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Secção Cultura “Descolonização” dos currículos causa polémica na

Escócia” («Público» de 19 de julho de 2021)


Isabel Lucas1

Banir ou não banir Harper Lee? “A literatura não pode ser um lugar
ideologicamente higiénico”
[A notícia de que uma escola secundária de Edimburgo decidiu substituir o clássico «Mataram a
Cotovia» por textos “menos problemáticos” volta a trazer à ordem do dia a reflexão sobre o
papel do ensino e, nele, da literatura. A literatura deve incomodar, defendem académicos
ouvidos pelo PÚBLICO]

A notícia é recente, do início deste mês de Julho. O departamento de Inglês da Escola


Secundária James Gillespie, em Edimburgo, anunciou que vai retirar alguns clássicos do
programa e substituí-los por “textos menos problemáticos”. Um dos livros a sair será o primeiro
romance de Harper Lee, Mataram a Cotovia, publicado em 1960. Entre as razões apontadas
estão os factos de promover a ideia do “salvador branco” e de conter 40 ocorrências da chamada
“N word”.

Não é a primeira vez que o livro de Harper Lee sai de currículos escolares. Nos Estados
Unidos isso vem acontecendo, e também com obras como Ratos e Homens, de John Steinbeck,
e As Aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain. Mas a decisão da escola escocesa causou
espanto e está a ser discutida pelo Reino Unido. Entretanto, um professor emérito da
Universidade de Edimburgo veio condenar a atitude. Geoff Palmer, negro, como sublinha o
jornal The Herald, diz que os jovens deveriam aprender como o livro encarna o racismo do seu
tempo e adverte contra o varrimento de textos com “realidades incómodas”.

A discussão sobre o que incluir ou não nos currículos, e nomeadamente sobre a sua
descolonização, divide há anos professores e outros agentes do processo educativo, mas esta
decisão da escola James Gillespie está a espantar muita gente.

“Estou surpreendida, porque é uma escola secundária, uma escola pública de referência,
no centro de Edimburgo, num bairro burguês, de classe média alta, com muitos estudantes”,
refere Raquel Ribeiro, professora de Estudos Portugueses e Latino-Americanos na Universidade
de Edimburgo desde 2014. Ao ler os comentários de Palmer, lembra a discussão que
recentemente eclodiu em Portugal em torno de Os Maias, de Eça de Queirós. “Olho isto com
muita preocupação, porque há aqui uma demissão, em muitos aspectos. Quando os textos são
retirados por terem uma palavra ‘proibida’, estamos num nível de indigência intelectual. Faz
sentido o professor encarar isso com os alunos”, refere, tentando enquadrar a notícia na
discussão que está a decorrer em algumas universidades, entre elas a de Edimburgo.

A académica portuguesa pergunta se é mesmo isto que significa afinal descolonizar os


currículos. E diz ainda que Edimburgo também está no centro dessa conversa, ao questionar os
filósofos canónicos do Iluminismo. “Não se trata de retirar do currículo Adam Smith ou John
Locke ou David Hume, mas de incluir outros filósofos de outras geografias que não estão no
cânone. No ano passado, o nome de David Hume esteve no meio de uma discussão. Não só
Edimburgo é a terra do David Hume, como ele é sonante na universidade, onde há uma torre

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Jornalista
com o seu nome. Houve um grande movimento de estudantes na universidade, mas também na
cidade, para que a torre deixasse de se chamar David Hume. Estes processos de descolonização
da universidade estão a acontecer a este nível, mas também na conversa, ou seja, não é uma
coisa unilateral em que os radicais chegam e tiram os livros.”

É uma conversa demorada, delicada, complexa, salienta Jorge Vala, psicólogo social e
investigador emérito do Instituto de Ciências Sociais que acaba de publicar o livro Racismo, Hoje
— Portugal em Contexto Europeu. “A questão que se me coloca é saber como foi constituído o
poder que leva à proibição de determinado tipo de obras. Como é que se chega a essa decisão?”
Quanto ao resto: “Não há nada que esconder coisa nenhuma, nomeadamente os clássicos. As
ideias, os valores, são para serem discutidos. E se nós preservarmos bem a liberdade
conseguiremos construir um caminho para discussões aprofundadas. Mas é a falar sobre elas.
Não a esconder”, insiste.

Como é que se lida com este problema? “Contextualizando e discutindo. No passado


também nos confrontámos com obras que não correspondiam ao nosso entendimento sobre os
direitos humanos. Não quero referir nenhuma em particular, mas eram problemas que
resolvíamos contextualizando. Devemos procurar entender as razões pelas quais há pessoas que
pensam dessa forma — esse entendimento também é importante — e discutir o poder que têm
para impor os seus pontos de vista, como no passado se fez. E como hoje ainda se faz. De forma
subtil, mas vai-se fazendo. No campo artístico, no campo literário, na difusão das notícias, nas
imagens que são apresentadas, nos filmes que não podemos ver na televisão.”

A “assepsia escandalizada”

Os argumentos destes dois investigadores ouvidos pelo PÚBLICO conduzem à ideia de


que é função do ensino criar um pensamento crítico. E voltamos à decisão da James Gillespie.
Ao tirar obras “problemáticas” do currículo, incorre num falsear do real, defende Raquel Ribeiro.
E dá como exemplo a forma como nas suas aulas aborda o passado colonial português: “A
primeira coisa que faço no primeiro dia do curso é dizer que ali se vai falar do império português
e que não há impérios sem violência, sem violações. Não vamos aqui mascarar o império. Vamos
tentar olhar para ele com os nossos olhos de hoje, informados pelas circunstâncias e pelo
contexto histórico em que as obras ocorreram, e tentar perceber porque é que ocorreram
daquela forma.”

João Cézar de Castro Rocha, ensaísta, professor na Universidade Federal do Rio de


Janeiro, está habituado a pensar sobre estas questões num país onde elas são cada vez mais
prementes. “Isto é um equívoco teórico tão elementar que chega a ser confrangedor. Todas as
épocas pagam um pesado tributo ao próprio tempo. Não existe um momento histórico no qual
não haja preconceito, incompreensão e mal-entendidos sobre os temas mais variados. É
necessária uma formação teórica básica. É como se nos arvorássemos a ser juízes de todos os
tempos históricos, com a excepção do nosso”, refere, sublinhando a influência que
eventualmente terão, nestas decisões, os avanços tecnológicos.

“A percepção da era digital, marcada pela simultaneidade e pelo imediatismo, torna-


nos, a todos, um tanto imaturos. Parece-me indispensável que um aluno de um liceu em
Portugal leia um romance no qual a palavra “nigger” seja utilizada como se fosse o ar que nós
respiramos. Ele ficará mais alerta para evitar, por exemplo, que uma figura como André Ventura
receba 12% de votos numa eleição presidencial. Se lidamos com o passado com esta assepsia
escandalizada, somos reféns do que não queremos ver. Não estou dizendo que devemos aceitar
o passado de maneira acrítica. Pelo contrário. Mas temos de engajar com uma crítica madura.”
E chega a Monteiro Lobato, escritor contestado no Brasil. “Por muito tempo, ele foi
celebrado unanimemente como o criador de uma literatura infanto-juvenil brasileira. E foi
também um autor muito importante: mesmo antes da Semana de Arte Moderna [São Paulo,
1922] já tinha uma prosa moderna. Mas no local imaginário que ele criou, O Sítio do Picapau
Amarelo, havia uma senhora, a Tia Anastácia, uma negra com evidentes lembranças da
escravidão. Há momentos nos textos do Monteiro Lobato em que o racismo é inescapável. E,
como muitos da sua época, ele era eugenista. Mas retirá-lo de circulação, ou substituir
passagens em que haja um momento evidentemente racista me parece um equívoco.”

O que fazer, então? “O que é preciso discutir é o incómodo. Toda a posição racista é
inaceitável. É preciso discutir em complexidade como é que um autor tão importante, um
criador tão original, ao mesmo tempo é um racista tão raso. Isso nos leva a pensar de uma
maneira profunda, em vez de ocultar o verdadeiro desafio, e a compreender que este país,
Brasil, assim se formou: a partir da exclusão sistemática do indígena, dos corpos escravizados,
posteriormente da mulher, hoje em dia da comunidade LGBTQ. É preciso trazer o Monteiro
Lobato para a discussão e dizer: mesmo um homem com este texto notável, com esta
capacidade inventiva, com esta originalidade, teve momentos de um racismo inaceitável. O que
fazemos? Fingimos que não aconteceu? Não. Procuramos ver o dilema que ainda hoje domina
o Brasil.”

Ensinar é problematizar

Conhecedora das realidades norte-americana, portuguesa e africana, a são-tomense


Inocência Mata, ensaísta e professora na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,
também condena a decisão de retirar Mataram a Cotovia dos currículos. Aconteceu muitas vezes
nos Estados Unidos. Está a acontecer mais perto. “Acho perigoso. A função da literatura é levar
os alunos a pensar. É por isso que, por exemplo, lecciono Literatura Colonial. A literatura não
pode ser um lugar ideologicamente higiénico. O papel do professor de Literatura é conduzir os
alunos ao desvelamento das entranhas de um texto de uma forma crítica, dependendo da
idade.”

“É o contrário de tudo aquilo em que acredito”, diz, por sua vez, Noémia Santos,
professora de Português no ensino secundário há 40 anos. “Esse livro sempre foi apresentado
como um símbolo da luta contra o racismo. Mas esta discussão está a ser feita. As notícias que
vêm sobretudo dos Estados Unidos, e a discussão recente acerca de Eça de Queirós, levam-nos
a pensar, e temos discutido entre nós, professores. Tirar obras dessas é querer regressar ao grau
zero da leitura. À incapacidade de ler a ironia, a metáfora”, diz a professora da Escola Secundária
Henriques Nogueira, em Torres Vedras, que se interroga como se pode ensinar literatura sem
problematizar. “Não se pode. Toda a literatura com algum interesse vai ao ar. Estamos a falar
de jovens de 17, 18 anos. Não é possível denunciar o racismo sem evidenciar como é que ele se
manifesta, e isso está na literatura, em livros como o da Harper Lee. Como é que o racismo
cresceu? Como é que se expressa? São perguntas essenciais que estes livros nos ajudam a
pensar.”

A professora defende que não se pode tirar a jovens em idades de formação “o contacto
com obras que problematizam e tocam em pontos que os podem fazer entender aspectos
essenciais dos direitos humanos”. E conclui sobre a decisão agora tomada na escola de
Edimburgo: “Parece uma deriva, talvez bem-intencionada, de uma grande ignorância ou
tresleitura do que deve ser o contacto com as leituras mais desafiadoras. É retirar a estes alunos
a possibilidade de analisar o real.”
Inocência Mata vai justamente ao exemplo de Os Maias para dizer: “É preciso que os
alunos conheçam o contexto e tenham uma perspectiva crítica daquilo que estão a ler. A
Literatura Colonial que ensino tem um discurso de subalternização do africano.” Por exemplo?
“Há um texto de Maria Archer, A Carta, que começa a dizer que a cabeça do africano é muito
criança. O africano é reduzido na sua humanidade. Em alguns casos está no limiar da
humanidade.” Ensinar, argumenta, é justamente “incentivar e promover nos alunos uma
consciência e competência literária crítica”: “Os textos interrogam-se. A literatura deve
incomodar.”

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