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Rua dos Timoneiros

O russo abriu a porta da oficina que dava para nosso quintal e mergulhou suas ferramentas
no grande tambor de água que tínhamos ali. Seus olhos claros sempre me olhavam de
esguelha, coroando um sorriso mocho onde brilhava o mistério de um pré-molar de ouro
emoldurando a barba rala sempre por fazer. Então, como de costume, ele regurgitaria algo
em sua língua disgramada e desapareceria incondicionalmente pela mesma porta, revelando
agora a calvície rosada de um vulto estranho numa última cena deixando atrás de si o rastro
pestilento de um cheiro de ferrugem no ar.
Jamais soube seu nome. Minha mãe pernambucana, Ivolete de Alencar, a quem pude
reencontrar anos depois, nem mesmo da pessoa dele se lembrava. Mas o cheiro de ferro que
sempre associei à sua pessoa me fez guardar dele impressões que hoje não são mais
perceptíveis, transformaram-se por sua vez em memórias de sensações remotas e que só
estiveram disponíveis no meu repertório de lembranças até um certo momento.
No pequeno sobrado havia um quarto mobiliado com móveis que tinham pertencido a meu
irmão para que meu pai dormisse ali quando quisesse. Ele jamais o usou. Era um cômodo
ausente em seu propósito de esfinge num deserto sem pirâmides. Entrar nele era adentrar um
lugar impecável preparado intencionalmente para fantasmas que jamais apareciam.
Às vezes ele vinha para me levar ao barbeiro ou trazer algum presente. Outras vezes íamos
até o bar que ele tinha na Ponte da Casa Verde e lá alguém sempre enchia meus bolsos com
chocolates sem que ele visse. Certa vez, por um furo no forro dos bolsos, os chocolates
escorregaram pelas pernas e alguns se espalharam pelo chão. Não me recordo do final dessa
passagem. Mas a decepção pelo doce crime espalhado no piso me fez reparar no vinco
perfeito das calças.
A Rua dos Timoneiros trouxe consigo uma rota de momentos onde experimentei mares de
profundezas onde ainda procuro navegar, mesmo que as percepções desse lugar não estejam
mais frescas e tão ativas emocionalmente. É como se restasse apenas uma memória da
memória. Os sentidos conservam no vinho de sua recordação táctil as coisas corrosivas que
azedaram em vinagre no tempo do coração.
Sonhei certa vez que o bicho papão estava sentado na porta de casa me impedindo de entrar.
Do portão percebi que ele era feito do mesmo material das capas de chuva que então se
usava. E o mais notável foi verificar que era oco por dentro. Quando toquei sua cabeça,
minha coragem de criança fez com ele perdesse sua forma, que se desinflou igual a um
balão abandonado num parque.
Rolei as escadas num passo em falso e tive várias escoriações pelo corpo. Sentado no
aparador do armário da cozinha, Ivolete passou salmoura nos meus hematomas enquanto eu
choramingava arrependido. Lembro que na mesa havia brigadeiros de doce-de-abóbora que
ela tivera o capricho de espetar um a um com cravo-da-índia. Criei mais tarde uma
verdadeira obsessão por esse doce que o tempo me fez aprimorar com especiarias cada vez
mais exóticas. O aroma de aconchego com que ele inebriava toda a casa era mais sedutor do
que propriamente comê-lo. Depois, tudo em mim foi uma busca de sedução.
Ivolete trabalhou com minha mãe Izabel arrematando pilhas de blusas para uma fábrica que
contratava mão-de-obra barata para o acabamento. Eram vizinhas e amigas. Ouviam Dalva
de Oliveira no rádio enquanto costuravam. Veio de Pernambuco para morar com uma de
suas irmãs que estava em São Paulo e por pura incompatibilidade fraterna muito cedo ela
veio morar com a gente. O fado armando suas redes...
Quando nasci e minha mãe desenvolveu metástase no sangue, ficando logo impossibilitada
de levar uma vida normal, Ivolete, morena cor de canela, foi minha cura provisória para um
destino já sem tempero. Em seus delírios de morfina Izabel me oferecia seu colo dizendo:
'Vem com a vovó!' Ela não teve tempo de ser minha mãe. Ficou quase três anos presa ao
útero da cama até nascer finalmente para a vida de sua morte. Foi então que tudo escureceu.
Antes, ela fizera meu pai jurar ajoelhado na cabeceira de seu leito que quando ela morresse
ele me deixaria com Ivolete. Ela temia que o ódio que a família dele lhe devotava de alguma
forma me atingisse de tabela, coisa que inevitavelmente aconteceu. Promessas em leitos de
morte são passos em falso em escadas que nunca sobem.

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