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Banir ou não banir Harper Lee? “A literatura não pode ser um lugar
ideologicamente higiénico”
[A notícia de que uma escola secundária de Edimburgo decidiu substituir o clássico «Mataram a
Cotovia» por textos “menos problemáticos” volta a trazer à ordem do dia a reflexão sobre o
papel do ensino e, nele, da literatura. A literatura deve incomodar, defendem académicos
ouvidos pelo PÚBLICO]
Não é a primeira vez que o livro de Harper Lee sai de currículos escolares. Nos Estados
Unidos isso vem acontecendo, e também com obras como Ratos e Homens, de John Steinbeck,
e As Aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain. Mas a decisão da escola escocesa causou
espanto e está a ser discutida pelo Reino Unido. Entretanto, um professor emérito da
Universidade de Edimburgo veio condenar a atitude. Geoff Palmer, negro, como sublinha o
jornal The Herald, diz que os jovens deveriam aprender como o livro encarna o racismo do seu
tempo e adverte contra o varrimento de textos com “realidades incómodas”.
A discussão sobre o que incluir ou não nos currículos, e nomeadamente sobre a sua
descolonização, divide há anos professores e outros agentes do processo educativo, mas esta
decisão da escola James Gillespie está a espantar muita gente.
“Estou surpreendida, porque é uma escola secundária, uma escola pública de referência,
no centro de Edimburgo, num bairro burguês, de classe média alta, com muitos estudantes”,
refere Raquel Ribeiro, professora de Estudos Portugueses e Latino-Americanos na Universidade
de Edimburgo desde 2014. Ao ler os comentários de Palmer, lembra a discussão que
recentemente eclodiu em Portugal em torno de Os Maias, de Eça de Queirós. “Olho isto com
muita preocupação, porque há aqui uma demissão, em muitos aspectos. Quando os textos são
retirados por terem uma palavra ‘proibida’, estamos num nível de indigência intelectual. Faz
sentido o professor encarar isso com os alunos”, refere, tentando enquadrar a notícia na
discussão que está a decorrer em algumas universidades, entre elas a de Edimburgo.
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Jornalista
com o seu nome. Houve um grande movimento de estudantes na universidade, mas também na
cidade, para que a torre deixasse de se chamar David Hume. Estes processos de descolonização
da universidade estão a acontecer a este nível, mas também na conversa, ou seja, não é uma
coisa unilateral em que os radicais chegam e tiram os livros.”
É uma conversa demorada, delicada, complexa, salienta Jorge Vala, psicólogo social e
investigador emérito do Instituto de Ciências Sociais que acaba de publicar o livro Racismo, Hoje
— Portugal em Contexto Europeu. “A questão que se me coloca é saber como foi constituído o
poder que leva à proibição de determinado tipo de obras. Como é que se chega a essa decisão?”
Quanto ao resto: “Não há nada que esconder coisa nenhuma, nomeadamente os clássicos. As
ideias, os valores, são para serem discutidos. E se nós preservarmos bem a liberdade
conseguiremos construir um caminho para discussões aprofundadas. Mas é a falar sobre elas.
Não a esconder”, insiste.
A “assepsia escandalizada”
O que fazer, então? “O que é preciso discutir é o incómodo. Toda a posição racista é
inaceitável. É preciso discutir em complexidade como é que um autor tão importante, um
criador tão original, ao mesmo tempo é um racista tão raso. Isso nos leva a pensar de uma
maneira profunda, em vez de ocultar o verdadeiro desafio, e a compreender que este país,
Brasil, assim se formou: a partir da exclusão sistemática do indígena, dos corpos escravizados,
posteriormente da mulher, hoje em dia da comunidade LGBTQ. É preciso trazer o Monteiro
Lobato para a discussão e dizer: mesmo um homem com este texto notável, com esta
capacidade inventiva, com esta originalidade, teve momentos de um racismo inaceitável. O que
fazemos? Fingimos que não aconteceu? Não. Procuramos ver o dilema que ainda hoje domina
o Brasil.”
Ensinar é problematizar
“É o contrário de tudo aquilo em que acredito”, diz, por sua vez, Noémia Santos,
professora de Português no ensino secundário há 40 anos. “Esse livro sempre foi apresentado
como um símbolo da luta contra o racismo. Mas esta discussão está a ser feita. As notícias que
vêm sobretudo dos Estados Unidos, e a discussão recente acerca de Eça de Queirós, levam-nos
a pensar, e temos discutido entre nós, professores. Tirar obras dessas é querer regressar ao grau
zero da leitura. À incapacidade de ler a ironia, a metáfora”, diz a professora da Escola Secundária
Henriques Nogueira, em Torres Vedras, que se interroga como se pode ensinar literatura sem
problematizar. “Não se pode. Toda a literatura com algum interesse vai ao ar. Estamos a falar
de jovens de 17, 18 anos. Não é possível denunciar o racismo sem evidenciar como é que ele se
manifesta, e isso está na literatura, em livros como o da Harper Lee. Como é que o racismo
cresceu? Como é que se expressa? São perguntas essenciais que estes livros nos ajudam a
pensar.”
A professora defende que não se pode tirar a jovens em idades de formação “o contacto
com obras que problematizam e tocam em pontos que os podem fazer entender aspectos
essenciais dos direitos humanos”. E conclui sobre a decisão agora tomada na escola de
Edimburgo: “Parece uma deriva, talvez bem-intencionada, de uma grande ignorância ou
tresleitura do que deve ser o contacto com as leituras mais desafiadoras. É retirar a estes alunos
a possibilidade de analisar o real.”
Inocência Mata vai justamente ao exemplo de Os Maias para dizer: “É preciso que os
alunos conheçam o contexto e tenham uma perspectiva crítica daquilo que estão a ler. A
Literatura Colonial que ensino tem um discurso de subalternização do africano.” Por exemplo?
“Há um texto de Maria Archer, A Carta, que começa a dizer que a cabeça do africano é muito
criança. O africano é reduzido na sua humanidade. Em alguns casos está no limiar da
humanidade.” Ensinar, argumenta, é justamente “incentivar e promover nos alunos uma
consciência e competência literária crítica”: “Os textos interrogam-se. A literatura deve
incomodar.”