belmont-Va.nderbilt, Anne Morgan - por seu gosto pelo voyeuris- fragismo especialmente 'forte, a situação era diferente. As tecedeiras de algodão
mo miserabilista e-pela publicidade. «A brigada dos casacos d~ vison" foi as-
peramente recolocada em seu lugar. No fundo, diz Emma Goldman, o acesso 1 do Lancashire, muito sindicalizadas" são, ao mesmo tempo, sufragistas mili-
tantes. Desviando, em seu proveito, o sistema filantrópico das visitas domici-
de Anne Morgan à presidência dos Estados Unidos mudaria alguma coisa na
liares - o- mesmo das Bibte Wo~,en - elas conduzem, nos anos 1893-1900, uma
condição operária?
E também, as [adies co nsideram raramente as mulheres do povo como
.," ardente campanha de
~
p~tições e reúnem perto de trinta mil assinaturas de
.
operárias que suas delegadas levam ao Parlamento. N
suas iguais,·mas pensam nelas -sobretudo como suas domésticas potenciais. Du-
rante a guerra da C.riméia, na pequena tropa de voluntárias pilotadas por Flo-
rence Nightingale, ladie"s e nurses não param"'de brigar; as segúndas, que se (;OJ1-
sideram enfer meiras, assalariadas e iguais, recusam-se a fazer o trabalho do-
o ALARGAMENTO DO ESPAÇO: MIGRAÇOES
méstico das primeiras, que, além de "tudo, pretendem controlá-Ias até mesmo E VIAGENS
• em seu tempo livre. Daí uma severa chamada à; ordem de Florence:"~ preciso
,.. que elas compreendam que continuarão exatamente na posição que- tinham na "Toda mulher que se mostra se desonra", escreye Rousseau a d'Alem-
Inglaterra. isto é, sob a aut9ridade da Senhora SuperiJltendente ou de suas ad- bert: Ainda mais aquela que viaja! A suspeita pesa sobre os 'deslocamentos das
juntas'~7) A questão da domesticidade foi um constante pomo da discórdia en- mulheres, e sobretudo~das mulheres sós, Flora Tristan que, durante sua "volta
tre as mulheres, como se viu n·a.França durante o Congresso de 1907.'4 da França", .sofreu este opróbrio - no Sul da França, diversos hotéis recusam-
Estas tensões sociais são redobradas pela questão das raças e da§ ~t­
se a réceber as mulheres sozinhas por;: receio da prostituição - escreve um
nias. à antagonismo entre mulheres wasp e mulheres judias e italian.as ab~a
opusculo, Né~essité de faire un bOIl accllei/ aux femmes étrangeres (1835) (Ne-
a Wome,,'s Trade U"ion League e na greve das vinte mil, os contrastes cultu-
cessidade de bem acoUler as mull,eres cstrangeiras)-onde preconiza a formação
rais explodem. .
de uma Sociedade para assisti-Ias. Dotada de uma sede e de uma biblioteca,
O movimento operário - sindical e socialista - tem a capacidade de su-
·-onde se p·oderá ler jornais, ela terá como divisa: "Virtude, Prudência, Publici.-
, divergências e recusar às mulheres, como tais,
blinhar . o clireito de repres~ntar~
- .as operárias: As mulheres são cúmplices da Igreja (argumento francês) e o fe- dade'); as·sócias usarão uma fita verde bordada em vermelho, em sinal de re~
min'ismo é "burguês" em sua essência, Eis um a~mento apropriado para im- conhecin1entO j elas terão, entretanto, direito ao sigilo. necessário para sua· pri-
pedir a "frente de sexo", sempre suspeita de traição. Dai vem a violên'cia anti-
I · . 75 SOWER~INE, Charles. Les femmes tI Je socialisme. Paris: Presses de la Fondation

nationale des Scienccs Politiques. 1978; WALLE, Mariann~. Contribution ~ I'his·
72 LIEBAULT, Nathalie Chambell:md. La durée et "aménagement du temps de trava i! roire des femmes allemandes entre 1848 e 1920. à trovers Jes itiné:raires de Louise
des femmes. de 1892 à !'3ulwdes conventions colJectives. These droit, Nantes, 1989. Otto. Helene Lange, Clara àtkin et. Lily Braun. Thesc Univcrsité Paris VII, 1989.
73 Carta (XlI 1855), citada por SUMMERS\ Anne, op. dt., p. 48. 76 LlOOfNGTON. Jill. Women corton worktrs and the suffu1ge campaign: the radical
74 FRAlSsE, Genevievc. Femnle5- roures lIIains. Essai $lIr le servia domestique.. Pari$; suffragists in Lancashire 1891 · 1918. In: BURMAN, Sandra (Ed.). Fit Work for
$f:uil, 1979. p. 3 et seq. · \ WOIIICI!. London: Croom Held. 1979. p. 98-112 .
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VeJcy: projeto que prefigura os "Iares",' multiplicados na segunda·'metade do sé- no s tecid os ,o seu objeto preferencial. Mhs também , elas eco'no mizaul, cons-
cujo pelas as~ociações e pelas ligas, sobretudo protestantes." tituem um dote para um c3.samento mais bem esco lhido e aclimatam-se à
No entanto, as mulheres participaram amplamente da mobilidade que, cidade.com uma engenhosidade que detecta suas virtualidades. A necessida-
com a aj uda do desenvolvimento dos transportes, tomo u a' sociedade ociden- de que se te m delas, torna~as mais exigentes; a criada de bom coração desa-
ta], sobretudo após 1850,'Migrantes
r
por• necessidade econômica ou pOUtiC3. ,parece diiJnte das cama re iras desenvoltas - come,> a Juli ette de Qctave Mir-
elas foram também
- Viaj antes por obrigàção e p ...OI escoll;ta,
' .
o que nã o deix:ou de beau" -, ou as einpregadas domésticas,

insolentes, ptontas a "jogar a toalha",
. I
" ter co nseq9ências sobre sua visão de mundo. a demiti f-se. Antes de se ftxar na dep'endência d e Munby, se u patrão, Han-
, nab CuUwick muda incessantemente d!! lugar, como ela' conta em s~u diá- I
rio; seu caso de ' f iada desposada, ma s submissa aos caprichos sexuais de
MIGRANTES DO INTERIOR
1 e
"Massa", nunca reconhecida pela família do amo, mostra os limites da li-
, ' bera ção ser vil. lO Jeanne Bouvier, vinda para Paris co~ sua mãe, em 1879, é
Nos movimentos p endulares que, na França por exemplo, caracteri zam He um a surpreerldente mobilidade, assim como l}déla'ide Popp em Viena
inicialmente as migrações internas, são os homens que p~rtem -Eara os cantei- (Áustr ia). Por definição, é verdade, es tas mulh~res que "se tornaram" algo
ros de obr.as ou para as pequenas' profissões urbanas. As mulheres ficam nos (Jeanne Bo uvier organiza suas Mémoires em to rno de seus três "devires":
vilarejos,$uardiãs da terra que elas exploram e das tradições, a ponto de pa- sindicalista, escritora, feminista) tiveram de se mudar. O deslocamento,
recer arcaicas aos que.reto rnam da cidade: no vilarejo de Martin Nadaud, na condição nec:;essá ria , certamente, mas não suficiente, para a mudança e a té
Creuse, a velha contidora de hist(>rias se cala na vigJLia ~onopoLiz.áda pelos mesm o para a liberação, indica uma vo ntade de ruptura quc_cria as possi-
relatos dos jovens.pedreiI<?s aureolados J;>elo prestígio da capital." Mas o êxo-, bilidades de um futuro.
do rural provoca a partida de famUias inteiras. O florescimento do ,trabalho As migrantes rurais, sobretudo as empregadas domésticas, foram me-
doméstico, sobretudo ligado -à demanda aume,ntada das classes médias, o de- diadoras culturais das modas, dos consumos e das práticas urbanas. inclusive
se nvolvi mento da costÚra e em breve o dos serviços, incitam as jovens cam- no que se refere à co ntracepção. No ftm do século 19, elas inverteram o.s pa-
ponesas a buscarem empregoj efetua-se, então, um reequilíbrio dos sexos nos péis. Suas faroilias, àliás, opõem-se, doravante , a deixá-Ia s partir: independen-
centros urbàno's, com disp~ridades muito fortes segund~ os bairros, o que .... tes demais, estas moças e.stão perdidas para o campo, onde, a partir de então,
nem sempre facilita os encontr0'6, Disso se encarregam os bailes, e também a- aumenta o celibato, enquanto o número de mullieres jovens (de vinte a trinta
\' prostituição.. .. ' . e nove anosj é superior em ,20%.0 dos homen; nas grandes cid.des. Este~. ao
De iníéio,rigidame'nte controladas pelo m,eio de origem.e pelas redes.. menos, o caso franc~s,1I ,
de apoio.t as migran,tes se liberam progressivamente, p\lra o melho r e o pior. O utra figura das migrantes do trabalho: as governantas - Miss, Frau-
Seduzida s e abandonadas, elas povoam' as mat~rn idades, recà rrem às c'faze _ lein.,Madelnoiselle. Senhorita .. , Moças de elites empobrecidas;óu de uma bur-
'doras d~ anjos", alimentam uma pequena delinqüência fernfnina (sobretu- . guesia intelectual que deseja que suas filhas viajem, assim como se us men'i nos
. ,
d,? roubos)' que~ !em nas lojas de-d e'p artamento o se u local de p;edileção, e
79 MIRBEAU, Octave. Le Journal d'une lemme de chambre. Paris: [s.n.], J900.
77 TeXto reeditado\ em Paris, L'Harmattafl, 1988. por Den)'$ Cuche ~ Stéphane 80 DAV1DOFF.~Leonore. Class a~d Gendcr in Victorian Englanclln: &.x flnd.Class in
Michaud. . I Women's History. Londo n: Routlcdge and KE;gan, 1983. p. 17-7 1; The Dinries 01
Hatltlah Gullwick. London Virago. L. Stanley éd. -.
78 ~ADAUD, Marti n, Méllloird q;"Uotla r+ tmcic" garçon" l1Iaço~. Édition établie ct
commcntéc par Mauricc Agulhon. Paris:IHachette, 1976. ..... 81 DUPÁQUfER, J. Histoire de la population fmnçaise. Paris: Colin, 1989. t. m, p. 133, ) 84.

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·296 297
PArte) Cllp/wlo 12
MlIllu~reJ 'I AddAI/C Snir

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(OS Reclus, protestantes; estavam neste caso), elas têm um raio de ação muito irlandeses e 13% de italianos, o apoio mais maciço às ca us,as feministas, sobre-
~mais' 3mplo e Circulru11 através de toda a Europa,n Henriette Renan reside di- tudo s ufragistas~ provém da comunidade judia, tanto burguesa quanto operá-
r versos anos na Polônia para ganhar o dinhe'iro necessári,o para os estudos de ria; "a oposição mais violenta e mais tenaz foi "dos ir1andeses; os italianos se di-
~eu irmão. Ao contr.ár~o. as russas vêm a Paris, como Nina Berberova que reú- vidiam, e os oriundos do Sul, onde as mulheres são mais ativas eram mais fa-
ne tesouros de obs.erv!ção·para sua obra. Exploradas t em razão de sua própria voráveis do que os do Nor te.U
-,ondição de estrangeiras, estas governantas ne~ sempre-têm boa reputação. Por vezes o alargamento do espaço e o relaxamento de seus constrangi-
São criticadas por serem intrigantes e sedutoras. Pelo amor de uma delas, o du - mentos intro.duz um jogo propício à afirmação de si. Durante s,!a viagem de
que de Choiseul-Praslin assassinou sua mulher; este escândalo do reinado de- 1832, Tocqueville foi surpreendido pela liberdade de circulação e de com por-
cadente de Louis-Philippe alimentou os estereótipos.
-'t tamento das americanas, às quais o Código da Luisiânia -reconhece precoce-
. mente o direito ao sigilo da correspondência. Grandes viajantes, e1as voltam
para a Europa no fim do século 19i apaixonadas pela ltália,.elas rivaliza m com
MIGRANTES DE LONGO CURSO os homelú na crítica de arte (por exemplo, Lee Vernon, êmulo de Berenson na
Toscana, ou Edith Whar ton)j em Paris, elas colonizam a margem esquerda:
Nas migrações externas, a relação entre os sexos evoluiu de maneira Natalie Clifford Barney, a amazona da rua Jacob, Genrude Stein. na rua Flerus,
análoga. No início, a predominãn~ja lJ1asculina é nítidaj em seguida, vem o enca rnam a New Woman, emancipada intelectual e sexualmente, mais bem
te~po das famílias, e as tax~s se igualam. Os homens vêm na vanguarda; na aceita se vie~ de fora e viver nas margens da intel1igentsia.&oi
melhor das hipóteses, as mulheres os seguem. O mundo da fronteira 'é o dos Mulheres russas e judias. freqüentemente conf~ndidas, merecem uma
guerreiros e dos pioneiros"universo viril, onde as mulheres são raras e seu stã- atenção particular. MaÍs do que as OUlras, elas foram rebeldes, e sua influên-
tus, assim como sua imagem, dividida entre a I?ira Lady e a prostituta mais co- cia foi cons"iderável. "Eu não quero so mente o trabalho e o dinheiro, quero
lorida. A misoginia do Western traduzirá mais tarde esta situação. 'a liberdade", dizia uma migrante judia chegando em Nova York.uAs Mémoi-
Sob este ângulo, os Estados Unidos são um fecundo ~aborat6rio de ex- res de Emma Goldman são um re.lato exemplar da viagem como meio dO e
periências q~e a historiografia. feminista. ou não, começou a explorar. Os: efei- emanci pação."
tos das migrações são contraditórios. Por vezes, o poder da família, coração da
, . economia e da~ soÜdariedades étnicas, é reforçado e os papéis dos sexos acen--
tuados. Na Nova Inglaterra dos anos 1780-1835, a Women 's sphere desenvolve 83 LERNER, Elinor. Structures familiales, typologie'dcs emplois et soutien aux causes
intensos bonds .of Womatlhood (Nancy Cott) que fornecem a base de 'um~á­ féministes"à New York (1915-1917). In: Stratégies des fe'mlles. Paris: Tierce, 1984, p.
l 424~443. (obra coletiva)
('consciência de gênero", Entre os farmers d~ Pradaria) nas comunidades epe- ,
84 ROSENBERG, Carol! Smith; NEWfON, f.sther. l.e mythe de la lesbienne et la
rárias irl.andesas ou italianas! a mãe é a figura forte, a m'man a quem ~teinbeck
Femme nouvelle. In: Stratégies rles femmes. Paris: Tierce. 1984. p. 274-312;
d~u uma dimensão épka em As Vi"has da Ira. Segundo Elinor Lerner, na Nova _ 1 . \ BENATOCK, Shan.Femmes de la Riye Gaucl!t, Paris, 1900-1914. Paris: tditions' des
York do inicio do século 20, onde a população conta 61 % de judeus, l3% de Feryunes, 1987. r
85 Apud LERNER, Elinor, Structu res familiales, typologie des emplo.is et soutien aux
causes féministes à New York (l915· 1917).-In: Srratigia da femma. Paris: Ti(rce.
·1 82 PETERSON. M. leanne. The victoriafi ~ven;ess: Status incongruence in fumily ~ 1984. p. 429. ,
and society. tn: vrCINUS. Martha (Ed.). fufftr Qnd bt Sti/l. Wonum in tltt Victorian ., 86 ~popie d'unc anarcl,iste, New York /886·MoscolI 1920, trad. francesa de L;y;ng nry
Age. 8loomington: ~diana University PrF' 1972. ...."
Lifo (~10pf, 1~32 ). Paris: Hachette, 1979.
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PlIrte' Cnp(IIIIcÚ
Mlllhera n<ll cidade s..;,

NAS COLÚNIAS" '


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ras pobres como criadas, a segunda mais preocu pada co m a promoção das
classes médias. Mas esta tentativa feminina de emigração colo~ial foi um fra -
Associadas inicialmente ao constrangimento, as migrações coloniais casso (302 partidas so mente) e após 1881 , a FMCES foi absorvida pela Colo-
não têm boa reputação. Na França, as condenadas aos trabalhos fo rçados po~ nial Emigration Soâety. muito mais eficaz, m a's simples agê ncia de empregos
dem, após 1854, escolhe,r o presídio de além-mar. Algumas ' delas preferiram a serviço dos colonos.
esta situação, mas(n·~ total, o número de transportadas foi pequeno: 40Q para As práticas da sociedade coloo1al reforçavam . a~ segregações mais tradi-
• Nov. C.ledôni.; entre 1870 e 1885; em 1866, em Caiena, para 16.805 ho- cionais e, salvo exceção. não é daí que se deve esperar um alar~amento d.os ho-

1
mens, pode-se' contar somen te 240 mulheres.", Após 1900, pôs-se fim a esta ex- rizontes. A vinda das metropolitanas fez sobretudo recuar a mes~çagem , com o
periência mal-sucedida. Deportada da Comuna de Paris, Louise Michel deixou mostra o exemplo das Signares no Senegal~ aquelas mulheres negras unidas aos
um testemunho sensível sobre 'os ~ana cas, e sonhou voltar livre à "Nova" (Ca- primeiros c~loni:zadores brancos. Algumas raras mulheres 'tiveram um olhar.
,
ledÔnia) para.viver novas experiências com os indígenas. novo, co mo Hubertine Audert na Argélia (Les Femmes arabes efJ Algérie. 1900)
\' As mulheres livres não partem espontaneamente. .o exército francês e as escritoras enumeradas por Denise Brahimi.~
tenta dissuadi-las desta idéia. As poucas mulheres de ' oficiais que, antes de Algumas outras aproveitaram da extensão dos impérios para saciar se u
1914, arriscam-se a isto, são muito isoladas. As auxilia res têm má reputação: desejo dã África e do Oriente. •
Isa bclle Eberha·r dt pretendia consag rar um ro man ce (Femmes dll Sud) a-es-
\
tas esquecidas, Alg um as tentativas fonm feitas por sociedades fLIantrópicas ,
para atrair mulheres para as colônias de povoamento, A Sociedade Francesa VIAJANTES
de Emigração das Mulheres para as Colôni as, fundada em 1897 por I.-C. Ber!
e o conde d'HaussonviJle, apoiada pela' Revue des Deux Mondes e pela Quin- Ao lado destas migrações sem volta, de origens geralmente dramáticas,
zaine coloniale, fez um apelo ao voluntariado ao q~al 400 a 500 candidatas. as viagens, sobretudo ligadas ao floresci.m ento do' turismo e do termalismo,
MuJheres cultas, mas pobres, cuj as cartas testemunh am sobre O imag inário forneciam às mulheres dos meios mais favorecidos, ocasiões. de sair de su.as
feminino da colônia, mistura de exo tismo, de atração missionária e de dese- casas: Os médicos, no entanto, moderavam, seus ardor~s, insistindo sobre os
jo de prom'Oção. For uma iniciativa sem continuidade. A Grã-Bretanha era rnaleficios do sol ~ue estraga a pele, e os transportes caóticos, nocivos para os
.muitq mais engajada na coloni zação de povoam~nto. Entre. 1862 e 1914, dl'= ::- órgãçs. Sobrecarregar as mulhe,res com pre'ca.uçôes e preocupações - o arru-
versaS dezenas de sociedades fizera m partir mais de 20.000 mulheres; algu· · . mar as malas, a angústia dos hórários, do mal-estar e d~s encontrçs d esagra-
ma~ ~ram co mandadas pc;>r femini stas que viam ali um meio de proporcio- ,
dáveis - con tribuía para dissuadi-Ias. Banl~os de mar e termas reforçavam a
na~ u ~~ saída às redundant women que se consu miam na mediocrid~de: a5- segregação sexual e social; as rbulh eres não tinham acesso nem à pcática da
n~tação, nem à sublime beir'!.-mar, cuja embriaguez era reservada a seus com-
sm; a &/1Iole middle cla" Emigrarion Society (1862-1886 ), dirigida por Ma-
ria S. Rye e Jane Lewin, a primeira ofientada para a procura ,d e jovens soltei- pan?eiros."' No e'1:tanto, as escapadas eram possíveis onde o olhar, agu~ado
pelas proibições, tornava-se um modo privilegiado de ligação e de possessão.
O desenho, os croquis do caderno de viagem, e em -breve o aparelho fotográ-
87 KNIB1EHLER. X'vonne; GOUTAUER. Rl gine. IA Femme au temps des Colonies.
Paris: Stot.k. 1985; HAMMERTO.N. A. J,. Fen,tinism and female emigrntion, 1861- ,
1886, In: VIC~US, Marth.a (Ed. ) ..A W;i1enjn~ SplJere C/langing Roles 01 Vidoria" 89 BRA.HIMI, Denise. Femmes ambes tI SO!IIrS musulmanes. Paris: 'Tierce. 1984,
. . UOIvers~
.Wo me". Bloommgton: Indiana • I Press, 1977. p. 52-72. 90 CORBIN, AJain . ú Territoire dll vide. L'Occidellf et le désir dll rivage, 1750-1840.
88 . KRAKOVITCH, Odile. Les Fetllmes bag1ardes. Paris: Olivier Orha n, '1990. - , Paris: Aubier, 1988.
- , '

300 301

"
Parte J C"p/wlo 12
Mulllel"tl lia damle, SIl ;r
.,

fic~, autorizava~] as "tornPdáS de vista': No horizonte, já ava nçam as jovens ci- bestim<\J' a importância destes últimos na formação política das muUleres; sis·
clistas com ,ares masculinos d~ praia d~ Balbec (Proust, A l'onrbre des jeufles tema de comunicação eficaz e paico de representação, eles permitem que os
filies e/l flour) . delegados façam seu aprendizado da tribuna, das relações com a opi~ ião pú·
No mundo protestant..e, màis tímida e tardiamente nos nieios çat6licos, blica e a imprensa, dos "assuntos" internacionais. Em suas Mémoires, Emma
a viagem se inscreve na fasé final da educação das moças. A prática das línguas Goldman atribu i grande interesse a seus deslocamentos militantes; eles rjt·
estrangeiras lhes abr~ o horizonte perri;litido da tradução, possível assunto de mam sua vida; sempre pelas estradas e caminhos, de comicios em !' turnês" de
mulheres. Ou ainda, elas .vão contemplar os tesouros de arte da Itália <;lu das . co nferência, ela é o próprio e..xemplo da viajante militante, para quem as pes·
Flandres que forneceram tantos modelos à sua paciente cópia. Os museus não soas e a palavra contam mais do que as paisagens, ao contrário do turismo que
eram, segun'do Baudelaire, o ~nico' lugar conveniente para uma mulher? Uma o próprio Marx execrava. Jeanne Bouvier, delegada em outubro de 1919, no
moça solteira, no entanto, aprende muito ali sobre a anatomia masculina e os [ Congresso Internacional das Trabalhadoras em Washington, faz wn relato m~·
educadores católicos preferem as igrejas. No inicio do século 20, O equivalen· 'I ravilhado de sua viagem transatlântica, da acolhida convivial e da orgal)ização
te' do '~grande tou'r", praticado há muito tempo pelos m eninos, torn a~se acessí-
, da NatÚmal Women's Trade UniolT Leagtle, que ela sonha implantar na França.':
vel a suas irmãs. Marguerite Yourcenar (1903 -1988) beneficiou-se muito desta
O teatro sem pre fora uma ambição de mulheres, da qual, no entanto, elas es·
prática." Viajante, tradutora, esc ritora, ela é originária desta nova cultura fe-
tavam excluídas como ruretoras."Os congre~sos eram uma revanche espetacu·
minina, ao mesmo tempo clássica e européia, e ela a levará ao sublime da cria- ~
lar, ocasião de um a viagem legítima. Pode-se ver sua seriedade: pode-se ill)agi·
ção. Em todo ,caso, a viagem faz. parte, doravante, do imaginário feminino, ali- t nar seu prazer secreto.
mentado pelas leituras, pelos objet~s e ilustrações prodigadas pelas revistas do
Prazer 'redo.brado pela escri ta da 9,ual a viagem era a oportunidade ou o
est,ilo Totlr du Monde ou Harper's Bazaar, e as Exposições Universai~. O Mecli-
.detonador. A alemã Sophie La Roche (1730-1807) teria tido a paixão pela via-
terrãneo, o Oriente, próxlmo ou distante, mais tarde a África, inscrevem-se na
gem se tivesse podido: de passagem pela Suiça, ela empreende a ascensão do
geografia mentaJ das européias, bovarismo e...xótico geralmente hesitante. Mas
a que rupturas pode levar o desejo de partir? . Mont Blanc e a descreve: seu jOllrnal d'un voyage à travers la Suisse (Diário de
Mais do que a viagem de consumo cultural, interessa·nos aqui a viagem uma viagem através da Suíça) é considerado como a primeira reportagem ef..
de' ação, aquela pela qufll mulheres. tentam uma verdadeira "saída" para além ~ortiva feminina. Lydia Alexandra Pachkov, russa, duas veze~ clivorciada, cor-

de seus espaços e de se~ papéis. Para esta transgressão, é pre.ciso uma von t~ respondente de jornais de São Petersburgo· e-de Paris, faz da literatura de via-
de de fuga, um sofrimento... a' recusa de um futuro insuportável. uma convic- gem a sua pr,?fl.ssão; em 1872, ela percorre o Egito, a Palestina, a Síria, embria-
. ção, um espfrito de de~coberta ou de missão: por exemplo aquele que le.v~_a ga-se com Palmyra onde fora precedid~ por ~ady Jane, e qá à ,Voita ao Mundo
saint-simonista Suzann e Voilquin. para o Egito, a':condessa 'BelgiojosQ d'a Itália u~ relato bastante documentado: ela fez surgir em Isabelle Eberhardt ( 1877-

oprimi.da para a França liberadora, ~s estudantes russas rumo ao "povo", as ". 19~4 ) o "desejo do Oriente" que devia conduzi-la muito mais longe ainda. I

mulheres pesquisadoras para os bairros pobres das cidades - o Povo, em segui- Convertida ao Islã, esta filha ilegitima c!F uma grande dama russa exilada na
da o Operário, enca~nando. para muitas a figura sublime do O utro91 _, as filan- Suíça guerreia na África do Norte sob ~s or~ens de Mahmoud, jovem rebelde
tropas,. as feministas ou as soc~alistas rumo a seus congress<;ls. Não se pode su·

93 BOUVJER, }(anot:. Mes mémoirts, U'It: syndicalislt: /énrinisre (1876.. 1935). Milion
9 1 Quoi? L'Sternitt. Paris: Gallimard, 1988. p. 96 et seq, pr~parée par Oanid Armogathe d Mané Albistur. Paris: Maspero, 1983. p. 123- 136.

92 RANCI~RE. Jaeques.. Cqurts Voyages ali par; du peuple. Paris: Seuil, 1990; freqUen· 94 PASQUIER, Marie·Claire. Mon nom est Ptrsona. "Les femmes et le thé:âtre': In:
te1nen.te, as l!Julheres inqrnam o Povo para os escritores. Stratégies des ftrllmes. Paris: Tierce, 1984. p. 259 ..273.
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302 303
Ptlrt~ J C4plt lllo 12 -
MIIUI..Tt!f na (idad~ Soir
,,

qpe fascina Lyautey; morta aos vinte e sete anos, ela deixa uma obra inédita de..: no: cabelos cortados curtôs, silhuefa magra, ela parecia uma adolescenfe, an -
dicada aos humildes do Maghreb." · drógina figura que assomb'~ou a Belle ~poque. Feminista por SU,," existência
-:1
Alexaridrá I:!avid-Néel (IÍ!68- 1969), exploradora, orientalista converti-~
~
mais do que por ~uas reivindicações, ela tomou partido contra o di vórcio que
da a.o budismo, deixou de sua viagem ao Extremo Oriente um Diário compos- chocava s~as convicções católicas. A viagem não con.segue abolir todas as fron-
to de cartas que en~iou ·a· se; marido até a sua morte em 194I'. Depois de mais' teiras; ao contrário, ela' põe a nu as co ntradições."
de trinta anos de ést~da na Ásia, ela ~c~bou por v~ltar, e~l 1946, aoS setenta e A ,viagem n:~o resolve nada em si -mesma. Mas que experiência!. Por
oito anos de idade, com um~ extraordinária documentação: sobretudo fóto- meio dela, estas mulheres conhecem outras culturas. Têm acesso à criação: ex-
gráfica, que se pode ver atualmente na sua casa-museu de Digne. perimentam novas técnicas e sua ligação com a fo tografia é extraordinária.
Indo de um mosteiro" a outro, escoltada por seus ca.rregado;es"ela per~ Esta arte, inicialmente considerada co~o menor, que comporta tanta manipu-
correu os altos planaltos tibetanos, em busca,de materiais para a obra de orien- lação, e o enclausuramento na câmara escura, podia ser <;leixada_ para as mu-
talista qu e desejava e~npreender, ~m busca de paz co nsigo mesma: "Sim ,-quan-' ,. lheres; 'logo muitas delas tornaram- se ilustres fotógrafas (Julie Margaret
do s~ esteve lá em cima, eS'feve ela a Ph.i lippe l não resta ,a bsolutamente mais Cam eron, Margaret Bourke-White, Gisela Freund... ), Elas penetram em disci-
nada a ver ou fazer, a vida - uma. vida como a minha que era apena'S' um lon- plinas novas: a arqueologia, o orientalismo, não sem experimentar a misog4tia
go desejo de vIagem - acabou, atingiu seu último objeto",96 .
que gos~aria de restringi-Ias ao papel de amadoras:
, "Tu não vives
. nestes meios,
Para Jane Dieulafoy (1851-19.16), por
sua vez, jovem solteira de boa fa- não podes imaginar de que são 'capazes certos homens, cujo ódic;> do feminis-
milia ed ucada no convento da Assunção, nada, aparentemente. a predispunha mo ganha terreno a cada dia" escreve Alexandra."
a se tornar a "dama que'se vestia cornQ homem", wn.a da s primeiras arqueólo- 'Elas-afirmaram sobreh!dcJ a sua liberdade de sujeito: em suas práticas
gas que: com ~eu. marido).descobriu na Pérsia a famosa frisa-dos gu~rrejros as- de vestuário e seu modo de vida" suas escolllas religiosas, intelectuais e 3Il)Oro-
sírios, atualmente exposta no Museu do Louvre, em uma sala que leva seu sas, De uma maneira ou de outra, pagando freqlientem~nte muito caró, elas
~ "
nome esquecido. Ela se casa· com Marcel, ex-aluno da ~cole Polytechnique e rompe,r am o tírculo de enclausuramento e fizeram recuar, a íronieira do sexo,
engen~eirQ, porque cOlllpartilha, de sua atração peja Argélia ~ pelo Oriente e Q~e tipos de ruptura favorecem, no século 19, o surgimento'das mulhe-
sua concepção d~ casal companheiro. Ela se vê como seu "colaborador" e insis- reS)1O espaço público e sobretudo político?'O que modifica, a este respeito, as
te no masculino, Inicialmente auxiliar, ela faz as notas de viagem, '3ssumf a 'res- . rela,ções entte os sexos? Trata-se aqui não da ,ccondição" 'das mulheres, pa.ra a
pon'sabilidade da fotografia e da comida, e 'depojs, assume uma parte crescen- ·q.ual a história das técnicas :- a máquina de costura, o aspirador.,:. -, ou a da
te no trabalho arqu~ológico. desenvolve suas' observações 'sobre a ,sociedad~ \. medicina . :. . ·a mamadeira. os métodos·contraceptivos ... -, tud'o o que· se costu-
i~aniana, i~teressando~se particularmente pelas mulperes cuja intimidade.ela ma chamar de "modernização", deveria ser levada em conta;" mas, sobretudo,
pode ~enetrar.l e torna-se escritora. De volta à: França, após duas expediçôes na das mullleres enquanto prQtagonistas. Qual é,.llo caso) O impacto do que se cos-
P~rsja, ela se resignará dificilmente com as convenções e, a despeito das ~m­ tuma, de~ominar de acontecimentos? O q~e se co~sjdera um acont~cil1!ento,
baJ'ias da opiniãç pública,' ela não abandonará nunca mais seu traje masculi- I . 'nes~a matéria? A'noção não deveria ser ampliada ou modí.ficada? Esten4ida à
. ' cultura ou ao biológko?

95 CHARLES-ROUX., Edmonde. Un désir·d'Orient, La jeunesse d'IStlb"~lle Eberha~t.


Paris: Grasset, 1988. I \ , 97 GRAN-AYMERlC, tve; GRAN-AYMERIC, Jean, falle Dieulafoy., une vie J'/romme, :
li' No origin~llamasserie"palavra compost~ a par!ir de L~\ma, sacerdote budista. (~.l.T.) , Paris: Perrin, 1990. . ,, ,
96 DAVIP-N~EL. AJexandra,'}ournaf de ~oyage (11 aot'it 1904-26 décetllbre 1917), 98 Jbid., p.lOl, cartâ de 12 de fevereiro de 1912,
Paris: Ploh, 1975. I "
99 Como o fa z SHORTER. Edward ~ Le Corps de.s femmes, Paris: Seuil, 1984,

.
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)04: <. 305
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Parte) Ctlp(tlllo 12
Mil/heI,,"., 1111 cidnde Sair

Existen'l, assim, livros-acontecimentos cujo impacto modifica a cons- De malJ;eira geral, a gestão da higiene e dos cuidados de enfermagem,
ciência dos leitores e que, ao provocar conversas, contato e trocas, ganham cor-
po. A Villdicalion of the Rights ·ofWoman (Mary WolIstoneqaft), TIIe Subjec-
das profissões médkas e sobretudo a ginecologia e a obstetricia foram terrenos
de afrontamento dos sexos em todos os palses, dos Urais aos Ae.alàches! A par- -
~
I, tion of Women (J. 5tuart Mil!), Die Prau IInd der Sozialismus (August Bebel) tir de então, na cena do nascimento, as matronas desapareceram. Entre médi- ~
puderam ser este tipo de livrós, assirr) como mais tarde O Segundo Sexo (Simo- cos e parteiras, excluidas das cesarianâs e do fórceps, a batalha é rude, agrava-

r
ne de Beauvoir, 1949); e também romances: Corinn. (Madame de Srael) ou In-
diana (George Sand) forneceram a muitas mulheres novos modelos de identi-
dade. Tanto por sua vida quanto por sua obra, George Sand parece ter sido,
da pela suspeita de aborto que pesa cada..vez mais sobre as parteiras. No fim do
.século 19, a angústia demográfica transforma o co ntrole dos nascimentos em
questão de Estado. A repressão judicial ,contra o aborto e '6 neomaJthusianis-
=
~
~
:
além das fronteiras e 'sobretudo na Alemanha, uma figura' liberadora. Neste mo endurece,-levando as mulheres a tomar uma co nsciência política de seu
campo das influências. a pesquisa está começada . 'corpo, como 'mostra Judith Walkowitz.

•.
Qua!s foram os efeitos da's m'?dificações dos sistemas de ensino sob r~ os
I agrupamentos de mulheres (como os colégios.anglo-saxãos, lugares de socia-
I: bilida'd e e bases de ação), ou o nascimento das profissõe$ pioneiras (como. as DO LADO DO PAI: AS RUPTURAS DA LEI

J)

1
professoras primárias, em toda a parte alvo e farol. até.em Salônica)? A aber-
tura. e em seguida o fechamento dos estudos de medicina na Rússia, por volta
de 1880, desempenharám um papel/decisivo na constituição de um grupo - as "
estudantes de medicina - ,particulãnnente dinâmico na Europa. 100 Seguramen-
te, o acontecimento educa~vo' traduz, com freqüência"uma, relação de forças .-
política que é por ele crisra)izada. . - /
,
Obra de parlamentos que emanam unicaménte do sufrágio masculino,
a lei é, então, a'expressão sem ,partilha de um poder patriarcal que regUlamen-
ta a relação entre os sexos de uma maneira que não se poderia chamar de ,"a
seu hei prazer" - 'ela obedece, ao contrário, a uma lógica forte - mas que pare-
' ce, às vezes, ser arbitrária. Os debates destes clubes masculinos fornecem, de
••
! Co nside rando a importàri'cia do corpo e da saúde, pode-se admitir tam-
bém a existência de acontecimel)tos l;>io16gicos. O cólera de 1831 - 1832, em
menor grau, o cólera de 1.859, exigiram a participação das mulhereSi ao fazê-
resto, trechos privilegiados para uma antolo.s:ia da misoginia. Na maior parte
do tempo, legisla-se pouco sobre as mulheres: para quê, pois tudo está dito n05
códigos que basta conservar. Exceto para "protegê-Ias", como no domínio do
las penetrar 1'10S bairros pobres, estas epidemias modiIicavam seu olhar e sua trabalho, onde elas são inicialmente assimiladas às crianças; daí suas reservas --
palavra e conferiam-lhes um direito de especialistas: Bettina Brentano e s~as­ diante das medidas que correm O risco de ser discriminatórias. As leis realmen-
amigas alemãs, diante da impotência dos remédios qássicos, preconizavàm o te igualitárias são mais raras e sua gênese sempre coloca problemas: a que mo-
recurso à homeopa-tia e à prevenção higiênica .. Os flagelos sociais - tubercufo.:....., tivação o. legislador obedece? Nicole Arm;lIld-D uc ,sublinhou a ambigüidade.
se, alcoolismo, ~ífilis - constituiram frentes de batalha onde as mulheres agiam
iJ
, 1907, que concede às IhuU1eres casadas a liVre
da lei francesa . .de . disposição de
na primeira fila, com a consciência de lutar pelas mulheres, vítimas mais do ' seu salário, a ~m de permitir a melhor gestão do orçamento familiar. Fói tam-
que agentes destes males. Como }oséphine Butler, durante o CO!1tagiOtlS Desep.- bém o espetáC!ulo da condição dos pobres que levou os parlamentares inglé;ses
se Act, elas desenvolviam às vezes uma crítica radical da "civilização' masêuli- a refo rmar o direito feminino d~ pro·priedade. A ,utilidade social pesa mai s' do
na~' à qual opu~l,1 am um ideal de "pureza". que a igualdade social.
Muitas mulheres tinham consciência dos obstáculos das leis, contra as
100 FAUR~ Christine. Tt:rrt:, Tt:rreur. Liberti. Paris: Maspero. 1979; GREEN, Nancy. quais elas se chocavam diariamente e que lhes faziam lembrar, sem cessar, de sua
l 'trnigration COnlrnt: émancipation, les femmes juives d 'Europe de !'Est à Paris, infe~ioridade. Às vezes, alguns processos faziam vir à tona a iniqüidade de seu
1883-r924. PJurie1,27, p, 51-,59,1981. i destino e cristaliZavam a sua opinião. Assim ~omo o caso Norton! que esteve na
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origem da reforma do divórcio e do direito de propriedade da~ mulheres casa- mostravam o que era fundamentalmente o direito ao divórcio: o reconhecimen-
o das. Separada' de seu marido em 1836, Caroline Norton transformara-se em to das mulheres como indivíduos, "o primeiro passo n-o caminho da cidadania
uma célebre literata; mas, como era casada em regime de com.unhão de bens, das mulheres".'O) D~í a resistência obstinada' dos tradicionalistas. "Não tocais na
seus ganhos pertenciam a seu marido que, para tomá-los, acusou-a - em vão - família francesa, pois é.. com a religi ão, a última~ força que nos resta': exclamavil
d~ adultério com O Primeiro Ministro, e depois reivindicou a guarda de seus três Monsenhor Freppel, em L822, ao longô de debates de uma violência inttudita. I04.
filhos. Ela protestou-éin um panfleto de
, grande repercussão que foi a orígem do A aliança dos republicanos de todo tipo - maçons, protestantes e judeus - foi
Act de 1839, que concedia às mães separadas direitos mais precisos quanto aos - necessária para que enfim a lei Naquet fosse aprovada, em 1884.
filhos. Em 1853-1855, ela voltou à carga (ElIglish LaIV for Womell in 19th ,I,. Como ele é um ponto de ruptura fundamental, o div{>rcio é um bom
Century, 1853; Letter .to the Queen on Lord Cramvorth's Marriage and Divorce exemplo do que é a lei:~ um campb de forças que se recompõem sem cessar,
Bill, 1955). Sua ação foi seguida peja de Barbara Leigh Smith (1827- 189 1), filha unIa bat.a lha em que se medem' os grupos presentes) a profundidade dos obs-
de um p'a clamentar liberal que chegou tanto a n~obilizar ~ opinião feminina táculos, a nàtureza das aHanças" as mudança's da t>pinião pública. Para as femi-
quanto a suscitar o interesse do the Law Ahrendment Sodety. presidida por Lord nistas, mediadoras entre a poUtica e o conjunto das mulheres, é um momento
'Brougham. O Divarce Act foi votado em' 1857. Ele continha disposições impor- crudal de um combate incessante em que elas podem testar sua representati-
tantes, mas insuficientes no que se refere ao direito de propri.edade das .mulhe- vidade. Nos feminismos do século 19, a dimensão jurfdica é essencial porque
res; muitas batalhas serão necess..írias p.rra que, de Actem Act ( 1870, ~882 18931 ó Direito é a figura do Pai. .
as mulheres casadas, e não somente as divQrciadas. pudessem gerir livremente
seus bens, em razão sobretudo da oposição dos Lordes. Seria preciso a ação con-
jugada das fem~tas e dps democratas (J. S. Mill ou Russel Gurney), mas tam- DO LADO DE DEUS: AS RUPTURAS RELIGIOSAS
bém a manifestação de uma opupão pública feminina, atiçada por aconteci-
ment,os dramátic~s como aquele de que foi vítima Suzannah Palmer, empurra:::- A intensidade dos vínculos entre as mulheres e religião confere urna
da para a miséria. No auge da disputa legislativa, as petições com milhares de as- particular r~ssonância aos acontecimento$ religiosos, Laços complexos de dis.~
sinaturas chegam ao Parlamento e um deputado, importante industrial, r~lata ­ cjplina e de dever, de sociabilidade e de direito, de práticas e de linguagem , as
va que não podia atravessar a porta de sua fábrica sem que as operárias o assal- religiões pesaram como uma chapa de chumbo 'sobre'os ombros das mulheresj
( . mas elas ta,mbém lhes trouxeram con&olo e auxílio. Também a feminização das
tassem com perguntas relativas! ao tema do avanço da reforma. lol , O mesmo-
aconteceu na França) em 1831-1834: a tentativa liberal para o divórcio foi apoia- religiões. no século .19, pode ser lida em dois sentidos: como uma arregirnen-
~ação, e como uma tomada de influência.I" Não de poder: 'este continuava
da por uz:na intensa campanha de petições nas quais·as mulheres insistiam em-, masculino, assim como o poUtico.
seus sofr~mento:S. IOl A lentidão da reforma, diziam as femini~tas, provava 'a ne-
ces~idade de reconhecer o direito de voto para as mulheres para que elas pudes-
se~n fazer ouvir seus interesses. Ao ligar qireitos civis e direitos 'políticos elas 103 FRAlSSE, Genevieve. Muse de la RaiSon. La démocratie exc1usive oll/a dlfférena d~
I sexes. Marseille: Alin~a , 1989. p. 107. I

104 RONSIN. Francis. DI) divorce et d~ la siparation de corps en Frana nu XIX' siécle.
101 HOLCOMBE,ltc. Victorian wivtS aod Property. Reforms 00 the màrried women's Thb< Paris Vll, 1988.
properry la"". 1857- 1882.10: V1CINUS, Martha (Ed.). A Widening Sphere Challging
105 WElTER, ~arbara. The feminization ' of American religion, 1800-1860. tn: CJio's,
Roles 01 Vicloriall Women . BlooIl'!ington: Indiana University Press, 1977. p. 328 . .
COllciousrreJS Raised. New perspccrives on the History 01 Women~ Mary Hartmal1 et
102 RONSIN, Francis.. Le ComTat.semimelllaJ. Débat slIr le //Iariage. ramour.le diyorce, Lois W. S3nner éd. New York: Harper Torchbooks; London: Harper and Row pub-
de l'Ancien Régime à la Reslaurarioll. 1parik: Aubie;, 1990. lishers, 1974. p .. 137-158.
I "

308 . '.: 309


PII(Jt: J ClIpfWlo J2

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Mu/hera Ihl di/une Stlir

Sobretudo na Igreja Católica, rígida na Contra-Revolução e no dogma ' lêncio e transfomlada em um ",pária'~'decide, no final das contas, tornar-se
geminado da Infalibilidade IPapal e da Imaculada Concepção. Deste 1'<\0, as .. pa!~eJra, ca~inho seguido paraldamente pela saint~simonista Suzanne Vol-
bred13s foram raras, e as' mobilizações e cruzadas mais freqüentes. Quando a · quin. Outras canalizam suas energias para um' socialismo milenarista impreg-
Ig~eja empurra as mulheres para a politica, por meio das ligas (como a Liga Pa- nado de crença na salvaçã9 pelas m~lheres. Johanna Southcott (1750-1814),
triótica das Francesas),I~ é para reforçar um modelo perfeitamente conserva- · empregada doméstica de Devonshire, ouve vozes anunciando que ela é a .. Wo-
dor. A mulher que-élã" exalta é sempre a mulher com a lâmpada, ou sob a lâm- mau clothed with tlle Stm" e começa uma pregação que converte numerosos
pada. O catolicismo social afrouxa um pouco as amarras; mas seus efeitos so- fiéis.: mais de 100.000, dos quais 600/0 s50 mulheres, na épocã de sua morte. O
bre as relações entre os sexos são mais induzidos do que diretos. , ow~nismo, mistura. de ciência social fortemente racional e de milenarismo ver-
O protestantismo é muito mais rico em rupturas, e Jean Baubérot ana- bal, exalta também à missão da Mulher. lo.
lisa suas razões. O pietismo' 'alemão favoreceu a expressão das mulheres no . Assim como - sem referência religiosa precisa ...J o saint-simonismo
: tempo de, Goethe. Os revivals ingleses e americanos são também fendas propí-
cias à sua palavra. Na Nova Inglaterra, no fim do século 18, as bostonianas Es-
francês) extraordinário caldo de cultura de um feminismo moral, apostólico e
amante da. liberdade: ele vai buscar no Oriente a Mãe da Salvação, provocan-
I'"

I,;): : ther Bure e Sarah Prince: mulheres cuJtas cuja correspondência' revela amiza- dd, com a passagem de se us apóstolos, o entusiasmo das, mulheres, conclama-

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Ir j"
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1·".11
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de e fervor, Sarah Osborne e ~uZ4nne Anthony, mulheres do povo de Newport,
animam grupos e até mesmo' uma Female Society muito radicais em suas prá-
ticas religiosas e sociais. 10' No primeiro terço do sêculo 19, o segundo Great
" I '
das a "un;a palavra igual à do homem".no Désírée Véret, Jeanne Deroin, Eugé-
nie Niboyet, Claire Démar falar3m, agiram e escreveram com um a fé messiâ-
nica. Que decepção, quando o Pai rejeita. de uma maneira absolutamente ele·
Awakclling (O Grande Despertar) multiplica as seitas agitadas por profetisas, rical, aquelas' q'u é ele chama ra a si! Abandonos e até n~esmo ; uicídios foram
como Jemina Wilkinson ou Anna tee;,fundadora do sha.kerismo. Em uma pro- então numerosos.
visória igualdade dos sexos, as mulheres, freq~entemente aliadas ãos- margi- . Todas· estas seitas, ligadas a uma arqueologia comum, talvez ao terremo-
nais, subvertem, ao mesmo _tempo, os sim bolos, oS' ritos e a me.nsagem. Elas . to re~o lucionário, foram experiências de tomada da palavra e de responsabili-
criticam a injustiça e a Licenciosidade da nova sociedade urbana: a Female Mo- dade, cuja ~erança ia irrigar o século.
ral Rcfonll Sodety, fundada em-Nova York em 1834, ataca a hipocrisia do "qou- J

ble standaqi" e tenta, sem gral)de sucesso, converter as prostitutas,l~


., Na Grã- ~retanha. a renovação religiosa, sobretudo metodista, muitQ · DO LADO DA MÃE PÁTRIA:
mais co nservadora em matéria de papéis sexuais, leva as mulhetes à resistên-
GUERRAS E LUTAS DE INDEPE,ND~NCIA
cia, Algumas delas aderem a um racionalismo em que o social tQma odugar :....-
dó , I
' .
sagrado: como Emma Martin 0 ,812-1851) que, pouco a pouco reduzida ao si:- NACIONAL

Ato viril por excelência, as guertas têm sobretudo a tendência a consoli-


' 106 SOHN, AMe-Marie. Lts femmes cathaliques et!::a vie publique en Fr::ance 0900- /
dar os papéis tradi'cionais. Em uma disciplina reforçada; apoiada e:m um dis-
I• 107 BERGAMASCO.
Stratégies dl.s fl.mmes, P::aris: Tierce.
1930). In: p. 1984, 97-121.
Lucia. Condirion félllinine tt vil. spirituelle en Nouvelle Angletêrre
curso voluntariamente culpabiJizador, notadamente par,a as mulheres, cada
nu 'xVIl~ siide. These tcole des n::autes ~tudes. 1987; e carro N::ancy. TIre Bonds of
Womanhood. Woman's Sphere in New Etlg,arrd, 1780-1835. New H::aven:· Yale
109 TAYLOR. Barbara. Eve ntld t/le Ne'" jeruSIlJetll. SocialiSI1l and Fl.",i"istll in tire
University Press. 19n.
Nitleteent/J Century London: Virogo Press. 1983.
108 SMITH-RbSENBERG. Carroll. The Crdss and the Pedestal. Women ::anti-ritualism,
110 RANCIÍRE. Jacques. Courts voyages nu pays du peuple. P3ris : , ~uil. - I990 ; LA Nui,
:md lhe emergence of thé American nàurgeoisie. ln: DisorderJy Condtlct Vision of
des Prolétaires. Potris: Fayard, J 981; DEMAR, Claire. Ma loi d'avenir (183 1). Préfuce
$ender itr Victorian America. New Yarie: bxford Univ~rsity Press. 1985.]>. 129-165: '
de Valentin Pelosse. Paris: Maspero. 1981. réed.

310 311 .
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"Mlllhtra,. .. cidadt! ....,
CIIplt"lo J2

sexo é mobilizado a serviço da Pátria, os homens na frente de batalha, as mu- O s países mediterrâneos se co mportam de maneira diferente. A partici~
lheres na retaguarq.a. E-Ias costurando, preparando atad uras, cozinhando 50- pação feminin<;l na guerra de independência grega, não somente no reabaste~
' bretudo. As associações patrióticas de senhoras alemãs engajam-se neste traba- cimento, mas também na defesa armada, surpreendeu a opinião pública inter-
·lho em 1813 e é preciso o espírito das Luzes de RaheJ Vamaghen para incitar a nacional. Houve até mesmo mulheres co mandantes da Revolução, em nível de
tquar também do inimigo. A condessa Belgiojoso, que aspira a urna atividade Estado Maior, de Ínaneir:a ,durável e em pé de igualdade co m os homen s: mu~
\
política, recebe d~e-Mazzillj . em 1849, a atribuição de o rganizar os serviços hos- lheres ricas, ~as ou viúvas de ar~adores das.ilhas, que colocavam sua fortu-
pitalares e de am~bulància de Romã; ela emprega t.nJ lheres dõ povo, corajosas ' na e seu prestlg'io a serviço da causa. Duas figuras célebres: Lascarina Boubou~
mas de vida desregrada. que ela tenta disciplinar: "Eu havia [<mnado um serra- lin. (1771-1825), a "Grande Dama" mecenas da Sociedade dos amigos, que
HlO, sem sabee: diz elai todavia, ela as defenderá contra críticas acil r:ldas.1II preparou o levantei ela desempenhou um papel maior no cerco de Trfpoli
Quando as voluntárias se profissionalizam e dão sua opinião, os cônflitos apa- onde conseguiu negociar a liberação das mulheres do harém de Hourchit Pa-
recem:' assim "foi para Florence Nightlngale na Criméia, ou para as estudantes cha; ,e-M.do M.vrogenous ( 1779-1838) q,;,e convenceu os notáveis de Mlco-
de medi~ina russas que tentam aproveitar, sem grande sucesso, a confusão da nos, sua ilha, a aderir à insurreição. Após o massacre de Chio (1822), ela orga·
guerIa russo-turca de 1878, para fazer reconhecer as suas qualificações. . niza \!ffi3 D1ill~a que comanda com as armas nas mãos; envia uma carta "às
Muitas mulheres gosta;iam de combater: ser Cforinda, Joana d'Arc ou Damas parisienses" exorta ndo -as a apoiar a causa dos cristãos gr~gps contra a
a Grande MademoiseUe, subir nas muralhas, manejar a espada. Mas as armas ameaça do Islã: " Desejo ~Im dia de batalha, assim como vós suspirais por uma
lhes são proibidas: "Seria conveni~nte e até mesmo decedte, que as moças sol- . hora de baile", ela lh es escreve. Renegada por sua fam1lia, por ter dilaPidado a
teiras e as mulheres mo.ntassem guarda, fizessem patrulhas?", interrqga Sylvain herança nesta guerra, ela morrerá só e na !lliséria."~ A imagem da mulher~sol­
M,arécha1.1I1 Ele poderia acrescelltar: <te afeminassem os soldad<?s': pois é de se- dado, compatível com uma visão aristocráti ca e religiosa, tomara- se insupor-
xualidade que se trata também, A l~i de 30 de abril de 1793 manda de volta ' tável para aquele século burguês, para o qual a violênda das mulheres - crim i~
para coisa as mulheres que se aventuraram nos exércitos e proibiu-lhes dora- nosas, guerreiras ou terroristas - é um escândalo que os criminolQgistas, (Lom-
vante ' qualquer atividade. militari algumas subsistiram, dissimuladas. 11) Mas, broso, A Mulher Criminosa) tentam naturalizar para melhor neutralizar.
desde então, o opróbrio liga-se às que se alistam. Em 1848, a zombaria lasciva 6 apoio das mulheres às lutas .nacionais deve tornar outras formas, mais
persegue as alemãs, e sobretudo as vesuvianas de Paris, mulheres do povo ar- ·toleráveis. A rainha Luísa da Prússia, as condessas polonesas no e.xilio-, a con~
madas que tinh~m a à-u dácia de reiyindica r uma""Constituição política das de$sa Marlcievicz na Irlanda, a princesa Christine Belgi?joso ... colocaram sua I
-'
mulAeres': o uso do terno masculÜ10 e o acesso a todos os emp-r egos públicos, i.nfluência a serviço de seu país. Jornalista, historiadora,' amiga de Augustin
"civis, reJigios.os,' militares'~ Daumier, Flaubert, e até mesmo Daniel Stern (Ma.~ Thie,r ry e de Mignet, a última fe~ tudo para obter o apoio dos intelectuais e do
rie ,tl'Agoult) cobrem-nas de ddiculo.lI~ governo francês. Muitas vezes ela se lamen.tav~ por sua limitação: "Eu precisa~
f ria de um trabalho forçado; não somente uni trabalho d~ escrita, mas uma
, ação. Mas onde. encontrar tal coisa para .
uma mulher?".lJf
. Os hospitais foràtn o .
I III BROMBERT, Berth Archer. La Prjllcesse Be/giojosa. ou J'engagemetlt ronnmtique.
Paris: !J~in Michel, 1989. (trad. francesn de Cristina, Portraits Df a Pr;nctsS, J9n) .
11 2 A·pud FRAISSE, Ç1enevieve. Mu~ de la Raisotl. La démocratie exclus;ye ou la dif.
\ ,
que lhe coube; em seguida, houve a briga com Mazzini, a r~a, o exllid na
- Turquia. Pois desconfia-se destas mulheres que pretendem desempenhar um
férence des sextJ. ~arseille: Alinéa, 1989. p. 31.
113 DEKKER, Rudolf M.; POL, LeUe C. Va n de: Republican heroines: cross dressing
women in.the french revolutionary armies. History Df Europeatl Ideas, v. 10, n. 3, 11 5 Infor.Ç,ação e dossi~ fornecidos por Eleni Varikas. Que da receba aqui nossos
p, 353-363, 1989, " :' . agradecimentos.
" 114 CZYBA, Lucette. La Fen:hle datls les rom1m de Flaubert. Lyon: P..resses Universitaires 116 Apud BROMB'ERT, Berth Mçher. Ln Pr;tlcesse Btlgiojoso ou l'eMgagemetlt roll1an-
de Lron, 1 98~, p, 193,366, . ' tique. Paris: AJbin Michel, 1989. p. 174.

, ,
31,2 "
"
313
J'>',
Parr/: .1 Cap(1II10 11
Mu/hel"CS IIQ cidllllc Sair

papel politico. A experiência coletiva, desta vez, das irlandesas\ da Ladies' Land
R~VOLUÇÃO, MINHA IRMÃ?
League nos dará um último exemplo:
Engajadas na luta pela defesa dos fazendeiros irlandeses, as lideres da'
As revolu~ões - como vimos em relação à "Grande" que abre o século e
LfInd League (ParneU) incita'!am as mulheres a acompanhá-las. Mas sob o im- es te livro -, por colocarem em, jogo o poder e a vida cotidiana, desequilibram
pulso das PtJrnell's s~ters, Ano e Fanny; elas organizaram em 1881, uma Ladies'
as relaç.ões entre os sexos. Sua história baliza a história do feminismo, como
°
Land League autÓriôma segÚndo modelo americano. Recusando limitar-se à
mostra Anne-Marie _Kappeli. Enquanto a guerra impõe silê~cio aos 'quereres
a
caridade, elas tomaram em suas mãos resistência às evicções, fornecendo
individuais em nome da razão de Estado, a Revolução. ao menos-em seu ini-
abrigos improvis~?os aos espoliados, os huts. Radicalizando o movimento) elas
cia,-autoriza a expressão do desejo ou do mal;estar de onde ela se õrigina. Por-
preconizam a recusa de pag~me"nto dos alugueres, o que lhes vale a inimizade
que não os das mulheres? Aquelas "grandes (érias da vida" não Ules dizem res-
dos proprietários e dos fi)zendeiros mais ricos. A despeito de suas coletas, seu
peito. no entanto, no mesmo grau que aos homens, pojs elas estão ocupadas
o rçamel~to continua em déficit; " pret~to para sublinhar sua incapacidade ad-
em garantir a vida material dos seus, semp re mais dificeis nestas circunstân-
ministrativa. A opinião públicay'sobretudo, com os bispos, protestantes e cató-
cias. Mas, enfiJ,!!, estas desord~ns engendram muitas possibilidades de circula-
licos à frente, critica sua saída pública. E,stas mulheres que, nos comícios, man-
ção e de encontros.
tinham-se timidamente no fundo da sala, sobem nos palanques e, apesar -dte
As revolu~ões não fazem mais a unidade das ":lulheres do que a dos ho-
I seu recato - Ann ParneU vestia-s..e sempre de preto e falava lenta e trangüila-
mens. O ca mpo contra-revolucionário teve s uas heroinas e seus fiéis; o"s padres
mente -, isto é inadmiss1vel. As famílias desaprovam estas mulheres que. saem
não juramentad<?s foram apoiados por elas e o argUlnento será sempre empre-
à noite e as desonram, Não são até mesmo ~prisionadas com as detentas de di-:
gado contra o direito do vo_to ' feminino. Mas este não é o nosso propósito, o
reito comum? Mary O'Connor purga uma pena de seis meses com as prosti.tu-
que nos interessa são os seus "~ireitos': cuja proclamação é acompanhada de
tas. Em dezembro de 1881, a Ladies's Lalld1.eague é proibida bem como os co-
condições, em que o universal define seus limites e suas exclusões. Neste espa-
micios de mulheresi e a lrishIVanonaJ League as exclui.. Fanny Parnell morre
ço contraditório nasce O feminismo que, na França ao menos, é inicialmente
aos lrinta e três anOSi Ann desentende-se com seu irmão e se retira sob um
: ma~s jurídico do que social. Rejeitadas ao lado dos estrangeiros, dos menores,
pseudÔnimo, em uma colônia de artistas. , .Ela se afoga em, 1911 ao nadar"em dos criados e ·dos pobres, as mulheres tirarão, às vezes, desta vizinhança, um
um mar agitado demais; de sua experiência, deixou um relato: The Land Lea-
p.oder de representação. .
gtle. Story Df a great sltall/e, por muito tempo inédito por falta de editor, onde
_As ":,ulhere's não estão no primeiro plano das revoluções. De infeio, elas r
. não fala de seu papel. lI7
aparecem na sombra, auxiliares habituais. Assim como as mulheres de 5 e 6 de "
Auxiliares ou substitutas, com a yolta dá'pa z, as mulheres devem sai.Lge
outubro, ou da ·festa da Federação, cujo papel unificador e maternal Michelet
cena. As lutas de independência.nacipnal 'não ~ódificam as relações entr~ os
elogia. Depois, elas soú·em por não serem levadas em conta: Buscap1 aliado~:
sexos: o século 20 nos demonstra o mesmo. No entanto. estas mulheres que se" !
Condorce t, alguns girondinos durante a primeira revol ução; saint-simonistas
encorit~aram têm dificuldade ~m voltar pura~ e simplesmente para casa. A ge- " em .1830, operários em 1848; livres-pens,?-dores maçons e democrata.s em se-
ração alemão de 1813 soltou suas amarras nO plano privado. As america nas da
guida. tA alia~ça com o socialismo foi, em todos os paises, a mais freqüente e a
Guerra da Secessão investem na filantropia e no feminismo a energia empre-·
. mais conflituosa, sobretudo na seg unda 'm etade do século 19, porque o socia-
gada na luta para a abolição da escravidão.
lismo dos partidos pensa em classe inicialmente e rejeita qualquer organização
autô noma das mulheres. Ora, o caráter misto da organização significa o silên-
117 WARD, Margaret. U"manageable Revoluti07lar;es Women atld lrisl. Nationalism. cio imposto às mulheres por porta-vozes que elas não escollieram: ou o tumul-
,london: P)uto Press, 1983,
, I
to atrevido que suas reuniões provocam. Em junho de 1848, Eugénie Niboyet,
I " •

314
" 315
Ai L.'ifb OCti:l fW.\N:i1U> e. ll~ ~'í\000 .a: ..QX~~CD'<.. L0'Y\{J....,
~lrm ~ ~~6 Jhb Jl)Lt~ \'W,rup~ .t9vVe- '
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M.jllltr~ "" ridaJe

f""'dom\('O.. o-. ~\ic:'la.&r '.


ca'n sada da balbúrdi" com que é confrontada, declara que "a partir de ~agora , Capitulo 13
nenhum homem seria adrn.itido~ Se não fosse apresentado po r sua mãe o u sua
irmã" (La Libert/!, 8 de junho de 1848), irônica reviravolta das coisas. Sob pena
de asfixia, é ~preciso haver ass~ciações, clubes, reuniões e jornais puramente fe-
mininos. Sabemos o que-resultou dal, sempre e em "t oda a parle.
E as restaurações seg'Uen~ as revo lu~ões. Da Grécia otoniana à Alemanha
de Biedermeier, da França de Charles X à [nglateera vi toriana -ouà Aj"érica
A PALAVRA
jacksoniana, elas re,ntam recolocar ordem no~ costum es,-considerados respon- , PÚBLICA
. DAS MULHERES"
sáveis pela an arquia política. A subordinação das mulheres é um dos compo-
nentes co muns: o Código Civil não é pior do que o direito consuetudinálíio?
Alguns juristas pensa m a.ssim. Mulheres t~mbém : "As mulheres são mais pri-
vadas d~e "'t ~dos os direitos do que sob o Antigo Regi me': pode-se ler , em 1838,
no Journal des Femmes. A idéiá de regressão análoga à de empobrecimento se Está entendido: as mulheres falam, inicialmente entre elas, na sombra
opõe, en tre as militantes, ao otimismo progressista do século. Ela se conforta do gineceu ou da casa; mas também no mercado, no lavadouro, local de me-
com a visão antropológica do matriarcado primitivo e o marxismo traz seu xericos temido pelos homens que têm m«io de suas confidências. O incessan-
. a~al a esta "derrota histórica" da~ mulheres. "Abandono das aliadas, repressão te murmúrio acom pa nha, na surdina; a" vida cotidiana. Ele exerce múltiplas
do poder. imen~a indiferença criam um profundo sentimento de decepção que
funções: de transmissão e de controle, de tro~a e de rumor. As mulheres con-
alimenta o "n6s" da consciên cia de gênero.
tam ,.dizem - e maldizem - cantam e choram, suplicam e· rezam, clamam e
Assün, as relaçõeS entre os s.eXos aparecem na História como um pro-
protestam, tagarelam'e zo mbam, gritam e vociferam. A voz das mulheres é um
• . , I
,
cesso dinâmico, aumentado pelos co nflitos que fazem surgir um grande nú-
modo de e,,'(pressão e uma forma de regulação das soCiedades tradicionais
m ero de rupturas de importância desigual e de tipos muito variados. Hist6.ria . . r l
onde predomina a oralidade. Mas sua.paJavra pertence à vertente privada das
sincopada? ~ a visão que com wn ente conservam os deJa, e que o relato mascu-
~; ela é da ordem d o coletivo e do informal; ela é proferida no boca-a-çoca
lino, indiferente ou che.io de desprezo, veicula sempre. Na realidade, laços in-
da co nversa familiar, na melhor situ~ÇãO possível, no quase ritual da convers~­
visíveis, o teCido d"e uma mem ória existente provavelmente entre estas COrnQ-
. ., ' , '. ção, nos salõe~ aristocráticQ~' ou burgueses, elevada à condição de uma arte, a
ções. Pela imprensa, as lembranças, a herança - de mãe para filha, geralmen-
. arte da "bela linguagem~~ Marc fumaroli mostrou soberbamerlte 'como, das ·
te- .opera-se uma cerra transmissão e, por meio delaJ for~a- se o dese nho~e
Précie uses....... às mulheres das Luzes, c~)I1stituiu-se senão wn cóntrapo~er, ao
grup os co nscientes, fundamento de uma opinião. Fazer história sex~ada ~a'
menos " um espaço de jogo que torna possível as respostas entre vozes femini-
opinião ·pública, eis, em todo o caso, o que nos resta a escrever ... J
n as e 'voies masculi.nas e que faz do espicho seu ponto de aCQrdo perfeito'!:111 ....
I
,.. L:1 parole publique des femmes.m: NationaJismes. Flmin;sme, Exclusions. Mélanges
e1l l'hontleur de Rita nralmann. Berlin: Peter Lang, 19?4. p. 461·470.

,
,
'I
;'
,
••
118
MuJheres que, no século 17, adotaram uma atitude nova e refin'ada com relação aos
sentimentos e uma linguagem eJ .. borada. (N.T.)
FUMAROLI, Marc. La conversation. In: Les lieux de la mémóire: Paris: Gallimard,
1993. t. lJI: Les f rance, v. 2: Traditions. p. 679·743.
,

,
.316 .' I , , , 317
,.
"
P"rtC! J
Mui/leres 1111 cidade "' Caplwlo IJ
Jt palll l'm 'público dIU mulll(rts

9 gue é recusado às mulheres é a palavra pública . .Sobre ela pesa uma Não é surpreendente, então, qu e a Reforma, aliás apresentad a como
dupla proibição, cidadã e religiosa. "Não permitis que uma mulh~ r fale em pú- uma mulher com línguas de serpente, deixe as muUleres falarem. Elas co nfes-
.J. blico, abra uma escola, fund~ uma seita ou um culto. Uma mulher em público sam sua 'fé diante dos juízes hosti s. que lhes recordam os "mandam entos" de
está sem pre deslocada", diz Pitágoras. lI ' AS mulheres, ,no entanto, são o coro da Paulo e co rtam-lhes a língua . Elas pregam em língua vulgar, como Mar ie De n-
cidade; requisi tadas. elas aclamam os heróis, lamentam-se nos cortejos fúne- tiere que e...xorta suas irmãs a seguir o exem plo da Samarit~na "que não t~m
,bres; mas sempre-iin grupo anônimo e nã~ com o uma pessoa singular. vergo nha de pregar Jesus e sua palavra, cq,nfessando-o abertam ente diante de
O c.ri stianismo vai mudar as coisas? Parece que há inicialmente cert~ todo o mundo':12l Ém muitas cidades da Alemanha, da Suíça e sob retudo da
efervescê ncia. Paulo aborda a questão. Herdeiro de urna tradição judaica tan- 'França, as mulheres sobem aos púlpitos. A revogação do f:clito de Nan tes mul-
!O quanto g~ega, ele impõe s~êncio às mulheres: "que as mulheres se calem nas tiplica as prediantes. Nas Cévennes deS' Camis.ards, pode-se contar sete mu-
assembl éias", diz ele na célebre Ep{stola aos Corlntios, aliás, objeto de exegese. lheres em cerca de sessenta predicant:s. [sabeau Vincent, humild e pastora de

t . Pois adJT)ite-se que uma mulher possa profetizar, desde que tenha a cabeça co-
berta a fim de mascarar o sinal mais tangível de sua feminidade. mas profeti-
zar não é pregar. 110
O Verbo é o ãpanágio dos que exercem o poder. Ele é o poder. Ele vem
"dezesseis anos, pro fetiza dormindo. No Deserto, camponesas pronunciam djs-
cursos em estado de tran se, anunciando O Apocalipse se não houver arrepen-
dimento. Em sezuida, tomadas de palavras análogas se prod~zirão 'd~rante as
Alvoradas (Revivals) que, entre 1850 e 1850, sacodem periodicamrente as igre-
de Deus. Ele faz O homem. As mulheres estão excluídas do poder, político e re~ /
jas protestantes. Assim , levantam -se, nos Es tados Unidos, Anna Lee, fundadõ.4
ligioso. No Paraís9•. Eva per:erteu d efiJ~itivain ente a palavra das mulheres. O ra do shakerismo, ou, no Devonshire inglês, Johanna Southcott ( 17SÔ- 1814);
cri stianismo as admite na fé e na prece, mas no silê!lcio d~ arrependimento. A esta humilde empregada doméstica ouve-vozes que lhe dizem que ela e a ,cWo_
19reja primitiva admitia algumas tolerâncias. Diz-se que Maria Madalena con- ma" c10tlzed with the sim" e ela começa uma pregação que chega a converter até
verteu co m SU 3' pregação o Sul d-a. França. Mas esta excên trica era uma' margi- cem mil fiéis. lU
nal. Em. todo caso, a partir do século 12, a Igreja reserva estritamente a prega- Ainda que totalmente de outrá ordem, o saint-simonismo francês apre-
ção a se us clérigos e os instrui para isto. As mulh eres consti~uem s<:u a?ditório senta analogias cqm estes m ovimen tos. Seu at:dente <;tpelo aos. proletários e às
cajado. "Em um m.esmo movimento, qualquer palavra feminina foi . em breve, mulheres suscita, entre estas últim as, uma esperança que as leva a, escrever - há
vista com p rudência ou desconfiança por nu~erosos clérigos, e, subm etida ao então um florescimento .d e petições, correspo~dências, confissões e diários femi-
crivo dos confesso res, testemunhas e censores de muitos impulsos místicos'-:1Jl ninos - e a falar. Os apóstolos se dirigem a elas, como conta um companheiro:
1\. palavra pública-das ,mulhereslna Igreja' está ligada, desde então, à subversão "Elas querem ,nos ver, nos ouvir ainda. Grupos se formam; conversas-começam,
e até mesmo à' heresia. Os valdenses não tinham nada .a dizer contra isso, ad- e até às onze horas os bosques do jardim ecoam as entrevistas animadas, as con- _
mitindo_que uma' ln~lh'er pregasse, se o fazia be~ . Da mesma forma os.cáta~ ferências religiosas nas quais .a palavra da mullier se eleva, igual "à do hom em ll• IH
I . - .
ros ou os lolardos. p I .
Mas, como se. pode ver, trata-se sempre' de situações lim ite. No que se
refere ao tempo: esta palavra d~ ruptura se produz "no ranger das orige ns, o u
119 Apud MA~CHAL. SyJvain. Projet d'tme loi portam défense d'apprcndre j) /ire aux
felllmes. Paris:'[s. n.l, 1801.. p. 59. '
122 CARBONNIER-BURKARD. Mari3Jlne. La réforme en fangue de femrncs. Op. cit.,
120 A este respeito, ver La religion de ma t1~ere. Le r"'e desfemmes dans la trmlSl"ission , p.186. •
de laloi. Sous la direction de J~ DeI~~au. Paris: Cerf, 1992.
123 PERROT, MicheUe. Sortir. In: Histoire qes femmes en Oecident. Sous la direction de
121 B~RJOU,Nicole. Femmts e~prédjcatew"f Ln trarumissiotl de la foi au X/~ eXIlIt sil- G. Dubyet M. Perrot. Paris: Plon, 1991-1992. t. IV: Le XlXe siecle. p. 490.
eles. Op. cit., p. 69. . I
, , 124 RAl-lCrnRE, Jacques. COllrts voyages ali pays dll PCllple. Paris: Seuil, 1991. p. 82 .
,
3 18
3f9
p.,ruJ CÀprrul" IJ
Mllllltrn na ddrule A pcI"'YlII pllblitll das nU/Doert.l

sobre as margens, ou no vazio das Igrejas desmoronadas'~'}!; No que se refere à havia ftito ri sua força e seu charme. Acabaram-se os salões das Luzes em que
forma: a palavra das mulheres.é singular, da ordem da inspiração ou da profe- as donas-de-casa abordavam, sem discriminação, com seus convidados. os as-
cia. Como as Sibilas e as Pítias, as predjcantes contam o futuro. Por elas passa suntQS mais graves. Desde então, a política tornou-se questão séria demais
U)11 fluxo adivinha tório telúrico, um sopro divino. Como se a natureza supos- para ser tratada no salão: é Guizot quem diz isso. llI As mulheres "como deve"?
ta das mulheres - Miéhelet as chamará de feiticeiras - fizesse delas um canal ser" não falam de politica e desviam-se discretamente se por acaso seus convi-
. ,
para as forças do'' ~' lém. Quando elas falam, são substitutas, correias de tran~­ . dados discutem este assunto. Se alguns salões literários subsistem, QS salões po-
missão. médiuns de Deus ou do Diabo: do Espírito. Nicole Edelman fez a his- lítico.,s são raríssimos. Se uma mulher tiver tais intenções - ter um salão políti-
tória das sonâ mbulas, médiuns e eSpíri~as, tão numerosas no século 19, ex- co - ela deve, em todo caso, receber apenas homens, COmo o fez a condessa Ar-
traordinária palavra noturna de mulheres, surda vingança contra as exclusões co nari-Visconti. por sugestão de alguns de seu s amigQs.
e as proibições do poder. lU • Esta exclpsão do político acompanha-se de ~ma evicção das mulheres
Pois o pod;r, mesmo herético, teme a palavra das mulheres. Ele tiatou de todos os locais onde se faia de Ipolíti c..1. e onde ela é feita, como, por exem-
rapidamen,te de fechar-lhes a boca. Ass im fez Lutero, na Alemanha, Antoine plo, as Assembléias. Na Crã-;Bretanha, a proibição é tão forte que Flora Tristan, .
Court, nas Cévennes lembrando, por sua vez, nas igrejas do Deserto a primei- para penetrar na Cãmara dos Comuns, deve se vestir comb homem e ser acom-
ra Epístola
, .aos .
.Corlnh'os, ou o Pai Enfantin, obrigando as mulheres <1 se confes- panhada. Doroihy Thompson mostrou como as mulheres do povo, presentes
s3r publicamente em vez. de pregar. Da mesma forma ainda, e mais gravemen- n o início do século, com seus companheiros nos pubs e nos ;nns, foram gra-
e
te, consid~rando a conjuntura o que est:.\.em jogo, os Revolucionários .Pran- dualmente condenadas ao silênci9, e em segufda reíegadas aos cantos ~curos e
cese$ que, assustados ao verem aquelas mulheres que "têm a raiva para percor- finalmente exchúdas à medid'á que esteS locais se tomavam espaços de cQmí-
I
rec as assembléias e fazem barulho com suas vozes roucas': expulsam-rias das cios.'lt Pois O movimento operário não gosta muito que suas mulheres interve:
tribunas que elas ocupavam ~em cessar e fecham seus clubes, proibind~-as, a . nllam nas instâncias militantes. Mulheres que eJe prefere CQmo donas.de-casa
partir de então, de falar política. U7 Restaurar a ordem é impor silêncio a esta ' I em vez de qu~quer o~tra coisa. Aceitas para .aderir aos sindicatos, as operárias
desordem: a palavra das mulheres . . não podem exercer ali nenhuma função 'ou me~mo tomar a palavra. Segundo
O"século 19 francês .é, a e~te .respeito. particularmente duro e vigil~te. os estatutos da Câmara Sindical Operária de Roubaix, fundada em 1872, "as
Ele a isola mai~ do que nunca no privado, na famüia, na casa. .e na carid<)de~le mulheres ligadas à fábrica de Roubaix terão o dire.ito de gozar dos beneflci~s
lhe atribui funções precisas. Até mesmo a conversa de salão é esvaziada do que da:Câmara .Sindical. CQnseqüentemente, das poderãO' ser ;ecebidas como asso-
. ciadas, ma~ só poderão env'iac observações ou propost~s [... ] por escrito e por '
~
,
meio de dois de seus membros",'- Mais adiante, informa-se que das devem
125 La re1igion de ma mtre. Le. rllle des {e.mme.s dans la trarumissiou de. lá {oi. Sous la
dirêction de Jean Oelumeau. Paris: Orf, 1992. p. 192. passar por Um homem de sua família. pai, esposo ou irmão. Este tipo de dispo- .
126 .f,DELMAN, Nicole. SottlnQmbules, ",ediutlS el sp;r;tes au XJ)(t s;ecle. These de' sições, semp re pretendidas e na maior parte do tempo adotadas, aO' menos. an-
l'Université Paris VII, 1990. "A mediunidade foi assim uma estranha brecha no
endausuramento das mulheres no skulo 19': escreve a autora, p. 622; publicada
COQl o tftulo VOyQntes, guérissell5eS tI lt;sio,maires e.n France, 1785-1914. Paris: }.Ibin l28 Sobre esta história da co'oversaç30 no ~ru1o 19. cf. Mar~ F~aroli, artigo citado.
Michel, 1995. 129 THOMPSON, Dorothy. Wornen and Nineteenth ceotury radical politics: a 10$1
127 GOO[NEAU. Dominique. Cítoyenne.s tricoteuse.s. Les fe.lllmes au pellp/~ d Pilris pe'l- dimension. ln: nre rigllts and wrongs of wome.n ..}uliett MitcheU et Ann Oakley edito
dant In .Révolutiofl. Marseille: Alinéa.!1988;.Filles de la liberté êt citoyennes révolu", NewYork: Penguin Books. 1976 .. p.1l2- 139.
. Histoire. des {em/fIes eJ~,
tionn!lires. In: Occid~nt.
.
Sous
\
la direction de G. Duby et M. . 130 Arcllive.s départeme.l1tlllcs du Nord, M 595/7, peça 6, estatutos da Câmara Sindical
Perrot. Paris: Plon, 1991-1992. t. IV: f-e XlXe siêde, p. 27-43. '- . OPerária .de Roubaix. artigo 10.
,.
.

,, " '.
320 . 321
Pa"eJ
Mulheres /In cidade
CÃJI{tulo 13
A paltll'nI públifa das mul/rerrs
••
tes da lei de 1884, são; todavia, objeto de discussãQ. Assim co mo entre os ope-
••
••
clãs'mulheres, seus gestos mais do que sua palavra. Na fáb ri ca, no escritório ·a
-, rários alfaiates d.e P~ds, em 1874, um certo Cog~et sustenta as disposições res- disciplina dç; silêncio é severa, sobretudo para a mão-d.e-obra feminina, tão 'ju-
tritivas: c<O lugar da mulher não era em. uma assembléia, onde ~ezes falta aàs venil (na ~ prisões, os rigores da regra do silêncio imposta às mulheres provo-

••
calma e ela estaria talvez exposta à falta de respeito, seja por parte de seus ad-
, carão indignação de Edmond de Goncow·t).I"l4 Depois, as mulheres têm aces-
versá rios, seja pela sua quálldade de mulher;'. Godfrin, ao contr~rio, pede a ab - so ao ensino. Mas; de início, esta palavra -ed ucativa, ministrada à infâ ncia, no
rogação do artigo' íncriminado e finalmente o obtém: , «o direito é inseparável interior quase privado da classe, muda pouco as coisas. Diferentemente do que

••
;
. do dever': diz ele. ul Nos- congressos,operários do fim do século, e ainda mais ocorre qu a·n do as mulheres·;esolvem ser ad·vogadas. Como uma mulher pode
nos da CGT após 1895, a questão-da participaçiP 1j- e, da representação das~u- • advogar? Ela não tem nem as capacidades vo·c~is nem a a~toridade para isso .
Uleres é bastante freqüente.tD:ente abordada, nãó sem hesitação e mal-estar, e é ~-A arte oratória, levada ao seu pináculo pela Revolução, é "a revanche ostenta-
um aco ntecimento quando alguma mulher é admitida na tribuna. lU Es'timula-
se geralrpente que as mulheres tenham suas próprias organizações. Tudo .isso
tória da virt':lde viril e da eloqüê.ncia masculina" sobre a efeminação da co n-
. versa de salão.m Conseqüentemente, as pretensões de um a Jcanne Chauvin,
••
tinha, evidentemente, um efeito dissuasivo. Ao 'P'esquisar sobre o "estado de
ânimo do proletariado feminino': wn certo Bonnardel constata: "Na Bo·lsa do
Trabalho de Paris, deram-me inform'ações muito precisas sobre os Sindi~tos
doutora em direito desde 1892, ,de tornar-se ~dvogada provocam um debate
público e parlamentar. Usam-se todos os argumentos desfavoráveis: :<a falta de
,
força física", a extrema dificuldade para uma mu lher advogar "à moda latina",
••
Femininos existentes: o r~sultado não é prilhante, l"ileSmO para os que se·uni-
ram co m os homens. As mulher~s assistem às reuniõ~s em pequeno número e
pode-se observar. que .elas não prestaui mu!ta atenção às disq.lssôes. Não rei-:
o q ue não tem nada a ver com as práticas americanas,!! O perigo a que estavam
expostos os l11agistrados entregues às manobras da sed ução femióina, pois a ••
. vindicam quas~ nunca, não pagam suas cotizações, só as vemos pa.ra pedir tra-
baU,o: nestas condições' estes sindica tos fazem o papel de agência de empre-
na~ureza l eva~a as mulheres a servir-se de sua faceirice.U6 Assim, após a vo ta·
ção da lei de 30 ·de junho de 1899 que lhes concedia o direito de advogar, Lu-
cien Descaves comenta: «Se tpdo o m~ ndo, naquele momento, não tivesse os
••
gos':m.E eis como se fabrica um a Unatureza", urnh tCalma" femini.na.
No en~anto, _as 'mulheres estão presentes nos co midos de greve. Sua vin-
da é até mes~o desejada, como esposas~ a título de apofo, ou de ornamento.
olhos ftxados em Rennes onde se esperava a cheg~da de Dreyfus, o aconteci-
men to da s~mana l ... ) teria sido o triunfo do feminísmo':1l7
O femini sm o) desde a origem, é tomada de palavra e vontade de repre-
••
Os cómis:sários de polícia observam aliás a sua presença e contabilizam o seu
nú mero, sintoma, a seus olhos, do grau de solidariedade familiar e, co nseq üen-
se ntação das mulheres. As Jnilitantes formam grupos" às ve~es diretal:nente
dc;.stinados ao aprendizado da palavra .. Vera Figner co nta em suas memórias ••
temente, d.as chances de duração de um conflito. Da mesma form.a, nos saraus
de apoio, freqüentemente 'Icântantes", as Senhoras são convidadas e têm até ta-
rifa~ reduzidas. Auditoras ou espectadoras, as ;nulheres constituem a platéia.
como organizou, em Zurique, um circulo de mulheres para este ftm: "As mu-
lheres não ousam to.mar a palavra nas reuniões. S~ nós nos reunirm os entre
••
/,
Mas ·t~m muito mais dificuldade para subir ao palco.
No entanto, brechas racham O muro de silêncio. Tra~alho, feminismo e
, movimento operário são seus principais ag~ntes. O trabalho- r~quer o corpo
134 GONCOURT, Edmond de. La Filie Elisa. IS.I.:.s.n.J, 1876.
135 FUMAROL1 ,.op. cit., p. 703. ••
13 1 L-e.Rappel, 28 novo 1874. ·
136 ARNAUD-DUC, Nicole. Les contrad ictions du Oroit. In: Histoire des femlll~s etl
Occidel.1t..-Sous la direction de G. Duby et M. Perrot. Paris: Plon, 199 1-1 992. t.IV:
Le XIX t si&le, p. 98. ••
••
137 l...'1..EJMAN, Laur~nce; ROCHEFORT. Florence. L'Sgalité en marche. Le [éminume
132 .~LEROY! Maxime. La coutume ou~vrjlrel Pati~:.Giard e B r~~e, 1913 . l; p. 75-84 (sobre , sOEJs la Troisieme République. Paris: Fondation nationale des Scieoces PoJ i tiques/~di­

I
as mulheres nos sindicatos franceses)i \
tions des'Femmes. 1989. p. 132; PRASSIN I, M. Les fcmmes et les professions juridiques
IH lbid., p. 84. . \ eu France (fi1l XIXc silcle - 1939). Mémoirç de DEA, Paris 7, 1990.

••
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-;
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.\
322 - 323
,
!,•
"",,, Cupltlllo lJ
MIIUreru fi .. tidOOc Ao puúwm ptlblica d4r mlllhcru
,

,
nós, apre~deremos rapidamente a nos expressar. Proponho a forma ção de um fazer de mim uma oradora e a me fazer falar em público".'~ Mas Most usa sua
vere;1I do qual os homens es tão excluidos.... ~-Apresentar-se ém público é bem . juventude e sey charme p~ra passar sua própria mensagem. Ele escreve seus
mais diflcil. Em 1848, os homens perturbam as conferências das ~lulheres a tal discursos e Emma sofre cada vez mais com isso. O s~ntimento dé extorsão e dê
ponto que Eugénje Niboyet é obrigada a excluí-los. Daumier caricatura feroz- divisão que ela experimenta é tamanho que ela decide romper com Most, Em-
me~te as orador~s de clubes e sua voz. Sob a Terceira República, o feminismo ~ prestar sua voz à palavra de outrem é ainda pior do que o silencio. Foi duran-

.;,.:E torna-se uma vefd~deita tribu~a. sobretudo por, meio aOfo coniressos que se
sucedem a partir de 1878 e que as responsáveis, sabendo que são vigiadas, em-
penham-se em organizar com "calma, comedimento e prudência'~ exercendo
te um comício, em Nova York, para ·operários expulsos, que Emma se sentiu
. inspirada; ela sU,biu à tribunaj.foi aclamada; ela se torna "Emma, a Vermellia':
Muito solicitada, a partir "de então, elà percorre conferências e comkios a pon:

,
~.
elas mesmas uma censura sobre qualquer excesso de linguagem"'" As mulhe- .
res aprendem a dominar seu discurso e sua imagem pública. Os congressos, ti- ,
vera ll'l um ,papel de propedêutico da palavra cujos efeitos e modalidades seria
necessíirio ~valiar, pn;)cur~m-se, então, aquela's que "sabem faJar". Hubertine
Auclert, que ousara representar, em 1879, "nove milhões de e~Cravas" nQ~n­
to de deixar seu novo amante desesperado; para retê-Ia, ele tenta o sui cídio, "~6
para te 'assustar e cu rar-te de tua manüi dos comícios que nada interrompe,
. oen'l 'mesmo a doença \do home1l) que' pretendes amar': I~L Mas, decididamente,
Emm'a p~efere o gozo da palavra ao do amor. Nada mais impedirá sua viagem
para a anarquia em que ela manifesta a sua palavra.

••
I' "
gresso.operário~ de Marselha, grande momento' na história da palavra p.úb1ica
das mulheres. · Louise Michel, Nelly Roussel, Pauline Kergomard, Blanche •
Adélai"de POPP, em La jeunesse d'une ouvriere (1909),'42 contou sua len-
ta penetração no seio de um- partido socialista austriaco especialmente mis6-

•,•
• ,.1
Cremnitz, que assume justamen'te o pseudônimo de "Parrhisia" - ou "a liber- gino. Ao assistir pela primeira vez a uma reunião dQ partido, ela acómpanha
I dade de falar" - são oradoras apreçiadas na França; e cada país tem as suas. seu irmão: "Pelo que sei, nunca as mulheres assistiam às reuniões do partido,

I···
I;

O feminismo cri.ou um espaço de palavra feminina, admitida, a 'partir e meu jornal dirigia-se sempre aos trabalhadores homens (... ). Eu era a única,
de então, com maior ou menor condescendência. O movimento operário, sin- . pessoa de meu sexo na sala, e todos fos olhares se dirigiram a mim, com sur-
dical ou socialista, permitiu um relativ.o confronto entre os sexos em uma con- presa, quando passei'~ Àpartir de então, ela freqüenta estás reuni ões, mas em

~ vivência mista sempre diBcil e contestada. Seri~ necessário comparar, sob este silêncio: "Eu não ousava proferir uma palavra, não tinha nem mesmo a cora-

••
11 .1 ãngulo,oê diversos países europeus. O trade-unionismo britânico, a social-de-
mocracia alemã ou o anarco-sindicalismo francês, qual deles foi mais aberto à
gem de aplaudir". No entanto, ela tem a paixão peja atuaHQ."de: "Os aconteci-
m entos pú?licos me apaixonavam ( ...). Tudo o que dizia respeito à poHtica me

. 1" em su<i~'. autobiografl.;s jnteressava vivamente': Com sua palavra frustrada, ela lê o jornal socialista,.a
Il r '\
palavra das mulheres? Algumas mulheres deixaram, , o
testemunho do que foi para elas o dificil aprendizado da palavra pública, mas ZukunJrJ em voz alta no ateliê e se~s colegas dizem sobre ela: "Esta rnoça fala '
também do prazer que elas sentiam. Para Emma Goldman, jovem judia êmi- 'como um homem", o que a eJ.'lche 'de alegria.· Em sua casa, ela sobe ~ uma ca-
grada· pata os Estados UD:idos, é a progressiva conquista da liberd~de. Inicial- dejra e treina seus discursos. Quando' ela toma -a. pala,:a pela primeira vez em
.'
uma reunião pública sobre o trabalho das mulheres, as pessoas a 'escutam e_
renté,J ela ~oi estimulada.por ,seu amjgo Johann Most: <I~I~ ~stava de;idido a \
;

I. \
140 GOLDMAN, Entroa. P-poph d'une anarcl,iste. Paris: Hachette, 1979. Tradução
138 A:pud FAURt. Christin~. Terre, terreur, liberté. Paris: Maspero, 1979. p. 30.
francesa de Living my .[.ife, citado, p. 35. .
139 KLEJMAN, 13urence;· ROCHEFORT, Florence. L'~galité çn marclle.. U fiminisme
141 lbid., p. 113.
50US la Troüitme Ripublique. P~ ris: . Fondation ' nationale des Sciences
Politiqu.e~r~,ditions d~ Femmes, 1 9~9, passim e seu artigo sobre: Les congr~ , 142 Adél:fide Popp,lA' jeunesse d'urre oU'Iritre, edição alemã, 1909; traduÇlo francesa.
féfninistes intemationa\CO...Mi/tlcuf dmt. revue d'histoire intellectuelJe, n, 7. 1989, Paris: Maspero, 1979, com uma introdução de George Haupt; todaS aS citações são
"Les congres, Iieux de I'échange intel~ctuel". • tiradas desta edição.

.' ., "
)
. 324 325
,; ,:
PllTt, J
Mulll~rts 1111 cidildc

este sucesso a pec~urba. E 'c omo Emma ~oldman , ela se lança na peregrinação Capltlllo) 4
militante e oratória. Sua família, sobretudo sua mãe, jnquieta-se com suas ex-,
cu rsões em bairros distantes e suas voltas para casa muito tardias.IA cidade, a
noite não são para as jovet;s mulheres. Ela adquire uma reputação por' sua fa-
dl.idade oratória, tão .excepcional que os operários se interrogam sobre sua
identidade. Os mü~eiros de Styrie a véem como uma arquiduquesai os tecelães
dizem que ela é provavelmente um homem fantasiado de mulher: " Pois so-
As MULHERES E A CIDADANLA NA
mente os bonie~s sabem falar assim'~ ~ :.
FRANÇA: HISTORIA DE ÚMA EXCLUSÃ0*
Bem entendido, pode:se perguntar: por que este desejo de palavra públi-
ca? Por que esta vontade de s,u blr à tribuna para se dirigir aos outros? Por 'que
preferir a arte oratória à arte dã conversa, à troca, ao jogo mais igualitário .da
palavrã privada? P):ovavelmente, existe aí.~ triunfo de uma concepção masculi-
na, e assimilacionista, em ,d etrimento de uma via alternativa fia ~ociabilidade. A cidadania é uma noção complexa. polêmica, plural.' No sentidp am-
Talvez: Mas o uso da palavra pública significa outra coisa. Ele é símbolo do po- plo, ela significa participação na vida da Cidade (ela própria definida como o
der.e forma o acesso à 'esfera pública da 'qual as mulheres são e..xcluidas, segun- conjunto dos cidadãos), ~ozo dos direitos que são ligados a ela, exercício dos
do co nsta, devido à sua voz fraca, rouca, aguda e sua incontinêncià verbal. deveres que lhe são itribuídos. Poderíamos distinguir. também uma cidadania
Apropriarjse do discUrso e dominá-lo era apropriar-se do mWldó e ten- civil, uma cida4ania social, uma cidadania política, e, todas, colocaram proble-
tar o esboço de . uma revÇ>l~ção. si~bólica inacabada - interminável? - qlte está mas de acesso para as mulheres. Entrar na Cidade, com direitos reconhecidos
no ce ntro do m'o vimento das mulheres. Uma grandf7 aventura, em suma. e iguais, sempre foi um
problema para das. Mas entre estes direitos. os direi-
tos ~vicos e polítioos constituir!lm um drculo de cidadania particularmente
resi stente e fechado. E, na França mais!do q.ue em outros lugares.
Na história contem~orânea da democracia ocidental, il França se distin- -
gue, de fato, pel~ altura do'obstáculo oposto às mulheres no triplo nível do di-
.- reito de voto, "outorgado" de certa maneira por um decreto de De Ga ulle. de
1944; da representação, q~er seja local ou ainda mais Jegisla.tiva, que continua
a ser uma da m<!is fracas da Europai enfim, dã participação no executivo. Esta
última sempr~ foi a "escolha do principe" quer este príncipe se chame Léon

/ •
(
Bluffi , Valéiy Giscard d'Estaing, François Mitterránd ou Jacques Chicac, como
se fosse preciso um .talismã particular para abrir as portas do templo, ;'um'
~bre-te sésamo" para fazer separarem-se aS paredes da gruta misteriosa. Eos
'contrastados episódios, dos quais Édith CreSson ou as "Jupettes" (apelido dad~

I lt" Les femmes e:t la citofenneté en France. Histoire d'une: exclusion. ln: ú.s Femmes et
'. I la politique. Sous la direction de Armelle I..c Bras-Chopard et Janine Mossuz-Lavau,
,! '- Paris: L'l-!.armattan, 1997. p. 23-39.
,- . .""'

326 327
-
CIlP/wlo J4
"'''''
Mullltrts na cid"," AI ",ulhe," e <I tidadm,w n<l Fru/lf4;

, história tU! umll crduJil/)


'\

, às ministras e secretárias de Estado do primeiro gabinete Juppé depois de sua A DEMOCRACIA SEM.AS MULHERES
destituiçãorforam as infelizes protagonistas. ilustram a fragilidade do acess?
(ia mulheres a este último núcleo do poder poütico. g.,te foi O título de um livro pioneiro de Christine Fauré (1985). Obser-
Esta situação intriga por ocorrer em um pais pioneiro na proclamação vemos, d'e imeruato, a dificuldade, a ambigüidade do vocabulário. Trata-se de
dos Direitos do Homem
, e do Cidadão e no estabelecimento
. da democracia e .da excluir as nlulhtres J definitiva ou provisoriamente? Trata-se de uma inclusão
República. "Enigóia", dizia Madeleine Rebérioux em uma troca com Pierre Ro- progressiva, ligada à sua obtenção de capacidade prévia? Os debates· não faltam
sanvallon (a respeito do Sacredu Citore", i992). Convém falar somente de "atra- sobre todas estaS questões.
w" de uma França q~e se ar~asta e em seguida resigna-se a admitir as 'mulheres De início) a Revolução Francesa define uma cidada;nia seletiva em seu
no mei~ dos Santos? Genevihe Fraisse reeus,:, esta expressão que lhe parece ne- i

conteúdo e em seus protagonistas. A cidadania .civil é distinta da cidadania po-


gligent,\ demais (1995 ). COnvém então fui ar de "singularidade" (OZOUF, 1995), , litica; As mulheres ·têm acesso à primeira, em 4ma certa medida e até certo
ou até meSfllO de "especificidade" francesa? Mas então. ligadas a quê? ponto, mas que não pode ser negligenc;ávei. A igualdade na herança rom"e
Pareçe que numerosos trabalhos realizados há'illguns anos permitem com costumes antigos, freqilentemente nada igualitários. Assim, a abolição do
ver esta questão mais claro. Observemos como eles s㺠recentes. Por um direj to normando, particularmente machista, está.na origem do crime de Pier-
lado, ~ãQ das mulheres da poli.tica parecia tão natural Ql!e não..J:e.pre- re Riviere: ele mata sua mãe porque "as mulheres tomaram o poder", escreve
stntava um problema e que nossos manuais escolares citaram trangüilamen- ele em sua célebre confis.são (FOUCAULT, 1973). O estabelecimento do casa-
~Q "sufrágio uniyersal" implantado em 1848, sem preocupar-se com o fato mento como contrato civil, suscetível de ser rompido pelo divórcio, inclusive
~ q!1e ele e.rã apenas masculino. Por outro lado, nem a política, nem mesmo por consentimento mútuo, é um avanço considerávef sobre o qual o Córugo
o poder, foram a primeira, inquietação de uma história das mulheres desen- Civil.napolcônico voltará atrás, fazendo do casamento patriarcal a pedra an-
volvida nos anos 1970, na dependência de um movimento mais preocupado gular/da família e da sociedade. A partir de então, vai se fazer a dlstinção e~tre
COIJ'I o corpo, com os costumes ou a cultura. As mulheres como "sujeitos po- u
as "moças maiores , solteiras relatiyamente iguais em direitos e as mulheres ca-
o:
líticos" não era a preocupação maior. A primeira incitação veio, é lógico, sadas, sub metidas à autoridade do marido, chefe de família, como as menores.
j

dos polit610gos (MOSSUZ-LAVAL, SINEAU, 1983). A atualidade teve sua Mais uma brecha foi criada.
contribuição: as come morações (da Revoiução Francesa, da Liberação) e os Em contrapa.x:tida, as mulheres são excluídas do ~ercícioJ do direito de
debates, recentes e atuais, sobre a paridade, estimulo maior. Porém, houve cidadania. Elas são cidadãs passivas como as CÍianças, os pobres e os'estrangei-
também a influência do desenvolvimento próprio de uma reflexão sobre po- ros. Siéyts, principal organizador do voto em 1789, isso dizia claramente: CI Ta_
der e relações entre os sexos (poder e gênero) da qual a política é sOlpeote dos têm direito à proteção de sua 'pessoa, de-.sua propriedade, de sua liberda-
tim caso particular. Os trabalhos são atualmente numerosos e até mesm o de, etc. Mas nem todos têm direito a tornar parte ativa na formação dos pode-
abu~d~ntes,-sobretudo no que se refere a dois po ntos: a-'Revolução Francesa, res-públicos; nem todos são cidadãos ativos. As mulheres, aomcpos no cstndQ
l ena 'p.rimitiva, exemplar, sem ce)sar revisitada; as lutas de mulheres e o fe- .â!!!ãl-as crianças, os estrange~os, agueles ainda ql.le não coniribuirem iem
minii~o, de. que "temos agora um conhecimento quase panorâmico, graças , nada para manter o estabelecimento público; não devem in.fluenciar ~tivam~~­
aos tnibalh~s das jovens hiítoriadoras que restituíram às-prQtagonistas da .: te a coisà pública". O enunciado é claro. Ele instaura um-a ruptura entre sbcie-
peça toda a·sua estatura. , dade civil e sociedade politica, sublinha a especificidade da ação pública e po-
. .Mas é tempo de co meçar o eSPftác.ulo. inicialmente, para lembrar os , . lítica e exclui dela as mulheres, presentemente incap~zes de ter acesso a e,la. S~
prin<::i pais epis6dios,. Em seguida, para tentar compreender o n6 da' intriga e o gundo Portalis, redator do Código Civil, deve-se a elas "uma proteção perpé-
jogo das interações. ! . ., tua em ,troca de um sacriflcio irrevogável".

,
328 329 ~
Cap/lulp 14
, Parte J
Mulllrrti lia âdad~
N mu/hut$ e li âdadUlrill lU'! Frllllfa;
IrÍJIÓ';O deY'"1l exdllsdo

Esta exclusão seria evidente, natural? Siri"l. para o conjunto dos homens '\ nem trabalhar' sem sua autorização), contradição sobre a qual não se re-
e para grande parte das mulheres que co ntinuam a ser, em sua maioria, cam- fletiu suficientemente.
ponesas e afastadas desta nova cena. Somente uma minoria reivindica o sufrá-
gio para as mulheres; Co~dorcet (De ['administrariaM des femmes QU drait de. A revolução de 1848 é, sob este ângulo, uma etapa decisiva. A despeito
Cité. 1790), que contesta todos os argumentos opostos voto das mulheres, de um feminismo excepcionalmente: ativo, expresso em jornais. clubes, na can-
. - ou Guyomar (Sr:ÉOZlEWSKI; 1989,1991). Enquant OI m de Gou es, m didatura de Jeann'e Oeroin (RIOT-SARCEY, 1994), ela opera uma ruptura de-
Ol~~ sua Declaração dos direitos da mulher e da cidadã (1791), em dezessete artig~s, . cisiva entre socialismo, movimento operário e feminismo, unidos pelo saint-
J.
\AI. r reivindica claramente a total igualdade politicl. Es~a girondina seria guilhoti-
na~a e seu processo é rico em ensi,~ame~tos quanto à desqualificação das mu-
lheres na politica. Chaumette declara: "Lembre-se desta virago, desta mulher-
simonismo que fazia dos profetários e das mulheres os dois pilares da mudan-
ça. Doravante o feminismo será chamado de j'burg~ês" e o movimento operá-
rio funda sua identidade sobre a virilidade. Em se u curso no CoUege de Fran-
homem, a-impudente Olympe d~ Go uges, que abandt:mou todos os cuidados ce (1850), Michelet t'en'de até mesmo a acusar as mulheres pela fracasso da Re-
de sua casa porque 'queria .engajai-se na'~olitica e cometer crimes· {. .. ] Este es-
pública, incriminando su~s ligações com os padres, tese clássica. Daí. acre.scen-
quecimento,das virtudes de seu sexo levou·a ao cadafalso" (SCOP, 1996). Os
ta ele, a necessidade de educá-Ias.
clubes de mulheres serão fechàdos, bem como a Sociedade das Cidadãs Repu-
O $egundo Império aprofunda ainda um pouco mais o abismo políti-
blicanas Revolucionárias, que serviam de locais de expressão e çle aprendiza-
, co entre os sexos. Por um lado, a Igreja acentua a sua influência sob(e as mu-
dos políticos para as mulheres (GOOINEAU, 1989; FRAISSE, 1995):
lheres, por outro, Proudhorl retifica a divisão se.xual dos papéis•.fundruldo-os
na natureza; a dona-de-casa é, a seus olhos, como aliás aos olhos de Michelet,
a única identidade possível para uma mulher, o que será repetido à saciedade
UMA EXCLUSÀO ACENTUADA PELAS SEGUNDA
pelo movimento operário. Todavia, o debate continua, amplia-se e progressos
E TERCEIRA REPÚBLICAS consideráve.is são realizadqs sobretudo no dominio da instrução. Em 1861, Ju -
lie Daubié torna-se a primeira francesa a passar no exame do baccalauréat.... ·
Hti. um abismo cada vez mais p~ofundo entre cidadania social e cidada-
não sem amargas contestações, ant~ de fazer também uma licenciatura e pu-
nia poUtica, por um lado, entre homens e mulheres por outro lado, no exer:.:cí-
blicar La Femme pallvre. Enquanto isso, O ministro Victor Duruy obrjgava as
cio da cidadania, por diversas razões:
comunas, de mais de mil habitantes a abrir wna escola primária para. meninas
e criava os pr~meiros ucursos secundários" para as moçaS". .
pelo fato de qu'e o sufrágio ~amado de "universal" se torna o critério ·
A Terceira República amplia consideràvelmente este esboço de igualda-
da soberania e que ele é concedido ao conjunto dos homens em 1848, .
de na instrução. A Escola de Jules .Ferry não é mista, mas é resolutamente igua-
fazendo as mulher~ se sentirem ainda mais rejeitaqas.
J no entanto, o,papel social da,s mulheres-é mais reconhecido; sua-educa-
ção se dçsenvolve -e se apela cada vez mais para a sua caridade o,u para a
litária (OZOUF, 1992) e Paul Bert abre os primeiros liceus de moças (lei de
1880). O que responde ao desejo republicano de ter "companheiras inteligen· ~
': tes': capaze.s de barrar o caminho da Igreja; mas responde também a uma for-
sua filantropia, e até mesmo pa~a' a sua experiênci~.
te demanda de uma pequena t uma média burguesias preocupadas com o
a lei de 1848, criando a liberdadeI sindical, reconhece esta liberdade
.
para,
todos, homens e mulheres. As ;mulheres casadas podiam aderir a um
sindi~ato sem a permissão de ~u marido (ao passo que ela não pode
1 • • _. '-.,
Eume realizado 'ao fim dos estudos secundários. (N.T.)
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330 331
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acesso de Suas filhas ao trabalho assalariado (ISAMBERT-jAMAT1, (995). Os . versidad~s, aclimatando resolutamente a figura da universitáJ'ia enquanto, com
tempos mud~: os cabelos cortados curtos e as saias nos joelh~s, a figura feminina se libera dos
,
A Terceira...República vai enfim reconhecer a cidadania política das mu- constrangimentos do pré-guerra. Belo exemplo de força de obstrução das mu-
llieres? Muitos eSperam que)sto aconteç.a, como Hubertine Audert no Con- lheres que seguem obstinadamente selt cami~o na sociedade civil. .
gresso Operário de Marselha (1879) e em seu jo~nallA Ciroyemle, ond$ ela de- Mas o domínio político continuou a se fechar, Rapidamente reorgani-
senvolve 'uma argU~entação sólida e arrazoada (KLEJMAN, ROCHEFORT, zado, geralmente com os mesmos dirigentes. renovado, no entanto. pelo apoio
1989j SCOTT, 1996). Muitos, homens, mesmo democratas, hesitam ainda das primeiras gerações de "mulheres intelectuais" (professoras primárias, se-
(como Léon Ricber, que era porém feminista ~e maçom. Entretanto, é verdade
cundárias, advogadas), o feminismo faz do direito de voto seu objetivo princi-
que a maçonaria nao estava ~3. vanguarda do combate sufragista).
pal, brandindo'bandeirolas e car~azes e cantando o famoso "as mulheres que-
Por vólta de 1900, eminentes juristas - Duguit, Hauriau, Esmein - in- / .
rem votar", Desfiles e passeatas se sucedem, sobretudo diante do Senado, tem -
terrogall1":'se. Ele's não vêem r011..1,o jurfd.ica válida para recusar o sufrágio pàra
plo da virilidade onde algumas delas se acorrentam para mostrar sua determi- .
as mulheres, a partir de 1906, alguns se declaram até mesmo favoráveis ele. a nação (BARD, (995 ). Mas ao desdenho da direita ,(excetuando Louis Marin),
Mas para eles,. a Nação excede a Cidadania, As mulheres pertencem à primei-
junta-se a hostilidade decJarada do Partido Radical e a relativa indiferença da
ra, não necessar.iarnente à segunda, O direito de sufrágio é uma função, não
SFIO (Seção Francesa da Internacional Operária) que não faz desta questão
um direito (o que já dizia Siéyes). Eles insistem na complementaridade dos se-
uma de suas prioridades, Decorre daI a decepção causada pelo Front Popular.
xos, Hauriou pensá que as multteres não podem governar: <lemine,ntemente
Evidentemente, Léon Blum nomeia pela primeira vez três mulheres (Cécile
discontínuas, elas se dobrarão dificilmente ao trabalho dos poHricosi nem elas
desejarão exercê-lo, nem os eleitores desejarão confiá-lo a elas" (ORTlZ, 1995).
Bruncschvicg~ Irene Joliot-Curie e Suzanne Lacorre) como subsecretárias de
Estado. Mas a quest.~o do sufrágio das mulheres' não figura no programa do
Durante este tempo se desenvolve um feminismo sufragista que, mes-
Rassemblement Populaire (Reunião Popular) e nenhum projeto de lei foi en-
mo sem ter o brilho do movimento britânico, não deixa de ser vigoroso. A
opinião publica evolui: a das mulheres, cada vez inai,s aesejosas de votar, viado neste sentido ( BARD, 1996). Ao passo. que. nas manifestações de ruas e
como mostra a rapidez de quinhentas mil dentre elas a ,r esponder positiva- nas fábricas ocupadas. ve-se cada vez mais mulheres, /"
mente a IDn referendo organiZ<1do s9br~ esta questão, por um grande jornal. En"l nQme do "eterno' feminino" e da ordem familiar, o regime de Vichy
"As mulheres (o u as 'Francesas) querem votar" torna-se um slogan repetido ·" pre~oniza uma representação das mulheres nos co.n selhos munkipais (MUEL-
ent~e as duas guerras~ A opinião dos deputados evolui também, pois,' em DREYFUS, 1996), não como indivíduos, mas como mães, r •

1914, uma maioria se declara favorável ao sufrágio feminino. O Senadoíaz A Assembléia Consultiva de Argel, pelo decreto de 21 de abril de \9,44
fr&cassar este projeto de lei, em um cenário que se reproduzirá seis vezes du- (artigo 17), define a questão: "As mulheres são eleitor~s e elegiveis nas mesmas
, . condições que os homens'~ Enfjm, Não sem as últimas objeções relativas à au-
r,a nte o entreguerras,
j Durante a gu~rra de 1914-1918, as.feministas d~põ~rr). as armas e se alis- sência dos homens erisioneiros que poderiam tornar aventureiros os votos,de
. (tam, em s~a maioria,. no esforço de guerra, Mas, enquanto em clivçrsos países esposas privadas de "seus educadores naturais" (DU ROY. 19.94). Argumento
eurôpe.usi o direito de voto é reconhecido p'ara as mulheres ao fim do conflito, repetido da incapacidade "natural" das mulheres para
, exercer
. a vida dvica, que
a França política de após o armisticio é resolutamente hostil às mulheres,~ , encontramos ainda subjacente nas últimas propostas do governo JuPpÇ (mar-
jejtadas jl seu papel de mãe e dOQª-dc-~asíl às q"ais §e solicita que deixem os -, ço de 1997): Antes de pretender obter "cotas" aceitáveis nas eleições legislati,
locais de traballio. Elas resistirão firmeIVente a estas injunções tanto para o as- vas, as mulheres devem ser testad~s _nas eleições européias, nas\eleições regio-
. salariámento quanto para a natalidade. ~ as m~ças começam a afluir nas uni- nais e locais,
- , "
,.
332 333
,
P/u1a.3 Cnp/tllU, 14
, Mulllerd na cidade AI mulhueJ e a cidndnl1in /In Fmnfn:
hist6ria de uma .:uIIlJilo

Em todo caso, em 1945, as mulheres francesas votavam pela primeira


mo tempo devota e virago (LE GOFF, 1996), e Catarina de Médicis, para Mi-
vez em sua história. 5,6% delas elegeram-se deputadas. proporção quase idên·
c~elet, o
. ~ ,
exemplo encarnado da catástrofe que representa o poder transforma-
tica à de hoje (6%). Mas um
quarto dentre elas 'eram viú~as. Deputada~ sim;
do em mullier. A tradição ,britânica é, sob este ~specto bCl1"l ·diferente (ZER-
fi m~s como substitutas de um
homem ausente.
MON-DAVIS, 1991 ). Ora, a Revolução, por um_decreto de}' de·outubro de
1789. reconduz a lei sálica, transformando-a assim em uma lej ·constitucional
/'
da nova monarquia (FRAlSSE; 1995).
G!NERO E POLíTICA. ELEMENTOS DE UMA
Da mesma forma. as mulheres não detêm feudos. elo essencial do f6W,:
ESPECIFICIDADE FRANCESA ~dalismo, Elas não exercem a suserania sobre um território e sobre ho'mens. O
modelo do feudo informa e for~ata a representação política moderna em CUf-
É impor-tante lembrar um~ vez mais: o acesso das mulheres ao poder. e, o so no sistema das circunscrições e do escrutlnio majoritário uninominal. Elas
singularmente aQ poder p0lítico, foi sempre difícil em toda a parte. A Cidade aparecem aí. uma vez mais, somente como substitutas de um membro de sua
Grega, primeiro modelo da democracia,' ~ão freqüenten:ente invocada pelÇ>s família. Aliás I notável que este..sistema ~cione particularmente bem para o
l

republicanos e peios revolucioo,ários franceses, as excluía radi:almente. E qua- . Front National.* Na ideologia de extrema direita, as mulheres não têm indivi-
. se tanto quanto a república romana. No mundo contempor~eo. damos fre- ~ualidade e prolonga.m a família ou o casal que as incorporam. A "queda de
qüentemente .como exemplo a lndia ou o .?aqujstão:Mas convém sublinhar o pára-qu edas~' de candidatas, na França, é muito mal vista, principalme~lte pe-
papel da família em tais acessões:, as mulheres sub"Stituem um pai, um esposo las próprias mulheres.
falecidos, de môrte violenta ger,!-lmente. li1as perpetuam sua presença e seu Outra herança do passado: o modelo de 'Corte que form,atou de manei-
corpo. E quando elas se recusam a fazê-Io l são criticadas, como a nor,~:de In- ra eficaz a "civilizaÇão dos costumes" (Elias) e instaurou um certo tipo de re-
dira Ganclhi, 50nia, pouco entusiasmada em suc~dh seu-marido . assassinado.
, lações, insinuando, entre homens 6 millheres, a relação de cortesia (DUBY.
Nada de i.ndividual nestes casos, bem ao contrário. Citamos igualmente o caso . ,
19~1 ) , de galantaria (HEPP, 1992) cujo aparente ,e ncanto recobre uma m~nei-
Thatcher, primeira mulher a tornar-se Primeira Ministr~ (1979) na Europa'
ra de colocar as mulheres a distância das coisas sérias, em órbita em volta dos ·
Ocidental. Más além do fato que bfetival)1ente a tradição anglo-saxã é"mais .
homens que, como astros incandescentes. estariaJ!1 fora do alcance delas, para
aberta ao p"ode~ das mulheres~ Margaret Thatcher, devido à crise, consegue im-
sempre, A galantaria afasta-as mulheres das lutas políticas onde sua frágil be-
por-se em seu partido, e por meiC? dele, na Inglaterra. A «dama d.e ferro" ins-
leza não tem nada a fazer. EJa~ são fei,tas para o amor e para o repouso do guer- '
creve-se no mito da muUler salvadora, tão perigoso quanto seu contr~rio. a
reir~, não p~ra a guerra. A galantaria, tão elogiada, de uma doce frança des-
m~lh~r feiticei,ra ou' d~moiúaca).e baseada nunla ~déia simétrica da naturalida-
de /do feminino. provida assim· de guerrp. entre 'OS sexos, ao con?"ário do 'detestável modelo ,
I .Éntretanto, ~s bloqueio,s .parecem particularmente fortes na França. americano, é~ de fato, profundamente discri.n1inatória. Yvette Roudy contava a
~oda uma série de: fatores foram identificados e podem pe.CI'p.itir a compreen- Mariette Sineau que Lhe era "impossi.vel falar de política com François Mitter-
tão dest'a idenllificação, teórica e prática, do político aos hOrriens~'. , rand, devido à sua goilantaria instintiva" (5IN~U, 1988), Ela dissimula igual-
. .
I· Ipkialinente o peso 4o'passado, tão pres,ente neste "caro e velho país ci-
l
:
mente u~la grande desconfiança quanto à influência política d~ s mulheres
mentado.por su~ hÍstóri~. A herança dos Fráncos exclui as mulheres da s,uces- cuja figura sÚllbolo foi Maria Antonieta. e que é colocada em evidência pelos
são ao .trono, elas podem' ser apenas ' regerites. Toda regência é apreendida revolucionários e pelos organizadores da Cidade, para justificar o distancia-
'. como um m.omento peiigoso.,propicio ~ todas as' intrigas e a todos os desre: ,.
graméntos. Nas duas extremidades do dpectro:
, . Blandle de, 'CastiJha', :ao mes- ~
Fronl National- partido fr,ancês de extrema direita., (N.T.)
'.

,
,
'334 335
.C"plllllo 14
Pune J
ÁJ 1I1I.U~1't1 e 11
cidada"ia /'111 FNllf":
Mulhnn lI" ridlUk
hjlrória d~ 1111111 ac/11S46

mento das mulheres da prática politica: elas a perverteriam. A política é, deci· a este direito por estas razões. principalmente entre as duas guerras e mesmo
_didamente, coisa séria demais para ser abandonada aos salões e à conversa das na Assembléia de Argel de 1944. Sua desconfiança era reforçada então pela .
mulheres, dizia Guizot, que, assim com_o Barante, Rémusat ou Royer-Collard, construção de um feminismo cristão adept? do voto das mulheres (BARO,
in.stauradores da política moderna, recusa a «frivolidade" de ~um século 18 . 1995). As mulheres foram uma questão do jogo de poder constante entre a
muito feminino (R9SANVALLON, 1985). O "grande homem" com o qual eles Igreja e a laicidade.
sonham decididá~l.ente toma distância em relação à mulher que não pode set Enfim, a construção de uma cidada~a universalista e individualista
"grande>~ apenas "um.a mulherzinha" (de Paris). " criou, para as mulheres, uma situação inextricável. As mlllheres não são reÇQ -
~Segundo conjunto de fatores: a maneira fomo se operou a ruptura eo· nnecidas como indivíduos nem Ror sua natureza. nem p~r sua função. Elas
l

lírica eotrs Q Antigo Regimee a modernidade é igualmente esclarecedora. Ela .não têm as capacidades física s para sê-lo. Thomas L.1queur mostrou como, no
contribuiu para sacralizar o po~er poUt..ico. O Cidadão toma 'o lugar do Rei, século 18, o desenvolvimento das ciências naturais e médicas deu um caráter
°
decapita:do. Ele recebe, por me'io deste 'sacrificio, batismo de sangue. Este se...xual aos 'gêneros, pensados, desde a Renascença, de maneira mais abstrata e
processo vitimário e dramático impede qualquer banalízação e coloca a poU:· ontológica. Neste esquema, as mulheres são, mais do que nunca, marcadas p or
ticá sob re o altar dos grandes ritos. O Cidadão veste os tributos e a majestade seu corpo.. ancoradas em uma feminilidade limitadora. Destinadas à ~eprodu­
, do monarca "imolado. Objeto de urna conquista, o poderl'olítico tem algo do ção, elas são o útero vazio que recebe"a semente. O excesso de seu 'sangue as
santuário e da fortaleza, como, mais tarde} o É.ysée* será wn palácio. Tal trans- torna doentes e até mesmo histéricas. No século 19, descobre-se que ,d as tem
ferência de sacralidade opera-se soinente em beneficio do mam,o, único digno ~nervos especialmente irritáveis, um c~rebro menos bem organizado. O espaço
da Sagração do cidadão (ROSANVALLON, 1992). Nesta complexa tradição
\
público' não é para elas; elas são feita~ para "çsconder SUa vida" (Jules Simon)
francesa, feita de uma mistura de Antigo Regime e de Revolução, co m caracte- e vag;lC na sombra protetora do lar.
rísticas de Tocqueville, a atividade mais nobre e ~ se rviço público pertencem a Pois a famUia é a parte que lhes cabe. seu lugar e seu d.ever. Desta fami-
este substitut? dos príncipes, que são os_homens. li~ , elas são os membros indispens~veis, mas submetidos à autoridade do pai
~que, ao mesmo tempo. govern~ e representa a familia. Ora, a famUia é o prin-
A.guestão da lareja e da cultura católica vêm ainda acabar de rnasculi-
~ nizar o npYº poder poHtiCS). Suspeitas de aliança com a Igreja, que efeti~1·
cipal interlocutor do Estado. Anne Verjus mostra o quanto o sistema censitá-
rio "de ~frágiQ eÍ"a farnj1ia!j5la; até mesmo a exclusã~)dos empregados domé$-
mente aposta nelas no século 19, suspeitas de sujeição em relação aos padres,-
. ,
qUi, supõem-se, manipulam-nas pela co nfissão, as mulheres aparecem como ,
- !icos se justificava a~sim por pertencerem à· ,criadagem de uma famUia, ~ao m e-
tr~idoras em potencial: É todo o tema'do poder oculto e noturno das mulhe- ·nos até 1848 que, deste ponto de vista também, constitui um corte. Esta con-
cepção fan\ilialista dura muito tempo e é a"este título que se encara a po~
res que rC!:"UIge. Michelet, convencido da importância estratégica das mulne·
/. , lid;tdes das mulheres chegarem ao "eleitorado: como viúvas ou substitutas de '
-rrs) torna-se o intérprete de~ta tese (cf. La Femme et le prêtre). Ele "atribui a
um,marido ausente (cf. Vichy).
élas o' fracasso da .Revolu ~~~ e da" República de 1848. Mais razão ainda p.ra
Pierre Rosanvallon insistiu muito nesta dificuldade política e estrutural
'que ele pregue a sua ed ucação, atr.lindo para o College de. france, em 1850,
( 1992). ,Ele opOs, sobre esta questão, o feminismo ~ancês, obrigado a <lefender
"um auditório feminino nUJ)1eroso e fervente (Michelet, 1995). O argumento
a capacidade individual ~as mullieres, ~e o fçminismo inglês, capaz de reivindi -
da catolicidade continua a ser iovocado para recusar o direito ao sufrágio. Ra-
car o acesso .010 político em termos de identidade. «Na abordagem utiljtária da
dicais e maçons, vigias 'd o Livre pensamento, eram particularmente r~ticentes
, <kmOcraÇla...qUe domina nos palses anglo-saxãos, as mulheres conguistam os'
direitos 'políticos em razão de sua especificidade. Con~jdera'-se que e)as intro-
~ .. ·0 t:lysée é a r~sidência oficial e local d~, trabalho do Presidente: da Re~Í1blica. (N.T.)
, duzem na es~ra política preocupações e uma, c.1pacidade de avaliaçã.o própria
,
':
. 336 - 337
Ctlpltll/o 14
F'!Jrtc J AJ mll/llCrtl e a til/adania na Frunfrl:
Mulheres 11<1 ddatlc
Ilist6ria de uma exduloo

[.. ·1· f: na condição de mulheres, e não como indivíduos, que elas são chama- Desde el?tào, a política se organiza co mo um ~ i s tel11a masculino em que
das às urnas", Porque as mulheres representam as mulheres; sem sua presença. as mulheres são totalmente desq~alificàdas, visto que elas não podem escolher,
a metade da humanidade não está representada. Estes eram os argumentos nem governar, e ainda menos representar (FRAISSE, 1995). Pode-se tornar a
eI"l:unciados por 1vlrs. Fawcett. M.rs. Pan.khurst e seu aliado, John Stuart Mill. Na feminilidade como emblem~, saturar o espaço público de símbolos femini~os
Grã-Bretanha, as femioistã s.reivindicam a política em nome do sexo, ao passo (AGULHON, 1979. e 1989), Mas as mulheres não podem ser nem eleitoras
que na França, estéÍnesrno sexo é um elemento que-desqualifica. A "consciên- nem deputadas.
cia de gênero" é. do mesmo modo fucjljtada Da Grã-Bretanha enquanto "! A poHtica é uma pQbre atividade, um trabalho de homens. ligado à cul-
França ela é constan temente ameaçada pela atomizacão. A atitude de George tura viril, à cultura das qualidades inatas (a abstração, a vontade da d~cisão, a
Sand, que considerava prem~turo. em 1848, dar o direito de voto às mulheres coragem) e cada vez mais a competênciás adquiridas por Grandes Escolas, fe-
porque elas "não tinham individualidade própria" e fazia da aquisição dos di- chadas às mulheres. ~ um local de exe~dcio da palavra pú\>lica, do afronta-
reitos civis um pré-requisito absolu to, fortaleceria esta tese,argumentada e se- mento, eventualmente brutal. Ela se apóia nos Cí rculos, equivalentes franceses
I dutora que tem o mérito de atacar diretamente o problelna e de tratá-lo em
d os clubes ingleses e ig4a1m en te masculinos (AG ULHON, 1977), onde se for-
1 termos de lógica política. Pode-se, no entanto, objetar que o argumento indi-
talecem e se soldam as fratrias freqüentemente nascida,s no colégio ou no liceu.
J vidualista também é empregado.pelas anglo-saxãs, e que, ao contrário, as fran-
Ult~riorJ11ente, os pal'tidos, politicos retomam o modelo da fratria masculin a
cesas'não se pdvam de colocar em primeiro lugar o j'nós, ~s mulhere~" do gê-
de uma sociedade
. monossexual
.onde as mulheres s30, inicialmente, impensá-
nero (cf. , Si.n Fran"ce Reynolds, qomunicação inédita), Enfun, "a fraqueza ·do '
~ ,~

veis, em se~ui'da, deslocadas, vistas como uma dolorosa intrusão, uma estra-
feminismo francês': tão freqüentemente invocada, vem em parte da ignorân-'
nheza incongruente.
cia historiográfi~a que se tinha a este respeito, e que os trabalhos das jovens
O que dizer do "look" político? Ele tampouco foi elaborado para as mu -
historiadoras dissiparam amplamente. A den sidade mais forte da s~ciabiljda- ,
~ femininas demai" elas suscitam O desejo,que as transforma em objeto.
de feminina no mundo anglo-saxão explica, por outro lado, uma identidade
mais afirmada. Mais masculinas, elas atraem para si o sarcasmo. ~ preferível ter um a cer ta ida-o
de e uma aparência maternal. Na cena política, a mulher é um_objeto desloca-
Sobre estes fu,ndamentos, a política se define e se organiza como um do-
mínio masculino e excludente das mulheres. 'do. oferecido aos olhares masculinos.
~a definição se baseia DO século 19 sob re a teoria das esferas, tentativa
A política supõe tempo, horários i1imitado's, ~m lazer oposto ao tempo
européia de racional ização da sociedade em que os papéis, as tarefas e os espa- doméstico das mulheres (GASPARD, 1995),
ços são equival,~ntes dos sexos. O público, cujo C?tação é ocupado pela políti- Enfun, a própria doncepção da poHtica como competição sem miseri-
ca/ pertence aos homens. 'O privado, cujo centro é ocupado pela casa, é delega- ' córdia, batalha e execução (ao menos simbólica) é distanciada dos cha,inados
d9 às mulheres (sob o controle dos homens). A família opera a junção entre os. valores femininos. Há, na política, uma singular violência que não atrai neces-
dois. O Código Civil atesta seu caráter patriarcal. sa riamente as mulheres:
f
i Esta defini ão é funda ell ' o 'd a Natureza, de Estas condições podem cOl1tdbuir para· explicar Q engajamento relati-
que já falamos, e o da utilidade socia ,que or coisas muito mais aceItá- vamente fraco ~as mulheres na política. No século 19, ex'!.. ur.na situação inad-
veis. Este século, que compreendeu a dinâmica dos costumes, mais fortes.do missível. E a experiência) ao mesmo tem'po e.xcepCional e paradoxal, de Gçor-
que a lei, segundo alguns, e da equéação, chave da produção dos humanos,ce- ge Sand, é sigriific,!tiva em 'sua originalidade. George Sand que estava implica-
,
,I
lebra a importância das mulheres e sua cidadania. social. Não teriam elãs o 'd a pro~dam·ente com o Governo Provisório da República de 1848, cujos Bo-
"verdadeiro" p~der? Qual o pr~b}ema e~ deix:á-Ias ter acesso à política? .", letins ela redigia, distancia-se quando as circunstâncias - no caso as jornadas
.'

338 339
, Pun, J CapttlllQ 14
Mulhertl na mMt NIIIIIU,nu c 11 d dlldlllli .. fUI Fnl~:
hilt6rill rk IINJQ t.XrlllJ~

de junho - enfraquecem a posição de se us amigais, para um-a posição de rela- tivamente pouco e que a dupla jornada de trabalho, o peso e a preocupação
ti-9a exterioridade Iigada- à cidadania da mulher. das responsabilidades cotidianas continuam a s.er o habitual, pru;.a a majoria
A dificuldade é tão grand~ para se aventurar neste campo que muitas' das mulheres.
mulheres desistem. Campo em que s6 se recebem golpes, como dizem todas as Em suma, existe?1 dois empecilhos principais à entrada das m"lheres
mulheres públicas', co~o mostram as dificuldades de Nicole Notat (Secretária n~ca: os panjdos e..o..La.t..
Geral da CFDT) ~l'f novembro de 1995 e novan;ente no outono de 1996, em Estes empecilhos estão ligados aO sjstema de yalorçs que cimenta a so-
. que se vê ressurgir as atitudes m.ais misóginas, referindo-se às mulheres de ca- siedaqç. Em um livro recente, MasculiJtIFéminin. La pensée de la dilférence
belos raspados da Liberação. Coloca-se também 9 problema 90 consentjmen- (1996), Françoise Héritier, co~o antrçpóloga, mostra as raIzes da desigualda-
to ou da aquiescênda di[ mulhereS a seU papel. ai~da mais por 9ue ele ~ cele- de n.o pensamento simb61ico e a exist.ência, ernJodas as sociedades, de um do-
brado e magnificado por um 'discurso mais ou menos ambíguo, invocando os m1nio reSerV3?0 masculino, considerado como instância superior de prestíg~o
. costumes mais fortes do que a lei 'e celebrando a força das mulheres. Por outro e ç:le poder. Este domínio não é imuta~e1; mas ele se recompõe e se reoefipe em
' lado, as mulberet desenvolveram, com a caridade e a fLiantropia, transforma- função ·das hierarquias próprias às diferentes épocas, Nas sociedades democrá-
das geralmente em trábalho social mais profissional, upla intervenção na Ci- ticas, a politica é uma destas instâncias superiores, e. mais ainda na França,
dade que lhes conferiu um verd~deiro conhecimento de peritas e o sentimen- onde, por todas as razões históricas inc;!icadas, ele é objeto de uma valorização ·
to de uma cidadania social eficaz. Ao lado do ~stado providência, não .havia específica. DaI a resi.stência dos home.!ls neste n6 gó~dio do poder, <lpanágiQ vi-
uma maternidade 'sodaJ, paralela, .complementar? Porque a política era inaces- ril tão contrário à doçura de uma feminilidade erigida em mito. Não é sur-
sível para elas, as mulheres puder~ desvalorizá~a, negligenciá-la, até ~esmo preendente que a~ mulheres encontrem tais dificuldades-para chegar ali.
em seu alcance simbólic? e sua especificidade. A politica? Jogos masculinos, Os atuais d~bates e co mbates pela paridade na política mostram ta:lto
fúteis e bastante Vãos. As mulheres não têm nada melhor a fazer? a evbluçãO dos espíritos quanto a força da crispação.
Epflm. as mulheres investiram, na França - e esta é realmente uma es- Neste fim de século - e de milênio - novas divisões se esboçam entre
pecificidade - um esforço consideráyel para ter acesso ao assalariarnento, des- os sexos.
de a metade do século 19, servidas pelas nec~ssidades de mão-de-obra do' n1er-" E para que Cidade?
cado francê,s e pelas necessidades econômicas de uma pequena burguesia em-
pobrecida e desejosa
. de instrução e de emprego para, as suas filhas. Assim, des::.
de-às vésperas do primeiro conflito mundial, o nível de atividade das mulhe- . I
res na França, inclusive das mulheres casadas, era um dos mais altos da Euro- I
pa. Ele continua a ser, ainda hoje: aproximadamente igual ao da Dinam~rca. I,
Es~ integ'ração ~aciça das mulh~res ao assaJatiament?, com perfis de' carrei-' .
rap permanentes ao longo de toda a vida, é o acontecimento ~aior dos últimos
~inta anos, que a crise estimujou~ 'em vez de frear. A independência e>a auto-o
nomia das mulheres, confrontadas, por outro lado, à profunda mod~cação
"
das formas da familia (familias rnonoparentai's com grande dominação femi- ("
nina; por' exemplo), a partir de agora, pas~am por estàs questões.
,. ,
ConseqÜentemente pão é fácil de k.pcootrar tempo livre para a polfu-
oca. Ainda mais que a clivisão das tarefas domésticas e familiares evoluiu rela-
- I, ,
. ,.

340
341
,.
, Capitulo 15

,
/'

o G~NERO NA CIDADE"

A ctclade do século 19, mais precisamente ainda a cidade francesa, foi

,I , um local de hospitalidade para as mulheres? Existe, a este respeitQ, uma dife-


. rença entre os sexos:? A questão do gênero e'da cidade - do gênero na cidade-
I
é relativamente nova. Um Guia Bibliográfico publicado em [992 pelo CNRS e
realizado por um~e quipe da universidade de Ai.,,<:-Marseille, comporta 54.9 ti-
I, tul05:o No entanto, alguns são bastan te periféricos, em relação ao tema «mu-
lheres/cidade': tratando de um ou de outro, mah raramente das' relações entre
os dois.
Segunda observação.: esta questãC! é extremamente conotada, sobrecar-
regada pelas representações e pelos estere6?pos. Há uma visão catastr~fica da
cidade no século 19, visão amplamente moral; da cidade perigosa para todos,
I
e ainda mais para as muJheres cuja virtude ela ameaça. A cidade pr9stituída.
prostituidora, culmina na representação da "Paris-Babilônia", 1:: significativo o
° h,orror, ao "ho-
/-
i vocabulário que op-õe, por outro lado, a "mulher pública':,

, ri
",
,"' ~ ':t / ,
,.. Le Genre de la Ville. Commun;cnt;ons, 65, "L'Hospitalité", Sous la direction de Ánnc
Gottman, p. 147-\63, 1997. •
143 ús·Femmes et la vilIe. Guide bibliogmphique, dezembro de 1992, cNRS, publicado
pela Associação "Femmes et Ville~ 110, boulevard Longchamp, 13001, M~rseil1e . .
Enlr,e os trabalhos mais sugestivos, cf. KNIEBIEHLER, Yvonne (DiT. ). Marseillaises.
i.es fenrmeJ et la ville. Paris: C6té-femmes, 1993; JURATIC, Sabine; PELLEGRIN,
\
\ -
l
I'
Nicole. Femmes, Vill~ et Travail cn Fran~e dáns la deuxieme moitié du XVllt c sie-
ele. Histoire, Société, 3° trimestre, p, 417-500, 1994, fornece numerosas referências
\ para o século 18.
"

343
,
•" Po»',., )
Mulhtft1 ml ,ufade
CÀp(tulo "
o ~ro,.~ cidwI~

:'•
" ruem público", a honra. A primeira i propriedade comum - a prostituta; o se-
gundo, a própria figura da ação. O espaço público, do qual a cidade é uma for.
xos migratórios e ~ divisão dos sexos na cidades, notadamente em Paris, Na
p~iineira m~tade do século, prevalece um desequilibrio: acréscimo da imigra-

"••
ma, sublinha com veemência a diferença entre os sexos. ção masculina,' mulheres raras, sobretudo entre Vinte e quarenta anosl Na se-
·Terceira observação: quando os homens e as mulheres do poyo f..lam da gunda metade do século 19, a partir da década de 1880, estabilização dos mio
cidade, eles não ref!1etem necessariamente esta imagem pejorativa, mas .u ma grantes e vinda' ma.is maciça das mulheres restabe1ec:m um.certo equillbrio. O


" ou tra, muito mais positiva. Exi..ste ti.m "amor peja cidade eptre os operários
franceses no século XIX':144 ainda qU,e a prudência se imponha em razão do ca-
. desenvolvimento da domesticidade, consécutivo ao aburguesamento da cida-
,de, cria até mesmo um excedente feminino, principalmente no oeste da capi-

:'•
ráter seletivo dos testemunhos. produzidos, em sua maioria das vezes, pelos ~aL Estas variáveis são importantes para fenÔmenos como a prostituição, avio...
que tiveram sucesso. A dissimetria sexual é também ai muho forte, devido 'às lência sexual, etc. Há uma demanda de mulherçs que faz delas uma mercado;
dific~ldades que as mulher~sl sobretudo as do povo, têrri para obter o acesso à ria, um valor de uso e mesmo de troca. I" OS iocais de' encontro dos sexos se-

••
escrita, e ainda por cima, a esta forma de escrita sobre si mesma, que é a auto- p'a rados, como os bailes, são essenciais. Paris é, no século 19, uma cidade que
biografia. Ld E.xistem, certam ente, outras fontes, notadamente policiais e judi- dança, e não some nte para seu prazer.
ciárias, I" para conhecer o lugar das mulheres na cidade. A tese de Anne-Marie Seria preciso criàr um lugar particular para as mulheres. sozinhas, pre-

.
e
• Sohn , que se baseia na análise de cerca de se te mil dossiês judiciários sobre os
conflitos privados que colocam em cena mulheres do povo em 'três quartos dos
casos, entre 1880 e 1930, traz numerosos elementos ao assunto que estuda-
47
mos.1 Globalmente, a autora pensa que a ci~ade) no final das contas, mostrou
I
do~jnantes em tôda a parte: no recenseame~t? de 18S1, ,a dma de cinqüenta '
anos, contam·se 27% de homens sós para 46% d~ mulheres sós (34% de viú·
vas e 12% d~ solteiras). "A ddade, .escoamento trãdicional do excesso rural,
tOrna-se o hor~zonte habitual dos solteiros; ela fabrica tanto quanto atrai os so-

.'.'•••
. ser sobretudo um local ,de liberação e de liberdade para as mulheres, e ~e mo -
litários'~'" Isto também fora observado no século 18 e se.confirma no s~culo
dernização das reJações sociais e sexuais, concl usão com a qual concordo ple-
19: três cidades a cada quatro têm, no recenseamento de J860, um excedente
namente. Freqüentemente mad.rasta, a cidade foí também 'ã abertura dos des-
.feminino: Os britânicos, diante do ~esmo problema, denunciam as redondant li!
tinos, uma fronteira das possibilidades, sem dÓvida desigu~l segundo os ~sexos,
"

women com as quais não se sabe o que fazer. As viúvas e as mulheres idosas,'
" mas igualmente para as mulheres.
inativas, c~locavan~ um problema particular. Muitas moram. com seus filhos
A!~umas perspectivas cavaleiras, dem0Sl:áficas, econômicas e culturais
e :· ,
.,
pois a (o-residência persi.stiu muito mais tempo do que se pensa. M "gagás"

.: são necessárias-para a inteligibilidade das relações entre os sexos; no espaçollr-


' bano. As estatísticas ~,o século 19 pe,r;rnitein det~lhar a natureza se.."'( ual dos íi'u-
acabavam no hospital'que não era especia~ente organizado para recebê-Ias.
Os asilos de velhos, estruturas de acolhjmento específicas, desenvolveram-se
verdadeiramente apenas na primeira metade do século 20, no quando se toma
~, 144 .. PERROT, Michelle. Amour des villes et sens ibil it~ ollvriere. Communication au
colloque de Beaubourg, "Là Ville en ceuvres", 1994, publicado' em Mélmlges offerts
.'
consciência de um 'problema da velhlce•. princip.a lmente urbana e feminina,

.
~
e
~:.\
l
,
d Jenn·Pierre. Agllet da ~niversid3de de Lausanne.. 1996;. .
145 PERROT. M. Vies ouvriclU. In: 4s Lieux de mémojr~. Sous la direclion ae Pierre
Nora. Paris: Gallimard, 1992. l.UI: Les France. t. 3: De I'archive à I'embleme, p. 87-
123,
146 , Ver subretudo os trabalhos de FARCi Arlette, LA Vi~ fmgile. Vio le.nce, pouvoirs'er
148 CORBIN. Alain. Les Filles de NQct.. Mistre sexudle et prostitution (XW-~ silcln).
Paris: Aubier. 1978 .
149 ' DAUPHIN, Cécile. Femmes seules. in: Histoire des femmes ell Ocêident. Sous la
direction de G. Duby et M. Perrot. Paris: Plon, 1991 - 1992, t. Iy: Le XIX' siecle, p. I
I

••
solidarités d Paris nu XVIlF sitcle.. Paris: Hachette, 1986. ' 44S-4~2, d.t uma boa visão de conjunto dos problemas e das pesquisas, '-
J47 SOHN, Anne-Marie. Cilrysalide.s. Fei,uutS dan..s la vj~ privée (XlXc(XX~ sie.cles): ISO A recente tese de FELLER, 21ise. Vieillisse.nrent et soc;iété dans la Fra",e du premier
[S. I. ): Publications de la Sorbonne, 1Q'q6. 2 v, . )()(t siecfe. Université Paris 7 - Diderot, 1997, dedica um capítulo a esta questão.
, 'r ,

••• , 344
...

345
'i
Pllrrt J Cap(wlo U
Mlilh~rc, lia ciclade o ~nc"o uo ddUllt

freqüentemente de origem provincial, mas que não pretende mais neces~a ria- direito ao sigilo, necessário para sua privacy: projeto que prefigura os " lares",
mente volta r à região de origem para morrer. ' ,. multiplicados na segunda metade do sécul o pelas associações é. pelas ligas, so-
Estas migrações nos convidam a abandonar a idéia de mulheres en~au- . bretudo protestantes, cujo inve ntário ,seria preciso fazer.m De fato, havia um a
suradas e imóveis. As mulheres Ido século 19 se mexem, deslocam-se, viajam, preocupação cada vez maior com os perigos que as recém-chegadas corriam .
andam em barcos de pas;~geir()s, em berlindas, mais tarde, n a estrada de ferro A5 sócias da Liga de Pro teçàQ da Moça ou da Obra das Estações coloca-
que prev~. aliás; êabinas para mulheres sozinhas. Estas migrações coloe_am a vam-se nas grandes'es'tações ferroviárias parisie nses para evipr que as migran-
questão dos locais de àcolhida. Há poucas instituições, mas redes famili.ares e tes c'rédulas se deixassem ludibriar pelos aliciadores e os proxenetas, -agentes de
de proximidade fazem de Paris um... grande vilarejo. L!1 Os originários da Au- um '(Tráfico de escravas brancas" que drehava a «carne fresca" para redes cada
,vergne ;e agrupam em pá~os que correspondiam à sua comun a de' origem; vez mais extensas, da Polônia ao Rio ou a B~enos Aires.
como na rua de Lappe. O papel de faroilia co mo instância de solidariedade e Segunda série de dados propriamente urbanos. As migrações haviam
de s.ociabilidade é mais central do que nunca. As mulheres beneficiavam-se introduzido uma certa co nfusão dos espaços e dos, s~os. Daí, progressiv"men-
desta hospitalidade privada tan to quanto o.s homens; elas serviam-se ali, de te, o desejo de ~)fdenar a Cidade pela circulação dos fluxos e a especialização
suas qualidades de donas-de-casa e de cozinheiras. As mais i solada ~ eram 'as jo- dos espaços. Nestes dois níveis, as mulheres são atingidas. As mulheres do povo
vens domésticas, ~mpregadas 'po r suas familias, "com casa e comid a", instala- circulam ~ usam a cidade ..cOln o uma floresta, um território de livre percurso
das em quart,os no sexto andar, geralrneJ;lte sórdidos, confrontadas, mais do , onde se pode encont~ar sua subsistência e ganhar a vida. Elas traficam com-
qu e as outras, com a solidão e a sedução.In Fora destas estruturas privadas ou bustíveis, pilham 05 mercados, revendem produto.s usados,. Vendedoras de
patro'nais, havia poucas formas de hospitalidade pax:a as mulh~es. que quase roupas, feirantes, elas usam a rua a tal ponto que o del egado de Policia Gisquet,
não podiam Ó"eqüentar ·os hotéis mobiliados ou os cafés, lugares de homens. em 1836, tomou medidas p ara limitar, e depois, para proibir seu tráfego. Dis-
Entretanto, a suspeita pesa sobre os deslocamentos das mulheres e no- persa r e canalizar as multidões é um dos princípios da haussmannização"', que
tadamente das mulheres sozinhas. Flora Tristan, grande viajante - suas Prome- atinge as class,es populares e principalment~ as mulheres. Entre público e pri-
IIades dalls Lolldres (1840) são um cativante testemunho da diferença -dos se- vado, a calçada, depois da rua, é umlocal ,d~ lut~ surda pela apropriação do es-
xos em uma grande cap.ital e das dificuldades da circulação feminina - teve a paço. Prolongamento da casa, mas além da soleira, a quem, na realidade, ela
hospitalIdade recusada em certos hotéis do Sul da França que tinh am cartazes pertence? Afinal, até hoje, são os moradores da ru!, os respons'ávei's pela IÍJppe-
de "proibido para mulheres sozinhas", por preocupação çom a respeitahiliCla- za da calçadas' em caso de neve.
d~. Ela escreveu, e01, 1835, um opúsculo, Necessidade de bem acolher as mulhe- ~ preciso levar em ~onta, enfim, os, dados socÍoculturais que definem de
r~ estrangeiras; onde preconi z~ a formaçãO d~, uma Sociedad'e pãra assisü.. las. . - maneira cada vez' mais estrita o público e o privado,l~ categorias políticas gro'5-
60~ada de uma' sede e' de uma biblioteca, o~de se poderá ler jornais, ela terá sejramente equivalentes aos sexos. Decorre daí o recuo geral do caráter misto,
como divisa: "Virtude, Prudência, Publicidade':; as sócias usarão uma fita ver-
de bordada em vermelho, em sinal de reconhecimento; elas terão, entretanto,
153 Tese re~ilitada com uma apreStntação de Denys Cuche e Stépbane Michaud, Patis:
L'Harmattan. 1988.
151 ' CHEVALIER, louis. La Fonnation de la population parisienne au Xl)(t siecle. Paris: .Termo construido a partir de Haussmann, prefeito do Departamento do ~n3,
PUF, 1950; Classes Iaborieuses, dasse5 ddt/gtrt:llstS ~ Paris pendant la prcmitrt moi.tié , ' responsável-por grandes reformas urbanlsticas de Paris durante o Segundo ,
dli XIX' silde. Pa ris: Plon, 1958 . . Império. (N.T.)
\ , i '
152 MARTIN-FUGIER, Anne. La PIace éle5 bontta. La dOfllesticité [énrinint. a Pnris cn 154 PERROT, Michelle. Public. privé et rapports de sues. ln: PublidPrivé. $ous-Ia diree-
J900.•Paris: Gra~t, 1979. ' . tion de Jaeques ChevaJier. Curap, Université de PiClrdi~. Paris: PUF.1995. p. 65-75.
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346 347

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ao menos do confuso e duvidoso caráter misto da multidão e do povo e defi- e os organizadores d.a d~mocracia em m;rcha recusavam que a polftica fos-
nição de espaços próprios a cada sexo cuja mistura é considerada perigosa,- 'se uma questão dos salões, coisa séria demais para ser deixada para a frivoli-
portadora de desordem, de imoralidade, de histeria. Os teóricos das multidões dade feminina. In \ .

(G ustave Le Bon, Gabriel de Tarde, Taine ... ) incriminam particularmente a A retirada Hsica e política da'S mJ.llheres do espaço público é acompa-
presença das mulheres. O próprio ZoJa faz delas os si nais e o fermento da vio-
• o •
' nhada por uma invasão de ~ua imagem. O co rpo feminino é o objeto de.um
lência: assim ná' célebre marcha dos mineiros de Montsou. de ' GerminaI , investimento simbólico multiform~. Político: a Marianne encarna a Repúbli-
(l885). m A evolução dos éafés é, no caso, um precioso indício. J~cqueline ca, figura de mãe robusta e alimentadora,'S9 ao passo que a 'Germânia, mais
Laouene, em sua tese sobre "as vendas de bebidas" (1871-1914)"S. compar~u a 'guerreira, representa o Império AJemão após a unidade. A esta tuaria abun-
Bretanha e o norte da FraQça. Na Bretanha rural, o café continua a sér um lo- o dante do século 19' multiplica as alegorias femininas nos frontões das estações

cal misto, onde hom ens e mU,l heres se encontram, bebem e comem "crêpes" . ferroviárias ou dos bancos, coloca musas ' ao ládo dos gra ndes homens que
juntos. Ao contrário, no Norte Industrial, O botequim é um lugar .cada vez elas coroam. Enquanto a publicidade comerciante cobre os muros de cartazes
mais masculino em que as mulheres "hon es tas" hesitam em penetrar, mesmo identificando a atração de um produto à m}llher que o apresenta ou o acom-
quando se trata 'de vir buscar um marido que, num dia de pagamento, ali se panha, O Art Nouveau sc;>bressai 'nesta matéria: Para Mucha, comer um bis-
demora demais. A evoluçãô é idêntica em toda a parte. As fotografias de R~­ - coito LU é co nsumir a mulher ;lssociada também aos novos automóveis. As
bert Doisn~au sobre os bares de Paris, nos anos 1950, ilustram este res ultado: s~u'osidades, as volutas do corpo feminino adoçam e aclimatam a fll.oderni -
dade das ,máquinas. 1.0 ru cidades d"o sécu,lo 19 estão submersas em imagens de
lugar privilegiado da sociabilidade masculina, o bar, o bistrõ, forma popular,
do café paJisiense, comporta al~umas ~aras silhue tas de mulheres, tímidas, que
entram quase como clandestinas. J
.
mulheres. .
.
Se acrescentarmos a isto .os fenômenos religiosos, O desenvolvimento
.A política desempenhou se u papel à mêdida que ela se defint no sé- ' prodigioso do culto da Vir~em Maria e das figuras de santas, como Teresa de
culo 19, como uma atividad ll exclusivamente masculina, e !l~o so mente na LisieiJ...-x, a implantação dos conventos, dos pensionatos, das pequenas escolas,
das obras - estruturas de acollúda que aliás deveriam ser ca rtografadas - con-
cidade. Lucie{lne Roubin, Maurice Agu lhon mostraram este aspecto, a ,res-
l
peito d't "alcova dos Provençais ' e de ou tros locais meridionais de sociabili-
dade viril. 151'. O exemplo inglês é áinda mais impress,i onante. · Dor~thy zamento de numerosas .
.
cebe-se que as relações da s .mulheres COm o espaço. urbano se situam no cru-
variáveis·que
, intervêm na "encen ação da vida cotidia-
~hompson descreveu o processo de exclusão da s' mu.lI:ieres nos pubs e inns na", cuja complexidade foi',mostrada por Ecying Goffinan do simpl,es ponto ~e
' vist.t psicossociológico. .
- transformados em centros nervosos do cartismo. A respeitabilidade da poli-
cica po~tilar pass.ava pela exclusão das mulheres, Por razões análogas,·G~hot · As formas e os lugares da hospitalidade são necessariamente tributários

, destas condições.

!

155 BARROW~,Susanna, Miroirs défontulllU. R~J1ex.io" slIr lafolJle en France a la {In du


XIXt-s~de. Paris: Al1bi~r, 1990 (edição americana 1981). , , I
156 LALOUETIE, Jacqueline. L;es 4tbits , de boísson en France (J871- 1914). Thes~, 158 ROSANVALLON, .Pierre. Le Momem Giiizot: Paris: Gallimard, 19M.
j,
Paris-I.. 1980: 159 AGUlHON~ Maurice. Mnrianne au combato L'i;'lagerie et la symboliqlle républi-
157 ROUBlN 1 Luci~no~. Chambrêtte$'·lIe.s Rrol'ençnux. Paris: Plon, 1970; Mauri«
AguJhon, djvcrsas contribuiçOes r~uridas em Histoi~e vagabonde. Paris: Gallim.ard~
1988. 1: E:thnologie et politiqu~ dã.ns la France cont~mporaine, em particular
caines de 1789 it 1880. Paris: Plammarion, 1979, segu ido de Maritmne nu fJÕuvoir.
L'imnger~e ... de 1880 it '1914. Paris: Flammarion, 1989.
160 QUIGUER, Cl a ud~ , Femmes et machille de 1900. Lecture d'une obsessioll Modem
I
et
"Clas:s.,.e ouvriere sociabilitt avant 848~ . r ..... Style. Paris: Klincksieck, 1979.
,.,
, I~ •

,,
348 ".
349
Aln,J Capi,ulo l'
Mu/hent IIl1,cirlade o ~flcrO liA çidArlC

-
AS FRONTEIRAS DOS SEXOS NO SÉCULO 19: século i9: ler, escrever, seria assunto de mulheres? O babouvista Sylvain Maré-
chal publicou, em 1801, um Projeto de lei sobre a proibiçifo de ensinaras mulhe-
.0 EXEMPLO DE PARIS res a ler, texto de humor talvez, em todo caso, condensado dos estereótipos de
então sobre a relação reticente das mulheres com os livros e com a atividade
Estas fronteiras movem-se singularmente. A tendência é, inicialmente,
intelectual:-'62 Pode-se ler ali~ artigo 52: "A razão quer que enquanto se espera a
uma segregação .cre·s~ent~ e-uma nova ritualização sexual do espaço. Mas de-
/' total realização,da presente lei, as mulheres se abstenham de ler e até mesmo
mocratização I,e efeito de massas tendem sempre a ultTapassá-las. Por outro
de assistir às sessões públicas ou particulares dos Institutos, Academias, Círcu-
lado, nítidas Aiferenças opõem bairros· burgueses e populares. Desta geografia los ou Sociedades Literárias, Pórticos ou VigUias das Musas, Museus, Liceus,
flutuante. podemos desenhar aqui apenas algumas curvas de nivel. Pritaneus, Ateneus, etc.; assim como acompanhar catecismos e cursos, assom-
Espaços proibidos tH m.ulheres; é por exemplo. o caso d~ Bolsa, ao menos brar as bibliotecas (grifo meu ), etc. Não é o seu lugar: as mulheres só estão bem
a partir do Segundo Império,"que viriliz3 o comércio de dinheiro. Jules Valles em sua's casas 0l! em uma festa de família': Artigo 60: "A razão ql-ler que todos
é umà satisfeita testemunha deste processo. "As mulheres, que faziam opera- os bons livros sejam lidos para as mulheres mas não por elas", etc. Temiam-se
ções na Bolsa ficavam, anteriormente, nesta galeria. Elas foram expulsas. e' se us maleflcios.sobre uma imaginaçãO senlpre pronta a brincar.
aquelas que encon tramos a9~i atualmente, são espectadoras indiferehtes. Es·
'I tas damas, com O bom te.ffipo, ficam agora nos jardins que cercam a Bolsa e,
A realidade era, evidentemente, diferente. As mulll.eres, sobretudo na ci-
dade, eram muito alfabetizadas e, também , grandes leitoras, mas na vi da pri-
quando o tempo está ruim, vão não se sabe para onde. Foi feito tudo para im- vada. Situação paradoxal que Françoise Parent descreveu com muita p~ecisão,
pedir.as mulheres de jogar na Bolsa, e se tinha razão. Não falamos pOI' elas, mas em sua tese sobre ~Os gabinetes de leitura em Paris, durante a Restauração":"}
pelos infelizes agentes que tantas vezes elas cansaram, atormentaram, ataca- no início do século 19, mais da metade dos proprietár.ios destes espaços eram
ram (... ) A maioria das mulheres colocadas como sentinelas perdidas ao longo m ulheres, casadas oU.mais freqüenteme nte viúvas; mas as mulheres "adequa-
da Bolsa, alinhadas militarmente contra as grades, é feia como os se.te pecados das" nãq iam até elÇ:s;' enviavam às mais instruidas de suas empregadas domés-
capitais e velha como o diabo ( ... ) Sabe-se que algumas recusam o regulamen- ticas, as camareiras espertas que, ávida~s Cle romances, influíam na leitura de.
to, pegam uma caJç.a, Dotas e uma.-cartola e, assim fantasiadas, misturam-se à suas patroas, como Henri Monnier conta em Le Roma1l de la portiere.
multidi{o dos especuladores.""l O travestismo é. um modo de transgressão das .... Uma vez por ano, na época dos exames do diploma de capacidade, re-
proibições. ~.nquanto o pequeno comércio continua 3 ser amplalJlente 3E.erto servavam-se as bibliotecas púbJkas para as moças. Era a {(quinzena das profes-
f
às mulheres, a finança, o. Banco, os "negócios" lhes escapam completamente. E, soras primárias" que Maxinl.e du C1mp descreve em termos atrevidos e engra_
i ·Io çonseqüe ntemen te; os teatros em que são praticados. . çadoS".1'4 Compreende-se o gozo de uma Simone. de Beauvoir, adepta fervoro-
t.
i Os .
locais intelectuais
'
de cultura tampouco se mostram mais acoihedo··
• sa da Biblioteca nacional: entre as duas guerras, as estudantes fazIam aJi uma
diz
I res. 'Ba'uqelaüe que os ~useus são os únicos locais convenientes para uma entrada triunfal e 'era um novo te.rritório conquistado.
/ muÍher; lugares de_frequentação mundana, e até mesmo de apresentação ma-
I trimonial, mas também çie trabalho, para as copistas atarefadas na Gr~de Ga-
162 FRAlSSE, Genevieve. Muse de la raiJott La dimocratie exclusive et la différence dC5
leria do Louvre. O desenno fazia parte da educação das moças e mesm<;> de seu sexes. Marseille: Alinéa. 1989.2 1 edição. Gallimard. 1989.
, possível ganha-p~o. AS bibliotecas, hoje tão feministas,'lhes faziam cara feja no - 163 PARENT-LARDEUR. Françoise. Lire ~ Paris au temps de Balzac, Les cabinets de lu·
tured Paris, 1815-1830. Paris: EH~. 1981.
,
Plélad~.
1'\
. 164 DU CAMPo Maxime. Paris. scs organes, sesfoltctiotls, sa vie. Paris, 1869·1875.6 v.
161 Jules \falles. L'Argent. "OéograPhie!de la Bourse". 1857. Paris, edição da (uma mina de informações para os problemas que nos interessam, da qual será pre-
apresentada por Roger Bellet. t. I, ~ 25-26. " ~ ciso fazer uma leitura sistemática) .

•i
,
350 351
Parle) C4pltulo ;5
MIIUltI'u /lU cidade O tI,te", 1f4 d djl(lc

Sede de leitura: sede também de escuta. As mulh eres apertavam-se nas u~la Associação das Estudantes de Paris que tem como objetivo fucilitar a inte-
" prédicas dos pregadores em voga; elas fizeram o su cesso de um Lacorclaire. Ou gração das moças, inclusive no plano do emprego,
ainda nos cursos do Colleg~ de France que, ao contrário dos da Sorbonne (ao' Observemos que, mesmo no interior da casa, a biblioteca, o gabinete de
menos na primeira metade do sécuJo), eram acessíveis' para elas por serem trabalho, quando existem, são território masculino onde as mulheres não pe-
"públicos", Elas aDulam às aulas de Michelet, sobretudo quando em 1850, ele netram: o tabernácuJo do deus pensante. Os Goncourt descrevem assill? a casa
colocou em sét....~rograma "Educação da mulher e pela mulher:'11oS Foi preciso de Sainte-Beuve: "". há dois Sainte-Beuve:- o Sainte-Beuve de seu quarto de
reservar tuas inteiras "para as damas '~ "As literatas de Paris marcam encontro cima, do gabinete de trabalho, do estudo, do pensamento, qo espfrito; e um
ali; há algumas carinhas bonitas, muitas atrozes", comenta Henri Dabot, intér- Sainte-Beuve completamente diferente, no andar de baixo, o Sainte-Beuve na
prete da misoginia comum dos estudantes. l " ' sala d~ jantar, em famíl~a, com seu secretário Troubat, s"ua revisora, sua aman-
Os estudantes apreciav~m as costureiras, as jovens bperárias que manti- te la Manchotte, sua cozinheira Marie e as ~uas empregadas. Neste ambiente
nham sua casa e seu lei to,l.7 mas recusavam qualquer presença feminina, quer se de baixo, ele se torna pequeno-b urguês ( ... ) embrutecido 'pelos mexericos das
. tratasse de conciliábulos políticos ou simplesmente de cursos. Quando JuUe mulheres.
.
11O
, se r tomado/ evidentemente, em djversos graus e
Texto que deve
Daubié, detentora de uma aprovação no baccalauréat, conquistada a duras pe- que·não nos dá necessariamente a planta das casas burguesas, mas que expres-
nas em 1861,.<foi preciso a intervenção do saint-sirrtonista de Lyon Arlês-Dufour sa uma representação Idos papéis sexuais e de sua tradução no espaço, quer seja
e da imperatriz Eugênia), pretendeu preparar uma licençiatura em letras, foi au- ele doméstico ou público.
torizada pela ~eitoria de Paris, imas com a condição de não assistir às auJas, para Da mesma forma, hoüve freqüentes protestos ao longo de todo o sécu-
evitaru~a contestação; ela fez então os seuS estudos como autodidata. Em 1893, 10' 19, contra a presença das mulheres nas audiências das cortes de justiça, no-
o curso do professor Larroumet na Sorbonne foi vaiado "em protest? 'contra a tadam ente nos p-rolcessos criminais. O Génie des femmes (1845) escrevé que es-
presen~a das muUleres no anfiteàtro':I" Os professores tam1:>ém tinham reser,:,as, tes espetáculos muito impressionantes têm o risco de acabar com o leite da-
sobretudo em Direito, disciplina cuja austeridade parecia incompatível com a -quelas que amamentaip. Durante o processo de Tropprnann, assassino cujo
presença feminina. As tribulações da primeira estudante de Direito são exempla- crime foi o centro das atenções (ele matou uma famllia inteira) (1869), to-
res. O .Çopselho da Universidade interveio para que o porteiro consentisse a dei-_ mou -se a decisão de relegar as mulheres 'no fundo da sala, t4inovação muito fe-
, xá-la entrar. "Hesitamos para conceder à Senhori ta Bilcescu, a autorização que liz", Ctiz a Gazette des tribunall.x.í71 ,

ela"perua, pôr .lJledo de ter que enfrentar' a polícia nos anfiteatros': diz, no nr11 do Os espaços militares e esp~'rtivos erari, os mais mascuJinos de todos.
a119, um professor -que se regozijava com o resultado: «Vós a respeitastes como · Qualquer mulher que se aproxima de uma cas~rna é suspeita. SO~lente as .úl.
I uma irmã e nós VÇJS agrade~emos~l" Sinal de novos temp~s: desde 1901 écriada timas das prostitutas; 'as tlpierreuses·~ pobres mulheres de soldados, rondam
- ,- . , . .

/
- . I'
seus
- , Ao passo que o desfUe militar, do qual as mulheres são espec-
arredores.
165 MICHELET.. CollrS·au Collêge de Fratlct, lI, 1845- 1851 . Publiés par Paul Viallaneix. tadoras, inscreve na cidade a marcha da viriliClade triunfante.
'. ~ .. \
Paris: Ç1allimard, 1~95. p. 522. . . O florescimento dos estádios e dos ringues inclica o desenvolvimento de
166 Ibid .• p. 527; sobre as trocaS de Jules Michelet com suas ouvintes, p. 529-530.
, , da influência da família sobre o tempo
um lazer viril que pretende liberar-se
167 CARON,)ean-Claude: Cétlérntiotls romatltiqlle5. Les étlldiatlts de Paris cllt. Quarritr livre. Contra a feminização da vida privada,.. eles afirmam os direitos de uma
Lalitl, 1814- 1851 . Paris: Colin, 1991
-~ '.
. .
l68 Arquivos da prefeitura de Policia 4e Paris, B A 27. , "
169 Sobre as primeiras ' esrudàntes, crl
L~CUYER, Car~le. Une nouVelle figure .de la "
170 J. e E. de Goncourt, Jourtlal, edição de 1956, t. 8, 44, (4 de agosto de 1867).
j(une filIe sous la Troisiême Répu~lique: I'étudiante. Clio, p. t66-176, 1996/4. 171 GlUtttt des Tribllnaux, 311XllJ1869.
! '

I
352
-, 353
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--.-
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PilHe) C<lp(wlo /5
Mull. Cru l .tI çidal/. o ~lItl'(t IU1 cidool!

r
sociabilidade masculina, muito legítima, mas que mostra a que ponto a mo- ciante de vinho, "que vê chegar um a multidão de clientes masculinos, sed uzi-
derna dupla "trabalho assalariado {.lazee' construiu- se sem as mulhe.res. In Nos dos pela isca d~ um copo de vinho branco, de um a gota de aguardente ou de
meios populares, no sábado (aquele da se mana in.glesa. que se desenvolve s.?-
!
um jornal". A dicotomia "loja/rua", "vinholleite", "'jornaUpalaVra" recobre a di-
bretudo por volta de 1900-1914), os homens vão ao estádio para ver jogos de co tomia do masculino/feminino que opera como uma e~trutUIa do ~1j SCUISO
f~tebo~ enquanto as mulheres arrumam a casa. O domingo co ntinua '3. ser o tanlo quanto do espaço sociaL
dia das famíliar.' Ó cinema foi, comparativamente, muito mais misto ~; até Pouco a pouco, a mercadoria vai para dentro dos mercados cobertos e '
mesmo, mais feminino. das lojas. As bancas desaparecem, assim como se apagarão mais tarde as vende-
doras de frutas e legumes que, no século 19, ga rantem uma parte importante do
co mércio varejista nos interstícios de uma rede de distribuição, ainda frouxa, de
LUGARES FEMININOS NA CIDADE cujas lacunas elas são o paliativo. Mas mercados e lojas desenham as malhas de
uma rede fechada , ordenada e regulamentada, como são também os jardins pú-
No século 19, em raz~o das co ndições de moradia ma is do que meq..ío:" blicos que progressivamente substituem os terrenos baldios. As lojas tornam ~se
eres, o interior operário representa pouco e as pessoas do p~vo têm tendência i os principais locais de encontro das mulheres, pontos fortes e fixos de sua vida
a "viver na rua", In As mulheres.. sobretudo, cujas funções as levam. para o e.xte- cotidiana e de,bawros 'mais estruturados, espaços intermediários dot~dos de um
r,iar: nos pátios, tão importantes nos prédios pré-haussmannianos, nas ruas, forte poder de integração. I" As formas da hospitalidade mudam) em um tecido
para buscar a água das fontes, Bara procurar ~ombustívej s..(materiais de cons- J urbano adensado, ao mesmo tempo mais confortável e mais disóplinado, onde
trução, esterco), viveres baratos. A cidade é, para es\'ls eternas catadoras, uma
floresta onde podem caçar clandestinamente. Quando os homens parte~ para I .as órculações dos sexos se modificam imperceptivelmente.176
As l:ojas de Departamentos, local privilegiado das mulheres, do desejo
o trabalho, para longas jornadas. a rua pertence às mulheres. Fazem uin .uso controlado das mulheres, fornecem, por si s6, o exe mplo de um espaço a ser
dela qu'e tem semelhanças com o que é descrito por Serge Gr uzinski na Cida- analj~ado tanto no plano espacial quanto sob o ângu lo do trà balho e do con-
de do México,lU mais densamente, com certeza.
A função mercantil: das mulheres, tanto no 'nível da venda qu~to da
I

sumo. No início, os empregados eram masculinos e a clientela feminina. A par·
tir da greve de 1869, o conjunto dos funcionários se feminiza; é interessante
compra,'inscreve-se no espaço dos m'ercados de todo tipo. O século 19 tende a observar o papel limitador da moradia fornecida pela empresa. In Os moç?s,
limitar, a especificar os lugares de troca, a fazer mercados cobertos"graode ! que ficaram' na cidade, condu zi ram a greve; as m0W's, alojadas pelas lojas, fo-
preocupação do Segundo [mp~rio) em sum a, a colocar pa ra dentro os cOl}1er- ram obrigadas a. ficar passivas; a partir de então, o patronato prefere estas "se-
~i' . ciantes- e as mulheres - e~ locais precisos e fechados, mais fáceis de li~ita~ e .nh oritas" dóceis por-necessiqade; elas invadell~ os departamentos cujos chefes
• 'I
c'onteolar. Ora,'3 tendência das muLhere's é d e vender em toda a parte, aà";;' li: i,
i~re: Ça Bédoliere (Les lndustriels, 1842) descreve a ba,nca da leiteira, comumen- I
175 GOURDEN, Jean-M ichel. te commt:rce de détailA Paris au XlXC siedt:. These Paris
te instalada sob os portais, como um lugar de palavra fluida , onde se contam .- 7. 1983. .
! as "novidades do dia e fofocas do bairro" e ele o opõe à loja fechada do comer-
~(, 176 CERTEAU, Michel de. L'/rn1ctltion du qllotidien. Paris: UGE, 1980.2: Luce Giard et
Pierre M3yol. Habiter, cuisint:r. .

172 CORBIN, Alain (Di r.). L'Avenemttlt dts loisirs. 1850-1960. Paris: Aubiu, 1993. ~
In MARREY, Bt:rnard. Les GratJds Magasins des origines à 1939. Paris: Picard, 1979;
PARENT-LARDEUR. Françoise. L6 Derno;selles de. magnsin. Paris: Editio ns
173' FARGE, Arlt:ttt:. Vivre dtins la rue d Paris nu XVIllt siecle. Paris: Archives, Julliard: o uvrihes.. 1969; VANIER, Huguette. Ln Modc el scs /IIétiers. Fr;volités el lurtes de
Gallimard, 197? f.' ' c/ruse5 (1830-1870). Paris: Colin, 19-60; LESSELlER, Claude'. Les employét: dt:
174 GRUZINSKI. Scrge. Histoire de Mexico. Paris: F~rd. 1996. Grands Magasins. Le Mouve",ent social, X-XCI, 1978.

., "
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I 354 355
.. ) ,
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-
Part' J . Capltlllo"
,.Mui/lira lIa ridwle O tI'~ro /I'" cidade

continuam, poré.Ql, a ser homens, geralmentesuboficiais aposentados, agentes ros, nas bordas do Sena, delimitação de um espaço especifico de lavagem. Con-
de uma disciplina totalmente militar. . tam-se mais de'sessenta desteS barcos, em 1880. M~s já os urbanistas do S~gun­
A ambigilidade é igualmente forte no campo do consumo. Zola mos- do Império trataram de eliminá-los por razões econômicas - e s~ciopoliticas:
trou a que ponto as Lojas de Departamento eram templos da tentação e do. quer-se desafogar o cen tro de Paris em proveito dos bairros periféricos. Dai ã
prazer: prazer do )UXOj em que, numa orgia de luzes e perfwlles, as mulheres construção d( lavadouros chámados de "em terra firme'~ O p.ovo, as mulheres
sonham co~ beléí.a e acariciam os tecidos como elas fariam com um corpo ' sobretudo, deixa o Sel1a e o perde.
amado. Nada surpreendente que o roubo nas Lojas de Dep~rtamentos se tor- O lavadouro de terra firme é um espaço organizado. EIt? sua coiÚigura-
ne, no século 19, uma forma maior de uma deJinqOência feminina aliás decres- ção e>..1.erna: durante a Terceira República, finca-se ali uma bandeira, sfmbolo
cente, gesto de costureiras e!fl falta de material, de operárias em busca de biju- da aliança entre a República e a água; e~ sua estrutura interna baseada na dt-
terias) de mulheres Qlunda~as obceca,das pejas novidades. Os psiquiatras ana- visão das op,eraçõesj e'm sua disciplina - o mestre do lavadouro é um homem
lisaram, ao longo de.muitas páginas, sua c1ep.t omania como uma forma de his- ~ seus horári os, suas t'écnicas.
teria, expressão de uma sexualidade de substituição. Local de fantasias, a Loja Mas é também - sobretudo? - um lugar de hospitalidade e de sociabili-
de Departamentos alimenta o im.aginário da cidade sex:uada. dade para as mulheres que esperam do lavadouro algo além da lavagem das
-. roupas. Podemos avaliar este fenô meno, por exemplo, através do romance po-
~.
- puJar de Jules Cardoze, La Reine dlllavoi~ (Paris, 1893; edição ilustrada de 1396
UM ESPAÇO FEMININO'TípICO: O LAVADOURO p.) que descreve .de maneira muito viva a vidà cotidiana de um lavaCiouro no
fim do século. Nluita coiSa se passa ali, entre..as mulheres (neste caso, O lava-
Entre as mulheres e a água, o vinculo é imemorial. Ele é reforçado no douro ado ta a filha natural de uma mãe abandonada, jenny, que se torna a fi-
século 19, pela preocupação com a roupa branca, c!;lave de uma primeirél revo - lha do lavadouro), entre elas e o exterior. Na 'pausa ...~o meio-dia, os cantores
lução. i~ldustriaJ essencialmente têxtil, preocupação tornada m~is obsessiva ambulantes fazem as donas-de-casa dançar,~ e.qquanto o fotógrafo lambe-lam-
pela exigência de uma limpeza ainda muito ilusóri", em razão da fraqueza dos -" be vem- propor-lhes, com a ajuda de acessórios, uma imagem transfigurada de
equipamentos. ln: A impossibilidade de estocar as roupas sujas comO.se faz no si
si mesmas, 'que faz parte das novas apresentações de que, como uma onda~
.campo, onde os gral1des "v~pores" se prod~iem apenas algumas vezes por àno, percorre aquele fim de século.
obriga as mulheres '3 lavagens .quase semanais ou até mesmo mais freqüentes. O liVadouro aparece também como "Um lugar amoivaJente. Centro de
A lavagem1se insinua em sua organização do tempo e o lava<!.ouro, em sua prã- , uma real solidariedade feminina, material (fazem-se ali coletas para as mulhe-
"
tica cotidiana. res "em apuros"), afetiva, cultural, de uma culturu"popular de bairro da qual as
.'
! ·Tradicionalmente, os locais de lavagem eram muito -dispersos. Lava·se _ -lavadeiras e as donas-de-casa são .um ~os pilares (assim, elas animam as festas
.~ rÍ1 t~d~ a parte·o.nde existe áiua, aO longo dos rios,· nas fontes, junto aos po- da mi·carême, festa das lavadeiras), o lavadouro é também um meio .de educa-
I ços ~ até mesmo em poça.,s d'água, Mas esta disseminação dá lugár-a u~a po- ção do espaçb-lempo da dona-de-casa que os organizadores_consideram p;:.
licica mais voluntarista de concentração. Primeiro estágio: os barcos-Iavadou- cessivar'nente fragmentado, fluido, irracional. EI~ deploram este tempo perdi:
do e é pelo viés da lavagem que se começo u a refletir sobre o gestão do' tempo
da dona-de· cas a e sobre uma racionalização possível da produção 'doméstica.
178 Desenvolvi estes diversos aspectos mais longamente em "Femmes au Lavoir",
Sorcier:eJ, janv. 1980. Sob re a po~ca higiene pública, cf. MURARD, Lio n;, A mecanização e a organização dos lavadouro~ 'foram tentadas em Paris du-
ZYLBERMAN, Patrick. L'Hygi~Tle d{l~s la République. La santi publiql/e en France . rante o' Segundo Império; no bp.irro do Templo, instala-se, com altos custos,
ou l'utopie cOfltrariée (1870- 1918). Pa(is: Fayard, 1996. ..... um lavadouro copi.ado do modelo inglês; ele fracassa pois, separadas umas das \

356 '.
357
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CDpI'u/o 1$
Mulhtrcs 11<'1 cidade O fintro /In eMane

outras por divisórias que delimitam pequenos espaços individuais. as mulhe- na-se cada vez mais intolerável. As teorias antropológicas da época apóiam,
" res não podi~llí mais falar entre si. BeJo ex~mplo de uma resistência feminina a1iás, este tema da ~nlllher sedêntátia - conseryadora, civilizadora - oposta ao
. a uma forma de hospitali4ade urbana que não lhes convém. A mecanização . !'tomem n6mad~ - aventureiro, guerreiro, caçador. predador, mas taIl1bém des-
dos lavadouros continua, entretanto, na segunda metade do século, coloando cobridor, inventor. Eis uma anedota reveladora, reiatada pela GazeNe des tribu-
progressivamente fim ao lavadouro enquanto lugar de mulheres. Nos lavadou- naL/X (24 Xl 1869): um pai de família vem pela sétima vez buscar seu fiUlO acu-
ros mecánizaclor,as máquinas são confiadas aos homens, as mulheres perdem sado de vadiagem; com quinze anos de idade, ele ~tá vestido como menina e
o controle dot,s operações de lavagem e circulam em um espaço.,tempo do qual foi preso como tal, em companhia de um menino. O pai: "Não consigo mantê-
elas não têm mais a gestão ou o gozo. lo em casa. Ele sempre encontra um meio de escapar. Eu pensava ter tido uma
O lavacl0!lro, local ~e sociabilidade das mulheres, transformado em idéia melhor ao vesti-lo de menina, achando que isto o impediria de ir vadiar.
meio de sua socialização, constitui um observatório privilegiado dos modos de Pois sim , vejam! Ele fugiu da mesma forma, No ano passado, eu o coloquei em
hospitalidade urbana. La Roquette durante um mês; nada mudou. Ele precisa vadiar...... Ao mesmo
tempo, pode-se avaliar a extrema importância das roupas e porque, quando '
querem sair de sua condição de mu~eres, algumas delas vestem-se como ho-
LOCAIS MISTOS, O PROB~EMA DO CARÁTER mem : George Sand, evidentemente; Flora Tristarh para penetrar no Parlamen-
MISTO DO ESPAÇO URBANO NO SÉCULO 19 to Britânico; Rosa Bonheur, para pintar (ela teve que solicitar uma autorização
da chefatura de policia de Paris, p~is um decreto napole6nico proibia as mu-
,I Em nome da radonalidad.e da ordem, o século 19 leva muito longe a di- lheres de se vestirem como homem); Louise Michel, para combater na Comu-
visão sexual dos papéis e, conseqüentemente, dos espaç.os. Sol? o ângulo.urba- na, e muitas outras por todo tipo de razões. Vestir-se como homem é penetrar
no, a tendênci~ geral é d..e um recuo das situações mistas espontâneas e do de- no espaço proibido, apropriar-se dos locais reservados, torná-los mistos. Este
senvolvimento de situações mistas organizadas. Ao menos este é o projeto, per- tipo de desafio simboliza as exclusões que o século 19 impôs às mulheres.
III manentemente ameaçado pelo fluxo dos recém-chegados e as resistências po- O estudo das passeatas dará um último exemplo. Grande forma da vida
. pulares. Bem entendido, não se trata de opor um .éspaço espontâneo d~' um vi- democrática, a passeata, na 'França, nunca é realm ente permitida porque é
larejo a um espaço urbano controlado. ~o contrário: é provavelmente. porque preciso sempre obter uma autorização junto aos poderes públicos. 'lO Vincent
a "multid~o" urbana aparece como desorganizada e selvagem, co mo o auge-da .Robert mostrou co mo, porém,-a passeata aclimatou-se em Lyon entre 1848 e
confusão perigosa, que os poderes tentam introduzir ali uma-ordem. & des- 1914, apostando no número que faz a sua força. na presença da multidão, no
cobertas de Pasl5uf, os micróbios, as teorias do contágio e da propagação_das. , gesto e na palavra mais finamente ritualizad9s. Usada 'por categorias sociais e
d~e'nç.'\s infecciosas reforçaram ainda a suspeit~ do caráter insalubl:e das pro- ..:. . polfticas cada vez mais diversas, a passeata cria suaS normas. No entanto, dois
I~isé~idades de todo tipo, e sobretudo sexuais.
_ ; traços n ca~acterizam: com ampla dominação operária, ela é assim como a po-
A regulamentação ansiosa da prostituição, forma extrema das si tuações lítica, um assunto de homens e cada vez mais excludente das mulheres, sob re-
/ m;stas org~nizadas, tornou a cidade noturna ainda mais inóspita para as mu- tudo após .1848 qua"ndo se afirma uma cultura g.emocrática cuja dignidade se
lheres, suspeitas de serem "clandestinas" a partir do momento em que deambu- ostenta 'nas marcas da virilidade. Durante a ?egunda República, em' Lyon as- \
Iam sós, após urna certa hora. '''"na mesma foram, a vadiagem das mulheres tor- sim como em.Paris. as passeatas femininas são consideradas como manifesta-

,
119 BERLlhRE, Jean-Marc. I.:a .polict d~ ttlreurs SOIlS la Troisitme Répllbliqlle. P;Jr~: 180 FAVRE, Pierre (Dir.). lA Manifestiltion. Paris: fundation nation31e des Sciences
Seuil, 1991. " . ' . '- Polit iques, 1990.
.'

358 .' '.


359
-,
, ., .....
Ptlrft '
M" lhtrn 1IC1 rUlndc \

ções de "mulheres perdidas': "desfilando em grupo", até mesmo os Vorazes, ul-· Parte 4
tra-revolucionários lioneses as condenam. E como se falou , na capital, .sobre
as Vesuvianas, mulheres que pretendiam carregar armas e montar guarda. I' 1
lu mulheres podem figurar nas passeatas, mas em seu lugar, funci çmal ou ri-
tual, de porta-bandeira, de porta-cartazes, apoio ou ornamen to; jamais por
/ ,
elas mesmas. 'foda passeata de mulheres, grevista ou feminista, é percebid:a r
como inconvenjente ou subversiva: Representação geralmente interiorizada '" FIGURAS
pelas mulheres que, em s~guida, vão se sentir tão deslocadas nas passeatas
quanto nas tribunas dos çornfcios. Se a rua cotidiana é hospitaleira para as
n.lUlheres, a rua polftica, ao contrár io, rejeita-as, em nome de uma concepção
viril da publicidade. ...
Estas observações certamente não esgotam o tema da hospitalidade ur-
bana. Seri~ necessário realizar um inventário destes locIDs e de suas formas,
públicas e privadas, na diversidade de suas funções. Mas não se pode fazer a
abstração da diferença dos sexos. que percorre e faz o tr~çado da cidade, espa-
ço social, étnico e sexuado.

.,

: ,
,I ' ,
18 1 ROBERT, Vincent. Les Chemins de ~a manifestation" 1848-1 914. Lyon : Presses uni-
versitaires, 1996. I . , , i-

.'
360

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FJQrª~Tri$taQ e George Sand não gostavam milito· !lwá da outra. Elas
se impacientavam êom seus respectivos comportamentos. Flora invejava
••
, I
George. que já era célebre, enquanto ela penava para poder '"publicar. Geor-
ge se initava ,com as recriminações de Flora. Na verdade, estas ~ontemporã­ ••
,: I
ocas mal se cruzaram. Flora morreu em 1844 -e George. trinta e dois ~nQS
mais tarde (876). No entanto, diversos traços as aproximam. a ponto que
se pôde falar de "vidas no espelho": sua 'revolta contra a condição das mu-
••
··,1,
lheres. que ambas experimentaram na carne; sua vontade de justiça social,
mais operária ' para Flora, co nsçie nte . das mutações industriais e urbanas, ••
'.
1'1


objeto de sua pesquisa, mais classicamente popular para George, amiga e
I apoio dos operários escritores e poetas, oriundos das velhas profissões: pa-
. deiro, pedreiro, marceneiro ... ; enfim, sua idêntica preocupação com a mo-

\ \ :~
,i
rai em ppLítica, 1 .
Na verdade, os textos que se seguem, distantes e disparatados, não têm
nenhuma intenç.ão comparativa. Eu os escrevi a pedido de dois homens, de ge- ,
••
/ rações diferentes, mas igualmente convencidos do \nteresse em e'studar as mu-
••
.'•
lheres na história. Stéphane Michaud lhes consagrou o essencial de sua obra e
/ , dedicou-se a Ic:var a conhecer Flora Tristan. a "pária': por meio de publicações

" ,

MICHAUD. Stéphane (Di r.). Flora Tristan. George Sand, Pauline Roland, ' Lu
femmeJ et l'invenrion d 'une nouvdle morale (1830-1848). Paris: Cré,aphis, 1994, e
sobretudo Madelcine RcWrioux. "George Sand, Flora Tristan ct 13 question
sociale", p. 83-94. ~
"
,
" ~

363
••

.1

'.
Polrtc ..
Fllunu

diversas e de colóquios,1 No colóquio de Dijon, eu quis evocar a atividade de,


Flora, pesquisadora, surpreendente viajante que quer ver, para compreender a " Capitulo 16
,
questão social que a assombra, e morre no caminho.
Georges Duby, PQr sua vez, deplorava que na coleção que ele dirigia na
imprensa nacional, "Os protagonistas dá História", destinada a publicar gran- ,
des te..xtos de alG8fi~e político ou social. não havia mulheres. Ele me sugeriu
Les Lettres au peuple, de George Sand, que eu ignorava completamente. Após \
a verificação feita, estes opúsculos eram finos demais para constituir um livro. FLORA TRISTAN, PESQUISADORA"
Mas eles me , deram a idéia de reunir o conjunto dos escritos politicos de
George Sand ~ 'a busca mos'ti?u-s~ tão p~oveitosa que tive que me resignar a
pllblica~ al1enas um sÓ volUlne', mas exaus~vo, de se,us escritos entre 1843 e
1850, época de seu maior engaJamento. Quero agradecer à imprensa nacional
e sobretudo a Jean-Marc Dabaclie, por ter-me autorizado a reproduzir minha
Em 1840, no m~mento em que Flora Tristan publica as Promenades
apresentação.
A história das mulheres escreve-se inicialmente sobre o modo da exce-
dans Londres (Passeios em Londres), a pesquisa social tornou-se, na França. e
ainda mais na Grã-Bretanha, um procedimento relativamente co rrente. "Para
ção: exceção das pioneiras que quebram o silêncio. Retratos, biografias, per-
governar o. corpo sodal, é preciso conhecê-lo; para conhecê-lo é preci~o estu-
cursos são alguns de seus caminhos possiveis, muito freqüentados nestes últi-
dá-lo em seu conjunto; conhecer sua origem. sua história, sua população, seu
mos tempos.'
território, seus costumes, seu espírito, sua força, sua !iqueza': escreve Marbeau,
Não há nada disso aqui. Somente alguns passos, fragme ntos de vida, um
em um texto que traduz o organicismo da época.·
pedaço de caminho co m auas mulheres excepcionais por sua estatura, sua
, Inquietante tumor da sociedad~ industrial, o "pauperi~mo" é um te.rre~
e..'Cistência fora das normas, e sobretudo, por sua p~ixãO pública comum.
! .. no privilegiado de investigações. Na ausência de instituições oficiais, o .Es.tado'
. - na França - recorre à Academia de Ciências Morais e Políticas para a quaJ
~
.Villermé realiza seu célebre Tableau de l'~tat physique el moral ~es o,uvriers\qui
2 MlCHAUD, Stéphane. ~usc ef Madolle. Visnges dI; la lemme de la Révolution
travaillent i:Jans'les marll/factures de coton. de laine el de so je (Quadro do estado
- fra1lçaise aux apparitians de LO/lrd~s, Paris: Seuil , 1985; Flora Tristall, 1803-1844. ,
Paris·: E.ditions ouvri~res, 1984; Flo~a Tristatl, Ln paria et son rêve. Corre.spondance,
Paris: ENS-tditions, Fontenay/Saint-Cloud, 1995 (ediçào integraj com numerosos r _ .
.. , Flora Tristan, enquêtrjce.ln: M1CHAUD,Stéphane (Dir.). Un fabuleux destin: Rora
inéditos e cartas dos correspondentes ).
1ristan. Dijon: Ptesses Universitair~, 1985. p.~ 82'-94. .
3 DUBY, Ceorges. Dantes d,! X1r s;~de. Paris: Ga~Umard. \995-1996. 3 t,; OZOUF,
4 Marbeau, PoJitique des ;lIlbits, ou Essais sur les moyem d'améliorer le 50rl des lra-
'Mona. Le.s Mots de.s fentme.s. Paris: Fa)"ard, 1995 (ver sua retlex30 liminar sobre o
vailleurs sons nu;re aux propriétaires. Páris, 1834, Para a história da 'pesquis:t'socta l
retrato); DAVIS, Na,tatie Z. Juive, Catlroliqlle, Protestante. Tro~s femme5 ell marge au
no sécUlo 19, ver: RIGAUDlAS-WEISS, Hilde. Les enqulles oJlvritres en France entre
XVI~ siecle, Paris: Seuil, 1997; SCOTI3 Joan W. La citpyen1le'paradoxale. Les fimi-
1830 et 1848, Paris: AIcan, 1936: PERROT, MicheUe. Enquétes sur la condition
nistes françaises et lq droits de l'homme. Paris: A1bin Michel. 1998, pàra citar apenas
ouyrim en Frtince au XIX! sikle. Paris: Micro-éditions Hachette, 1972: LECLERC,
alguns dos mais recentes e mais notáveis livros construrdo§ sobre o modo do retra-
G. L'Observarion de I'lJomme. Une lIutoire des enquétes sociale.s. Paris: Seuil. 1979.
to. Sobre a noção de excepcionalidade, cf, Lt: genre de I'histoire. Calliers du GRIF,
• Para a Grã-Bretanha, NAVAlLLES, }.- P. LA FartlilJt'oullt';~re dam J.'AIlgleterre viclo-
,
.1 37/38, printemps 1988, sobretudo os trtigos,de Christine Planté, "lkrire des vies de,
rienrle.l:ditions Champ Vallon, 1983, (CoII. Milieux). Para o cc,mjunto dos proble-
Jemmes': p, 57-77. e "FelllJlle5 except~bnneJJes: des exceptions pour quel1es regles?",
p.. 9l-.111. .l , , mas evocados aqui, o livro clássico de CHEVALIER, L. Classes laborieustS. Classes
dallgerellses à Paris 'dam la premiere moitié du XIXe siecle. Paris: Plon. 1958.
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364
.. 365 .
P/JITe"
FíguraJ " Ctlprwlo 16 '
Floro TriJt'lII, ptJq l4istldom

fbico ç moral dos operários que trabalham lias manufaturas de algoddo. de lã e res são habituais "visitadoras do pobre'~7 Desde muito tempo, os deveres da ca-
de seda}. Filantropos. economistas, adminis.tradores, médicos sobretud~, ana- ridade as co nduzem aos hospitais, às prisões, ao dom.icilio das famílias neces-
J
I lisam as camadas mais baixas da sociedade urbana, os bairros mais denso~ r: si tadas. Entre as mulheres e os locais do sofrimento, existe um vínculo íntimo
onde se comprimem os migrantes e que são devastados pela cólera-márho em. que passa pelo sentimento do pecado. Flora, como mais tarde Simone Weil, se
1832.' A topografia médica serve de modelos a estas monografias que privile- sente culpada pela exploração operáriaj ela tem remorso do luxo e) por is~o,
giam o lugar em....~~z do grupo social. Entretanto, segundo a linhagem de um ódio do burguês. Progressivamente, a Igreja, e em seguida o Es tado, saberão
Ramazzini, as doenças profissionais atraem a"atenção sobre as condições das captar estes devotamentos para suas políticas de assistência e de controle mo-
profissões e os jornai~ opeclrios. como L'Atelier ou o Populaire. desenvolvem ral, fazendo das mulheres um instrumento de "trabalho social",' sem, no en-
suas observações nesta direção. Enquanto uma
demografia balbuciante ruscer- tanto, que isto implique em algo mais do que pequenos deslocamentos na vi-
ne a desigual.d ade entre ricos e. pobres diante da morte, angústia existencial) zinhança, na paróquia ou no bairro.
critério ele nível de vida. Os obstáculos para a pesquisa distante são muito grandes. No sécul o 19,
~.
P~squisar assumiu, por outro lado, um sentido moderilO. Não se trata a circulação d~s mulheres sós tburguesa.s sobretudo ) coloca pt:oblenras. Ade-
I
·fin·ição do político com o apanágio masculino fecha-lhe muitos· espaços públi-
I mais) unicamente, de compilações eruditas de documentos preexistentes, a~n­
da que a preocupação de reunir sé ries de fatos "mensuráveis" tõrne este traba: cos.' Flq,ra tem a experiência deste problema: em abril de. 1838 lhe é negado, ·
como mulher, o direito de participa~ do primeiro ba nquete de aniversário da

I
lho - a estatística propriamente dita - indispensável. A exigência de observa-
morte de Fourier. 1O Os companheiros não admitem em seus banquetes nenhu-
ção direta, vinda tanto das viagehs de descobertas quantb das práticas médicas
ma mulher· além da Mãe. No entanto, naquela década de .1 840, o enclausura.-
ou cientificas, leva à pesquisa de campo. E preciso "ir ver". A Inglaterra ) primei-
mento está longe de ser completo. Mulheres participam das "pre~ações" e das
ra terra da revolução industrial (horror a ser evitado, para alguns. modelo a ser
missões saint-sirnonistas. LI Flora tem seus êmulos: Mrs. Trollope. na Inglater-
seguido, para ouu:os; para.t0dos, um inesgotávellaborat6rio) tem, nos itiner'á-
ra, e Mrs. Fry que faz' a inspeção .das prisõesi mas sobretudo 8ettina Brentano-
rios e nas publicações, um lugar de primeira importância. Em 1840, Buret pu-
von Arnim, na Alemanha que, em J840, cond uz uma inves~gação' sistemática·
blica De la misere des classes laborieuses en AlIgleterr~ ef en France. "Meu livro é
no bairro de Berlim onde afluem os tecelães pobres. Il
a exposição do grande drama social que a Inglaterra vai desenrolar aos olhos
.~ do mundo", es~eve. Flora. "O papel importante que a -Inglaterra desempe~ha
7 G~RA.NDO, l-Modt, Le Visitei" du pauvre. Paris: Colas, 1820.
"

nos faz desejar conhecê-Ia.'"


I' lnscritô em uma prática já estabelecida, o proce<li!f1ento de Flora não S Como mostra sobretudo toda a história do trabalho sociàL ~~im: FOURCAlIT, A.
I, " . t~m nada de excepcional em si mesmo. 'Mas Flora é uma mulher, o que-;no
Fel/lmes à·l'usine en Frmrce dam I'entre-deux-guerres. Paris: Maspero, 1982 (sobre as
superintendentes _de fábrica: a pesqu isa fui." parte inttgrante de sua formaçao):
daso;ftanto pre~sposjção quanto obstáculo. Predisposição, porque as mulhe _ KNIBIEHLER, Y. Vocation sans voile, Its métitrs sociaux. In:, Madame. ou
,I . Mademois~l1e? Paris: Montalba. 1984.
Como mostra bt:m para à Inglattrra, O estudo (inédito) de D. Thompson, "T)le
! 5 Sobrt p paptl dos m"édicos, vtr sobrttudo L2cUYER, B. Démographie statistique .
9
withd rawaJ oftbt womtn in 19th century E.ngland"j para a França, os estudos de
t tt hygient publique soUs la Illonarchie' censitairt. Anttales de dél1lograpll ie lIis-
torique, 1977; Les ma1adies professionntlles dans Its Annalts d'hygiene publiqut et \O
ROUB.LN, S. CI/ambreNes des prOVellça llX. Paris: Plon, 1970. M. Agulhon, etc.
Leltres, p. 79.
de médecint légale ou unt premiêre approche de l'usurt au travail. Le Mouvement
\ social, numtro sp«ia1 sobrt L'Usure au tmvail, juil./sept. 1983. Sob a dirtção de A. 11 RANCIíRE. J. La Nuit des prolétaires. Paris: Fayard, 1981 .
~~ , . 12 HOOCK-DEMARLE, M.-C Lts tcrits sociaux dt Btrtina von Arnim ou les débuts
dt I'tnquett sociale an It Vorm!lrz prussíen. Le. MOllvement 5Ocial.janv./mnrs 1980;
6 Promenades daus Londres (= PdL), p.?2 e 57.
.... o autor comparou frtqüentementt Bettina t Flora .
"

:
' 366 367
p(lIt~ .. Capftulo 16
Fl,unu Flom ll-ütall. paqU!saM"!

AS PRÃTIGAS DE FLORA: VER, ESCUTAR, SENTIR filem é um a lagarta! Ah, que lagarta 'suja e noj~nta ! A feiúra im unda deste ho-
mem, sua camisa suja, nojenta, sua velha sobrecasaca suja e rota [... }". " '(Por
A pesquisa social tem, na vida e na ob ra de Flora, um lugar importan- instinto, tenho urna antipatia profunda por tudo O que é feio e devo dizer que
te: quatro viage ns na Inglaterra e a publicação, em 1840: das Promenades dans a experiência e o estudo vieram confirmar (si,) O que este in,stinto me revela-
Lolldres; o périplo ,de1843-1844 através dúliversas cidades do sul da França ra", escreve ela ...t que, salvo algumas exceções muito raras, uma- bela alma não
/
(o Norte e o. Oeste vÍfiam depois), com o duplo, objetivo de fundar :1 União se e)1contra nunca em um envelope feio." "
Operária e i:le escrever um livro sobre o "estado atual da cla'sse operária sob o Ela se torna aqui o eco de Lavater, o pai da fisiognomonia, verdadeira
aspecto moral; intelectual e material'~ que se chamaria Le Tour de France - pé.: coqueluche daquela primeira metade do século 19. Como ele, Flora pensa que
ri pio brutalmente interrompido pela morte, em Bordeaux, e sobre o qual nos '~a ah:,na se reflete no rosto», menos em sua estrutura do que em suas expres-
resta um diário de viagem, publicado somente em 1973 . .Eu me basearei sobre- sões. Ela lhes dedica grande atençã.o. Num ~es mo movim ento, ela observa
tudo nes te texto. Ele' tem a precisão do instantâneo, o charme d~ inacabado e rostos e caracteres. «Eu exami~lo todos os rostos: eles são frios, secos, despro-
do intimo .. Sobretudo, ele desvela; melhor do que qualquer escrito público, a ~ vidos de elevação, de i;nteligência; mas, em contrapartida, pode-se ler neles os
subjetividade Cla pesquisadora, os sofrim entos da apóstola diante de uma rea- caracteres predominantes da vaidape, da presunção, da obstinação ainda q ue ,.
a
lidade que resiste a ela, enfim, orig!nalidade de seu procedimento. reun'ida a uma grande mobilidade de idéias?'" De Sauvinien Lapoint<:, o poe-
.Preocupada em apresentar um "livro de fatos", Flora queria "conhecer ta-operário encontrado na casa de Béranger, ela diz.: "Ele é. tão inchado de vai-
tudo", "observar tudo", escreve s?bre ela a sua discípula f.léonore Blanc,u assus- dade que salta aos ~lhos. Eis um jov~m -que', adivinhei à primeira vista"." Mais
tada com seu frenesi. Flora pensa, como Buret, que "o melhor m eio de dar uma 1. . dó que tudo, a di'reção de um olhar mostra a consciência. "Olhares obliquos"
idéia verdadeira da miséria é v~- la'e tocar seus sinais materiàis". Primeira 'gran- são sinais de hipocrisia ou de reserva daqueles que a vigilância obriga a se es-
de repórter feminina, ela acredita nas virtutles da viagem, no ch~que das ima- conder. Assim, sobre os operários ingleses: ".E. difkil encontrar seu ponto vi-
gens, sobretudo no miste,rioso poder do olhar. Inicialmente porque estabelece sual: todos mantêm constantemente os olhos abaixados e vos observam às es-
toda un~a série de correspondências entre o exterior e o interior, o fisico e O . condidas, lançando sorrateiramente um olhar de lado".1'
moral, segund o as representações de uma época em que se misturam dois sis- O olhar é ta mbém a porta da alma e, desta for~a, um modo de comu-
tem,as de leitura das aparências: a deCifração dos códigos d.e vestuário, e; a mais nicação privilegiado entre os seres, Flora Tristan acredita
. ,no magnetismo,·no
sutil, do enve'lôp~ corporal. - ,\ ~. 1 ' .' - . po'def que ele dá sobre um auditÓrio, na força da simpatia s~uscetível de un ir
, As roupas co ntam os costumes. u.t, mút.il compreender a linguagem de . \
duas pessoas igualmente dotadas de fluido,. Ela descreve assim se u encontro
um pa{s.-para adivinhar seus costumes; \udo o que está aparente os revela, e as ' .
j

roupas -mais'do que-qualquer outra coisa", escreve Flora, obse~ando, em Lon- ~


.com .êléo nore Blanc, esta.jovem - lavadeira de Lyon que Flora transformou em
sua filha espiritual:"O magnetismo destes olharesloi fão poderoso sobre mim,
d.res, o lugar dos bolsos, costurados !(por dentro"; para enganar os batedores de que a separação que se operou entre nossos corpos não pôde.destruJ-Io [.. .]-. O
I
carteira. '~ Ela-também obst:rva 'c~m atenção o desleixo ou ci ri~or de, um traje,
a sujeira ou a limpeza, à qual ela é tão sens[vel quanto a, uma qualidade
- moral.
15 TdF, t:l , p. 83.
Eis wn .redator .de um jornal de Dijón, o Spectateur, que lhe é hostil: "Este ho-
16 Ibid., p. 82.
, I? Ibid., p. 28.
13 PdL, p. 18. 18 Ibid., p. 46.
14 Ibid., p. 114. 19 PdL, p. 114.
"

368 - .
, 369
Pm1t 4
Figuras
Caprw lo 16
Flom 7l'i,rtlN, ptsqlfiUldora
••
•• "

•••
oUlar é evidenteme.nte a manifestação da alma e esta manifestação é tão pode- - Ela vem sozinha visitar os ateliês) sem' se fazer anunciar ou acampa.
rosa que assume, aos olhos de nossa imaginação, uma forma, um corpo que se ohar por aqueles Senhores do Consellio das homens probos, ou de outro per-
torna palpáveJ para n6s~ O fluido que escapa dos olhares é algo r~al ~: zo só nagem?
Flora não se conten~ em ver. Já sublinhamos sua "excepcional qualida-' '- Si~n, a Senhora Tristan"quer ver tudo com seus pr6prios olhos e"como

••
de de escuta".ll Ela conversa: "o que chamo de faJar com os operários é conver- as coisas são na realidade. 1'
sar com eles, deiXá~los expressar, eles mesmos, suas necessidades':u Ela per- "Eu penetrei nos bastidores; vi o disfarce dos atores."17
gunta com talen~o, corno' mostram certas entrevistas relatadas; assim como em
sua conversa com Monsenhor de Bonald, arcebispo de Lyon. Os diálogos
tTanscritos em Le To"r de France dão muita vida é\ estas notas. OBJETOS DE PESQUISA -----
••
••
Encontraremos ali numerQsas anotações de odores aos quai s Flora, con-
victa da importância dos 'ares, como toda a higiene de seu tempo, é muito sen'- . o objeto da pesquisa é a "miséria operária'~ mas na acepção mais arnpla
síveP} Mas até mesmo estes odores são codific~dós; eles remetem -'
a uma cata~~ do termo;. "o estado moral , intelectual, material", segundo o _subtítulo: do TOll,.
de Frallce; os cost1~mes e o nível cultural t.1nto e ainda mais do que as condi-
terísiica Asica ou moral, a uma situação individual ou coletiva: eflúvios de cor-
pos mal lavados ('(estes home~s 'exalavam um 'f~dor tal que meQ estÔmago se
revoltou"), densidade de umaudit6rio rústico ('(ao entrar, fui sufocada por um
ções de trabalho ou de existência / ainda que se encontrem muitas anotações a
este respeito. Donde a escolha dos locais de investigação: as cidades, revelado- ••
odor de suor"), miserável aglomdração de leitos no hospital que assalta como
ras das relações-sociais e expressão da vida cultural; seus equipamentos. os
e
••
bairros populares; secundariamente, os locais de trabalho.
um remorso: no Hôtel-D-ieu de Lyon, ela:não pode "supo.r rar a influência dos

'.
A fábrica, é verdade, é um êspaço privado que só se pode visitar com O
odores e dos mi asmas que me atingem a cabeça, o estômago, que atingem a patrão, sob o olhar fugidio, temeroso ou malicioso dos operários. Entretanto,
mim, feliz co m este mundo em que -se goza do 'ar puro, do espaço, e de um cer- Flora arrisca-se ali. Em Londres ela expJora uma grande cervejaria, a Barday
to conforto de lim peza",14 Perk.ins, e uma fábrica de gás, a Horse Ferry Road \>\festminster, das quais ela
A misé ria é wn dado sensorial que se observa por todos os sentid?s. Ela admira as instalações téalicas e a' racionalidade operatória - _"Tive admiração e
pode ser cheirada, ouvida, vista. Desde que se evite, entretanto, qualquer ence- por todas aquelas máquinas, peja perfeição, pela ordem com a qual todos os
~
nação prévia. Flora pratica visitas imprevistas que embaraçam seus interlocu.:-
tores, Aqui. os operários choram por sere m vi st~s em seu desnudamento. u Ali,
trabalhos são conduzidos"lt - e deplora as condições sanitárias. Em Roanne,
ela penetra em três fábricas de tecido de algodão, subterrâneos úmidos que ela
considera "homicidas': n Em Marselha, ela faz a inspeção de duas fábricas de
•'.
••
uma' dama dos "ateliês' principescos" - aqueles 'que são mostrados aos prírKi-
. , pesi - deplora ter s id~ surpreendida na deso.~de~: '" cons tru ç~o mecânica e conversa com seus diretores .
". L.

M L',

••
. Três coisas atraem espedalmente a sua atenção: inicialmente, a higiene
dos ateliês - aer~ção, umidade, amontoamento - responsável, a seus olho$,
20 TdF, t.I, P, 199.
pela-má saúde op.e rária, l11ais do qu e o amargo trabalho em si. Seu .olhar clini.
21 MICHAUD, S. Flora Tristan, 1803-1844. Paris: 2ditions ouvri~res, 1984. p.23.

••
22 TdF, t,l, p. 199.
23 CORBIN. A. Le Mirume ef la Jonquille. J.'odorar et l'inJagina ire 50cial (XVIllt.JaXe 26 Ib;d., p. 159,
s.íecle). Paris: Aubier-Montaigne, 1982' 1'
24 TdF, t. I, p. 122.
' . \ 27 Pdl..,p.61.
28 Ib;d .. p. 115.
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I
••
25 Ib;d.,p, 157. 29 TdF, t. I, p. 205-208.
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, . ~. I
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'370 , 371
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Fi,tmu
Cap lru/o 16
Fio,.., l hJ'un, JIn'fllisadcm

co é. sobre esta questão. o mesm~o de VilIermé c da maioria dos mé<!icos da FIQra se interess<l sobretudo.~ Ela atravessa os bairros., assiste, nas igrejas, a ce- .
época.'" Em seguida. a ITI?dernidade da produção à qual.• como mulher de or- rÍ.n'\Ô?ias de culto reveladoras de cre.nças--e de superstições. Suas descriçõ~ d<l
dem e de progresso, ela é favorável, aproximando-se dos industrialistas'saint- ·missa dominical em Saint-ttienne ou da Festa -do Corpo de Deus em Lyon
simonistas. Enfim, a disciplina e sobretudo o sentimento de subordinação e de " mostram a vitalidade das práticas religiosas que chocam seu anti.c1ericalisrno
temor que os operários manifestam em rela ção a seus patrões que, na maior profundo." Ela demora diante das bancas de feira, va! ao teatro e ao baile. Ei-
parte do tempo, desprezam-nos. ··Posso predize r uma coisa, qu~ no dia em que la aqui, no baile dos' cOl'tadores de pedra. na Rotonda, em Lyon:
a revolta do s assalariados explodir contra os chefes de fábrica, cometer-se-ão "Havia ali, duas mil pessoas, operá rios e operárias. A fisionomia destas
vi.nganças COmo nunca se viu. Os mestl"es serão assados vivos e comidos pt los pessoas não se parece, em nada com o mundo do mesmo gênero em Paris.
operários", escreve ela em M~rselha. " Aqui, uma tranqüilidade perfeita, ordem, frieza mesmo <lté no praze r.""
Para encontrar os operários, é preferível ver a cidade. Em 'Londres, ela Ela freqüenta c<lbai'és e cafés, " lugar público" dos jornalista,s de Tou-
se interes.sa sobretudo pelos 4ejetos que o ca pitalismo fabrica, a tênue frontei- , Jouse. Seguind o os "cavaleiros ' do café", ~stes intelectuais provinciais, de
ra que separa as classes ,rabalhadoras e perigosas, a amplitude da criminalida- quem ela desco nfi a devido às suas aspirações ao poder local, e sobretudo os
de, a marginalidade de toda uma parte d~ população, o afastamento e a supe- artesãos, seus melhores guias, Flora penetra nas salas onde se realizam as
rexp)oração ~as minorias étni cas, judeus e sobretudo irlan<feses, das crianças e reuniões privadas das seitas socialistas, todas sem atrativos a se us olhos. Os
das mulheres, Decorre daí a composição de seu livro, em que, segundo Fran- cabettist<ls, cujo ideal familiar ela denuncia - "cada um em sua casa, limpa e
çois Bédarida, as prisões ocupam i20% da superflcie, a prostituição, 14%, as sa- confortável, co m um p~que.no jardim somente para si, [... ] a autoridade do
Ias de asilo 11 %. Não por gostar da ralé ou do se nsacionalismo (ainda que a . pai e do marido - parecem se r os mais bem ~mplantados".17 A vitalidade des-
obra não escape de um cer to romantismo da miséria urbJ.!la), ma~ pala mos- e
ta soci~b i1idade formal informal é s~rpreendente . Observ<ldora fina e in-
trar o avesso do cenário, daquele liberalismo que apenas expiou de maneira formada , atenta ao detalhe - por exe mplo. às maneiras de chorarll - Flora
mais radical os pobres, desprovidos de qualquer proteção e de qualq!1er poder. traz uma notável contribuição à etnologia das práticas populares urban.as no
A angl~fobia de Flora. . encontra ali matéria para um a expressão virulenta. século 19.
Na França, o procêdimento assim co mO O objetivo são diferentes. Tra-
ta-se de sondar o nível inte1 ectual e político dos operários, visando <Ccónstituir Na França tam~m. ela visita hospitais (em LYOI1. spbretudo) e prisões: ass im,. em
. ' . . 34
a classe o pe rária~'. A prioridade é dada aos cos tum es, avaliad?~ pela fisiononria MontpeUier, onde deixa de encontrar Mndame Lafarge, por quem, aliás> nllo tem
(co mpleiçfio e vestu ário), pelos comportamentos familiares e coletivos. Ela re- muita simpatia: ela critica o regime de favores relativos que lhe é consentido e pre-
. coniza, ao contrário. o reconhecimento, para as"mulheres, de um regime "poHti co~
conh~ce ' os republicanos por sua barba,» e a particulaÍidade dos prôlet~ rie~ ., como rute para os homens. I •

p~risienses por seu Diodo de vestir: o jaleco e (J bon'é peJos quais eles começam 35 Ver sua descrição da Festa do Cor~ de Deus em Lyon (TdF, 1. I. p. 174), o vfncuJo
a se (Ü;tinguit. n ~ pelos lugares e pelas formas da sociabilidade popula r que que ela estabelece entre procissão, orgia e prostituiç\o; ou ainda sua pintuta da
missa na càtedra..Lde Saint-~tienne (TdF, t. I, p. 212). "Em toda a parte em que o
povo é completamente estúpido, vil, degradado. miserável, ele é devoto (... J. A mais
30 COTTEREAU, A. La Thberculose: maladie urbaine ou m:lladie de j'usure au travail? ~Ia prova que se poderia dar contra O catolicismo" (lbid., p. 230). .
Critiqu-e épidemiologie officielJe. Sociologie. dll trovail, avriVjuin 1978, e o número 36 lbid., p. 134.
espec!al do Mouve.me.tl ( soci/d. juil./sept. 1983.
37 Ibid.,p. J47. Os estudos de C. JOMson mostraram que o cabettismo foi, na Fronça,
fI TdF,t.1I,p.IOO. a prim~ira forma de um partido operário.
32 TdF, t. I, p. 139. 38 ·Ibid., p. 157: uma surpreendente cena de lágrimas no dossii da pesquisa em curso
33 "Ibid., p. 114.
, de A. Vincent sobre a "história das lágrimas, s«u1os 18- 19".

. 372 373
,. •
Parte ., Capitulo /6
FiglH'1I1 Flom Tristml, pcJquiJllnor/l

IDENTIFICAÇÃO DE UMA MULHER com ternura.~ Porém, os oficiais matemáticos a tratam com frieza "porque
eles não permitem que as mulheres ten_ham inteligência". ~
o que há de especificamente feminino na pesquisa de Flora? Em quê O can~po da política, sobretudo, é uma reserva de caça mascul~na. Em
sua condição de mulher i!1flui em sua prática? Lyon, Rittiez, jorn'alista no Cemeur lhe declara: "Não convém a uma muJher se
O fato de ser mullier ,ompliea menos a viagem em si mesma do que o ' meter em pblítica.A França não pode marchar sob uma saia':c Comentário de
contato com o é'spaço político, Evidentemente, Flora se. queixa dos desconfor- Flora: "Para mim, eis a ca usa deste ódio que todos os homens me dedicam.
tos do trajeto, da mediocridade dos hotéis, de Sua sujeira. Ela compartilha com Ciú me do homem para a mulher>~ Não querem dar a ela o créd.!.to da "mater-
outras mulheres refinadas - e freqüentemente suspeitas - o desejo de' se lavar, , nidade" de seu "livrinho": <'ele é co nsiderado bem escrito demais, bem pensa-
de tomar um ba~o, que aproxima estas mulheres dos dândis e de sua cultur,!- do demais para ser obra de uma mulher':4'
do corpo, Ela aprecia a elegância, Em Lyon, "na casa de uma das Mães que ti- Entretanto, é sobretudo na burguesia, notadamente e~tre a p ~qu el'la
nham um pequeno salão,. para que eu fosse recebida em uma peça limpa e mo- burguesia i~1telec.tual que cobiça o poder e o identifica à masculinidade, qu e a
bili~da, trouxeran'l-me um copo d'água com açúcar em lima bela bandeja 'c0l1?-
oposição é mais viva. Flora compete com ela em seu próprio terreno. E estes
uma coll'lerinha de prata, o que é bast',m te raro entre as Mães",l9 De fato, muito republicanos laicos não gostam m'uito da imagem da "Mulher-Guia': derivada
raro. "Todos estes inconvenientes tornam as viagens excessivamente pt:n'osas,- da 'religião da Mãe saint-simonista. Com as classes populares, que ainda não
cãnsativas, desagradáve,is. Não sei, na verdade, que pessoas consegu~m viajar
ti~ham uma idéia favorável da virilidade, as dificuldad.es são, no fin al das con-
por prazer."40 ~as nisso Flora compartilha do destino comum, Um. só vez, ela se
tas', menqres. A respeito dos o per~Jios do arsenal de Toulon, Flora observa:
choca contra uma discriminaç~o sexista: em Montpellier, o Hotel do Cavalo'
:'Meu titulo de mulher não os afasta, como aconteceria se eu me dirigisse aos
Branco "não que,r, receber ~ulheres>l. "Fato nóvo a observar", sublinha Flora.41
burgueses, mas os atrai':4t No barco, Flora 'co nversa sem problemas com si-
As coisas se passam diferentemente em ,sua ação política. Ali, ela en-
paios' e marinheiros. Nos albergues dos companheiros de 'aprendizado, a dire-
contra ceticismo e recusa, sarcasmos e calúnias. Ela recebe homens? Diz-se
ção pertence às Mães: geralmente instruídas e solidárias. Com as mulheres dos
que são seus amantes,·! Sua presença nos cafés em qu e os jornalistas passam
seus dias, provoca espanto, "O q.ue faz nossa superioridade sob re vós, mulhe- operários das indústrias da seda, de Lyon, os contatos são excelentes. Elas vêm
res, é que nós, os homen~, vivemos continuamente na praça pública", reco- / .
em grande número às reuni ões mistas e Flora consegue organizar uma reunião
"
de mulheres, o que lhe vale esta réplica do comissário, estupefato: "um a reu -
nhece um deles.o A ga lanta,;a, esta maneira de negar a igualdade dos se:xo5..
impede a troca intelectual. "Vosso título de mulhe~ impede que se discutam nião de mulheres! E ~6s pensais que eu acredito nisso? ", ~ acreditando ver 1"1\\ -
vossas opiniões com"toda a liberdade", confess~ um Jornalista de Toulous.~ue qu ela falsa aparência a cobel,'tura de um,! reunião poHtica. No entanto, Flora
Flora consegue fazer fafar durante duas horas"!44 N/) Café de Paris, em Saint- ' .relata: ':eu tive a ~ minha reunião de mulheres - elas eram nove. - todas muito
j t.tienne, onde ela toma seu café todas as ' manhãs~ os artilheiros a observam. díspostas a me ouvir e muito dispostas a seguir meus conselhos, que elas de-
{-----
I 39 TdF,I.I , p. 125. 45 TdF, 1.1, p. 214.
40 Ibid., p. 138. 46 Ibid., p. 2 16.
41 TdF, I.Il,p.1 38. , 47 Ibid., p. 182
48 Ibid., p. 115.
42- Ibid ., p. 175.
I 49 Ibid., I. 11, p. 91.
43 Ibid., p: 188. I
1 50 Ibid., LI, p. 133.
44 Ibid. , p. 189. I , ...
-.
374 '.
375
• ~rtc4
F'fÍmu
CIfltulo 16
FlorA lriJttlN, /1fttIuiJQdol'tl
,

viam ocupar.=.se das questões polIticàs, sociais e humanitárias. Demonstrei-lhes oias da Corte, eis o sinal de u'm feminismo radical que não tinha muitas chan-
9ue a política entrava até em seu cozido e elas compreen~eram muito bem'~ ces de ser ouvido.
Na própria pesquisa, Flora atribui um lugar particular às mulheres, à
sua condição. Em Londres. assim corno em Lyon, ela se interessa pelas prosti-
tutas, "infame profissão" que ela gostaria de ver abolida. Em Nimes, ela fica in- PESQUISA E IMAGINÁRIO: O.S PRECONCEITOS
dignada com,? espeiáculo do lavadouro que vê da janela de seu hotel. Este la-
vadouro não tem plano inclinado, conseqüentemente "não é a roupa que fica
DE FLORA
na água, é a mulher que lava que tem água até a cintura", Decorrem dar tod o o
Pesquisadora, Flora não deixa de ser uma ideóloga e sua percepç..;o ~ ba-
tipo de doenças: reumatismo ,aguao. gravidez penOSil. aborto, doenças de pele,
seãda em sun,S represen tações e sua s escoUlas. IrrÍpregnada pela içléia da supe-
etc. Estas mulheres sucedem-se, de mãe para filha, e os filantropos.da cidade
não lhes ~ão nenhuma atenção; .tso u a única que viu as mülheres na água", es- ~~oridade da cidade ~m relação ao campo, de Paris em relação à provínda, do .
creve Flora, que planeja "um artigo fuhninante para reunir a imprensa e todos NQrte>enl relação ao Sul, ela tem , sobre as pessoas e os costumes, um blhar ex~
os coraçõc:s ge~erosos". SI 'terior, pôuco receptivo à diferen ça e que a faz sob~essair-se. Tecelães de 'Roan-
Além da condição das ~ulheres, Flora ~ muito atenta àsrelações entre os ne, fabricantes de fita de Saint-ttienne, aquela '<cidades nulas': deixam-na si-
sexos 'na família e n~ cidade, ao pod.er das mulheres e a sua cultura política. Seu derada com sua rusti cidade. "Eles têm toda a astúcia e a estupidez dos campo-
olhar é, aliás, sem indulgência. Nãp há nela sentimento de ~irmandade fémini- neses': dii. ela a respeito de alguns; e de outros: "Todos falam dialetos, usam ta -
na global': ou de adesão incondicional'à perspectiva oper4ria. Por diversas ve- mancos e todo o resto qU,e con:ibina com el~, São totalmente camponeses da
zes, ela tem col!tas a njustar com doi-tas-de-casa, hostis à sua influência spbre monranha. Pode-se ler em seu rosto a ..mais completa estupidez': Eles são "hor-
seus maridos - a mulher de Gosset, o "pai dos ferreiros"' parisiense~, ofende-a rorosamente feios, gordos, inchados ( .. ,) repugnantes ao olhar, Além disso. a
violentamenteS2 - ou que a acusam de desconhecer a profundidade Cte seus sen- conformação de suas cabeças ~ostra bem o qu~ há'dentro delas; ela apresen.:
, timentos maternais." Muitas vezes e1a julga as mulheres do povo crédulas de- ta todos os caracteres do -idiotisrT)o':J6 "( .. . ] A e..xpressão destas figuras! Nunca
11"laiS, dominadas pela Igreja, mais ignorantes ainda do que seus esposos. Até vi tão estúpidas, tãQ feias!"" Se tivesse sido pintora, ela teria provavelmente de-
'(
mesmO ~Iéonore Blanc, sua bem-amada fLIha, a decepciona fis vezes. .senhado esta populâção operári,a 'como, quarenta anos majs tard~, Van Gogh ,
D-llIarealidade para Flora, que prega o advento do poder das mulheres, faria com os pobres tec~lães de Nuenen, com os "comedores de batatas': no li-
identificadQ ao amor.SoI que preconiza a subver~ão da relação entre os sexos na . nlite da animalidade. Muito sensível aos traços ,do campo na 'cidade, e.la sofre ,
vida/cotidi;na, Flora recusa os jovens que lhe fazem a corte:'''' eu querO' que.ng ao ver os camponeses, vjven,do na cidade e.os anirpais nas ruas. Esta presença
al110r sej~ [ a m'u1her ] que tome a iniciativa"," escreve el~ a um deles. [nverter ruc!!l' não tem, a seus olhos, nenhuma poesi,fl, bem ao contrário. Ela ~az o ris-
o tituáf'da 'declaração de amor, tão codificado quanto a mais, rear das cerimÓ~ co de anular a urbanidade, dific:il conquista da cultura sobre uma natureza,
sempre ameaçadora e perigosamente próxima.
As próprias cidades são freqUentemente.medíocres: "un s buracos': To- '
51 TdF, t.n, p. 125- 127.
52 Ibid., t. I, p. 54.
das as cidades, em geral, pequenas ou grandes, são mal ; ituadas,.mal construí-
das] mal arejadas. "O que se denomina muito impropriamente de habitações
53 Ibid" p, 3 1, discuss30 com Cécil e.. Oufour, secretária d: la Ruche Pppulaire.
54 TdF, t. li , t'. 3 1: C0ll10 o poder dos homo/'s ~ identificado à força e às armas. A força
e a doçura:: 'Flora rdoma as representaç~s maiores de $euJempo, .... ' " >
. 56 TdF, t. I, p. 220,
55 Cartas, p. 183.
, 57 Ibid., p. 212.
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-376 , ' .' -, 377
PIlI1e4 CIlpÚlIlo16
l'igurns Flortl lrist",,,, pcsq!j;S<lrlom

[... 1nada mais são do que ,grandes ou pequenos mont.es de pedras empilhadas sei tas. Desprovidos de generosjdade) eles buscam -seus interesses privados. fe-
umas sobre as outras, jogadas sem ordem, sem gosto, sem pensamento, sem a dlam-se no modelo b.urguês dà famllia estreita (Flora faIa de seu "horror dos
menor harmonia." Béziers, Avallon. Roanne . ~. são cidades "nulas': Saint-f:tien-' bons pais de família)') . Eles'são prisioneiros dos ritos religiosos: em Lyo n. três·
ne, sobretudo, a desespera: "Ela ultrapassa tudo o que já vi até o presente [... l. ic~J;ios oferecem à Flora "umà enorme coroa,de mirta e de louros", que ela re-
Não se co'm preende.reahnente como pode haver na França uma cidade de ses- cus'a: não se deve coroar individuos mas somente a "idéia", ela diz a eles, colo-
senta mil habitantes vivendo em um tal estado de cretinismo'~u Marsell~a, "ci- 'ainda ri coroa sobre seu "livrinho".64 ·
d~de õnibusn, é apenas "um àglomerado de falidos, judeus ou árabes':n Apenas ~ t desta maneira que ela pensa sarudi-Ios, dizer-lhes suas' verdadeS) não

. E Paris, "a única cidade no rpundo que já


Lyon tem certo encanto a seus olh. os. som~nte no privado, mas tamb,ém no públiq:>. O que lhe vale mais de uma al-
'I me agradou': tercação. Como a que tem com O marceneiro RolY,<lue deseja que se escondam
Em suma, a França é UIl1 deserto cultural. " Pob~e França, ela não é bo- os defeitos dos operários aos olhos dos burgueses. ''Assim, meu Senhdr, vós
nita de se,ver nos departamentos! e qll:anto mais 'se avança, mais os burgueses quereis que eu vos cure sem ver vossas ferida s. - Sim, Senhora."65 Flora suspi-
tornam-se pequenos, avaros, mesquinhos.';6Q No Sul, ela se sente completa- ra:"~ realmente a' estupidez dos operários que é capaz de desanimar, de esfriaJ',

mente estrangeira. Ela detesta as formas de cultura e de sociabilidade meridio- de desgostar ã alma mais ard'e nie':66- ~
nais: os teatros ambulantes,' os' saltimbancos, os vendedores de remédios e QS Ade'cepção de Flora é grande. Decepção que vem) como para muitos in-
dançarinos de rua. As cerimônias coloridas de um catolicismo baJjroco, procis- telectuals, do que ela espera dos operários: a Salvação. Ela vê neles urúa van-
sões, ex-votos e p~""Ituras ingênJas lhe parecem a 'expressão de um pagani"Smo : guardá. o fermento do m,undo futuro." Profundamente unitária, como' todos
~ vulgar e sens.ual. Os mendig?s têm ur,na aparênci~ picaresca que lhe dão medo.
os rO,m ânticos,6I queixa-se sem cessar das sin~larid~des que. tor~am a comu,- '
f!icação ilusóriaj~depl ora "es,te mei9 in~oerente em-q~e vivemos"." Sonha com
E "todos falam este diáleto", diz ela das, línguas occitânkas_.·"Eu nU,n ca' havia

'I
uma Fra,nça jacobina, unificada pela..lingua e pela cuJtUI"a) e com uma classe
sentido tal repulsão por nenhuma população." 6l No grande debate que 0I?õe
, operária homogênea que ela proc~ra "constJtuir", termo signiticativo do vo-
então os partidários do Norte industrioso e do Sul feliz, ela teria apoiado, .sem
luntarismo·dos fundapores, "Vivo na unidadê; e quero, preciso faier nossos ir- '
hesitar, os primeir~s .61
mãos viverem nela."?O ~
O~ operários, por sua vez/ 'são terríveis de ver de perto!"" Eles lêenr
l11i pouco, exceto em Lyon e Paris, 'são. desconfiados por serem ignorantes...Estão
su~mersos na; p"rticularidades das profi~sões, dos bairro~ (em Lyon, o b~i;ro'
Então, aparecem-lhe ilusões iconoclastas. Purificar a cidade do flagelo
da prostituição, "O que eu faria destel nundo se fosse' governo? Eu liberaria a
sociedade desta praga, de uma maneira ou de outra, mas certamente não a dei-

'~'.I
1 . d~'- Guillotiere inveja' a Croix-Rousse), das" ass,?ciações~ qe aprendizado ou das ' -" " . \ '

'I '
I
.
,'I'
~

64 TdF,t.l,p: 181.
' 5~' "(dF, t. I, p. 223.
65 · Ibid., p. ~ l.
;. 59 Ibid., t. n, p. 71. ,- ~6 Ibid., p. 34. -
I 66 Ibid .. t. 1,1'. 180.
67 RANCI~RE, J, Le PlIilosop/le et ses pauvres, Paris: Fayard, 1983, mostra como o~
61 Ibid.; t.l1, p. 110. pensadores do século 19 (.1bricaràm a figura ideal do operário, sempre -por vir.
li·
62 DUPIN. C. De5 forces producrives e~ commerciales de la France_ Paris: [s.n·l. 1827, 'Poderiamos, aplicar uma parte de su~s análises a Flora Tristan.
abre seu livro com uma "homenagen? a,os,habitantes da França meridional" que é, 68 Ver o nllmero 1-2 de Ro~/Umtisme. "L'impossible unité?",
'-' ~
na real~~ade. uma exortação a aban~onar os ··c.1minhos fáceis do subdesenvolYi -, '-
'J -
,mento e a seguir o exemp)o do No~t~ industrioso e indus.trial. • I"- 69 TdF, t. I, p. 40.

'"63 · 'FdF, t.1, p,36. i ....


.lO Ibid., p. 11 7.
" ".
"

378 - , 379
v- '- "
1'd,1t oi
Fillll'Al

xaria subsistir."n Fazer tábula rasa do passado. ,cQuando eu for 'serva geral' da CapItulo 17
Europa. eu terei a meu soldo um bando .negro cujo trabalho será de arrasar
<.
certa s cidades como único meio de li.berar seus priSioneiros" (a saber. os h abi-
tantes), "e um bando branco para edificar m agn1ficos palácio,s-cidades".ll Não
falanstério5. como FQ urier; mas cidades de sessenta mil habitantes. Destruir,
diz ela; mas para-reconstruir este "novo mundo" do qual ela se sente portado-
ra, e q ue somente poderá realizar-se com a ge,ração oRerária futura. A pesqui- SAND: UMA MULHER NA POLtnCA*
sa alimen ta a utopia - uma utopia espacializada, como quase sempre - manei-
ra de transcender urna realidade que resiste. .\

Esta relação difi cil, até mesmo d~lorosa) entre a pesqui~ado.ra e seu ob- 'j
jeto é o,prü).cipal interesse deste Tour de. France. o choque das culturas) a. fra- ~ J
'tura das co nsciências, as incompreensões mostram a distância que separa' o
/
imaginário do cotidiano. Por um lado, operários diversos em suas práticas e No panteão dos escritos políticos cohtemporâneos, as mulheres são ra-
suas aspirações, a fragmentação dos lugares, a vitalidade dos grupos e seu rico ras. Nada de surpreendente nisso. Elas tiveram acesso apenas muito tardia-
desenvolvimento. Por outro lado, a força das representações que, desde então, mente à cidadania, na Frarwa m ais do que em outros luga;es, po is só votam
encarnam-se na classe operária em fusão, idealizada, e até mesmo fan tasiada, desde 1944. Aqudas q~e, durante a Revolução France~a, haviam pretendido al-
dos reformadores e dos revolucionários. . catiçar a plenitude dos "direitos do Ho mem", foram lembradas de que as mu-
A pesquisa nos remete, corno um espelho, o rosto de Flora, ato rrp enta- lheres ~ão tinham, "ao ~~os' no estado atuar: corno dizia Siéyes, organizador
da por suas dúvidas e se us sonhos. ~ do sufrágio, a estatura individual necessária para o pleno exercício da cidada-
"
nia ativa. Madame Roland se contentara com um papel de auxiliar, esboçando
uma figura de comtanheira inteligente, modelo das esposas de grandes ho-
mens, tal como o século 19 as celeb raria. As mais
I
contestatárias foram vigoro-
.
" samente admoestadas, Olympe de Go uges foi guilho.t inada, ainda que não te-
~riha sido un~camente por esta ra z.lo. Os clubes de mulheres foram fechados e '
, as cidadãs chamad~s a seus deveres de esposa e. mãe, alirll,entadora e'professo-
ra. Napoleão reforçou a tendência e restabeleceu •.pelo COdigo Civil, o 'pai n.
plenitude de seus direitos. Madame' de S1ael " esta ~mu1her que escrevia o utra
I .
coisa 'além de romances e o usava ,d ar sua op.inião sobre as questões de es ta~o,
foi para ele a encarnação do diabo: de a exilou. O século 19 aumentou ainqa
'mais a separação entr~ O público e o privado, considerados como esferas ~qui­
valentes aos sexos. Esta racionalização do mundo apoiava-se no duplo argu-
, ",

71 TdF, t. l, p. 175.
.. , '" "Sand": ~ne femme en poli tique. Présentation de Sand. C~rge. in: Poliriqut et
polémiques (1843-1850). Paris: lmprimeriC' nationale, 1997. ,p. 7-57. (CoIl ..Acteurs
72 Ibid., t. li, p. ISO (em Béziers}. de I'Histoire) ,
.'
( "
\

380 381,
,
Pnrft:4
Ctlplfll/o 17
FigllrilJ
Saud: lima IIIullrt:r IIU politicfl

. ,
mento da natureza, uma natureza revisitada pela biologia que arrimava o gê- ' meira intenção era de apresentar uma edição COmpleta dos escritos de Sand,
nero ao sexo,'J e da utilidade social, em uma visão de complementaridade, cha- Pois s~a reflexão após 1851 é cativante. Mas sua expressão pública rarefez-se,
ve da harmonia. Até mesmo as mulheres J1'lalS "pijblicas" - somente o uso des- ao menos até 1870. É' na correspondênci~ que se deve procurar ~ aprõfunda-
ta palavra já coloca um problema - escritoras ou donas-de-casa que manti- mento de seu pensamento sobre a democracia. Trabalho de uma ou?,a nature-
nham um sa~ão, aventuravam-se pouco na polítiCjl, es te santu ário masculino za .que e..xcedia os limites desta coleção. Preferimos organizar ' uma edição
que era visto por, Gú izot como uma profissão de homem'4 e por Tocqueville exa ustiva de todos os textos políticos publicados por Sand neste período de seu
como a tarefa màis viril e mais nobre, o único lazer digno da a.(istocracia em ,maior engajamento. A maior parte deles havia sido retomada em algum volu-
uma democracia em marcha. "Eu detesto as mulheres que escrevem, sobretu- me póstwno de suas obras completas, principalmente nas Questions Poliriqll~
do aquelas que ctisfarçam is fr~quezas de seu sexo num sistema", escreve ele em et sociales (1879), Souvenirs de 1848 (1880) e Souvel/irs et Idées (904) . Alguns
suas lembranças de 1848, para meU10r sublinhar a eqüidade de seu julgamen- deles - FmlChette (1843) ou os Bl/lIetins de la Rép~bliqlle (1848) - não haviam
to bastan~e elogioso sobre George Sand, que ele enco ntrou quando ela air;tda sido nunca reprodu~idos desde a sua publicação inicial. Nossa apresentação,
tinha, no entanto, "uma maneira de homem político".» ri gorosamente crortológica, visa dar uma idéia do percurso político de Sand e
A expressão sublinha o caráter excepcional de um procedimento cuja das formas de sua intervenção. Como cada período, c.1da texto estão situados
singularidade foi sentida até pela própria George Sand a té slla morte (1876). em ' sua co njuntura particul~r) ten taremos mostrar aqui em quê Sand foi, ao
Pressionada por Michel tévy, editor de suas obras completas, para reunir di- ,mesmo tempo, ilustrativa) excepcional em seu tempo e, no entanto, paradoxal.
versos ensaios em um volume qutj seria in titulado Politiqlle el Phi/osophie (Po-
lítica e Filosofia) , ela responde, em 7 de janeiro de 1875: "Mudei o título de Po-
lftlca e Filosofia para.Polêmic~ porque não fuço política propriame.nte dita'~'6 RAÍZES
I Ela pedia. por outro 1'ado, para re.ver certas "cartas", forma famiHar destes en-
saios, e recusava incluir os Bulletins de la Répllblique (Boletins da República): A vida de Sand (1804- 1876) recobre e recorta os tumultos do século. Sua
"Eles foram submetidos ao governo provisório,' não tenho respo nsabilidade busca ilustra o ·d.iflcil estabelecimento da República na França, naquele tempo
sobre eles'~ lndkio das dificuldades de urna mulher - mesmo que fosse Sand - em que a Revolução France.sa ainda não terminara. tempo em que se trata, ao
na política 'e como conseqüência, da edição de tais esc~itos. contrário, de religar os fiQs rompidos de seu projeto, ao 5.1bor das aspirações e
Deverfamos nós respeitar o seu d~sejo? Pareceu-nos que não, ao men.os das interpretações de cada um, ao menos das grandes familias que reivindicam
não t.otalmente. A presente edição reúne 'a parte politica dos escritos polêmi- esta herança. Sand, por sua vez, afirma-se muito cedo como republicana - des-
cos-de Sand, de sua en"irada neSte ca mpo, ~té o fi.m da Segunda República, ª~ de 'I 830;.ela tem vinte e seis anos e ainda é som~l~te Am are Dude'vant - e, des-
o gólpe d_e Estado ac 2 de dezembro de 1851 que; se não foi para ela o si nal'da de os anos 1840, como sõcialista. Estas convicções cimenl~rão a sua vida.
pa,ttidã; 'foi. certamente, o iníci9 de seu exllio interior. Na verdade, nossa pri- Elas se enraizam em sua infância, ao menos tal como eJa foi apresenta-
, I
. da na Histo;re .
de ma vie, autobiografia escrita em um momento crucial (1847-
I 73 LAQUEUR, Thomas. La Fabrique du sexe. Essai sur le corps et le genre en Oecidem 1854) em que a retrospecção toma formas de confissão c.ívica. A preocupação
Paris: Gallimard, 1992. (traduzido do inglês americano Making Sex, 1990) consigo mesma inscreve-se então na consciência avivada do tempo coletivo
74 ROSANVAllON, Pierre. Le Momem Gltizot. Paris: Callimard, 1992. cujo engendramento a autora reivindica." A Revolução Francesa transtornou
7S TPCQUEVILlE. Souve"ifs. Paris: Ca hl13.nn:'uvy, 1893. p. 204; apud C. lubin,
Correspondence, VlIl, p. S90~ n. I, I
77 Histoire de ma vie. Sou,s la dirc:ctiorrde Georgc:s lubin. In: CEuvres autobiografiqlles.
76 Corro XXIV, p, 194. C. 17225,7 de jílnei~o de 1875. Paris: PI~iade: Gallimard, 1970. J (abreviada aqui como HDMV).
'-
J

382 383
.,

PQrte <I Cupiwlo 17
Frllll'lll 5IInd: ",ulher I'ID polfricQ
Im/li

3. sua (amUia. De certa maneira: ela nasceu desta revolução. Por parte de sua 'de",1O escreve George qu~ cxtrai do cará ter extraordinário de seu nascimento
avó. Aurore de Saxe, bastarda do Marechal de Saxe, e casada com Dupin ,~Geor­ um princípio de identidade. polltica.
ge Sand, nascida Aurare Dupin. mergulha no Antigo Regime: regime 'da aris- Nem aristocrata, nem burguesa, Sand é uma m estiça social. Ela tem
tocracia, cuja arte de viver e a "graça" sua ancestral desejava inculcar-lhe. Por consciência disso, assume e$t3 condjção, não se vangloJia dela, mesmo tendo
parte de seu pai)vlaurice, "soldado a serviço d~ República", combatente das in
às vezes sofrido por ela. O desprezo de ~ua avó, q.u e da adorava, por sua ãe ,
campanhas da 'Álema~nha e da Itália, brilhante oficial dos exércitos imperiais que ela amava, mas C0t;n quem tinha poucos pontos em comum, magoou seu
que a pequena Aurore acompanhou na Espanha ocupada, Sand pert~nce à coração de criança: Ela tomou reso l~tamente o partido de sua mãe. "O peque-
nova sociedade à qual seu pai aderia. plenamente. Maurice exortava a ancestral, no apartamento tão pobre e feio" da rua Duplot, morada de Sophie, tornou-
reticente, arruinada e resignada, a "não se importar com a fortuna e com a po- se "a terra prometida de meus sonh os". Ela gosta mais do cozido rústico do
sição que a Revolução nos fez perder", convidando-a,a insCrever-se no inelutá- 9ue das guloseit113S co m as quais as «velhas condessãs" das recepções de sua '1
vel movimento da História, Nes ta figura heroiciza~a do pai, que encontramos avó se regalam. "Aqui estou em nossa c~sa, diz ela. Lá, esto u na casa de minha
em diversõs relatos da inBncia desta época, George Sand reconhece-se orgu-
lhosamente: "Meu ser é um refleio, enfraquecido sem 4úvida, mas bastante
boa mam ãe .... •
Sand compreendeu muito cedo a désigualdade social sensível até na
I
completo, do seu'~ Sua filiação' revolucionária é, inicialmente, paterna. memória. Do lado de seu pai, em Nohant, objetos, correspondências, genealo-
Por parte de sua mãe, enfim, Sand é "filha d.o povo de Paris'~ Sophie é gias, as surpreendentes narrativas da avó, maravilhosa (ontadora de hi,stórias,
uma bela operária de moda chjo pai, Antoine Delaborde vendia canários e além de tudo. Do lado de sua mãe, nada: "Mi~ha mãe quase não falava de seus
pintassilgos no cais dos Pássaros, depois de ter tido um p'equeno-.bar com bi- pais porque os conhecera pouco e os perdera quando ainda ela cri~nça. Quem
lhar." Eram pessoas de pouqs posses. Soph ie e suas irmãs tiveram,-durante a era seu avÓ pat.erno? Ela não sabia oada sobre ele, nem eu. E sua avó? Também
R~volução, uma existência dificil, vivendo de seus trabalhos de agulha, talvez não. Eis onde as genealogias plebéias não podem l':!tar contra as dos ricos e dos
de seus charmes. Vestida de branco, Sophie encarna, e~ 179i', a Deusa Razão; poderosos deste mundo. Quer tenham produzido os melhores seres ou os mais
o que não a impede de ser presa um pouco mais tarde, sem compreender nada perversos, existe a im punidaçie para ' uns~ iJ:lgratidão para os outros. Nenhum

~
à situaç~o. Ela segue: nos exércitos, um galante que abandona apó s encontrar, título, nenhum emblema, nenhuma pintura conserva a lembranç~ de suas ge-
. Maurice em Milão. Entre Maurice e Sophie, grávida de Aurore, , há um casa- rações obscuras que passam sobre a terra e ~ão deixam traços. O pobre mor-
mento de amor, uma aliança indesejada impos~a por Maurice à sua mãe.e aos re por inte!ro. O desprezo do rico sela sua tumba e anda sobre.ela sem saber se
seus: "Ele vai desposa r uma filha do povo,'o que quer dizer que ele vai co nti - ~ é poeira humana que seus pés pisam desdenhosos....l Vem dar a idéia de propor
nuar a aplicar as idéias igualitárias da Revolução, o segredo de sua prõpria · .um modelo de autobiografia democrática, de favorecer a expressão dos esc~i­
/ vida/ Ele vai estar em luta no seio de sua própria família ',?ntra os p~incipios tores operários e de colocar em cena, nos romances, as pessoas do povo para

I
da aristocracia, contra o mundo d.,o passado. Ele partirá seu própri,? coração
mas terá realizado se u spnho~79 "O que não seria possíV.el hoje, foi naquele
,
fazer ouvi.r as suas vozes abafadas.
,
Filha da Revolução, da liberdade e do amor, Sand ratifica a escolha d e
momento, 'graças à desordem-e à incerteza que a Revolução trouxera para as ~eu p~ e adapta a ela a sua própria escolha. "Meu sangue real se perdera nas
relações {... l. As engrenagens das leis civis não funcionavam com regularida-
~':'i -

I , 80 HDÚV, I, p.469.
78 HDMV, I, p. 16. , ! 81 Ib;d., p. 660.
79 Ib;d., p. 376.
"
I , 82 Ib;d. , p. 71.
.'

384 ." I"


, 385 11:
,
Pa/1e 4 CapItulo 17
Fig14rllJ SIUl/I.qmra mulher fia paUriea

minhas veias ao aliar-se, no ~eio de minha mãe, ao sangue plebeu."" "Eu sou a . uma energi" que não acreditava ter. A alma se desenvolve com os aconte~imen ~
filha de um patricio e de uma ci~ana I... ) Eu estarei com o escravo e com a'Ci- tos". La Cbâtre se mostra relativamente ativa: a Gua rda Nacional se organiza e
gana, e não com os reis e seus sequazes."~ SaJ'ld não mudará com relação a este Casimir toma parte dela. As no~cias chegam çom dificuldade, através dos via-
P3;cto fundam~ntal. Sua convicção dem ocráti ca e igualitária vem daí. ou ao jantes da diligência de Chàteauroux. Todas as noites George vai a La Chàtre 'e
menos ela a atribui aj st()~ Éla vem da experiência da injustiça, ela vem do . . co- lê os jornais. Mas é sob retudo a Charles Meure que ela faJa de suas co nvicções.
ração. de um sentiÍi1ento vivido, mas racio nalizado e suscetível de fundar um Em uma carta de 15 de agosto de 1830, ela faz uma profissão de fé republica-
combate político. na reiterada em 17 de setembro: "Sou republicana [... ) O que é ser liberal? Não
sou sentimental ou tampouco morna. Necessitamos de uma belá e boa repú-
blica [... J (não uma tirania sangrenta como o que se chamava de república no
ITINERÁRIO passado) mas uma co~stituição mais generosa, mais proveitosa para as últimas
dasses da sociedade, menos explorável pelos ambiciosos"." Sem dúvida, seria
Até 1830, :110 enta nto, Aurore Dupin, que passou a ser, em 1822, A}lrore conveniente ser mais ousada. Mas O que pode uma mulller? "Se eu fosse ho-
,Dudevant, parece interessar-se pouco pela coisa pública. Ela fala desta questão ' mem, eu me daria ao trabalho de expressar mad~ramente minha veleidade de
com o tom JOcoso das mulheres do mundo que têm mais o que fazer além de república. Eu me entregaria a estudos profundos que não fiz e que não preci-
se preocupar com estas futilidades. "Não quero vos falar de política, escreve ela so fazer [... J. Já que não tenho barba no queixo, posso divertir-me, sem incon-
, a Char1es Meure; é erudito deIl'lais para mim e, além de tud o, é tedioso. de-" veniente, construindo miph.;t p~quena quimera em meu cérebro." Não tem im-
mais."15 As eleições, acima 'de tudo, aborrecem-~a: "Fala-se somente das elei- .portância. Assim, os acontecimentos politicos colocam a questão da diferença
ções [... ] Toda aquela canalha eleitoral enché-me os olhos e os ouvidos':." Ela dos sexos, um~ diferença que ela experimenta com sen timentos divididos en-
aparenta estar cansada do debate de idéias: "Eu sou mulher demais (confesso, tre o pesar da impotência e o prazer da irresponsabilidade que deixa uma mu-
com vergonha) para se r uma partidária inflamada de uma ou o utra doutrina," lher livre para "fazer de sua vida um romance, cercar-se de fantasias". No mes-
escreve ela a Duris-Dufresne, o candidato liberal que ela e Casimir, seu mari- mo momento, ela' encontra Jules Sandeau, decide romper com Casimir e escre-:
do, apóiam em L, Châtre desde 1827, e que ela cumprimenta polidamente por ver. Sob todos os pontos de vista, o verã.,o de 1830 foi uma charneira: O sol de
sua reeleição. . julho foi brilhante.
A revolução de 1830 abala esta indiferença e anuncia uma conver.§ão Mas a decepção veio logo. A revolução está "podre': escreve ela a Char-
manifestada em s\}a correspondência. A partir de 31 de julho, ela evoca os les Meure. «Nã'o compreendo aonde vamos nem aonde queremos ir [... ]. O go-
acontecimentos de Paris sob o ângulo, bem. feminino, da co mpaixão: "O san- vern~ está sem força, a vontade pública, se m unidade." Ao rnesmo tempo, ela
:1
glie de ,tantas vítimas trará algu~ proveito para' suas mulheres e seus fiIh~;?';"- . compreende que não pode se sa.tisfazer com' uma mudança dinástica ou da
Ela fala da C'grande obra de, renovação com a qual ela deseja co'l aborar: :'Sinto "forma teórica de uma const.ituição'~ <fEra uma .gra nde reforma da sociedade
1- . que eu queria e, por um momento, imaginei tolamente que uma grande mu-
I dança de nosso sistema legal levaria até nós as virtudes abafadas ou corrompi~
83 HDMV, I. p. 11.
das pela antiga ordem das coisas [... ]. Eu deveria ler me lembrado que os cos-
84 Corr., VI, p. 487, 1844.
tumes fazem as leis e que as leis não fazem os costumes."'" 1830 era, em suma,
85 Corr., I, p. 667, C. 304, Nohant, 27 de.junho de 1830.
86 Corr.,l, p. 669, C. 305. a Madame G. de Saint-Agnan, Nohant, 6 de julho de 1830. .,
87 Corr., t;p: 674, C. lO7;a I;~ançois Duris-Dufresne, Nohant, 19 de julho de 1930. 89 Corr., I. p. 704, C. 319, a Chnrle.s Meure, Nohant, 17 de setembro de 1830.
88 Corr., I, p. 683, C. 311, a Jules Boucoiran, Nohant, 31 de Julho de 1830. 90 Ibid., p. 723, C. 325, a Charles Meure, Nohant, 30 de nove.mbro de ~830.
- "

386 387
•,••
, ,
Pllrtt .,
FigulllI

um golpe para ri.ad a. Mas " um a grande .revoJução se fará", é inevitável. E ela se
"
CAplru/o 17
SlIfld: "mll mulhtr nA poIítial

'os homens, eu gostaria de se r um cão': escreve ela a La ure Decerfl.." u'Par~ce_

,,
,
•• regozija com isto: "Gosto do barulho) da chu va, até do perigo, e.se eu fosse
egoísta, eu gostaria de ver uma. revolução todas as manhãs, de tanto que isto
m e diverte",'1
me impossível/lo presente, mmca so"har"com.-romall ces." E para Charles Meu-
e
re: "Detes to os r~is o,s heróis não menos sanguiriários que querem proclamat
a liberdade a qualquer preço. Vou tratar de esquecer ambos em Nohant. Mas

•• A efervescência de Paris. onde ela está na primavera de 183 1, a faz vi-


brar: "Estive em tód; a parte [... J e vi tudo com meus olhos". Atitude de repór·
onde acaba a política ?",. E o que fazer de sua vida?
Saturá-la de amores - Marie Dorval, Musset ... ~, de revolta - ela se se-

.•:
ter que ela terá freqüentemente. Aliás, ela é tentada pelo jornalismo. Le Figaro para 'de Casirnir - de viagens e de escrita: terppo dos roma nces de protesto
emprega-a por certo tempp, como "operário-jornalista-redator". Ela repercute contra a escravidão das mulheres selada pejo casamento (Valcntil1e, Lélia,Jac-
ali os ecos satíricos anôni mos que quase provoca m perseguições em razão de que, ... ). O en contro com Michel, célebre advogado de Bourges e ardente repu-

•i :'
·-
sua impertinência. Em '20 de fevereiro de 1831, elá assiste a uma ·sessão da
mara dos' Deputados' que a desconcerta: "A política absorve' tudo. Ela ocupa
Cã- . blicano, em abril de 1835, dá 'novamente à p'olítica todo o seu brilho e acelera
' a evolução de Sand que talvez tenha exagerado a influência de seu amante: l-Eu
e(3 virgem em minha inteHgênciaj espe,;ava que um'homem de bem apareces-

••
lodo o mundo, e no ponto em que estamos, as idéias são representadas [.. . ) por
nomes próprios", O rei, por sua vez, ignora tudo da opinião pública: "Para qu~ se e me ensin asse. Tu vieste e me ensinaste.': ela lhe es~everá, em janeiro de
lhe serve sair a pé, caIU o gu'arda-Ch uva no braço, dar apertos de mão ao em- 1839, quando sente v3clIar a sua chama." De qualquer maneira, estes quatro
anos 1835- 1839, são dominados por elef,por este ~verard a quem, ainda: incer-
i palhador do bairro, se ele n ão conhece a opini ãO e as necessidades de seu
povo?". Enq'uanto espera a revolução por chegar, ela se entrega a eS,te gosto pela ta quanto à sua orientaç~o, George Sand envia s~a Sixi~me Lettrc d,'yn voya-
~, litetatura que a invade:'''O t.rabalho de escreve r é uma violenta.:e quase indes- geur.~ E]a descreve-se como "pobre contador de rne,táforas': "artista' e boêm"ia':

.:••. :
"historiógrafo" daquele que escolheu o poder' e a glória, ao passo que 'ela pre-
~- trutível [ paixão ]"." '
fere a liberdade dos bosques. "Meu pobre irmão, prefiro meu cajado de pere-
De volta a Nohant - que já era seu refúgio e sua força - ela dedica-se à
grino do que meu cetro [... ]. Acostumei-me a ~az.er da minha vida uma verda-
literatura ser'(l reservas. "Desde que estou aqui, não abri um jornal", esta liga-
~ ... 1
deira escola ao ar livre·em que tudo consiste em persegujr borboletas ao lon- '
ção com o munao. "Estou farta da política': escreve ela a Meure em maio de
go das sebes." A seu interlocutor que critica seu "ateísmo social" e a incita à uti-
1831.'1 E seis meses mais tarde: "Bem longe de ter feito política, eulil. u.m mi-
lidade, à filantropia e à intervenção. ela responde cõm uma profissão de fé li-
se rável romanc~.".'~ Este romance, o primeiro que ela assina e publi~a sozinha,
terária: eeSo u d ~ 11atureza poética e não legislativa, guerreira', ~e necessá;i9, n~as '
~. torna-a imediatamente c'éJebre: é !ndiana ou o advento de Géorge Sand. --
nunca parlamentar'~ "Não será permitido aós ~menestréis cantar romances às
~. E, nó entanto, George quase desapareceu co m os republica nos m,assà-
mulheres, enquanto que vós fareis leis para os . hom en.s?'~, conforme' à separa-


'"
-,.
crddos em 6 de j unho de 1832, no claustro de Saint-Mer'l:" "O dia 6 de j unllo
jdgou"-me brutalmente na vida real.""Ele matou 'Indiana" e colocou sua1auto-
ra em uma dupla rejejção: a rejeição da violência política e'a da ~iridade da li:
ção admitida das esferas e dos sexos. No entanto, como "pobre criança da tro-
pa", eIa se co Ioca · a servIço
. d a verd ad"e e d o "fu turo repu bl'1canO.
. "

~ teratura. "Tenho horror da- monarquia, horror da República, horror de todos


9~ CO"" U, p. 104, C. 496, a ~ u[e Oecerfs, Paris, 13 de junho de 1832. Ela estava em.Paris '

:t.~
durante estes acontecimentos e deixou um relato sobre eles em Histoire de mavic.
9 1 Corr., I, p. 80?, C. 360, a Charles M~ure, Paris, 25 de fevereiro de 183'1.
. 96 Ibid., p, 111. C. 502 a Charles Meure, Nohant, 6 de julho de 1832.

.•
"
92 Ibid., p. ~18. C. 364, a ) ules Boucoiranl Paris, 4 de março de !831. 97 lbid., p. 650, C ... 1349. a Michel, 21 de janeiro de 1839.
93 Jbid., p. 874, C. 385, a Charles Meure, Paris, 20 de abril de 1831. 98 LA Revut des Deux Mondes, IS juin 1835; em CEuvres autobiograp/Jiqúes, op.'cit, lI:
94 Ibid.. n. p. 15. C. 450. a Charles Me~If~, Nohant. 27 de j~neiro de 1832. , Lettres d'u,i Yoyageur, Carta VI, a t"erard (11 de ,ab~iI de 1835), p. n9-8 17.
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~. 388
,, .. 389
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Parl'c .,
.Figllr~
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l Capitulo 17
Salla: uma mulher /ltl Política '.
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A oportunidade lhe é, dad~ pelo processo' dos acusados de abril de 1835,
Ela aprofundou sua reflexão soh re.a Revolução Francesa na qual vê uma
dos quais Michel, c,?m Garnier-Pag~s, Ledru-Rollin .., Barb~s sãe os advoga- , luta de classes. como a maioria dos historiadores de seu tempo: Thiers, Guizot,
dos." Todos os dias, vestida como homem, no meio de 'uma centena de outros Budlez e Roux, de quem ela lê a Histoireparlementaire de la Révolutioll [ran-
tr4vestis que a Guarda Naéional finge ignorar, e cuja presença traduz o intere~- çaise (J 834-1838,40 volumes), Cada vez mais 'jacobina, eb é hostil a Mirabeau
.r ' '
se das mulheres por .esies~locais proibidos. ela penetra
. , . no recinto dâ Câmara e os girondinos. Estes '(hom ens estreitos de idéias e fracos de espírito [, .. ] eram
dós Pares, Ela escreve a "carta dos defensores aos acusãdos", que é pórém ~or­ somente meio-termos, que queriam o reino da cla~se média [... ] uma repúbli-
, rigida por Michel para torná-la mais. vio lentamente. eloqüente. A$sim ela entra ca burguesa'~ Ao passo que Robespier~e, o "maior homem do~ tempos moder-
na política Co~lO clandestina e' auxiliar, como mulher compadecida também, nos {... J quis que o pobre cessasse de ser pobre e que o rito cessasse de ser rico",
II pois faz um coleta para os condenados e suas familias. loo Ela an seia por servir.
Michel não é o único a enc6rajá~la. Em~nuel Acago exorta-a a Utrabalhar" se·
I
Mas "o Titã" (;; ,o Povo) foi vencido por "esta imensa classe privilegiada que
amava o luxo e que se preocupava muito pouco que o povo tivesse pão'''. A Re-

ItJ gundo suas capacidades. Ora, os braços faltam menos do que as cabeças, as pe- volu ção "acabou com a morte de Robespierre". Atualmente, "o Titã embrute-
nas, os talentos'da imaginação: «Tu tens um a gnind~ e santa missão": a de pro- , cido não dá nenhum sinal de vida", ainda que a desigualdade fosse mais (orte
1. ver de palav~as e do poder da ar.te cuj a força profética os saint~simonistas des- do que nunca com "um proletariado pior do que a escravidão~'. Mas ele se acor-
dará: "Um dia virá': 104
cobrem .naquele. momento. Q.ue ela escreva então: por ~emplo, uma "segun-
da carta política" como a de um viajante endereçada a ~verard, e que.Arago Ela continua a ser, no entanto, TIlais republicana do que socialista, céti-
y'
,1,
tanto apreciou. lol Assim, se deseníla o papel dos ~artistas, con tinuadores
,
dos fi- .1
ca diante do saint-simonismo do qual Adolphe Guéroult elo'gia-lhe os méritos.
Graça's a ele, da participa de diver~as r~uniões e estabelece contatos, Muito re-
16so(os, ancestrais dos "intelectuais" que Sa nd terá, por sua vez, contrib~ído a
I arrastar para o caminho da 'República em marcha. 'oz
servada sobre a publicidade dos costumes e a "prom iscuidade" dos sexos, so-
bIe a visão de uma revolução progressiva e a crença nas virtudes salvadoras do
I A atitude politica de Sand -se radícaliza. Ela entra em conflito com Bú.-
I Oriente (a expedição do Egito a mergulha na perplexidade), ela adere todavia
loz e a Revue des' Deux Mondes, a respeito de um artigo,,4o professor Lhermi- "
à crítica à propriedade: "Eis aquilo em que .sempre venerei o saint-simonis-'
nier qué tratava Alibeau, au.tor de um atentado frustrado contra a pessoa de
mo':IOS Mas os saint-simonistas são doc~ demais. Seria pr~cisP, aliar sua p'a-
~ Louis-Philippe, de "infame assassino". "Alibeau é um herói': replica Sand, o que
ciência com a e~ergia dos republicanos. Entre os dois, há complementaridade
,Buloz não pode admitir. 10)
,I mais <\0 que oposição. Ela o'escreve à "sua farnflia saint-simonista" de Paris que
I I· muito cortesmente lhe ofereceu presentes: "Nós, pa:r;a destruir, vós, para re-
~~
r,·! i 99 121 operários 'e, chefe~ da oposiçã\o s~o ,act1sados de çonspiraç.'\o e de terem provo· ,
Gado as revoltas de Lyon e em outros locais. . ,
construir", ela lhes' responde "Enqu;mto os braços enérgico~ do republicano fa-
I
. rão a cidade, as-pregações sagradas do saint-simonismo farão a PoJis. Vós sois
e~a corivoca paTa umd' coleta, abril de

l,1·i'
! IOÓ ,:'Corr., li, p. 942, a S. de la RPchefoucauld que
sacerdotes, nós somos soldados'~ I06 No entanto, quando, de volta das Bale'.'res
I 1835. . .
• com Chopin e seus filhos (Maurice e Solange), ela recebe a noticia de revolta
I 101 ·Ibid.,l!l, p, 67, C. 993 D,
, 102 B~NICHOU, Paul. Le Sacre' de- I'écrivain, 1750-1850. Paris: Gallimard, 1973; Le
,,~

' 'Tenrps des propll~tes: Doctrittcs de l:dge romantique, PariS: Gallimard, 19n; sobretu-
do p. 288 et seq., "Fonction du .P0ete....~t de ,l'artiste". "~ ao proclan'tar a 1l1issão das
104 Corr., rv, p. 9- 16, C. 1461 a Luc Lesage (futuro genro de Pierre Leroux), 1837.

I
• ,')1
.:artes e da.poesia na/sociedade moder~;\ que o sa int -~imonismo fez o maior esforço
para encontrar a opinião' pública cont;emporânea e para convencê-Ia':
,
103 ,Corr"
" I
m, C. 1209 e 12.17 a François BUloz., t.a Chãtre, 3 e II
' .
'
de julho de 1836,
'
105 Ibid., 111, C. 958 a Adolphe~uérol1lt, 15 de maio de 1835; C. 9~S" ao mesmo, 20 de
'outu bro de 1835; (1. 1013, 9 de novembro de 1835.
106 lbid., m, p. 325-329, C. 1132, à fumilia saint-simonista de Paris, Paris, 2 de abril d e
1836,
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da Sociedade das Estações e seu dramático fracasso - a condenação à morte de quanto suas cartas ao abade Rochet. AnticlericaJ, t~ma suas precauções
lU
d;on
Barbês e .B1~qui, comutada em prisão perpétua, numerosas. detenções - ela contra ,a devoção, inclusive p ara asua filha Solange, que ela desvia do compa-
desaprova: "Mais tempo perdicio ... ... 1t1 . recimento à missa dominical. Como Pierre Leroux, ela vê em Jesus um home~
Ela não acredita na insurreição temendo sua violência_mordfera, e ain- . sa~to 'e, nos Evangelhos, j(uma relig ião de progresso e de amor': Ora, ';'a Igreja
da menos nos' mo0~entos sociais apoiados sob re o povo. Ela também fica an da no sentid o inverso:~ Ela crê em um processo revoJucionário que consi~te
atenta aos conflitos da década de 1840. Greves operárias e manifestações con- r ' em favorecer "o instin t? divino dos povos'; depositários sagrados do desejo d,e
tra as fortificações, sim bolo de um novo encarceraf!1ento - "que jaula, que pri- Deus.' ''A voz do povo é a voz de Deus", diz Leroux."4
S"O" IOI:"', reún em as massas. No outono de 1840, lrinta mil operários percor- A partir de çntão, ela aspira a produzir um á~rte mais útil que "'provo-
rem as ruas da capital que as .tI0ras esquadrinh am. Toda Paris está inquieta, que a em oção" e "abale os co rações': lU analise os co nflitos sociais e contribua .
assim para a educação das "massas" que têm "o ·iri~~into do verdadeiro e do jus~
ll
como se hóuvesse uma revolução:""Ot uA idéia revolucionária despertou e ela
acredita ouvir "um crepitar revoluciollárlo".llo ·-to",''' mas ai nda não a. consci~ncia . Se us romances se tornam mais denuncia-
A republica na torna-se socialista. A amiwde e a colaboração com Pier- dores (como Horace), colocam em cena !)perários (Le Compag'lon du Tou r de
re Lerou...x são decisivas a este respeito, e dominam a d'é cada de 1840." 1 Ela en- France, .1842, cujo herói, Pierre tIuguenin, é inspirado em Agricol Perdiguier);
contra em sua filosofia social e religiosa principios e uma visão do mundo - "3 ou situações sociais explosivas (Le Meunier d 'Angibault, .Cof1Suelo, La'Comtes-
única clara para mim"lIl _ qu~ a satisfarã o enfim. O sincretismo de.Leroux for- se de Rudolstàdt). ! a época dos "roman ces sociali; tas': em busca de uma n ova
tal,ece seu ideal igualitário e moral. A revolução soc.iallhe parece então o iridis- forma - ae estilo e de linguagem - tanto qu~to de novos atores. 1I7 Pois, não
. pensável cômplernento da revolução política. M as "a mbas .deverão apoia~-se em se trata, para ,ela, de "realismo" m~smo que social; mas de uma modificaÇão da
unia "revolução moral"; revolução dos espídtos e dos corações, de essência re- arte. em profundidade, até mesmo em suas estru.turas, que a torna mais "ver-
ligiosa. "O que nos torna sempre tão ardentes a uma revolução moral na_hu - dadeira': I" A arte de Sand não é o ,n osso objeto, mas' é importante sublinhar
mani,d ade é o sentimento religioso e filosófi co da igualdade" (id.) . Ela passa a qu e o·s escritos "'políticos obedecem a um lógica de seu pensamento {:: que ade-
uma ' religião muito mais pessoal, como mostram tanto seu roman ce Spiri- .. rem à sua obra. .

107 Corr., IV; p. 654, C. 1865, a Charlo tte Marliani, Marselha, 20 de m aio de 1836. 11 3 POM·MIER, Jea~. George Salld ct le rtve lIIoflastlqU e. Spiridiofl. Paris: N izet; 1966.
108 Ibid., V, p. 221, C. 2l7 1, a Hortense AJlart, Paris, 6 de janeiro de 1841. 114 Picrre Leroux, U~3~. apud Be.NICHO U, P. Le Temps de.s pro,pltele5. Doct~;,res de I'dge.
109 lbid".,'p. Ú5. C. 2 1 9~. a Ma utice, 10 de se tembro de 1840. romilllt;qltC, Paris: Galli·mard, 1977. p. 355.
1)0 lbid., p, 227, C. 2174. a Hippolyte Chatiro n, Pa~l$. 111 de fevereiro de 18"4 1'- 115 Corr., V, p. 824-829, C. 2540, a Henriettt de la Bigottiête, Paris, fim de dezembro de
I. - " 1842.
111 ~CASSAGNE, Jean-Pier~. Hi5toire d'ulIe am!tíé.. Pierre Leroux ee Georst. Sand
I .(d'apres une cQrrespondance inldire). Paris: Klincksieck. 1973: Sobre 9 pensamento 11 6 ,Corr., V, C. 2372, a C. Duvernet, citada. _,
, de LEROUX, P.; LE BRAS-CHOPART, ArmeUe. De I'igldilé da", la d!fférene<. L. 117 HECQUET, Mi~ele. Contrat Cf Symboles. E5SQi sur l'!dialisme de Gtorge Sand.
socialisme de Pierre uroux. Paris: Presses de la Fondation nationale d~s Sciences These (Doctorat d'ttat), Paris.yU, 1990, (sob a o rientação de Nicole Mozet).
politique.s. 1986. e·preciso saudar aqui os esforços const~ ntes d~ Jacques Viard que
11 8 Corr., VI, p. 51-54, C.}581 a Louise Colet, Paris, 19 de javeiro de 1843: lA Revue
·anima a sociedade "Les Amis de Pierre Leroux" para fazer redescobrir este pensa-
m ento essencial. Cf. também B~NJCHOU, P. u Temps de~ propl,ete5. Doctrine5 de Indtpendante recusara um poema de L Colet sobre o povo; Sand explica-se e a cri-
'- tica por ter desejado da r unta image m rea lista do' povo, con trária à verdade: "A rea-
1'4glro(IIQNtique. Paris: Gallim'a rd, 1977. p. 335 ct seq.
lidade e a verdade são duas [... ) vós destes pinceladas de realidade que s30 fortes e
112 · Corr., V, p, 535-547, C, 2372, a Charles :Duvernet, Paris, 27 de dezembro de 1841 : hábeis; . vós-esquecestes a luz da verdade que deve iluminar até as sombras do
, carta fundamental para <> pensamento de Sand nesta época, verdadeira profissão de quadro': Sobre estes problemas, cf. SCH OR) Naomi . GeorgeSand and Idealism. New
fé na fLlosofia de, Pierre Leroux. I .'
'-
York: CoJumbia Uniyersity Prrss ~ 1991.
- ,
392
- 393 '
I'flrre 4
Fígurru
Capitulo 17
Smrl!: umu mulher IIIl politlÇl!
.'
Esta mudança de rumo e de hbcizonte foi, aliás, fortemente sentida por guês, OU um poeta proletário? Se sois o primeiro' dos doi~, podeis cantar todas
seus amigos (como Sainte-Beuve)"t e ainda rnl\is por seu editor. O contlito ex- as volúpias e todas as Sereias (sic) do universo sem nunca ter ,"onhecido uma
plode a respeito de Horace: «Eu vos peço de vos abster de falar contra a pro- .delas l.:.) Mas se ~ós sois um filho do povo, e o poeta do povo, não podeis dei-
priedade e p roclam ar demais as idéias republicanas", escreve-lhe Buloz que. xar o ,casto seio de Desirée [sua mulher] para correr atrás das dançarinas e can ..
o usa esperar que Horace.não-'tivesse sido escríto "unicamente para celebrar as tar seus braços voluptuosos [... ). O poeta do povo tem lições de virtude a dar
. ./
idéias de insurreiçã6 e de comunismo (Vós não soisrcomunista, eu espero?)". a nossas classes corrompidas". 1lJ Ela o exorta à fiçlelidade: '(Anla-se sempre
E ele a iJ;lcita a ficac"entre as pessoas de bem': 110 A Revuc"des Dela Mondes, por mais, quando se ama apenas urna só mulher"j e ao canto do" trabalho: "Nunca
sua vez, "combatedí as tendências de desorganização social por dever e . p~r sois tão tocante e mais original do que quando sois pedreiro,'homern do povo
convicção': Sand recusa as moPificações sugeridas. que 'Considera como uma e terno esposo de Desirée'~1N Ela o aconselha a ler Pierre Leroux, '(a religião da
censura e acaba por .retirar-lhe Ho.racc, devolvendo-lhe o adiantamento dado poesia", que poderia inspirar 3 poncy"a poesia da religião': Ela lhe propõe cor-
(3.000 F). Decorrem daí problemas financeiros dificeis, no momento em que reções formais, leva-o a ser lido por seus amigos próximos e esforça-se para
ela man tém uma relação (com Chopi n), uma casa e uma empresa (La Revue p ublicá-lo, não sem dÜiculdade. Sand prefacia seu Chantier e lhe sugere qJ.le '
illdépendante, fundada com Leroux). '\ escreva Chamons de chaque ;llétier cuja apresentação também será feita por ela
A interve'nçáo pelos escritore~ operários inscreve-se 'na mesma perspec- (1850). "1:. o povo que res~oa po; meio de vossa voz, vós sois sua glória. Oh! re-
tiva. '(."B no povo. e na classe operária sobretudo, que está ·o futuro do mundo~ presentajs então sempre a sua a1ma e o seu esplrito."m Há uma dupla aposta:
escrevia Sand a Perdiguier: U1 Favorecer a expressão e a criação populares tor- fazer o~vir o povo e afirmar seu direito à criação, contestado pelos eruditos
na-se uma preocupação prioritária. A correspondência vê s~rgir uma multi: como Sainte-Beuve ou o professor Ju1es lherminier, ":05 quais ela responde em
dão de novos nomes: ao l"do de Perdiguier e de sua mulher Lise, a costureira La Revue indépendante: "Há no povo, nos' operários, todos os .talentos, todos os
(a partir de então costureira de George), GiIJand, o serralheiro, VinçardiMagu, tipos de ta1ento".'u Como Leroux r ela defende o "sacerdócio poético" do povo.
Reboul, Adélaide Bousquet, e sobretudo Charles P~nC]!, o 'pedreiro de Toulon .. Enfim,Sand tomou consciência do poder crescente da imprenSól na for-
Todos sonham escrever.'l]; Ela os encoraja a fazê-lo, dando-lhes abundantes mação das opiniões e da insuficiência da imprensa existente. Ela deplora a in-
conselhos n~o desprovidos de maternalismo. poncy resolve compor canções de sipidez do National, o conser'vadorismo "meio-termo" da Revue des Deux
amor? Ela faz-lhe se.r mões devido a seu gosto pela volúpia. "Sois UI1) poeta bur- Mondes, a fraqueza da imprensa das províncias, a despeito dos esforços de ho- '
l1lens como Larnartine. Entre 1841 e 1845, uma revista - La Revlle indépe"da,,-
te - e um jornal :- L'EcIairetlr de l'Indre - vão requerer suas finanças e seu tra-
119 Üilrr .• V, p. 570-572, C. 2387 e 2388, ao Sainte-Beuve, Paris, 15 e 20 de janeiro de 1842.
, balho. A revi~t~ responde ao ardente projeto ·de Pierre'Lero ux c.u jo Humanité
120 Corr., V, p. 437-438, C. 2309, a François Bulo2., Nohant, .29?e setembro de 1841-;-
- "um belo livro" - a con'qui~tou. lrritada com a postura cada vez mais antide-
C. 2319, ao mesmo, 8 de outubro de/1841, tom a resposta de ~uJoz., p. 456-457.
" mocrática da Revue des Deux Mondes, ela cede a seu desejoJ deiXa Buloz, e com
121 Corr., V, 'p. 103-105. Agric91 Perdiguier publicara em 1839 Le Livre du
CQmpagno,mage (sic~.. que o tornou célebre. Escritas no exflio, em 1851, Mémoirts
d'un compagnon tiveram diversas edições, das quais a mais r«ente é a de Maurice
Agulhon, publicada em 1992, nesta mesmíl coleção dos "Acteurs de I'Histoire': 123 Corr., VI, p. 17, C. 2560."3 Charles Ponçy, Paris. 21 de janeiro de 1843.
VI, p, 46-47, C. 2578, Paris. 21 de janeiro de 1843.'
124 ' Corr.,
122 ,.Sobre os escritores operá.rios~ cf. RANCI2RE. }acques. .IA Nuit de.s prolétai~.
ArclJives du "ble o'lIvrier. Paris: Fayard, 1981; SEWEL, W. H. Gens de fIIétier et révo- 125 Corr., VI. p. 324-331. C. 2778, ao Charles Poncy, Paris, 23 de dezembro de 1843 ..
luliotl. Le I{Ulgage du rravaiJ de l'AntJicn Régillle à 1848, Paris: Seuil, 1983; , 126 Sur les poetes populaires. Rcvuc lndipendalltc, déc. 1841; c( também "Dialogue
I Be.NICHOU, 1977, p. 406-407, que est'a6elecc o papel essencial de Sand. famiJier sur la poésie des prolétaires': mesma revista, 1842. Estes te.xt~s foram
I reproduzidos em Questions d'art et de litttrature. Pa.ris: Michel Uvy, 1878, _
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Figuras $lmd: umu 1II11'IIlfr 1Id poIitial

Loujs Viardot e Pierre Lerou.'t, funda a Revue indépendallte, que lhe deve seu ti- gundo ela wn romance socialista e comunista, em que compara cüversas for-
tulo - ''Vosso título é admirável. Eu sabia que vós deverfeis ~er a sua madrinha", mas de organização comunitária (a cada um segundo suas capacidades ou se-
escreve-lhe Leroux LV - e muitos de seus melhores textos: três romances (Le gundo suas, necessidades), para conclui~ pela escolha ~mpossível e pela neces-
Compagtlon.:., Horace, COl1.5uelo) e uma série de artigos (os relativos, à poesia sidade da reunião. I».
dos proletários sobretudo). Ela corrige as poesias de Savinien Lapointe e aju-
da Achille Leroux·,. ..;mão
. de Pierre, a passar a limpo seu romance, Le p,.olétai-
l ".'u Sob retu°do, é na Rev". indépendante (dos dias 25 de outubro e 25 de no- "A REPÚBLICA SURPREENDE A TODOS NOS'"''
vembro de 1843) que' George Sand publica Fanchette, lettre de Blaise Bo",lÍtI tl
Claude Germain, que marca sua entrada direta na politica. Ela loma a defesa M~ito absorvida pelas tensões que fazem de Nohal1~ um teatro de um
de Fanchette, pobre Itidíota" que ~s irmãs do hospício de La Châtre gostariam drama familiar, Sand está menos atenta às notícias. Ela, que espreitava há mui-
de ter considerado perdida para livrar-se dela, Indignada. ela ouve o ruldo das . . . to tempo um "crepitar revolucionário'~ não ouviu os ruídos de fevereiro. Ela
consciências contra a crueldade das religiosas, a hipocri.sia dos costumes e a gere seu rompimento com Chopin e com sua filha Solange, prepara Histoire de
inércia da administraçâq, cúmplice, -Apesar de seus esforços - Fancllette é pu- ma vie e mergulha nas c!lctas de seu pai. George Sand correspOnde-se com Maz-
blicada em bro0ura e vendida em proveito da vítima - .é dificil alertar a opi- zini, interroga-o sobre os acontecimentos na Itáli", cujo .interesse ela percebe,
nião pública~ devido à ausência de um jornal de oposição. Conseqüentemen- por estar a'tenta ao movimento das nacionalidades. Mas a Hortense AlJart) que
le. ela lança o .I:Eclaireur de l'lndre que os irmãos Leroux imprimem em seu lhe confidencia que Thiers a lê, ela responde que tam.bém tira seu próprio pro-
ateliê de Boussac. "Estou 'na política até o pescoço", eSCrev~ ela a Maurice,'29 veito da Histoire dll Consular et de l'E,iípire. "Ele não é nem U111) pouco de mi-
Logo, ela mergulharia por inteiro. nha religião) mas como ~ preciso que soframos com a heresia política e social,
Após 1845. ela se afasta de Pierre Leroux, cujas necessidades financeiras desejo que o Senhor Thiers derrJ,lbe o Senhor Guizot e que respiremos um ar
e as sutilezas teóricas cansam- na. DO Ela se aproxima de Louis Blanc, que lhe
'o'
um pouco menos mortal."ji. Ela não acredita que esta "querela" (Guizot-Troers)
pede sua colaboração e sua aliança para La Réforme. Ela-aceita.,a primeira e as- apaixone o povo e subestima a campanha dos banquetes. "Bone está de ponta
sina \,Im. co..ntra~o para dois roman ces, mas o alerta para a segunda: "Temo que cabeça com 3 , idéia de que se vai fazer uma revolução em Paris. Mas não vejo
vós- açheis ·minha educação polftica bastante inco mpleta e minhas curiosida ... prete:x,'to razoável para tal, no caso dos ba)"lquetes", escreve ela a Maurice 18 em
des religiosas um}anto indiscretas. Peço apenas para ~er doutrinada [... 1Ain- de fevereiro. ·Ela lhe suplica, aliás; que se, mantenha afastado: "fazer-se atacar por
da so u mulher em espirito 1 isto é, preciso da fé para ter coragem'~lJl Ela dá a La Odilon Barrot [000 J seria muito imbecil. Escreve-me o que viste de longe e não te
Réforme (2 1 de janeiro-19 de março de 1845) Le Péclré de Monsieur Antoin;, se- metes na confusão'~lj5Mas rapidamente o tom muda. No dia 23: 'Csta~os mui-
to inquleto~ aqui [· .. 1w ~ preciso que voltes imediatamente (... 1teu lugar é aqui,
, ' 127 Corr., V, p. 461. Çarta de Pierre Leroux, 15 de outubro de 184~. nota da C. 2323. se houverágitações sociais. Uma revqIução em Paris teria seu contragolpe ime-
I
I
128 Sobre a história da fu,ndação da Re.vue ltld~pendante, cf. LACASSAGNE, Jean- diato nas províncias e sobretudo aqui, onde as noticias chegam em algumas ~~_ ~
Pierre. Histoire d 'ul1t artliti~, Pierre Leroux tt George Sand (d'apres une correJpon-
dance inédite). Paris: Klincksieck, 1973. p, 45-49.
129 Corr., IN; p. 284, C. 2749, a Mau~ice ~ 1,ld. Nohant, 17 de novembro de 1843, 132 Corr., VII, p. 127, ç. 3257, a Anténor.Joly, Nohant, 15 de outubro de 1845.
130 çorr., VUI, p. 166. C. 3764, a Charlolfe Marliani, fim de novembro de 1847: há , 133 Corr .• VUI, p. 337, C. 3855, a Pierre Bocage, Nohant, 11 de março de 1848.
"uma espécie de jes uitish1o, ~o qual se4 fanatismo sabe se curvar na ocasi30~ 134 lbid., p. 292, C. 3823, a Hortense Allart, Nohant, I~ de fevereiro de 1848.
131 Corr., VI, p. 719, C.'3032, 3 Louis Blan~, Notlant. fim de novembro de 1844.
, 135 lbid., p. 299, C. 3825, a Maurice, Nohant, 18 de fevereiro de 1848.

"

0396 397
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Parte .,
FiguraI
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&111:1: umtl 1lllIlher"1l poUri,a
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ras'~'" Graças ao desenvolvimento das comunkações - ferrovias e correios - as da. Sand está em Paris durante a fase ascendente da Revolução (de tOa 7 de
coisas mudaram muito desde 1830. E mais ainda, a posição de Sand. março, e depois, de 21, de março a 17 de maio), nb coraçãq deste povo, que
Em 10 de março, ela não agüenta mais e corre para Paris. O tomo VIII encarna, a seus olhos, a própria revolução. ELa reside em Nohant, naquele
de s,ua Correspondência permjte acompanhar muito precisamente sua~ativida­ Berry honesto e um tanto lento que ela se esforça para converter à República,
des que a política invade-eótão{completamente, na reconciliação dos contrá- inicialmente durante a ca mpanha eLeito ral (7-2 1 de março ) e depois, 'duran-
rios e uma unidade pessoal enfim reen co ntrada. "As tristezas pessçnlis desapa- te a debandada (a partir de 18 de maio ), neste movimento pendular, clássico
recem quando a política nos chama e nos absorve. A República é a melhor das para ela, de alternância entre o caminho da aventura e o recolhimento na in-
faritQ.ias. O Povo é o m~or dos amigos. Não se deve gensar em outra,cois..a", timidade do ~ilareto. 140
escreve ela em 6 de março a F~éderic Girerd. m A correspondência permite compreender as difi culdades da política lo-
O povo é grande, e os dirige.ntes honestos. Ela "encontra os dirigentes cal, a intensidade das resistê ncias e dos preconceitos, as reticências campone-
todos 05 d,ias" e coloca-se à sua disposição. Ela admira a maturidade do povo sas diante da hegemonia de Pa_ris e os tem ores quanto à perspectiva de um co-
- ele "foi sublim e em coragem e doçllIa"UI - e, conscierite da imagem revela- munismo assimilado ao coletivismo das terras. '4 ' Reduzir esta distância, edu-
dora das manifestações, contempla COI11 em oção os grandiosos funerais da~ ví- C31; a provínci~, mas também fazê-la ser reconhecida e existir, por razões além
timas de fevereiro; "400.000 pessoaslomprimidas desde a Madeleine até a co- de suas notabilidades, foram para Sand um objetivo co nstante, claramente ex-
luna de Julho; ne.nhu~ policiaJ, nenhum sa rgento da cidade, e no enta~to, tan: presso quando da criação do L'Sela;reur de I'Jndre, O primeiro apelo que ela
ta ordem,.decênda, recolhimento ~ polide~ mútua que não houve nenhum pé . lança, em 3 de março - Un m oI à la classe moyenne (Uma palavra à classe mé-
pisoteado, nenhum d;tapéu amassado. Era admirável: O povo de Paris é? pri-' . dia) - visa a reconciliação das classes, mas também dos lugares:"Paris acaba de-
,
meiro povo do mundo~: m dar um grande exemplo ao mundo. Paris é a cabeça, o coração e os bràços da
Ela entra no g'rande período d~ sua atividade e de seus escritos -políti- França," Mas "Pa~is é o centro da vida apenas porque é o local de 'encontro da
cos, que preenchem três q':lart~s deste üvro. Eles pontuam seu caminhar rit- França inteira. Os naturais da metrópole são somente uma fração do grande
mado pela _ond':l, que avança, e depois recua, dos acontecimentos. Não preci- corpo social. [· .. 1Paris. sois vós, so u eu. som os todos nós [... l. O tempo dos Gi-
samos entrar aqui nas detalhes, mas, preferencialmente, definir suas gr.andes rondinos e dos Montanheses passou sem volta". Tese que ela retomará freqüen-
linhas e esboçar um retràto de Sand, poBtica, no auge de sua intervenção.
. ' . ,
"
temente sob1orma de diálogo entre Blaise Bonnin, agricul tor (aquele de Fan-
chette) e seu irmão Claude, operário das cidades. Convencer as pessoas dos
, ' campos que eles não têm nada a temer do Ugoverno de Paris" e de sua politica
A REPUBLICA NO VILAREJO DO BERRY fiscal, no j'ilOmento do imposto dos 45 cêntimos, não é tarefaJácil e a «palavra~.
I(
de.Blaise Bonnin deve seI; elóqüente para d~monstrar que ,Paris é a "grand e co-
i\: J A'ação poUtica de Sand ass um e diversas formas e inscreve-se em um muna das comunas, a paróquia d~s paróquias. Nada do que se passa ali vos é
d"plo espaço cOJ11pleme~tar e freqüentemente antagônico: :,!ris e..a provín- estranho. Paris vos pertence assim como VOSSa praça pública, como vossa igre-

136 ·Corr., VIII, p. 304, C. 3831, a Maurice, Nohant. 23 de fevereiro de 1848.


140 HECQOET,-1990. capo 111: La pensêe de I'espace, onde ela opõe "o caminh'o ~ o
137 Ibid .• p. 324. C. 3849, a Frédtric Girerd. Paris. 6 de março de 1848. castel o'~ lemas caros a $ando
138 I~id .• p. 316. C. 3843, a René de \ÍiUene+e, pà~is. 4 de março de 1848. 141 Sobre est~· ponto. cf. a obrn de V1G lER. Philippe. La vie quotidienl1e efl province tI
. 139 Ibid., p. 319, C. 3844, a Augustine Braul~. Paris', 5 de março de 1848. fl Paris penda..nt les journ,éeslle 1848. Paris: Hachet te, 1982; reediÇão 1998 .
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398 399
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CJprtulo 17
~",J: 11m" /PIuU'er na políticD
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ja VOS pertence': Tudo na unidade da França: "Há ape.nas uma França, e matar em. turn ê nos·departamentos ."para revolucionar e ca'tequizar os camponeses e

••'1
wn francês é derramar seu próprio sa ngue': 141 os operários"; Gilland e Lambert tentarão fazê-lo, sem grande sucesso. Sand se
• Sand implica-se vigorosamente na política local: em Nohant, onde Mau- cansa: Não vejo nenhuma chànce de ter sucesso no departamento de Intire~ es.,
rice tornou-se prefeito;HJ em La Châtre, onde ela ~enta mobilizar os democra- creve ela a Louis Viardot; e a Pauline: "Se eu não voltasse a Paris, onde o conta-

,
c'
taSi no nível do depanamento. onde ela segue com atenção as campanhas elei- to com este pobre povo, tão grande e tão bom, eletriz."\-rne e me rean.ima, eu


/
I' torais e se us resultados. "O minis.tro tornou-me, de certa forma, responsável perderia aqui 1 não a minha fé, mas o meu entusiasmo. Ah! Nós serem~s repu_o
pela conduta ~e meus amigos."'·· Encontrar para a sua futura Assembléia can- '. blicanos mesmo assim, ainda que seja preciso morrer de fadiga, de miséria ou
didatos à deputado que sejam homens do povo não é uma questão menor, em um combate".'4I De volta a Paris, em 2l?e março, Sand não se desinteressa-

••
,
I,
corno mostra o exemplo de poncy. Ela O incita a candidatar-se em TouJon. Ele
se esquiva, alegando sua incapacidade oratória: "Não ,sei desenvolver meu pen-
saniento. ao 'p úblico com minha 'palavra, [... ] por estas razões não' ambidono o
rá nunca pelo Bary, dando a Maurice abundantes conselhos'para gerir a com u-
na e "repubficani zar nossos bons paroquianos".'~' O vilarejo do Berry não era o
vilarejo do Departamento ,do VaroMas de tudo isto ficaria alguma coisa.

•• titulo glorioso de representante posto que nada em mim justifica esta ambi-
çãO':I~S As dificuldades eram ainda maiores no Berry, tanto no nível da tropas,

"j
'I .
poul:o educadas, quanto dos chefes. "O que nos falta absolutamente são inicia-
- '~A CAUSA DO POVO"
dores'; escreve ela a Hen~i Martin para convencê-lo a vir assulll,i r a cabeça da

".'•
lista de candidatos. "A deputação ,é o papel mais importante a assumir e nesta Agora é Paris que a monopolizá e a apóia. Ela é solici tada em toda a par-
região vós seríeis a cabeça e o coração de todos! .. ,], Vós instruireis o camponês te, e nos mais alt'?s postos. O Governo Pro\CÍsório pede-lhe o auxflio de sua
e o operário que vamos buscar, pois ainda não os temos sob nossas mãos."'" penai ela eScreve cire:uJares ag.ministrativas para o ministro do Interior e o da
Trabalho rude, ainda mais porque os habitantes do -Berry não suportam os "es- lnsttução P~blica que o saint-simoll.ista Jean Reynaud ~oordena. no Reynaud

:;1 ' trangeiros'~ "Aqui, como em todos os departamentos do 'centro, o am~r por sua

.'I
II
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I

~~\
localidade é uma paixão. Os homens da região disputam passo a passo a honra
de nos representar. Entre eles será feita a escolha, sem que haja meio de nem ao
menosf~t~r de ~m estrangeiro. Como desejais que as pop~ações rurais'~om­
preendan:i, da Imite para o dia, que seu campanário nãô é a metrópole do mun-
do? A revolução 110s ~ei.xi1 em ullursituação diflcil. As e1eiçõe'i.,chégam muito
raridamente, s?bretudo para o camponês que não pensa 'rápido,"'4? Ela propõe
por exemplo. "Paris-province", em Les L;eux de mémo;rt. Sous la direction de Pierre
Nora. Paris: Gallimard, 1992. t. W: Les France,·v.l: Conflits et Partages.
148 Corr., vnr, p. 349, C. 3867, a Lo~is Viardot, Nohant, 17 de março de 1,848; p. 350,
C. 3868 a Pauline Viardot, mesmo lugar e mesmo dia. .
149 Ib id., p. 358', C. 3874, a Maorice 5..1 nd, Paris, i2 de março de 1848. Maurice deve
ocupar-se dos interesses de seus administrados e fazer sua educação política. Ela lhe
sugere a criação de "u ma e5pKie d~ clube em que serão excluídos os ociosos e
ar ~iI}istro da Instrução Pública (Hippolyte Carnot) que se. enviem operári?s bebedores inúteis, as mulheres e as c~rianç3s que ~ pensam em gritar e dançar':
Nada de fes~as, então, mas seriedade, educação cívica. Ela recomenda a seu filho
. j I que fuç.1 a seus concidadãos uma leitura comentada da literatura.o.f idal, que afixe

•• I
142 Parole ,de Blam Bonnirt, IV, p, 54 -58.
143 Corr., VIU, p. 328, C. 3852, a Charles Poncy, Nohant, 8 de marçÓ de 18'48.
144 Ibid., p. 324, C. 384;9, a Frédéric Girerd, Paris, 6 de· março de 1348.
o Bulletirr de la Ripublique, que receba o comissário do governo, Marc Dufraise, que
deve substituir um iluminado que "revoluciona ~hâteauroux às avessas", recomen-
d:mdo-se por uma santa virgem republicana (C. 3884, p. 369). Ele facilitará tam-
_b~m a missão de Gi lland e Lambert, em turnê de propaganda. Sobre õ vilarejo do
- f, ," 145Ibid., p.33I,n .1.
Var, cf. AGULHON, Maurice. La Ripubliqlle au l'ilIllgt. P,uis: Plon, 1970" que '

,
"

•• ,
146 Ibid., p. 332, C. 3853, a. Henri MartinJ Paris, março c;te 1848.
147 . fbid., p. 349, C. 3867, a Lo\Jis Viardot, ~Nohant, 17 de março de 1848:SQbre o local -
_ ismo, as dificuldades 'das relações Pa !, is-provincia, cf. trabalhos de Ahün CorbJn,
mostra justamente como foi feita , entre 1815 e 1848, a conversão republicana. .
150 Sobre -J,' Reynaud, cf. B~NTCHOU. P. Le 'Temps des propheteJ. Doctr;nes dI! l'dge
roman tique. Paris: Gallhnard, 1977. p. 385.

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401
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I. Purtc 4
Figuras
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lhe encomenda brochuras populares (Paroles de Blaise Bonnin). Sobretudo, por

••
gumas de suas reportagens mais.belt}-sucecUdas. Graças a Thoré, militante re-
sugestão de lltienne Arago. ela redige editoriais para o BuJletill de la Rép,ubli- publi~ano e crítico de arte desde 1834, a arte ocupa um lugar importante.
que, por meio do qual o Governo Provisório se esforçava em divulgar suas po- Razões l'ara estar sQbrecatregada: "Não sei a quem escutar, chamam~l11 e "
siçõe~. Entre 25 de março e 29 de abril, ela dá nove contribuições, todas anô -
nimas. mas.cuja paterni~ade.atestada pelas menções-de sua correspondencia, .J
não deixa nenhuma dlivida. Estes textos. dos quais ela tem a responsabilidade
à direita, à esquerda. Não podia esperar nada melhor";IS. extenuada: "Estou es ..
°
. magada pela fadiga";'!oS mas feliz com esta fusão entre individual e o coletivo.
"Não há poesia pessoal, doce repouso, retiro, cada um 'por si. A poesia pessoal
"••
moral, mas não política, deviam ser lidos por cer tos membros do Governo, se-
gundo um pro.tocolo cuiqadosamente estabelecido, mas Ilem sempre respeita-
do. Daf os problemas que surgiram a respeito do Bidletill n. 16 ( 15 de abril)
está na ação, agora, qualquer outra é vazia e morta [... ]. O retiro está em nos-
so coração e não em nosso quarto. Nossa casa é a praça pública, ou a impren- • ••
••
sai a aJma do povo enfim [... ]. A República é a vida.", escreve ela a Poncy,I$I.
cuja desenvoltura relativa aos resultados das eleições provocou uma crise que co mo um eco longínquo do protesto poéti co do Viajante de outrora. O menes-
pôs fim ô sua colaboração. trel, o "menino de arado [... J calçado com meias azuis e sapatos ferrados", O
Há muito tempo, Étienne Arago considerava o teatro como um «meio
revolucionário". l5I Ela dedica-se a esta alivida'€le. Éscreve um prólogo para a:
abert~ra gratuita do Théâtre-Français. transformado em Théâ tre de la Répu-
"pobre ln'enlno de tropa" estava .no centro da cidade.
"Eis-me ocupada como um homem de Estado", escrevia Sand a Mauri ..
ce. '~a estava; de fato, próxim'a às insL; ncias do poder. Ela trabàlha freqüente~ ~

blique. Numerosos artistas trazem sua colaboração:- Pauline Viardot, que Sand
gostaria de transformar em cantora .tla República para. "conquistar o povo e o.
poder·~,sl Rachei. Augusti.n e Brohan, .etc. A representação tem lugar em 6 .de
mente at~ tarde no ministério da rua de Grenelle. Alguns "conciliábulos" do
Governo Provi$6rio se realizam em ·sua "e~pelunca" no número 8 da rua de
CQi1dé, a 'dois passos do Palácio do Luxemburgo, onde reside'Louis Blanc, q"ue
••
, I

abril, em presença do Governo Provisó rio. "O que havia de mais belo, era o pú- ela vê quase todo dia, m~ito atenta ao andar dos ateliês nacionais e a suas vi-
bLico, o povo limpo, calmo, atento, inteljgente,,'delicado, aplaudindo na hora ." cissitudes. Com Ledru-RolJin, submerso, os contatos são mais complicados.
"Esperei o Senhor Ledru~RoUin até a meia-noite, escreve ela a Lockroy; pude
certa, não fazendo o menor barulho nos entreatos, enfim, um povo mais de- .
vê-lo apenas cinco minutos; havia tanta gente que não era o momento" de lhe
. cer'lte do que ,?S freqüentadores habituais do Teatro dos ltaliens ou da·Ópera".
falar!~l O i'n formal- encontros, conversas, recomendações - prevalece sobre o
que acredita i?,0der fazer qualquer coisa, sobretudo no que se refere às átrizes:
formal e o institucional, si tuação habitual e provavelmente majs favorável para
perfeita antítese, em suma, da representação que a burguesia dá habitualmen-~_
I uma m~lher. Sand apresenta propostas, sugere iniciativas, retomadas bastante
te do povo. lU '
sem força. Muito solicitada por seus amigos e suas relações, seja para uma pro-
[. No entanto, ela so'nha com uma "revista" que gostaria de fazer «sozinha,
teção, seja por uma colocpção, ela se esforça o quanto pode, um pouco ofusca- .
. ao meu gosto". VjardotJh~ dá o auxílio tj'nancelro, Bbrie, Thoré, lhe emprest~m""~
da às vezes pelo cr~dito qu e lhe atribuem: <~ lnfelizmenle, no meio de todas as
- suas renas-:O prime~ro número de La Cause du Peuple (que pr~vavelmente Sar-.
tre el OS esquerdistas de 1 ~68 ,ignoravam completamente?) é pub!icado em.9 de
abril Sob sua assinatura, desta ~r~, ela desenvolve análises políticas e reaüza aI:..
154 Co"., VlJI, p. 359, C. 387.6, a Maurice, Paris, 23 de março de 1848.
, 155 Ibid., p. 379, C. 3892, a Maurice, Paris, 10 de abril de 1848.
156 Ibid., p. 372, C. 3885, a Charles Poncy, Paris, 28 de março de 1848. I
151 ttienne Arago publicara "te théât~ considéré comme moyen révolutionnaire", em 157 Tbid., p. 382, C. 3894, a tdouard Loc.kroy, Paris, inicio de 1848. Sand é, de qualquer
Paris révolutionnaire. Préface de G. Cavaignac. Paris: [s.n.), 1833 .. 1834.4 v., t. l. maneira, menos ligada a ele do que a Louis Blanc ou Barl*s. wNão tenho por ele
152 Corr., Vil! , p. 381. C. 3893 ao PauJine Viardot, 1* de abril de 1848. e
nem entusiasmo. nem amizade particular muito marcada. um republicJUloJ ...),
153 lbid., p. 388. C. 3899, a Ma~ric~~ Paris. 7 d~ abril de 1848.. devotado e sério': que ela apóia lealmente': VIII, p. 439, C. 3293, a Ferdinand
~ ,,' '-
François.

--
402
403

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FiSIIJ'JlI &1IId: ImlO muUltr /IR po/{rirQ

declarações que a situação engendra. meu grande crédJto ~ apenas uma decla- todos fazer medo uns aos outros, e tiveram tanto sucesso que todos t~m medo
ração a mais". '~·Ela part.icipa da preparação de diversas 'manuestaçóes, c.0mo a para sempre."I"
dos clubes, em 16 de abril, pela qual ela renuncia a Nohant: "Uma manifest.~­ O Bulleti;, n. 16 ( 15 de ;bril) no qual el; previa que se o resultado das
ção política se prepara e devo assistir a ela necessariamente. Manifestação pa- eleições fosse "a expressão dos interesses de uma casta", então s.e poderia,.adiar ,
cifica, mas que dc::ve cor;rigir muitas tolices e muitos atos culpados':'" No en- os seus resultados - atitude que ilustra a fragilidade da democracia -: provoca
tanto, é provável qué 'se tenha exagerado sua influênâa: seus detratores, mas contra ela reações ~dversas:" [... ] devido a um Bulletin wn pouco frio que fi z,
também alguns de seus amigos, notadamente Marie d'AgQult, que invejava um há um desencadeamento de furor incrfvel em toda a classe burguesa" (id.) Ela
pouco aquela ~ue, mah tarde, com Juliette Adarn': ela mamará de "a Rainha". nunca deixará de dever explicações a este respeito. A Causa do Povo tem pou-
Poderíamos falar sobretudo de :jobservação participante": posição privilegiada ca aceitação: 'jTodos estão preocupad<?s demais. Vive-se o dia-a-dia'~ Clima
de um fora-dentro que confere muito interesse a suas análises. TQcqueville, que , pouco propfci.o às idéias. Ela quer, no entanto, ficar em Paris até a instalação
a encontra,no dia 4 de maio, lemb'rar- se-á por muito tempo de sua ac-uidade: . da Assembléia Nacional. Em 20 de abril, a festa da Fraternidade, que ela con-
"Eu não duvidava que estivéssemos às vésperas de uma luta terrível; entretan- templa do alto do MCO do Triunfo com os membros do Governo Provisório,
to, somente compreendi bem todos os seus perigos em uma conversa que tive tranqüilizou-a no,,!,mente. Ela faz unu descrição lírica, mas também politica,
[... ] com a éélebre Madame Sa~d':'" A profundidade de sua, consideraçõ~s so- atenta aos sinais da modernidade democrática. Uma multidão estimada em
ciais surpreende o autor de La Démocratie Cf! Amérique. um milhão de' almas (avaliação excessiva l!gada à inexperiência: não se sabe
. A situaçào se degrada, de falo, e Sand/ é wna testemunha lúcida dos ainda medir tais massas) desfila durante doze horas, da Bastilha ao Arco do
acontecimentos. "Aqui tudo vai mal, sem ordem e sem conjunto, escreve ela a Triunfo - de l~ste p~a oeste, na totalidade do espaço parisiense ~ e dali para a
Maurice na manhã de 16 de abr~1. Haveria, põrém. belas coisas a fazer em po- peri.feria; uma multidão heterogênea mas que une o civil e o militar, o povo e
lítica e em moral pela humanidade. Apesar dos burgueses, haveria mil -meios ° exército: "Quatrocentos mil fuzis apoiados em um muro que marcha, a arti-
de salvar O pOV~:' 161 Naquela mesma noite, ela faz a seu filho um
relato desola- lharia, todas as ar~as [... ], todos_os uniformes. todas as· pompas do exército,
do das "quatro conspirações" que levaram à desordem da maniféstação. "Hoje, todos os farrapos da' santa ralé e toda a população de ' todas as idades e sexos
Paris se comportou como La Chãtre." O fracasso desta demonstração a persu'a- como testemunhas {... ]. misturando-se ao cortejo':l" Mas a partir do dia se-
de que não 'Se pode esperar muita coisa e, como sêmpre, surge a tentação de 'guinte, as eleições excitam as-paixões, Sand ~ssiste. no Hôtel de Ville, à espera
Noha.Ílt: "Se isto contiI?uar, e não houver mais nada a fazer .e m certo sentidb,~ dos re.sultados. Freqüentemente o espetác~ul0 da rua a conforta, quando ela
eu voltarei pa~a Nohant para escrever'~llil Par'i.s vo ltou a ser o l~êal dos boatos . . tem dúvidas: "Eu saio à rua e me t~anqüilizo ao oU\~ir o que é dito nos di~er­
"Diz-se, na Guarda Volànte, que a periferia faz pilhagens na periferia, que ?.!.. sos clubes ao ar livre que enchem Paris neste momento'~I65 Ela descrev~ a fisio-
comunistªs fazem l:iarricadas. ~ como uma verdadeira comédia. Eles quiseram nomia do público no primeiro artigo que faz para La Vràie République de Tho,
I- ré (2 de maio), doravante a sua ún,ica tribuna. Pois La Cause du Peuple fechou,
I
após três números, em 23 de abril. E no dia 29, ela entr~ga seu último papel a~
1158 Corr" VIII, p, 387, C. 3898, a Saintc-Bcuvc, Paris, 5 de abril'de 1848.
Búlletin de la Républiqlle. No entanto, Sand continua a acreditaI:. no poder da!
159 rbid., p. 3,98, C, 3908, a Maurice Sand, Paris. 13 ~e abril de 1848.,
160_ Tocquevillc, SoavenirJ, apud G. Lubin, Corr'1Vm, p. 590, n. I.
. escEita. "&te movimento do espírito é. nest~ momento, como uma couente •
161 Corr., VllI, p. 409, C. 3911 , a Maurice, P:uis, 16 de abril de 1848.
162 Ibid., p. 411-420, C. 3913, a Maurice, noite de' 16.de abril de 1848. 163 Corr., VIU. p. 42~, C. 3913, a Maurice. 18-19 de abril ,de 1848.
164 lbid., p. 43 I, C. 3917, a ~aurice, Paris. 21 de abril de 1848.
165 Ibid., p. 437, C. 3921,13 Eliza Ashurst, Paris, 29 de abril de 1848.
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404 '.
405
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,1 Pllrtc 4 Cilp(wlo 17
!.< Figuras &md: U/IIQ mu1htr n~ poUtica
1

elétrica" (id.). E "os instinto.s da muJtidão" lhe parecem mais seguros do que as lo: "Nohant está so berbo {... } creio ter reencontrado o paraíso".'" Ela goza des-
intuições dos políticos. Brilho de esperança? O s resultados das eleições são me- te paraiso, não sem o remorso que s~mpre acompanha sua volta ao privado,
lhores do que o. pre~isto. ((Em toda a parte começa uma reação da opinião sã," sóbretudo após os terríveis dias ~e junho. "Quase nos censuramos por gozar
contra a opinião burguesa." I.. ._ de uma certa felicidade doméstica, quando tantas vítimas pagaram com seu
Mas a calmaria dura' pouco, no vilarejo como em Paris. Em Nohant, um sa ngue, com sua liberdade [ .. . ] a idéia pela qualteriamos querido sofrer ou
pequeno bando de pa rtidários do deputado Charles Delavau, vinda de La Châ- morrer com elas,"'"
tre, chega ao castelo proferindo "injúrias atrozes" co ntra George Sand e amea- Os dias de junho a desesperam. "Sofro com tal desfecho para nosso
çando saquear sua casa. Em Paris, no dia 15 de maio, com o pretexto de apre- belo' sonho de república fraternal."I'" "Só resta chorar, e vejo o futuro tão ne-
sentar uma petição em favor ~a Polônia, a multidão invade o Palais-Boucbon e
gro que tenho grande vo ntade grande necessidade de queimar os mi olos", UI
e líderes proclamam a dissoluçâo da Assembléia Nacional. Esta caricatura de ao passo que loucos boatos ci rculam na região, segundo os quais ela esco nde-
golpe de Estado fracassa mas provoca uma série de detenções, entre as quai s 'as ria armas e rebeldes, "aJém de Ledru e Lamartine em pessoa'~17l "Sinto- me
de Bal'bes, Blanqui, Ráspail e muitos. outros. Sand desaprova: "O dia de ontem abatida, consternada, velha com cem anos, e fazendo esforços vãos par~ con-
nos faz retroceder dez anos. Que loucura deplorável! [... ] Que caos terrível! servar a esperança."11)
. Nossos amigo s no poder! Emmanuel (Arago) embaixador e Blanqui na pri- Mas ela retoDla sua coragem: a pena e o pensamento. Em longas cartas
são:·...7 Thoré também estava no golpe: Sua "atitude intempestiva mata seu jor- a Maizini, então o seu principal corres pondente, mas também a POllCY, Hetzel,
nal; para mim (..:" não posso 3'jeitar a r~sponsabilidade de ~3is aventuras" etc., ela aprofunda sua refl~xão, po lítica e social. Como alg~ns de seus amigos
(id'.). Alguns gostariam. porém, 9,ue esta responsabilidade lhe fosse atribuida, ~ , (Rollinat, por exemplo) , ela começa a ver na insurreição de junho um possível
ti - ve nd o no 81111etin n. 16 o roteiro do dia 15 de maio. AJguns pretendem ,~~-Ia I' ,i complô estrangeiro. Mas a dimensã9 social das coisas se impõe como wna evi-
I~f visto na manuestaç..10, arengando a massa, na rua de Bourgog~e, prática intei- dência. "A França não compreendeu o cará ter da revolução que Paris lhe im-
ramente contrária a seus hábitos. Ela vive no tem or dos mandados de busca .. põs e isto é mau, [... ] "ão é t~ma revolllfiJO polltjca. é U('1a revolução sociar. es-
Os se us - família, amigos - apressam-na a pa.rtir e até mesmo exilar-se na Itá- crevia ela a-René de ViUeneuve, sublinhando a intensidade da miséria operá-
lia, o que ela recusa. ria. LH Os dias de junho são uma luta de classes: "A riqueza de todos tornou-se
a questão de uma classe privilegiada, e hoje, esta classe pretende, mais do que

o INíCIO DO EXÍLIO INTERIOR - nunca,' ser proprietária da propriedade do Es tad?".'" ! preciso então atacar o

168 Corr. , VIII, p. 470. C. 3947, a Jules Boucoiran. Nohant,'2 1 de maio de 1848.
Seu exílio é Nobant, onde da está de-volta, 'em 17 de maio. Ela sente,fã; .. \
169 , lbid., p. 613, C. 4035, a Luigi Ca lamatta, Nohant. 6 de setembro de 1848.
.i·t. temente'~ desejo de t:etirar-~e: "Eu não vos falarei de polftica" escrev~ ela ti Ju-
170 Ibid., p, 527, C. 3980, a Augustine 8ertholdi , Nohant, 29 de junho de 1848.
I!' lei Boucoiran, sublinhando a palavra, como sempre, quando ela se afasta.·((Es- '
171 lbid., p. 552. C. 3985, a P.-J~Hetzel, No han t. 4 de agosto de 1848.
tou furta. No momênt~ em que estarnos, é um tecido de fábulas, de ,acusações,
172 Ibid. , p. 535, C. 3988; a Augustine de B., Noha.~ 14 de julho de 1848.
de suspeitas, d e" recriminações e o ' caso de 15 de maio, absurdo e deplorável,'
173 Ibid., p. 539, C. 3990, a Eugénie Duvernct, Nohant, 15 de julho de 1848.
não contribuiu para recolocar os ânimos no espir,ito da fraternidade". Conso-
174 lbid., p. 464. C. 3945, a Renê de ViJleneuve, Nohant. 20 de O1 ~jõ'de 1848.
,
·1 , '1 . 175 Ibid., p. 579. C. 4011, a Charles Poncy, No hant. 10 de agosto de 1848. A interpre-
166 Corr.• Vlll. p. 446. C 3931. ~ . Cha rl(S P~nCY, , 5 de maio de: 1848. tação dos dias de junho é muito complexa. Trabalhos de arquivos mostraram que
a Guarda Volante. que fo i a arma de rcpress!lo, era de origem tão operária quanto
167 Ibid., p. 457. C. 3938, a ~tienne Arago. p,a ris. 15 de ma io de 1848. ,
. ' os, rebeldes, mas composta de elementos mais jovens e recéntemente imigrados
"

406 407

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P<lrtc4 Caplwlo 17
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Pi,UNJ ~md: .,,,,.. IIl11lhcr /111 ",/(t ia

problema central. EJa distingue a propriedade~ndividual, necessária e legítima, poleão': 111 subUnhando a indigência de escolha: "A questão está entre o sabre
e a propriedade social que deve ser gerida pelo Estado. Condena o co~ unis­ " san"grentõ da ArgéHa e a espada enferrujada do Império. Não sei, na verdade,
mo. mas pronuncia-se por um "comunismo social" que antecipa o que será para quem votaria, se fosse hom em'~1U Como Luís-Napoleão tentara prevale-
chamado 'de coletivismo, aplicado às estradas de ferro, às vi~~ de tomunicação, cer· se de sua antiga amizade ao publicar a carta que, em 26 de novembro de
aos seguros... "Quanto mais as sociedades se civilizam e se aperfeiçoam, mais 1844, ela lhe enviava, no forte do Ham onde ele estava detido, Sand toma dis.
elas estendem o fundo comum, para fazer co ntrapon to ao abuso e ao excesso tànda, publicamente; "O Senhor Luís Bonaparte, inimigo por sistema e por
da p,ropriedade individua1."I" "Toaa a ciência social, que se torna necessaria-- ,convicção da forma republicana, não tem o direito de apresentar a sua candi.
mente, nos dias de hoje, a questão política, consistirá então em estabelecer es~a datura à presidência'~I" Sua eleição, em 10 dr dezembro, não a surpreende des-..
distinção,"m Esta necessária e !nelutável transformação não deve' ser a obra da mesu[ada!l1ente. uTodos se vingaram, jogando,· se no desconhec~do. ~ um
.'" violência que ela ,recusa, mais do que nunca hostil ao insurn!donism'o blan- grande erro, provavelmente, m as o povo·não conhece os cálculos da política e
quista. Na, verdade) a vio lência estava, pr~sentemel1te) do lado da burguesi~, A ',vai aonde seu instinto o leva",II~ instinto do qual ela começa a duvidar,
repressão de junho desconsidera a !tepública: "~ão creio na existência de uma Em certos aspectos, ela se sente,liberada por este voto que significa, de
república que comece matando seus operários. Eis wna estranha solução dada '. cer~a maneira, sua retirada, "Senti-me, então, como resignada di.ante da vonta.
ao problema da miséria. ~ puro Malthus".17lI • de do povo que parece nos dizer: 'Não,quero ir mais rápido do que isto, e to-
Ela se d~ conta da fragilidade dos tribunais populares de urna tal Repú- marei o caminho que me agradar', Também retomei meu trabalho, como bom
blica, naquele outono de 1848, effijque há eleições presidenciais. Os campone- qperário que retorna fi sua tarefa, e avancei bastante as minhas Memórias,"'u
ses, cuia situação ~conômica~ sem ser catastrófica (a colheit,a foi bda), não bri-' é Ei-Ia devolvida à literatura. Ela escreve para La Petitc' Fadettc "uma espécie de
U1ante, não gostam .muito desta "pequena república que não c<?mpreendem nem p;efádo" em que explica "porque volto às pastoreias". Julgado provavelmente
um pouco, Eles acreditam que Napol~ão não está morto e que votam nele ao . muito sulfuroso, O texto não será publiçado no jornal Le Crédit que apresenta
vottlr em seu sobrinho". '" Os ope~rios têm mais maturidade: "Há .uma
mino~ o rom.a nce em capítulos, a partir de r' de dezembro .... Neste diálogo com um
ria sublime nas cidades industriai~ e no~ grandes centro's} sem 'nenhuma ligação interlocutor imaginário. ela conta seu desespero presente - "Estávamos tristes,
com o povo do campo e destinada, por n1uÜO tempo, a ser ~n~agada pela m~io­ tornamo·nos infelizes" - 'e sua fé no fu,turo, unos destmõs da Revolução'~ Mas
ria vendida 'à burguesia. Esta minoria leva} em seus flancos, o POV? do futuro'~·· a "fé conta em séc,ulos, e a idéia abraça o tempo ~ o espaço, se m levar em coo- \
- De imediato, ela não gosta. muito de C1vaignac f mas ela o prefe.riri~--a
"uma ignóbil restauração ilnp~rial, bq~gu.esa e militar, na pessoa de Luís·Na·
ta os dias e as horas", Ela çstá persuadida que a convicçãe democrática será ",r. :
j
questão de longa duração,! preciso retornar à arte e a poesia: I" .. ,J já que não
- podemos dar nada mais aos infelizes, façamos ainda a arte como a víamos ou-
para Paris. daí, ~provavelmente. sua pequena ' integração. Sand havia . visto muito
bem o caráter incerto desta "Gu?rda Volante adolescente'~ percebida. sobretudo.
181 Corr., VUI, p. 695, C. 4083, a ~mile Aucante, lO.<fe outubro de 1848,
durante a manifestólçí10 de 16 de abril: "Esta Guarda Volante tão inteligente e tão " . -

, '
bravajá está engauada e corrompida {... I. FreqUentemente se Perde o coraçãÓ'oo
tirar o uniforme- (Corr" VIIJ, p. 4)8),
176 Corr., VIll,
'
p. 634, C. 4049. a Edmond Plauchut, Nohant, 24 de setembro de 1848.,
C, 4011, a Charles I1>nc)'J 'citado nota 103.
177 Ibi,d., p. ,579,
182 ~bid., p. 711, C. 4098;. Ch'arles Poncy, 20 de novembro de t848.
1.83 Ibid., p, 717, C. 4101, a diversos jornais (entre os quais La Réform;), 10 de dezem-
bro de t848. '
. ,184 Ibid., p. 73 1,C. 4108, a Cha rles Ouverhet, 15 de dezembro de 1848 .
,
. I

t78 Ibid., p:5~. C. 3995, a Charlone Marliirii;Nohant, metade de.)ulho de 1848. 185 Ibid:) p, 757, C. 4126, a P.-}. Hetzel, ~ezen'1bro de 184~ . '
t79 lbid., p. 723. C. 4105~ a Pauline Viardot~Nohant, 8 de d~zembro de 1348. 186 Ele é publicado na ed ição Michel UVy de 1849 e retomado em Qllestions d'art et de
- , , I .
180 Ibid.) p. 638. C. 4050, a Maulni, 30 de setembro dê 1848. ... littémtllre, 1879:

..

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408 .'
409.
Pane 4
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I.

54nd:
Cilp(fll/O 17
ZlIIm 111/1/111..'" nll poUtiw
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, ,

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I I:

tro~a": ao tempo da Lettre d'un Voyagellr e do diálogo com ~verard. Ei-la, no- infância, cruzamento emblemático e reforçad'a por uma escolha pes~oal mag-
van;ente. na reserva da República. "Desde maio, coloquei-me na prisão de meu
retiro, que não é dura e cruel como a vossa, ma~ onde eu tive mais tristeza e
netizada por um vivo sentimento da injustiça. Esta República deve ser aquela
_ do sufrágio "universal': único meio de ~ar o' poder a9 povo, que, inicialmente, •••

abatimento do que vós", escreve ela a Bacbes, cativo ein Vincennes. L' 7

••
" i
ela sacrali za e santifica, ,Ela será social, pois a desigualdade de classes é gritan-
\
Sand publica ainda "três textos diretamente pol~ticos em que expressa te ,e o Estado deve remediá-Ia. Apegada à divisa'republicana , trinitária,191 Sand
.1
c1arame~te suas pos·iç6es em matéria social (prefácio a Victor Borie, Travai/- subordina, no entanto, a liberdade à· igualdade. Condena o individualismo
Jeurs et Propriétaires), sobre a eleição de Luis-Napoleão Bonaparte, contra a re-
pressão que começa. O projeto de construção de uma prisão política eui Nos-
si-Sé é o sinal pre~ursor d~s d~portações que se anunciam.lU
cujo antidoto está na ·solidariedade que ela prefer:e à fraternidade. Ela partici-
pa do "ódio do burguês" de que tantos democratas compartilham, ~endo nele ••
I •
Acabara a açã~ direta, breves ma s intensos parênteses na vida daquela
a personificação de uma classe egoísta, cega e· infiel a suas origens. 192 Entre as


••
escolas socialistas, porém, '$ and hesitou muito tempo. Dos saint-simonistas,
que foi un:a da s mulheres mais políticas de seu tempo. Ela continua intensa- ' ela conservou a crítica da propriedade e desfez-se do resto. Fourierista? ~am­
mente fiel a suas co nvicções. "Tenho apenas uma paixão, a idéia de igualdade pou'co: '(Vossa Democracia pacífica é friamente ra~oável e friamente utópica.
.

••
\
[... ]. Mas é um belo' sonho cuja realização eu não vere~. Quanto à minha idéia.., Tudo O que é frio me congela, o frio é meu inimigo pessoal."i9J Ela fala pouco
li eu dediquei-lhe minha vida; e sei ·bem que ela é. meu carrasco. I" .) I' de C1.bet, apreciará mai's Proudhon. Pierre LerolLX lhe 'd eu os argumentos e a •

,.,•
síntese que buscava; ele liberou seu desejo de utopia. Ela faz a sua "conversão"
nos anos 1840-1845 e seu entusiasmo pela Revolução de Fevereiro, que ela não
EXEMPLARIDADE
, vira chegar, vem tanto de seu pacifismo qua",to de suas capacidades de acaba-

Tal foi ,e sto itinerá;\o, em ~uitos aspe~tos e~emplarj


riência excepcional e par~doxal de um~ mulher neste domínio reservado que
era a política. Exemplar, Sa nd Vive no tempo de uma história aberta .pela Re-
volução Francesa, com o ritmo contrastante' das esperanças e das desilusões
dos republicanos, como eles, apoiada pela perspectiva de um movimento a se-
tal foi ;~ta-expe.- .
mento de 1789: a realização da cidadania política, o estabelecimento de uma
cidade soci<tlista. "O socialismo é o objetivo, a Rep'ública é o meio." E a refor-
ma da propriedade, o ioração. Sobre tudo isto, Sand tem intuições e posições
mais do quc uma doutrina. Ela não é uma teórica, sobretudo em matéria eco-
. ,
nômica. Mas suas i)1terrogações não deixam de,ser muito reveladoras das mu-
tações em curso. I I •
-
-. •
•••
guir e a terminar.'!O Ela ilustra a corrente republicana e socialista. Sua fé na Re-=- E: na prática e na observação cotidiana que Sand modifica seus princípios

I,' ,
t pública, ftlha da Revolu~ão, é fundamental e fundadora. Fé enraizada em· uma

i
lF çorr., VIII, p. 681, C. 4073, a Barbes, 1° de novembro de 1848.
, ' ,
políticos, amplamente herdados, não sem hesitação às vezes. Seu elogio juvenil
de· Robes.pien:~: o santo rep'ublical1o~ acompanha-se de Wl1a r~jeição crescente
do Terror e da guerra civil. Ela desaprova a violência, venha de onde vier: violên'-
cia da repr,essão do Estado, ma~ também violência popular de cuja eventual cc-
•;· ,

LaS' A deportação para recinto fortificado substituirá, pela lei de 8 de junho de 1850,'3

/
/ pena de morte, abolida em matéria política pelo artigo 5° da Constituição de 1848
que Sand saud(ua com alegria. Cf. V1MONT, Jean-Claude. La pr,ison poJj~ique. e.n ··
France. .Gene,se. d'ul! motlde. d'jllcarcératioTl spécifique, Paris: Anthropos. 1993. -
gueira ela também. tem.medo. As "massas" são sempre suscetiveis de se transfor-_
••
,\
- 189, Corr., p. 508, C. 3968, a Hortense Allart, t:J0hant, 12 de junhe 4e 1848.
190 ' FURET, François.lA Révolutiotl (L770 ..J880) "i Histoire. de. Fra11ce, Paris: Hachetlé",
1988. Sobre as idéias de Sand, numerosaslrefer~nciãs em VERMEYLEN, Pierre. Les
191 OZOUF. Mona.. Úberté, ~galit~, Fraternité. In: Le.s Licux de mémoire, Sous la direc-
tion de Pierre Nora.-Paris: Gall i ~nard, . 1992. t.1.II : Les France, v.lU..; p. 582 -630.
'192 François Furet sublinh ou a força deste "ódio do burguês" em Le Passé d'une ilIu!ion, '
•• •

idks poJitiqiú:s ct socialcs.dc GeorgeSatld. pruxelles: ~d itions de I>Universit~ libre de


Bruxelles, 1984. ' I
,, ,
Paris: Laffont: Calmann-Lév>:, 1994; cap, 1: La passion révolutio illlaire, p. 17-48. '
193 Corr., VI, p. 789, C. 3082, a t.douar~ de Pommery, janeiro de 1845.
••
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Cflp(,"I" 17
Sand: "n/f! "IIII/IU"II pol(tkfl

•• mar em turbas. Ela compartilha com muitos.de seus contemporâneos a aversão me aparece pouco a meus olhos. Vejo muÜas agitações, muitas luzes adquiridas,

••
pelo sangue. I" Poeta da Ilatureza, ela gosta muito pouco do ar da cidade. ~tre­ muitos instintos de luta, m as não percebo o progresso sensível e trancjUilizador
. tanto, aprecia ã urbanidade dos habitantes da cidade. Ela c,?nfia oos operários _da coisa suprema"o devotamento, sein o qual não se furá nada de durável,' do
das cidades muito mais do que nos camponeses politicamente atrasados e cujo sentimento públicO, o espÚ'ito de verdadeira fraternidade." '" O sufrágio univer-

•• convencimento ela tem como ;nissão. Sem grande sucesso no momento. Quan-.
do a deixamos, "passan:i-se poucos dias sem que os bêbados desta bela cidade (La
Châtre), passando diante de minha casa, gritem abaixo 05 conJuf1istas.. .'~'"
,sal é a.melh or e a pior das coisas, sem as Luzes. Mas as Luzes não se impõem,
Elas se definem como estas ondas - o magnetismo, a eletricidade, os
fluidos - cuja cir~ulação no mundo invis[vel é ap reendida pela ciência. O pa-

.' ."

••
Sand tem um sen,so muito vivo da necessidade. de fazer a opinião públj-
ca. A República é um aprendiza~o, privado - e sobre este ponto, a educação que)
ela dá a Maurice é significativa l96 - e público. SUa escrita política quer ser uma _
pedagogia. paí a forma de Cartas ou de diálogos: trata -se de se dirigir ao outro
para persuadi·lo, disq.ttir para convence.r. Ela esboçará, em 1851" um "tratado
de civilidade viril e republicana': infelizmente sem continuação. Sand é sensível
peI .dos escritores e dos artistas ~ de participar delas através de suas paJavras e
suaS"imagens. S~ nd 'ex:traj daI a sua certeza da utilidade da arte e..sU3 co ncep -
. ção de um romance "idealista'; na medida em' que ele. busca suscitar no leitor,
e~oções geradoras de sentim entos altruístas (o que, bem mai; tarde, a oporá
a,Flaubert). Ela procura desenhar figuras positivas que levarão o leitor a tomar
posição, a identificar-se.

•• ao poder de comunhão que emana .das festas e das manifestaç6es:-Ela descobre


o teatro, a .pa.rtir d~e então forma maior de sua a,tividade criadora e freqUente-
mente de sua contestaçãoj principal~11ente durante o Segundo Império. Entre- .
Sand pertence à corren te dos escritçres do século 19, fllhos das Lu zes e
ancestrais dos "intelectuais", para os q,uais a ação pública ~ uma urgên'cia. A
mbti~ção dest.a atitude: a obsessão contra a injustiça e a infelicidade, ~com~

•• t3l)tO, seu ideafé-'a convicção intima, forjada pela conversa, pela troca epistolar'
e pela leitura pessoal. O fracasso da Revolução, e mais tarde o resultado do ple-
biscito, a levarão' a refletir sobre)a importância ~o tempo nas ,mudanç~s polfti- .
paphada.'da co nvicção ,que se pode mudar alguma coisa e que a iÍltervenção é
um dever. '( Preocupo-me bastante em ser feliz, na verdade, escreve Sand em

•• caso "0 socialismo é ainda apenas uma tendência que:; se percebe no caos dos .
projetos, das idéias verdadeiras'e ~sas, boas ou ruins qll;e se agitam n os espíri-
1842 ,a Henriette qe La Bigottiê rej não é isto que me ocupa; procuro meu de~
ver ", a sab~r, a soluçã'o do "problema social",'" E ao ator republicano Pierre Bo-
cage:'''Se eu fosse egoísta, eu me sentiria m~ito feliz, mas co mo ainda não te-

•• tos !... J. Tenho sempre a maior fé no futuro da Democracia. t a 1.ei de Deus; a


recessidade da história, mas no momento, não vejo sua ação nos fatos, e o ger'-
nho o coração ressecado pela velhice, si nto freqUe~temente melancoHa"ao pen-
sar que a "'lIma e o bem-estar de minha casa e de '"!linha familia não dão nem

•• , .
194 Sobre esta questão d.a violencia, cf. trabalhos de Maurice Agulhon ("Le sang des
a paz, nem o co nforto, nem a liberdade a miJhões de"seres humanos que não
têm o necessário. ~ uma questão importante, saber' se temos'direito de ser (e-
~

•• betes'; Romantisme, 198 1/3 1), de 'A.lain Corbin (Lê Temps. le désir et I'ltorreur. Parisi.,-.
Aubier, 1992) e de CHAÚVAlJO. ~r~dtric. lA vioiel1ce apprivóisée au Xl.X! sik le.
,1\lrnhout: Brepols, 1991. .
Ijus em detriniento tios miseráveis".I" Vinte anos mais tarde: "Não queremos
dormir sem ter a consciência aliviada com este remorso público que torna in-

•• 195 Co,.,.:. IX, p. 16, C. 4137, a Cftarles Poncy, Noh~nt. 9 de janeiro d~ 1849.
196 Sand atribuía muita importância à educaçi'lo política de Maurice! como mostram
certa.s.cartas de 183>-1836. quando o ado leScente Maurice convive com príncipes;
.,
'suportável, par:a nós, a injUSti't3 sqcial '~'ZOO Este sentimento de pertencer âo "

1
••
197 Corr., IX. p. 705. C. 4606, a Emmanuel Acago, Nohant, 23 de setembro de 1849.
no entanto. ela n30 deve hesitar en\ dize; que ele t "republicano de raça ' e' de
198 Corr., V. p. 82~. C. 2540, a He.nriette de La Bigottihe. fim de dezembro de 1842.
i
, natureza, isto t, que já te ensinaram a desejar a igualdade". "Sê um velho Romano
de primeiro hora~ lhe diz ela. A "C. lOI J (6, de novembro de 1835) expOe a 199 lbid., p. 20. a Pierre Boc.1ge. 20 de julho de 1843.
importância da Re\'Qluçi'lo "de quetu ouvi~te fala~ tanto' ~ que deu um grande passo

•• para!l razão to a justiça': Pode~~~ compree~der a importância da transmissão oral e


200 Corr., XVU;-p. 583. C. 10108, a tdouard Rodrigues. Nohant, 17 de ab ril de 1863.
, Sand ilustra a teoria das flutua ções do engajamento que foi proposta por

.•
fun)iliar. Sand con tinuava a tra~iç~o . I HJRSÇHMAN,"Albert. B0111}eur privé, aCliol1 publique. Paris: Fayard, 1983.
, ."
.. '.
4 \-4 ,413 .


Parte"
Figurlls
Cop(rulo /7
S(,"I1: UI'''' l1Iulhu UII.poUt;(f<!
••
.,

"campo' dos injustos" (François Mauriac), esta obsess~o com 'a Il'liséria do
••
••
verte as fronteiras, usurpa os domtnios masculinos, confu.nde as pistas e assu-
mundo que uma Simone Weil experimentará até a sua morte, e que têm, pro- me identidades múltiplas.
' vaveLmente raizes,cristãs, são um dos motores do engajamento. No plano pessoal, ela aceita seu sexo: "Meu sexo. com o qual ille arran-
,
O engajamento de Sand - palavra que ela não usa nunca - é político,
num sentido amplo, Ela pensa colocar-se "a serviço" de uma "causa", a causa
do povo, segundo o. ·título de seu jornal. Engajamento constante em sua dire-
jo muito bem. em todas as re,lações". escreve ela. Sand parece aceitar, à primei-
ra vista, a partilha dos ter~itórios e brincar com o prazer de sua dualidade. Ela
se considera homem. quando escreve; recusando a mediocridade da literatura
••
ção, mas pontual em suas formas, ao sabor das circunstâncias e dos encontros, .
aindâ mais por não existirem partidos ou associações estáveis. As rdações in:
terpessoais, as amizades e as re~es têm um papel de primeiro plano neste en-
chamada de "feminina", não aceita o status de "mulher-autor", cujas relegações
ela já conhece; asswne completamente seu pseudônimo masc,ulino, pratican- ••
••
do uma lógica gramatical que a faz falar sempre de si mesma no masculino em .
-gajamento, Nohant não é somente um ..refúgio individual, mas uma Linha de seus
. escritos públicos, a ponto de somente poder ter acesso ao "eu" . feminino
retirada para os perseguidos, um elo na cadeia democrática, uma ligação entre em "1863, na C~t1fessioll d'une jeune fille. lOJ Ela se considera homem ainda em
Paris€: a província, a França e o exterior. A correspondência privada é um meio
.privilegiado de comunicação e de informação. Daí, a1iás~ o fatà de ela ser es-
treitamente vigiada, assim cqnlo Nohant, durante O Segundo Império. A mo-
sua s corridas eqüestres, suas Viagens livres e suas deambul ações urbanas, tra-,
vestindo-se com desenvoltura e at.é mesmo fumando. Mas ela se_considera mu-
lher quando ~ amante (assim nas cartas ardentes de desejo endereçadas a Mi-
••
dernidade política 'emerge lentamente de um modelo construído pela sociabi-
lidade das Luzes. Sob este ângul o, o, Segundo Império, fator de modernização
chel de Bourges. quando ele a deixa), l11àé e ainda rilais avó; quando ela se ocu-
pa de sua casa ~ faz geléias com"igual felicidade. ••
••
econÔmica, foi um freio, ao men os até 1860, quando retoma o m ovimento
"No- entanto. Sand experimenta fortemente as prisões do sexo. es"ta dife-
rumo à democracia. lO l Nohant. ~utante o Segundo 'Império, é uma Guerne~ey
rença que se traduz pela subordinação das mulheres aos homens. Suborrufla- .
interior. menos espetacular do que aquela de onde-Vítor Hugo lança seus ful-
ção dj qual o Código Civil é, na França, a expressão legal mais patriarcal pos-
gurantes anátemas, mas não menos eficaz e significativa em sua maturaçâo.
Um lugar testemunha, assim como Sand é uma escritora testemunha.
sível. Ela não deixou de protestar contra o poder infundado e tão freqüente-
mente injus'to do "sexo de barba", C0l110 ela diz. gracejando dos homens. Na ••
PARADOXOS
.vida privada, este "escândalo da liberdade" tão bem contado por Josep h
Barry,JO} foi o escândalo de escolhas livremente assumidas, contra tudo e todos.
Em sua obra literária, da qual a emancipação das mulheres é uma das domi-
••
. Aqui acaba a exernplaridade de Sand. Mulher na política. ela é, ao con-
trárip, ~cepci~nal e fr~qüentemente paradoxal. O 'parad.oxo de George San,C
nantes. ou .até me"srnQ uma ~onstante. e que foi para tantas mulheres francesa s
•••
I,

resi~e~ no ,éontraste entre a ousadia da ação pessoal e a timidez e até mesmo a


n~idade da re.ivindicaç~o coletiva referente à igualdade politica das mulheres.
202 Sobre a questão da idt:ntidade feminina em Sand, cf. Mire.illt: Bossis, prefácio à
reedição de Le dernier Itmour ( 1866). Paris: Des Fenllnes. 1991 ; Une
pOr ••'"

I•'
Sapd se comporta como um ,inruvfduo esquecido de seu sexo'e indiferente ao COrr'"t$pondance, teitos do colóquio de Nohant (1991), reunidos Nicole Mout,
l!ctitions Christian Pirot, 1994. capo IV: Le Troisieme Sext. p. 219-282, comuni-
,
gênero ao qual ,'ela pertence. Este paradoxo é inerente à situaçâo ambivalente cações de C. Planté, I!. Brar, M, Reid e N. Schor, apresentadas por M: Perrot;
que é a sua. às contradições às quais esta pioneira é confrontada. Ela. que sub- OZOUF, Mona. Us Mou dcs fenln/el. Euai sur la singularité française. P!,:ris: Fayard.
1995, "Aurore ou la générositr, p. 173-199. I


I'..
I 203 Joseph Barry, GeorgeSand ou le lcandaJede la liberré, traduzido do ingles americano
201 FURET, François.LA Révolutipfl (1770-1880) - Histo;re de France. Paris: Hac.hene, (1977). Paris: Seuil. 1982: uma das melhores biografias de S:md; BOUCHARDEAU.
)988.p.A50ets<q. " i - Huguette. Ge.orgc Sand, la hu~e et lel $(10015. Paris: Laffont. 1990.
I ,

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Pune 4 Cjlpítulo i7 , ~
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Figunu SIlmt IIntdlIIuill" tld po/(ritd

e européias uma mensagem e uma alavanca. Em textos mais diretamente po- to-me sac~~dote", ela diz, através de Mareie, sua intérprete, reivindicando as-
lêmicos) como as Lettres d Mareie (Cartas d Mareie») vibrante protesto contra sim as tr~ funções proibidas: as armas, a pahlvra e a prece, e mostrando-se re-
o casamento tal como ele é, contra a ausência do direito ao divórcio e as boba-o vold,da por ouv.ir seu interlocutor lhe responder: "Vós podeis s.e r s~mente ar-
gens da educação das meninas, o "grande crime dos homens contra elas". Es- tista, e ninguém vos impedirá disso", o que lança um a luz singular sobre a es-
tas Lettres pareceram tãO ousadas a Lame.nnajs. que aceitara a sua publicação tima atribufda a esta profissão. "Sou um poeta, isto éJ uma mulherzinha, escre-
- / ,
em seu jornal Le·Monde, que ele in terrompeu a publkação após seis números 've o viajante a f:verard, confirmando assim o julgamento comum .-~ duro ser
(fevereiro-m'a rço de 1837), ' uma mulher excepcional em um mundo de homens, o que Germa ine de Stael
E, QO entanto, os pontos de vista de George Sand, para 9 conjunto das sen tira bem.»7
mulheres, estão longe de ser. revolucionários. Talvez elas tenham se tornad o Por !sso~ tendo experimentadC? freqüentemente as dificuldades da femi-
Illajs . confo~·mis tas com o tempo: menos pela idade do que pelo peso co nser- , nilidade, Sand expressará, mais tarde, o desejo de abolir as fronteiras, sobretu-
vado r de . ~m Segundo lmpério vitoriano. Mas mesmo nos anos da rebelião ro- . - CIo em sua correspondência com Flaubert, tão rica a este respeito: "Há somen-
mântica, Sand insurge-se por diversas vezes contra as pretensões emancipado- te um sexo': escreve-lhe ela, em L867 (ela tem sessenta e três anos); "Um ho -
ras e a liberdade sexual pregada por certas mulheres saint-simonistas, como mem e uma mulher são tão a mesma coisa, que não se pode compreender as
Claire Démar; por exemplo. Ela critica a "duvidosa promiscuidade" preconiza- distinções e os raciodnios sutis de que as sociedades se alimentaram, sobre
da, freqüentemente para seu proveito próprio, por Enfantin e seus disdpulo$. esta questão~" uQue idéia tendes sobre as mulheres, vós que sois do Terceiro
"As mulheres gritam contra a escravidãoj que elas esperem que o homem seja ·Sexo?" interroga o Trovador," designando assim O caminho de invenção de
livre, p~is a escravidão'não pode dar a liberdade." San~ parece aderir à divisão uma nova identidade seXual, e~ ruptura com.as estritas defmições do século. lIO
sexual dos papéis e das tarefas que caracteriza a concepção das "esferas" públi- Mas antes de 1850, não se tinha ai nda chegado aí.
ca e privada; em uso na raci,onalização do século 19. "A mulher pod.e, em cer- . Esta identidade feminina, sofrida, assumida, reivindicada ou contestada
to mmnento, ocupar um papel social e poütico, mas nâ~ uma função que a pri- - as máscaras de Sand são múJt,iplas, ela as troca segundo-as épocas e as cir-
ve de sua função natural"jllH e ela zomba freqüentemente das mulheres que cunstâncias - influiu sobre sua prática politica? sinÍ. inegavelmente, e de diver-
querem desempenhar papéis chamados de masculinos, comportar-se como sas màneiras. Inicialmente, na s formas de expressão) ligadas aos constrangi-
homens. ·;t partir de 1837, ela aconselha as mulheres a "elevar sua inteligência ~entos cul~~ra:s ou políticos: Destin~da às iágrimas; uma mulher pode sem -
antes de esperar dobrar o circulo pre d.eplorar. Sand junta-se espontaneamente ao coro das carpideiras. Ela las-
, de ferro dos costumes [: .. ]. f: nossa corrup- H
ção que faz nossa escr~vidão': O q ue ela voltará a dizer, com firmeza , em 1848 . . ti~a as vítimas. Os acontecimentos dramáticos , arran~am- Ihe arroubos de
Salld dá, às vezes, mostras de uma certa misog ini.a com respeito a suas contem- compaixão, aind~ mais quando ela é afastada da cena pública: "Sinto uma es ...
porâneas, que ela julga pouco evoluídas. À maneira de -uma Mary WoUstone-
craft: ela deplora sua frivolidade. sua ignorância, conseqüência de sua má edu- 206 I..ettres d'un voyageur, Carta VI, a tverard, em CEllVres autobiographiques. trlition q.
cação, questão prioritária, a seus olhos.~ Na verdade, a própria Sand pensa-se Lubin. Paris: Gallimard, 1971. U, p. 805.
'como uma c;xceção. Ela quer tudo: "Sinto-me guerreiro, sinto-me orador, sin-. . "
207 Mona Ozóuf, Les MoU defemme.s]. uGermaine ou l'inquit!tude': p. 111-143.
_208 Corr., XX, p. 297, a Gustave Flaubert, 15 de janeiro de 1867.
" . ~ , . . 209 Correspo"dat"e Flaubt:t-Sand. ed ition A.lacobs. Paris: Flammarion, 1981, Flau~rt
204 Histoire de ma vie. Sous la directio'n de~eo(ges Lubin. In: CEuvres autobiografiques. a Sand, 19 de setembro de 1968.
Paris: PI~Jade: Gallimard,1970.1, p. 1 ~7 ..
210 Sobre estes problemas na história das mulberes, cf. PERROT, M. Identit~, ~alit~,
205 VERMEYLEN, Pierre. Lesidées poljtjq~es t:r sociales de George Sat,d. Brux.elles: tdi-
• difft!rence. Le regard de I'Histoire. CoUoque du Sénat, mars 1995. In: La pince des
- tionS'-de l'Universitt! libre de Bruxelles I 1984. p. 97- 117.
. ! ' femmes. Paris: La Découverte, 1995. p. 39-57.

416 417
-',
Parte 4 Cllp/fIIlo J7
'f jglmu Slllll' : 1/11111 1II11I11I:r nll po/(rica

pécie de dor em minhas entranhas quando o sangue jorra", escreverá ela em dade, um papel modesto. "Eu estou em um pequeno círculo de coisas'~ dizia o
1871, quando será apenas urna espectadora da Semana Sangrenta. UI Ao mes- viajante. Jl4 Sand dá .a impressão de se acomodar a esta situação. Por um lado,
mo tempo, ela intervém, busca, faz petições, intercede, tenta obter au.x1li?s ou porque ela duvida de suas capacidades: "Eu não sou uma inteligência política,

;
graças ..Esta função, mediadora, essencial após o golpe de Estado, irritará mui- embora tenha sentimentos e um certo sentido das idéias sociais .e filosóficas>:
tas vezes seus amigos e se revelárá moderadamente eficaz. Mas este retorno a confidencia ela, em 1843, a Mazzini,lI5 de todos os seus admi.radores, o f!1ais
um.papel feminino tradicional, não é o que domina, antes de 1850. .respeitoso de sua intervenção, o mais ardente também a incentivá~la. A espe-


.
Falar não é fácil. Sánd freqüentemente cita suas dificuldades a este res- cificidade da ação política a relerá co.m freqüência.
peito. Ela interiorizou a pro~bição que pesa sobre a.palavra pública das mulhe- .
res: "1:: como um a timidez natur~ [... ] é como uma vergonha que nos faz ter
medo de dizer em voz alta- o que sentimos mais vivamente; é uma impossibi-
. Por outro lado, esta situação fronteiriça oferece possibilidades de afasta-
mento e de retiro que ela usa muitas vezes, até na materialidade da partida.
:
:
Quando algo,se passa, ela salta na diUgência, ma!s tarde, no trem, cujos méritos
Lidade absoluta de nos manifestar por mdo de palavras, lá onpe gostaríamos e ela elogia, adepta resoluta d., invenção da velocidade e da rapidez ferroviária. ll '
deveríamos.saber"l escreve ao tribuno ~verard o viajante-Sand. m Ela se dedica Quando Paris a can~a ou a desgosta, ela parte para Nohant, seu porto de salva-
então à escrita, alta funcionária nos esCritos da República. . ção. "Inspirado ra e não iristjgadora, a mulher encontra a política em instaqtes
Y

Até mesmo devido à legislação; a escolha dos meios é necessariamente fugidios, excepcionais': escreve Geneviêve Fraisse ll7 que analisa. justamente a

!
indireta. As mulheres têm apenas o direito de petição (e Sand recomenda-Ifles respe,i to de Sand, a relação sem pré distanciada das instituições, distância desig-
se u uso) . Elas não têm nem o direito de reunião, nem de assocÍaçãb ou de ma- nada, mas freqüe':ltemente ratificada com<] uma sorte e urna força. lugar das q
nifestação (os horílens tamp0':lc~, ma,s estas práticas eram toleradas). Ainda mulheres não seria em qualquer o utro lugar diferente da política, esta intriga
menos o direito de voto. Sand,
, ainda que interessada vivame.nte pelas eleições;,. sem moral? Não seria justamente nos costum es, na vida comum e profunda?
fazendo ca mpanha para um ou outro candidato, co mentando os resultados,
festejando os sucessos democráticos, não pode to mar parte deles diretamen~e.
Por vezes ela lastima este obstáculo, em outras. ela se regozija de sua existên-
Esta atitude crítica, tão feminina, chave de uma certa indiferença das mulheres
em matéria políticã,.é também, às vezes, a atitude de Sand, ao menos quando
da sente desilu~o e desencanto. "A política propriamente dita, eu a detesto", es-
:
;
cia, pois a política é o que é: mediôcre. A Charles Delavau, opositor de La C hã- creve eJa a Hortense Allart;ZII e a Edmond Plauchut:. "Confesso-que dt!testo o
:\ Ire, que lhe es';'eve para se desculpar dos clamores de que ela é vitima local- que se chama hoje d~ política, isto é, esta arte desastrada, pouco sincera e sem-
mente, ela justifica sua recusa de' envolver-se "em intrigas e manobras eleito- pre frustrada, pela fatalidade ou pela providência, em seus cálculos para colo-
rais. t o que nunca eu fiz, o que não farei jamaisJJ• Acresc'entando l de resto l que car no lugar da lógica e da verdade, previsões l recursos, tran~ações. A razão de
os hom/!ns fariam bem de faZer o mesmo.m· ' r
Estado d;s monarquias, em ull13 palavra".U9Quando a política deixa de ser um
- fes.ignada, por seu sexo, a uma posição de observadora de. aU(ciliar, na
I

melh ~r das 'hipÓteses, de inspiradora, na verdade, de escriba , a "egéria" da Re- . 2 14 Lenresd'un voyageur.. op.cit., p. 786.
púb~ta - como dizem seus detratores, repetindo o sempiterno clichê que con- 215 Corr., VI, p. 34, a Mâzzini, 10 de novembro de 1843.
fere às ·mulheres o poder oculto das sombras e dos bastidores - tem , na reali· 216 STUDENY, Christophe. L'invention de la vittsu. Frattct, XVIIF-xx.e siec1e. Paris:
Gallimanj, 1995.
217 FRAISSE, G~neviev~. George Sand e Louise Michel. Les héroInes symboliques? In:
2 11 COrT., xxn, C. 15480.8 de junho de 187!. La misor! dtsfemmes. Paris: Plon,1992 . p. 167- 190.
2J2 LeNres ~'Ur! voXagellr. Carta VI, ~ ~ver.lrd, o~. cit., p, '805. 218 Corr .• VIII, p. 507. Ç . 3968. a hortense Allart, Nohant, 12 d~ junhp de 1848.
213 Co"..-, VIH, p. 451, C. 3933. a Charles Delava)J, Paris. 13 de maio de 1848. 219 Ibid.• p. 655. C. 4060. a Edmond Plauchut. Nohant. 14 de outubro d~ 1848.
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• combate pelo socialismo - outro nom e para a justiça sociar- qu~ndo el~ é 50-, ap'o.iando-se.ao mesmo tempo no argumento da justiça e no da utilidade so-


mente expedientes, quando se reduz a eha polftica propriamente dita que Sand cial: as mulheres poderiam tràzer a este "grande lar" que é o Estado, suas Com-
" "
,
sublinha em suas cartas, então é preferível .fazer outra coisa. Em 1848, ela esere- perênçias ·de donas-de-casa. Elas decidiram aproveitar as eleições de abril de

i
ve a Jéróme-Pierre Gilland, um dos poetas operár.ios cujo esforço ela tanto
1848 para a Assembléia Na.cional para fazer uma campanh a de protesto. A can-
apoiou: "Vós sabeis que não tenhb paixões poIlticas no sentido estrito do ter~o'
didata que se impunha a seus olhos era Sand, mulher emancipada, republica-
•[.. ·1· O que me afet~,ríão é então o mundo politico propriamente dito, é omlm- na, socialis't~, célebre entre tQdas: "Ser máscula pela virilidade, mulher pela in':'
do moral, terrivelmente doente e perdido. 0 ,5 homens (:stão sem coragem", Por
tenção divina [".1. Ela fez·se homem pelo espírito~ ela continuou mulh'er pelo
isso, ela retorna ao romance, que permite falar ao coração e, por meio das erno-
rado .maternal", escrevia Eugénie Nib6yet. ill Mas elas lançaram esta candidatu-
ções, de"s pertar as consciências. "Caso se tratasse de esqever uma"doutrina, eu ra sem falar com a interessada. Grave erro: Sand, consciente de sel,l "capita"! .
. teria sido mais prud~nte e meros vaga em minhas aprec.iaçôes. Mas então eu
simbólico", não era tão manipulável.~ Além do maIS, ela ·não era favorável ao '
não teria si,d o Ullla mulher e não teria feito nada além de romances."~ A Maz-
. ~ : .. voto das 'mulheres na situação atuaL Ela deu a saber a sua opinião, secame~te.
uni, que lamenta não vê-la· no exílio, "protestando no centro .da tempestade':
O conflito opunha personalidades, mas também lógicas que colocavam
ela responderá defendendo o dir~ito à literatura: "Um verdacleiro artista é tão \.

i útil quanto o padre ou O guerreiro ~ ... J: A arte é de todos os países e de todos oS"
~ lugare~'~llI A àrte das mulheres cont~a a poUtica1dos h~mens: es te.já era o dile-
ma do viajante de 1835, Mas o meJ?estrel de outrora tornou-se um grande es-
. d~ concep~ões
em jogo diferenças . da cidadania. Sand explicou-se e'm. diversos
lugares sobre a sua posição. notadamente em Le Bulletia de la Réptlblique n: 12
(6 de abril de 1848) e sobretudo em uma Lettre aux memb,-es du Con;~té cen:
traI (Carta aos membros do Comitê Central), na verdade , não publicada na épo-
"I
j

i
critor, c~)flsciente de seu valor e do poder da escrita.
ca, nem mc::smo enviada ao que parece. Conseqüentemente as mulheres con-
Esta posição de relativa exterioridade permite compreender melhor o
cernidas não tiveram conhecimento e o debate infelizmente não aconteceu,
conflito de Sand com as mulheres de 1848, cujo combate foi re.traçad~ pôr Mi-
chele Riot-Sa:rcey.ln Ao dar unicamente aos homens o dir~ito de voto, a Repú- Os argumentos de Sand sã~ de diferentes ordens. Inicialmente, co'mo a
blica de 1848 aumentara a marginalidade das mulheres e· rompera os laços que maioria dos· socialista; dos quais ela não se ~epaia,. a respeito deste ponto, ela
os socialistas se cOlllpraziam em cria r entre mulheres e proletários. Ao decla- .' , dá ~rioridade ao social. ":I;: agora ou nunca que as mulheres instruídas) que têm
rar este sufrágio ,"universal': ela havia agravado a suspeita de uma definição se-' pretensão ao título de bons cidadãos) devem 'esquecer suas personalidades: e se
x.uada - e masc~li.na - do universo. Houve então uma onda de.feminismo ati,,- " elas querem provar seus m éritos, el~s devem fazer a abnegação' de si mesmas
vo, arde~'te, igualitário, Mulheres como Eugénie Niboyet, Désitée Véret, J~~lfl­ para ·ocupar-se apenas' das pobres mulheres e meninas.do povo."...Á reivindica-
ne Deroin e algumas outrãs sa int-si"?<;>nistas oú fourieristas em sua t1laiori~L ção,do direito de sufrágio tem ((um caráter aristocráti"o': (~d~itindo que a 50-
haviám fqndado jornais - L'Opinion des femmes, La Vóix dei femmes - lança- ~iedade tivesse ganhado muito com a admissão de algumas cap acidades do
r~ni pétfções, organizaram manifestações e abriram ·club'es, apupadas pelos sexo na adm~nistra. ção dôs assuntos públicos, a massa das mulherés pobres e
m~~s gozadores, caricaturadas por Daumier, Gavarni e Le C"a~jvari. Estas mu- privadas de educação não teria ganho n ada, A sociedade que vai se reconstruir
J . \
l~hes reivindicavam o direito ao trabalho e ao sufrágio e~-:n textos notáveis, .~ será profundamente tocada pelas petições simples e pungentes que se ·formu-
larão em nome do sexo como um todO."124 A miséria, a 'ignorância; a subordi-

.'
220 Corr.; VIn, p. 685, C. 3999, a J,-P. GiIland, Nohant, 22 de julho de 1848.
22Í Corr., XII, p. 201 ;-203,<:. 6113," Mazzini, Nohant, 1-5 de dezembro de 1853. 223 La Voix des fen",'-es. 6 avril 1848; cf. a seguir;·o conjunto de textos relativos a esta
222 RIOT-SAR'CEY, Michele. la démocratie~: l'épre~.ve des fetumes. Paris: Albin Michel,
, questão. '
i 224 Bullet"in dê la République. n. 12.

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"1·994. . . ".'
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420 -,
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.. 421
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Pane" Coplrulo 17
Fig •• ral Sa nd: ,,!Ul/IU na po/(tita
111110

~ação da "massa das mu'lheres", eis o que faz a identidade do "sexo como um .' Ihe ·retira f•.:]. Sim a igualdade civil. a igualdade no casamento, a igualdade
. todo". As mulheres educadas não devem s'eparar seu destino daquele. das mais na familia, eis 9 que vós podeis,'o que vós deveis pedir, reivindicar",U5 Se a
. ' I .
qesfavoz:ecidas. Sua cidadanja é dã ordem do social, não do político. .solteira - a "moça '!laior" - é civilmente igual, a mulher casada tem um es-
~Segundo argu!,"ento: 'as n:m lheres têm mais a fazer do que se ocupar tatuto de' minoridade. É inicialmente o Código Civil. código iníquo, que ~
com a política. A palavra púb1ica não' lhes assenta muito bem, Que elãs exer- preciso revogar.
çam. então. seu; ta1enfó~'de persua~ão no âmbito doméstico. "Mães-desafor- A lógica de Sand é próxima daquela que RosanvaUon "descreve como
tu nadas que'vistes vossos filhos, pálidos e sombrios, tarde da noite, cair em a lógica que es~á em funcionamento no sistema francês-'de democracia'indi-
vossos braços -com o treinor convulsivo do horror e do espanto! falai a vos- vidualjsta que ele opõe ao sistema anglo-saxão de, democracia comunitaris-
so esposos, a vossos irmãos, a v?ss.os filhos. ! um grande trabalho a prega- as
ta. Nes te último, é devido a se u sexo que as inglesas - ou americanas - são
ção da libe(tação séria e m'oralizador? da mulher. Ela vos concerne e não são admitidas para ,votar: sendo mulheres, elas representarão as muiheres. Na
necessárias bocas eloqüentes que s'e' tornem vossas intérpretes. Vós sereis, França, o próprio ~ênero constitui o principal obstáculo para a sua ascen-
todas, gra"ndes' or~do;as no espaço doméstico," Em suma, Sand não qu~stio.:. são à cidadania, pois esta particq.latidade as impede de chegar ao es~atuto .
na fundamentalm~nte a teoria das ê~fera'~ ~ continua apegada à divi~~o dos ple'no de indivíduo, substrato do cidadã'9' A dific~ldade que as mulhe~es
papéis e das tarefas decorrente dela: A. maternidade continua a< ser o centro .' francesas experi;;;entaram para fazer-se reconhecer como indivíduos seri~ a
da feminilidade. cttave (ou uma das chaves) da famosa ,cexcepcionalidade francesa": este sin-
Terceiro argumento, o mais' insistente e até mesmo o mais incisivo: o gular atraso da França, terra dos Direitos do Homem e da República, e no
argumento da necessária prioridade.'d a .o btenção dos direitos civis. Privad~s entanto último país europeu 1;1 conceder o direito de vo to às mulheres ,(21
I,
des tes direitos, as mulheres são atualmente escravas. Elas não pode~ se! ci- de abril .de 1944).''' . , ,
dadãs porque não são indivíduos autônomos. Adquirir esta aptonomia é O conflito que opõe Sand às militantes de 1848 tem, então, um alcance
uma eta pa primeira que deve requerer toda a sua energia. "As !.11u1heres de- muito mais ger-al. Ele confronta duas lógicas: uma mais comimitarista (a lógi-
vem participar.. um di<\. da vida política? Sim, um dia, acredito, assim como - ca·das femi~istas), a o.utra mais universalista (a lógica de Sa~d) e .~onseqüen­
. vós; mas este dia está próximo?
. . .
Acredüo que não, e pa~a que a condi'. ~ .
ção das
..
; temente, duas concepções da iden tidade das mulheres:
mulheres seja"assim transformac:!a, .é preciso que a sociedade seja transfor- Esta oposição provém claramente de um intercâmbio que, na. mesma
mada radicahnente;""E~tan.do sob a tutela.e na dependência do homem, pelo ..:... é p oca~ Sand mantém com Eliza Àshurst e que ela relata, a Mazzini: "O 'homem
casamento", as mulheres !lão poderiam preen.cher "honrosa e lealmente um :. e a m,.;lher ~ão tudo para ela, e a questão do sexo-[... ] ~~aga, para ela. a noção
mandato político" ,que supõe a autonomia de co'epo e de espíf~to, de julga-. 'de ser humano, queé sempre o mesmo ser e que não deverja se aperfeiçoar
_mento' e,de decisão, "Quanto a vós, ~ulheres qu/ pretende'is iniciar C0m ' o , . -~ -

nea') como homem nem comO mulher, mas sim como alma, como filho de
exerddo dos direitos políticos, permiti que e:l vos diga' ainda que vós vos' di-
, , Deus'!.2.17 Eis dua~ conêepçoes diametralmente opostas, da diferença ;~tre os se~
vertis com, uma criancice ['''}'. 'Que capricho bizarro vos leva ~s lutas parla-
m.entares, vós que ~ão P9deis 'nem me~mo trazer o exerdcio de vossa inde- "
pendência pessoal?. Vosso marido estárá
. .
sentado neste banco, vosso amante,
talvez, no outro, e vós pretendeis represent~ .alguma coisa, quando não .sois
225 "Lettre aux membres du Comité central", a seguir. •
:.226 ROSANVALLON, Pierre. Le Sacre du citoyen. !iistoire dll suffrage U1liverscl en
·Frallce. Paris~ Gallimard, 1991; FRAJSSE. Ge nevieve, Mllse de la Raison. Ln démo-
somente a .represen~tação de vós mesm~sr" fl}quanto.a mulher não for liv~~, cratie exclusi;ê et la différence deJ se.xes. Marseille: Ni'néa, 1989; reedjção Paris:
ela terá todos os vícios do escrav<? todas a, incapacidades do oprimido. Sua Gall imard, 1995.
libertação passla pel,a
.
obtenção dos direito~ civis "que, pc;>r si só, o cas!lmento ,
. ' .
227 Corr., VIII. p7640, C. 4050, a Mazzini, 'Nohant, 30 de outubro de 1848.
<

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.,
I, , 423
422
)'
P~rtc .f
Fitut'JU (

xos: Eliza a vê como uma questão central chegando até a côlocá-Ia como es-
sencial; George a nega, recusando, ao mesmo "tempo, questionar a noção de Parte 5
\,
homem universal, no momento em que sua participação na política lhe de-
monstra, todavia, a ilusão pe.sta concepção.
.-
../
Como Olympe d~ Gouges, como tantas outras que questionam aS fron-
teiras do ~exo e interrógam-se sobre os padrões' da feminilidad~, Sarid tinha ~

apenas paradoxos para oferecer,ua , DEBATES


Sua experiência, tão rica, mostra a que ponto a cidadania política se
constituíra no século L9 como o cristal da virilidade.

) . '

! j ~ .'

"
,
,
228 . scarr, Ioan. Olympe de Gauges: une femme qui n'a que des paradoxes à offrir. In: .
JO'sT, H. V.; PAV1LLON. M.; VALLOTON, F. LA Politiqur: des Droits. Citoytnneté c.t
constructlon ~~ genres allJeXJXC et XX' silcles: Paris: Kimé, 1994; La Citoye""e para-
doxale. Lesfémitlistes françaises et Ics droi~ de I'Itolllme. Paris: Albin Michel, 1998 '
(tradução da ingl~ americano, 1996). I ,

424
.. "
~.
I
I

//

A hist6ri~ "das mu!heres" coloca numerosas questões. a começar por seu


título, constituindo as,mulheres em objeto. Seria ela legítima? Estaríamos fazen-
do uma história dos homens? As mulheres têm uma história? .Esta história é pos-
sível? A irrupção das-imagens permite fazer algo -diferente de uma história das
representaçõ.es e âas percepções? As práticas, O sujeito "mulher" são atingíveis?
Como um sexo existe apenas em sua dualidade e sua diferença em relação ao ou-
tro, pode-se fazer algo além da história da diferença entre os sexos? E como ex-
plicar que esta diferença. por parecer inevitável e da ordem de uma evidêpcia
,
universal, seja tão .pouco levada em conta, nãQ'pelo pensamento filosófico que a
questioQíl há muito tempo. mas pela pesquisá filosófica contemporânea?' .
Estas questões, e muitas outras ainda, balizam o encaminhamento da
1- História. A Histoire des femmes erz Oecidem (História das mulheres 110 Ociden-
I , te) ( 1991- 1992), por constituir um a cris talização relativamente espetacular
i ;. .,
(3.000 páginas, 5 volumes, 72 autores) do traballio realizado, devido. também
a seus limites, a suas imperfeições e sua inacababilidade, talvez mesmo devido
/
l I
I
à sua existência um tanto provocante, levantara objeções e controvérsias, mais
rudes, aliás nos Estados Unidos, onde Lawrence Stone, eminente historiador.

Regorijamo-nos ao ver filósofos, como Gentviene Fraisse ou Alice Pechriggl tomar


como objeto de suas teses a diferença entre os se~s, att então pouco abordada, 30
\
menos no campo açadl!mico. Da última, citemos Corps tramfigurés. Straríficarions
de I'imaginaire des stxes/gellres. These EHESS, 1998. preparada sob a orientaç3o de
, Cornelius Castoriadis.

"
"
427
, ,
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i'fJrrc S
CXbata "'m'
DdxutI
[

: estigmatizou "The use and abuse af her story':l do que na França, onde a ind i..
ferença polida é ~m 'meio usual de marcar distância. O silêncio, sempre ... Nós
vez co ntri b'uido para um a definição inevitável, mas necessa riam ente arbitrá-
ria, para a cristalização de urna fr~nteira mais imaginária do que real ,~, aliás,

,•:1
tentáramos suscitaJ:a discussão através de um colóqujo na Sorbonn~, em 1992,
do qual Le Monde des débats tornou-'" o eco e cujos anais foram public.1dos e
, -
parcialmente retornados.pelas Atlnales.'
Desde entãó, trabalhos e publicações de todos 05 tipos se ~1Ultiplica~
um dos meus arrependimentos quanto a esta HiStoire. Ni nguém duvi~a que o
de~envolvimento da histó ria das mulheres nos outros países. atualmente em
pleno flor~scimento, nos levará a revisões, ampliará o ho rizo nte e mudará.as

• ram o Ab undante, o objeto "mulh er" é t~mbém um t3nt9" fragmentado .. Sua


perspectivas. O mundo é nosso futuro.
Os textos que se seguem são percor~idos por estes questionamentos,

i:
problematização coJltinua a se~ hesitante. A perspectiva do "gênero", sempre abordados mais diretamente alhures. Eu os situarei brevemente. Inicialmente a
. co ntrovertida, difundiu-se, 'DO, entanto, como mostra F~ançoise Thébaud na guerra: ela muda, mudou, em suas experiências singulares, as relações entre os
mais recente das sínteses. historiográficas.~ Além de monografi<!s um tanto fe- sexos? Para alguns, eJa constitui uma ruptura propícia à irrupção das mulheres
chadas, in ~eressamo·nos por formas mais tran sversais de relações entre os se- ~. ,- em lugares até então proibidos; para outros, ela opera, ao contrário, uma rei te-
xos: amor/ .violência,' desejo, sedução, galan taria, misogi nia, antifeminismo,' ração da ordem dos sexos, homens no [ront, mulheres na retaguarda, substi-

r•
sexualidade, aipda que muito mais timidamente, sobretudo no que se refere ao tuindo-ós da m aneira mais tradicional p-ossfvel. O colóquio de Harvard ( 1984),
homossexualismo feminino, muito pouco estudado.' Criação, política, co rpo, do qual o meu artigo faz o relato, concluía neste sentido, bem como Françoise
imagens: eis as frentes pioneir~s. As confrontações com outras· culturas, po'r Thébaud, na atualização' que fez para a· Histoire des fe mmes.' A <!cultura de guer-
exemplo dur~te num erosas tradu ções o u apresentações no exteri or, de His- ' ra" beneficiou-se da renovação dos estudos-sobre a Primeira Guerra Mundial
toire des femmes en Occident, são ricas em ensinamentos e nos refletem a nos- que, sublinham, sem exceção, a violência de que é alvo o corpo das mulheres,

•-, sa própria imagem. Não ter levado suficientemente em co nta a prese nça, atra-
vés das mulheres e para elas, de outras culturas no coração do Ocidente, ter tal-
assimilado ao solo inimigo. LOComo Catherine Marand-Fouquet, tenho tendên-
cia a pensa r que "é na paz que se constroem os questionamentos dos modelos
s~cul~res".1I Mas este não seria um estereótipo? 'E m suma, o debate continua.
2 STONE, Lawrenct. The USt and abuse of her story. The New Republic, 'p. 31-37, 2
mai 1994. O artigo Itva. o subtftulo de ~ leam of scholars combi ne to get it wrong':
t E o que houve com o "droit de cui~sage" (direito à primeira noi te), tema:
do livro de M,\rie-Victoire Louis, que trata, sob este titulo, das' diversas formas
3 DUBY, Georges; PERROT, M. (Di ... ). Femmes et Histoire. Paris: Plon, 1993 . O arti-
de assédio sexual de qu e as mulheres puderam, ser vítimas, p'ripcip~lm ente no
. go de Arlette. Farge e Michelle Ptrrrot, publicado em Le Monde des Débats, n. 2, no_v.:...,._
trabãlho? Alain ·Boureau, no.. epílogo de s~u própr io livro, Le Droit de cuissage. La
1992 "é retomado ::lH, p. 67-73. , -
4 THe.BAUD, Françoise. Ecrire l'histoirc des felll1Ucs. Préface de Ala in Corbin . ENS fabricario" d'UfI myt"e (O Direito à primeira. noite. A.[abricaçào de um mjto)r~J
e.ditions Fonte nay/Saint Cloud; 1998.

li-, 5 MQNTREYNAUD, Florence. Aimer. Un siede de liens a/lloureux. Préface de Y\'es


'Si~on. Paris: e.ditions du Ch~ne, 1997. 9 ' Histoire. des femmes e11 Oceide.nt. Sous la direciion,de G. Duby et' M. PerTOt. Paris:

I I/ -
6 DAUPHIN, Ctcile j FARGE. Arlette (Di r.). De la violence des femmes. Paris: Albin , ,\ Plon, 1991-1992. t. 'S: Le XX.e sitc1e. So,us la .direction de Franço~ Th~bau.d.
Grande G u erre~ l e triomphe de la division sexuelle~ p. 3 1-74.
:'La
,
li\-
I MichrJ, 1997.
'.
.
7 .Sobre este tema do'antifemin ismo, co lt~nia a ser publicada co m a organização de I 10 AUDOIN-ROUZEAU, Stéphane. L'enfant de l'ennemi. Viol, 'avortemetlt, infallticide
pendant la Grande Gllerre (1914-1918) . Paris: Aubier. 1995; BECKER, Annette.
I,- Christine Bard, Fayard, 1999.
8 Poucos livros na França, al~m de BONNES. Marie-Jo. w relaJions amoureuses entre '
Ollbliés de la Graflde Gllerrt. Popularions occupées. déporth civils, prisomliers de
guerre. Hu",imitaire tI culture'de guerre. Paris: Noesis, t 998.
I-, It.$femmes du XVIt au )()(t siule. Paris: <pdile Jacob, 1995 (edição aumentada com t

:.., U" c110ix sans équillOque, la edição, 1 981~, e da tese a ser publicada por te $tuj), de 11 MARAND-FOUQlTET, Catherine (Dir.),. Guerres Civiles. Clio,. p. 1"9,5/1997. I
xxe s;ecle.
Elorence Tamagne sobre a história dos ijomossexualismos (fra nça, Grã-Bretanha,
Alemanha}, ·I900-1930. ' I I ._"
12 BOUREAU, Ala in . Le droit de cuissnge. La fabricatidn d'un 11Iytlle, XlI~ -
Paris: Albin Michel, 1995. (COU. Evolutio n de l 'tluman.i lé~ I
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,Parte 5 P,ut( S
Dúvatt$ Deblltu

brilhante ensaio de hlstpria cultural, vê, nas afirmações de Marie-Victoi re Louis E O que acontece com as imagens, com sua capacidade de .r epresentação
e na minha apresentação, _a marca de uma crença persistente e infundada na e de sua percepção? N.a Hist6ria das mulheres 110 Ocidente, seu lugar havia sido
existência de um direito do senh~r que nunca existiu. o'e fato, não há nem som- reduzido por razões econômicas. Nós havíamos contornado a dificuldade se-
bra de uma prova jurídica da,realidade de tal direito. Sua demonstração é con'. lecionando mais rigorosamente as imagens, reunidas em um caderno central
vincente. Busca de verdade, a história das mulheres não poderia abrir os flancos - ao menos na edição italiana - e escolhidas em função de seu valor represen-
para as mitologias d;dominação. Então,fit.11 de ato. Todavia, não se pode aderir tativo no imaginário de uma época.
a este julg~rpento: ''A crçnça na existência possível do droit de cuissage (direito à Georges D uby desejara prolongar esta reflexão em um volume distinto
primeira noite) ~upõe. para O historiador, o qu~ me parece um erro maior: o des- que tomasse o problema por inteiro. Sua introdução para Images de femmes
prezo pelos seres humanos que, ele observa. A noção de direito da primeira..n<?i- constitui um discurso do método sobre o uso da imagem pelo hi storiador,
te parece implicar na noção de consentill)ento por parte da vftima'~ Evidente- mais habituado a manejar textos. Contextualizar ~ imagem, reconstituir suas
mente que não. Da mesma forma que o longo silêncio das mulheres sobre , as
condições materiais de produção, interroga r-se sobre sua função, sobre <l série
bruta)jdades e as violações de _q ue· elas foraro obje~o não pode .ser interpretàdo
icpnográfica l~a qual ela se insere para co mpreender sua significação de con-
em termos de consentimento p·el~s· testemunhas e pelos historiadores de hoj r-'
Encontramo-nos, mais uma vez. remetidos à significaçno do silênciõ e às suas in-
I' junto: tais são alguma,s de suas recomendações. No caso, ele insistia sob re o ~
que era para ele 'uma obsessão: a força da iniciativa masculina que constrangia
terpretações como espelho. Georges Vigarello acaba de mostrar, pelo estudo de
as mulheres ~ serem apenas as espectadoras, com maior ou menor grau d~
processos por estupro (séculos 16,20), como o consentimento das mulheres é
consentim ento. "As mulhçres não representavam 'a si mesmas. Elas eram repre-
sempre pressuposto pelos juí~s, o que, por m~uito tempo, impediu que se pude~-
se prest;~ queixas.u ' ,
sen tadas ( ... ). Ainda hoje, é um
, olhar de homem que se coloca s<ihre a mulher"
e se esforça para repuzi-Ia ou seduzi-Ia. Em Les Mysteres du Gynécée;n magní-
Podemos, por outro lado, nos interrogar sobre a significação e os efe.itos
de tal cren ça - o droit de cuissage (direito à primeira noite) - no imaginário so- fica análise do afresco da Vila dos Mistérios em Pompéia, Paul Veyne não é
cial. Esta "fábula" não teria contribuído para banalizar o assédio sexual e o es- mais otimista: "Em suma, o olhar não é simples e a imagem dá mulher o é ain-.
tupro, que um costum e, supostamente real, tornava lícitos e até mes.m o presti- I da menos", escreve ele. Ao passo que Françoise Frontisi-Ducroux.. ao termo de
giosos. na concepção de uma honra viril que tanto influencia o modelo aristo- um cativante estudo .sobre o "sexo do oLhar'~ conclui pela quase impossibiÍida-
.
crático? Porque a.apropriação'VÍolenta do corpo das muUleres, que faz parte das.. de de atingir o olhar das mulheres, "construção do imaginário dos machos",
realidades, revestiu-se desta imagem? A~similando o capitalismo e o patronato Ao menos pode-se fazer o inventário das representações da feminilida-
a um "novo feudalismo;: o movimento operário' atribuía a eles os atmsos. 14 Em de, o que Images de femmes consegue, com um ~ equ,Ípe com posta por parte das
todos· os ~asos, O corpo das mulheres é vi~to como' wn feudo, um terreno de 'li- colaborado ra s da História das mulheres (Chi ara Frugoni, Arlne Higonn'et), por
vre percurso pele,> qual se luta. Também parece legítimo colocar a questão do gê- p.arte de homens novos (Michel Rouch, Ioel Cornette). Pode-se também inter-
nero à representação do droit de cuissage (direito à primeira n~ite), . rogar-se sobre ·a maneira co mo as mulh eres viam, viviam suas i~lagens, acei-
li tavam· nas ?u as recusavam, utilizava m -nas ou as rejeitavam, subvertiam-nas
13 VIGARELLO, Georges. Histoire du violo XVl( - x.xc siecles, Paris: Seuíl,\ 1'998; cf. o u eram cativadas por elas. Este é O sentido de minha contribuição que apenas
também fRAJSSE, G. DrQit de cuissage d devoir de I'historien. Clio. 3. p. 251- aborda rapidamente o assunto. ' "..
261,1996. · ':
14 PERROT, Michelle. Comment les ouJr~ers voyaient leurs patrons. In: Lf:VY~ .'
LEBOYER, Mauri~ (Dir,): te patronatWe la seconde indllstrialisation, Cahiers du 15 VEYNE, Paul; LlSSARRAGUE. Franço is; FRONTISI-DUCROUX, Françoise. Le.s
Moul'l~".ent Social. 1980, I ... Mystere.s du GYflécée. Paris: Gallimard. 1998.

~30 431
"
l'rlrte , l'urte5
Debatt1 DdNu"

Existe aí, de fato, um campo de ' pesquisas e reflexões de uma ardente neiras das lutas das--muLheres. A crítica d.o direito como reaHdade sexuada está,
realidade. Nestes tempos -de grande' mediatizaçã~,
- as mulheres correm o risco
. de resto, no centro do ·pensamento feminista contempo!âneo . .
de se r mais do que nunca uma imagem-tela, ao mesmo tempo máscara lisa -, "Identidade, igualdade, diferença": em matéria de sexos, est~s' questões
das ~dentida'des particulares, e .tela' oferecida para a projeção das fantasias atràvessam 'todas as ciências sociais. Por isso O colóquio reunido em Paris (6-7
mais diversas. E qu;md9.elas ~riam - poi; a'contece cada vez mais - qual é seu 'de março de 1995) pela. Missão de coordenação encarregada de preparar a
grau de liberdade?/'" .. . conferência mundial de Pequim (setembro de 1995), fez delas o seu eixo de re-
No reino das. imagens, quaI'foi, qual é o poder das mulheres? ., flexãô. Os Anais do Colóquio, publicados a partir do o utono seguirite, consti-
Outro problema: a distinção do públiço e do privado, elemento' co nsti- tuem uma bo~ visão de conjunto do estado da p~squisa feminista e sobre as
tutivo do imaginário das socieçades ocidentais e modo de governo. Sua histó- mulheres na França, treze anos depois do colóquio d~ Toulouse de 1982.17 Eles
ria suscito u numerosos trabalhos nQ último meio -século. 'f: ma is tardiamente _ mostram o desenvolvimento do que. se tornou um "ca mpo'~
que se faz intervir as. diferenças ~ntre os sexos. O livro de Jane Elshtain, Publiê
Eu estava encarregada de introduzi-lo, ao lado de Suzan Moller Oki.d,
Mat1, Private Womafl l6 marca uma reviravolta, deste ponto de vista. No entan-
Cecilia Amaros, Ilhem Markouzi e Chizuko Ueno. Meu te;~to visava somente a
to, teve-se tendênci~ a sUl?eipor de maneira muito evidente os $exos às e:sferas,
dar uma idéia aas pesquisas_ realizadás em história, em torno desta trindad~
assimilando os homens a~público e as mull~res ao privado, de maneira qua-
problemática. Texto destinado a. ser ultrapassado e que, por esta razão, eu he-
se consubstanciai. As últimas são seriam,as heroínas do doméstico? Depois, as
sito em reproduzir .aquLVou incluí-lo, apenas a .título de testemurilio: .
coisa.s pareceram mais complexas. ~erceberâm-s-e as irnbricações, as flutuª1;ões - . / . . .
Eu já tratara do livro de Mona Ozolif, Les Mpts des [emmes (1995) em
de fronteiras, ainda mais quando a mídia as atravessava, tornando-as permeá-
Libératiol1, e.xpressando, ao mesmõ tempo, a minha admiração peJos dez retra-
veis e confusas. As mulheres ,penetravam no .público; oS: homens dirigi~ o
: tos de mulheres que constituem o essencial da obra, e ~inhas reservas so.bre o
privado do qual possufam muitas ch'aves. 9s jogos eram sutis e as zonas; ind.e-
Essai Stlr la singular;té frallfaise, .que os segue. Malfadadamente encUItaClo,
cisas, como também o eranl os papéis sexuais.
me'u artigo pareceu duro. Eu o lamen~ei.
. O colóq~io, organizado em Amiens sobre '!PublicoIPrivado" coloca.f~r.-
A pedi.do .de Pierre Nora, desejando abrir em Le Débat úma discussão
temente a ques~ão: Ele questiona "a interferência da di~tinção público/privado,
ilustrada pelo apaga~ento das referências axiológicas, a aproximaçã'o' dos sis-
, sobre a obra e suas teses, redigi um texto mais argumentado. Bronislaw Bacz-
temas normativos e a imbricação das esferas pública e privada pensadas, níl.. ko, ~lizabeth Badinter, Lynn Hunt, J~an Scqtt participavam igualmente desta
trdca de' pontos de vis~a . .
origem, co mo radicalmente diferentes". O colóquio, com dOIl~inante jurídica,
falava sobretudo de pol{tica, de direito, de etnicidade. Eu acrescentei a isto a di~ . Mona 0zóuf respondeu, no mesmo caderno, com· um texto brilhante e
ferença entre os sexos: par~ simplificar;5 cois~s ..:· ... _ .- argumentado que mereceria ser amplamente debatido, "Le compte des jours':
/, Nó. final das contas,'podemos nos perguntai- se o ponto nodal da subot- Ela explica seu procedimento;' responde às críticas).re.futa as, princip~s '09je-
dinação das mulheres não é o privado, ini9almente subtraido a.O direito qu e ções. Ela insiste, em particuJar; na relação com o tempo, que lhe parece ser úm
I
p/etende conhecer apenas a orqem pública, deixando para a f~ilia - e p~ra o traço fe-minino irredutível e que explica, a seus olhos, a surda resistêl}-cia das
p~i - um liwe-arbítrio muito ;rbitrário. Compreende-se que este privado, tã~··
político, seja o epicentro das tensõeS e ql!~ o direito seja urna das fre~tes pio-
mulheres ao voluntarismó deva stador dos homens da Revolução. "Um homem
pode acreditar que ele edifica, sobre uma tábula rasa, uma sociedade inédita e
!
ver a si mesmo como um 'novo homem'. Nova mulher? A'consciê~cia ·fçmini-

16 ~LSHTAIl,i, lan~ B. Pllb;;, Mall, prival:'-·~õ~"n. Wom , n in ,oeial and politiCIII


'ltougllt. Princeton. NJ: Princcto~ Univc~sity Press, 19.81. .... -. 17 AFFER. Fel1lllles, ftminislllt! el recllerche:'Universilé de Toulollse-Le Mirail, 1984.
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na do tempo, assumindo e~pontaneamente as posições de Edn~und Burke,
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- Capítl/lo 18
atesta a falsidade desta utopia," ~

Dando co nta de "Vinte anos na história das Ll'lUlheres" em um recente


número retrospectivo de I.:Histoire. li ela retorna, de maneira mais geral. sobre
a noção de "gênero" çorno categoria de análise histórica, que não a satisfaz
/
completamente. Era tende a "aceitar a existência, na condição humana, de urna
parte que não é eleita, mas sim recebida": o fato feminino, em suma, que jus-
No FRONT DOS SEXOS:
tamente a historiografia fe"mirrista dos últimos vin te anos esforçou-se para UM COMBATE DUVIDOSO*
desconstruir, até em seus fun4amentos simbóli cos, aqueles mesmos que Fran-
I. çoise Héritier vê cQmo uma estrutura, explicandó o "valor diferencial dos se-
xos" que ela encontra em diversas culturas, quase como uma constante.
Assim, além da "singularidade" política francesa, é toda uma concepção I'
da historicidade das rélações entre os sexos que está em jogo, um procedimen~ I A idéia de que as g~erras mudaram, e até mesmo radicaJmente, as rela-
I to que procura recuar o mais longe poss,ivel os limites do irredutível, e, por esta ções entre os sexos e deram às mulheres novos poderes é fortemente propaga-
razão, encontra ria obra de Michel Fouca ult instrumentos de reflex:ão. da. É um lugar co mum do discurso polftico e da Literatura. O herói -do ro man-
Encontrei inicialmente Michel Foucault, cujo pensamento contou mui- ce de Joseph Roth, La Crypte des capucirlS,JO o último dos vo n Trotta, fei to pri-
to para rnim, em torno da prisão: tive a oportunidade de lembra-lhe isto, em sioneiro desde o inkio da guerra, 1)0 verão de 1914, volta pata cas,a para reen-
\
ouu·o luga r."
contrar sua in~erJ desposada na pressa da partida, agora emancipada econô-
III Michel Foucault não se interessava particularmente pela história· das
mulheres e desconfiava um pouco das fe~inistas. No entanto, ele havia sauda - II .mica e sexualmente; lésbica, ela o deL~ para ir para a América, abandonando
seu filho com ele. O desmoronamento da famma e do casal acompanha e sim-
do seu movimento com uma simpatia solidária. Sua morte prematura inter-
I boliza o fim do Império Austro-húngaro, ainda que ele não constitua o prin-

I
rompeu o diálogo que teríamos talvez mantido a este respeito. Pode-se, em
todo caso,·encontrar na "caixa de ferramentas" que ele queria fazer de sua obra, cipal fermento da sua dissolução: O feminismo é freqüentemente considerado
'muitos instrumentos úteis neste campo de pesquisas e de reflexão. As ameTi: como o sin toma mais evidente da decadência dos costumes e do indiylqualis-.
canas foram as primeirâs a perceber isto, não sem críticas, àsyezes ácidas. mo corruptor. Para Roth, assim como para Michelet,lI, ,~
quando as mulheres '

i Este artigo, texto de uma comunicação apresentada no colóquio or~ I usurpam o poder, a história se desregula, Para Proust também, em certo sen-
nizhdo 110 Centro Pompidou com o titulo de "Au risque de Foucault", tenta tido. No Faubo,urg S3int-Ger~ain do Temps retrouvé (O tempo ree'lcontrado),
sühplés·;nente fazer un~ apanhado desta questão.
i ' ,j "velha senhora senil" que ignor:J, os códigos e confunde os ritos, as muUleres
que, através do sexo e da cultura, prepararam há muito tempp o seu advento,
reinam enfim: Odette, amante do Duqu~, Madame V~rdurin ,legítiJ11a prince-
!i
I 18 OZOUF, Mona. Vingt ans da~ I' histoire des femmes. L'Hisloire, 220. p. 22-25, avril
1998,
ir 'I
'il
19 PERROT. Michelle. La leçon des ténê~res, ' Michel Foucault et la prison. Acr~
Cahiers d'actioJl jlldiciaire, 54, été 1986;"jMichel Foucault: le mal ente.ndu", entrevista
.... Vitlgtiellle siicle, n. 3, juiL 1984, número especial: "la guerre en son si~cle", p. 69-76.
20 Primeira ttaduç30 francesa. Paris: Seuil. 1983.
com R~my Lenoir, em Michel Foucalllt, ~urveiller et Punir. La priso" "i~gt ans Qpres. 21 Sobre Miche1et, ver MOREAU, Thérêse. Le Smlg de l'histo;re. Michelet, I'hisroire et
Colóquio publir;ado pela revista Socjit~ et Repr&matiotlS, p. 144- 157, 3/nov. 1996. l'idéc de la femme au XIXt sii.cIe. P3ris: FI3mOl:trion. 1982.
I ' ,
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434
435

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- C4p(II'1cI 18
"'.,,,,,
Pi.lrlC $
No (ront doI la~1;'''li cowbtuCdlll·jJ(lSO

l-
sa de Guermantes, sejam co ~ sua ascensão, a morte de uma ar~stocracia e o I pa.s. O que surpreende, sobretudo, é o caráter espetacular, mas superficial e
I
fim de um mundo. , provisório) das mudan ças ligadas às guerras. Na maior parte do tempo., elas
I I
não alteram verdadeiramente os papéis tradiâonais dos sex9S. Se a mulher tra-
Assim a literatura traduz a~ fan tasias, os medos ou os sonhos de uma •
épQca, que constituem uma parte, maS apenas um a parte, de sua "realidade". A balha, ela o faz como mãe ou como ~sposa . que substitui o ~oldad oi humilde
realidade é mais cO ll~plexa: como sugeriu um recente colóq uio :- "Women and dublê, ela não trabalha para si mesma. Daí o refiuxo, de certa m aneira "natu-
war" - organizadó pelo Center for European Studies, em Harvard: em janeiro rar' .dos pós-guerras, simples retorno à "normalidadê'~ Ainda mais que estes

~
de 1984; sugeriu, porque não pode $e tratar de um a sí:~tese, pois as pesquisas I .dias segui ntes'da batalha são freqüentemente marcados por aümentos de "pri-

li são ainda curiosam ente pouco desenvolvidas neste campojU e també m, devido
a uma distribuição desigual dos países e dos ~ema s abordados.
Doze comunicações princ!pais: quatro sobre a Primeira Guerra Mun-
dia~, oito 'sobre a Segunda; e quanto à distribtd ção geográfica: quatro sob re a
França, três sobre a Grã-BretanQa e o mesmo número sobre os Es tados Uni -
vatização", como diria A1bert Hirschm an / 4 centradas sobre a familia, cuj o pivô'
é a mulher, verdadeiro repouso do guerreiro e berço do futuro. O único f~l11i­
'nismo é então materno e familiar. Glória à Christine Prederik e à Pau)ette Ber-
nege, panegiristas da cozinha tayJorizada, <la dona-de-casa eflgenhe,ira do
hQnre e do aspirador!!S

i#
dos) duas sobre a Alemanha. O ângulo de ataque era mais cultural e politico do Esta re~rogradàção modernista aparece melhor ainda se ~ si tuarm os n~
que econômico. :rratava-se, geralmente de verquais representações serviam de prazo mais, longo. Asslln ) no início do século} esboçava-se um novo tipo de mu- .
base para as polÚ.icas sociais) a iconografia ou os romances, como funcionava lher - a "new woman" das feministas, a "nova Eva" de homens deseJosos de
a relação masculino/ feminino no /imaginário e no discurso político. Poucas es- :. "companheiras inteligentes': como 11.11es Dubois - cujas veleida~es de i ndepen-
tatísticas) afora um.censo prévio de Charles Maier para comparar os países se- dência econômica e atemesmo sexual) con tras.tam singuJanriente com as mu-
gundo ~ evolução de sua população feminináativa (1895- 1950), a taxa de di- .lheres culpadas, submissas, prostradas aOs pés dos altares dos heróis, mortos ou
vórcio ou o acesso ao direito de voto. Sobretudo análises de textos e de ima- vivos, do pós-guerra. Longe de ter um poder de aceleração, as guerras teriam as-
.~ens: o~ cartazes das guerras fornecem um material ~cepcional do qual os pa- sim wn eleito bloqueador, de freagem. Mas .as.decepções e os ranéores acumu-
risienses puderam ver alguns exempl ares na exposição Qrganizada na Concier- lados teriam como -resultado acentuar as contradi ções) estimular, no fundo,' a
_gerie;U e ~studos de caso, como O das viúvas de guerra 'na ÀJemanha do .luta 'entre os sexos e preparar, no fmal das contas, a explosão do feminism o.
ent reguerras (Karen ·Hausen). Um lugar par~i~ular foi atribuíd o à pesqui sa Esta ~ a constatação ~o m a qual conc~rda a mai~ria dos participantes
oral, nas narrativas de vida das resistentes francesas c;ompiladas por Paula 4este colóquio e é provavelmente o essencial. que modifica muitas perspecti-
Schwa rtz e Marga ret Wei tz, a primeira interessa ndo-se particularmente pelas vas. Mas· é preciso obse rvá- Ia de mais perto. _ /
m~lheres comunistas, a segunda procurando, ao. contrário, encontrar a diver-
si~ade.das origens e das trajetórias singulares: .. -
, )-
, Meu propósito não é de 'dar conta destas com unicações que serão, aliás, DURANTE A GUERRA: MUDANÇAS ...
objeto de um publiéição próxima,
., mas sim evidenciar algumas idéias princi~.
~

Na frente de trabalho, inicialmente. As mulheres aumentam notavel-


22 A este respeito, ver o rectnte apal1hádo de Dominique Veillon, no seminário mente a sua participação na população ativa e penetram em setores que lhes
I' "Histoire des femrnes~ do lnstituto de História do Tempo Presente, em 22 de
,
~I\ fevereiro .de 1984, na ~ncier8erie. I:
23 «La mémoire murale politique des Fra r!çais, de la Renaissa,:-ce à nos jours",jan./fe v. 24 HIRSCHMAN, A. Bonlleur privé, action publ!q[le. Paris: Farara, 1983.
1984, na Conciergerie. .. , . 2S Machines' au foyer. Cu/tUF'eS techniques•.3 sept. 1980, n. spedal.

i . 436 •
' .
'. 437

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Pnr/c'
DclklfCS
Clpllulo 18
No (ront dos II!."«lJ: Im, romlmlt dlll,jPOJO ••
casalmodernol cc::ntradu.em ~ma exig~ncia de realização individual e- não mais
••
••
eram, até então, praticamente"fechados: os transportes, alguns escritórios, a
grande indústria m~talúrgica.16 Elas descobrem, freqüentemente com prazer,'o patrimon!a1. Mas também a opacidade aumentou entre os seres separados. Vera
manejo de instrumentos e de técnicas ignoradas. Eis Marcelle, a mulher de -, Brittain, cujo Testametlt constitui, a respeito do intimo da guerra, um docu-
. Amédée, cujos testemunhos paralelos foram registrados por lacques Caroux-
Destray. Após O êxodo de f940, ela trabalhana companhia Biche!, fabricante
de cofres-fortes: "Eu' ganhava mais do que·Amédée, mui!o mais do que ao lim-
mento excepcional, já tem o sentimento de perder seu noivo, antes que ele mor-
ra sem ter evocado ,seu nome.lO O amor e a guerra: que história!
••
par casas [... ). Por muito tempo, guardei minhas folhas de pagamento [... ] por-
que me dava prazer ver quanto eu havia ganhado [... ]. Eu trabalhava com o
maçarico. Recortava peças. T~balhava muito e fazia faíscas ,'o Eu fazia o traba-
MAS LIMITADAS _ ••
lho de um homem mas o co nsiderava muito menos cans~tivo dQ que as lim-
pezas", l1 1v1uitas mulheres constata'r am , como ela, que o trabalho na fábrica não
Estas mudanças, no entanto, estão estritamente limitadas p.elos papéis
- sexuais tradicionais que são até mesmo reforçados. A enfermeira encarna. ao ••
era nem mais difícil, Ilem mais cansativo do que as limpezas, m as era muito .
mais bem pago. Daí o ar conquistador p alerta de Rosy tlle Riveter, encarnação
-
mesmo tempo. a mulher que atende' e a m ãe. Q. Iwrsing pe.rmite que muitas
"-mulheres se aproximem dos sofrimentos daqueles que elas amam. Vera Brit-.
••
I,
legendária da operária americana da Segunda Guerra Mundia1.l'
As mulheres têm acesso a novas formas de expressão. como o sindicalis-
mo. Nos Estados'unidos, sua taxa ,de sindicalização passa de 9,4 % em 1940 a
22 % em 1944; ocupam postos de responsabilidape, levadas aliás pelos homens
o
que as e.\:ortam a apoiar sin~cat~ (com unicação de Ruth Milkman). Elas.pe- .
tain renuncia a Oxford que ela desejara tanto. para dedicar-se aQ hospital. So-
bre os ombros das mulheres, o peso das famílias, e singularmente dos pais,
frustrados com o destino de suas fIlhas, torna-se maior: insu.portável contra-
dição vivida por Vera. ... .'
Na Re~istência , as mulheres ll)ais ativas eram, em geral, jovens, solteiras,
.,••
:'.'
netram nos bastiões da alta educação: na Sorbonne ou em Oxford desertada. sem filhos. Elas tiveram, freqüentemente, que esperar a morte de um familiar
:; Elas descob rem novos espaços de liberdade. Tornam suas roupas mais le- ou afastar-se de sua fanúlia para participar do movimento. No entanto, ainda
ves, vivem de maneira ":1a.is prática. circulam mais livremente. dirigem ambu- assim) e~as assumiram geralmente tarefas (chamadas de) subalternas, prolon-
lâncias e motocicletas. A pressão da vigilância familiar afrouxou-se. As conve-

••
gando suas funções habituais. Secretárias, elas reencontram su<J,s máquinas de
niên cias atenuaram-se diante dos.horrores da guerra. Os rituais de noivado, tão escrever; a~entes de . ligação, elas escondem as men sagens em suas sacolas de
prolo ngadhs na Inglaterra vitoriana, desenlaçaram-se na emergência. O ~ncon:. feira, usando sua juventude, sua feminilidade até"para enganar o ocupante;
tro amoroso e sexual foi apressado, transformado pela obsessão pela morte. H

••
I
do nas-de-casa, elas oferecem suas cozinhas ou suas salas'de visita para as reu-
Talvez o espetáculo do campo de batalha tenha contribuído para o advento do niões c:landestina s, com o pretexto de um~ xícara de CDá. Fato clássico: em to-
I . "-
dos os .t empps. as saias· das mulheres dissimularam os combatentes. Mas esta
/ 26 - DUBESSET.
1914 -1918,
M.~ TH~BAÚD,. F.i VlNCENT, C. Les munitionnettes de la Seine. In:
L'nutr,/ront. Paris: ~ditions ouvrieres, 1977 (~hiers du Mouvement
mesma femini:z.1.ção faz que sua ações não sejam realmente levadas em consi-
der,ação. Atribuiu-se a esta resistência, ·c om ares domésticos, a mesma desvalo- ••
••
sOCial, n. 2); THI!BAu"D" Françoise. La Femme au temps de la guerre de 14. Paris: rização que sedeu ao trabalho doméstico, que não custava nada. Quem se lem-
Stock, 1~86. .
bra ainda da "mãe do maquis" de Tl10uars -que, co;"'o u!lla alberguista de
27 CAROUX- DESTRAY, Jaeques. Un coup,le ouvrier traditionnel. Paris: Anthropos:
1974. p. 97-100.

'. 28 Sobre o trabalho das mulheres n~ cam~. sobre o fato novo de cuitivar, esperam'os
os trabalhos de ,C orinne Bu~furri. I
30 BRITIAlN, Vem. TCSlamellt 01 YOJltl,. New York: MacMiUan, 1934; Chronic1e. o/
Youtll: the War Diary, 1913-1 917. New York: (s.n.). 1982; comunicaçlo de lynne ••
t
29 também um grande tema romancsco:\c( Roger Martin du Gard, Les 77libaldt. -

••
L.'\yton. "Vera Brittain's tcstament. '
1 I ......
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1" ' J '> '.


439
'438
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Ame '
Dtbafl:f

aprendizes, cuidava do reabastecimento 'e do 'bem estar-dos h omensr Entre


1059 Com panh eiros da Liberação, há somen te seis ~1Ulheres! As próprias re-
No rront
ClIpltulo 18
dtn ~ um combare duvidoso

mother in Lhe world ': a Pietá em novo estilo. Um outro representa mulheres à
'"

sua Janela, calmas, elega'ntes, dize ndo 'aos homens que desfilam militarmente:
sistentes têm aliás 'a tendência de sublinhar o caráter me~or, infimo, de um a "Gol", como se, perversas, elas os empurrassem para O front. O tema da emás-
participação cujo p reço, entretanto, todos co nb ecemos~ "Não fiz nada de espe- culação. real e,figurada, asspmbra a literatura da .guerra e do pós-guerra, estu-
cial" é uma declaração comum das mulheres entrevistadas por Margaret Weitz dada por Sandra Gilbert de maneira sugestiva." ..
ou Paula Sthwarl:Zféuja maioria havia sido depor tada. Pois é muito dificil, para Ela m ostra também como, nestes mundos sexuais distintos, desenvol-
uma mulher, reconhecer e fazer reconhecer para si um papel público. vem-se as atitudes homossexuais Ide tonalidade muito diferente: descontrafda,
Se elas querem fazer a ~esistência "séria", inteira, por exemplo nas redes e m~smo alegre. entre as ~ulh eres, em uma literatura lésbica bastante abun-
comun'istas, as mu lheres dev~m masculinjzar-se, romper com suas fa mílias, dante em que se expressa. às vezes, a utopia de:um mundo sem homens (Char-
COI11 seus bairros, sacrificar suas vidas priv~das e até m esm.o a sua aparência: lotte Perk.ins Gilman, Herla'ld; 1915 );)2 mais crispada, agressiva e misógina en-
Nicole La111bert corl,a se us cabelo's, Segundo Annie Guéhenno, era como unu - tre os homen s. A fraternidad e das armas alünenta, no pós-guerra, ~m antif~­
entrada no convento. A a.desão a um a ética viril que misturava sociedade se- minismo freqUentemente viru~ento. Ao passo que, entre as mulheres, surge
creta e ordem militar, uma culpa subserviente propicia à submissão.
- '

NO MAN'S LAND POS-GUERRA: MULHER NO. LAR, REPOUSO


DO GUERREIRO ·
No entan~o, estas 'modificações co ntidas foram vividas com dificu.ldade

•;,
.I.:.
pelos homens, sobretudo durante a Primeira G~ erra Mundial. Enclausurados .
atrás de arame farpado, como eles nunca tinha"m estado, em um a guerra de .
trincheiras em que o caminhar contínuo no san gue e na lama era a caricatura
derris6ria da guerra viril e triunfante, ele~ experimentam o sentimento de un"la
- , -.
Em tod o o caso,'tS brecbas abe rtas pelas S''CHas sãO rapidamente 'fecha
das Quando volta a paz. sobret"do no que se refere ao trabalho e aos papéis pri-
~dQs. No dominio púb~co, as coisas são mais sutis. A concessão do direito de '

:i
vo to às mulheres intervém após a Primeira Guerra Mundial nos Es tados Uni-
regressão. e noivo de Vera Brittain,deplora o fato -de estar reduzido ao estado 'dos, 'na Grã-Bretanha e na Alemanha; após a ·Segunda Guerra, na França e na
de um "selvagem. hom em dos bosques".'Ao passo que, longe deles, as mulheres -Itália. Mas ele não é acompanhado de um verd~deiro acesso das mu1heres à
têm acesso ao espaço e às responsabilidades públicas, a u'ma 'In\tior ~obilida­ vida política. Bem ao contrário: as mulheres são remetidas, em nome de seu ci-
" de, 0'5 homen s vi~em a guerra como um retiro. uma impotênd<hpública e pri.:

:
vismd, à esferf' privada, proclamada a chave d,as reconstru.ções e das recupera -
vada. EIC;S' temem ser traidos, usurpados, depostos por aquelas-mulheres que, - • •
çoes naaonalS.
• I

na/retãgua~da, penetram no segredo de seus negócios e de seu traballÍ.o. Eles. Assim , pr~duz-se uma ,excessiva' feminização do discurso político cuja

•,•••
tqm medo de ser dOllÚnados, possuídos 'p or estas mulh~res que cuidam ~eles força foi mostrada por Denise Riley, Força no que se refere à Grã-Bretanh-a do
como crian ças. Temem esta infantilização dos hospitais de·guerra,.a humilha- pós Segunda Guerra, mas que existe, com m odulações diferentes, em todos ~s
ção dos cQrpos -d esnudos, danificados, manipulad os, A seus olhos, a enfermei- países oC,identais: A Alemanha de Weimar conh~ce apenas as viúVas (600,00.0
ra é senho,ra m ais do que escrava, deusa mais do que suplicante- como C.1 the- .
rine Barday em O Aaeus às Amlas' de ·l )erningway. Um ca~taz americano da ,
f' 31 r GUILBERT, Sandra M. Soldier's heart: literary men, litera;ry WQmen, and the Great
Cruz Ve rmelha~ ' em 1918, m'os~rã um a gigantesca enfermeira .embalando um War. Signs; v. 8, n. 3, 1983. e sua compnicação. .

• hom~ni em miniatura imobiJ~do sobr~ um a maca de boneca: "Tlle gJeate~


"
- ,
32 Reedição, Nova York: Panth'eon Books. 1979, introdu~o de Ann]. Lãne . .

., ,
440 '.
441
Pant$ Caprtlllo 18
Dl!bilttl No {ront rios JCXos: um rombtlfC dlll'idoso

em 1918) e a prática assistencial que se elabora a seu respeito se faz em nome re nQS Estados Unidos, após a Segwlda Guerra Mundial: a gestão esforça-se
aos filhos dos heróis; o controle da vida privada das mulheres é freqüentemen- para voltar. à dívisão ~do trabalho de antes da guerra. As mulheres, fortemente .
te suspeitoso tKaren Hausen ). Em -outros lugares, como a família está no c'ora-' sindicalizadas, lutam então· em nome da ig~àJdade; reivindicam o; direito ao
ção .~e uma política social pre~cupadal antes de tudo, com a natalidade, a edu-o trabalho e recusaill qualquer medida de proteção, qualquer discriminação, nel.
. ,
caç,ão das crianças e o pleno- emprego, a concepção que ela tem da mulher é gativa ou positiva; elas jogam com a ullidad~ de classe mais do que com a dis-
muito instrumentaI:,'Ás 'mulheres nunca são visadas enquanto tais. mas sim tinção de sexos: Mas não tênrsucess?, porqbe a maioria da opinião pública as-
.
como mães. ~ a mesma coisa nos Estados Unidos da. década de 1950. Sonya
Michel sublinha o quanto o interesse da criança, ~erdadeiro leitmotiv do pós-
pira ~s "tiranias da intimidade" (R. Senne"tt), inclusive entre as mulheres.

gúerra, tornou- se para as mu~eres um dever obsessivo, apoiadó por todo o ar-
e
se nal da psicologia da psicanálise. Anna Freud e Dorothy Burlingham forne- A MíSTICA FEMININA"
, ceram aos ,partidários da mãe no lar, UI;na pan6plia de justificaçges psicopato-
lógicas, reforçadas pelas experiências catastrófi'cas da guerra, A emoção provo- A questão do consentimento das mulheres a seus papéis é, como sempre,
cada pelas ,crianças mártires dos campos, pelos órfãos de guerra (pod~~os nos capital. Deste ponto de vista, aS: pesquisas de Anne-Marie Trõger, realizadas em
lembrar do impacto de filmes como Alemanha, ano zero) pesou fortemente Berlim e Hanover, junto a mulheres al!!mãs ,nascidas antes de 1938, sobre sua
para o reforço da "célula fa~iliar reencontrada, porto de paz e de salvaçãp. mem ória e sua percepção da guerra, são cheias de interesse. A maioria destas
Este núcleo" dur9 da família. bloq~ei. as evoluções. j.ne jenson o .torna QlUlheres ~deria âo nacio nal-socialismo sem análise particular. Elas afirmam a
explkito, a respeito da Erança da Liberação. A mulher é enfim reconhecida sua ignorância sopre os campos de concentraçâo, recusam ·considerar-se como .
so mo çjdad~princípiQ cOmo trabãlhadora qO passo que 9 direi'to de.fa- . responsáveis e definem- ~e inicialmente como vítü';'as. A guerra para e1,as?Ar.tes
mília não muda. O chefe de família continua a reinar como senhor, apoiado no de tudo os bOJTIbardeios é sua terrifica nte beleza. Algo como uma catástrofe na -
- "
Código de Napoleão. O discurso da esquerda traz a ma~ca de~ta contradiçao; ~ tural cujo fuu é assimilado a alguma mudança ineteorológi~a. A história é sin-
por exemplo, nwn rnt:smo texto, François Billoux, para o PCF, proclama o di- gularmente ausente desta representação dominada pela fatalidade.
reito ao .trabalho das mulheres e â necessid~de de uma proteção mater~' o~in­ Em 'um outro registro, o estudo de Andra S. WaJsh sobre os "women's
fantil; o blato tC mãe-filhos" é concebi~o comQ inseparável sem que seja previs- fllml' hollpYoodianos, cujo sucesso junto ao público feminiho foi imenso,
ta a poss~bi1idade de uma clivergência possível de seus cQmponentes inclivi..- m?stra a persistente adesão ao ideal doméstico tradicional, se admitirmos. en -
duais.. A família é encar~da como uma unidade, e não como um terreno even- tretanto, que o s1}cesso de um produto mediá tico sign.ifica uma certa adequa-
tual de luta democrática. A família continua a ser o pivô da sociedade, regula:. ção entre mensagem e receptor. Estes fillnes fazem da intimidade o seu princi-
dor~ da economia (co m salário fam,iliar e subsídi~s de natureza a desencora- ' .pal teatro, e <;los pr~tagonjstas familiares, ~e'us ~tores fuvoritbs. Mães levadas ao
jar/as mli.lheres a trabalha~) e_d~ moral. . ,," . 'drama pela despreo~upação de seus'maridos oU, seus filhos, mulheres ctilacera.
I. Sonfrõnt~das a seus devert;S femininos, as mulheres devem abandonar, das en tre seu trabalbo.e suas exigências privadas, esposas vítimas da dúvida so-
freqüentemente contra a sua vontade - diversas pesqui~as rpostram, em toda a. bre seus companheiros, todas encarnadas por Bette Davis, Joan Cra\vford ou
parte, o'deseio de.conservar o Seu emprego ,- as posições conquistadas no tra- Katherine He.pburn, são as heroínas destes ftln'-tes d~mésticos, muito confor-
balho. É espetacular' na França, após a Pritneira Guerra Mu·nctial: em favor da' mist~s em seu .,1QPpV pud mareQdo pelo [est~helecjmento da felicidade na gf_
.1, reconstr~ç,ão das fábricas, as mulhel~es sãq 'qliii~as vei~s taxadas de (Capro~~~ta­ d.cm.. As mulheres, são alj, na Inaior parte do tempo\ "heroínas positivas" - nes-
r ,

doras" e s,ã o praticamente intll~.adas a v~ltar para a 'casa; a feminização cr~s­


" .ce nte dô seto~ terciário não compensa os ~mpregos perdidos. O mesmo ocor~ 33 FRIEDAN, Betty. Tlle Femill,ille Mystique. New York: Norton, 1963.
~

-.c.

442 .' '.


443
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C~pffll/" /8
DrIHHrl No from dOI SOei,: um tomb,ur dlll'itwso

te'sentido, a fan~osa misoginia do cinema 'a mericano está em desordem -, cujo As guerras tiverõJ.m, sobre estas.relaçôes, 'efeitos múltiplos e contraditó-
o
devotamento e sacrificio ' restabelecem um equilíbrio compro.{l1etido pelo rios. Ora elas precipitaram evoluções que se esboçav.am; ora, ao contrário, elas
egoí~mo ou pela duplicidade dos homens. Podemos pensar .n a domestic novel as fizeram recuar. No primeiro caso, o direito de votõ que, como vimos, sem-
das burguesas do 'Norte da França, cujo funcionarnento, totaJmente análogo, pre foi promulgado,após os conflitos, Conflitos,q ue fizeram urna antiga reivin-
foi analisado por Bonh~e Smtth.'" A única súbve, rs~o deste "feminismo domés-
/
a
dicaç 9 feminista ser conquistada, mas desnaturando-a, Na Grã-Bretanha, as-
tico" reside no lugar"'a tribuído ,às mulheres como motor da ação. Para as espec- s~m co'm o na França, as lutas das mulheres pelo sufrágio eram intensas, como
tadoras, assim como para as leitoras, há um prin~ípio de identificação cujo su- mostrou Steven Hause." Mas a guerra põe fl,m a ~las. Desta forma, a cOncessão
cesso sugere 'um grande conformismo em matéria de papéis s,exuais, ~ contra do direito de voto às mulheres, .após o anni~ticio, aparece sobretudo como
es ta feminine mystiqlle que nett)' Friedan se levantará, em 1963! el!l um livro uma recompensa por suas ações de cidadãs oU,de resistentes, não como o fru-
que é um dos primeiros manifestos teÓricos do fe~inismo iun.e'ricano. Obs~r­ to de seus combates. Este'~ponto positivo, concedido pelo'poder paterno a 5u,as
vemos que o Segundo 'Sexo de Simo'ne de Beauvoir data de 1949. Em todll càso, ~ filhas agradecidas, não tem o mesmo sentido que um direito de voto arcan,ca-
serão necessários ainda muitos anos para que estas análises teóricas se encar- do pelo sufragis mo feminino. Na França,_por exemplo, credita-se, comum en-
nem em movimentos mais maciços. te ao Gen,eral De Gaulle o fato de ter ~oncectido este prêmio de virtude, esque-
O tema do poder sociaJ das mulheres furidado na e$fera privada, por cendo q>mpletamente os movimentos anteriores. De resto, por mais impor-
sua vez, é recorrente. Podemos vê-lo atualmente nos Estados Unido's, atr~é's ' tar te que sej~, o exercício do direito de voto não significa necessariamente a
. de obras cO,mo o livro de Jean Bethke Elshtain (P"blic Man, Private Womal1)" pa~ticipaç'ão das mulheres pa vida e, sobretudo~ no po~er políticos .
ou a atração das teses de',Carol Gilligan,l6 consagrad" mulher do ano de, 1983 Em ou,:os ·cas05, as' guerras param ou frei~m evoluções amplamente
por uma g~ande rt:vista a~ericana. iniciadas antes delas. Assim, na,França, ~o início do século 20, tudo sugere que
uma "nova mulher" se esboça, mais independente economi camente _ a porção
de mulheres na' população ativa aumenta fortemente, sobretudo .po setor ter-
GUERRA E RELAÇOES ENTRE OS SEXOS , ciário -, mais ema;lcipada e~l seu c~rpo e suas aspirações. Num erosos indícios
pe.r:mitem peicebê'-lo. Diante do velho Adão, rabugento na con templação me-
Em suma, até os anos 1970-1980 que, deste I;'0nto de vista, sã,o revolu- 1~nc61ica de sua decad,ência/' e do aumento das multidões bestiais e femini-
cio nários - guardando as devidas proporções -. as relações masculinaslfemini--' nas,..o ~ uma nova Eva que ayança. O vivo sentimento desta 'muta ção reanima -
nas na teoria po~ém ainQ3 mais na prática, não mudaram fundamentalmente. "
. , 1 •

38 Steven c: Hause, "More Minerya than Mars: The Frencb ;omen's rights campaign
and lhe first ,world war'; sua .comunicação; ° autor, que já pbblicou diversos artigos I,
~4 SMITH, Bonnie. The Lndies of the Leisllre C/asso TIre Bourgeoises of Northe'rn Fronce
.sobre a ql1est~o, publica co"n Anne R. Kenney um livro: Wonlen's Suffmge and Sodaf ,
itlllle 19t1l Celltury. Prince~on: Princeton University Press, 1981; tr. fr. Paris: Perrio, I
1989.
PoJitic$ in the Frenclr 17lird Republic: Princeton: Princeton University Press, 1984.
- " !
39 Romantisu.,e, Décadence, 42, 4° trimestre de 1983, infelizmente não dá úm lugar;
35 Subtítulo WOl1len ill Social and Po/itical Tllollg/lt. Princeton: Princeton Uni,versity
_Press, 1981. !
particular a este tema; ver, no entanto, Michele Besnard-Coursodon, "Nimroud ou
Orphée: Joséphin Péladan el la société décâdente~ , I
36 GILLIGAN, Caro!. ln ~ different voice: women's conceptions of self and morality.
40 Sobre a psicologia da multidões, em pleno florescimento nesta época, e o tema fe- '
Harvard Education Revic.."", 1977.
minino, ver MOSÇOVICJ, Serge. L'Age des follles. ~ris: Fayard, 1981 (cap. 4:
37 Esta já era a...tese de MA-CMlLLAN, John~ House1t1ife 0; Har70t. n,e P~ace 0fWomen Foules, femmes et folie), e sobretudo ,BARROWS, Susanna. Distorting Mi,rrors.
!tI Frenc1, SOciery, 1870-1914. North Brigtlton: The Harverster Press, 1981,.em um VisiollS of the Crowd in lAtê 19th Century France. New Haven:Yale University Press,
i
, ,
livro, entreta nto, estático demais. ' 1.981 (notadamente fap. 2: Met.1phors offear: wornen and alcoholics).
.,
j

444 .' .c.'


445
"'
ParlC' ~
~
Debutei

ríl) de resto, uma misoginia latente, mas um ,tanto adormecida, 'e que se expres-
sa até O.delírio, em UJ1'l3 literatura antifeministà que prolifera,~ L em que se en- Capitulo 19 ~.~
contram Zola e Barres, Mirbeau e Da~ien e muitos outros epíganos. Ela culmi-
na nO,Manifesto Futurista de 1909, onde Marinetti ataca,com violência e brio
.' .~
os museus, as bibliotecas?,o.rehÍinismo e as muÍheres: "Nós queremos demolir .~
os museus, as bibliotecás, com~ater o mo~alismo, O feminismo, e todas as co- .~
vardias oportw1istas e utilitárias. Nós queremos glorificar a guerra - única hi-
giene do mundo - o militarismo, o patriotismo. o gesto destruidor dos anar- '
quistas. as belas idéias que ~atam e o desprezo pela mtllher".~l A guerra, exci-
tando as e~ergias 'viris, fornece, em ~uma , uma revanche e uma tábua de salva-
CORPOS S\JBJUGADOS*
:
.~
,

ção. Ela recoloca cada sexo em seu lugar. Em seu princípio e em se u domí~io,
ela é profundamente conservadora. É, aliás, uma das razões ,do pacifismo fe-
minista cuja intérPfete, entre outras, será Virginia Woolf,. notadamente em.
Três Guilléus.
A guerra é, em ~uma) geradora de frustrações, na medida em que ela fe:
Q cprpo está
, ' .
centro de toda relação de poder. Mas o ~orpo das mu-
DO

lheres é Q centro, de maneira imediata e' especifica. Sua aparência, sua belez'a, .
.
:.
~
,~
'~
I:
/ suas formas, suas roup-as, seus gestos, sua maneira de andar, de olhar, de falar
cha as saídas-que se entreabriam ou .que ela mesma abrira. Assim, ela contri- ...
<.. e de rir (provocante, o riso não cai bem às mullieres, prefere-se que elas fiquem
bui para aumentar a tensão eritre o~ sexos, a· cons'ciência que cada um deles
com as lágrimas ) são o objeto de uma perpétua suspeita. Suspeita que visa o
teli'\ de si mesmo.!A longo prazo, ela estimula o feminismo futuro.
. . seu sexo, vulcão da terra. Enclausllrá_las seria a melhor Spl"ção: em um espa-
~
. ço fechado e controlado, ou no mínimo sob um véu que mascara sua chama '~
illcendiária. Toda ~ulher em liberdade é. um perigo e, ao mesmo tempo, está
em perigo, ~ legi~<!ndo o o utro. Se algo de mau lhe acontece. ela está rece- I~
I~

••
.\ be.ad9-4pe.nas aquilo que merece
Q corpo das mulheres não lhes perténce. Na família, ele perten<::e a se u
-- ,
marido .que deve "possui-lo" çom sua potência ~ril. Mais tarde, a seus filhos,

li
que as absorvem inteiramente. Na sociedadei.!.le pertence ao Senhor. ~
Iheres escravas eram penetráveis ao seu bel-prazer. O sistema feudal estabelei
ce distinções de t~mpo e d~ cla~se. O senhor tem direito sobre a virgindade das

;- .,
,, servas. Este "direito à primeira-noite':** seria atestado por diversos te)..'tOs enl
num'e rosos países da E~ropa, com possibilidades de ser comprado, para os ba- \
rÕes. se~l fortuna. Discute-se sobre a reaJidade das práticas, e .até mesmo da
I.
'~,
\ .

de 3' cycle, Paris 111, 1983. .!


.
41 MAtlGUE, Alme-üse. La-Littératurep"ti:f<ministe en Frmrce tie 1~7J._ à
.
1914. Thm

42 ROCHE-Pt!.ZARD, Fanette.' L'~yen-tllre filtllrisre (1909-1916) , ~cole française de


e.,'"{istência de tal dir~ito e trabalhos em curso - como a publicação anunciada

,* Corps asservis. Préface à M: V. Louis. te Droit de cuuSilgc. Fratlce, 1860-1930. Paris:


L'Ateljer, 1994. p. 8-13.
"

,+
Roma. Paris: de Boccard, 1983. p. 68 (grifolmeu).
,
I
. -\
.\
*.... Em francês, "droit de cuissage" ou "drojt
.1e
.
jambage': (N ..T.)
,
I
.(
446
I . . ).
447

L
p,irtcJ CqJfwlo J9
~buttJ C,rpol Jllbj llpdos

por AI'ail) Boureau - nos esclarecerão sob r~ a construção social desta estranha , momento, mudança radical mas sim a extensão de sua servidão, ampliada do
relação de sexos. Mas que tal principio e mesmo. tal representação tenham po- circulo fam iliar para o ateliê e para a fábrica,co m as mesmas caracteristicas de
dido existir não deixa de ser significativo. Georges Duby nos ensina q ue se o não qualificação, de precariedade de emp rego e de dependência sexual. A Co n-
amor cortês protegia a Da ma. cada vez mais exigente sobre as m aneiras de tratação, a promoção, as gratificações estão nas mãos de uma direcão e de exe:-
amar, "o cortês era autorizadda perseguir a seu gosto a massa de vilãs, para sa- cutivos mascu linos) for temente tentados a usar' de suas prerrogativas para tir!!!
tisfazer bl'utalmentê a sua voí1tade:~.u Nas residências senhoriais, prostitutas, . dali todo O prazer possivel. Aindà mais quando a mão- de-obra é jovem _ as
bastardas e empregadas eram entregues, sem entraves, à concupiscência dos . operárias tinham de onze ou doze anos, até vinte e cinco anos - fresca, virgem
jovens machos: a.dmitindo-se até que eles ás forçassem. E a criadagem da Cor- e sem defesa.
- te fornecia com umente uma r~ser\;'a sex-ual para o prazer do Príncipe. 4t Ora , o século 19 agravou ainda mais a sujeicijo das moças. Da mesma
Evidentemente, com o tempo, a interiorização dos v~lores religiosos, os form,a que a lei Le Chapelier abolira os postos de representantes juramentados
progressos. da civiliáade, o aumento do sentimento amoroso ligado a um us'o -e mestres d~s corporações de,oficio e toda s as formas de proteção léntamente
dos prazeres q ue supõe a preocupação consigo mesmo, as coisas mudaram. elaboradas pelos artesãos, haviam sidQ mprimidas as medidas sue. sob o An~ .
Mas 1cn t a incompleta e desigualmente seg!1ndp os meigs sociais. A virilidade ª
tigg Regime ª JJtorjzayam as moças grdneidas procurar se!ls sedutores. Exis-
repousa sobre a representação de um desejo masculino, natural, irrefreável, tia; nas comunidades dos vilarejos) um quase dever de desposar a jovem grávi-
que necessita de um exut6rio. No séc ulo 19, a prostituição venal é co nsidera- ~a, dever evidentemente mal suportado po r homens cada vez mais móveis. O
da como wna higiene necessária que precisa apenas ser regulamentada.d ,E o Código de Napoleão protege estes homens das recriminações femininas ao.
reéurso à empregada da fazenda (vejamos Maupassant) o,: à doméstica nos proibir a pesquisa de paternidade que será autorizada novamente apenas no
meios burgueses, é visto como um mal menor. Forma de dependênc:ia herda- início do sécul<t 20. ConseqGência: eis a raposa livre no -galinheiro (prete.nsa-
da do Antigo Regime,.a criadagem co ntinua a se r fortemente marcada pela ser- mente) livre, pa~a retomar a célebre frase de List ~plicada ao livre comércio. E
vidão corporal."" E de maneira geral) os "serviços, setor de empregos ampla- ~. a curva dos nascimentos ilegítimos saltou, jun~amente com o número de aban-
mente fem ininos, comportam a idéià de um engajam ento 55ico. Como se uma dono·de crianças. Assim como os proletá·rios desprovidos de direitos sociais, as .
mulher não pudesse vender somente a sua força de trabalho, co ndenada ao'IJSO mulheres, as m oças sobretudo) estão entregues à exploração do .....mais forte.
e sem a facU:idade de alcançar a, relativa liberdade d~ troca. Quando, ainda por cima) ele é o patrão e o-chefe) tudo é pos·slvel.
·Este enraizarnento das mulheres no territó rio de seus corpos é urna das.., O século .19, apesar de ser operário) tomou consciência apena s tardi~­
chaves de sua extrema dificuÚlade em ter acesso ao assalariamento mesmo j
mente desta superexploração das moças, na exata dimensão de sua falta de co-
J '. _ -
co mo operárias. Pois a revolução industrial não traz,.para elas, num primeir.o.. . nhecimento o u até mesmo de seu desprezo pelo seu sofrimento, considerado
i-
u~ a quantidade negligenciável. Evidentemente) os moralistas,.católicos sobre-
'43 Htstoire de.s fe.mmes e.n Ocddent. Sous la direction de G. Du by et M. Perrot. Paris: tudo, denunciam a imoralidade das fábricas e suas duvidosas promiscuidades.
Plon, 199 1- 1992. t. 11: te Moyen-Age. Sous la direction de ~Christia n e Klapisch- 1:, um tema maior da economia social e das pesquisas COmo a do Doutor LouÚ-
Zuber, 1990. p. 269 (George duby, ' Lt mod!le courtois"). ~
René Villerm~. ~as eles estigmatizam a sexualidade operária, taxada de bestial)
44 Histo!re. des femme; en OccidenLSo~ la direction de' G. Duby et M . Perrot. Paris:
Ploo, 1991 - 1992. t. lI:. Le Moyeo-Age. Sous)a directioo de aaudia Opia. e n.u nca a dos empregadores. E representam as mul1,teres como ~itantes, até
~Co ntraintes et libert~s ( 1250-1500)", p'- '288 . . ~~esmo ex.ci.t adoras, bem mais do que como vítimas. A solu ção que eles pro-
45 Cf.. os trabalhos de Alaih CorQin.e Jacq~s Solé. _ põem são os espaços não mistos, obs~ssão de um tempo preocupado em sepa-
46 MARTlN-"FUGIER, Ann~: La· Plfice des Ilomme.s. La domesticité féminine à Paris ell rar os sexos em t~do e em toda a pª:"te) c;,o ncretizada nas·fábricas-collventos da
' 1900. Paris: Grnsset, 1979, anal isou espe~ ialmente estes aspectos. . . "' , região de Lyon; o u ai.!lda o trabalho em domicílio do qual Jules Simãn tornou-
/
.. .-' )

448 449
Li
Parte' Cllp/fliJO 19
DebMcs ! CtJ rpoJ Jllbjut;MOJ

I
se o apóstolo. A retirada, a subtração enfim, e finalmente o enclausuramento Poucos trabalhos históricos abo rdaram este assunto. A história da Se>..'Ua~
na casa protetora. O movi ~nento- operário não está longe de pensar da mesma ' , lidade continuou a ser, por muito tempo, um ~bu . A história da violência e;er-
maneira. Mas é o direito ao trabalho das mulheres, e sua Liberdade individual cida sobre as mulheres ainda mais. Os homens a perce~em pouco; eles têm ten-
que são assim contestados. - , dência a minimizá-Ia. As mulheres apegaram-se a heroínas p6sitivas, às mulhe-
Por volta do fil1).do século, no entanto, o tom muda. A luhricidade dos res ~tivas, rebeldes e criadoras, mais do que às vítimas. E ainda preferiram a aná~
diretores dc' fábricaté sobretudo dos contramestres; estes "valetes", estes "per- lise dos sofrimen'tos da maternidade" à análise do estupro ou do a~dio sexual.
digueiros do capita''', detestados na mes ma me~ida da sua traição de seus ir- As fontes, por outro lado, são de dificil acesso. Os ~rquivos judiciários
mãos de labuta, é um telTla recorrente dos jornais operários, notadamente na . .são os mais ricos a este respeito; mas são duplamente seletivos. Por um lado
imprensa socialista do Norte da França, onde as "tribunas dos abusos" do For- porque 'baseiam-se na evidéncia de crimes e delitos realizados e constatados,
çat, Crj dll Forçat, ~Rev(ltJcI,e du Forçat, etc" que se sucedem nos anos 1885- na maior parte do tempo, fora do que era comum e que, por faJta de queixas,
i890, ecoam a indignação diante. de seus atentados ao pudor das mulheres e con tinua escondido, Em seguida, porque o recurso à justiça supõe uma cora ..
das moças da classe operária, atingida em sua' honra e em sua clignidade 'por gem'que se apóia na consciência de seu dit:eito e 'na ~sperança de ser ouvido. ·E
. este "droit de cuissage" (direito' à primeira noite) que estes "novos senhores" este gesto se desenvo lve, de fato, no século 19, até nos campos -do Gévaudan,
. outorgam para si. ~ provável que hjja. nesta designação, uma parcela de ima- como mostraram os trabalhos de ~li sabeth Claverie e Pierre Lamaison que
ginário político e social. A República nascente forja sua identidade sobre o viaJTI ali o sinal de uma progressiva individualização.~' Mas as mulheres e as
tema da Revolução libertadora, d'es6-uidora dos antigos' privilégios, i'ndusive moças são, apesar de tudo, as últimas a recorrer à justiça. Não é surpreenden-
para as mulheres. Socialisrho e movimento operário insinuam-se nestas repre- te que aquelas que ousam fazê-lo afirmem-se como .çebeldes, feministas à sua
sentações. Os capitalistas são os "novos feudais..... cuj o poder é aindã pior;' a ' maneira. como muitas dela's que A.nne-Marie Sohn encontrou no fim de uma
fábrica é um feudo que reduz os trabalhadores à servidão e entreg; aos patrões longa e cativante. busca nos dossiês judiciários da Terceira República.1O Estas
o sexo das moças. 47 mulheres se insurgem ainda .em seu quadro privado e familiar. Na empresa, é
É precisQ, entretanto, tom~ cuidado pa~a não ver aí apenas a metáfora quase impossfvel. Elas sabem bem o que estão pondo em risco: a zombaria, o
(da luta social~ É provável até que a crença na analogia da afirmação tenha ser-
"
vido de cÔ modo véu à brutalidade das coisas, Porque se preocupar com o que_ 48 AssinaJemos, sobre este ponto, a tese muito escla recedora de FIUPPINJ, Nadia
seria apenas um discurst?? ~sim como se nega o estupro das mu.lheres diante' Maria, La naissan ce extraordina,ire. La Mere, 1'.Enfa nt, le Prétre, le MMecin· face à
I'o pération césariclme (ltalie, xvmt_xx t siecle). Paris: EHESS, 1993: as moças_,
do tri.bunal com o pretexto' de que tudo se passa .e'm sua cabeça ou até mesl1?:º-_ pobres foram um terreno de experimentação para a prática da cesariana l1a qual
..... em s~u d<:?ej~ fanta$iado, da-mesma forma ~e sub~~ti,mou a exploração sexual" ' tres quartos delas morriam, . -
real/~ a qual as muJheres e s~gularmente as moças do. povõ' foram vítimas' e 49 CLAVERJ E t1isabethõ LAMAJSON, Pierre. L'lmpossib/e mariage. Viole1lce et paretl-
ti e1l Gévaudall. Paris: Hachette, 1982.
que migrações, urbanização. indu~trializaçao, em um primeil:o,momento, ace-
50 SOHN, Anne-Marie. Lts R~lts fiminins dum la vie privá à l'époque de la Troisieme
leraram, ao enfraquecer os laços sociais tradicionais. No entanto, falou~ se mui- République, R6Its tlréoriqut!S, r"/cs vêcus. These (Doctorat d'!!tat), Univel"$ité Paris I,
to' de pauperização, mas não de sex.ualização. sob a orient..' ção de Maurice Agulhon, 1993; resultado de uma pesquisa de vinte
anos nos arquivos judiciários de todos os departamentos, esta tese renova nosso
conhecimento das relações e.ntre os sexos, vistas através dos conflitos, nos rn'eios
47 PERROT, Michelle. Comm,ent les ôuvrierJ voyaient leu rs patrons. Ir:': I-e PatrOtult de populares, A autorn insiste na individuaLizaçâo crescente das mulheres CO(11 o seu
, la uconde. indu$trialisation: Sous la directlon de Maurice Lévy-Leboyer. Callie.rs du direito à· recusa sendo exercido cada vez mais e, no final das contas, no recuo do
MOllvement sodal. Paris: Mitions Ouvrie~es, 1979. , patriarcado.
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450 - 45 1
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opróbrio, a demissão, a obrigação de dar provas ao passo que a palavra de uma Rússia onde as greves chamadas de "greves de dignidade".se multipHcam ." Os
moça seduzida, ou assedjada, pesa pouco çliante de um homem honrado por trabalhadores recusam a injúria, a interpelação grosseira, e até mesmo o trata-
°
.ser justamente patrão ou'o chefe. Daí o silêncio resignado que envolve a su- ~ento em "tu'~ Eles exigem ser tratados com polidez e civilidade; reivindicam
jeição, a humilhação c.otidiana, o embaraço, O medo, a angústia, o segredo le- annários para trocar de roupa e trajes convenientes. Não suportam mais que
vado às vezes na fuga t at~mesmo no suicldio. Este silêncio original ~ um obs- se toque em suas filhas e suas mulheres. Este avanço sobre a vida privada tor-
táculo para o conhecimento do cidad~o assim como para o historia~or. na-se intolerável à s ensibilidade libertária exp;essa em Le Pere Peinard. Por seu
Marie-Victoire Louis quis perfurar esta dupla chapa de chumbo, por-
que, como Marcelle Capy, ela está convencida de que "mostrar à luz do dia o 1 lado, o feminism.o, em pleno florescimento,s~ denuncia a sujeição do corpo fe-
minino. Após Flora Tristan e JuHe Daubié, Marguerite Durand, Séverine, Mar-
sofrilpento das muiheres é, no ~omento, a m,ellioI maneira de ser-llies útil".
Ela m obilizou fontes extremamente v~riadas: judiciárias. evidentemente, mas : ,I celle Capy, Aline Valette, etc. multiplicam queixas .e pl'ot~stos e lutam por to-
dos os direitos - civis, econômicos, políticos, e até mesmo sexuais - das mu- '
também parJamentares, operárias (imprensa, estudos âas \greves), literárias ' .\
lheres. Os resultados le~isl ativos ainda são pequenos mas este é o sinal assim
(Maupassanl, mas também Léon Frapié, Victor Marguerite foram sensíveis a c~mo o meio de uma "consciência de gênero" contagiosa.
esta injustiça), jurídicas, enflm. A questão da "sedução dolosa" su'scitou o i~te­ Ela ganha, de fato, as próprias mulheres do povo, càda vez mais palpi-
resse dos juristas, solicitados pelas feministas, na virada do século; tese de di- tantes, desejosas de respeito e de limpéza, áv-idás de felicidade. Em sua vida pri-
reito e intervenções legislativas se ,multiplicaram e o capítulo qué Marie-Vic- vada, segundo, a tese de Anne-Marie Sohn, Em sua vida de trabalho, como
toite Louis lhes. dedica é de parti,cuJar interesse, Dando ao "droit de cuissage"
mostra Mar}e- Victoire Louis, apoiando-se sobretudo nas greves de mulh,eres
(direito à~ primeira noite) o sentido de ataques à dignidade das mulheres, a au-
em que as reivindicações saJariajs são freqüentemente menos importantes do
tora buscou os gestos e as palavras que tecem a violência comum. íntegra; que a duração do trapalho, as questões de disciplina e de!direito à dignidade.
preocupada com as nuances, sua pesquisa não negligenciou nenhuma pjsta, ( \ Fa.to de longa duração. mas que se acentua na aurora do novo século. Sinal dos
nenhwn lugar. nenhuma 'profissão, mas sua contribuição mais n~va concerne tempos: a greve dos operários que fabricam a porcelana de Limoges, em 1905,
o'mundo das fábricas. Sem melodrama nem compaixão, ela analisa os efeitos um dós conflitos mais célehres da Belle.Époque, por s~a tenacidade e sua vio-
perversos da dominação sexual no trabalhp, que transforma, às vezes, as mu- lência (barricadas e um mortO' na cidade velha de Limoges), da qual Georges
lheres em cúnlplices e em concorrentes. O despotismo do serralha repousa no Clancier fez a matéria de Pain noir, é uma revolta contra o droit de 'clIissage ("di-
, consentimento das vítimas transformadas em rivais: Mas este consentimento ,I"
reito à PlJmeira l)oite) que um certo, Pénaud, chefe de fabri~ação da indústria
extorquido é uma negação suplementar de sua liberdade. Ela mostra ,as razões
Haviland exercia sobre suas operárias. A palavra é, aqui,'claramente emprega-
do silên~cio de ambas, a tá~ita complacência dos homens que minimizam estas.~ r d~ e a coisa~ denunciada, até nas lamentações, trágicas ou cômicas. Desta vez,
,,:'histórias de mulher", rapidamente relegadas ao segundo plario I1as reivindi-
caçõ~~ dé greves nas quais elas foram o~ motivos que detonaram o movimen-
lO' l)la sublinha a resignação.das mulheres habituadas a suportar O que lhes é
I' o sindicato operário local e a CGT apóiam as opei-árias. Os jornais, os deputa- -
dos evocam estas práticas que se d:esêobre, subitamente, serem bastante gene-:
, , I

ensinado - isaoer, por sua_s próprias mães - como sendo o seu inelutável des-
tino. Nesta passividade, Madeleine Pelletier, lúcida e in,domável, via a pedra t 51 Assiin, nas c~lebres fábricas PoutiJov de Moscou, segundo estudo (inédito) de
Uopold Hairoson sobre as greves na Rússia antes da Revolução.
angular da infelicidade feminina. Se ela ces.sar: o sistema ruirá, pensava esta
simpatizante do sindicalismo de ação éliretaj;.. . .
, '
;1 52 Cf. KLE1MAN, Laurence ô ROCHEFORT,' Flore.ncc. L'EgaJjt~ el' ntarcl,~ Ú fémi"-
isme som la 1l'oisitme Républtque. Paris: Fondation Nationale dcs Scicnces
. No entanto,' na -virada do s~,culo, as n?ulheres se impacient3.!Il. Uma as- PolitiqueslJ;:ditions des Femmes, 1989; ,BARD, Christine. Les fiJles ' de Marianne.
piração geral ~o respeho de si atravessa toda la Europa operária até a longinqua Histo;re des fémjnismes. 1914-1940. Paris: Fayard, 19~5.
, ' ,
" ....
,,
452 453
Ptlrte'
Delmta

ralhadas. A opinião pública se insurge. E a direção acabará por excluir Pénaud,


Capitulo 20
após muita hesitação. Marie-Victoire Louis analisa finamente este conflito
exemplar do qual o sindicalismo assim como os historiadores tiveram tendên- .. I
ciá de apagar o ~sencia1, por te~em muita dificuldade em admitir a realidade
e a ilegitimidade da violência sexual exercida sobre as mulheres.
/' ,
Dimensão maiór da história das relações 'e ntre os sexos, a dominação
dos homens sobre as mullieres, relação de forças desiguais, expressa-se fre-
.qüenteinente pela violência. O processo de civilização a faz recuar
, sem aboli-.
,
PÚBLICO, PRIVADO E RELAÇOES
,
la, tornando-a mais sutil e mais s~mb61ica. SUDsistem, entretanto, grandes ex-
ENTRE OS SEXOS"
plosões de uma violência cüreta e sem dissimulação, se,mpre pronta a ressurgir, "' •
com a tranqüila segurança do direito'de poder dispor livremente do corpo 'do
Outro, este corpo que 'lhe pertence. Esta obra nos dá .um exemplo pr6ximo~ '
Have~'ia muitos outros, sem dúvi~a. Neste fim de século atormentado, em que , Se Maria Antonieta f~i uma rainha escandalosa, não foi somente por-
os equillbrios e as regulações pacientemente elaborados parecem ser questio- que ela traía o 'Rei (a Corte já vira outras e não era tão pudica), mas sim por-
nados em toda á parie, as falhas das desigualdades - ~esill.ualdade entre os, se- que ela mostrava novas concepções das relações do público
, , e do privado. Por
xos e todas as outras - podem, ainda e sempre, en'trar em jogo. Como se fosse ,,!m lado, esta mulher, estran geira ainda por cima, intervit~a nos negÓcios do
necessário inventar tudo; a felicidade, a liberdade e o amor. Reino. Po~ outro lado, ela exigia. um espaço próprio~ subtraído ao blhar de to-
O belo livro de Marie-Victoire Louis dissipa um a parte da sOJnbra da dos, para dedicar-_se aJi a seus prazeres, receber seus Íntimos e experimentar as
história sobre as relações entre os sexos sempre ameaçadas pelas trevas d9 si- alegrias da-amizade. Os "pequenos apartamentos" ou a aldeia eram um a ma-
lêncio noturno. neira de inscrever na paisagem de Versa lhes a pretensão a um novo modo de
vida. O qu e lh~ v~le a admoestação indignada de Madan~ Campan:""~Os reis
não têm interior; as rainhas não têm nein sala ,de banhos nem budoar. B uma
verdade que não se saberia COm O penetrar neles'~S} No século 18, um,! nova
idéia dá felicidade>4 consubstanciaI ?t co nstituição de uma privacy surge, prin-
, cipalmente na burguesia que é.influenciada pelas modas inglesas. Dar a ira de
Madame Campan, hostil justamente ao aburguesamento da Monarquia: o uso
do budoar encarna , a seus olhos, a perversão feminina."
/ i

., ... Public. privé et rapports oe sues. In: CH EVALLIER. Jacques {Di r.). PublidPr;l'é:
,Paris: PUF. 1995. p. 6S·73.... ,Publicaçâo do CURAPP (Ce~tre universitaire de
recherches administratives et politíques de Picardie) .
(
53 REVEL. J. Marie·Antoinette. In: DictionnairetCritique de la Révolution française.
Sous la direction de F. Furet et M. Owuf. Paris: Flanunarion, 1989. p. 286-298.
54 MAUZI, R. L'{dú du bonheur dans la linúature et la pensét fmnçaiSe au XVllre siê·
cle. Paris: A. Cotin , 1979; edição no formato de bolso. Albin Michel. 1994.
-.. 55 L1LLEY, E. The 'lame of tlle Boudoir. Gommuniq.tion au colloque de 'Ia Society for
"
lhe Study of French History, 8l""i5tol, :wril 1994.

I' -
I: "' 454 <
455

l
Pnrl' .5 ·1 Cllpftlllo 20
[)d.mn Público, pri~, rr~ tntrt O I _ I

PÚBLICO/PRIVADO: UMA FRONTEIRA VARIÁVEL tória da vida pflvada. que ela dedicou ao modelo ~nglês do século 19,-HaU des ..
creve a evolução das maneiras de morar de uma famma de comerciantes·de te-
Se o privado. nQ sentido de seqeto Xatos, gestos, espaço... ), segundo os / " cidos d~' Manchester em três gerações e as variações concomitantes da casa,
antropólogos (Barrington Moore, por exemplc:t),~ s,W'pre existiu. se, ao me~. I dos papéis masculinos/femininos e de suas representações. Bonnie Smith se-
nos, encontramos seus tr..aços em todas as c.ulturas, seu conteúdo é, no enian- guiu um caminho idêntico a respeito das burguesas do Norte da França." Du-
to, eÍninentemente variáVel no tempo e no espaço. Norber~ Elias mostrou rante a primeira metade do sé~ulo, as esposas dos industriais (do setor têxtil I
corno as sociedades ocidentais haviam construIdo, desde a Renascença, sua á- ' sobretudo) permanecem no interior da fábrica d~ qual, freqüentemente. elas ..
vilidade pe.lo distanciamento do corpo e de suas funções co tidianas. A leitura fazem uma parte da contabilidade e acompanham a gestão. Depois de 1860, a
de Kafka, que se exasper~ com qualquer proximidade fIsica - "eu nã~po sso su- e~presa familiar cede lugar às sociedades capitalistas; patrões e diretores vão
portar a vida c?mum das pessoas': esçreve ele a Felice Bauer - sugere, ao ex-
tremo, como a' separação individual foi efetiva. 51
, - I Ip-0rar fora da fábriça. Assim, em Roubaix, ricas mansões chamadas geraJmen- , '
.--te de "castelos", são cõnstruida$ 30 longo dQ bulevar de Paris. Produção e do-
Na verdad.e, mais do que uma linha, 2 prjyado é uma zona deLimitad" méstico são, dorava_nte, nitidamente cüstintos. As donas-de-casa dirigem a·sua
por d,'mS fmntejrM: de um lado, a intimidade do eu, a ~ma ra escura, a forta- g~nte. ·seus filhos e a criadagem, construindo uma cultura da reprodução mui-
leza do foro (forte) interior; de outro· lado, os territórios do público e do pri- to coerente que dá seu sentido ao menor detalhe (a costura. por exemplo). Nas
vado aos quais O século 19 se esforçou para dar a consistência .de esferas, por duas margens do Mar do Nort~, católica.e protesfante, edifica-se um modelo
razõeS e com modalidades variáveis nos diferentes palses europeus. Na Grã- burguês do trabalho e do lar cujas virtudes são encarnadas pelas mulheres.
Bretan~a, os fatores econômicOs e a ~ociedade mercantil levam a distinguir o Na França, os fatores políticos contam mais, em função do maior peso
doméstico e o consumo da produção e do trabalho. A separação entre o caNa- da Mónarquia e da experiência revoluàonária. No que se refere às relações do
ge e a f<tbrica inscreve no espaço cotidiano a sua complementaridãde.,/l.s pes- púbii~o e do privado, esta exPeriência foi crucial e aliás contraditória: Lynn
quhas de Leonor Davidof( e de Catherine Hall colocaram em evidência a or- Hunt mostrou-o muito bem. 60 E preciso, de resto. distinguir seus efeitos a cur-
ganiz.'ção espacial dos modos de vida. No capítulo ("Sweet Home"),.'" da flis- to e a longo prazo. De imediato, o privado é o egoismo da elite, o mal, em "
sumà. Suspe,ita-se qu'e " interess~s privados ou particul<\res" contrariem a mu-
56 M.OORE, B.P~j~~qcy.. Princeton: Prmceton University Press, 1984. ' dança e abriguem a intriga e o complô. Dal uma vigilância aumentada que é
57 F. Kafka, Lettres à Eelice, 7 "de abril de 1913. em CEuvres completes. Paris: GaUimard, I
incumbência de todos os tidad~os. 'Para Marat, que se considera o "olho" da
La Pl~iade , 1989. , "IV, p. 435. Ele evoca com r~puls~:~a deso rdem que existe lá , em ! Revolução, a denúncia é um d~·ver sagrado. Somente a "ida pública vale que
um apartamento de vilegiatura onde Ul'Jl pedaço.de cl}umaço de algodão fic.1- joga-
dó ao Iªi:lo de um prato. onde se pode ver sobre os leitos uma repugnante mistura ! se consagre a ela. Ela postula a transparência sonhada por Rousseau: "Se eu ti-
,de todás as coisas
, possfveis~ onde minha segunda irmã está deitada em uma cama, " " , - vesse que escolher o lugar de meu nascimento:' dizia ele,.. "eu tecia escolhido
pois tem uma ligeira angina, e seu marido está junto a ela e a chama, brinC3ndo e um. Estado onde todos, os,particulares se co nhecessem entre si, as manobras
seriamente, de "meu t~sour07 e "meu tudo", onde o menino pequeno, como ~
.
obscuras do vício. nem a modéstia da virtude-não pudessem fugir dos olh~-
inevitável, faz suas nece:ssidades no chllo em pleno meio do quarto, enquanto se
brinca com ~Ie•. onde ~s duas emprega-das se esforçam para fazer todas as tarefas , res e 'd~ julgamento ~o público", abonador da consciência m~ral. O que su-
imagináveis, onde a gordura de figado de ganso é passada em vosso pão e vos põe proximidaae, vizinhança. vida cotidiana: um modelo virtuoso de repúbli-
escorre pelas mãos .....
~
58 DAV1~OFF, L.; J:iALL. C. Family Fortlltlf~s.1e" (J~d Womell of the Englislr Middle-
c.
, e lass, 1780-1850. London: Hutchinson , 1,987t HAlL, Sweet Home. In: Histoirede
la vie privée. So,us la direction··de M. Pe~rot. Paris: Seuil, 1987. t. IV: De la J 59 SM ITH, B. Les Bourgeoises dll Nord. Paris: Perrin. 1989.
60 Hunt. L. Révolution française et vie privée. In: Hisrdire de la vie privü. 'Sow la
Révollltion à la grande guerre. p. 53-87.
. ~
1
" \. direction de M. Perrot. Paris: Seuil,1987. t.IV, p. ~1-53.
. '

,,
456 · 457
Part~ 5 Ctlpitlllo20
DefxltCl Público, pri'~ldo e rtlflç.)(J ~l!lre 0$ fQfJ$

ca aldeã. Em um espaço-tempó renovndo, os· homens da' Revolução preten- transm issão dos patrimônios. Célu la de reprodução, ela engendra os filhos,
,dem cria.r um hómem novo,.por meio de uma peda'gogia do signo e. do gesto aos qu ais dá um a primeira socializa.ção. Fiadora da consciência nacional, ela
que vai do exterior para o interior. Mas este, projeto voluntarista e relativa- ve la sobre a sua pureza ' e sua saúde. Cadinho dà consciência nacional, ela
mente,total itário chocou-se contra o caráter derris6rio dos meios e sob retu- transmite os va lores simb6licos e a mem6ria fundadora. A.'(boa famma" é o
do contra Q resistência dos costumes, mais obstinados do que a Lei (assim, fundamento do Estado: dai a atenção crescente que ele lhe dá e sua interven-
nunca o Decadi substituiu o Domingo, nunca o novo calendári? conseguiu ção em caso de incapacidade das famílias pobres).as mais controladas. A fa-
impor-se). mília enfim garante a mediação entre indivíduo, sociedade civil e Estado,
I

~
A mais longo prazo, a Revolução acentua a de6tli~Q das esferas pÚbli- ("grno sublinha HegeJ (Pril1dpios da Filosofia do Direito, ~821 ). Por sua natu-
cU privada, herança das Luzes, valoriza a família e diferencia os papéis sexuais reza dual, a família instaura a comunicação entre o pÚblico e o privado, pois
ao opor homens políticos e mulheres domésticas (e, no ental;to, chamadas de ela pertence aos doi s.
. cidadãs) . Por. outro lado, ao deClarar a inviolabilidade do domicilio, onde é
. proibid'o dar buscas se m mandado (1 79 1) e durante a no ite (1795), ao tomar
medidas para a proteção da correspondência privada, segundo Mirabeau 'co úl- - DAS "ESFERAS~> AOS SEXOS
timo asilo da liberdaae", a Revolução·desenha os limites de uma privacy e esbo-
çá o embrião de um liabeas corpus. Co mo se o poderio do Estado e a p roteção A distinção do pÚblico e do privado é, ao mesmo tempo, uma forma de ~
dos iriaividuos c;am inhassem juntos, no jogo sutil d,as interações suscitadas . / governabilidade e de racionalização da sociedade no século 19. Em linhas ge-
pela influência aumentada do poder. Se ~crescep,tarmos a isto a destruição dos- rais, as "esferas" são pensadas co mo equivalentes dos sexos e jamais a divisão
corpos inte rm ediários - " Entre· o Estado e os indivíduos, deve haver apenas o sexual dos papéis. das tarefas e dos espaços foi levada tão longe. Aos homens,
vazio': segundo Pétion - pode~se medir a amplitude do canteiro político que o público. cujo centro é a política. Às mulheres, o privado, cujo coração é for·
esperava os organizadores da Cidade. rnado pelo doméstico e a casa. Sobre este ponto, pautá diferença entre os re-
Co mo rec~nstruir um vínculo social neste ca mpo devastado? As respos- volucionários e seus sucesso res. '(As funções privadas às quais são destinadas as
tas são evidentemente diversas e fazem toda a riqueza do pensamento e da
muUleres pela própria Na tureza, estão ligadas à ordem geral da sociedade", diz
ação politica no século 19. Definir as rela ções entre Estado e sõciedade civil,
Amar, no outono de 1793; "Elas não devem sair de sua famíHa para imiscuir-
. ~ ~_ entre coletivo e individual, torna-se o problema maior para o qual soqalistas . . ~
. se nos negócios do governo". Com exceção de Condorce t, que reivi ndica rui-
lCDr\«r~e liberais não propõem as.mesmas soluções. Entr'etanto, três traços os aproxi- r
u().\\S\tó ma~l.~ lo ~enos forma.~I~e'~te: a desc~n~ança pelo ,indjyiduO, ,.a, cop6aÓça '.Da . dosamente o direi.to de vo to e a qualiddde de cidadãs por inteiro ao menos

t
r
~
t . .~, O 1I1teresse oela dlst1l1cão do publicO e do PUxado co mo fator de raelO- _'
~\S J1a-'jdJde. Para a solidão do individuo, os socialistas - como Pierre Leroux e
George Sand - opõem a solidariedade com wna consciên cia cada vez mais fo r-
te.da unid;de do ;~corpo" sociaf:Ao seu isola.mento, ~ator de de~potism o"os li-
para as mulhere~ "esclarecidas", os homens da Revolu.ção, jacobinos ou enfure-
cidos, recusam ~s mulheres o direito de voto e-até mesmo o direito à palavra
(os clubes de mulheres são fechados em novembro de 1793) e à escrita. Os pia-
nos de educação são geralmente sexistas, ligam as moças ao fuso e à roda, li -
mitando a sua escolarização ao estritamente necessá rio: Pois as moças perten-
berais propõem o contragolpe da sociabilidade (co mo Tocqueville).
Sobre a importância da famÚia, instância de regulaç.ão fundame~tal, cem a suas mães, encarregadas de sua preparação para seu intransponível fu-
há unanimidade. Atamo da sociedade c:ivil~ela é a administr,!1dora dos "inte- turo: a família. Em 1801, Sylvain Maréchal- um babouvista radical- apresen-
resses privados", cuj a boa manutenção é ess~ncial para a marcha dos Es tados. ' ta um projeto de lei ('fazendo a proibiçdo dp ensino da leitura para as mlllheres'~
Pedra angular da produção, ela garante J., funcionamento eco nômico e a . . . si ntomátko em seu delírio,
.'

458 459
1-· - .
•• f'un"
Dc/M ,l'.J ,
CQP(IUIQ 20
PUblio:b, pnwuk, n:14r6n cnlrr '" u:»J1

•• Com variantes. o século 19 repete este duplo disc urso da i~ co mpe­ vantagem 'da positi.vidade e do elogio. Enquanto tal. ele seduzia as mulherçs e

•• tência pública e sob retudo polftica das mulheres e de sua adequação à fam(-
lia, sua vocação natural. Dois grand.es tipos de argum entos cimentam este
raciocín io: o argum ento da natureza e o da IltiIidaªe SOcial. Thomas La-
. suscitava seu consentimento: Ele ilustra a afirmação de .Michel, Foucault se-
gundo a qual a governabilidade contemporânea repousa na persu.asão tanto ou
mais do que na repressão e na negação. •

•• queur '(La Fabrique dll se;ce, 1§92)'1 m os trou rece ntem ente como efetuo u -se,
a partir do s~culo Uf', . .éom o dese nvolvi mento da biologia e da medicina,
Numerosos exe1llplos mostrariam como estes principios erà m efetivos
e'modelavam o cotidiano. Eis dois deles: a organizaçãó ao espaço e a clistribui-

.'
uma "s exualizaçã~" do gên ero, pensado, até então, em termos de identidade


ção da palavra. na verdade I11wto ligadas.
ontológ ica e cultural mu~to mais do que física, O gênero, dora.v ante, to rna-
se sexo. Homen s e mulheres são jdentificados co m seu sexo; as mulh eres são
o ESPAÇO E A PALAVRA
•• condenada s ao seu, ,a nco radas em s~us corpos de mulher chegando a ser po r
eles presas cativas. f:sta biologjzação da diferença entre Os sexos. es ta SCX II3-
\WIção do gênero têm implicacões te6 rica s e po lftj cas co nsid edveis. Por Ao princípio geral da sexuali zação dos espaçõs, o sécul o 19 acrescen-

•• um lado, elas traze~ latentes novas percepções de si. Por,o utro lado, confe-
rem uma base, um.fu ndamen to naturalista à teoria das esferas. Esta natura-
\
ta sua preocupação política - e moral - de segrega ção. Ele gosta dos lugares
mistos apenas quando são dosados e regulamentado s. As mulheres se reti-
ram
•• d o~ locais do poder: Parlamentos, Co rte~ de Justiça, Bolsa lhes são, a
lização das inuJhere's. presas a seus co rpo s, à sua função reprodutora mater- '1
na e doméstica, e excluidas da cidadania poUtica. em nome aesta m esma partir de então, fechados ou de difícil acesso. Flora Tristan em tondres,
identidade, traz uma base biológica ao di scurso paralelo e simultâneo da George Sana em Paris, só penetram na Câmara dos Comuns ou na Câmara

•• utilidade social.
Muito 11?aiS empregado. funcio nal e de tendênci a progressista, este-dis-
curso não tem a pretensão de possuir um fundamento fisico mas de ~
dos Deputados travestidas e acompanhadas. Os processos poBticos excluem
as mulheres. Os do Trib'un al do Júri, que arguem a emotividade feminina,
tentam , pelo menos, iso lá-las no fundo da sala de a~diê(lcia. A Bolsa fecha-

•• harmoniosamente co mpetências na complementaridade dos dois sexos para o


~ior bem da sociedade inteira. Discurso do qual Michelet é um dos teno res,
lhes suas pb rtas. sob retud o a partir do Segundo Império que as proíbe de
especular; e VaUes desc reve o espetáculo, lamentável a seus olhos. das velhas

•• celçbra habitui lmente as mulheres, suas p9 tencialidades e suas qualidades que


se 9-eve mobilizar pé1a causa' comum. Mais modernoie igualitário em aparên-
ç
operadoras da..Bolsa agarradas às grades por sua paixão. Até mesmo. a Bi-
bli~teca Real (Nado nal) é reservaaa aos homens, assim como a maior par-

•••
cia, ele igualmente redutor p9I:que continua a supor a.idéia de ,uma nature- te da s bibliotecas públicas. Elas são voltadas para as professoras primária,
za fem inina, chave de qualidades inatas que se deve,explorar. Ele coloca tam- -- durante o pef1odo de seus exames e Maxime Ducamp diverte-se com esta
/ . :
-bérn, de IJl.~eira ,m!lis sutil, a questão da existência das identidades sexuadas «quinzena virginal'~ O acesso ao livro conserva algo de sagrado e de ma scu- ~'

.,.!
cujo i aráter, histórica e culturalmenre construído, foi mostrado pela reflexão lino, Co mo a leitura do jornal, do qu ãl as mulheres espiam os ''' rodapés'' e os
femi~ista co ntemporâneéf. 61 Mas o dis<::urso da utilidade sócial tinha a irnensa romances de folh etim. .. ' . .-

• . ,',
61 T. Laqueur. Maídng Sa. Body and Gtmdu rom the Greeks to Freud 1990; tr. france-
sa .. La Fabrique du Stu. Essai sur le-(orps ee le gerire erl. ccidetlt. Paris: Gallimard,
., O mesmo ocorre co m os lótais de sociabilidade. Dorothy Thompson
mostrou cort;lo, a pa~tir do primeiro terç'o do sécul<? 19, as mulheres se haviam
progressivamente afastado e finalmente retirado dos ;l1ns e dos pubs britâni-
j
, i. cos,~sob a influência do Ca rtismo que as reduz ao silêncio nos C9mícios antes

•.,
, 1992. •


' 62 PERROT, M. J~entité. égalité. i:ljfference. Lje regard de (' H istoire. ~: La Pince das de eliminar sua prese nça. Mais tardiamente e em. um menor grau. o processo
f~m'lIes. Colloque tenu ali Sén3t, mars 1 99~. Paris: L..'l Dtcouverte, 1995. p. 39:57.
, , é i dên tico na França, nos cafés e cabarés.·Quanto mai s indUstrial é a região,
.'

••
"

460 '. 461


.\
PQrtI .5 C"p(' ,j!O 10
Dcbat~ Priblico, privado, I't!/a(;tks '111ft 0$ UXO$

mais eles são masculinos, como observou Jacqueline Lalouette: os cafés bretões são locais de cruzamentos de influências, máquinas complicadas cujos de-
são mais mistos do que os botequins da Flandres onde, no fim do século 19, miurgos são os ar~itetos e que expressam ~s relações variá'veis do público e
uma mulher "honesta" penetra se'm hesitação. A cultura do café popular, bem do privado, dos homens e das mulheres.toS '

como a do clube ou elo circulo burguês6J é nitidamente masculina. Nestes Ju- A organização do público e do privado passa por dispositivos espaciais
gares, às vezes feChados, mas" d~ conteúdo público - fala-se ali de política, da cuja importância nas tecnologias do poder 'foi sublinhada por Michel Pou-
atualidad~.,. - as ~ulhê~~s não têm lugar. cault." Seu exame é, conseqüentemente, de imediato revelador e sugestivo.
. As mulheres têm seus próprios lugares: os mercados, os lavadouros, as Mas poderíamos. tomar outros exemplos mais co mplexos por serem, à primei-
lojas, mais tarde, as lojas d~ departamentos; mas, em suma, muito. poucos lu- ra vista ao menos, mais imateriais. Çomo é o caso da 'palavra das mulheres." A
ga res ide sociabilidade própria, além das igrejas que tentam , ao contrário, ~co­ voz das mulheres é um m"odo de expressão e de regulação das sociedades tra-
lliê-Ias. Associações devotas ou caritativas deliberadamente recrutaram moças dicionais, em que predomina a oral idade, O incessante murmúrio das mulhe-
e mulheres Ul11 tanto abandonadas pelas instâncias públicas. Certamente nem . res acompanha, em surdina, a .Jida cotidiana. Ele exerce múltip)!1s fu nções: de
todo o públ~co é masculino no espaço da cidade onde circulam as mulheres, e transmissão e de controle, de troca e de boato, mas ele pertence à vertel)te pri· .
cada vez mais. Num erosos locais são mistos ou neutros; existem zonas de in- vada das coisas, da ordem do coletivo e do informal. màis uma tagarelice d-a
te~'ferências; locais de encontros organizados também, como os bailes. M,as a qual se teme o barulho e os excessos: "Estas tagarelices de mulheres que se es-
diferenciação sexual dos,espaços e o caráter não misto continuam a ser o mo- cut~ cacarejar através das portas, não acabarão por se calar?'" (George Sand).
delo de organização principal, em ação na escola, bem como nas saídas das Pois a inutilidade d. tagarelice provoca o desejo do silêncio: forma dissimula-
fábricas ou dos escritórios. da de negação.6I Daí o esforço das précieuses* e das proprietárias dos salões da
A casa é, com certeza, o lugar das mulh~res, mas também o da famUia e Europa das Luzes - de.Paris a Berlim, de Madame de Deffand a Rabel Varnha-
fro nteiras complexas reguJamentam~ a sua circul ação e a clistribuição de suas gen - para dominar a arte da conversação, esta forma de possessão do mundo
peças. Patrões e empregados, pais ~ filhos, marido e mulher cruzam-se ali. A '.
pela palavra igualitária," Madame de Stael terá, provavelmente, saudade dela .
relação público/privado insinua-se nela: a sala de visitas, que Habermas vê por toda a sua vida.
como o epicentro da "publicid~de" burguesa,'" diferencia-se -da sala de jantar
das refeições familiares e mais ainda dos quartos onde desenvolvem-se a co n-
65 ELES, M.; DEBARRE. Ao Arcltitcctures dt la vie privá. MaisoftS.d nlenta1ir~s..xVlT'­
jugalidade e a jntimidade. No _final das contas, a casa burguesa no decorrer do
XIX' siêcles. Bruxelles: AAM, 1989;"L'/m1t/ltiotl de I'IJ~bjtaJion 1/Ioderne, Paris. 1880-
século , 19 concede cada vez mais aos homens; escritório, bilhar, .sala pa~a fu- 1914, Paris: Hazan. 1995.
r:tar, márcam seu território como se ,fosse necessário escapar da onipresença 66 FOUCAULT, M. Espace. ~ savoir et pouvoir. In: ___ Dits ef Écrits. Paris: o

das mulheres: Elas, entretanto, têm pouco espaço próprio. notadamente para Gallimard , 1994. IV, 1980- 1988, p. 270-285. . ,

o ·trabalpo e a escrita. Donde a'reivinclicação de Virgin a Woolf para' ter u um 67 PERROT, M, La parole publique des femmes. Ln: Nario llalismes, Fém;nisllics,
Exc1usions - Mtlanges en n,o,meu': de Rira Thalmann. Sous la directien de I. Crips
quarto para si", condição 'para a atividade intelectual. Os trabalhos de Moni- et aI. Paris: Pete[ Lans. 1994. p. 46 1-468.
, que Eleb mostram que a moradia doméstic~ e singularmente a casa burguesa 68 FRAlSSE, G. Les bavardes. Féminism e et moralisme ()..979). In: l...fl Raisotl des
lemma. Pa"ris: Plon, 1992, p. 114·136. I

63 AGULHON, M. te arde dam laFranct'boll;g~i.se.. i810-1848. Paris: Ao CQlin, Cahiers


,.. Mulheres que, no skulo 17, adotaram uma atitude nova e refinada com rdação'aos
sentimentos e uma linguagem elaborada. (N.T.)
des AnnaJes, 19n; PERROT, M. -l-e gen~ de ld ville. Co".".unicariorlS, 65, 1997.
. .. I
69 FUMAROLI, M. La conversation . In: Us Lieux de mimoire. Sous.la direction de
64 HA:BERMAS, J. L'Espace publiCo 1962. Paris: Payot, 1978.
I "
Pierre N~ ~a. Paris: G,a llimard, 1992. t. 1II: Les France, v. 2: Traditions~p. 679-743.

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\ Públin1, priYddo, re~ mtre OI JaO'

o que é recusado às mulheres é a palavra pública. Sobre ela pesa uma As brechas se produziram em outros lugares: por um lado, atravéS" das
dupla proibição, cidadã e religiosa. Pitágoras e São Paulo dizem quase a mes- p'ro6ssões da palavra. O acesso de }eanne , Chauvin à profissão de, advogada e
ma coisa: "Que as mulheres se calem nas' assembléias" (Eplstola ao:s COrlHtiOS). ao exerdcio da advocacia (foi necessário umá lei: 30 de junh o de 1899) abre
Elas }?odiam profetizar, ~'ãO pregar; ser mediadoras de De us, não seu n"linislro, uma nova era. Por outro lado, o feminismo foi, sob a Terceira República,'uma '
S50 necessárias as f~lha~, heresias ou despertar protestante, ocasiões de prega~ verdadeira tribuna, sobretudo peJos congressos, que desempenharam um pa-
ções femininas que"rr;arcaraffi igualmente o saint-simonismo. Mas se trata pei eficaz de propedêutica da palavra pública das rnulberes.·
sempre de um palavIa não convidada, jorrada das fratUIas e das margens. Pois Outras modificações afetaram ainda a posição dos s~os em suas rela-
o poder. mesmo herético. teme a palavra das mulheres. Ele fechou-lhes a boca çôes com O público e com o privado. De maneira geral, o p(ivado .foi revalori-
rapidamente. Restaurar a orden:! é impor silêncio às mullieres. O que faz a Re- zado~, com ele, a força dos costume~ e a das mulheres. Alnda.mais que, por t~­
volução ao expulsa;' as cidadãs das tribu nas da Convenção, ao fecha/seus clu- rem sido solicitadas para .inte~vir no campo da filantropia, elas desenvolv.e ram
bes e ao instaurar uma arte orat.6ri~ inspirada na Rep~blica Romana e marca- .. ali uma "maternjda~e socia1" que fazia parecer mais absu rda a sua exclusão do
da com o selo da virilidade triunfante. O órgão das mulheres estava alj , neces- poli ti co. Duas guerras e quase meio século seriam necessários para sua con-
sariamente-desJocado. quista do direito. de sufrágio. E, p'rovavelmente, diversas décadas para a reali-
. O século 19 redobra as precauções. Até mesmo a conversa é esvaziada zação de uma igualdade efetiva.
do que fizera a sua força. e seu charme. Fim dos salões da Luzes onde as donas- A articulação do público e do privado é um dos problemas maiores das
da-casa abordavam, sqn cliscriminação, com seus hóspedes, os assuntos mais sociedades democráticas. Ela está no centro da teoria política bem 'como da
graves. Doravante, a políqca tornou-se um assunto sério demais para ser tra- . vida. cotidiana. O cruzamento. com a diferença entre os sexos é uma man eira
tado no salão: é Guizot qUFffi o diz. 70 As. mulheres "adequadas" não falam de ,de penetrar em seu funcionamento e comp reender seus deslocamentQs.
poUticai é inconveniente e mal-educado. Também, se restam ainda alguns
grandes salões literários, os salões políticos são, porém, muito mais rarós e, en-
tão, exclue~ as mulheres, como O fez a co'ndessa Arcopati-visconti, a conselho
de Gatnbetta.
A de~peito de algumas aberturas, socialismo e movimento operário (

mostraram-se poti~o preocupados de filzer as mul heres subirem à tribunà.-


Adélai"de Popp, em La jelmesse d'lII!e ouvrie:€ (19~9)/1 contou sua lenta e difi- "\

di penetração no seio de um partido socialista austriáco especialmente misó--


- gin0j Ela acaba por se impor como oradora !los comícios operários. não sem
intrigar muito seus interlocutores. Os mineiros de Styrie a viam como uma ar-
quiduquesa e os tecelães diziam que ela era provavelmente ur:n homem disfar-
çado de mulher: "Pois sOmente os homens sabem falar assim'~ Isso comprova
'que os estereótipos têm. vida longa. ,
,
70 ROSANVAliON~ P. Lt Moment Guizot. ~ris: GaUimard, 1983.
71 ,popp! A. La Jeutlesse d'une ollvrilre ( l ~) . Paris: Maspe-;'o, 1979. Tr. fr.
'-
'".

i 464 .' .' ' 465


.....

Capítulo 21
I

/
-'
IDENTIDADE, IGUALDADE,. DIFERENÇA:
O OLHAR DA HISTORIA" .

Estes três termos que são o objeto de nosso colóquio não ,constituem al-
ternativas. Ainda que, para a comodidade da exposição, nós possamos distin-
gui-los, esta disti nção é um tanto artificial. Eles devem ser tomados juntos: "A
identidade dos sexos e sua diferença foram pensadas em função uma da outra.
Esta mútua dependência poderia ser o ponto de partidá de um trabalho filosó-
,fico", escreve Genevieve Fraísse (199 1, p. 21) . A história poderia retomar este
programa por sua conta. E o vinculo entre estes três termos é, em suma, a no-
ção de Gender, definido co mo "construção social e culturâl da a.iferença entre
os sexos", Esta noção, nascida nos Estados Unidos, e atualmente às vezes ques-"
, tionada, penetrou as pesquisas históricas francesas sobre as mulheres, apesar,
ou talvez por causa, das dificuldades de tradução que autorizam uma certa fle·
~
xibilidade. Para nós, isto significa"que a história dita das. mulheres apenas en-
co ntra todo o seu sentido na análise, na desconstIuçãO da di~erença entre os se-
., xos, na relação com o outro sexo. Somos muitas - e muitos ~ apensar que o gê-
nero, categoria do' pensamento e da cultura, precede o sexo e o modula (HUR-
!- TIG, KAIL e, ROUCH, 1991), que o corpo não é O primeirõ dado. O corpo tem

'/ I .',
uma história: ele é representação e lugar de 'poder, como mostraram Michel
Foucault (1976. ·19~4)~, recentemente, Thomas l;lqueur (1992). E a identida.-

li- Identité, égalité, différenc:e. Le regard de j'Histoire. In: Mission de coordination de


la quatrieme con(érence mondiale S\lr les femmes (Hélene Gisserot, Anoie
Labourie-Raca~ edit.) La Place desfenltlles. Les enjellX de I'identité et de l'éga/ité au
, regard des sciences soci~/e$. Paris: Ephesia: La D«ouverte, 1995. p. 39-56.

'.
Ii'- _.
Ii 467
,
L
p"rt~ S I C#prtll/o 21
Idtlltl/I"d~, igualdade, djfort"fll:" olhar da Hilrdrill
Dtl"lttf ~

de ta'mbém não é estabelecida definitivamente; ela não é cau~, mas "efeito ins- . de vista refutado recentemente por Mona Ozouf, que afirma que se
pode - se deve - ler as palavras de mulheres para compreender sua ex-
tável e jamais garantido, de uma vez por todas. de ul'n processo de enunciação
....de uma diferença cultural" (SCOTT, 1994, p. 29). Até mesmo a psicanálise, que
, _pressão autÔnoma (OZO}fF, 1995) .
se considera freqUentemente ou às vezes corno a última explicação da diferen- r Não há so mente o poder.. A cultura não é somente o produto de uma
ça das identidades sexua.is, é um saber produzido por esta própria diferença.7J relação de poder) como afirmávamos em um artigo coletivo publicado
As noções de «partiUía~, fronteiras, conflitos, composição I decomposição I re- nos AlLnales (DAU PHIN, março-abril 1986), afU'mação que suscitara,as
composição':' ~tc., nos parecem, nesta análise, fundamentais, mais do que a lo- .(
vivas reações de alguns de nossos colegas etn6Iogos!7) Tudo isto merece,
calização dos traços considerados como formadores da identidáde. de fato, discussão.
Dois outros pontos me Pilrecem essenciais. .
Estes paradigmas gerais co ndicionam ) ao que me pa~ece. toda a reflexão
l a) A,confrontação das teorias e das práticas, por exem plo. no que se re-
_J
e toda a pesquisa sob re os três termos ·que nos são proposlOS. Co nvém, dizer
fere à igualdade. Deste ponto de vista, eu pe\rsisto em distinguir ao men,os dois ainda o quanto, çm tal busca, os historiadores (e historiadoras) são tributários
níveis da representação, oU 'da realidade, como se queira. das outras disciplinas. Eles são devedores da antropologia, cujo pão cotidiano
2°) A _questão do poder dificilmente pode ser evitada a partir do mo- é a dift;rença entr~ os sexo.s. Devem também à,sociologia, que, muito cedo, evi-
mento em que se trata de rdações de ,Sexo. ainda que estas relações não se re- , denciou o vinculo "tr~balho.famí1.ia") indissociável quando se trata 'das mulhe-
duzam unicamente ao poder. A questão da dominaçãQ masculina como prin- res, etc. O objeto "mulheres" é necesS3riam~nte plural.. multiforme, plúridisci-
cípio o.rganizador do pensamento, da sociedade e da história'é \egura~ente o . plina!; ele destrói as divisões tradicionais dQ saber, tão fortes entre n6s, em
que ca usa problema, por diversas razões. Inicialmente, o risco de transferência uma. organi~çâo acadêmica que elas tetanizam como um ferrolho maior ao
de uma ca tegoria de análise: o sexo no lugar da dasse, com todas assimplifi- desenvolvimento das pesquisas no se tor que nos interessa. Sob este ângulo ins-
cações que isto comporta. Em seguida, o risco de recorrer a uma invariante, ao titucional, não avançamos muito nos últimos dez anos (colóquio de Toulouse,
passo que nós recusamo.s qualquer fixismo e fazemos da diferença entre os se- dezembro de 198-2; ATP '''Femmes'' no CNRS, 1983-1989). Dai O interesse des~
xos - do gênero - uma perpétua construção. "Tão longe quanto se possa olhar te encontro que nos permite ter uma medida das coisas e afirmar nossa exis-
no horizonte"'d~ história, vê·se apenas a dom}nação masculina): havíamos es- tência. O que nos une neste campo, quaisquer que sejam as -nossas divergên-
crito na introdução da Histoire des f$1nmes en Occident (História das mulheres - . ciélS, normais e prQdutivas, de 'interpretação, parece-me mais forte do que
;10 Ocidente) (HDFO, 1990- 1992). Rejeitamos, por exe mplo, a teoria do ma- aq uil o que nos divide. ~

triarcado e mostramos c~mo ela havia sido elaborada 'pela ideoiogia do sécu'7 _ . 'Te.nten'Íos. en tão, responder ao programa que nos é propostp e cujos te-'
lo 19 i (GÉORGOUDl ; 1990, p_ 477-493) _ Continu~rei fiel a esta f9rmulação: nias, ainda u.l11,a vez. respondem uns aos outros e se entrelaçam, como os :na-
Ven?'o-n'ieÍhor, talvez, as obJeções opostas a n6s. A saber: ., " tivos de uma ar'te da fuga. 'Eu usa rei principalmente referências da hist6ria ,mo~
derna e contemporânea.
Se o pensamenlõ é radi cal~nente dominado pelos homens, então as
mulheres não podem ~em mesmo pensar sua própria opressão e ~scre­
ver. sua história (Bourdieu, em DUBY;
, PERROT, 1993, p_ 66), ponto .
-,

72 MA questão "da dif~nnç:l. entre oss~xos'~Jo ~ nem:l. da identidade nem a de s~as , 73 Como ti reação de Agnes Fine (1984. p,lSS·189); ver em particular sua conclusão
em que ela distingue dois 'nlveis de análise: ó'·tempo social e o tempd d~ simbólica
diferenças [... J mas a do ~nc<"nlro sexu~l e de seu confli to,logo~a das relaçOes
sexual.
"xu3d3S~ (FRA1SSE, 1991, p_ 9). ' ,

468 ,. , 469
"'
PaNe 5 Úlp{wlo 21
Deba,es 1rlCMtit/ndr, igunldnd.., diformra; o ,,/ll(If da HiI16 ,'ia
(

DA IDENTIDADE mulheres, "forma privilegiada de,esistência à ocidentalização brutal e à invasão


dos costumes estrangeiros". Rita Thalmann (1982) e Claudia Koqn z (! 989) de-
"I
É talvez o tema da identidade que foi mais freqüentemente abord;ado e ram uma demonstração análoga para o nacional-socialismo. Sob uma forma
que se'. revelá o mais rico. Pois _a definição do "masculino/feminino" é geral- mais benigna e não menos in; idiosa, Vichy aposta na feminilidad'e: a Revoluçãp
mente - nem sempre - ~enfrai no pensamento filosófico, re ligioso, moral, as- . Nacional desenvolve luma política sistemática em direção das mulheres-mães,
sim como no discurs6 ;nédico que, ém ce~tas épocas, pretende ser o olha'r da . c~egando até a preconizar q1,;le lhes seja concedido o direito de voto, em nome.
ciência. Estes aspectos deram lugar a muitos trabalhos e estão muito presen·tes, da família (ECK, 1992). O Isl~ integrista e nacionalista de hoje, no mundo todo,
por exemplo. nos diversos volumes de HDFO. Uma das obras mais inovadoras faz .dê!. reclusão das mulheres um princípio fundamental. O véu, o antigo véu ,
a este respeito é a do americano Thomas Laqueu'r, Making Sex (La Fabrique du imposto às religiosaS no século 4° pelos Doutores da 19reja tomados pela an-
Sexe) (LAQUEUR, 1990). Situado no ~aminho de Michel Foucaull e de sua gústia das tentações da carne, é o substituto do impossível endausuramento.
História da Sexualidade, este livro mostra como se efetuou, a partir do. século " No espaço pl~blico, ele subli1~ha 'a necessária vedação das mulheres, terra dos
18, com o flo rescimento da biologia e da medicina, uma .. se..··(llal iz~çãO') do gê- ", ~ homens. A violên'cia do conflitq hoje. no Irã, na Argélia ou no Meganistão su-
n'ero que era pensado, até então, em termos de idenrláade ontol6gi~a e cultu- gere a força das questões em jogo: Por isso, quaisquer que sejam os limites da
ral muito mais do que física, a despeito da tradição de Gatiano, Doravante, o laicidade, pronta também a fazer da diferença entre os sexos uma questão de or-
gênero se faz sexo, como,o Verbo se faz carne, Homens e mulheres s,ã o identi- dem moral, ela oferece infinitamente.. mais liberdade/4 Mas, não se pode, por
ficados por se~ sexo; em particular as mulheres sã~ condenadas a ele, ancora- isso, absolvê-Ia ~ompletamente. A República: foi, na França.. muito ligadá à iden-
das em seus corpos de mulheres cheg~ndo até á ser prisioneiras deles. Assiste" ti~ade, sobretudo na esfera poUtica, em que a figu-ra da Mari~Ime era a ~ubli-
se., então, à biologização e à sexualização do gênero e' da diferença entre os se- ", mação simbólica de uma exclusão de fato (AGUL_HON, 1979, 1989).
xos. As implicações teóricas e políticas desta mutação s~.o consider'áveis, ·Por ' De n.1aneira geral, guerras"sobietudo nacionais (mas as guerras con-
um lado, ela tel'1, de forma latente,' novas maneiras de percepção de si e sobre- , temp.orâneas sempre o são), são a oportunidade de uma móbilização idelltitá-
l tudo a psicanálise (a oposição falo /útero, a definição da feminilidade em-ter- ria, parle l'ecebedora desta Ucultura de guerra" sobre a qual multiplicaram-se ,
'" mos de falta, de vazio, a "pequena diferença" que é a base do grande difere))- os estudos recentemente. Bem longe de contribuir para a'"igualdade entre os se-
I. do). Por outr01ado, ela traz uma base,. um fundamento naturalista para a teo- .
xos, como se afumou freqüentemente para a Primeira Guerra Mundjal, elas .
ria doas. esferas - o público e o privado - identificadas com os dois sexos, teoria reforçam uma definição estrita de seu papel, cuja confusão é identificacla à de-
I cadência, Tam~ém a efemi.nação dos homens foi freqüentemente invocada
pela quaJ pensadores e poJíticos tentam organizar racionalmente a socie~ade
I . do s~écqlo 19. Esta I?-aturaljzação das mulheres: presa~ a seus .c orpos, à sua f\1n- _ como uma das causas do fracasso da guerra ,de 1870, e a \ririlização das mu'U1e-
I ' Çã~ reprodutora ' mat~rna e doméstica, e excluídas 'da cidadania política em ,. ", - . . r
res· co mo um fator da guerra de 1914. Guerra que, ao colocar os homens no
nome{deSt~'mesma identidade;tra~ uma base biológica ao dücurso paralelo e fro11t e as mulheres -na retaquarda substituindo-os, mas apenas na função de
simultâneo da utilidade social. substitutas e auxiliares, restabelece a ordem do mundo. .

II" Este revestimento do gênero pelo sexo instaura 'uma biopoUtica das re-
lações entre os sexos» que está no 'c entro da modernidade. Tod~ reorgan~ção
. O colóquio de Harvàrd (HIGONNET, 1987), os trabalhos de Françoise
Thébaud (1986, 1992) sobre--" Primeira Guerra Myndial mostraram que não
•1 , " .....
I politica é acompanhada de uma red~finição ' qas identidades .sexuais. A este re~- podemos nos deiXar cai~ na armadilha das aparências que projetam a irrupção
I
peito, a cOI~stituição dos nacionalismos e do~ Estados-Nações é rica ~m ~pe­ r
\
riências. Mencionaremos alguns' ~mplos. E~eJli Varikas ( 1991) mostrou como
74 A este respeito, Mona Ozouf 0995: p. 365-374), sobre o republica;1ismo e a
a nação gi-êga, no século 19, â.p6ia-~e na ctifetenciação sexual e na reclusão das. " redução da diferença t;'fitre os sexos na educação das meninas.
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Parte' Cllp{t lll,, 2J
OdIdtts IJt tltidlltk, ifllllllhlJt. d'jem lÇQ:" oIhllr dÇl HiJl6~1l

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das Inulheres em locais (grandes fábricas metalÚIgicas, por exemplo) ou em ·ria que culminará em O Homem de Mármore do filme de Andrei Wajda
profissões (condutoras de bondes ... ) onde, até então, elas Q.ão entravam.
Com o fim da guerra, estas suplentes são solicitadas a yoltar para seus'
'.
1
(HOBSBAWM, 1978; PERROT, 1976). De maneira mais geral, as categorias so-
cialmente dominadas têm tendência a reafirmar sua identidade pelo viés da vi-
I
lares. A questão dos efeit.os que esta interfçrência provisória das identidades rilidade e da submissão das mulheres. S um traço constante do popuLisDlo,
introduz, apesar de tudo, é de outra ordem. ainda mais insidioso pOI: apresentar-se justamente como popular.
O registro ·dós~~sos sociais da.s identidades sexuais também é for~eddo. Marcar a diferença sexuàl é uma forma de poder, e o medo da indiferen-
Os trabalhos de Anne Martin-Fugier (1983 ) e de Bonnie Smilh (19.81) para a dação sexual (FRAlSSE, 1989) e~tá no cerne das crises identitárias masculinas
França, de _Ute Frevert (J 986) para a Alemanha, de Leonor Davidoff e de Ca- que quase sempre respondem às tentativas das ,:,~eres para sair de sua pró-
a
Iherine H.aU (1987) para Inglaterra Vitoriana, de Nancy Cott (1977) e de Ca, pria condenação. A crise do início deste século, ligada ao florescimento consi-
roll Smith-Rosenberg -(l986) pára os Estados Unidos, de Michela de Giorgio derável do feminismo ocidental, foi e~pecialmente viva. ~n'elise Maugue mos-
para a Itália, de Eleni Varikas (L988) para a Grécia, etc., mostraram como as trou seus aspectos francesesj Jacques Le Rider, as dimensões germânicas, em
burguesias haviam construído a identidade feminina, insistindo na utilidade torno deKarl Krauss e de Otto Weininger (MAUGUE, 1987; LE RIDER, 1982,-
social. A dona-4e-cas3, "anjo d? lar", reina sobre a identidade da êas3, do liome. 1990). Em Sexe et Caractere (1903), publicado como um testamento, pouco an-
Estas mulheres da "classe do lazer"j portadoras de distinção aristocrática, cujas tes de seu suicídio, Weininger tenta reatar com a defmição clás~ica do gênero se-
I .
funções de representação Veblen dücernira desde o infeio do século, obedeceln parado do sexo e formatado pela cultura; reafirmando a força da hierarquia do
a regras de-civilida,d~ e de mundanidade tão rigorosas quanto uma etiqueta de masculino e dQ.feminino como fundamento irredutível do pensamento-e da or-
corte, da qual elas derivam (SMITH, 1981 ): Os diktats da moda comandam sua . ganização do mundo_ Enquanto isso, o Manifesto Futurista de Marinetti (1909)
aparência, uma aparência cada vez mais interiotizada, ind,o da roupa às formas ' convida a "combater o moralismo, o feminismo" (observemos a clássica asso-
do corpo e à te.uura da pele; A exigência de beleza, a obrigação contemporâ- ciação dos dois) e "a glorificar a guerra, única higiene do mundo':
nea da magreza, geradora de anorexia e atualmente condensada no culto das Último aspeCto, e nãe menOs importahte, desta busca id~ntitária: como
top models, foram decodificadas por Denise Bernuzzi de San~ni1 ou pelo es- ..... as pr6prias mulheres, e as femu:ustas, situaram-se com relação à definição que
tudo muito foucauJtiano de Sandra Bartky sobre o cultivo do corpo feminino . lhes era imposta? As pioneiras. estas muUleres "excepc.ionais" que deslocavam as
(BERNUZZJ DE SANT'ANNA, 1994; PERROT PH., 1981; BMTKY, 1990). 'fronteiras, deyiam sempre enfrentar indi.vidualmente a susp~ita que pesava so-
No que 'se refere à classe ope,ráriã, a constru'ção de sua identidade ~pe':'­ bre a sua feminilidade: seria~ elas realmente mulheres, ...'lquelas que saíam do
rou-se sobre o modó da, virilidade, a saber: valorização da produção material . domínio de influência de seu sexo? Os casos das mulheres autoras do século 19
w

e ocultação do trabalho doméstico de reprop.uç~o, desvaloriZado na teoria_ é exe'l'plat, a estuespeito (PLANTÉ, 1989) e sobretudo o caso de George Sand,
madist, .?o yalor; exaltação das gral1des profissões viris: o mineiro, o metalúr- . (até ery;t suas hesitações. Aquela que Flaubert dizia~ ser"o (mico grande homem
gic~ ô -cavador; entusiasmO pelos esportes mais físicos - futebol, rugby, boxe": do século': fazendo a hipótese de que ela poderia ser do "terce~o sexo", tergiver-
dos quais as mulheres ·são apenas espt:ctadoras eventuais, e, cele~ração dos sava. Às vezes. ela re'ivindicava sua feminilidàde e a sua maternidade: da quaJ e1a
deuses do «táclio; e."altação CIo militante como soldado másculo do exército fazia a sua felicidade e sua, ~lória, ve~do nelas a ancoragem e até mesmo o des-
do proletariado, visãQ da revolução como luta armada, Uletáforas militares tinô de todas as mulheres ... Outras vezes, ela a recusava energicamente, denun-
aplicadas à luta de classes, eCc. O ferro, o fogo, o metal da ordem, o sangue do ciando a escravidão das mulheres, selada pelo casamento. marca de um patciar-
sacrifiào, são os e~blemas da classe' opel'ria que incensa, pQr outro lado; as cado que, a seus o1.li.os. tornava presentemente impossfvel o acesso à cidadania
virtudes da indispensável dona-;çle-casa. ric Hobsba\VTI1 mostrou como, no aa
política: donde .sua severa recusa candidatura que as mulhetes lhe' ofereci~m
último ·terç.o do século 19, efetuou-se a m sculinização da simbologia operá- em 1848. Sa'nd aceitava o sexo, c~ja diferença ela chegava às vezes a negar: "Exis~
.'
- , ' ,

472 473
,. ,
Pune' CDprrulo 21
, Debates Id~"tidadt. igutlldcl/k, I/ifrrcllfa: o olllar da Hist6,;a

te apenas um sexo. Um nomem e uma mulher, são tanto a mesma coisa, que .J está freqüentemente ligado à indiferenCÍação dos papéis masculinos e femini-
não se pode compreender as inúmeras distinções e raciocínios sutis de que se nos, a ema.ncipação homoss~ual passa atualmente por uma fase de definição .
J
~imentaram as sociedades ~obre este capítulo'~ Mas recusava o gênero tal qual' . ·1 muito estrita da identidade- masculina", escrevia Michael Pollak (POLLAK,
o seu tempo o definia. Ela rei~dicava a liberdade da escolha individual, mas . 1982 ). Ele poderia ter dito "feminjna" se a homossexualidade não tivesse sido
ficava surda à consci&;.cia de gênero pois também o contestava.» pensada mais geralmente como androcên trica.
"Consciência"{le gênero": esta noção foi anunciada sobretudo por Eleni Estas estratégias identitárias, mostram-se às vezes n:uito limitantes e
Varikas a respeito das mulheres. gregas do século 19 para designar o sentimen - tornam dificil a ~firmação de um a subjetividade. Como dizer "7u" no interior
to de uma similaridade de'condição e de destino expresso pot um "n6s, as mu- do "nós"? Cprno reivindkrir u~a diferença .n a identidade? Este é o problem~
lheres" que pode tanto ser o prelúdio de um feminisll"lo ardentemente iguali- de 5a'nd, de Virginia Woolf ou de Simone de. 8eauvoir.
tário, qual)to ancorar as mulheres na aceitação de sua irredut.ível diferença Mas esta "consciência de gênero" pode também desembocar - e efetiva-
, mente desembocou - na análise da de.sigualdade. Ela funda a reivindicação an-
(VARIKAS .. l 988). De fato. esta "consciência de gê nero" se articula freqüe nte-
glo-saxã da cidadania que se apóia no direito das mulheres a se rem represen·
mente à idéia de lima 'superioridade das mulheres com o gerentes da família,
tad3s ~nquanto tais, em nome 'de sua especificidade, argumento ú.~ado por
fermento da sociedade, remédlo para os males do Estado que é som ente "um
John Stuart MiII. ReUen Taylor e Mrs Fawcett ( ROSANVALLON , 1992) .
grande lar"; como diziam quase nos mesmos termos Jea~ Deroin e H'ubertine
~ então. que a questão da identidade cruza as questões - !nuito ligadas-
Auclert para apoiar sua reivindicação ao dire~to de sufrágio, e até mesmo ~omo
da desigualdade e da diferença que, por falta de tempo. eu tratarei ainda mais
salvação do mundo. As saint-s~onrstas usavam às vezes esta linguagem, tomo
sucintamente.
as mulheres cristãs. descritas por Bonnie 5mith ou ainda urna Louise Kopp,
arauto da maternidade redento ra. 76 Sobre.esta questão, os femin i smo~ estão di- ,
vididos. Eles oscilam da extrema virilidade - Madeleine Pelletier deplora e,sta
DA IGUALDÁDE E DA DIFERENÇA ·
catástrofe de ser uma mulher e se torna ap6stQla da "virilizaçào das mulhe-
res"" - à extrem a feminilidade. Esta feminilidade podendo ser a m aternidade ENTRE OS SEXOS
(cf. Louise K~pp; nos dias de hoje. Antoinette Fouque). o celibato e até mesmo
a virgindade, última muralha contra a dominação masculina (cf. Arria LyY' A diferença entre os sexos aparece, ao õlhar dos antropólogos, como o
elou o homossexualismo. Compreende~se bem COmO o homossex'ualismo,- principio organiz.1dor da s socied.adfh. As obras respectivas de Claude Lévy-
Str~uss e de Françoise Héritier são fundamentais sobre esta questão, A última
tanto !l'asculino quanto feminino, enco ntra sua primeira for:.ça em uma vigo- ,
rosa jlfirmação identi.tária. C<Enquanto o tema da emanc~pação heterossexual- concluía a apresentação q~e fizera no Beaubourg, no contexto do ciclo orga·
nizado, há três anos, sobre "a d ife ren ça entre os sexos", com esta simples afir·
,, mação: "Uma sociedade sem d iferença entre os sexos é inconcebível'~ Para
( 5 Sobre Sand e a Cl.ues13o da identidade de sexo, cf. Mozet ( 1994, p. 219-269); Mireille Claude Lévy-Strauss, esta diferença é inerente ao próprio pensamento: é uma
Bossis. apresentação de Lel?ernier Amour (l866) (199 1): a autora fala de uma." he-
sitação sex.ual qu.e sémpre' existiu para Sa nd~ Em último lugar, Ozouf (1995). ' . . estrutura cognitiva que gere os sistemas si mbólicos e as categorias de lin~a.
76 Sobre Jeanne Deroin, cf. Riot·Sarcey (1994); sobre Hubert.ine Auclert ' e Louise gemo O que permite compreender 'o interesse dedicado, nos dias de hoje, por
Kopp, cf. KIejman e Rochefort"'( 1989) e Ozouf (1995) . certas feministas americanas à desconstrução da linguagem. o famoso li"guis·
n Sobre a "crise idenritária".c:J.as feministasi d~ entreguerras, cf. Bard (1995), sobre tie tum de uma Joan W. Soott por exemplo. .
Madeleine PeUetier; cf. Baro ( 19 92),Mai~ien e Sowerwine ( 1992). Esta diferença implica necessariamente ern desigualdade? Em princípio
78 Sob~~ Arria Ly, cf. K1ejm~.~heforl (19.89) e Bard (1995). não. Mas na pr~tica , antropólogos e historiadores concluem pela -afirmativa.
I .- "...

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474 475
II
,.
Parte 5 Cap(tlllo l 1
Dclxlfl!J ldt'nridwlt, i,"aldadc, difontlfa: o "Urar da História

S~as explorações espaciais ou temporais, indígenas ou exóticas, mostranl-lhes , 1sto explica a sensi~i1idade juriclica das ' mulheres e das fe!!linistas e a
apenas dominação masculina: dominação dos)sistemas.de valor e de represen- ' freqüência do recurso individual aos tribunais (CLAVERIE; LAMAISON,
tações, dominação lIfaiscômplexa das práticas e de sua classificação: do ideal 1982) e do recurso coletivo à lei ou da luta por ou contra a let. Se acr'editarmos
e do \real. As historiadoras, por sua vez,l esqueceram das teses do matriarcado nos resultados de uma pesquisa de opinião efetuada pelo Ministério dos Ne-
origi~al e desconstruíra_m ...-as~a·ntigas mitologias das mulherç:s no poder (co mo ' gócios Sociais por ocasião de um dia 8 ~e março: esta se,n sibilidad~ parece um
as amazonas),
.//. .
Quatro campos' poderiam ser historicamente analisados e o foram , em
I tanto enfraquecida pois, contra 6%,das ll)ulheres interrogadas. que viam na vo-
tação de novas leis à ~chave de uma melhor organizaç.ão "homen~/mulh~res",
grande parte. Pdmeiramente, a análise dos tempos, dos argumentos e das' re- ·1 perto de 800/0 invocam "a evolução da;5 mentalidade~"., Indício, talv~z, de um
presentaç,ões da desigualdade. ~or vezes ela é franca e maciça, afirmação tran- certo desencorajamento cliante d~ falta de efetividade' das leis e da.persistência
,qüila de uma evidência desejada por Deus, ditada pela Natureza e, ainda por da djstãrl.cia entre Direito e' situação,de fato, .
cima, necessária à vida familiar e social. Deus, a Natureza e a Sociedade, eis a
Trindade da diferença entre os sexos. Por outras vezes, ela se enuncia de forma
I Estas situações devem também ser cuidadosamepte decodificadas e os
estudos de setores ou de casos revelam-se, aqui, muito eficazes. Citarei como -
velada. Na épocamoderna, ela se apóia sobre o duplo argumento da biologia. . particularmente significativos ,e, relativO;lmente· bem visitados, tanto pel9s his-
e da utilidade social, COIUO vimos. Ou ainda ela se enrola no cliscurso consen- toriadores quanto pelos sociólogos, a d~visão sexual do trab!llho, a educação, a
sual mais "soft" dos tempos contemporâneos, ritmado pela doçura tnn tanto prostituição.
, i~ica da complementaridade, ou do leitmotiv da "igualdade na diferença'; Sobre a divisão sexual do trapâlho, clispõe-se de um grande número de
cara aos den:lOcratas do sé~ulo 19, qe .Paris'a Atenas: de Michelet a Grigorias estudos, quantitativos (críticas dos recenseamentos, por exemplo, comO pro-
'Papadopoulos, arauto desta completude feliz em seu'livro intitulado lA _Fem- dutores da diferen ça entre os sexos) e qualitativos, globais e setoriais, so~(e a
me grecque' ( 1866), em que se torna apóstolo de uma nova educação, capaz de indústria sobretudo, m,:\s també,m sobre os serviços. Domésticas, enfermeiras,
produzir cidadãs esclarecidas e "companheira's inteligentes", como désejava'm professoras' foram objeto de -numerosas monQgrafias, Em _um a tese recente.
igualmente os relatores da lei Camille Sée que, em 1&80, funda na França o en- D.elphine Gardey ( 1995) estudou o "mundo dos empregados de escritório no
sino secundário das moças, Esta preocupação com uma nova forma de troca século 20" sob o crivo do' gender, comparando sistematicamente as posições,
conjugal, em:"que a, palavra e o diálogo encontrariam um lugar, cu~mina no carreiras e comportamentos profissionais do.s homens e_das mulheres Qcupa-
"amor fusional" que freqüentemente se.reduz à'absorção da esposa pelo mari .. -: "dose, m , um mesmo local de e~pregosJ, Estes estudos
.
permitiram compreender
do, transformado, segundo o desejo de Mlcheletí em seu único confidenie,- melhor os mecanismos de constituição das profissões chamadas de'''femini-
I .,
substituto do ,confessor. A modernidade do casar repousa sobre a representa::- I nas'~.qü<1se, sempre.desvalorizadas tanto em prestígio quanto no salário: a insi-
_ ção de uma comple~entarid~d,e sexual fortement~·id~ntitáría. I diosa questão das qu~lidades «ip.atas" q·ue disfarça as q~alificações. adquiridas, '
1 ,-
i Segundo conjunto d~ pesqplsas: a análise das práticas organiz;ldoras 4a mas, 'conseqüentemente me~os remuneradas por nã.o serem aprendid'aSi a
)
desigualdade. Sublinharemos aqui a extrema importância do'Direito. Yan Tho- c.oncentração das mulheres em ~m pequeno D1l~ero de ~~pregos apesarida
'mas mostrou minuciosamente como operara, a este respeito, o Direito Roma- abertura de todos, a principio: a distância persistente entre o nivel de forr';'a'-
,no; 'em um estudo ,{ue constitui um' model~ metodológi~o (HDFO, I, p. 103-. ção e de re~lização p'iofissionàI, as moças antecipando ger~lmentt as-dificulda-
159). Os costumes do Antigo Regi(11e haViam sido revisitados por Jos~n~ des que as esperavam e, conseqüente~ente, IimÚando suas ambições (DURU- '
Moutet, e,m um trabalho que' continu';u ín~itO. ,0 Código Civil, esta bíblia ,da ' BELLAT, 1989). Outrora, assim 'como hoje,yarec~ impossível separar trabalho
desigualdãde sexUal cont,emp.orãpea, foi o pbjeto de numerosos estudos (AR-, ' e família, no !1ue se tefere às, mulheres"ainda q~e sua entrada, por in~ei'ro, no
NAUDobuc, HDFO, IV, p. 87-120; THimt; BIET, 1989).
, , assalariamento' seja atualmente umTato consumado. Por o~tro lado, somos ,Ie-'

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PnrteS Capflulo 2/
Id/!l1tidlltl~ igualdade, difcrenfA: o ollrar da HiJtdriA
Debare$
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vados a co nsiderar mais os eleméntos simbólicos pois os fatores de prestígio. . sim, tr<\tando-se do direito de voto, o feminismo angIQ .:.saxão,·que instTwnen-
de aparência, de distinção. de representação de si"são extremamente importan- taliza a diferença para. obter a representação da mulheres' enquan.to sexo, foi
tes em nossas·sociedades da imagem e da comunicação. O mínimo que se pode
I . -
I oposto ao feminismo francês, que se démarcava pouco da lógica individualis-
dizer ·é que, sob este ângulo, ~s re1açoes do mascuJino e do feminino conti-
nuam a ser discriminató.rias: '
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I
ta em ação em nossa democracia (ROSANVALLON,. 1992). tese geralmente
contestada, mas reforçada pel? recente "ensaio" de Mona Ozouf sobre a singu-
TerCeiro eixo ,de---reflexão:
. quais foram as atitudes - individuais e coleti- laridade francesa, e que, em todo o caso, merece reflexão, num momento em
vas - das mulheres (e dos homens também), diante das desigualdades que elas que a paridade "se impõe como utna reivindicação de ponta. Paridade, em
tiveram que enfrentar e que-teciam sua vida êotidiana? A abordagem biográfi:'" nome de quê? Da equidade individual? O u da diferença entre os sexos?
ca, t~nto das mulheres "ex:cepcio.na,is" quanto das, mulheres comuns, na t;;tali- Último campo, enfim, que requer uma ate.nç.ão particular: os desloca-
dade de seus percursos. ou em o~tro segmento de existência, e até mesnlo na mento fronteiriços da desigualdade, as incessantes decomposições e recompo-
fugacidade de uma circunstância ou de um instante, permite apreender a for- sições 'das partilhas" entre os dois sexos em todos ?s setores do emprego, da
ça da resistência ou do' desejo pelo quaI'uma mulh~r se afirma como sujeito e criação,' bem coma do cotidiano; os bastiõe~ da resistência masculina ou as
águas estagnadas da indiferençaJeminina. Do doméstico (KAUFMAN, i992 )
reivindica o direito de escolher seu destino. Narrativas das autobiografias ou
. - . ao político, do amoroso ao religioso, existem zonas opacas, cristais duros que
da pesquisa ora~ fragmentos de vida entregues pelos arquivos judiciários, tais
como, os coleta dos po.r Anne...Marie Sohn, abrem aqui as portas do quarto fe- corresponclem a crispações de poder. O político, na França, ainda mais do que
dlado, do íntimo e do foro íntimo:, tefúgiç: das mulheres. , em outr9s lugares - e eis mais uma "singularidade francesa" - constitui um
No nível coletivo, o'femini'sIDQ, em sua pluralidade, foi um agente mui- destes nós ~m que ~erdura uma desiguald~de .q ue pretende se justificar pela di-
to ativo das lutas pela Igualdade. f. um dos capitulas mais recheados da histó- ferença entre os sexos - uma diferença freqüentemente consentida: mas, o qu ê
, ria rec~ntemente escrita po~ jove,ns historiadoras: Michele Riot-Sarcey, Lau- vale esta aquiescência? (MATHlEU, 1'985). t. uma questão que seguramente se
rence Klejman e Florence Rochefort,' Christine Bard, Frànçoise Picq e logo coloca para todos, mas particularmente para as mulheres, el'!l raz..1.o da própria
Sylvie Chaperon. 7t Elas exploraram arquivos e bibliotecas, examina,r am corres- desigualdade entre 95 sexos,
pondências e órgãos de urna imprensa sincópada mas densa, e assim, deram J Para acabar, eu direi algumas palavras somente sobre este-tema da "di-
novamente um lugar a este ator esquecido, freq~entem~nte pelas próprias mu- ferença entre 0 '5 sexos" que nos reteve durante todo um anti no Beaubourg.
lheres, sempre ameaçadas pela amnésia, forma insidiosa da negação, Não é·- Q~ais foram os' momentos, os lugares, os meios ... de consciência da difer'ença
mais possível, a ,partir da ,contribuiç'ão destes trabalhos, falar em "fraqueza do na dialétic'a do Gênero? Dos tempos históricos, eu já falei: há conjunturas de
. diferenci.~ção acentuada - as crises e ainda mais as guerras ~ ~ ~utras pr~pícias
. ~ "

feminismo francês", sem negar, com isso, á sua esp.ecificidade. É impo!tante, -


"em c9 ntrapartida, que se questione a modulação do t~ma "igualdade/diferen- ~ à indiferenciação identit~ria: Do mesmO modo como localizamos J~Omel1to's
. ça" ll~ existenciais fortes - como' a adolescência - da tomada de consciência identi~á­
, argum entação fe'minina e feminista. Do lado das mulheres, os dez rétra- . i ria cujas formas são em geral estreitamente culturais.
tos ,firmemente' desenhados por Mona Ozouf (1995) mostram a di~rsid.ade
da; percepções e das posições. Do lado dos feminjsmos, o mesmo ocorre. As- O femi.nismo não pode escapar destes-. ritmos e 'ele oscila constante-
mente entre os pólos da diferenciação e da indiferenciação. Foi assim no pas-
sado. Co~tinua a s'e r da mesma forma hoje. Forte afrrlnação da diferença?
79 -Eu citei a maioria destes trabalhos. Além deles, Picq (1993), Sylvie Chaperôn
• defendeu sua.'tese sobre a histÓria do femínismo na França, 1945-1968. Dispomos, , Esta foi.a arma do feminismo radical da década de 1970, o feminismo do gru-'
assim, de uma história inteiramente reno~ada do feminismo das 9rigens aos nos· .-1 po Psych et Po (da psicologia e da política) e de Antoinette Fouque que,-na
sos' dias, ~ o Segundo Império que deveríafnos revisitar agor.l: verd<:lde, recusava então a própria páIavra «feminismo" como produto perver-
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so da dominação masculina. Foi - provavelmente ainda seja - o momento do Capitulo 22
feminismo lésbico, bem como das homossexualidades em geral, ao menQs em ..
seu período de afirmação e de reconhecimento público (HDFO, V, p. 243-
275). O feminismo culturalista dos anos 80, na Itália sobretudo, inspirava-se ,
amplamente nesta posi.ção; hrilhantemente representada na França, ainda quç
de maneira bastante olarginaJ, pela criação literária (Hélene Cixous; Monica
Wittig) e pela ·pesquisa analítica e psicanalítica de Luce lrigaray. Sé esta cor-
rente está, entre nós, talvez-provisoriamente enfraquecida, observa-se atual-
UMA HISTORIA SEM AFRONTAMENTOS*
m ente uma ,volt'a para ela nos. Estados Unidos, através das posições de uma
Catherine MacKinon, ou das publicações como Difference. A Journal of Femi-
lIist Cu lturpl Studies (GOLLIN, 1992).
lndiferc:.n~ação? .t. a análise e a prospectiva - e talvez o desejo - de uma
J;lizabeth Badinter, notadamente em sua última obra (BADINTER,1990) ., o livro de Mona Ozouf é, de certa forma, um acontecimento. Que uma
mais amplamente, daquelas e daqueles que temem as armadilhas atribuidas historiadora com sua notoriedade e seu talento tenha levado a sério as "pala-
tanto quanto os constrangimentos dos comunitarismos, quai~quer que sejam; vras das mulheres", tão fieqUe ntellie nte minoradas, que ela tenha comunkado
e que preferem. o livre percurso dos individu~os através dos jogos infinitos do a um va5to l pú~lico e.'q>eriên~as e figuras pouco conhecidas, e·que, em segui-
sexo e das combinaçÕes sutis do gênero. lndiferenciação pode ser mais dificil - da., Le Débat abrã a discussão sobre a "singularidade francesa" em
matéria de
de viver em sua própria indecisão, temida, de quálquer form~, pelo poder e so- relações entre os sexos, eis vários motivos, existenàais e historiográficos, para
bretudo pela paite masculina do poder, que é importunada pelo temor da in- ri~s regozijarmos.
e
diferel:1clação, mais difícil de delin'l itar e de clas~iflcar. então, de governar. . , A discussão par" a qual ele nos convida nem por jsso é mais fácil. Lnicial-,
A afirmação da diferença e logo. da identidade é, para os indivíduos,
uma arma -ge(alInente necessária. Seria ela, ~or esta razão, um objetivo? Eis o .
mente, em função da própria estrutura do livro, que justapõe, em vez de mis-_
. '\
tu.rn-los. dois pedaços muito diferentes, em seu conteúdo e em sua fabricaÇão.
que resta a demonstrar,
, . , \ Por um lado, uma guirlanda de retratos sabiamente traçada,'que se telll vonta-
Temos dO .que alimentar, conseqüentemente, nossa reflexão e nossQ. d'e de degustar como se faz com- um buquê colorido e pe~fumado. Pôr outro
' debate.
hldo, um texto mais polê91icp, cujas referência's escolhidas de maneira um tan-
. to arbitrária em um oceano de publicações na verd;de desencoraJador, apóiam
i a íntima convicção da autora mais' do que a sua demonstração. 'As "dam~s" apa-

i
/ recem apenas como comparsas citada's para cOl1lparecer a julgamento. Pode{fa-
mos, de resto, tirar de suas vicissitudes um comentário inverso, ins istir em s~as
di.Çculdades tanto p.úblkas quanto privadas e pergunt,!rmo-nos se sua manrei_
ra "oblíqua" (uma palavra de que a autora gosta muito) 'de abordar o outro sexo
não v.em mais da altura dos obstáculos encontrados do que da plasticidade da
,
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'. .-.... ,.. Une histoire sans affrolltementS. In: Femmes: une sirfgularité française? Le Débat.
87, p. '130-134, nov./déc. 1995. Uma histó ria sem afrontamentos.
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PtlNt ' C"f'ftlllo 21
Dtbllftl Ullltl hiJ lóri" Jtlll rl!rrml(l/lItrrlOJ

sociedade francesa. Em suma: a coerência das duas partes n30 é evidente e con- troca do que no afrontamento e em um caráter misto persistente e equili bra-
tribui para a impressão de colagem de camadas que nos dá a segunda parte. Po- do. Entre nós, não há conflitos frontais, mas encontros corteses, lutas ~oblí­
. demos aliás nos perguntar porque ·Mona Ozouf escolheu e~ te procedimento e quas': part!Jhas alegremente asswnidas, Nada (ou pouc'o) de feminismo ide~­
este estilo. Esta passagem tão perigosa do muito particular ao muito geral? Este titário e diferencialista; na verdade, apenas um feminismo. As mulheres reivin-
uso agradável e perturbador da zraçá, como se, além do prindpio do prazer es": dicam pouco: elas se acomodam. Por um lado, porque elas são relativamente
tivesse a aparência obrÍgatória da feminil idade ou) ao menoà do que chamamos iguais, pois o público e o privado continuam menos separados que em outros
de feminilidade? Neste livro flutua uma espécie de perfume de mullier, feito de rugares (na Grã.,Bretanha, por exemplo) e mais perm eáveis. Por outro I ~do,
fragrâncias misturadas do pintor e de seus modelos. porque elas se satisfazem com o que têm (se não têm o poder, têm ao menos a
Mas o que é, então, esta ~singul a rid ade francesa", objeto central do li- "força", como diria Michelet) e consentem nos papéis que lhe são atribuídos.
vrai ao menos de sua segund a parter Após as cam panhas pela "parid ade" (pa- Assim , nã~ desejam ardentemen te a coisa pública e não lutaram realmente
lavra e noção que a autora rejeita) que aco mpanharam as recentes campanh.as pelo di.re ito ao sufrágio. Hubertine Auclert é um a exceção descoberta quase
eleitorais, poderíamos pensar espontapeamente no contraste muito ftancê~ com surpresa por Mona Ozo~f) que faz dela um excelente retrato ainda que
que opõe o universalismo proclamado dos ~ireitos do homem e sua concep~ isolado das correntes que a sustentam. As mulheres gostam de uma feminili-
ção muito masculina, sobretudo em matéria de política. Não teria sido neces- dade complementar e sentem-se bem com ela, e fazem do privado o verdadei-
sário esperar 1945 - há cinqüenta anos - para qu e as mulheres votassem pela ro lugar daJelicidade. A feliddade, "minha única quest~ol)) diZia Simone de
prim eira vez? E sua representação não continuaria a ser) nos dias de hoje, uma Beauvoi_r em unl; coro onde havia poucas exceções: Sand, nas intermüências de
das mais fracas da Europa tanto no nível legislativo quanto no executivo (a sua inquietação social- "Eu me preocupo em ser feliz", diz ela então, ~xemplo
despeito dos esforços recentes)? A Fran ça, a "lanterninh a" da cidadania este- desta consciência da miséria do mundo que fundará 'tanto's engajamentos; Si-
ve no centro da reflexão feminista mais constante.- E não foram somente as mone Weil, quase sempre, salvo nos raros momentos furtados de gozo estéti-
femin istas radicais a terem mostrado a lado mistificador do universal (p. co. Em matéria de igualdade, as mulheres prefe!em o status de indivíduos à
386). Este~, ao contrário, um ponto , ,que fez a quase unanimidade .das diver- aparência de gênero. A heterossexuali9-ade - a norma - modela-as mais do que .
sas co rrentes. uma homossexualidade quase invisível."
Mas Mona Ozouf não o considera assim. Ela. vê, ao contrário~ nesta ex-_ "A razão desta estranha mestiçagem deve ser procurada junto ao regi-
clusão, um a prova..suplementar da "mestiçagem" própria às relações entre os _ me pol1tico': escreve Mona Ozouf, que lrye atribui a~sim um pape~ sobredeter-
sexos em nossa sociedade. "I! o ra d.ica lisn'l o das concepções francesas e não a minante. Inicialmente, há o legado de uma sociedade de Corte e sobretudo
sua tirriidez que explica o' atraso em matéria de sufrágio feminino" (p. 377) . A._ . desta req~intada civilidade dos salões das Luzes ond,e, nos jogos de có nversa-
_ "singularidade francesa'; resid~ na natureza e no e~'tilo das relações mantidas - çãO,'l esboçava-se um diálogo quase igualitári o. Ora, apesa r do desapareci-
por homens e muJheres: relações sem agressividade, que se baseiam mais na mento dos salões, deplorado por M:1dame de Stael, es ta forma de sociabilida-
I ,

80 MOSSUZ-LAVAU, Janine; 'SlNEAU, Mariette. ElIquéte sur lu femmes et Ia po/jtjqtl~ ' 81 A este respeito, cf. a reedição do livro pioneiro de BONNET, Marie-Jo. Les RefmioMs
ell Fra nce. Paris: PUF. 1983; FRA[SSÊ, Genevieve. Muse de la Rais01T. La démocratie amoureuses entre les ft1/lmes. Paris: Odilc Jacob, 1995, retomada e acrescentada em
exc/usive ou la dijJérenCl! des sues. Aix-eri-Provence: AJin~a, 1989; e sobretudo: UM c/lOix saus équivoque. Paris: Denptl, 1981. Ela·observa, com toda a razão, que a
Quand gouverner n'est pas représenter. ESP,rit, p. 103-104, marslavril 1994, (et~ma­ invisibilidade está ligada ao sil~ncio ; um sil~ncio que-a história das mulheres, l'al
do em M~ de la raison, Paris, Gallimar& nova edição, 1995. Cf. tam~m O livro como se desenvol~u nos vinte últimos anos, não SOU~ dissipar.
fundamen tal de ROSANVÀLLON. P. Le SbCTe du citoyetl. Histoire du suffrage ulli-
verseI ell .Fmnce. Paris: Gallimard, 1992. ! "- 82 FUMAROU, Marc. La conversation. In: Lts Licux de ttl t nloire. Sous la direcljon de
Pierre Nora. Paris: Gallimard, 1992.1.111: Les France, v. 2: Traditions, p. 678-744.
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de do Antigo Regime persistiu mais do que se imagina e, com ela, esta illíluên- identidades coletivas em geral e do feminismo ·em particular," são elementos
da das mulheres condenada pelos revolucionários e, mais tarde, por Guizol e comprobatórios no diagrama de força·s que eles ~onstitutm. Entretanto, ela faz
pel?S republicanos. A Revolução, a despeito de sua virilidade explícita, intro-· objeções quase a cada passo. Os dois modelos antagonistas são apresen~ados de
duz as potencialidades da ig.!-laldade. em uma universaljdade c'ujo caráter de maneira caricatura!, própria para reforçar os velhos cüchês, e ,a boa consciên-
inclusão é sub linhado~or Moná Ozouf: "Em matéria de igualdade dos sexos, _. I cia francesa qu~ lhes serve de base: a doce França da galal)taria oposta à Arq,é-
ou simplesmente dérelação entre os · s~osJ sim a Revolução mudou tudo" (p. . rica violenta e viril dos cauQóis e das implacáveis Bostonianas que os enfren-
351). Sem dúvida, ela começa por excl uir as mulheres, mas com a idéia de que tam. Não há entre eles, nem igualdade nem concordância cronológica. De Ma-
é provisório '7 "as muUleres, no seu estado atual", djz.ia prudentemente Sieyes dame du Deffand a Simone de Beauvoir, a distância já é considerável, e não fal-
ao colocá-Ias globalmente entre os cidadãos passivos - e que "um clia virá". ta ousadia em co)o~á-Ias do mesmo lado do espelho; da marquesa a Marilyn
Neste dia, foram a República e o ad~ento da es.colà laica que trabalharam,len- '1 Prendi ou a Susan Faludi, a distância é vertiginosa e a confrontação só pode
tamente mas com segurança, pela i,g ualdade dos se..xos. Pouco importa que os ·-ser sumária e polêmica. O femiriismo americano contemporâneo (trata -se so-
melünos e as meninas estejam ·materialmente separados; o que co nta é o ca-
ráter profundilmente misto dos programas (o ensino doméstico, ·do qual
I bretudo dele) é innnhamente complexo ~ diverso (a autora concorda com isso,
numa nota de rodapé) e não poderia ser reduzido a algull)as citações esparsas,
Zomba alegremente A Ingênua Li17ertina de, Colette, tem pouca consistência), '1 mesmo que fossem de Gilligan, Patennan ou Catherine MacKinnoll. Ele tem
I
a figura pioneira da professora primária, identidade profissional sonhaqa pe- I
sua lógica. Sua agressividade, real ou supost~. aumentada a se!J, bel-prazer por
las moças do povo, e a figU.[3 do casal de pr.ofessores, vanguarda do casal ideal um co nservadorismo profundamente misógino que fez do poJitically correct
do assalariamento moderno. Desta forma, a monarquia republicana à moda um espantalho, é uma autodefesa tanto quanto uma tomada de consciência da
francesa, que multiplica as oportunjdades para as mulheres e, de maneira ge- violência inerente às relações entre os sexos e cujo alvo é tão freqüentemente o
rai, o Estado e o individualismo que acentuam a incliferenciação em marcha corpo das mulheres. No que se refere às pesquisas sobre as mulheres, ele reve-
em todos os movimentos de derhocratização, foram os principais fatores · de lou-se de grande fecundidade, quantitativa (sobre quase todos os pontos abor-
Dpssa jCsingularidade", co ndensado harmonioso de civilidade do Antigo Regi- dados por Mona Ozouf; existem prateleitas inteiras nas bibliotecas!) e cóncei- .
me e de modernidade republicana, reforçado pela aceitação das mulheres, tual. Servindo-se, sobretudo, das ferramentas de Jacques Derrida e de Michel
convencidas da efidída do seu caminhar igualitário. Este processo se 0l?ôe (ao Foucault, ele desenvolveu um_pensamento crítico da diferença entre os sexos
menos a autora o opõe) quase termo a termo, ao modelQ ·a~ericano, getàdo", ./
.... -1·
(cf. o famoso gender) , às vezes repetjtiv~ e cer.ia~ente discuti~el,lllas produti-
de uma guerra dos .sexos. Mona Ozouf teme que se u radicalismo devastador . .vo e irreverente __ Como uma outra maneira de colocar as·questões.
se tenha introduzido entre nÓs em favor de um feminismo diferendalista, até- r
agora marginal.
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PARTILHAS DO PÚBLICO E DO PRIVADO
I • , , I
.dOIS MODELOS ANTAGONISTAS Esta análise, colocada em termos de poder, engloba e excede a política, tal
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I como ela é comumente percebida. Ela analisa as partilhas, discursivas e práticas,
A demonstração de Mona Owuf n~o é desprovida d,e uma penetrante
seduçã9 e, para r~sumir, poderiamo~ ser c~ n~e'ncid os de que ela é bem funda-- ... 83 No mesmo senti~o. cf. RbB2RJOUX, Madeleine. La .culture au pluriel. In: Hisroire
da. A historicidadê das relações entre os s~xós, a influência-sobre elas da poli- -., de la Fra'1Jce. Le.s formes de la cu/rure. Sous la direction de J. Revel ~t A. Burgui~re.
tica, · a i~fluência do individualismo com b fator expl.icativo da fraquezá (das... , Paris: Seuil, 1993, p, 455-516.

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Dtlmla U,,1Il Iris'6rill am Ilfron'llmt'J'OI

d9 público e do privado, articula repr~ssão e produção das atitudes e dos\atos, elas O eram de maneira d,iferentc. O público era ígualmen te masculino, e o pri.
interroga-se sobre as formas, individuais e coletivas, freqUentemente microscó- vado menos feminino. Assim, na casa, onde eles decidiam a organizaçãq ~ até
,t·
picas, das resistências e sobre os mecanismos do consentimento,.indispensável, mesmo o mobiliário, os homens tinham, no século 19, muito mais lugares
quandp um d.os protagonistas ,?esperta ou se rebela. Georges.. Duby mostrou próprios do que as mulheres." Por outro lado, como a sociedade era pouco
como o amor cortês correspondia menos a uma mutação do sentimento amo ...· monossexual, as mulheres dispunham apenas de espaços de amizade ou de en·
/
ro~o do que uma~ táti6t para seduz+r mulheres mais distantes. O advento da de- contra, Esta carência da vida de grupo contrariava a formação de (eminis~llos
,. , mocracia supõe ainda mais refinamento. No século 19, um duplo argumento que s'up õem sociabilidades prévias. No entanto, as mulheres souberam tirar
justifica a vocação das mulheres para .o privado: o argumento da natureza bio- partido dos esp~ços que lhes eram confiados ou deixados, para dar, a si mes-
16gica,N mas também o da utilid<\de social. Por um lado a galantaria: "A mulher mas; prazeres próprios e contra poderes eficaz~s. usando suas armas para fazer
é uma ~crava que se precisa saber colocar sobre o trono': diz Balzac, teslemu- _
nha cáustic..'\j' de outro lado, a cele,bração da urgêncià de sua missão fortalecia as
,. o seu lugar. t: toda a hist6ria da emancipação contemporânea das mulheres.
,
Ninguém contestará 'q ue a república e a democracia tenham contribuído par,a
mulheres no,sentimento de sua importância. Nenhum maquiavelismo em tudo isto. Ma's f6,i preciso o imenso esforço das mu lheres para que) no jogo das in- .
isso. mas os jogos.sutis de uma interação social rica em concessões e conflitos; , terações instaurado) e~ta emancipação fosse efetivamente pos·sível.
Ora, a doce e agradável história que Maria Ozouf nos conta é uma his- Exercendo uma pressão determinada sobre a Assembléia de AJger, em
tória sem afrontamentos, quase sem agentes. Ela tem heroínas, mas não tem abril de 1944~ para que ela tornass~ o sufrágio cnfun "universal" ao concedê-lo
atrizes e ainda menos atores. Pois os;homens estão singu larmente ausentes de às mulheres, o General De Gaulle pensava (ao menos ele o diz em suas Memó-
um teatro do qual, no entanto, eles d!!têm muitas chaves. Não conseguiríamos rias) nos tumultos "sufragistas" do entregu erras, que ele considerava incompa-
termimtr - e seria de pouco intf:resse - 'de declinar as formas da dependência tiveis com a modernidade. Ao mesmo tempo) ele os remetia ao esquecimento e ·
feminina e de sua exclusão. A exclusão política mereceria uma atenção especial o feminismo francês, à sua "fraqueza"legendária. As mulheres devem tudo a seu
em razão de sua longevidade e de sua tenacidade excepcional. "Porque às ho- libertador: imagem clássica que é apenas urna forma da negação. O feminismo
mens se agarram a es te apanágio com tal energia? A tal ponto que as mulheres não era. com certeU)., o objeto deste livro. Lamerltaremos, entretanto, encontr'ar
freqUentemente bateram em retirada e se .desinteressaram ·dele. Tocqueville, !, em seu lugar os habituais clichês. Eles não deveriam resistir, porém. aos desen-
em uma cartà a Madame de Sw;etchine, deplor.ava este fato. u Em suma, as es-
volvimentos da historiografia recen te) devidos às jovens hi.$,toriadoras.'7 Pesqui-
feras não eram menos separadas na França do que nos Estados Unidos, mas --

86 O que mostra precisamente ElEB, Monique. L'[flventio/l de l'habitatiolJ n~odertJe.


84 A este 'respeito, cf. a esclarecedora demonstração de LAQUEUR, Thoma~. La - Paris, 1880-1914. Paris: Haian, 1995. " , '
Fnbrique du scxc. Essni sur le corps et le gerire en Oeciden,. Paris: G"lIimard. 1992 ·S7 Graças a ' estes trabalhos. dispomos doravante de uma história qua,se condnua
(tradução ~o inglês "americano. 1990). destes diversos feminismos nos séculos 19 e 20: KLEJMAN, LaUl'ence;
85 TOCQUEV1LLE. (Euvres comftlilQ. Paris: GruJimard, 1983,t. XV, p. 292 (carta de lO ROCHEFQRT, Florence. L'tgalité til marchF. ú féminisme sous la Tro4ieme
I de novembro de J 8S6): "Vejo um grand~ número de mulheres que t~m mil virtudes République. Paris: Fondation Nationale des Sciences Politiques/tditions des
privadas nas qu"is a ação direta e benfazeja da religião se faz perceber, Que, graças Femmes. 1989; RJOT·SARCEY, Michêle, La Démocratie à l'épreuvt. d~ femmes.
a elas. são esposas muito fiéis, e.xcdentes mães,.que se mostram justas 'e indulgentes Trois figures critiques du pouvoir (Eugénie Niboyet,lDésirée Guy, )am'ne Deroin ).
com seus empregados. caridosas para com~s pobres ... Mas, quanto a esta parte dos Paris: Albin Michel, 1994; BARO, Chrisrine. LQ Filies de Marianne. Histoire des
deveres que se relaciona com a vida pública. elas me parecenl não ter nenhuma fémi(lismes, 1914-1940. Paris: FaY:l.rd, 1995; PICQ, Franço'ise_Hisloire du M, L F. ús
idéia. Não somente el~ não as praticam ~a si mesmas, o que é bastante natural, années Mouvement. Paris: Seuil. 1993; enquanto esperamos a publicação da lese de
, mas das não partCtm nem mesmo ter o pbnsamento de inculcá~las naqueles sobre Sylvie Chaperon sobre a história dos movimentos femininos e feministas de 1945
, os quais elas tlm influl.ncia. :F. uma face dJ educação que lhes parece inevitável". a 1970.
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D~bcll.:s
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S3l!do arquivos esquecidos, analisando um a imprensa abundante, elas mos,tra. Capitulo 23
, ram a precocidade, a amplitude, a recorrência dos protestos das feministas, a ,

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variedade de seus. modos-de expressão e a extensão de suas reivindicações; suas '-
dificuldades também para se fa~e(em ouvir em um país que s'u porta com difi- .
\ culdade a palavra pública das ~lulheres e o espetáculo de sua organização cole...
rlva, ~ão contrária à<u; graça. A "gentileza" das m"ullieres ê, ~a Fran.ça, assim I MICHEL FOUCAULT E AHISTORIA
como em outros lugares - mais do qlle nos outros lugares? É bem- possível -,
Slla principal virtude, elevada á condição de traço cultural nacional.-
, ,I
DAS MULl-lERES*
Daí, p~)f um lado, talvez, o sucesso desse livro .. Alérn de suas qualidades I ,
intrínsecas, da beleza 'dos retratos cativantes. soberbamenté desenhados e es- 'i
critos, ele, fortalece a imagem de um~ França sexualmente pacificad~, ~mde os
homens e as mulhere.s, além de seus desacordos, sabem falar de am~)C.
A primeira vista, a questão das mulheres e í;lté mesmo a da diferença en-
tre os sexos não é um preocupação inicial de ~chel Foucault. Hist6ria dt;zlou- -'
cura ou Nascimento da clínica não comportam quase nenhuma menção a êste
respeito. Em suma,' ele se preocupa pouco com a sorte da mãe de Pie'r re :Rivie-~
ee, 'No cO~,~ntário sobre a confi~ão do parricida de :olhos ruivos, fal~a-se sin-
gularmente po~co sobre esta mãe que ele matou e a quem René Allio tltribui.
ao contrário, um lugar cen~al no fUme baseado neste caso, Interrogado a este
.' respeito por François Chàtelet, Michel Foucault dec,Iara q';1e ela é o "persona-
gem absolutame~te enigmático'~ pois foi em torno dela que tudo se criou e não
s~be nada dela." A mãe de Pierre Riviere represent~ia o enig~a fe~inino?
, se
, ' , I
Em todo c~so .. é interessante,que esta presença/ausênc}a represent~ a primeira
' '

r aparição da~ mulheres na obra de Michel Foucault. ,


No entanto, um grahde llúmero de p~squisas sobre as l1)ulheres e a di-
ferença ~ntre os sexos reivindicam atualmente Michel Foucault, principalmen-
)'-, te nos Estados Unidos, onde o ft16sofQ.é lido e discutido nos Women's sPldjes ~
, Gçoder sn.id;es.. As feministas ·a mericanas consag~aram nu~erosos estudos .
" nos
a!, pensamento de Michel Foucault, interrogàndó-se sobre o uso que eJai po-
dem fazer qele. Trata-se, aliá?, menos de estudos hist6ri~os do que te6ricos, 'es-
}.
/ ,.~

, * MicheJ Foucault ~t I 'histoir~ des, f~mmes. ln: Centre Georges Pompidoll et Centr~
i , II Michel Foucault édit, Au risque de FOIICllult. Paris: tditions du Centre Pompidou. ~ ..
1997. p. 95-101. . . ' .
-\ , 88 FOUCAUlT, Michel. Dfts et écr!ts. Paris: Gallimard, 1~94. v. m, p. 1'07 (1976).
,-
, " _,o

.'
488 _

·L'···-··
j
'. .
,, 489
Parte S Capitulo 23
DrbMif Michel FOllcaur~
e a Msroria das nwllluCJ '

,
critos por filósofos, sociólogos oU,especialistas de ciências pol,íticas que d~scu­ I ª
desenvolvido em torno destas noções, e AIDS) surgida inicialmente como UI11
tem sobre a validade operatória dos conceitos foucaultianos, _Sem pretend~r, de , «câncer gay" de cuja exclusividade Michel Foucault duvidava)'2,poderia desem-
maneira alguma, realizar um balanço destes te..xtos, que preendlem agora di- I penhar, nesta dinâmica, um papel não negligenciável. Hipótese que não pod,e-
versas '\prate1e~ras de bibliotec~sJ eu citarei .Rosi Braidotti. qu~ foi uma das pri- rá nunca mais ser verificada.
meiras a defender na França, uma tese sobre os filósofos contemporâneos - I Trí;lta-se aí de questões teóricas e políticas, mais do que propriamente
oeleuze CuattaI;. F6ú~auJt' e as w,uJherê§ n Sandra Barkty. Suzan Bordo, lre- ,I ,.
históricas. Mas se pode imaginar 'sem dificuldade, o estimulante
. que ,elas po-
ne DiarflOnd, Nancy Hartsoci<, Lois Mac Nay (Fol/cal/lt atld Feminism, 1992)' ~ ' dem constituir no campo da pesquisa. Numerosos estudos americanos se ins- ~
Caroline Ramazonaglu (Up against FOl/cault, 1993) e sobretudo lana SawiCki .. •
. \ NV
I'A crevem no caminho da problemática foucaultialla. A título de exemplo, eu ci-
(Disciplining FOllcalllt..Femj"isnJ, Power a"d tIre Bodv, 1991)-, " , • tarei o belo livro de Thomas Laq'ue'u r, Making Sex. Body and Gender from the
Esta última apresentou, para ,o colóquio Foucault dez anos depois, uma ..
síntese muitO clara dos principais pontos de vista, à qual eu me permito renle- .
J Greeks to Frelld (l990).'j'Collhecemos a tese do livro: a representacão da dife-
r~nça sexual deve po~ciêQ,ia C quase tudo à polítjca e à cultura. Ela mu-

ter.~ A maioria das feministas critica Michel Foucault por seu androcentrismo, dou com,a moderllid~.de. Fomos de uma concepção monista (séculos 16 a 18)
que o to;ná cego ao geudr.t,JJgumas pensam que é redibitório e contamina' - há apenas ~m' gênero coq) dua's modalidades diferentCJ - a ueita cO~lCepção
todo o seu pensamento. ~Ias vêem ali a marca do pensamentó p~s-estr~tur-a­ dualista - há dois sexos, masculino e feminino. dotados de uma forte identida-
lista que não se preocupa com os protagonistas e rejeita a subjetivação no pró- de fisica e moraJ. A biologia fçrnece argumentos para um discurso resoluta-
r, , ' '
prio momento em que as mulheres têm acesso 'a ela. As outras, provayeLwsn- mente. natu~aiista que pretende funda,r uma estrita divisão sexual da socieda~
te. a maioria. conside~ue.esteposicionamentQ não impe..de...q,lle....Mi&hel ' de e do mundo: O~lI e em come da utilidade so.cial, permite delimitar as .. ~­

-Foucault tenha dado àrmas\ úteis à crítica feminista: assim, sob're o poder, o I
'1 feras" pública e privada e ancorar. as mulheres em seus corpos. frág~~­
-~---- ,
corpo sexual como alvo e veículo dQ biopoder, as estr~tégias de resistência ou ,I ~ tios. histéricos que se deve proteger e esconder. 9~
as tecnologias de si. Todas aderem à sua crítica ao upivers'alismo , e" a ma~or Thol]1aS Laqu'eur, que su blinha, com ~a~ãQ, a autonqmia de sua própria
I pesquisa, cita freqüentemente Foucault., quase sempre ·para j'ustiGcá-Io, às ve-
parte delas, à crítica aQ essencialismo. Entretanto, a maioria hesita em segui-lo ,
zes para criticá-lo. Como ele, Laqueur tem uma visão históricaao corpo. mo-
em sua ,crítica às identidades sexuais. Sabe-se que Michel Fou,cault rejeitaya
,.' delado pela cultura. Mais do que ele, talvez, ele insiste no impacto,medido 'das
qualquer definição .desta ordem, redutora, a seus olhos. "bJão dçvemos excluir ,_.
~escobertas em matéria de fisiologia da reprodução que o discurso n:tédico
a identidade se é por mejo desta identidade que as pessoas encontram seu pra-
agenci~ para fins além da ciêócia: "No fund,?, 'a substância do discurso-da di·
..z.e.t,...lJl. não dremos (Op·sjde.uWta identidade como uma regra ética univer-
ferença sexu;31 ignora o entrave dos fatos e continua a ser tão liyre--quanto um
~ (abril 1984).91 "Nós so~os seres únicos"" di~, ·qúase na vésp~~a de; su=_· jogo do intelecto".
te, este,individualista convicto. 1:. provável que as discussões com ele teriam se ·
A ma~~ira, ao me'stno tempo simpática e distanciada, como Thomas La-
queur fala de Michel Foucault, é um 'bom exemplo do tipo de influência exer-
,
89 Rosi Braí dótti defendeu sua tese em 1978 na Uni\'e.r~idade Paris I. diante de uma
banca composta por François Chãtelet. Hélene Védrine e Michelle Perrot. Ela é .
atualmente professora na Universídade de tltrecht. Sua obra, PaNerns of 92 "Um câncer gay? Ser ia bo~ demais....... teria dito ~ich~1 Foucault a Hervé Guibert.
Dissorlance. foi publicada em Cambridge em 19,91. . ..., et
93 LAQUEUR, Thomas. La Fabrique du sexe. Essa; sur le·sexe le gellre en Oecident.
,
,\
90 Jana',Sawicki t Femi,lisl1l and Foucalllt' ill lNortfl America: çOrlvcrgeflcc, Critique, , 'Paris: Gallimard, 1992, para a edição francesa. ' ,
Possibility. , ' ~ ~f. M!chelle Perrat, "Public. privé et rapports de sexes': a ser publícado nos anais
, 91 FOUCAULT, Michel. Dits etécrits, Paris~ d,allimard, 1994. v. IV, p. 739.juin 1982. '- do colóquio, ~es Rapports du publie ct du privé. Uni,:ers;té de Picardie.

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Pllrtt, VlpltuÚJ 1J
lHhatcs Mid.tl Foutalllt, Q 1ii1(drÍ4 dtu mulhlru

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cid.., por ele sobre a pesquisa histórica americana, forte.mente. atravessada pelas siçãO da norma conjugal heterossexual, talvez hoje em vias de desmoronamen'-
problemáticas identitárias cujo vigor foi mostrado pOr ~\izabeth Badinfer. H to, que ele suspeita ser anterior ao cristianis,mo.
Mas para O próprio Michel Foucault, o que se passava? Qual foi o seu
caminro no campo da tomad"l de consciência da diferença entre os sexos e
eventualmente das mulheres? Tanto quanto um olhar sobre a obra, UIl! percur~
. /
so de Dits et écrits petmite compreender as mudanças de perspectiva. Como
sempre, para este historiador do atual, duas s~ries de .fatores se conjugam para
1 -- Mas voltemos à genealogia do sexo e das mulheres na obra ~ por meio
da família que as m.;"lheres tomam pé n~ obra de Michel Foucault. ~ pela~-
xualidade que elas, tomam corpo. Desde a História da loucura, Michel Foucault
7tlblinha a importância crescente d~o'mo .instância de regulado da ~,
moral e da razão. Desde o século 17, assiste-se à grande confiscação da ética
favorecer o sl.irgimento de uma nova "problematização": fatores ligados ao sexual pela mO,ral da fumília'~ "O amor é dessacralizado pelo ·c ontrato." As ve-
presente, essenciais para aquele que s~ reivindica como jornalist~ (a filosoija é lhas formas do amor ocidental são substituídas por uma nova sensibilidade: a
I
uma espécie de jornalismo ndical)." A força de um projeto inicial já ampla~ se nsibilidade que nasce da f,unília e na família; ela exclui, cQmo send o da or-
. 1
m~te contido ,em História da Loucura, o maIs programático dós livros de Mj· dem do não razo"áv~l~ tudo o que não está de acordo com a sua ordem ou com
chel ~oucau1t, é solicitada ou curvada pelos acontecimentos. Assim nasceu Vi- sçu interesse." Por meio de ordens reais de prisão, a família usa a polfci" do rei
giare Punir, do encontro entre uma antiga reflexão sobre a penalidade e o apri- para fazer cessar a "desordem'· Que a ameaça," como mais tarde ela se ~ervirá
sionamento e as revoltas carcerárias da década de 1970.'" A Vontade de saber '1 da lei de 1838 para faz~~ os que a incomo-
(1976) se situa"em uma conj.untura de "sexo rei': contra a qual, aliás, Michel dam. ~Há, doravante, uma influencia pública e institucio.nal da consciência
Foucault se insurge. Mas os movimentos de liberação das mulheres. dos gays
J?ªreçem "ter tjdo]lm impacto sobre ele. sensível em Dits et é~rits. Após 1975,
I· privad,;l sobre a loucura.n LOO A Revolução Francesa não atenua este poder fami-
liar, bem ao contrário. Ela aposta na família, como mostra a instauração de tri·
o tom é muito mais livre. Isto está ligado, em parte, à natureza das entrevistas, I bun~is de família. O fato de que eles tenham fUncionado pouco~não diminui a
muito mais diretas: Michel Foucault é, a partir de então, freqüentemente ques-
tionado sobre a homossexualidade e não hesita em assumir tranqüilàmente a I força do sintoma. A familia é igualmente central na reorganização das relações
entre a loucura e a r~zão empreendidas na Inglaterra por Tuke e por Pinel na
sua, em tais circunstâncias. França, e sua libertação é um "gigan:tesco aprisionamento moraJ '~ N? engua-
Não é imposslvel que a amplitude do questionamento s~ua) tenha le· '\! dramepto disciplinar descritp por Vigiar e Punir. a fumIlia é um ponto nodal
. vado Michel Poutault a modificar seu projeto de história da sexualidade que,
, - .
• de articulacão do pÚbHm e do privado. dos p ais e dns filhos. dos indiví~uos e
em 1976, parecia programado para dez anos; a quebrá·lo pafa extraí-Io.de um ~ , do Estada. , -
~écuJo 19 muito estreito ~ dar a esta reflexão uma b'ase temporal infinitamen- : Ora. as mulheres. "dentro e através da famUia, exercem um poder disci-
te ma'is ampla, englobando a longa duração do espaço ocidental, em uma I:?ers· _ plinar maior, e é como agentes de policia que elas surgem , desde"o século '17.
_p~ctiJa quase br~udeliana. que rompe com a tentação microhistórica dos anos "Já podemos ouvir, escreve Fou~ault, as ameaças de Mad'a me Jourdain: 'V6s
anu~~1ores:'Terido identificado a virada do século 19 - a constituição da scien- sois louco, meu marido, com todas as vossas fantasias [... ]. São os ~eus çlirei- -
tia sexuaJis, que modifica o status da sexualidade e o lugar do çorpo na Cida· tos que eu defendo, e eu terei comigo todas as mulheres~ Esta afirmação ~ão é
de 1, MicheJ Foucault procura delÍmitar o momento d~ construção e de impo- vã; a promessa será mantida; um dia a marqu.esa d'Espart poderá pedir h in·
J -

9~ BADlNTER. ~ li sabe th .XY. De l'ide.ntitémasculirte. Paris: Odile Jacob. 1994.


96 FOUCAULT,.Michel. Di" et leri". Paris: GaUimard, 1994. v. 11, p. 424, t 973.
'i 98 FOUCAULT, Michel. Histoíre de 11} folie tll'Age classique. Paris: Plon, 1961.
J ... 99 FOUCAULT, Michel; FARGE, Arlette. Le Désordre da familfes. UttTes de caclttt da
97 PERROT. MicheUe. La leçon des ténebres. Communication au collo.que de MiJan, Arc"ives de la Bastille.. Paris: Gallimard: Julliard, 1991. CCoU. Archives).
E/feti Foucault. mai 1985, Actes n. ~4. été 1~86. 100 FOUCAULT, Michel. Histoire de lafolie il)'age dassique.. Paris: Plon, 1961. p. ~38-539.
'-

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492 , .' 493


Parte' CÀp(tlllo2J
'Debates Michel Fdrlrnl jl, e a hist6ria dllJ /IIrl/hem

I
terdição de seu marido somente baseada na s aparências de uma ligação coo-, nha Madame Jo urdain e a enigmáti ca mãe de Pierre Riviere: um poder bastan-
r tmria aos int~resses de seu patrimônio; aos olhos da justiça. ele não teda per-
dido a razão?"'o, .' ~
te temível, em suma. Em um debate dedicado ao Anti-&1ipo, Michel Foucault
adere às teses de Deleuze e de Guattari:o desejo da mãe não é univers~l. "Por_
I CQ.ntra este poder das mães, Pierre Riviere levantou-se: Sua história é ti- que desejaria ele a sua mãe? exclama Foucault com humor, já .não é tão diver-
picamente Uma questão de familia, cuja mola essencial. é co nflito entre os se- tido ter uma màe?"'O'
xos. "São a mulheres-g~e com andam agora. diz ele para explicar seu crime. A :& pela sexualidade qye as mulheres vão to mar mais consistência e cons-
força foi ayiltada." Ele se ãpresenta como justiceiro. Ao tomar O lugar de um - tituir um objeto digno de "problematização': Em A Vontade de saber (1976),
pai fraco demais a seus olhos, ele quis vingar sua honra. Uma parte inteira de Michel Foucault retoma ao papel central da família em um disposi tivo de se-
sua confissão se intitula "As 'pení\s de m eu p3i'~ Ele descreve ali "as penas e afli- xualidade, mas detalhand o as forças que a co mpõem: "A célula familiar, tal
ções que oieu pai sofreu por parte ~e minha m ãe", a própria figura da má es- Como foi valorizada ao longo do século 18, permitiu que sobre as suas duas di-
posa: perdulária, recusando o "comércio tarnal" e o leito comum, controlando mensões principais - o eixo maricj.o-mulher e O eLxo pais-fillios - se desenvol-
,
as desp,esas ,de seu marido, que não pode mais, ,e se m sua permissão, ne~n mes- I vam os elementos princip~is do disP9sitivo"de sexualidade, o· corpo feminino,
11"10 beber um a quarta no 40mingo com seus amigos"; e além de tudo, tinha- a precoçidade infantil, a regulação dos nascimentos, e, em menor me,..dida , pro-
suas próprias economias e dispunha de seus próp~ios bens segundo o direito
·1 vavelmente, a especificação dos pervertidos [".J'~
que o Código Civil lh e dava a 'partir de então e que leva o juiz a tomal"seu par- A família é o cruzamento da sexualidade e da aliança.'~ Neste dispositi-
tido. O novo Código revogou, de fato, o costume normando profundamente ' ~o, o corpo feminino é uma questão de poder 'Im lugar estratégico da esfera
desigual, pois as mulheresMigorosamente subordinadas a seus irmãos e mari- privada e pÚhlica. um ponto de apÓio da bjopolítica. A "histerização do corpo
dos, só podiam herdar, e gerir seus bens se fossem ftlhas únicas e solteiras. Si- da mullier" é um dos quatro conjuntos estratégicos que Michel Foucault se
I
tuação que a Revolu ção Francesa aboliu. Por isso ela é, aos olhos de Pierre, o propõe a estudar. "A mãe, com sua imagem em negativo, que é a mulh er ner-
mal absoluto, e se u gesto tem uma dimensão públ,ica tanto quanto' privada. Ele. vosa, constitui a forma mais visivel desta histerização." Um dos primeiros per-
revela a centralidade da família como instância poU~ca e a violência do confli- sonagens a ter sido "sexualizado" (isto é; submetido ao escalpelo eJa observa-
to entre os sexos. Ele traz uma confirm-:J.ção ruidosa para as' teses de Michel ção de uma ciência em formação), "foi a mulher ociosa, no s limites da vida
Foucault sobre o aumento do poder da faroilia na modernidade. No 'entanto, mundana, onde ela deveria sempre figurar como valo r, e da famUja, onde Uie
os comentários que acompanham' a publicação do texto insistem relativamen- - é atribuído um novo lo te de obrigações conjugais e maternais [ .. T Ali, a histe-
te pouco nestes a spectos.~G2 rização da mulher encontra se u ponto de ancoragem",IMEsta liisEerização das
,'- 0 próprio Michel Foucault ~e interessava J~'aJs pela narrativa do crim e,-- mulheres "exigiu u~l a medicaliza.ção r:ninuciosa de ,seu corpo e de seu sexq, fei-
cujo' cont~!Ído etnojurídico e sexual ele sublinhará ulteriormel~te . . ta em nome da responsabilidade que elas t eriam em relação à· saúde de seus fi-
I Michel Foucault vê inicialme~te as' mulheres como esposa e mãe. Ele' se
lhos, da solidez da instituição familiar e da sal~ação da sociedade".'OI Vista s an-
interessa pela função materna na organização disciplinar e n o' co ntrole -dos teriormente como mã es exercend o um poder, as mulheres são encaradas tam-
costum es, dos espíritos e..:los corpos. A mulher é, de inicio, para eIel a enfado-
I' 103 FOUCAULT, Michei. Dits el icrits. Paris: Ga lllmard. 1994. v.U, p. 627, 1974.
104 Id., Histoire de Ia sexualiti. Paris: Gallimard, 1976, I: La Volontt de savoir. p, 1 ~2.
101 FOUCAULT, Michel. Histoire de 14folie tl l!t1ge dass;que. Paris: Plo n , 1961. p. 11 2. ,
lOS Ibid., p. 160 .
102 Mo;. Pierre Riviere, a)'a~t égorgé ma mert, /lia soeur cl mon frere. .. . Gallimard:
JuJliard, 1973. (COU. Archives):}.-P. Petet JJearm e Favrct tálam da "mae, o tirano", 106 Ibid. , p. 193.
e B. Sarret-Kriegel analisa as ~Iações de "~cgiddio-parriddio".
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~ A~~<kt~
494 495
I
Pane 5 Capftlllo 23
Dibatn MidJd FOI~lj/t c 4'l hiJt6riu dM "mlhera

bém como sujeitos do poder: poder do esposo na familia, poder dos médicos ,i masturbaçào feminina está na ordem do dia': ~ da que cristaliza o máximo da
na sOciedade, poder das religiosas nas fábricas-conventos de seda da região de ansiedade no século 19, a tal ponto que se pratica a cauteÓzacão clitoridiana
Lyon, cujos regulamentos são citados por Michel Foucault (regulamento de Ju- com ferro em brasa, "verdadeiros suplícios", declara Foucault,1II que, questiona-
jurieux, por exemplo) como exemplo acabado de pa!1-optismo industrial;I07. do sob re o mesmo assunto dois a'nos antes, respondera que"não via diferença
poder do Estado enfi.mycada vez mais assombrado pela diminuição da natali- sexha! na repreSsã? da masturbaçl!o.'" Assinalemos que o dou\~r jean-Philippe
dade e preocupado ciÍm a política de';'ográfica. O corpo dominado di mulher, Catonné, médico psiquiatra, conduziu ulteriormente uma pesquisa sobre estas
até a despossessão de si que 'é a hi steria,de que Charcot é o encenador, inscre- práticas para tentar avaliá-Ias. Elas foram realizadas em toda a parte no mundo
ve-se, a I:'artir de então, no programa de pesquisa de Michel Foucault, que se ocidental, em graus de intensidade 'yari,áveis. e difiteis de avaliar) em uma esêa-
pr~põe a compreeqder como se 'fproblematizo u" a sexualidade das crianças, e ,Ia bastante grande'nos Estacios Unidos e !penor na França." J
em seg uida, a das mulheres, e enfim. a dos pervertidos. 'OI Primeiro volume da Michel Foucault toma então maior !,=onsciência da opressão espedfica
História da Sexualidade. A Yomade de saber anunda em sua contracapa um do co1rpo das tnu:lheres. Ele se interessa. ap6s Geori'es Duby. pelo amor cortês
tomo quarto a ser publicado' A Mulhec O Mãe e a HjstérÍía. Sabemos que isto como estratégia de poder, pelas mulheres woostwosª5 assassinas de crianças
não ocorreu, mas'o próprio projeto indica Wlla mudança de status das mulhe- de quem elas cuidavam (Henriette Comier, 1825) ou de seus próprios filhos,
res na reflexão de Michel Foucault, ~m uma ótica mais relacional, diretamen- como a camponesa de Sélestat que "áprovelta da ausência de seu marido que ..........
te utilizável para uma história das mulheres desde já em pleno desenvolvimen"'- fora trabalhar para matar sua filhinha, cortar-lhe a perna e çozinhá.:.la na so-
to tanto na França quanto nos Estadbs Unidos.. "" pa".1I4 Estas mulheres que contradizem o esquema clássico do amor maternal,
.ti significativo ver que se questiona cada vez mais MichelFoucault a este ilustram a "irr~pção ~a contra-natureza". Michel Fouca~lt interroga-se sobre a
respeito. Lucette Finas pergunta-lhe, em 1977, para Ln Quinzaine Littéraire: "O medica1jzação do corpo feminino e suas inflexões recentes: "Por m uito tempo,
senhor tem o sén~Jllento de que sua História da sexualidade fará progredir a tentou-se ligar as mulheres à sua sexualidade. - 'Vós não sois nada além de
questão feminina? Penso no que o senhor diz sobre a histerização e a psiquia- vosso sexo', dizia-se às mulheres há séculos. E este sexo, acrescentavam os mé-
\ - -
triz.1ção do ~orpo da mulher': Michel Foticault lhe respo nde que ele tem "algu-, dicos, é frágil, qua~e sempre doente e sempre indutor de doença. 'Vós sois' a
mas id~ias, mas hesitantes, não ftxadas': 110 J. Livi, para Orn;car, interl?ela-o a res- doença do homem'. E este movimento) muito antigo, avançou pelo século l8,
peito da masturbação: "O senhor não con~idera que não valoriza suficie.nt~­ chegando a urna pat'ologização da -rnulher: ,o corpo da mulher se t6rna coisa
mente a diferença e?tre os sexos?"~ MidleI.Foucault replica 'que a masturbação -. ni"édica .por excelência. Eu tentarei mais tarde fazer a hi~tória desta imensa gi-
foi inicialmente .problematizada como masculina. Mas, a partir do momento _ . necologia 'no sen tido amplo do termo'~1U -
I
em que o sexo das mulheres assume u.
m a importância médico-social, "então a Michel Foucault ~unca escreverá sobre a mulher hist~rica, Ele está, a
- I ._" . _ , •
I . ,r partir de então, preocupado com o surgimento do. modelo de sexualidade "oor-
, \
107 FOUCAULT, Michel.-Dirs tI tcrits. Paris: GalJimard, 1994. v. U, p. 609-611, confe- ,
r~ncia no Rio de Janeiro. maio de 1973. Id., Survtilltr ét punir. Paris: Gallimard,
1975. p. 30:;. -
, .
}~ 1 FOUCAULT, Michel. Dirs tI ~CTjts. '~is: G~imard, 1994. v,IU, p, 319,jujJ. 1977,
J 12 Ibid .• v. lI , p. 778. oet. 1975.
,108 Id,. Dits et écrits. Paris: Gallimard, 1994. v. 1I1, p. 381, 1977. , _ 113 CATONN~, Jean-PhjJippe. Hippocrare,' Foucault et I'ltistoire de la sullaliti. These de
109 Sobre os desenvolvimentos desta história,: cf. PERROT, Michelle.- Oil en est en l'Université Paris l,janv. 1990.
France I'histo~re des femmesr French POli1cs cmd Society, v. 12/1, p. 39-57, hiver 114 FOUCAULT, Michel. ()its tt ür;ts. Paris: GaJlimard, 1994. v.m, p. 445. 00. 1977,
1994. ,_. '. : ,publicação janeiro de 197~.
110 FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. Paris: Gaílimard. 1994. v. In, p. 2.326, janv. 1977. " 115 Ibid., .... til, p. 257, Le Nouvtl Obstn'ateur, 12,21 mars 1978, ~No n au sue roi~
.r "

496 "
497

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Pllrtc' Cllpttlllo 2)
Inlmtcs Mkhd ForwlUlt e ti Ilisr6rill dar t!wllrercs

t
mal" no Ocidente: o ca§al conjugal heterossexual. As conversas com Paul Vey- sua liberação. Contra a lei restritiva que se prepara, o GIS toma posição dara-
ne. em 1978, acabam de convencê-lo ' da necessidade de abraçar a longa dura- mente: "Ele exige O direito ao aborto, ele não quer que. os médicos sejam os
ção. Ele descobre que o período crucial não é O cristianismo primitivo, mas a únicos a deter a decisão; ,ele não quer um aborto em duplo benefício daqueles
Antigüidade Romana, mu ito qiferente da Cidade Grega. Sociedade viril. ela ela- . que têm o poder de tirar proveito de1e",110 Ao questionar a sexualidade da re-
borá uma'''moraJidade)'iril [ ... ) feita do ponto de vista dos homens" e é funda- produção, chamada de "normal", o movimento das mulheres tem um alcance
da sobre a dissimetrii sexual, a opressão das mulheres, cujo prazer impo rtava ' subversivo; ele' tôca no coração da Cidàde e do Estado. 111
pouco, a "obSessão da penetração". "Tudo isto ~ francamente repugnante>~ diz Mjchel Fouçaulr se mostrará mais hesitante e reservado sobre a Questão
ele a Dreyfus e Rabinow. lI' ~m sua apreciação da moral sexual e dos estilos de do estupro. Aue provocou debates conhecidos, inclusive entre as feministas.' n
.vida, Michel Foucault se mostra mais sensível à diferença entre os sexos e à· de- Seria preciso agravar a repressão judicial do estupro, criminalizando-o, o que
sigualdade de seus poderes; que obriga as mulheres à astúcia e à recusa: "A mu- implicava em levá-lo para O lribunal do júri, a titulo de "atentados contra as
Ol

lher podia fazer toda uma série' de coisas: enganar (o homem), surrupiar-lhe o pessoas" e não mais para o ttibunal correcional; no caphulo "golpes e. feridas ?
dinheiro, recusar-se s~xualmente. Ela sofria, no e~tanto, un~ ,estado de do~ina­ Mkhel Foucault teve, sobre este ponto, discussões com mulheres, criminalis- .
,I tas e psiquiatras .em que, todas, insistiam sobre a gravidade do estupro e sobre
ção, na medida em que tudo. isto era apenas um certo número de ardis que não·
conseguiam nunca alterar a situação. Mas em caso de dominação - econômica, a importância real e simbólka e a legitimidade de tal requalificação. m As hes i-
soc~al, institucional ou sexual-, o problema é, de fato, saber onde se forma a re- ta ções de Michel Foucal.llt lhe valeram um artigo bastante duro de Monique
sistência ,"'" Ele diz ainda: "As relações entre os homens e as mulheres [... ] são Plaza. "Sexllalidade e violência. Q não-qnerer de Michel Foucault", ab qual ele
,-
relações políticas. S6 podemos' mudar a sociedade murl:ando estas relações".1lI respondeu não menos vivamente. U4 Ele repui'nava visivelmente nãe-a~-ll;u.
Com~ não ouvir aqui o eco\do discurso da época, que ele tão fOrt'emepte,con- Que se agravasse a penalidade, mas que se s"bmetesse a 'sexualidade à lei. ~ sen:'
tribuiu a forjar: "o pessoal é político", é o cotidiano que se deve mudar. . sivel, igualmente em suas interrogações relativas ao incesto cujo caráter de
Em' que medida, o movimento de liberação das 1l1ulheres, desenvolvido tabu universal e absoluto ele rejeita, na linhagem de uma posição resol utam en-
na França da década de setenta,lIJ teria uma influencia na modificação do te discontinuis·ta. "A grande proibição do incesto é uma invenção dos intelec-
olhar de Michel Foucault sobre as mulheres? Podemos, e~ todo caso, consta- tuais", diz ele em uma enttevlsta com J. O'Higgins. 1lS
tar, através de Dits et écrits, a que ponto .ele as leva a s€rio. Desde 1972, ele dá Se a força dos feminismos contemporâneos não lhe escapam, ele apre-
o se u apoio ativo ao GIS (G roup'e d'information santé - Grupo de inform~ção "" cia igualmente sua capacidade de invenção, que julga às vezes superior à dos

-' saúde) , constituído aliás .sobre o modelo do GIP (Groupe d'information pri- ·1
~o ns -:- Grupo de informação prisões), q ue se engafa.-a o lado das mu lheres na _ I, l20 FOUCAULT. Michel. Ditset écrits. Paris: Gallimard, .1994. v.lI, p. 447,1973.
- luta pela QeScCimjoaljzação do aborto (proc~so d~ Bobigny, abTiI de 1972). 121 Ibid., v. 11, texto 138, "Sexualité et politique'~ avrilI974:"t compreensível [... ) que
Corri AI~iÍ1 Landau e jean-Yves Petit, ele publica n'o Le NOllvel Observa/eur (29 a sexualidade chamada de normal, isto é. reprodutiva da força de trabalho com +
de ~utub'~~ - 4 de novembro ~.e 1973), um texto de apoio ao m~vimento po~ tudo o que isto supOe de recusa das outras sexualidades e também de sujeiçpo da
mulher - queira mostrar-se normativa".
122 PICQ. Françoise. Libiratiotl del femme.s. Le.s annéel Mouvement. Paris: Seuil, 1993.
capo 19, "R.1S le vio!!", p. 234-249.
.- 116 F"Uq..ULT. Michel. Dits eticrits. Paris: Gallimard, 1994. v. IV, p. 388. 1983 .
123 FOUÇAULT, Michel. Dits tI tcrits. Paris: Gallim::u"d. 1994. v. m, p. 351 -353, oct.
11 7 .Ibid., v.lV, p:72 1,1984. - ,
1977.
' 1I8 Ibid., v.lII, p. 473, 1978. . . I, 124 Ibid., v: IV, p. 349, 1981.
119 PI CQ, Françoise. Libération deJ femmes.1fs arltlées Moul'ement. Paris: Seuil,.1993.
125 Ibid .. p. 335, 1982.
, Um histórico indi"spensáveJ. I --. "
.'
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M,drd Foocóll4/t.e .. hi,t6ri.. dtu 1llIIIIlera

movimentos gays análogos. Por muito tempo mais excluídas do que os ho-
ção cultural e cotidia na, quanto ele incita .I
à rejeiçã o de:. qualquer definição
~
mens, as mulheres souberam utilizar esta penumbra como um liberdade. Mi-
identitária: "Não se trata [... ] de recus"'a r a injunção de identificação à sexua-
chel Foucault cita por diversas vezes, o' livro de Lilian Faderman, Su~p~sing tl,e
lidade, às diferentes for~as de sexuaHdadé [... ],-Eu recuso aceitar o fato de
love Df men (Nova York, 1980). A autora descreve ali a vitalidade da sociabili-
que o.individuo poderia ser identificado com e atrav~s de sua sexualidad e'~u,
dade feminina, a' diversidade das formas de troca, afetiva e sexual, entre mu -
A identidade pode ser um modo de prazer ou de luta: não uma "regra ética
lheres, incluindo esta-arnizade que Michel'Foucault gostaria tanto de ver se res-
W1iversal '~ Às vésperas de sua morte, ele rejeitava qualquer forma de essen~,ia­
taurar: do lado dos-homen s. Segundo ele, o cará ter misto da vida contemporâ-
nea dissolveu as sociedades monossexuais lU do passado de que as mulheres
lism o. Não há, sobre este ponto, dissonância entre os últimos textos de Dits et '1
écrits e o tom dos últimos livros.
so uberam tão bem cuida.r e que elas estãó em vias de reinventar. Ele evoca, com
nostalgia, a respeito _do-convento ·onde foi ed ucada Herculine Barbin, (Cestas' so- Es timulante para a reflexão filosófica feminista, a busca de Michel Fou -; \
ciedades fecJ:1adas, estreitas e qu entes, onde se tem a estranha felicidade ao caJlrtambém o foi, o é para a história das mulheres? Na verdade, esta história
. • ._ i

mes mo tempo obrigatória e proibida, de co nhece r apenas Um sexo'~127 Ora, se desenvolveu-se por s43 própria iniciativa. Ela procede, provavelmente, mais do
é importante ter "bo_as reJações com as mulheres", estas ·rela ções não passam .~ \ _\ movimento das mulheres do que da obra de Michel Foucault. Mas encontrou
necessariamente pela,s situações mistas. to' l'
~\ tJU \ - ali um terr~no favoráveL ~Ja encontra bnje na fuustpsa "caixa de ferçameptas"
Desta forma a homossexualidad.e feminina - pois é dela que se trata ,,-;;~ c),e que ele nos deixou, um &rande número de conceitos fundamentais, de instru-
sobretudo - Lhe parece uma. experiência de uma particular densidade, no la - ~ mentos operatórios e de~incitações originais, alguns dos quais eu gostaria sim-
-damente..quanto à criação dos estilos de vida, e não unicamente centrada no ~ __ . _ \ plesmente de indicar.
sexo, cujo princípio de identificação Michel Foucaul t rejeita. u, De fato, po.r
,
!. ~~t _ ~
Por ma crítica dO psscnçja1ismo dO uniyersalismo, Michel FOucault
diversas vezes ele se declara hostil ao comw1üarismo sexual. A um fotógrafo I . oferece, inicialmente; à história das mulheres, uma base conceitual e armas para
americano, J. Bauer, que.solicita sua opinião sobre os diversos movimentos de seu trabalho de descon'trução das palavras e das coisas. Não há objeto,' natu-
. liberação sexual, Michel FoucauJt responde que ele admira sua força de ~on­ , rais, não há sexo fundado na natureza. O Homem está morto? A Mulher tam-
' tes tação, mas lamenta sua definição categoria!: "O fato de serem organi zados bém. "A mulher não existe': dizia também Lacan, ~sando particularmente a
segundo categorias sexuais - a liberação da mulher, a liberação homossexual, psican~lise, à qual Miche.l Foucault recusava .igualmente a pretens30 de afirmar
a liberação da dona:de-casa - é extremamente prejudicial. Co mo ·se ,pode efe- a eternidade de uma sexualidade feminina, ao contrário, inscrita nós meandros
tivamente liberar pessoas que são ligada~ a um grupo que exige a subordina- . do tempo. A historicidade governa a~ relações. entre os sexos, construção· social
ção • ideais e a objetivos'espcdficos? Porque o movimento de'liberação da l que evoca o IIgênero" (gender) - Michel Foucault nunca emprega es.têl pa.lavra _
mulher deve reunir apenas mulheres?"llf .E verdade·'que estávamos em 19~8.
Mas par'eée que as coisas não variaram muito em seguida. Em ~9·83-1984, tan-
da. pesquisa americana e eixo fundamental da história das mulheres. Existe aí,
então, maü do que um encontro: a adesãõ a uma lógica idêntica, talvez o per-
.,
to ele incentiva os gaY5 a desenvolver - assim como as lésbicas - ..sua imagina- tencer 'a um mesmo episteme. Õo mostrar em que contexto nascem a figura da
' . ,
:mãe triunfante e subju&<;da, ou a da histé.rica, Michel Foucault rompe resoluta -
~ I m ente com Q eterno feminino dos- médiços c dos biÓ1oK9s cujos discursos, nos
126 FOUCAULT, Michel. Ditr tt écritr. Paris: GalJimard, 1994. v.N, p. 281~288 , mars
1 9~2. ~éculos 18 e 19, r~forçavam a sujeição das ~ulheres a seu corpo e a ~e1,l sexo: in~
127. Ibid., v. IV, 121, novo 1980. tujção que Thomas Laqueur desenvolverá. Não existe o ser mulher. <tA história
,
128 1bid., v.lII, p. 32 1, 1977. \
129 Ibid .. p. 677, oct. 1978.
, , 130 F0UCAUlT, Michel. Dil$ tt écrits. Paris: Gallimard, .1994. v. IV, p. 663,1984.

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Dt:botn C(lpitlllo 23
Mie/leI FOllc(lll/t c a história d/ls n/tl/lltro

será efetiva na medida em que introdu zirá O discontínuo até em nosso próprio
Neste sistema, o luga r da famüia e do corpo é essencial. Foi por es te viés
ser."1JI Também não há j<norm:t" da mndnta das m"lheres: a maternidade não
que as mulheres foram reintroduzidas no ~iagrama de forças que constituem
constitui sua imutável missão. ~Ia's não têm a vocação única para a reproçiução,
as disciplinas.~Nós o vimos no que foi tratado anterjormente._Mas resta mui'to
qu"e a~ fixava "em um tempo i~óvel quase fora da história. O nascir~ento das
a fazer para compreender as formas de sua adesão, de sua adaptaçâo ou de sua
m~lheres na 'narrativa hi~tórié~ supõe a ruptura com esta .visão.antTopológ.i'ca.
, rec usa, para captar 'Seu próprio papel na modificação do c ur~o das coisas. As
. Michel Foucault contfíbuiu para este d.ifi~Ú parto.
grandes descontinuidades que marcam a história da s mulheres e da s relações
Em segundo lugar, O interesse pelos discursos comuns, as vidas "ínfi- . I·
lentre os sexos estão ainda por delimitar, por descobrir.
mas" e as silh~etas desconhecidas que se captam nos textos marginais. o des- Quanto à história das sexualidades femininas, sob todas as suas formas
vio de uma frase ou de um proce sso convém JUllito bem às º?Illbere~. Apreen-. tão ri cas e tão pouco exploradas, ela continua a ser um imenso jardim secreto.
demos a sua rtpresentação menos, n,!s obras filosóficas do que nos manuais de Poderíamos encontrar aí as amigas. as amantes, as esposas fiéis ou volúveis, as
co mportamento e bem-viver ou nos tratados de higiene. Tentamos captar seus mães, boas e ruins, as moças seduzidas ou sedutoras, as frígidas e as ardentes,
gesto,s e suas palavras nos arquivos da repressão, policial ou judiciária. Dl En- as histéricas abandonadas por Foucault, as pacientes de' Freud e de seus êmu-
fim, as técnicas de si suscitam escritas femininas - corres'p ondências, diários los, as léshicas, cuja história está por escrever, a despeito de algl;lns estudos pio.
'futimos - que permitem acompanh~r se u surgimento como sujeitos. neiros (M.-J. Bonnet),11l as hermafroditas, os travestis, a~ toucas que vagam nas
Estas práticas foucaultiartas da pesquisa hi~tórj,ª (que Michel Foucault ~onas ince rtas da sexualidade onde se dissolvem as identidades e que MiChel
tomou emprestado aos historiado:res tanto quanto o inverso) aplicam-se à his- Foucault tentara encontrar. ll4 /

t6ria das mulheres. bem ,como os estudos de caso de uma miàohistória aten- De Madame jourdain a Herculine Bar~in: a "vontade 'd e sabern sobre as
ta ~os conflitos, revcladores das t~nsõ~s c<;>tidianas e dos jogos de.poder. Gesto mulheres, pode tomar, na o~ ra de M.ichel F<?u~_ault, mil caminhos diversos.
dos obscuros, as noti c;ias policiais fazem surgir as mulheres, protagonistas ou, ,
mais freqüentemente vítimas, da son~bra da casa.
A análise foucaultiana dos poderes é também adequada à pesqui sa so-
.bre as mulherGo5 e às relaçÕes entre os sexos. Ela obserVa os mjcropoderes, suas
ramificações, a organização dos tempos e dos espaços, as estratégias minú~cu­
las que p~rcorrem lima cidade ou urna casa, as formas de consentimento e de .
resistência, formais e informais. Ela se ocupa' não somente de rf;JuessãQ mas
de prOdução dos cO~PQrtªmehtos. Conside~ar coma as mulh~res são "produ-
Zidas'.' na defin'ição variável de sua fe~iniJidade renova o olhar lançado sobre
os siste~aieducativos, se us princípios e suas práticas .
.'
131 FOUCAULT. Michel. Dits et écrits. Paris: GaJlimard. 1994. v. U, p. 147, 1971. ,
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~Iisabeth C1averie, de Pierre Lamaison e oUt,{os são baseados essencialmente neste c/l:. Paris: Odile Jaco~, 1995 (ed içã9 consideravelmente enriquecida com Vn cho ix,
tipo de arquivos a serelll publicados: SO HN, Anne-Marie, Les R61es féminills dm,s SO IlS équ ivoque, Paris, 198 1), com uma importante bibliografia . .
la vie 'pr;'lée•..,1880-1930. Pre~es de' la Sorbohne. 1996, que se baseia n3 análise dé
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·7.000 dossils do tribunal do júri, colocando\em cena conflitos -famiIIates.
, .
. , 1978.
.'
, ,. ,
502 ·
, 503
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••- ....... =...
~--c----------------.--------c---

• .,, .
I

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.~
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"
,i
508. , "
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Barrr, Joseph, 415. Bock, F'a bienne, 20. Bruncschvicg, Cédle, 333. Clifford Barn'ty• NataJie. 229.
Bartky, Sandra. 472. Bogelor, lsabelle, 284, 370. '" Brunhes, Jean. Madatne'Henriette, 236, 283, Calbert. 208. 230.
Basch, Françoise, 22, 62n, 79n, 292n. Bonald, 'Iei de, 270. . 285. Colette, 18.31,484.
BasSOf, Marie-Jeanne, 285. BuchO"l, 391. Comte, Auguste, 269.
, Bonald, Monsenhor de, 370.
Bastard, duque de, 102;..-.r . BonapOlrte, louis-Napoléon. 409-10. Bulo2., 390. 394-5. Condorcet, In, 315, 330, 459.
Baud, Lucie, 30. 247. Bonheur, Gaston, 224. Burdy, Jean-Paul, 190n, 255. Corbin, Main, 12, 38, 4011, 132n, 150n,
8audelaire, Charles, 113, 118, 129n, 142, Bonheur, Rosa, 359. .Bure, Esther. 310. .' 262n, 301n, 345n, 354n, 370n, 400n,
302.350. Bonnet, M.-J., 116n, 503. , B:uret, 366, 368. 4120, 428n, 448n.
BaudrIJlard, Jean. 274. Bonnin, BIOlise, 396, 39~, 400n, 402 . Burlingham. Dorothy, 442. Cornette, 1oll, 286n, 431.
Bauer, Felice, .<156. Booth.287. Burns. Lizzie, 57. Cornier, Henriette. 497.
8auer, J.,soa. Bordo. Suzan, 490. Suller. joséphine•.282. 284.306. Cott, Naney, 277n, 280n, 298, 310n, 472.
Su, 71 n, 75 •.76. Borie, Victor, 397, 402 , 410. Couriau, caso, 189,247.
Dazin, pai, 98;137. Dottigelli , ~m il e , 57. C .Cou rt, Antoine, 320. .
Beaumont, Gustave de, 36.92, 12L B~tti geHi, Marcelle, 87. Cabet. 172·3.411. Courtois, L., 263n, 507.
Beauveau, de, 121. Bouboulina, LascOlrinOl, 313. Caeouault, Ma rlaine, 252, Crawford, 10an, 443.
Beauvoir, Simone de. 14, 18.. 34n, 82n, 3'06, Boucoiran, Jules, 406, 386n, 388n, 407n. COlmeron, Julie Margaret, 305. Cremnit1, Blanche, 324. ,
351.440.483.485. Bougueréau, i02, 118. Úlmp. MOlxime du, 35 1, 461. Cresson, Edito, 327.
Bebel, Augwt, 70, 83. Bou rdieu, 468. Campan, Madame, 455. Cullwick,. H:lonah,297.
Bédarida, François;68n. 79, 372. Bourdon, Mathilde, 89, 941l, 106. CaPY. Marcelle. 452·3. ,
Belgiojoso, condessa, 302. 312-3. Boureau, A1ain, 15 1,429,448. Cardoze, Jutes, 214, 357. o
Belmont-Vanderbilt, Ava, 294. Bourges, Michel de, 20.8, 389, 415. Carnol, H ippolyte, 400. Dabadie, Jean-MouCo 364.
Benjamin, Walter, 239. Bourgois, 121. Caroux-Destray, Jacques, 42, 438. Dabot, Henri, 352.
Renoit d'Azy, 127. Bourke-White, Margaret, 305. . . CastilhOl, Blanehe de, 334. Damas, de, 121 .
Bentha~, JereOlY. 68.
B~ranger, 369.
Bourneville, doutor, 256. Catonné, Jean -Philippe, ,
. 497. Darien, 446.
Bouvier, Jeanne, 30, 283, 297, 303. Cavaignac, 40211, 408. Daubié, Julie, 33 1,352-3.
Berberova, Nina, 298. ' BradIOlugh,54. Céline, Louis-Ferdinand, 18. Daumier, Honoré, 312, 324, 420.
Berenson, 299. ,- Brahimi, Denise, 301. Chaperon,Sylvie, 19n •. 258,478. 487n. Dauphin, Cédle. 22, 29. 264, 345, 428, 469.
Bernard, Joseph, 85. 11 7, 179, 180, 185,355. Oraidoni, Rosi, 490. Charcot.496. Dauthier, lr~née, 176, 178-9.
Bern~8e, Paulette: 256, 437. Brame, Úlroline (ver Orville), 89-90, 930,""'- Charles IX. 185. David-Néd, A1exandra. 304.
Bemstein, 69, 75. 105. Chartier. Roger •."29. Davidoff, Leonor, 297, 456, 472.
Bernuzzi de .Sant' Anna, Denise. 472. \ Bmme, e.dounrd, 91,1 100,12 1,124. Chassagne, Serge. ISO, 253 n. Oavis, Bette, 335:'443:
Bert, J;-C., 300. I Brame, e.mjle, 14 3. .Châtelet, François. 202, 489-90. Davis, Nathíllie, 25, 253. 364, 502 .
- Bert,'pall~ ~3 1. Brªme', Louis, 114. Chaumette, 330. Debange, Berthe, 119. pO.
Besa~t. Annie. 83, 292. Brame, Paul, 132. Chauvin , Jeanne. 77, 323. 465. Decem, Laure, 385.
Bestktti.185. Braun, Lily, 295. , Chesneaux, Jean, 21. Deffand, Macl1me du, 463, 485.
Bief, 270n, :176. Br~da, Claire de, 110. 118n. Chevallier, Jacques, 455. Delaborde, Antoine, 384.
S ·_got,
I Ann .lCk ,256.
Bréda, Thérese de, 1 16, 118. Chevojon, abb~, 101 , 133,>1""36, 141-2. Delaborde, Sophie, 384.
'Bigottiere, Hemietté de la, 393n. 413. BrentOlno, Bettina , 285, 306, 367. Chirae, Jaeques; 327: DelavOlu, Charles, 406, 418.
Bilcescu, Mademoiselle, 352. Breton. Andr~, 274, 439. ' Choiseul-Praslill;. duque de. 298. Deleuze, Gílles, 262, 490, 495.
Billoux, François, 442. Bríttãin, Vera, 439, 440. Chopin, Frédéric. 391, 394, 397. Delphy, Christ"ine, 16, ISO-I .
Blanc, Fléonore, 368-9, 376. BrÍve. Marie-Franee, 23. Clcer'o,9. DémOlr, C laire, 86, 311, 416.
Blanqui. louis Auguste, 392,.406. Brohan, Augustine, 402. CixOllS. H~lene., 199n, 480. Demuth, Helene. 48,57,62-3,65.
Bloeh, Marc, 15. Br~u, Diane de, 119. , Clanci1er. Ge.orges, 229, 453 . Dentier.e, Marie, 319,

510 511
IlIdice OllOlIuUria;l , I.wklf: ont:Hllds.iw

Oeroin, Jeanne, 278, 277, 31 J, 420, 474, 484. Enfuntin, Pai. 86,172.320,416. '1 Freud. Anna, 442. Goffman. Erving, 349.
Oerrida, Jaeques. 485. Engels, Friedridl, 48. 53,56-8, 6Ó- I, 63-4·, Freund, Gisela, 305. Goldrnan. Emma,"292, 294, 303, 324-6.
Descaves, Lucien. 323. 66-8,70,74-5,77-8,85-6,267. FreVl!rt, Ute, 281, 472. Goncourt, Edrnond de, 143,323.353.
Desmazi~res. Marguerite. 119. Escaille, Mr de I: 11-7, 133. Frey, Michel, 191. Gosset.376.
. Devéria, Achille, 39. Esmein,332. Freybe.rger. 57. Gotman. Anoe, 508. •
Dézamy, 172. .... Espart, marquesa d~ 493. , Friedan. Betty, 443-4. Gouges, Olympe de, 330, 381, 424.
Dialllond, lrene, 490 . .__ ... Essli ng, princesa d~ 121 , 124. Frontisi-Ducroux, Frnnçoise. 431. Grass, Gunther, 212.
Dieulafoy, Jane, 304-5: tvain , Marguerite. 114-5, 121. Frugoni, Chiara, 431. Green, Nancy, 22, 306.
Doisneau, Robert, 348. • tverard,39O. Fry, ~Iisabeth, 283, 367. Grévy, Madame. 159.
Doré, Gustave, J21. Fumaroli, Mare. 317, 32 1. 323, 463. 48). Gruzinslci, Serge, 3S4.
Dorval, Marie, 389. F - . , Guattari, Félix, 490, 495 .
Oreyfus, Alfred, 323,498. Faderman, tilian, 500. G Gnéhenno, Annie, 440.
Dubes~et, Mathilde•. 1"5,0, 255. 438. Falloux, 102. Gabin, Jean, 19. Guérin', Eugénie, 96.
Dllby, Geórges, li, 16,22.24,35, 150. 153, Faludi, Swan, 485. Gahéry, Marie. 2&5. Guesde, Jules, 53, 72, 77 . .
197, 279~ 319. 320, 323, :)35, 345, 364, Farge, Arlene, 22, 25. 202, 256. 264, 344, . Galiano, 410. Guilbert. Madeleine, 19, 149, 155. 158. 160.
431. 354,428,493,502. Ganlhetta, 464. 163,168'9, 174,189,441.
Ducamp, Maxime, 461. Fauré, Olristine, 152,262,269,306,324,329. Gandhi, lndira, 334. Guindorf. Nlarie-Reine, 269, 279, 32 1, 336,
.• Duch~ne, GabrielIe, 283. Fawto, 274. SJandhi, Sonia, 334. 348-~. 382, 391, 397, 464 . 484.
Dudevanl, Casimir, 383, 386. Pawcett, Mrs, 338, 375. Garcin, i rm3s. 237. Guizot, François, 269. 332, 32J, 336, 348-9.
Dufraneatel, Christiane, 152. ~bvre, Frédérie..15. Gardanne '(nascida Brame), Paméla de, 91, 382,391,397,464,484.
Dugllit) 332. Ferry, Jules, 179, 331, 371. 100. Curney, Russd, 308.
Dumay, Jean-Baptiste, 192, Fic.hte. Johann Gpnlieb, 438. Gardey, Delphine, 151. 153. Guyomar, 330.
Dumont, Albert, 92,107,137,140. Figner, Vera. 323. Garibaldi, 122. '
Dumont, Stéphanie, 118. Finas, Lueette, 496. Garnier-Pagés( 101,390. H
Dunand, Henri, 287. . Fine, Agn~s, 23. 38, 469. Gaspard.253. · Habermas, JOrgen, 262, 462.
DupanJoup, Monsenhor, 125, 131. Finet,..M,arie. 163. 166. Gatteaux. Eodouard, 91, 100,. 105, 108, 1I~, Halimi, Gisêle, 17.
Dupin~ Claude, 378. Flandrin, Hyppolite, 91,100, 108, 121. 121. Hall, Catherine, (156, 472.
Dupont, Marguerite, 208, '232. Flandrin, Louis, 2 1. Gau, 102. Hamilton, Mary Agnes, 291.'
Dupl1lt, Cathea;jne, 281. Floubert, 108, 135,31 2, 413,4\7,473. Gaulle, General de, 106,327,445,487._ H~rdie, Keir, 86.
Durand. Marguerite.. 293, 453. Fontanges, Marguerite de, 116-8, 121. Gavarni,429. Hartso,k, Nancy, 4~0.
Duras, ~arguerite, B. Foucart, facques, 91-2, 138, 144. Gay, Dés irée, 132-,278,277,49 1. Hauriol\' 332:
DlIris-Dufresne, 386. . ;. Foucault, Michel, 135,26.2-3, 329,434,461, Gentry, Gertnlde, 64. .. Hause, Steven, 445.
. Durkheim, ~mile, 15. 463,467,470,485,489-503. Georgoudi, 14,267,468, Hausen, Karen. 233, 243, 436, 442.
Ouru-Bellal. 153,477. _. Fouque, Anroinette, 22, 474, 479. G~rando dt\ 287,367. Haussonville, conde d ~ 300.
Duruy, Vi7'9r, 94, ~31. Fourcaut, Anoie, 257, 367.
- I
Gide, Charles. 28:3. Hébert, 121. '
Fraisse, Genevieve, 105, 152,274,265,268, Gilland, Jér6me-l?ierre, 394, 401, 420. Hegel, Fried;ich, 79, 269, 459.
E 269,271,275, 28), 2~4, 309, 312, 328. GiI1igan, Carol, '4 44,485. H"emingway, Ernest, 440.
Ea ubonne, Françolse d', 21. , 330,335, 339, 351, 419, 423, 427, 430, Giorgio, Miebela.de, 472. H ~nry, Louis, 16.
Eberhardt, lsabelle, 300, 303-4. 463,467.468,473,482,507. Girardin, Ddphine de, 34. Hephurn, Katherine, 443.
Eck,47L Franck, César, 102. Girerd. Frédéric, 398. 400~ Hepp, 335. -
Edelman, Nicole, 124,320. Fro:pié, Léon, 452. . Giscard d'Estaing, Val~ry, 327.\. H~ritier, Françoisc, I 1, 15,341,434,475.
Eleh, Monique, 462-3, 487. Fre~erik, Christine, 437. Gisserot, Hi:lene. 467. , Hetul,407.
~ ,
Elias, Norbert, 335, 456.
EJshtain, J:me, 432, 444.
,
Frebch, Morilyn, 485.
Fre}>pel. Monsenhor, 306.
. Godelier, Maurice, 22, 258, 5D6. Higonnet, Anoc, 431, 47J.
Godineau, 320, 330. HiII;Octavia, 281, 286.
Elshtain, Jean Bethke, 444. Fretld. Siglnund, 50. 99, 460, 503. , Goethe, Johann Wolfgang von, 310. Hirata, Helenôl, 153. \
.'

512
51,3
ll1dice o,tomás/lm Judia oltomásr;eI'
,

Hirschman, Albert. 413. 437; .- Lacordaire, Henri. 102,352. Lévi-StrouS$, Claude. 15, 475. Martin, Jul ie, 175.
Hobsbawm. Eric, 472-3, 508. Lacorre, Suzanne. 333. Lévy; Michel, 4 1n, 50n, 59n, 60 0;'63J1, 65n, Ma rtm, Louis-A..imé, 266.
Holker, John, 227. Lafa'rgue, Paul, 46~7, 49, 53-4 ,'-65, 77 .. n n, lO9n, 118n, 140n, 382, 395n, 409n., Martin, Martine, 22511, 256.
Holk.er, Marie, 116, 118. Lagtave, Rose- M~rie, 22. 4110,4300,4500. Martin-Fugier, Anne, 34n; 36n, 62n, 104n,
Hugq, Uopoldine, 38. Lalouette, Jacqueline, 262n, 348n: 462. Lewio, Jane, 300. 105n,139n, 244,249, 274,346,4480 ,472.
Hugo. Victor,414. , Lamaison .. Piem:, 12n, 30n', 27611, 451, 5020. · Lewis, Oscar, 40, 242. Maruaoi, Margaret, 153.
Hunt. Lyon. 433, 457'" ..... ·-- . Lamartine, Alphonse de, 38, 395, 407. Leyret. Henry, 204, 203n. Marx (casada L.1furgue), Laura, 46, 49, 53,
H u.rtig. 467. lambert, 40 L, 440. Liebknccht, 55,78. 57,60- 1. 66,7 4,77,87.
H)'lldl)1an, H . M., 55, 68, 7 1,.74 . Landau, Alain, 498. Lihus, de, 121. Marx (nascida Westph~len von ), Jenny, 46,
Landês, David, .:223. .Lisieux. Teresa de, 131 ,349. 47-52,54- 6,58-9,63, 69, '76,80.82,84,
Lange. Helene, 295. Liss..~garaY, 48, 50, 85. . 86,51,228,357 . I ·
Ibsen, Henrik>, 83, 85. Lapoi nte. Savinien. 369. 396. Lissarague, François, li . Marx, Eleanor, 62, 63 o, .640. 650. 83n. 292.
Ingres, Jea n Auguste. 9 1, 100, 114, 121. Laqueur, Thomas, 337, 382n. 460, 467. 470, · tist, Frédéric. 8 1, 449. Ma rx:Karl, 26. 36, 45, 46n, 50n, 51n, 630,
lrigaray. Luce. 480. 486n, 491 ,-50 1. Li vi, ' ., 496. 66-8 1,83-7, 138,303, 505. -
IsainberHamati ô 332 . . l.arroumet, 352. Lockroy, 403. Mathieu, 14 2.
Late rza, Giuseppe, 24. Lombroso, 35 n; 31 3. Maugue, Annelise, 267n, 446n, 473.
J Laterza. Vito. 24. · Longuet, Ch"arles. 46-7, 5 1, 53-4, 65, 69 . . Maupassa llt, Gu)' de, 448;452.
Jaures. Jean. 9. 60. Latour, Fantin, 234. Longuet. Harra, 48, 65, 69. Mauriac,Franço is, 19.58,138, 198,4 14.
Jenso.n. Jane, 442 . , Laun ay, visconde de, 34. Lo~guet,1ean, 60, 65, 69. Mavrogenous, Mado, 3l3.
Joliot-Curie, Irene, 333. Lavater, 134,369. I Louis, Marie-Victo ire, 1510, 2290, 268 0, Mazzin i, Giuseppe. 312-3, 397.. 107, 40811,
Jourdain, Madame. 493, 495. 503. Layre, Edmond de, 116, 121, 1.39, 145. 276n, 429, 430, 447n, 452-4. . 419-20, 423. I
Layre, Marie de, 105, 121, 145. Louis-Philippe, 115, 138,217,298,390. McBride, ·Theresa. 245~
K Lazard, Max, 287. Lutero, 320. Médicis, Catarina 'de, 335.
K..ifka, Franz, 456. l..e Bon, Gustave, 348. Lr, Arria, 474. Meier, O lga, 450, 87, 505.
Kail.467. Le Chapelier, 449. Lyaute y~ Louis Hubert , 304. Mercier, Sébastien, 220, 285n.
Kaplow, Jeffry. 191, te GOff,'1acques, 2 1.~ Ntermillo d , monsenhor, 94, 96n, 125, 127n.
Kaufman; 479. Le Play, Frédéric, 15,30, 202-3, 2 19n., 236, M Meunier, Lou ise, l75.
Kautsky, Loul,se •.4.8 , 55, 57, 69, 70. 242,248,274, f83. Mac Nay, Lois, 490. Meure, Charles, 386-9.
Kergoat, Oaniclle, 153. Le Rider, Jacques, 473. MacK.inooo, 485. Michaud, Stéphane, 129n, 285'n;' 296, 347,
Kergomard. Pauline, 324.
Klapisch, Christiane;"22. 2411, 256n, 27Úi.
Klejman, Laurence, 3t3n. 3240', 453o, 478,
te RoyLadurie, Emmanuel, 2 1, 508.
. Lebaudy, 161,29 1.
Ledru-Rollin, Alexandre.f'--uguste, 390, 403.
-- Maier, Charles, 436.
Malkiel, Theresa,.292.
MaUet, Joséphine; 283.
363,364 n, 365n , 370n, 506,507.
Michel; Andrée, 149,203 .
Michel, Louise. 86. 162,292,300,324,359,
4 740, 487.0. . l.ee, Annã;3 1O, 319: __ Marand-Fouquet. C1therine, 429. 419.
Knibiehler, '(vonne, 23, 252 0. 286n, 3000, . Leigh Smith, Barbar~, 308. Marat, Jea n-Paul, 457. . • Michel, Sonya, 442.
~67 n l . l..ejeune, Philippe, 13.29. Marbeau, 365. Michelet. Jules. 9, 14, l~ , 20, 95, 112, 133.
Ko002., Claudia, 22, 2500. 471. l..enepveu, 102. , Marécha.l, Sylvain, 27 1,281, 3 12, 318, 459. 211,2 17. .
Kopp, Louise, 474. Lépine, 121. Marguerite, Victo r, 452. Mignet, 313.
,- ~,&USS. Karl, 473. ., Leprevost, 209. , Maria Antonieta (rajnha da França ), 335, Mitk:man , Ruth,438.
. . Lem er, Elinor, 298, 29911. 455 . Mink, Paule,' 83.
'L Lc{ouX, Achille, 396. , Marinetti, 446, 47"3. Mirabeau, Honoré -Gabriel Riqueti, 391,
. La Bédoll iere, 2 16, 21 3f1. LetouX, Pierre, 392-6, 411, 391 n, 458. Mark.ievicz, cóndessa, 313. 458.
La Roche, MUe de, Í19, 303. uro~~Hugon, Véroriique,~255. . Markouzi, Uherrt, 433.
. LarOche. Sophie, 119,303.
, Mirabeau, OctBve 391, 458 .
t.e!ror-Beaulieu; Paul, 168,227,234-5, Marqu igny, pere, 94, 96. Missol, de, 121.
Labourie-!tacapé, Anoie, 4670. -1 237n, 254, 322 n. Martin, Eruma, 3 1Ú. Mitterrand, François, 327, 335.
Labrousse, Ernest. 19. L~e lier, Claud ie, 246, 355n..
- , .', Ma rtio, Henri, 400. , Moller Okin, Suzan, 433. "
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Imlia ClrlomdJdto Imlia o""tndnico-

Monnjc:r, Hcnri, 35l. p ·Proust. Mareei, 302, 435. Rousseau, 135,295,457.


Montalc:mbert, Charles Forbes, conde de, Pacha, Hourchit, 313. Pugno, Raoul, 124. Ro~e1, NeUy. 324.
102. Pachkov, Lydia Alcxandra, 303. Roux; 391.
Moere. Barrington. 456. PaLmer, Suzannah, 308. Q Rouzade, Léonie, 162.
MQOrt, Sam, 64. . Pankhurst, Mrs, 338. Quiguer, Claude, 349. Royer-ColJard,336.
Morgan, Annc, 267, 294. PapadopouJos. Grigori3S, 416. Rozan, Philomene Rosalie, 292.
Moein, Edgar, 160. ".."" Pardon. Clotilde, 165. R Ruskin, John, 269, 279-80.
Moc;;'y, due de, 121: . ~ Parent, Françõise, 351, 355n. . Rabinow, 498. . .Rye, Maria, 300.
Moreis, WilIiam, 71o, 74, 75. Parnell, Alin, 314. Ramaz.onaglu, Caroline, 490.
Morsier, e.rnilie de, 284. Pasquier, Marie: Clairc, 22, 303n. Ramazzini, 237, 366. 5
Mortemart, de, 121. Pasteur. Louis, 358. ..... Ranci~ret Jacques, 97n, 152, 171o, 220n, Sag:m, Françqise, 19.
Mossuz-Laval,328.
Most, Johann. 324, 325.
Moutet, Jos}'íihe, 476:
Pataud, 164.
Paterman, 485.
Patcrson,. Emma. 293.
l 266n, 302n, 311n, 31.9n, 367n, 379n, • Saiot':-Gabr i~I , 265.
394n.
Raspail, François, 406.
SainHust, Louis Antoin't, 9:
Saint·Maur, Madame de., 127
Muel-Dreyfus, 17n, 333. Payrc, Georges, 166. Rebérioux. Madeleinc, 68o, 328, 363. Sainte·Beuve, Cha rles Augustin, 353.
MusStt, Alfred de, 389. Pelletier, Mudelcine, 452, 474. " Reich, WiJhem, 173. Salvaresi, ~Iisabeth, 152.
Pcrdiguier.. Agricol, 39~-4. Reille, 121 , 124. Samuel, Pierre, 21, 184n.
N Pérec. Georges, 62. Rémusat, 336. Sand , George, 139. 262, ' 27 1, 306, 339.
Nadaud, Martin. 40. 192, 220, 296. Perkins Gilman, Charlotte, 441. Renan, He.nriette, 298.
363-4, 382-3, 383-6, 389-90, 393-9;
Nahoum-Grappe,-lfêroniquc, 22. Perrot, Ph., 134n, 468n. ) Renard, Jules, 224. 401-03.
Nettement. Alfred. 218. Pétion, 458. Reynaud, Jean, 401.
Newman. Pauline, ,294. Saod, Maurice, 3960, 40 I n , 404.
Petit,Jean-Yves, 4.98. Ribeill. Georges, 29, 89, 930, 1000, 138,
Sand.. 'Solange,' 391.
Niboyet, Eugéniç, 277n, 278, 311, 31~. 324, Péz.erat, Pierrette, 22. . - 224n, 506. '
420,421,4870. Sangnier, Marc, 236.
'picq, Françoisc, 17,478, 487n, 498n, 499n. Riley. Denise, 44 I .
Nightingale, Florence, 283. 286.294,312. Sarraute, Nathalie, 9n, 13.
Pio IX, 127, 130. _Riot·Sarcey, Michele, 262n, 277n. 279n,
Nissard, C harles. 218. Saumoneau, Louise;295.
Pinagot, Louis-François, 12. 2870,420,4740,418,4870.
Norton, Caroline. 307, 308. Pinel,493. Sawicki, Jana, 490.
Ripa, Yannick, 22.
Notat. Nicole. 340. Pinto, Josiane, 252. Saxe, Aurore dT• 31M. "'
Rittiez., 375.
Say, Jean·Baptiste, 194.
Pirrote, J.. 121. 'Rivi~ re, Pier~e, 329, 489,
o Pitray, de, 121. Robert, Hé1ene, 227 . .
Schrn.itt, Pa~line, 20,22, 2670, 271 n.

Q\Connor, Mary, 314. Planta~e, 60. Robert, Vinceot, 359, 36On. Schneiden:nan, Rose, 2~4.
Q'Higgins. J.. 499. PI:mté, 271, 364n, 415n494 , 495 .. Robespie.rre, ,Maximilien de, 391, 411. Schreiner, Otive, 55,'85 .
Ollendbrf. Paul, 38. Plauchut, Edmond, 408n, 419. Rochebillard, Marie-Louise, 293. Schwartz, Paula, 436, 440.
Ortiz, 332. - ( Soou, Joan, 149·50, .194, 264, 270n, 332,
Plaza, Monique, 499. Rochefort, 277n, 3230, 324.0, 453n, 474n",
Orvipe, Ça,oline (n"",ida Brame), 29, 89-90, Pollak, Michael, 475. 478,48,7n. 364n, ~33, 475. _
?3n. Poncet, Cécile, 293. ~ Rochet, abade, 393. Sée, CamiUe, 273n, 476. \
O rville, Ern~t, 92, 94, IOO.J 15, Poncy, Charles. 394·5, .400, 403. 406-7, Roland, madame, 381. Segalén, Martine, 16, 120n, 274, 2660, i74n.
O~lIc, Maric, 29. 408n, 409n, 412n. Rollinat, Maurice, 407. Ségur, de, 121. I
Orvillc, Rentc 146. Popp, Adélaide, 297, 325, 464. Rosanvallon, Pierre, 328, 337, 349n, 382n, Seignobos, J 97 r
, Osborne, Sarah, 310. Portalis, 270, 329. 423,4640,482n. Sennelt, Richard, 443 .
OitO, Louise, 292, 295. P6té, Anne, 12. Rasart, F., 263n, 507. Séverine, 83.. 453. .
ozour, Mona, 13n; 21 , 175n, 273n, 364n: Pouget, 164. . Roth, Joseph, 435. Shaw, ~rnard, 85 .
41In,415n,417n,433,434n,4~5n,469, P~anzini.131. Roubin, Lucienne, 348, 367. Shorter, Edward, 191.
471n, 474n, 478·9,481-6. . Ptince, Sarah. 310. Rouch, Mi~hel, 431. Sievekiog, Amali~, 281.
P~oudhon, 4,1. 42n; 74, 172-3,331,411. Roudy, Yvette! 335. Siéyes, Emmanuel Joseph, 329, 332, 381.
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,- '\ Indict ollomdJt it:o ludict ommrdJtico

Simon, Jtiles, 37,182, 203n, 225. 234, 254, Tocqueville, Chal'les Alexis Clérel de, 36, Villermé, Louis-René, 168,365,372, 44 9.
337,449. 102, 112, 113n, 125,276.299. 336,404, Voilquin, SUz.1nne, 302.
Silllon·Nahum, Perrin~e. 26. 382n, 458, 486. Voldman, Daniele, 22.
Sineau, Mariette. 328, ~35. ~82. Tonnegnieux, Claude, 208. Vúillard, Edouard,'51. 234.
Smith, Bonnie, 106, 125.• 272n, 274, 2860, Trebitsch, Michel, 4511, 505.
4440 ,4570,472,474 . ,....... ~ , Trélat.2 15. W
Smith-~osenberg. CáJOU.· 22, 282, . 2~8n.. , Trempé, Rolande, 23. Wagner, Richard. 268.
2990,3100. --, Tristan. Flora, 284-5 . 295, 346, 359, 363, Wajda, Andrel, 473.
$ohn, ,Anne-Marie, 12, 300, 2680, 27611, 364n, 365o, 369, 370n. 371 , 379n, 461, Walkowitz, Judith, 287n, 307.
3 1On, 344, 4512- ~53, 478, 5020. ~06, 507. Wallaert, Achille, 114.
Southcott, Johanna, 3 11 , 3 19. Trôger, Anne-Mar ie. 443. Wallaert, Marie, 105.
StàN. Madame de, 306, 38 1,463. 483. Trollope, Mrs, 367. Walsh, S. Andra, 44 3.
-SItio, Gertrude, 299. Troppmann, 353. ' Web~, Beatrice, 292.
'Steinbeck, JC\hn, 298. Trotta vo n, 435. Weil, Simo ne, 367, 414, 483.
Stern, Daniel, 312. Tuke, 493. vVeininger, Otto, 413.
Stimpson. Catherine, 22. \ Twining, Louise, '286. Weitz, Margaret.. 436,440.
Slone, L3.wrence. 427, 428n. ., U Werner, Pascale.151,'197n, 505.
Strumingher. Laura, 247. Veno, Chizuko, 433. Wharto n, Edith, 29~.
Sluart Mill , Joho, 306, 308. '- White, Ellen, 282.
Sue, Eugene, 207n, 218. v ,~ I

.I
Wilkinso n, Jemina, 3 10. l'
Sullerot, Évelyne. 19,'149 . ..... Vàlette, Aline', 453. Winn icott, Donald Woods, 126.
Swetchine. Ma~anle. 96. 10'~. 1I3n, "121, . Valles ..)ul.. , 77, 273, 353, 461. ' Wittig, Monica. '480 .
U5-6, 276, 486.
.I
Vanderwfelen, Lise. 30, 42. I WolIstonecraft, Mary, 306. 416.
. ' Varikas, Eleni, 277n, 280.n , 313tl, 470. 472 , Woolf, Virginia, 84, 446, 462, 475 .
T' , 474. .'- Woronoff) Deni,s, 150.
Taine. Hippolyte, 348. Varnaghen, Rahel, 3 i 2.
Tarde, Gabritl de,_348. Vassart, conde e condessa de.. 121-2. y
Tardif, Louise, 175. Veblen, 212n, 472. Yourcenar/ Marguerite. 302.
~ Taylor, Helen,.47S. · Vedei. Ferdina;l d, 176,186. Ytier, 180.
Ten'laux. Céline, 110. Verdier, Yvonne, 252. "
Ternaux, Marie. 98. n 6, 120- 1, 132, 138. Véret, Oésirée. 311,420. .Z '"
Ternaw::;Mortimer, 115. Verges, conde de, 124. Zancarini , Michelle, 150 n, 255.
Thalmánn, Rita. 22, 3 17n, 4630, 471, 507. VerjUs, Anhe, 337. I Zemon Davis, Nat<'llie, 253.
Th~tc,h~r, Margaret, 334. · ' Ve~'non, Lee-, 299. Zerner, Sylvie, 254, 257.
- Thé~~ud • ..ttançoise, ·15, 25. 150n, 428-9, Veyne, Paul, 11, 431, 498. Zetkin, Clara, 292. 295.
138n, 471. Viardot, Louis. 396, 400o, 401n. Zola, 156,290,348,356,446.
Théry, 476. Viardot, Pauline, 40 1-2, 408n. - Zylberbe rg- Hocquard, Mari ~-Hé le ne. 14911,_,
Th{e rry, Augustin, 313. , "" Vibraye (OrviUe), Renée de, 92. 247~
Th'iers, Adolphe, 391, 397. Vibraye. Conde de, 146. l
Thomas, Yan, 476. Vidnw, Martha. 284, 2860. 288n, 2981\;
Thompson, Dorothy, 219, 288, 321, 348. : 300n, 308n. .
367n, 384, 461. Viftor. Ê1iane, ,19.
\ Thoré, .402:3,,405-6. J' Vi !fal ~Naquet, Pierre, 21.
Till)', Louise, 149n, 194, 230n, 243, 290n. Viga reI/o. Georges', 430.
Tinayre, Vlctoire, 30. Villene~ve, Rêné de. 398n, 407.
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