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Em defesa da literatura

CLAUDIO WILLER

Em um artigo recente (“A crise da crítica”, revista Cult, nº 49), chamei de


apocalípticas afirmações de Leyla Perrone-Moisés em Altas Literaturas (Companhia
das Letras, 1998), reiteradas em textos subseqüentes, referindo-se à crise da
literatura na pós-modernidade, como estas: “a literatura fundamentada em valores,
tal como concebida pelos modernos, ainda existe? (...) A literatura, que durante
séculos ocupara um papel relevante na vida social, tornou-se cada vez menos
importante. (...) A literatura não desapareceu, mas recolheu-se a um canto”.
Sou obrigado a retratar-me, reconhecendo que essa autora tem razão. Minha
perspectiva era aquela do administrador cultural, incluindo situações como iniciar
uma oficina de poesia com vinte vagas para, no dia da abertura, aparecerem
setenta interessados em participar dela. Ou então, lotar um auditório grande como
o da Biblioteca Mário de Andrade com temas nada fáceis; por exemplo, palestra
sobre Hölderlin, seguida por leituras e dramatizações do poeta em uma sessão de
duas horas e meia, com o público aplaudindo em pé ao final. Enfim, cenas que
justificam a confiança no futuro da espécie humana.
Ainda não havia examinado os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ministério da
Educação, PCNs, documentos que orientam o ensino, mostrando como devem ser
postas em prática suas diretrizes. Aberrações como a difusão de coletâneas de
“literatura para o vestibular” e a utilização de fichas de leitura, instrumentos para
desestimular o estudante, são anteriores a esses Parâmetros Curriculares. No
entanto, estes demonstram que sempre é possível piorar. Na sua versão mais
recente, no capítulo sobre Linguagens, Códigos e suas Tecnologias no Ensino
Médio, a literatura deixa de existir, não apenas como disciplina, mas como campo
autônomo do conhecimento, a pretexto de corrigir o modo como, citando esse
documento, a disciplina na LDB nº 5.692/71 vinha dicotomizada em Língua e
Literatura (com ênfase na literatura brasileira). O abandono dessa dicotomia e a
crítica à identificação do conhecimento de literatura à sua história são justificados
por argumentos estranhos:
“O conceito de texto literário é discutível. Machado de Assis é literatura, Paulo
Coelho não. Por quê? As explicações não fazem sentido para o aluno. Outra
situação de sala de aula pode ser mencionada. Solicitamos que alunos separassem
de um bloco de textos, que iam desde poemas de Pessoa e Drummond até contas
de telefone e cartas de banco, textos literários e não-literários, de acordo como são
definidos. Um dos grupos não fez qualquer separação. Questionados, os alunos
responderam: ´Todos são não-literários, porque servem apenas para fazer
exercícios na escola.` E Drummond? Responderam: ´Drummond é literatura,
porque vocês afirmam que é, eu não concordo. Acho ele um chato. Por que Zé
Ramalho não é literatura? Ambos são poetas, não é verdade?’ “
Quem escreveu isso sequer leu entrevistas de Paulo Coelho, nas quais ele faz
observações sobre as diferenças entre sua obra e a de Machado. Se consultado
antes, Zé Ramalho certamente também teria algo a declarar em favor da
literariedade de Machado e Drummond, e contra o nivelamento de todos a contas
de telefone e cartas de banco. E quem já deu palestras, coordenou oficinas ou
rodas de leitura para jovens demonstrando vivo interesse por Machado, Drummond
e outros autores de envergadura, percebe a insensatez dessa argumentação.
Retrata uma situação típica de ensino de má qualidade, em uma classe do ensino
médio às voltas com dificuldades que deviam ter sido solucionadas no ensino
fundamental, alçada a referência, com a crítica à noção de valor literário a cargo de
alunos desmotivados que não estão nem aí, e professores incapazes de despertar
seu interesse. Pelo visto, diante das dificuldades para ensinar literatura e resolver
problemas metodológicos associados a esse campo (por exemplo: deve-se ensiná-
la como série histórica ou adotar algum paradigma, e, nesse caso, qual?),
escolheram a solução mais cômoda: eliminá-la.
Outro trecho dos PCNs também se refere à literatura, agora de modo positivo, mas
com uma interpretação rasa de um de nossos autores:
“A literatura é um bom exemplo do simbólico verbalizado. Guimarães Rosa
procurou no interior de Minas Gerais a matéria-prima de sua obra: cenários, modos
de pensar, sentir, agir, de ver o mundo, de falar sobre o mundo, uma bagagem
brasileira que resgata a brasilidade. Indo às raízes, devastando imagens
preconceituosas, legitimou acordos e condutas sociais, por meio da criação
estética”.
E as fontes literárias, o intertexto, a relação de Guimarães Rosa com a literatura
universal e simbologias tradicionais? Nada disso existe, não interessa? Não foi um
leitor do Fausto de Goethe em alemão? Quer dizer que o sertanejo do Urucuia fala
igualzinho aos personagens de Grande sertão – veredas, e domina astrologia e
alquimia tão bem quanto os protagonistas de O Recado do Morro? Já foram lá para
conferir? Ao menos, conversaram com o Manuelzão? Enfim, Guimarães Rosa só
vale como regionalista? Sim, pois os PCNs operam apenas com o eixo horizontal,
descartando o vertical, ao advogarem uma concepção que “destaca a natureza
social e interativa da linguagem, em contraposição às concepções tradicionais,
deslocadas do uso social”. Por isso, não existe uma competência lingüística
abstrata, mas sim, uma delimitada pelas condições de produção/interpretação dos
enunciados, determinados pelos contextos de uso da língua”. Para cumprir a missão
atribuída ao ensino da língua, a “preservação da identidade social de grupos menos
institucionalizados” é permitido mutilar e distorcer Guimarães Rosa.
Evidentemente, por esse caminho deixa de haver fala “correta”, norma culta, na
mesma medida que não há mais valor literário, e atribuí-lo, digamos, a
Shakespeare, Camões, Machado, Rimbaud, Mário de Andrade, não passaria de
imposição autoritária, violência contra os tais contextos de uso. Duvidam? Então
vejam só: “Aprende-se a valorizar determinadas manifestações, porque
socialmente ela representa o poder econômico e simbólico de certos grupos sociais
que autorizam sua legitimidade (sic). Daí que o desenvolvimento da competência
lingüística do aluno no ensino médio, dentro dessa perspectiva, não está pautado
na exclusividade do domínio técnico de uso da língua legitimada pela norma padrão
(...)”.
As reiteradas afirmações de abandono dos “a priori”, ao longo desses PCNs, não
impedem que se identifique uma orientação, um a priori não declarado. Ao que
parece, no planejamento do ensino de língua e literatura, depois da balança por
muitos anos haver-se inclinado em favor dos formalistas (que também deram sua
contribuição à burocratização do conhecimento, ao transformarem alunos em
aprendizes de fórmulas e diagramas aplicados a obras que nem mesmo haviam
sido lidas antes, e isso, pelo suposto caráter científico desses procedimentos),
agora pende em favor do relativismo sociocultural.
Essa orientação, assim como outras, tem sua contribuição a dar. No entanto, um
documento público não pode adotá-la exclusivamente, de modo dogmático.
Precedentes da oficialização de paradigmas como política de Estado são tenebrosos,
bastando lembrar a adoção da biologia de Lisenko pelo stalinismo.
É hora de professores, autoridades e técnicos do ensino pararem de brincar de
antropólogos, fazendo de conta que, ao chegarem à Vila Ré ou Itaim Paulista,
estariam entrando em contato com tribos ou grupos cujos valores e conhecimentos
arcaicos devem ser respeitados. Ao reproduzirem posturas que seriam corretas em
pesquisas de campo, prejudicam os alunos. Estes, algum dia, terão que sair de
onde estão, procurar emprego, relacionar-se com outros “contextos”. A
informatização aumentou a exigência de domínio da escrita. Empregadores ainda
não aderiram ao relativismo pós-moderno. Por isso, esperarão que candidatos
exibam domínio da norma padrão, e não da expressão de seja qual for o seu “grupo
social”. Para começar, que saibam os 5 mil vocábulos de Os Lusíadas que (segundo
Antenor Nascentes e Afrânio Peixoto, em um anuário da ABL) até 1943 não haviam
caído em desuso, à exceção de 15, permanecendo assim como linguagem corrente.
Erudição, algo bem diferente da decoreba desenfreada outrora em vigor, não mata.
Conhecimento não destrói; adiciona algo a quem o assimila, e pode ajudá-lo a
melhorar de vida.
Vamos deixar claro: nada contra turmas de bairro, tribos urbanas e demais
“contextos” e “grupos sociais” subentendidos ou imaginados pelos autores dos
PCNs, a afirmarem sua particularidade através de expressões verbais, roupagens e
preferências musicais. Tudo isso pode servir à criatividade, e acrescenta algo
culturalmente. Mas, perdendo-se de vista a necessidade de haver qualquer coisa
em comum a essa gente, teremos uma sociedade fragmentada, um amontoado de
grupos expressando-se através de idioletos, jargões, gírias, modismos, sem chance
de se entenderem com outros grupos e subculturas através da língua, cuja
dimensão nacional até ontem foi garantida pela transmissão de conhecimentos
literários. E com mais um detalhe: de universal, com jeito de repertório partilhado
por mais pessoas, sobram as línguas estrangeiras, já que, nos mesmos PCNs,
Inglês é Inglês, e não aquele inglês do jovem californiano ou do morador de
Brighton. E, fora da escola, há um repertório comum, efusivamente partilhado: o
da mídia. O mesmo tchan ressoa em Maringá e Caruaru. E, nesses programas de
“leitura” por escolares, crianças, ao apresentarem em público o que leram, exibirão
os mesmos cacoetes da Xuxa, de Petrolina a Dourados.
Uma fonte bem mais consistente que os PCNs é Ernst Robert Curtius, que, em
Literatura Européia e Idade Média Latina (Editora Hucitec – Edusp, 1996), diz o
seguinte:
“A literatura faz parte da ‘educação’. Por quê, e desde quando? Porque os gregos
encontraram num poeta o reflexo ideal do seu passado, de sua existência, do
mundo dos deuses. Não possuíam livros sacros nem castas sacerdotais. Sua
tradição era Homero. Já no século 6 era um clássico. Desde então a literatura é
disciplina escolar, e a continuidade da literatura européia está ligada à escola.”
Está mesmo, como pretendia Curtius? Ou estava, já era, não interessa mais, a não
ser como aproximação a algum “contexto” particular, conforme os autores dos
PCNs, para os quais a linguagem verbal “se caracteriza como construção humana e
histórica de um sistema lingüístico e comunicativo em determinados contextos”.
Aliás, até aí têm toda razão, e Paulo Freire já sabia disso, ao desenvolver seu
método, mas para a alfabetização, notem bem, e não para a etapa seguinte, o
ensino da literatura. Admitindo-se que haja mesmo uma “civilização ocidental” que
foi mudando ao longo do tempo, para melhor e para pior, e que a literatura seja
constitutiva dessa civilização, como pretendem Curtius e outros (por exemplo,
Octavio Paz, com sua argumentação, em El Arco y la lira, de que a poesia, sendo
história, também produz história), então os PCNs anunciam sem fim ou, ao menos,
a ruptura com ela. Muito bem. Mudanças e rupturas fazem parte da história. Mas,
rompendo desse modo com o devir da civilização, zerando sua herança, teríamos
algo para pôr em seu lugar? O quê? Para isso, não encontramos repostas nos PCNs.
Ou não? Por trás da crítica relativista ao valor, à norma culta, à erudição, de seu
aparente pluralismo, não haveria um espesso conformismo? Como se sabe, ao
longo do século 20 houve um deslocamento do prestígio do livro e da literatura,
com a entrada em cena de veículos, novos suportes que privilegiaram outros
sistemas de signos. Uma orientação como esta, ao rebaixar a importância da
literatura em instituições de ensino, sanciona semelhante estado de coisas, em
lugar de oferecer alternativas à sociedade midiática.
Voltemos a Curtius: “Para a literatura, todo o passado é presente ou pode vir a ser.
(...) O ‘presente intemporal’, essencialmente peculiar às Letras, mostra que a
literatura do passado pode continuar atuante na do presente”. Leitores sabem do
que ele está falando, pois já fizeram essas viagens no tempo e no espaço através
de obras literárias. E sabem o que está sendo subtraído a estudantes, ao se insistir
que não, chega de história da literatura, nada de passadismos e anacronismos,
basta-nos o aqui e agora (aliás, dinâmico, em permanente mudança, fazendo com
que algum pedagogo neo-populista sempre tenha que correr atrás), assim fechando
janelas da cognição, da imaginação e da emoção.
PCNs são mesmo um texto instigante, surpreendente. Merecem laudas e laudas de
comentários. Por ora, só mais duas questões. Uma, suscitada pela revelação de que
“toda linguagem é dialógica” . Não sabia, juro. Pensava que Mikhail Bakhtin, que foi
quem cunhou esse termo, operasse com as categorias do discurso monológico e
dialógico, este último associado a qualidades de grandes autores. Toda fala ser
polissêmica, ter muitos níveis de significado, ainda vá. Mas expor essa polissemia,
“os significados embutidos em cada particularidade”, conforme os PCNs, é muito, é
querer promover sessões de psicanálise coletiva nas salas de aula.
A outra questão é o documento postular “uma linguagem verbal, a fala”, sendo
possível “delimitar a linguagem verbal e não-verbal e seus cruzamentos verbo-
visuais, audio-visuais, audio-verbo-visuais etc.” Outros autores entendem que o
termo linguagem se aplica exclusivamente ao repertório verbal, não devendo, por
sua complexidade e especificidade como mediação entre o ser humano e o mundo,
ser confundida com os demais sistemas de signos. Ainda bem. Se não, imaginem a
cena: “Moçada, vamos curtir um som, balançar o esqueleto, tem que desenvolver a
linguagem corporal... Os livros, isso a gente vê depois...”. E, ao final da festa, mais
uma catástrofe em resultados do Enem, do Provão, nas classificações do Brasil em
pesquisas sobre qualidade de ensino e índices de analfabetismo funcional. Ou
então, o que me foi relatado por uma amiga, realizadora de uma adaptação teatral
de Memórias Póstumas de Brás Cubas, que ouviu, consternada, uma professora
recomendá-la nestes termos: “Vão ver a peça, assim não precisam ler o livro”.
Claro. Se são muitas as “linguagens”, então vale tudo.
Finalmente, à pergunta sobre o que, afinal, deve compor o ensino de literatura,
qual a orientação a privilegiar — estudos socioculturais? formalismo? história?
algum enfoque marxista? —, gostaria de responder com uma parábola baseada em
um fato real. Décadas atrás, um amigo meu tomava sol à beira da piscina do seu
clube. Aproximou-se outro rapaz e perguntou-lhe: “Escute, você não é o cara que
leu toda a obra de Freud?” Meu amigo não resistiu a responder: “Sou, sim. E agora
estou estudando o restante...” É isso: tem que ler bastante literatura, estudar as
teorias, e não esquecer do restante, por mais que acumulação de conhecimento
tome tempo e dê trabalho, e por isso seja mais fácil descarta-la, a pretexto de
crítica ao enciclopedismo. No ensino de literatura, e em outros campos, a questão
não é mais optar entre esse ou aquele modelo, enfoque ou paradigma, mas entre
civilização e barbárie.

Claudio Willer é poeta, ensaísta, tradutor, bacharel em Psicologia e preside a União Brasileira de
Escritores.

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