Você está na página 1de 20

HISTÓRIA DO PORTUGUÊS DO BRASIL*

QUESTÕES DE FAMÍLIA: AS ORIGENS MAIS REMOTAS DO PORTUGUÊS

O português é uma língua românica. Costuma-se dizer que, junto com as outras
línguas que descendem do latim, ela integra a família das línguas românicas. Observe que
os termos família e descender estão sendo utilizados aqui de uma maneira metafórica. Na
base dessa metáfora está a predisposição a considerar as línguas como entidades, com as
mesmas propriedades de entidades como pessoas – o que não é exato. Assim, como pessoas
têm famílias, compostas por pais e irmãos, a mesma coisa ocorreria com as línguas: o
português, o espanhol, o italiano, o francês seriam línguas irmãs, filhas de uma mesma mãe,
a língua latina. Essa metáfora e a outra metáfora célebre sobre as línguas – a de que elas
seriam entidades vivas – precisa ser interpretada com cuidado. Se a base delas é a assunção
de que as línguas apresentam propriedades em comum com as coisas consideradas vivas,
elas não possuem todas as propriedades. Por exemplo, se elas estão de fato vivas vai
depender bastante do que se pode definir como vida, que é uma daquelas definições que se
nos escapa. De qualquer forma, existem diversos tipos de coisas vivas, e a melhor
comparação com as línguas talvez nem seja com coisas vivas do tipo das pessoas. Por
exemplo, espacialmente as línguas parecem se comportar mais como algumas criaturas
unicelulares como amebas: não adquirem formas espaciais precisas, antes espalham seu
“protoplasma” de falantes de maneira irregular sobre o terreno, às vezes “dividindo-se”
para dar origem outra “entidade”.

A noção de que existem famílias de línguas é bastante antiga na humanidade e


remonta ao nosso passado mais remoto. Existem diversas narrativas em que povos que
falavam línguas semelhantes figuram como tendo ancestrais que eram parentes, ou irmãos.
Assim, os falantes dos três dialetos dos gregos – dórico, o jônico e o eólico acreditavam-se
descendentes de Doro, Íon e Xuto, os três filhos de Hélen, o patriarca de todos os gregos.
Algumas narrativas enfeixam nessa genealogia toda a humanidade. Os hebreus remontavam
a humanidade toda à descendência de Noé, e do nome de seus três filhos derivou-se os
primeiros nomes para famílias linguísticas: línguas semíticas, hamíticas e jaféticas. No
clássico persa do século X, Šāhnāme – O Livro dos Reis – o mítico rei Fereydūn teve três
filhos: Salm, Tur e Iradj, do quais descendem os povos que vivem na terra (os povos que
falam línguas semíticas, túrquicas e indo-europeias, respectivamente).

Mais proximamente de nós, devemos a Dante Alighieri em sua De Vulgare


Eloquentia a ideia de reunir línguas conforme a sua similaridade (ainda não como famílias)
– assim como devemos a ele a noção de que a mudança linguística é um dos fatos da vida e
*
Apostila elaborada pelo Professor Márcio Renato Guimarães (UFPR/SCHLA/DLLCV) para uso exclusivo
na disciplina HL 397 – Língua Portuguesa V – do curso de Letras. Boa parte do material aqui foi copiado de
outras obras, casos em que há indicação da fonte. A apostila não resume toda a matéria da disciplina – existe
uma bibliografia auxiliar, que aprofunda alguns pontos. Além disso, aquilo que é dito em sala e passado no
quadro é considerado matéria dada.
História do Português 1: Do Indo-europeu ao Português

não implica em nenhum tipo de degeneração. Ao contrário, para Dante a língua [falta um
adjetivo aqui] é a língua viva, a língua falada, a língua “vulgar”.

Nos séculos que se seguiram, parentesco para além das famílias de línguas faladas
na Europa estabelecidas por Dante e alguns filólogos que examinaram a questão da origem
das línguas – as línguas românicas, as línguas germânicas e as línguas eslavas, mais o grego
– foi investigado. O que se constatou é que as famílias de línguas europeias apresentavam
similaridades entre si que eram muito difíceis de explicarem com base em simples
empréstimos linguísticos. Por outro lado, línguas como o árabe, o hebraico, e mesmo
algumas línguas europeias como o basco, o húngaro e o finlandês, eram muito diferente
desse grupo das línguas europeias. A esse grupo deve-se acrescentar um conjunto de
línguas da Índia, a começar pela língua clássica do hinduísmo, o sânscrito, e línguas como o
persa e o curdo, faladas no sudoeste da Ásia. A esse grupo de línguas, convencionou-se dar
o nome de línguas indo-europeias.

A maior parte dos manuais escolares costuma atribuir ao juiz inglês do século
XVIII, Sir William Jones, o reconhecimento do parentesco do sânscrito com as línguas da
Europa. Em que pesem os holofotes da epopeia oficial, a noção da existência da família
linguística indo-europeia já era uma noção bastante difundida nos tempos de Sir William
Jones. O termo indo-europeu para designar a referida família linguística ainda não ter
aparecido em 1787. Ele é introduzido por uma alemão, Adelung-Vater, em 1806, apesar de
também constar na bibliografia que ele é introduzido por outro inglês, Sir Thomas Young,
em 1813.

Do Proto-indo-europeu (ao latim e) ao português

A descoberta de similaridades entre a maior parte das línguas da Europa e as línguas


da Pérsia e da Índia antigas (e modernas) chamou a atenção dos filólogos já no século XVI.
Com o surgimento da linguística comparativa, no início do século XIX, a noção de uma
origem comum se consolidou.

Atualmente, acredita-se que as línguas indo-europeias se originaram de uma língua


ancestral comum, que, na falta de um nome melhor, convencionou-se chamar proto-indo-
europeu. Supõe-se que essa língua foi falada por um povo que viveu numa região que
compreende o que hoje é o extremo oriental da atual Ucrânia e o sudeste da parte europeia
da Rússia, entre os mares Negro e Cáspio, num período que vai aproximadamente de 4.000
a.C. a 3.000 a.C. Esse povo teria migrado, em períodos diferentes da sua história, para as
regiões onde se originaram as línguas indo-europeias que foram posteriormente
documentadas – a maior parte da Europa, e uma região da Ásia que vai da atual Turquia até
o Subcontinente Indiano1.
1
A Wikipedia apresenta um mapa bem interessante das línguas indo-europeias em suas regiões originais de
distribuição em https://en.wikipedia.org/wiki/Indo-European_languages. A Wikipédia em Português apresenta
um mapa com a distribuição das línguas indo-europeias no resto do mundo:

2
História do Português 1: Do Indo-europeu ao Português

Figura 1. A região de provável origem dos povos que falavam


o proto-indo-europeu. Anthony (2007: 84).

A maior parte das línguas da Europa se filia a essa família: o português e as outras
línguas românicas, descendentes do latim; o inglês, o alemão, e as outras línguas
germânicas; as línguas eslavas, como o polonês e o russo; e além delas o grego, o albanês e

https://pt.wikipedia.org/wiki/Línguas_indo-europeias .

3
História do Português 1: Do Indo-europeu ao Português

o armênio. Mas também são línguas indo-europeias a língua falada pelos antigos persas e
sua descendente moderna: o fársi, a língua do Irã. Pertencem à mesma família do persa o
curdo, o dári e o pashto, estas últimas duas faladas no Afeganistão. Estreitamente
parentadas às línguas iranianas são as línguas arianas da Índia: o hindi, o urdu, o bengali e
várias outras.

Às vezes existe alguma confusão entre os termos indo-europeu e proto-


indoeuropeu. Indo-europeu é uma adjetivo, que designa as coisas próprias dos povos que
falam línguas indo-europeias. Assim, vamos falar em instituições indo-europeias, religiões
indo-europeias, culturas indo-europeias e, obviamente, línguas indo-europeias. Proto-
indo-europeu é o nome que se dá à língua reconstituída da qual as línguas indo-europeias
são descendentes. Observe-se que por povos indo-europeus se entende, no máximo, povos
que falam ou falavam línguas indo-europeias. Ao longo da história do termo,

Línguas indo-europeias foram faladas em regiões em que hoje são faladas línguas de
outras famílias: o hitita, bem como outras línguas aparentadas (as línguas anatólicas), foi
falado na maior parte do que hoje é a parte asiática da Turquia, num período que vai de
2.000 a.C. (talvez antes) até o final da Antiguidade (quando primeiro o grego, depois o
turco, foram impostos às populações locais). O tocário, ou tocariano, foi falado no que hoje
é a região autônoma chinesa de Xinjiang Uigur, até uns 500 da Era Comum. Na região das
estepes, numa área que vai do centro da atual Ucrânia até os confins da Mongólia, já foram
faladas várias línguas aparentadas com as línguas iranianas. Depois disso, essa região foi
invadida por povos falando línguas aparentadas com o turco (que não é indo-europeia), para
ser parcialmente re-indo-europeizada pelos russos, a partir do século XVI.

Através da análise comparativa, propostas pelos primeiros linguístas do século XIX,


propuseram-se formas reconstruídas de alguns morfemas-raízes na protolíngua, que podem
ser vistos em comparação na tabela a seguir.

Indo-europeu Sânscrito Grego Germânico Latim Português


*kntm satem (he)katon hundert (al.) centum cem, cento
*kwis kim tís Wer, Was quis quem
*dekm dáśa déka ten (ingl.) decem dez
*gwom gaws bōs Kuh boues boi
*aksis, *aksos áksah áksōn axis eixo, axial
*agrós ájrah agrós acre ager agr(ícola)
*esti asti esti ist est é
ēítheos
*widhewā vidháva widow uidua viúva
(“solteiro”)
*oktāw astāu oktō acht octō oito
*iugom yugám dugón Joch iugum jugo
*ptēr píta petēr Vater pater padre, pai
*matēr matār mētēr Mutter mater madre, mãe
- o asterisco antes das formas do indo-europeu indica que a forma é reconstituída e não é documentada; o
mácron em cima de uma vogal (ā, ē , ō) indica que ela é longa;
- exemplos retirados de Krahe (1953).

4
História do Português 1: Do Indo-europeu ao Português

A Origem das Palavras – Alguns étimos indo-europeus

Os estudos comparativos iniciados no Séc. XIX rastrearam as línguas indo-


europeias atrás de palavras que pudessem ter uma origem em comum na língua ancestral. É
claro que temos que sempre ter em consideração que as etimologias propostas pela
linguística histórico-comparativa se pretendem científicas, o que significa que, por um lado,
elas devem seguir os procedimentos rigorosos de comparação e, por outro lado, que elas
são hipóteses sobre uma realidade a que não se tem acesso direto. Como hipóteses, elas
estão sempre sujeitas à crítica dos especialistas, de maneira que é possível que você vá
encontrar diferenças bastante grandes, ao longo da literatura, na forma recostruída de cada
étimo e mesmo na filiação de palavras a determinadas origens etimológica.

Com o objetivo de abrirmos uma janela para o passado remoto da nossa língua, listo
aqui alguns étimos indo-europeus, seu caminho até o português e as palavras cognatas nas
outras línguas indo-europeias, derivadas dos mesmos étimos. A escolha não é aleatória e
inclui alguns termos que revelam aspectos importantes do que se supõe que seja os
primórdios de uma cultura indo-europeia.

A Lã, o Cavalo, a Roda e o Carro

O vocabulário comum das línguas indo-europeias contém termos respectivos a


atividades agrícolas e pastoris, pelo que se supõe que o povo que falava o proto-indo-
europeu conhecesse tanto agricultura quanto pecuária. Alguns traços específicos desse
vocabulário, porém, serviram para estabelecer a cronologia da proto-língua, além de
permitirem vislumbrar como deve ter sido a cultura e as relações internas na sociedade
proto-indo-europeia.

Os falantes do proto-indo-europeus tinham palavras específicas para designar os


campos de cultivo (*agr, *agrós2, de onde o lat. ager “campo cultivado”, cf. agr-ícola),
instrumentos de cultivo (*ar-, que aparece no lat. arare, aratrum), e uma distinção
importante entre “semente” (*sē-, como lat. semen, seminare) e “grão (*granóm, lat.
granum). Ambas as palavras representavam a mesma coisa, mas em situações bem
diferentes: semente quando utilizado para plantar e grão no momento da colheita e a partir
disso. A pecuária, no entanto, parecia ser mais importante: eles conheciam e criavam os
bovinos (*gwóus, lat. boues), os ovinos, os equinos e os caprinos. A posse de gado, como
ocorre até hoje em algumas sociedades indo-europeias, era o principal meio de acúmulo de
riqueza (e, por exetensão, de poder). Tanto que o termo para designar gado, sobretudo o
bovino (*pekós, lat. pecus, pecunia, peculium), significa também “fortuna, riqueza”.

Entre os termos comuns encontrados na maioria das línguas indo-europeias, estão


palavras para designar os ovinos, a lã e termos relativos ao processamento da lã para
confecção de roupas. Essa característica é importante, do ponto de vista da cronologia,
porque se sabe que, apesar de a domesticação dos ovinos ter uma longa história, a criação
de ovelhas para obtenção de lã é uma atividade bem mais recente e demandou uma seleção
2
A base das etimologias rastreadas aqui é o Proto-indo-european etymological dictionary, do indo-
europeísta tcheco Julius Pokorny, provavelmente o mais completo do gênero (cf. Pokorny, 2007). Também
foi consultado Mallory & Adams (2006).

5
História do Português 1: Do Indo-europeu ao Português

artificial nas ovelhas, para selecionar as que tinham um pelo mais longo e sedoso, que se
prestasse a confecção de fios de lã.

Dado que a criação das ovelhas para a obtenção de lã não iniciou antes de 4.000
a.C., na região que se supõe ser a pátria ancestral dos falantes do proto-indo europeu, essa
data foi determinada como o limite máximo do período em que a proto-língua deve ter
existido. O raciocínio é simples: se as línguas possuem palavras de uma mesma origem
para designar a lã, essa palavra não pode ter uma origem comum no período em que a lã
não era conhecida (ou seja, antes de 4.000 a.C.).

*owis, “ovelha” deu o lat. ouis, de cujo diminutivo ouicŭla originaram-se os termos de
algumas línguas românicas: port. ovelha, esp. oveja, rom. oaia. Provêm da mesma raiz o
a.ind. aví-, gr. οἴς, a.ir. ōi, lit. avìs,a.bulg. ovь-ca, todos significando ovelha. Muitas línguas
acabaram substituindo a palavra para designar ovelha por alguma outra: as línguas
germânicas, por exemplo o inglês sheep e o alemão Schaf, devem ter origem em uma língua
não-indo-europeia (o inglês tem um termo arcaico para “ovelha, ewe, que provém do étimo
indo-europeu. O francês utiliza mouton, que provavelmente é um empréstimo do gaulês
moltone(m), ac., que aparece nas línguas célticas: a.irl. molt, gal. moltt, bretão médio mout,
todos significando “carneiro”. O italiano utiliza pecora, que vem do lat. pecus, pecoris, e
que era um termo genérico para “gado’ (embora preferencialmente para o gado bovino), e
cuja raiz aparece em pecuária e também em pecuniário (cf. adiante).

*wl-nā, “lã” deu o latim lanā, que por sua vez originou os termos para “lã” nas línguas
românicas: port. lã (arc. lãa), esp. it. lana, fr. laine, rom. lână. Do mesmo étimo se originou
o a.ind. ŭrnāi, av. varǝnā, gr. λῆνος, dor. λᾶνος, lit. vìlna, gal. gwlan, bret. gloan, gót.
wulla, ing. wool, al. Wolle, todos significando “lã”.
O termo *wl-nā parece ser derivado de uma raiz *wel- por um sufixo –nā, que levava a
tonicidade para a última sílaba. Isso encurtou a vogal da raiz, a ponto de ela não ser
pronunciada (um fenômeno comum em várias línguas indo-europeias antigas, conhecido
como grau zero da raiz, e que certamente existiu em proto-indo europeu). O fenômeno em
si é comparável ao que ocorre no português de Portugal, em que algumas vogais átonas não
são pronunciadas (como os e pretônicos em menino e perdido).
Da raiz *wel- temos o latim vellus, do qual originou o português velo, não muito
utilizada atualmente, e que designa uma pele de ovelha que ainda contém a lã do animal
(também chamada de pelego), ou mesmo a lã ainda não processada (quer ela esteja ainda na
ovelha, quer ela já tenha sido retirada). Velocino é um diminutivo de velo, que aparece na
expressão velocino de ouro, nome de uma lenda grega, para a qual também existe a
designação pelego de ouro. De velo derivou-se o adjetivo veloso, também raro no português
contemporâneo.

O fato de as línguas indo-europeias preservarem um vocabulário comum com


termos referentes a outro animal doméstico – o cavalo – também tem uma significação que
transcende o campo do meramente linguístico. O vocabulário preservado nas línguas indo-
europeias não apenas mostra indícios de que eles criavam o cavalo, mas que o criavam
basicamente como animal de tração e transporte. O vocabulário comum preservado indica
que eles conheciam os carros puxados por cavalo, que tinham verbos específicos para ir
com veículo e transportar em veículo. O registro arqueológico mostra que o cavalo foi

6
História do Português 1: Do Indo-europeu ao Português

domesticado, primeiro para o fornecimento de carne, em seguida como animal de


transporte, na região das estepes eurasiáticas, que inclui a região em que se supõe que o
proto-indo-europeu foi falado. Aliás, a utilização de cavalos como meio de transporte foi
um dos aspectos importantes no estabelecimento da datação do proto-indo-europeu: no
período em que se supõe que o proto-indo-europeu foi falado, algumas das pouquíssimas
culturas cujo registro arqueológico mostra que criavam cavalos como meio de transporte
existiram justamente na região das estepes entre os mares Negro e Cáspio.

Se a domesticação do cavalo como fonte de carne não mais do que adicionou mais
uma fonte de proteína à dieta dos habitantes das estepes eurasiáticas, sua posterior
utilização como meio de transporte de pessoas e cargas parece ter literalmente mudado a
história do mundo, inclusive a história linguística. Para avaliar o impacto que a
domesticação do cavalo pode ter exercido nos povos das estepes há cincou ou seis mil anos,
o arqueólo norte-americano David W. Anthony estudou primeiro os eventos semelhantes
mais próximos de nós, historicamente, qual seja o impacto que o cavalo teve sobre as
sociedades indígenas dos descampados das Américas do Sul e do Norte, após sua
introdução pelos espanhóis, no século XVI 3. Nessas sociedades, o que se observou é que o
cavalo imediatamente foi utilizado para fins militares: guerreiros a cavalo são mais rápidos
e ficam mais longe das armas dos inimigos. Quanto mais cavalos um guerreiro tinha, mais
poderoso ele se tornava. Então começou a haver uma verdadeira corrida armamentista, em
que surgiam líderes guerreiros com cada vez mais cavalos.

Essa “concentração” dos cavalos nas mãos de uns poucos guerreiros acabou
levando, por um lado, à concentração dos outros elementos de poder (terras, mercadorias)
nas mãos de uns poucos indivíduos, por outro, levou ao surgimento de uma sociedade mais
fortemente “militarizada”, em que os valores cultivados passaram a ser os da força, da
nobreza e do heroísmo.

No caso específico das sociedades das estepes, essas severas mudanças sociais
podem ser rastreadas nos restos materiais que essas culturas deixaram. A concentração de
riquezas nas mãos de uns poucos indivíduos se refletiu, por exemplo, na mudança dos
padrões de sepultamento. As primeiras sociedades agrícolas sepultavam seus mortos em
covas rasas, sem nenhuma indicação externa da identidade do falecido, que era sepultado,
no máximo, com alguns ornamentos pessoais e, eventualmente, com algum objeto da sua
predileção.

Na medida em que vão surgindo esses líderes guerreiros cada vez mais poderosos,
seu poder vai se refletindo nos seus sepultamentos. Já não são mais covas rasas (em que o
comum dos mortais continua a ser sepultados), mas são sepulturas mais elaboradas – os
tumuli (plural do latim tumulus). Os corpos sepultados nesses túmulos não só vão
acompanhados por seus objetos pessoais (onde aparecem já coisas bastante caras, como
joias), mas também por suas armas, seus cavalos prediletos – e, não raro, por escravos
sacrificados para prestarem seus serviços na vida além-túmulo. Aliás, a crença numa vida
além-túmulo parece ter sido uma contribuição importante desse período.
3
Para detalhes sobre o impacto da domesticação dos cavalos sobre as diferentes culturas, veja Anthony
(1986). Para uma exposição mais detalhada da teoria da origem do proto-indo-europeu nas estepes
pônticas, veja Anthony (2007).

7
História do Português 1: Do Indo-europeu ao Português

Além do guerreiro a cavalo, os povos indo-europeus da estepe (provavelmente os


indo-iranianos da região central da Ásia, entre o Pamir e o mar Cáspio) criaram uma arma
ainda mais letal: o carro de combate. Extremamente leve, ele permitia que até dois
ocupantes o manejassem – um guiava, enquanto o outro manejava a espada, a lança ou o
arco. Da China, a E., até os agricultores construtores de menires e dólmens, a O., passando
pelas antigas civilizações do Crescente Fértil, até o Egito, bárbaros falando línguas indo-
europeias se expandiram, impondo suas línguas a amplas regiões da Eurásia.

*ek^4wos “cavalo”, originou o lat. equus, ainda preservado na forma feminina (equa) no
port. égua, esp. yegua; o étimo aparece também no a.ind. áśvaḥ, gaul. epos, a.ir. ech. O gr.
ἵππος é normalmente tido como derivado desse étimo, mas não segue às regras gerais de
correspondência de vogais e de consonantes. As línguas românicas apresentam palavras
derivadas de uma forma latina popular ou dialetal caballus, que originou o port. cavalo,
esp.it cavallo, fr. chéval, rom. cal, e que também é encontrado para as línguas célticas: irl.
capall, gal. ceffyl “cavalo”. Esse étimo é um pouco obscuro, podendo (ou não) ser
relacionado com o pol. kobyła, kuń, rus. kobyla, kunь, “égua”, “cavalo”. As línguas
germânicas tem a forma mare-, que aparece no got. marah, ing. mare “égua”, e também em
palavras derivadas do germânico, como marechal e em alguns nomes próprios de origem
germânica Vilmar, Guiomar, Guimarães. O it. e o fr. derivaram sua palavra para a fêmea do
cavalo do latim iumenta (fr. jument, it. giumenta), feminino de um iumentum “animal de
tração (e não apenas jumento)”.

*k^ers- “correr”, originou, a partir do grau zero da raiz (< *krs-ō), o lat. currō, currěre, de
onde se originou o port. correr. Do particípio perfeito cursum se originou curso e seus
derivados (cursar, recurso, concurso). A passagem de r > s do latim arcaico para o latim
clássico é regular e está bem documentada (p.ex. Numesio > Numerio). Da mesma raiz, no
grau pleno (com a vogal pronunciada), se tem o gaulês carros, que é a origem do lat.
carrus, de onde se tem o port.esp.it. carro (a raiz aparece no fr. chariot, “carruagem”), mas
também o inglês car. Observe que a especialização de carro para significar “automóvel” é
peculiar ao português, principalmente ao português brasileiro (os portugueses preferem
auto).

*wegh- “carregar, ir ou transportar em veículo”, deu o lat. ueho, uehěre, cuja raiz aparece
em veículo e derivados (como veemente); também a.ind. váhati, av. vazáti “liderar,
atravessar, desposar”, got. wigs, al. Weg, ing. way “caminho”; a.ing. wāgan > ing. wagon
“veículo”. A esse étimo está ligado o fr. vagon > port. vagão.

*kwekwlóm “roda” a.ind. cakrá (skt. chakra), av. čaxrá, gr. κύκλος, a.ing. hwēol, ingl.
wheel, todos “roda”. Do grego, originou-se o port. ciclo, por empréstimo erudito (primeiro
registro em português: 1712). Da mesma raiz, com vocalismo em o parece derivar o lat.
collum, “pescoço” donde o port. colo.

*ret- “correr, rolar” aparece no a.ind. rátha “carruagem”; a raiz aparece com a vogal o no
latim e nas línguas célticas. A vogal o numa raiz ocorria em algumas derivações (cf. Língua
Portuguesa II: morfema processual), criando alternâncias relativamente comuns entre uma
4
Na inexistência do sinal convencionado, utilizamos *k^ para representar a oclusiva surda palatal recons-
truída no proto-indo-europeu (correspondente no IPA: [c]).

8
História do Português 1: Do Indo-europeu ao Português

forma com e e outra com o da mesma raiz. Assim, o lat. rota, do qual se deriva o port. roda,
e derivados, como redondo (< rodondo), rodar, mas também rota (e derivados, como
rótula). O esp. roda e ruta, it. rota, fr. roue, rom. roată. Nas línguas célticas e gêrmânicas,
a raiz aparece com o mesmo significado básico: irl. roth, gal. rhod, tb. no al. Rad “roda”.

9
História do Português 1: Do Indo-europeu ao Português

DO LATIM ÀS LÍNGUAS ROMÂNICAS

As Línguas da Antiga Itália e o Latim.

O latim pertencia a um grupo de línguas indo-europeias faladas na Península Itálica,


no Primeiro Milênio A.C., por isso mesmo denominadas línguas itálicas, juntamente com o
osco, o umbro, o sabélico e o falisco. Acredita-se que os primeiros falantes de línguas indo-
europeias, provenientes da região central da Europa (bacia do Danúbio) tenham entrado na
Península entre 1.300 e 1.100 a.C., trazendo uma cultura caracterizada por sepultamentos
de ossos, após a cramação dos corpos, em urnas – a chamada cultura dos Campos de Urna
(alemão Urnfeld), que se espalhou a partir da região que hoje é o sul da Alemanha. Na
Itália, os povoadores dos campos de urna estabeleceram as culturas Golasecca, no N., e
Villanova, na região central, onde se desenvolveriam o latim (cf. Mallory & Adams, p. 233-
4; 613-4; 622-3).

Principais Sistemas Culturais na Europa, no final da Era do Bronze (Segundo Milênio a.C.).
Fonte: Wikipedia.org

Note que o mapa representa um sistema cultural reconhecido com base no compartilhamento de
características dos restos arqueológicos (cerâmica, objetos de metal, estrutura dos povoamentos e

10
História do Português 1: Do Indo-europeu ao Português

dos sepultamentos) deixados por alguns grupos humanos. No caso específico da Cultura do Campo
de Urnas, o tipo de sepultamento é um traço decisivo.

As primeiras culturas relacionadas a povos falando línguas celtas (Hallstat)


pertencem ao complexo de culturas dos campos de urnas, o que confere com a antiga tese
de que as línguas célticas e as línguas itálicas são aparentadas. Essa tese é sustentada por
algumas similaridades compartilhadas por línguas itálicas e célticas, mas não encontradas
em outras línguas indo-europeias: a presença de um conjuntivo em –a (de que se pode ver
vestígios no subjuntivo: nós batemos/que nós batamos); a presença de um sufixo de
superlativo *-isomo-: lat. bell-issimus gaul. Bel-isama; perda das antigas formas verbais do
aoristo indo-europeu, com a construção de um sistema baseado na oposição do perfeito e do
imperfeito (infectum).

No Primeiro Milênio antes de Cristo, o latim era falado em Roma e suas


imediações, e era apenas uma das diversas línguas faladas na Península. Conforme Roma
foi conquistando as cidades vizinhas, até se assenhorar de toda Itália antes de 200 a.C., o
latim acabou se impondo por toda a Itália.

11
História do Português 1: Do Indo-europeu ao Português

Línguas faladas na Península Itálica, no Primeiro Milênio a.C.

Fonte: Wikipedia.de

Das línguas faladas na Península Itálica, pertenciam à mesma família que o latim: o
picênico, o úmbrio, o sabélico, o falisco e o osco. O falisco era membro de um conjunto de
dialetos falados na região do Latium – o Lácio – que incluía também o latim. O etrusco (cf.
abaixo) não era uma língua indo-europeia e ainda hoje a discussão de sua origem é bastante
polêmica. O messápio, falado na porção mais oriental da Itália (Apúlia), era provavelmente
aparentado com os dialetos ilíricos falados do outro lado do Mar Jônio, enquanto a língua
dos sículos (da Sicília) tem origem bastante controversa. No norte da Península (que, de
resto, não era considerado parte da Itália no tempo dos romanos) eram faladas outras
línguas indo-europeias, não pertencentes à mesma família do latim: as línguas dos vênetos,
dos lígures e o gaulês.

12
História do Português 1: Do Indo-europeu ao Português

As línguas itálicas compartilhavam uma série de características perante as demais


línguas indo-europeias. Em primeiro lugar, existe um conjunto de étimos registrados apenas
nessas línguas:

Latim Itálico

terra osc. térrum

especialização da raiz *trs- “torrar” (cf. torreo < torseo) significando


“terra seca”, depois “terra”, compartilhada pelo céltico (cr. irl. tír
“terra”).

manus osc. manim (acusativo)

talvez relacionada com uma raiz *mnt- encontrada no germânico


(nórdico antigo mund “mão”)

dīco osc. fal. diko

especialização da raiz *deik-, cujo significado original é “mostrar”


(cf. dêixis) no sentido de “dizer”

cubare pic.s. qupat sab. cibat

raiz só é encontrada em itálico

alter osc. alttram (fem. ac.)

formado da raiz bastante difundida *al- (cf. gr. állos)

uia osc. viú umbr. via s.pic. viam (ac.)

pode estar relacionado com o germânico (got. vigs ing. way al. Weg)

Outra característica marcante é o uso de um morfema de imperfeito em *–b ha-, que


aparece como –ba em latim: amabat “amava”, stabat “estava”, e como –fa em outras
línguas itálicas. As línguas itálicas compartilham ainda um mesmo tratamento para as
oclusivas sonoras aspiradas do PIE [proto-indo-europeu], que originaram uma fricativa /f/,
sobretudo em posição inicial. Em posição intervocálica, o latim costuma conservar esses
fonemas como oclusivos, com perda da aspiração. Nas demais línguas itálicas, também
nesses contextos as oclusivas aspiradas deram origem à fricativa:

*bh *dh

13
História do Português 1: Do Indo-europeu ao Português

> f em todas as línguas itálicas,


> f em todas as línguas itálicas, em
em início de palavra:
início de palavra:
*bhares- lat. far osc.umb. far
*dheigh- > lat. fīngo osc. fi-fiked
“cevada”
*dhaki- > lat. faci-o osc. fakiiad
*bhu- lat. fu-erim; osc. fu-fans
> d em latim qdo. intervocálico
> b em latim, qdo. intervocálico
> f em outras línguas itálicas,
> f nas outras línguas itálicas,
quando intervocálico
quando intervocálico
lat. aediles osc. efiles
*(e)rubhr- lat.ruber; sab. rufus
lat. medius osc. mefiius
*tribh- lat. tribus, osc. trifus

Outra diferença no tratamento de fonemas do PIE pode ser observada nas oclusivas
labiovelares – elas tendem a se conservar em latim e a evoluir para /p/ nas demais línguas
itálicas: PIE *kwenkwe > lat. quinque osc. pompe.

Essas e outras tendências de mudança fonética divergentes das línguas itálicas


podem ser de empréstimos feitos de dialetos sabélicos, como lat. rufus “ruivo”, lupus
“lobo”, bōs “boi”, forfex “tesoura”, ravus “pardo amarelado”, helvus, bufalus. As formas
correspondentes, que seguiriam as regras gerais da passagem do PIE para o latim seriam:
rubus, *lucus, *vōs, *forbex, *gravus, *hulvus e bubalus. Também se sente a influência
itálica (neste caso, osca) em alguns nomes próprios latinos: Pompeus (osc. Pompeios),
Pompeia.

Algumas características são mais culturais. Clackson (2007: 42-44) cita os


patronímicos em io/-ia como parte dessa herança. O uso de patronímico para a identificação
da família a que pertence o indivíduo é uma caracterísitica compartilhada por muitas
línguas e quase que universalmente presente nas línguas indo-europeias (ver inglês
Richardson, gaél.esc. MacDonald, rus. Nikolaiévitch). Num período bastante remoto, as
línguas itálicas formavam patronímicos utilizando o sufixo –io/-ia. Assim, do nome
Marcus se formou o patronímico Marcius “filho de Marcos”. Como costuma ocorrer, os
patronímicos passaram a ser utilizados como sobrenome, i.e., foram passados para as
gerações seguintes. De maneira interessante, alguns patronímicos parecem se ligar a um
apodo (apelido) do que propriamente a um nome: Fabius, por exemplo, vem de Faba
“fava”.

Os itálicos adotaram um sistema de nomeção dos Etruscos 5, que consistia em um


nome (nomen) da família (gens), como Iulius, Cornelius, Claudius; um nome pessoal, que é
utilizando antes do nome da família (por isso praenomen), como Caius, Lucius, Publius,
Aulus e com um número bem limitado no período da República e do Império. Mais tarde,
5
Por exemplo, etr. Mamarce Velχanas “Marcos filho de Velχe”.

14
História do Português 1: Do Indo-europeu ao Português

muitas famílias patrícias desenvolveram nomes específicos para ramos específicos das
famílias: Iulius Caesar, Cornelius Scipio.

Ao lados das línguas itálicas, era falado, na região da atual Toscana, o etrusco, uma
língua não aparentada com as línguas indo-europeias e cujos textos, ainda que numerosos,
não foram satisfatoriamente decifrados. Ainda se discute se os etruscos eram um povo
autóctone da Península Itálica ou se descendiam de colonos provenientes da Ásia Menor,
como sugere o historiador grego Heródoto. As evidências mais modernas da genética de
populações apontam para uma origem centro-europeia dos etruscos 6, o que acompanha o
relato de Plínio, o Velho, de que os etruscos seriam aparentados com populações alpinas,
como os récios (a Récia compreendia parte das atuais Bavária, Suíça e o Tirol). Isso não
esclarece, no entanto, a origem de sua língua: há séculos já aprendemos, a origem genética
de uma população não fornece automaticamente a origem da língua que ela fala.

LARΘ1.ARNΘAL2.PLECUS3:CLAN4:RAMΘAS5 C6:APATRUAL7:ESLZ8:ZILAχNΘAS9

AVILS10: ΘUNEM11:MUVALχLS12:LUPU13

“Larnth1 de Arnthal2 Plecu3 filho4 e6 de Ramtha5 Apatrui7; duas vezes8 Zilath9 ( cônsul)
anos10 um menos que11 cinquenta12 morto13 (i.e. “morreu aos quarenta e nove)”

Inscrição em um sarcófago em Tarquinia (Ta 1183, CIE 5471, TLE 136), apud Meiser, 1998: 12)

Dos estruscos, os romanos herdaram muitos elementos da sua civilização: o


alfabeto, a arquitetura, o direito, as instituições de maneira geral (como o Senado, por
exemplo)– inclusive o próprio nome da cidade. Também os empréstimos linguísticos
devem ter sido numerosos. Sabemos que os nomes de pelo menos dois dos principais
deuses romanos – Minerva e Marte – ocorrem em inscrições etruscas. .Abaixo, há uma
coleção de raízes latinas a que se costuma atribuir uma origem etrusca. A maior parte delas
não ocorre em inscrições etruscas, de maneira que o mais próximo

arena > port. areia, esp. arena; reintroduzido no português por via erudita: arena.
Em latim era tanto empregada no sentido de “areia” como no de “lugar público para
exibições”.

fenestra > port. fresta (arc. feestra), fr. fenêtre, it. fenestra.

forma > port. forma (as duas palavras, com o aberto e fechado); pode ser um
empréstimo do grego μόρφος para o etrusco.

6
Ghiroto, Silvia et al. 2013. Origins and evolution of Etruscan mtDNA. Disponível em
http://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0055519, consultado em 02.03.2015.

15
História do Português 1: Do Indo-europeu ao Português

marc-/mart- essas raízes aparecem em marcullus “martelo”, de que aparecem as


variantes martullus, martellus; podem estar também nos nomes próprios Marcus e
Mars (nome do deus romano Marte).

merx – a palavra latina significava “mercadoria”, dela se formou o verbo mercare


(> mercar), de cujo particípio perfeito se formou mercatum (> mercatum); a mesma
raiz estaria no nome Mercurius (> Mercúrio) e nas palavras merces, gen. mercedis
(> mercê), que significava “pagamento” (depois algo como “crédito em haver”, e
depois “merecimento”) e mercenarius (> mercenário). Pode, também, estar
relacionada com uma raiz indo-europeia *smer-, que aparece no grego μέρος,
“parte”.

satelles, “corpos celeste”, teria a mesma origem do nome do deus romano Saturnus.
Origem do port. satélite.

Outros prováveis termos latinos de origem etrusca: autumnus, histrio (cf.


histrião), lar, littera, ludus (> ludicus, cf. lúdico), miles (“soldado”, de onde vem
militaris, militia), persona, populus (> povo), tina, titulus, tunica.

Entre as línguas que exerceram influências e/ou emprestaram palavras para o latim,
merece um lugar de destaque o grego. A cultura grega exerceu uma forte influência não só
sobre os romanos ou os povos da Itália de maneira geral, mas em todo o mundo
mediterrâneo. Muitas das instituições herdadas dos estruscos, por exemplo o alfabeto, são
em última instância de origem grega.

Quando se pensa no que os romanos deviam aos gregos, tende-se a pensar apenas
nas contribuições da alta cultura, como o teatro, a poesia, a retórica, a gramátia, a filosofia e
as ciências. Mas a contribuição era muito mais ampla e, acima de tudo, muito mais visível
em outras esferas.

De fato, o latim possuía muitas palavras do grego: grammatica, phanthasia,


philosophia, poesis, poeta, rhetor, comoedia, satyra. Esse vocabulário estritamente erudito,
no entanto, não foi legado imediatamente às línguas românicas. Esse fato é constatado pelo
fato de que os correspondentes portugueses (e nas outras línguas românicas) dessas
palavras são muito semelhantes aos originais gregos, demonstrando que elas não sofreram
as mutações características da longa história das línguas românicas. Na verdade, esses
termos foram preservados mesmo no latim, ao longo de toda a Idade Média, que foi a
língua da comunicação escrita na România (e, num certo sentido, de toda a Europa
Ocidental) e ingressaram plenamente nas línguas românicas (e nas línguas europeias de
maneira geral) apenas a partir do final da Idade Média e do Renascimento. Uma consulta ao
Dicionário Houaiss, mostra que a maior parte das palavras nessa lista tem seu primeiro
registro no século XIV. Nesse século, como resultado do fértil período de progresso
intelectual da Alta Idade Média, os autores latinos em cujos textos essas palavras apareciam
(e também os autores gregos), voltaram a ser lidos e estudados nas nascentes universidades
europeias

16
História do Português 1: Do Indo-europeu ao Português

Mas o contato com o grego não se resumiu ao contato intelectual, com o


empréstimo de um vocabulário especializado. Ele foi muito mais adiante do que isso. Em
primeiro lugar, o grego era a língua franca do comércio e das relações internacionais em
geral em toda a região do Mediterrâneo, sobretudo no que viria a ser a porção oriental do
Império7 Romano (Ásia Menor, Síria, Palestina, Egito). Essas regiões fizeram parte do
império de Alexandre e possuíam um intensa rede urbana, e, do ponto de vista cultural, era
intensamente helenizada. O grego foi utilizado pelos romanos para a administração desta
parte do Império, onde o latim não logrou se impor. Mas mesmo na porção ocidental do
Império o grego era uma língua bastante usada.

A partir de meados do século IX a.C. as cidades-estado gregas iniciaram o


estabelecimento de colônias por todo o Mediterrâneo. A maior parte dessas colônias se
concentrava no que os romanos chamavam de Magna Graecia, e que compreendia o sul da
Itália (e também grande parte da Sicília). A cidade-estado de Cálcis fundou a primeira
delas, a colônia de Cumae (a cerca de 20 km ao N.O. de Nápoles), da qual os etruscos – e
por intermédio destes os romanos – receberam o seu alfabeto que, portanto, remonta à
versão eólica do alfabeto grego, e não à versão jônica, fonte da atual escrita grega. Por isso,
o alfabeto romano conserva as letras derivadas das letras gregas arcaicas digama (o F) e
copa ou qopa (o Q).

Assim, boa parte da população da Itália – na verdade, a população da região mais


populosa e urbanizada, o Sul – falava grego, à época das conquistas romanas. Acrescente-se
a isso o fato de que havia colônias gregas em toda a costa do Adriático, bem como no
litoral mediterrâneo das atuais França e Espanha. E, ainda: o grego era utilizado na
comunicação com a imensa população escrava de Roma e da Itália, proveniente de regiões
próximas à Grécia ou da parte do Império Romano em que a administração era feita em
Grego.

Dessa forma, o grego (o grego falado, coloquial, diferente da língua dos poetas e
filósofos que haviam vivido séculos antes) era ouvido o tempo todo nas ruas de Roma e de
outras cidades do Império. Na verdade, sob diversos aspectos, ele continua sendo ouvido
nas línguas românicas. Em primeiro lugar, no copioso acervo de palavras gregas que
ingressaram no latim falado. Em segundo lugar, no não menos copioso acervo de palavras
eruditas de origem grega que têm entrado no português (e nas outras línguas europeias),
com um certo grau de latinização. Ao contrário daqueles termos eruditos de que falamos
acima, essas palavras penetraram na língua falada pelo povo. Elas descrevem nomes de
produtos, objetos e utensílios que os romanos receberam dos gregos.

Eis uma lista, muito longe de ser completa: amêndoa, artemijo (artemísia), bodega,
bolsa, buxo, cada, cadarço, caixa, calar, calma, cara, carta, cedro, cesto, chato, cirpreste,
corda, cravo (flor), ermo, espada, espelunca, estopa, faisão, feijão, gesso, golfo, golpe,
governar, grilo, gruta, massa, mastigar, menta, palanque, palavra, pasta, pedra, praça,
prato, púrpura, relógio, ronco, tégão (=”frigideira”), telha, tigela, tumba.

7
A rigor, o Império Romano só começa quando Otaviano foi declarado Imperator (chefe militar máximo)
pelo Senado Romano, em 16 de janeiro de 27 a.C. Eu o estou utilizando aqui num sentido mais amplo, de
conjunto de possessões territoriais.

17
História do Português 1: Do Indo-europeu ao Português

Muitas vezes, o mesmo termo têm mais de uma entrada no latim e nas línguas
românicas:

 Púrpura e pórfiro (lat. purpura, porphyrum) ambas as palavras derivam do


grego πορφύρα (porphyra). A primeira forma é mais antiga e revela uma fase no
grego em que o φ ainda marcava uma consoante oclusiva aspirada e υ o ainda
era uma vogal posterior [u]; a segunda forma, mais recente, reflete uma
tendência, já no grego, a pronunciar as consoantes antes aspiradas como
fricativas (ph > f) e o como uma vogal alta anterior arredondada [y].

 Tanto a forma mais antiga artimijo quanto o termo semi-erudito artemísia


provém do grego ἀρτημτσία. Outra erva mediterrânea que tem um nome mais
antigo alternando com um nome erudito mais recente é o orégano (< ὀρίγανος),
que possui as formas mais antigas orégão e ourego. Já o nome losna (< ἀλόη
ὀξίνης, “aloe azeda”) é mais antigo e contrasta com um nome mais recente para
a mesma erva, absinto (< ἀψίνθιον), de origem erudita, mas com uma origem
diferente no grego

A contribuição grega ao vocabulário erudito pode ser dividida em três grupos:

1. Termos gregos eruditos: os gregos estão na origem da maior parte das atividades
intelectuais do Ocidente: filosofia, geometria, gramática, retórica, para citar
algumas das mais emblemáticas. Do grego, direta ou indiretamente, herdamos o
vocabulário relacionado com essas disciplinas. Muitas dessas palavras possuíam um
sentido erudito diferente do sentido comum. Μεταφορά significava pura e
simplesmente “transporte, mudança” (ainda costuma aparecer nas carrocerias dos
caminhões de mudança, na Grécia, usada nesse sentido). O termo ὑποκείμενον, que
significa literamente “o que jaz sob”, era utilizado no sentido bastante prosaico de
“pavimento”. Traduzido para subiectus, pelos latinos, deu origem ao português
sujeito.

Esses termos penetraram na língua culta dos romanos, mas não foram transmitidos
diretamente para o português e as outras línguas romanas. Eles teriam que esperar a
retomada de uma vida intelectual mais densa, na Europa, depois do século X, para
serem colocados novamente em uso.

Como exemplo de termos desse vocabulário, temos: alelo, astrologia, astronomia,


botânica, categoria, cena, centro, comédia, diálogo, elefante, elétron, elipse,
escola, estádio, estilo, estrofe, física, geometria, grafia, grama, gramática, hora,
lâmpada, lógica, matemática, metáfora, metro, ode, órfão, órgão, paradigma,
paradoxo, paralelo, paródia, período, pétala, poeta, sésamo, sintaxe, teatro,
tragédia, trapézio.

2. Termos eclesiásticos de origem grega: o grego foi a língua utilizada pelos


primeiros cristãos para divulgação de sua fé, simplesmente porque era a língua de
comunicação geral na maior parte da bacia medieterrânica, na época. Além disso,
durante séculos foi a língua de boa parte da liturgia cristã (o Kyrie, das missas

18
História do Português 1: Do Indo-europeu ao Português

latinas, é uma recordação dessa época). Por isso, boa parte do vocabulário cristão
provém do grego: arcediago, anátema, anjo, apóstata, apóstolo, batismo, bispo,
bíblia, bula, cônego, clérigo, crisma, Cristo (e derivados), diabo, diocese,
eucaristia, epifania, epístola, encíclica, esmola, evangelho, heresia, ícone,
idolatria, igreja, mosteiro, parábola, paróquia, presbítero.

Na conta do grego eclesiástico deve entrar, também, os termos de origem hebraica


ou aramaica introduzidos através do vocabulário cristão: abade, aleluia, bálsamo,
belzebu, cabala, éden, fariseu, geena, hissope, hosana, jubileu, leivatã, maná,
páscoa, querubim, rabino, sábado, serafim.

Mas talvez o acervo mais importante de termos herdados pelo português, e pelas
outras línguas europeias, no contexto do cristianismo é o acervo básico de nomes
próprios (prenomes) de pessoas. Alguns deles são de origem grega: André, Filipe,
Mateus, Estêvão, Teófilo, Teodoro; os mais importantes (ou talvez os mais comuns)
são de origem hebraica: Jesus, Maria, Ana, Isabel, José, Rute, Ester, Raquel,
Miriam, João, Tiago, Bartolomeu, Judas, Gabriel, Daniel, Miguel, Rafael, David,
para citar os principais.

3. Termos eruditos forjados a partir de elementos gregos: pode-se dizer que existe
um acervo comum de morfemas gregos, que têm sido utilizados para a formação de
termos eruditos nas línguas europeias, a esmagadora maioria dos quais não é
documentada nos textos gregos antigos. Para citar alguns exemplos: dinâmica,
enciclopédia, eucalipto, araucária, estenografia, farmacologia, filodendro, epífita,
fonema, fonética, geografia, hidrostática, morfologia, ornitorrinco, celenterado,
cefalópode, psicologia, química, semântica, sintagma, telefone.

Como o latim é a outra grande fonte de morfemas dos vocabulário erudito comum
às línguas europeias, não raro nos deparamos com o que os filólogos chamam de
“híbrido”, um termo que é formado de um morfema grego e outro latino (ou de
outra origem): amoral, hiperinflação, hipertensão, metalinguístico, heterossexual,
televisão.

Destaque especial deve ser dado aos prefixos de origem grega (meta-, hiper-, peri-,
dis-), mas principalmente aos sufixos (-ismo, -ista, -ico, -izar, -ema), bastante
produtivos na formação de palavras em português e em outras línguas europeias.

A influência do grego pode ter ido além do nível do empréstimo lexical. Alguns
estudiosos [referências] defendem que alguns traços morfossintáticos do latim vulgar e/ou
das línguas românicas tiveram sua origem no grego. Entre esses traços, podemos citar: a
presença de artigos (definidos e indefinidos), tempos verbais compostos, sufixo
aumentativo com valor agentivo, construções de oração subordinada com pronome relativo
ou complementizador, entre outras. Veremos um pouco mais disso, adiante, quando
estudarmos as mudanças morfossintáticas.

REFERÊNCIAS:

19
História do Português 1: Do Indo-europeu ao Português

ANTHONY, David W. et. al. 1986. The "Kurgan Culture," Indo-European Origins, and the
Domestication of the Horse: A Reconsideration [and Comments and Replies]. Current
Anthropology 27: 291-313.
ANTHONY, David W. 2007. The wheel, the horse, the language: how bronze-age riders
from Eurasian stepes shaped the modern world. Princeton: Princeton University Press.
CLACKSON,.2007. Indo-European linguistics: an introduction. Cambridge University Press.
KRAHE, Hans. 1953. Lingüística indoeuropea. Madrid: Instituto Antonio de Nebrija.
Trad. espanhola de Justo Vicuña Suberviola.
MALLORY, J. P. 1991. In the search of indo-european. London/New York: Thames &
Hudson.
MALLORY, J.P.; ADAMS, D. Q. 2006. The Oxford introduction to Proto-indo-
european and indo-european world. Oxford: Oxford University Press.
POKORNY, Julius. 2007. Proto-indo-european etymological dictionary. Indo-european
Language Revival Association. Disponível em http://dhngu.org.

20

Você também pode gostar