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INSTITUTO FEDERAL DE BRASÍLIA - Campus Riacho Fundo

LICENCIATURA EM LETRAS INGLÊS

JÚLIA VITÓRIA ALVES MALHEIROS

ENSAIO SOBRE O BILHETE DE LOTERIA DE TCHEKHOV

BRASÍLIA,
2022
ANÁLISE CRÍTICA

O texto selecionado foi o conto "O bilhete de loteria" de Tchekhov, no qual ele conta uma
história de um casal que vivia uma vida simples e comum, mas que até então estava satisfeito
com sua "sorte", como colocado no conto. Porém um dia, como por obra do acaso, o esposo
decide checar os números da loteria com os da esposa, o que não fariam em outras
circunstâncias, e se deparam com a série dos números iguais. Isso já desperta em Ivan, o
protagonista, uma ponta de esperança e, antes de checar o restante, começa a criar algumas
ideias do que faria caso efetivamente ganhasse: faz planos e projetos de como gastar o
dinheiro e, como se não fosse bastante, também pensa como seria a reação da esposa e que
ela o aborreceria. A partir dos planos, ele reflete na esposa algumas frustrações, a rebaixa e
começa a considerar que ela não era boa o bastante para ele, que era velha, feia e com cheiro
de cozinha, enquanto ele ainda estava bom até para casar de novo. Ele começa a desprezar a
família ao pensar que poderiam se interessar pela fortuna e ali é plantada uma raiz de
amargura. Ao mesmo tempo, ela compartilha dos mesmos sentimentos, apesar de nenhum
dos dois externar. Depois de tudo isso ser gerado dentro deles, decidem checar o final das
combinações e percebem que não ganharam, porém o estrago já estava feito. O conto termina
com ambos não satisfeitos com a própria sorte, como havia iniciado, mas decepcionados com
sua atual posição e insatisfeitos.

O conto faz parte do movimento realista e aponta para um cenário de desapontamento, um


contraste entre a idealização atraente e doce e a realidade dura e intragável. As idealizações
realizadas pintam a realidade com cores geralmente não vistas, como posto por Benites
(2019) e nessa contemplação não deixam espaço para o outro, mas apenas veem a própria
imagem nos planos. Watt (1990), ao discorrer a respeito do realismo, diz que este aponta para
a orientação individualista e que busca a experiência humana, o que pode ser visto claramente
na obra de Tchekhov, em que cada um dos cônjuges contemplam a sua própria realização
individual. A tradição coletiva, que outrora orientou os passos humanos começou a dar lugar
à experiência individual, então tanto para Ivan quanto para Macha o que valia não era o
dinheiro em si, por mais que ele pareça ser isso, mas liga-se primordialmente à experiência
que esse proporcionaria para ambos.

A história contada no conto não é em um cenário aleatório e distante, carregando um


simbolismo moral escondido, como acontecia em tempos passados em histórias épicas, mas
com personagens que contam com nomes e contextos o que, também segundo Watt (1990)
também aponta para o Realismo, uma vez que esse traz enredos com pessoas e cenários
específicos e não genéricos. Esse cenário exposto por Tchekhov aponta para características e
fraquezas humanas, neste caso, no que diz respeito à ganância, que faz os protagonistas
perceberem faltas que antes nunca haviam percebido.

Já Passos (2018) reflete sobre a duração dos devaneios em contraponto ao que efetivamente
ocorre no conto, uma vez que a tensão do conto se dá no imaginário dos personagens. Isso
mostra as realidades obscuras que ocorrem na mente as pessoas e que não são externadas,
seja porque isso não é aceito socialmente ou porque é algo tão "obscuro" que o próprio ator
da ação se recusa a pôr para fora, como os pensamentos de Ivan a respeito de sua esposa e
familiares. Essa autora também assinala a transição dos sentimentos, que vão de devaneios e
deslumbres ao desapontamento e frustração quando não se acontece o esperado. Esse conflito
que ocorre na mente dos dois desencadeia na percepção da sua realidade infeliz e monótona
que antes não havia sido percebida.

Quando Watt (1990) fala sobre o realismo refletir todo tipo de experiência humana, isso é
lavado também ao nível íntimo do pensamento, o que pode ser objeto de identificação por
parte dos leitores que já podem ter sentido o que é expresso no conto e foi incapaz de
externar. Por vezes o modo automático de viver a vida, especialmente na sociedade moderna,
incapacita as pessoas de notarem a posição em que se encontram, acatando a realidade sem
olhar criticamente o porquê de fazer o que faz e a que nível de satisfação aquilo está trazendo,
o que acaba fazendo pessoas ficarem paradas por anos em trabalhos infelizes, mantidos
apenas pelo dinheiro; relacionamentos abusivos; amizades decadentes; práticas dolorosas e
tantos outros.

Na música "Piloto Automático", da banda Supercombo (2013), é feita uma crítica à esse
modo de vida que não faz questão de participar nem existir, que segue a vida no piloto
automático e indo onde o cotidiano leva. Era nessa posição que Ivan e Macha se
encontravam, porém na canção há um apontamento de coisas que acreditavam que precisam
ser feitas para aproveitar melhor a vida:
Eu devia sorrir mais
Abraçar meus pais
Viajar o mundo e socializar
Nunca reclamar, só agradecer
Tudo o que vier, eu fiz por merecer

Isso também é abordado no conto no imaginário dos protagonistas, que contemplam o que
precisa ser feito para "aproveitarem mais a vida". Porém a música também dá a entender que
isso só se dá no pensamento do que "se deveria fazer", da mesma forma que no conto os seus
sonhos parecem distantes ao verem que não ganharam na loteria. Watt (1990) também faz
referência a esse fluxo de consciência que ocorre na história, ao discorrer que ocorre um
desenvolvimento das personagens ao longo da história, o que é percebido claramente no
conto. O Ivan e a Macha do final do conto não são os mesmos que iniciaram. Eles eram
satisfeitos. Terminam insatisfeitos. Pressupõe-se que eram um casal feliz. Não se pode dizer
que continuam o sendo no final da história. A evolução das personagens mostra um
amadurecimento e mudança de perspectiva, o que ocorre na realidade material também, com
uma frequência até maior do que as expostas nas obras literárias. Essa busca por um relato
autêntico das experiências é uma das coisas que tornam o processo de identificação tão
enfático na obra, o que a torna atual para o tempo moderno.

Percebe-se no conto uma dualidade: tanto a não percepção da apatia da própria vida e desejo
por mudança, como tratado anteriormente ao mencionar a música, quanto também a
comparação externa como motivador de insatisfação com a própria vida, como muito se dá na
contemporaneidade. Muitos estão bem com sua própria aparência, condição financeira e
relacional, até que vê nas redes sociais outras realidades e começa desprezar seu próprio
corpo, o tamanho da sua casa ou a quantidade de amigos. A comparação que faz menosprezar
sua própria vida, assim como Ivan, ao mudar o olhar em relação a sua esposa e a sua casa.

Em síntese, a obra evidencia a necessidade de reflexão sobre a própria vida, que a rotina às
vezes obscurece a visão para contemplar a realidade que cerca o indivíduo. Contudo,
perceber sua verdadeira realidade pode ser chocante a ponto de marcar sua perspectiva de
vida. Em razão disso, pode-se acatar a infelicidade ou se mover para fazer algo. Pode-se
esperar a obra do acaso para alguma mudança, como um bilhete de loteria, ou se pode agir
em prol da transformação. Pode-se esperar uma satisfação externa, através de um prêmio, por
exemplo, ou encontrar satisfação dentro de si. O conto levanta questionamentos de natureza
humana, que leva o leitor a indagar a si: quem é, onde está, o que pretende e muito mais.
REFERÊNCIAS

BENITES, Fernando Bruno Antonelli Molina. Realidade e idealização em "O bilhete de


loteria" de Anton Tchekhov: manifestações irônicas de um conflito. Revista Entrelinhas,
Curitiba, vol. 13, n.01, p. (83-92), janeiro, 2019.

PASSOS, Cleusa Rios P.. Um olhar crítico sobre o conto. Literatura e Sociedade, São Paulo,
edição especial, n.26, p. (37-55), 2018.

SUPERCOMBO. Piloto automático. Elemess: 2013. Disponível em:


https://youtu.be/YW4-V0xQkTg. Acesso em: 07 de ago. de 2022.

TCHEKHOV, Anton. O bilhete de loteria. Disponível em: https://doceru.com/doc/s5xsxnx.


Acesso em: 02 de ago. de 2022.

WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. São
Paulo, Editora Schwarcz, 1990.

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