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CORAZZA, Sandra TADEU, Tomaz. Manifesto Por Um Pensamento Da Diferenca em Educação
CORAZZA, Sandra TADEU, Tomaz. Manifesto Por Um Pensamento Da Diferenca em Educação
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Preferir a diferença à identidade. A positividade à negatividade. A afirmação à
contradição. A singularidade à totalidade. A contingência à causalidade. O evento ao
predicado. A performatividade à qualidade. O verbo ao adjetivo. O "verdejar" ao "verde". A
linha ao ponto. A espiral à seta. O rizoma à árvore. A disseminação à polissemia. A
ambigüidade à clareza. O movimento à forma. A metamorfose à metáfora. O acontecimento
ao conceito. O impensado ao bom senso. O simulacro ao original.
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construtivistas e liberais, passando pelas críticas e emancipatórias - subsistiria sem a noção
de interioridade. O mito da interioridade é essencial aos diversos avatares do sujeito que
povoam os territórios das pedagogias contemporâneas: o cidadão participante, a pessoa
integral, o indivíduo crítico. A filosofia da interioridade é o correlato da metafísica da
presença. A interioridade tem negócios com a consciência, com a representação, com a
intencionalidade. Privilegiar, em vez da interioridade e suas figuras, as conexões e
superfícies de contato, as dobras e as flexões, os poros e as fendas, os fluxos e as trocas.
Preferir, sempre, a exterioridade à interioridade.
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máquina (ciborgues), entre o Homem e o animal, entre o Homem e os seres inanimados:
um ser entre outros seres e não um ser em um ambiente desfrutável. Em seu lugar, um
homem (uma mulher) sem qualidades (antropológicas) e sem privilégios
(antropocêntricos). Celebrar os prazeres - e até mesmo os perigos - da confusão de
fronteiras. Nenhuma tentativa de recompor um Uno cindido, fragmentado, corrompido.
Estimular, em vez disso, a divisão, a multiplicação, a proliferação. Em vez da
recomposição de integridades e totalidades perdidas, privilegiar as operações de
desmontagem e remontagem, de decomposição e recomposição.
[p.13] Quantos? Um. É muito pouco. Dois. Talvez. Muitos. É muito melhor.
Celebrar a multiplicidade e a singularidade. A divisão ao infinito. "Sou grande. Contenho
multidões" (Walt Whitman). "Como cada um de nós era vários, já era muita gente"
(Deleuze e Guattari). "Um é muito pouco, dois é apenas uma possibilidade" (Donna
Haraway).
Olhar com simpatia o mundo das aparências e dos simulacros. "Destruir os modelos
e as cópias para instaurar o caos que cria, que faz marchar os simulacros" (Deleuze).
Falsificar. Confundir o referente e a representação, o original e a cópia, a cópia e o
simulacro. Desestabilizar a exclusividade do original, do real e do verdadeiro. Renunciar a
desvelar, desmascarar, desmistificar.
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dialética que se resolve na re-instauração do mesmo - a consciência plena. A expressão
"pedagogia emancipatória" é um oxímoro: "você deve se emancipar". É essa
incompatibilidade intrínseca entre, de um lado, as noções de autonomia, libertação e
emancipação e, de outro, a idéia mesma de pedagogia, que corrói por dentro o edifício do
projeto educativo iluminista.
Pensar e viver sem fundações últimas, sem princípios transcendentais, sem critérios
universais. Nenhuma fundação é realmente última; nenhum princípio realmente
transcendental; nenhum critério realmente universal. As fundações, os transcendentais, os
universais são estreitamente dependentes dos atos que os enuncia m e das posições de onde
são enunciados. Não existem antes da linguagem e do discurso, nem fora da história e da
política, nem independentemente da sociedade e da cultura. São circulares: aquilo que eles
supostamente são tem como único fundamento o ato que os definiu como tais. Não existem
universais que não estejam baseados em um ato de exclusão. Não existem fundações que
dispensem a força da retórica que as funda. Não existem transcendentais que não derivem
de mundanos atos de força. Pensar e viver sem eles não significa simplesmente que "tudo
vale", mas que aquilo que vale não está antecipada e definitivamente decidido.
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mimética, de um mundo de referência que esteja em posição de reivindicar direitos de
precedência. Não existe qualquer coincidência entre o conceito e o "real", entre o conceito e
a "consciência", entre o conceito e a sua inscrição. "O conhecimento não é o espelho da
natureza". Desligar-se da idéia de representação como identidade, como mimese, como
reflexo. Deixar de ver o conhecimento e o currículo como superfícies especulares para
passar a vê-los como superfícies de inscrição.
No lugar de uma ontologia, instaurar uma "ciência" dos eventos. Buscar não a
essência e o que é, mas o devir, o vir-a-ser, o tornar-se. "O que é primeiro não é a plenitude
do ser, é a fenda e a fissura, a erosão e o esgarçamento, a intermitência e a privação
mordente" (Blanchot). Dar importância não ao [p.16] significado, mas à produção. Em vez
de perguntar "o que é isto?", perguntar "o que posso fazer com isto?". Em vez de perguntar
"é verdade?", perguntar "como funciona?". Não interpretar, mas experimentar.
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diante das reivindicações da semelhança, da equivalência, da analogia e da unicidade.
"Guerra ao todo, testemunhemos em favor do 'impresentificável', ativemos os diferendos"
(Lyotard). Não deixar que o pesado e amarrado "trabalho da dialética" prevaleça sobre o
leve e livre "jogo da diferença". "A dialética não liberta o diferente; ela garante, ao
contrário, que ele será sempre recuperado" (Foucault). "A oposição [a dialética] interrompe
seu trabalho, a diferença inicia seus jogos" (Deleuze).
[p.17] Referências
A citação de Blanchot sobre a "necessária dissimetria" das relações de fala é
extraída de Maurice Blanchot. L'entretien infini. Paris: Gallimard, 1969, p.110. As duas
citações de Foucault sobre a dialética são extraídas da página 90 de Michel Foucault.
"Theatrum philosophicum" Dits et écrits v. II. Paris: Gallimard, 1994, p.75-99. O "muita
gente" de Deleuze e Guattari vem da página 11 de Gilles Deleuze e Féliz Guattari. Mil
platôs. Capitalismo e esquizofrenia. v.1. Rio: Editora 34, 1995. A citação de Donna
Haraway está em Donna Haraway. "Um manifesto em favor do ciborgues" In: Tomaz
Tadeu da Silva (Org.). Antropologia do ciborgue. As vertigens do pós-humano. Belo
Horizonte: Autêntica, 2000. A citação de Walt Whitman é do poema “I celebrate myself”,
de Leaves of grass. "Do I contradict myself?/ Very well, then, I contradict myself; I am
large - I contain multitudes". A citação de Deleuze sobre o simulacro é da página 271 de
Gilles Deleuze. A lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1998. A citação de Deleuze,
no penúltimo parágrafo, é de Nietzsche et la philosophie, PUF, 1999, p.218. A citação de
Blanchot sobre a "plenitude do ser" é tomada de Peter Pál Pelbart, "O humanismo
extenuado de uma constelação de autores", Folha de São Paulo, 6 de agosto de 2000. As
citações de Lyotard nos dois últimos parágrafos são de O pós-moderno explicado às
crianças. Lisboa: Dom Quixote, 1987, p.27. Ainda no último parágrafo, a citação de
Foucault é de "La pensée du dehors". In: Dits et écrits. Paris: Gallimard, 1994, p. 518-539
(a passagem está na página 523). Outras referências, livremente parafraseadas, como as que
compõem o parágrafo sobre o "sujeito", serão facilmente reconhecidas.