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Narrativas antropológicas,
entre biografia e etnografia
Suely Kofes
Daniela Manica
(organização)
Revisão
Mariana Bard & Vinícius Melo
Projeto gráfico
Fernando Rodrigues
Proibida a reprodução, total ou parcial, por qualquer meio ou processo, seja repro-
gráfico, fotográfico, gráfico, microfilmagem etc. Estas proibições aplicam-se também
às características gráficas e/ou editoriais.
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Prefácio
“Como quase tudo na vida, eles vêm e vão. Muitas vezes a busca os
afasta, e o momento menos esperado é o propício para seu surgi-
mento. Em lugares improváveis, através de informação obtida com
pessoas desconhecidas, graças a uma decisão errada de caminho.
Enfim, o meio não importa aqui, e sim o fim, o objetivo, a desco-
berta. Você precisa de um lugar pra andar de skate, que seja novo, que
renove as energias, que te dê motivo para chamar seus amigos. Você
precisa de um pico e, mesmo que ele exista há anos, ele passa a ser ca-
rinhosamente chamado de ‘novo’ a partir da descoberta.”
(Prieto, 2011, p.22)
Picologia
1 Um caso de skatografia imagética pode ser encontrado na entrevista que fiz com o
skatógrafo Renato Custódio (Ferreira, 2009).
2 Aqui, refiro-me àquilo que revistas e sites de skate chamam de “skates modernos”,
surgidos nos anos 1990 e caracterizados por shape simétrico, sem distinção entre
a parte da frente e a parte de trás, com dimensões próximas a 22 por 76 centíme-
tros e rodas de diâmetro próximas a 52 milímetros. Existem muitos outros tipos de
skate menos utilizados do que os convencionais, voltados para terrenos específicos
(skate para grama ou para terra) ou com dimensões muito diferentes (de miniskates a
longboards).
3 Como bem expressou o skatógrafo Prieto: “Somos avessos a mato, grama, areia,
água. Lidamos bem com o concreto, granito, mármore.” (2011, p.22)
para a prática do skate, mas sim um ambiente que ele precisa tornar
“skatável”, seja pela criatividade e habilidade nas manobras, seja por
modificações na própria estrutura física do espaço (untando bordas e
superfícies com cera de vela, por exemplo, ou mesmo suavizando des-
níveis e transições com massas plásticas ou cimento).
Fora dos skateparks, quando o skatista encontra um piso irregular
ou uma rampa muito íngreme, ele não está diante de defeitos de
projeto (pelo menos não no que se refere à prática do skate), mas, sim,
de desafios a serem superados. Na rua, o skatista precisa subverter,
desviar as funções dos objetos (Kasper, 2005), explorando a sua
margem de indeterminação. Encontrei um bom exemplo de criati-
vidade e habilidade nas manobras na adequação ao pico na legenda
para um “360 flip to fakie numa capela abandonada em Suzano
(SP)”:
“Claro que nem todos os picos são perfeitos, por isso saíamos com
um verdadeiro arsenal de pedreiro (cimento, chapas de aço, pá, vas-
soura, madeiras, velas, massa plástica e afins), para corrigir as diversas
imperfeições que dificultavam – e até impossibilitavam – a vida dos
skatistas.”
(Ferrer, 2009, p.111)
9 O nose [nariz] do shape é a sua extremidade dianteira e o tail [rabo] é sua parte tra-
seira. Atualmente, nos skates convencionais, mesmo quando essa diferença não é mais
objetivada em formas ou dimensões diferentes das partes dianteira e traseira do shape
(como era mais comum nos anos 1980), a distinção ainda importa na classificação de
manobras, em suas variações nose e tail (por exemplo, tailslide e noseslide).
Referências
Gregory Bateson, “Some components of socialization for trance”, Ethos, v.3, n.2,
p.143–55, 1975
Black Sheep, “Anúncio”, Tribo Skate, n.189, p.4–5, 2011
Ivan Cruz, “Tinha um galpão na beira da estrada… na beira da estrada tinha um
galpão”, Cemporcento Skate, n.160, p.58–67, 2011
Pedro Peixoto Ferreira, “Conversa com o skatógrafo Renato Custódio”, 2009,
disponível em http://pedropeixotoferreira.wordpress.com/2009/06/15/
conversa-com-o-skatografo-renato-custodio/
–, “Picologia: pensando a reticulação do meio urbano pelo skate”, palestra pro-
ferida na mesa Corpo e Técnica na Teoria Social, 3 Reunião de Antropologia da
Ciência e da Tecnologia, Brasília: dan/unb, 2011
André Ferrer, “Um pico nunca dantes visitado”, Cemporcento Skate, n.135, p.110–111,
2009
Alfred Gell, “The gods at play: vertigo and possession in Muria religion”, Man, v.15,
n.2, p.219–248, 1980
Guto Jimenez, “Skateboarding militant: Um mundo sem skate?!”, Tribo Skate, n.190,
p.108, 2011
Christian P Kasper, “Desviando funções”, Nada, n.5, p.72–77, 2005
Carlos S Martins, “Caixa de entrada: Goethe, arquitetura e skate”, Cemporcento Skate,
n.162, p.108, 2011
Douglas Prieto, “O desafio das pessoas”, Cemporcento Skate, n.121, p.110, 2008
–, “Calçada: a busca”, Cemporcento Skate, n.162, p.22, 2011
Jakob V Uexküll, “An introduction to Umwelt”, Semiotica, n.134, p.107–110, 2001
Alexandre Vianna, Renato Custódio, Eduardo Braz, Atila Choppa & André Ferrer,
“Ande de skate aqui”, Cemporcento Skate, n.135, p.36–47, 2009
Apresentação
Referências
Marco Antonio Gonçalves, Roberto Marques & Vânia Z Cardoso (organização), Et-
nobiografia: subjetivação e etnografia, Rio de Janeiro: 7Letras, 2012
Suely Kofes, Uma trajetória, em narrativas, Campinas: Mercado de Letras, 2001
–, “Apresentação”, Cadernos do ifch, n.31, p.5–16, Campinas: ifch/unicamp,
2004
Daniela Manica, “Contracepção, natureza e cultura: embates e sentidos na et-
nografia de uma trajetória”, tese de doutorado em Antropologia Social,
Campinas: ifch/unicamp, 2009
Timothy Ingold, “Anthropology is not ethnography”, British Academy Review, n.11,
p.21–23, julho de 2008, disponível em http://www.britac.ac.uk/events/2007/
Anthropology_is_-not_-Ethnography.cfm, acesso em 15 de janeiro de 2015
Narrativas biográficas:
que tipo de antropologia
isso pode ser?
Suely Kofes
É com alegria e certo temor que nos reunimos para discutir o lugar da
biografia na antropologia, pois é também disso que trata o título deste
livro e deste capítulo de abertura.
Se história de vida é uma técnica de pesquisa antropológica
já consagrada e que, inclusive, tem existência reconhecida como
método, como “documentos de vida” (uma variação dos chamados
“métodos qualitativos”), biografia e autobiografia parecem tensionar
os supostos antropológicos. Isso se deve, em primeiro lugar, ao fato
de que tais supostos estariam ancorados em conceitos como socie-
dade, cultura, estrutura – totalidades, mais concretas ou abstratas – e no
compromisso com o horizonte da comparação, da generalização ou
do universalismo, embora esse horizonte seja mais um tema de con-
trovérsia do que um objetivo compartilhado. A particularidade – em
uma de suas formas, a etnografia – também é reconhecida ora como
um fim em si mesma, ora apenas como parte do objetivo compara-
tivo. Em segundo lugar, ligado ao primeiro, a resistência à biografia
deve-se ainda a uma confusão semântica e conceitual. Biografia e
autobiografia teriam como referência a vida – parte constitutiva da
etimologia dessas palavras, ou seja, grafia da vida, grafia da minha
vida –, mas um malabarismo semântico terminou por conotar o
termo “vida” com o significado de indivíduo. Esse me parece um nó
conceitual que precisaríamos analisar. Assim, embora muito breve e
provisoriamente, pretendo formular algumas reflexões sobre isso.
Essa discussão não pode ignorar que, no âmbito da antropologia
estadunidense, biografia, autobiografia e história de vida foram (ainda
o são?) mais reconhecidas. Isso apesar das restrições boasianas:
Talvez eu não devesse dizer que seria onde menos se esperava encon-
trar uma “defesa” do biográfico, afinal, o que diz Lévi-Strauss é mais
um exemplo do seu pensamento analítico. Tomemos literalmente,
embora o autor esteja falando metaforicamente: reconhecer a pessoa
particular, concreta, literalmente a que usa o colar, não seria incompa-
tível; pelo contrário, seria necessário ao conhecimento de um sistema
de ornamentos, se fosse o caso de empreendê-lo. Mas, de outro ponto
de vista, também não seria surpreendente encontrar Lévi-Strauss
ressaltando como importante na narrativa de Talayesva a “cultura
enunciada de dentro”.
Dumont, que não abre mão da totalidade (considerada mais en-
quanto conjunto, enquanto uma configuração passível de comparação
com distinta configuração, e não enquanto uma sociedade como um
todo), faz distinção entre o “indivíduo empírico” e o “indivíduo como
valor”. Mas, na convenção que atribui consubstancialidade entre
biografia e indivíduo, a perspectiva biográfica não iria ao encontro da
noção de indivíduo como valor: considera-se que a biografia focaliza
um indivíduo empírico, embora o próprio suposto da biografia como
a escrita de um indivíduo seja ela própria efeito da ideologia do indi-
víduo como valor.
Contribuições antropológicas mais recentes têm contestado a efi-
cácia conceitual da dicotomia indivíduo e sociedade, criticam a sociedade
concebida como totalidade inter-relacionada, como todo ou como
soma das partes, e, principalmente, o que essa concepção engendra: o
indivíduo como entidade natural, anterior, moldável à imagem de um
ideal coletivo. Strathern (1996 e 2014) sugere, inclusive, um vocabu-
lário alternativo à dicotomia entre sociedade e indivíduo ou todo e partes:
os conceitos de socialidade e dividual, um vocabulário que permitiria ex-
pressar pessoas particulares que são constituídas de relacionamentos e
ao mesmo tempo os engendram.
Se levarmos em conta essas contribuições, em um exercício de
justapor aparentes antinomias, talvez possamos abrir sem embaraço
um lugar para biografia e autobiografia no campo antropológico. Mas
quais seriam os efeitos de se atribuir à biografia um lugar e um status
equivalente ao da etnografia na antropologia?
Se na relação da etnografia com a antropologia ainda encon-
tramos um campo de discussão que opera a clássica distinção entre
o particular e o geral, nomotético e ideográfico, pesquisa e teoria, a
Contraponto:
duas experiências de dois antropólogos,
material heteróclito para uma
reflexão antropológica sobre biografias
(ou “histórias de vida”)
sobre sua vida, eu vou lhe pagar dois dólares. Você pode fazer isso
para mim?”
(Kluckhohn, 1945, tradução livre)
1 “Frank Pino, o intérprete. Ele tinha cerca de 40 anos de idade e era um sobrinho
sororal de mr Moustache. Ele estudara até a oitava série na escola indígena em Albu-
querque e era um dos três índios desta comunidade que tinha conhecimento suficiente
de inglês para poder atuar como intérprete. Apesar de ter trabalhado durante vários
anos na loja de comércio local, sua capacidade como tradutor era bastante limitada.”
(Kluckhohn, 1945, p.266, tradução livre)
2 “Minha abordagem com o pedido de que ele me contasse sobre sua vida não foi
apenas a primeira vez em que eu falei com ele como etnólogo, mas também o primeiro
dia em que eu fiz trabalho de campo etnológico formal entre os Navaho.” (Kluckhohn,
1945, p.265, tradução livre)
3 “Mr Moustache é a tradução literal do nome pelo qual os Navaho dessa região fre-
quentemente o chamam.” (Kluckhohn, 1945, p.263, tradução livre)
“Você está certo no que diz. Somos amigos desde que você era apenas
um menino. Você sempre foi bom para Navajos e fez o que é certo.
Eu quero ajudá-lo, mas eu tenho que ter certeza de que estará tudo
bem para o povo se eu falar com você. Ultimamente, como nós
temos esse novo comissário indígena, o governo tem enviado algumas
pessoas brancas aqui para nos fazer perguntas. Em seguida, eles co-
meçaram a tomar as nossas ovelhas e cabras. As pessoas não gostam
disso. Você vai dizer a Washington tudo o que eu lhe disser?”
(Kluckhohn, 1945, p.265, tradução livre)
Kluckhohn: “Eu lhe asseguro que eu não tenho qualquer ligação com
‘Washington’.”
Mr Moustache: “Eu não sei exatamente por que você quer saber essas
coisas. Algumas coisas são para os índios e algumas coisas são para os
brancos.”
Kluckhohn: “Nas escolas que construímos para os seus filhos, ten-
tamos ensinar-lhes o que nós descobrimos sobre como conviver.
Alguns de nós pensam que, talvez, vocês índios tenham aprendido
coisas que também nos ajudariam. É por isso que eu vim.”
Mr Moustache: “Tudo bem. O que você quer que eu lhe diga
primeiro?”
Kluckhohn: “As primeiras coisas que você lembra de sua vida, comece
aí e continue até o presente momento. Eu não lhe farei mais per-
guntas depois que você começar. O que eu quero é que, por conta
própria, você vá contando exatamente como as coisas vêm à sua
mente.”
“Eu nunca fui a lugar nenhum quando eu era menino. Meus pais não
me deixavam sair por aí. Fizeram-me trabalhar, buscando madeira e
coisas assim. Eu sempre ficava em casa. Agora as crianças vão aonde
querem. Esses jovens Navajos daqui não sabem de nada. Eu sou o
único velho Navajo que restou. Logo estarei morto.”
(Kluckhohn, 1945, p.267, tradução livre)
“Eu levo em conta a maneira com que Tuhami faz uso da linguagem
particular disponível para articular sua própria experiência, incluindo
a sua história pessoal em nossas negociações da realidade. Talvez
com uma visão mais estreita e certamente com maior resistência, eu
levo em conta o uso que eu faço do meu próprio idioma em nossas
negociações.”
(Crapanzano, 1980, p.xi–xii, tradução livre)
5 Lembremos de uma das mais conhecidas. Sartre insiste sobre a situação particular
na qual uma pessoa se forma: na pertinência ao meio como um acontecimento sin-
gular. Pode-se resumir a sua argumentação com a seguinte frase, onde dialoga com o
marxismo: “Valéry é um intelectual pequeno burguês; quanto a isso não há dúvida.
Mas nem todo intelectual burguês é Valery.” (Sartre, 1967, p.80)
Referências
Autobiografias, memoriais
e a narrativa biográfica
de um cientista
Daniela Manica
A fundação Rockefeller
e a Universidade Federal da Bahia
3 No obituário escrito por Elsimar Coutinho para Jorge Novis, publicado no jornal
A tarde em 19 de novembro de 1987, ele confirmava a dedicação do último à atividade
clínica, ao mesmo tempo que procurava se distinguir do professor, justamente por
ter, ao contrário dele, optado pela pesquisa: “Mas Jorge não era um homem de la-
boratório. Vivia para a medicina. Respirava medicina e sonhava medicina. Desejava
exercê-la em toda sua plenitude e por isso dedicou-se à clínica. Perdeu com isso a pes-
quisa que exigia tempo, do qual ele já não dispunha porque não era mais seu. Durante
alguns anos o acompanhei na clínica, mas, pouco a pouco, a irresistível atração que a
pesquisa exercia sobre mim levou-me para outros caminhos. Ainda tive o privilégio de
tê-lo como examinador em três concursos.” (Coutinho, 1999, p.152–153)
6 As anotações, feitas provavelmente por Harry Miller, nas margens desse relatório,
indicam que o fisiógrafo somente seria disponibilizado após a visita de Csapo e sua
avaliação pessoal sobre a situação da universidade.
7 A Revolução Húngara de 1956 foi uma tentativa de resistência ao regime soviético
implantado com o final da Segunda Guerra; um levante iniciado com uma mani-
festação de estudantes em Budapeste, que exigia a implantação de um “socialismo
verdadeiro”. A União Soviética reagiu, prendendo e executando o primeiro-ministro
Imre Nagy. Mais de vinte mil pessoas morreram nos confrontos. Csapo, antecipando
a disponibilidade da Rockefeller por proteger pesquisadores refugiados, ofereceu-se
para traduzir trabalhos e currículos de seus conterrâneos, a fim de auxiliar a insti-
tuição na seleção de eventuais bolsistas. Entretanto, apesar do esforço de Csapo, os
registros indicam que a Rockefeller foi bastante cautelosa e econômica na seleção e
incorporação dessas pessoas nas universidades estadunidenses. Além disso, os registros
indicam que Csapo não era uma pessoa muito conhecida entre a equipe que selecio-
naria esses pesquisadores (RAC, RF, RG 2, 1956, series 200, box 34, folder 221, US
Rockefeller [I–Z]).
8 Todas essas citações se referem ao material reunido em RAC, RF, RG 1.2, series
200d, box 215, folder 2048 (traduções livres).
“Simões estava muito aflito pelo fato de que ele tinha apenas duas
macacas grávidas em mãos e, embora eles tenham tentado capturar
outras macacas, não tiveram sorte. Lembrando-me da sua sorte na
captura de macacos, eu naturalmente pensei em você e mandei o te-
legrama. A universidade estava preparada para mandar um homem
a Belém e arcar com todos os custos da captura e envio. Na hora, eu
sabia que o pedido era grande, mas pensei que você pudesse ter uma
ideia que os ajudasse.”
(RAC, RF, RG 1.2, series 200d, box 215, folder 2048, tradução livre)
Referências
2 Do encontro com a teoria das multiplicidades de Gilles Deleuze & Félix Guattari
(1992 e 1997) é que nasce este capítulo e seu esforço em experimentar com as potências
da canção popular brasileira. Teoria das multiplicidades que não é nem uma filosofia
do sujeito, nem uma filosofia da história. Há uma recusa da linguagem como modelo
para o pensamento e, principalmente, da representação, em uma multiplicidade que
prescinde de um fundamento, de um princípio transcendente: “As multiplicidades são a
própria realidade e não supõe nenhuma unidade, não entram em nenhuma totalidade
e tampouco remetem a um sujeito. As subjetivações, as totalizações, as unificações são,
ao contrário, processos que se produzem e aparecem nas multiplicidades.” (Deleuze
& Guattari, 1996, p.8) As multiplicidades são planas: “O ideal de um livro seria expor
toda coisa sobre um tal plano de exterioridade, sobre uma única página, sobre uma
mesma paragem: acontecimentos vividos, determinações históricas, conceitos pensados,
indivíduos, grupos e formações sociais.” (Deleuze & Guattari, 1996, p.18)
Redesgastou e refluiu
Recrudesceu, refocilou, rerriu
Revisionou pra renque ressoar
Pois revolucionar requer refém
E o rosto roto refletido é quem?”
(“Ré”, Douglas Germano)
Mas que gesto seria esse? Segundo Wisnik (apud Tatit, 1996), o gesto
de cantar seria o nascimento de uma outra voz dentro da voz: da voz
que fala, nasce uma voz, que canta. A voz que fala interessa-se pelo
que é dito; a voz que canta interessa-se pela maneira de dizer. A voz
falada deseja a inteligibilidade da letra; a voz cantada deseja a intensi-
dade que pode emergir da materialidade da palavra e do som.
A voz que fala faz com que as significações se mantenham no
interior da canção. Essa voz propõe figuras a serem reconhecidas pelo
ouvinte. Através delas é que se capta a voz que fala no interior da voz
que canta: comunica-se, compreende-se o que é dito, sabe-se de que
assunto trata uma determinada canção.
Mas se há, na canção, essa voz que fala, comenta e narra, que faz do
mundo um objeto a ser contado por um sujeito, onde está a outra
voz, a voz que canta? Essa voz pode dizer que sabe cantar uma
canção, mas que não se lembra da letra. Seria ela que faz com que
os cantos dos pássaros sejam chamados de canções? Seria ela a voz
do “monstro”, nome dado à letra provisória (uma composição me-
ramente silábica, “lá lá lá”), marcada pela demissão linguística? “O
que é o que é que pode ser esquecido (ou não entendido) mas que está
lá, elemento absolutamente indispensável [da canção]?” (Menezes
Bastos, 1996)
O encontro com o trabalho do músico e compositor Romulo
Fróes permitiria explorar as potências dessa voz que canta. Ao escrever
uma apresentação crítica do disco Um labirinto em cada pé (Fróes, 2011),
Francisco Bosco nomeia a força do trabalho de Fróes justamente en-
quanto um jogo com a intransitividade da linguagem. Letras opacas,
distantes do senso comum, das referências concretas e reconhecíveis,
dos temas habituais, das emoções já identificadas, dos sentimentos no-
“Se não quero das palavras seu sentido, mas aquilo que carregam
realmente, e do incêndio quero o fogo e não a rima, da sombra o
escuro e não a posição gramatical, se do amor não quero nada, por
querer dizer coisas demais, então devo me chamar, como o náufrago,
Ninguém, sem querer dizer de ninguém o seu sentido, mas aquilo
que vem antes, ainda sem ter estado lá; se da terra quero o que brota
e afunda, mas antes que houvesse tempo, e habilidade, para chamar
aos frutos, frutos e aos mortos, mortos, então seria melhor apagá-las
todas, às palavras, uma a uma, às negras, pequenas aranhas, livrando
o dicionário dessa mácula, e beber o que foi tinta até a boca ficar
preta, e transformar a tinta em chuva, em tigre.”
(Ramos, 2010, p.55)
Referências
José Miguel Wisnik, O som e o sentido – uma outra história das músicas, São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2011
José Miguel Wisnik & Artur Nestroviski, programa “O fim da canção”, Rádio batuta,
29 de abril de 2010, disponível em http://www.radiobatuta.com.br/Episodes/
view/196, acesso em 12 de janeiro de 2015
Discografia
Filmografia
Etnografia,
cartografia e devir:
potencialidades da escritura
nas pesquisas antropológicas
contemporâneas
“Eu escrevo com o corpo. Poesia não é para compreender, mas para
incorporar. Entender é parede; procure ser árvore.”
(Manoel de Barros, 1998, p.37)
Escritura e devir
Manoel de Barros tem a rara virtude de nos conduzir aos seres da sen-
sação, à fabulação. O poeta supera as passagens afetivas do vivido e
os estados perceptivos, constitui uma espécie de vidente, alguém que
devém (Deleuze & Guattari, 1994a, p.172). Ele é capaz de adentrar
o terreno da experimentação por meio da escritura. Assim, escrever
com o corpo significa cantar às simpatias, tornar-se outro, apreender
o corpo, a alteridade, como campo de forças, atingir sua dimensão in-
tensiva, invisível e imperceptível (face recalcada) em contraste com sua
dimensão extensiva, visível, perceptível (face hegemônica). Manoel de
Barros evidencia que “escrever é um processo, isto é, uma passagem
de Vida que atravessa o vivível e o vivido” (Deleuze, 1993, p.11).
Etnografia não é antropologia, tampouco um gênero literário.
Provavelmente, isso não resolve o fato de como lidar com o uso de
narrativas e etnografias no fazer antropológico. Entretanto, minha
intenção é a de suspender qualquer juízo em relação ao “ser” da
antropologia. Certamente, interessa-me problematizar o suposto de
entender essa prática (discursiva e não discursiva para parafrasear a
Foucault) como um assunto essencialmente textual. Suspender essa
1 Tal como salienta Carneiro (2009, p.302–311), hypomnemata deriva do grego hypo, que
significa “menos”, “menor”, e do grego mnemata, que significa “memória”. “Os hypom-
nematas ‘armazenam menos memória’? Ou são como memórias anteriores?” Deve-se
ressaltar que o conceito de hypomnemata reformulado por Foucault configuraria um
caderno de anotações sobre o fazer ou a ação, afastando-se da escrita de um diário
ou “de uma narrativa de si”. A noção de hypomnemata que se opõe à de “arquivo” está
ligada a um sistema de anotações fragmentado que funciona como um material que
capta o já dito e retorna o presente com a mesma intensidade do passado, não como
um texto auxiliar da memória.
2 Coeficiente de transversalidade é um conceito criado por Félix Guattari na década de
1960, no campo da análise institucional e da psicoterapia. Essa noção se relacionaria
com o grau de cegueira ou de reconhecimento associado à alteridade que prevalece
no âmbito que se deseja intervir, o grau com que a subjetividade, nesse entorno, con-
sentiria ser atravessada pela singularidade de universos diversos do seu bem como
reconfiguraria ela própria e o mundo a partir daí. Guattari ilustra o conceito da se-
guinte maneira: “Coloquemos em um campo fechado cavalos com viseiras reguláveis
e digamos que o ‘coeficiente de transversalidade’ será justamente o grau de regulagem
das viseiras. Imaginemos que a partir do momento que os cavalos estiverem completa-
mente cegos, certo tipo de encontro traumático vai se produzir. À medida que formos
abrindo as viseiras, pode-se imaginar que a circulação se realizará de maneira mais
harmoniosa.” Coeficientes de transversalidade determinam políticas de subjetivação,
nas quais, de acordo com Guattari, é factível intervir: “Nossa hipótese é a seguinte: é
possível modificar os diferentes coeficientes de transversalidade inconsciente nos di-
ferentes níveis de uma instituição.” (Guattari, 1972, p.80) Quanto maior o grau de
transversalidade, mais vital está sendo aquilo. “Nunca a gente vai ter nem na cidade,
nem no museu, nem na escola, nem em canto nenhum, nem na nossa família, um
puro paraíso de forças ativas e de altas vontades de potência, o que a gente vive é uma
guerra entre os distintos graus de vontade de potência … Quanto maior o grau de
transversalidade mais vital está sendo aquilo.” (Rolnik, 2010) Para uma ampliação do
uso desta noção, sugiro ao leitor consultar Rolnik (2003).
3 Devir não significa imitar alguém ou algo, nem muito menos proporcionar rela-
ções formais. A imitação de um sujeito e a proporcionalidade da forma não são em
absoluto analogias adequadas ao devir. Quando um encontro ocorre, “não é que um
termo devenha o outro, mas que cada um encontra o outro, um único devir que não
é comum para os dois, mas que está entre os dois, que tem sua própria direção, um
bloco de devir, uma evolução a-paralela. Isso é precisamente a dupla captura, a abelha
e a orquídea: nada que esteja nem em uma nem em outra, embora possa chegar a se
intercambiar, a se misturar, mas algo que está entre as duas, fora das duas, e que corre
em outra direção.” (Deleuze & Parnet, 1980, p.11)
4 Com Espinosa, tal como afirma Deleuze (2011, p.162–163), sabemos que “um corpo
qualquer, por pequeno que seja, comporta sempre uma infinidade de partículas”.
As relações de movimento e de repouso, de velocidade e lentidão entre partículas,
definem um corpo, definem sua individualidade. Além disso, um corpo afeta outros
corpos ou é afetado por outros corpos: esse é o poder de afetar ou de ser afetado, que
define também um corpo na sua individualidade. Aparentemente, essas duas propo-
sições, uma cinética e outra dinâmica, são muito simples. A primeira quer dizer que
um corpo não se define por sua forma ou funções. A forma global, a forma específica
e as funções orgânicas dependerão das relações de velocidade e lentidão. Mesmo o
desenvolvimento de uma forma, o curso de desenvolvimento de uma forma, depende
dessas relações, não o inverso. O importante é conceber a vida, cada individualidade
de vida, não como uma forma, mas como uma relação complexa entre velocidades di-
ferenciais, entre freadas e acelerações de partículas. Uma composição de velocidades
e lentidões em um plano de imanência. Assim, uma forma musical, por exemplo,
depende de uma relação complexa entre velocidades e lentidões de partículas sonoras.
Não se trata apenas de um assunto musical, mas de uma maneira de viver. A segunda
proposição (a dinâmica) concerne ao corpo na sua capacidade de afetar e ser afetado.
Um corpo ou uma alma não se define nunca por sua forma nem por seus órgãos e
funções, e também não se define como uma substância ou um sujeito. Cada leitor de
Spinoza sabe que os corpos e as almas não são para ele substâncias nem sujeitos, mas
modos. Concretamente, um modo é uma relação complexa de velocidade e lentidão
em um corpo e também no pensamento, bem como é um poder do corpo e do pensa-
mento de afetarem e de serem afetados. Concretamente, quando um corpo é definido
desse modo, várias coisas mudam. Um animal ou um homem é definido não por sua
forma, seus órgãos e suas funções, e tampouco como um sujeito. Ao contrário, é defi-
nido pelos afetos dos quais ele é capaz. Capacidade de afetos com um máximo é um
mínimo. Essa é uma noção fundamental em Espinosa. “Tome um animal qualquer e
faça uma lista de afetos, não importa a ordem. As crianças sabem disso muito bem. O
pequeno Hans e o cavalo de raça que puxa um carro em uma cidade: ser orgulhoso,
ir rápido, puxar uma carga pesada, tombar-se, ser fustigado, fazer barulho com suas
pernas (trotar, galopar) etc. Há mais diferenças entre um cavalo de trabalho e um
cavalo de corridas que entre um boi e um cavalo de trabalho. Isso porque o cavalo
de corridas e o de trabalho não têm os mesmos afetos nem o mesmo poder de serem
afetado; o cavalo de trabalho tem mais afetos em comum com o boi.” (Tradução livre)
Antropologia e etnografia:
além da viragem textual
Etnografia em colaboração:
uma revitalização do pensamento antropológico
Vozes:
polifonia e simpatias
Conclusões
Referências
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Imbricamentos entre
etnografia e biografia:
um estudo sobre
Roy Wagner
Iracema Dulley
2011) possa operar, pois, se ele esconde ao mesmo tempo que revela,
permite com o deslocamento de perspectiva realizar uma torção na
visão de mundo convencional e movê-la em uma direção inesperada
– para Wagner, o humor ocupa, inclusive nas culturas generalizantes,
o lugar da criatividade que perpassa as culturas diferenciantes.
Seu recurso ao humor em Coyote anthropology segue essa mesma pro-
posta: segundo Wagner, essa foi sua maneira de apresentar para a
antropologia americana, avessa ao tipo de abordagem proposta por
Castañeda, uma outra maneira de fazer antropologia – obviando-a.
Nessa primeira conversa mais longa, Wagner estava especial-
mente interessado em explicar-me a relação de reversão figura-fundo
que existe entre nossa vida acordados e nossa vida em sonho.
Segundo ele, quando acordados, nós nos fixamos nas figuras que se
movimentam de forma destacada em relação ao contexto. No caso
do saguão do hotel, fixamos nossa atenção nas pessoas que circulam
e esquecemos um pouco do ambiente circundante. No sonho, essa
relação seria inversa: nossa atenção estaria mais voltada para o fundo,
carregado de intenções e energias, do que para as figuras. Segundo
Wagner, há uma relação entre o corpo acordado e o corpo sonhando
que é da ordem do duplo [twinning]. Acordados, aprendemos cogniti-
vamente a enxergar as pessoas destacadas de um fundo [first attention],
mas, quando dormirmos, é esse fundo que se manifesta [second at-
tention], fundo que percebemos em segundo plano quando estamos
acordados. Assim, para Wagner, o conceito de reversão figura-fundo
atribuído à simbolização melanésia guarda uma relação forte com as
descrições de Carlos Castañeda.
Essa foi mais uma reflexão sobre o cotidiano que iluminou instan-
taneamente aspectos herméticos de sua teoria. Com isso, não pretendo
afirmar que comentários desse tipo, feitos de forma espontânea, são
um guia para compreender a proposta do autor. Entretanto, é inegável
que, diversas vezes, momentos assim guiaram e/ou confirmaram
minha compreensão de muitos aspectos de sua obra. Consegui situar
várias passagens de seus textos, cujo significado me escapava por
completo ou causava muita perplexidade, a partir de nossa interação.
Talvez o exemplo mais significativo nesse sentido seja o lugar ocupado
por Castañeda em sua proposta de antropologia. Nesse primeiro en-
contro confirmou-se a ideia de que Wagner vê a antropologia como
uma forma de acessar por meio da experiência um conhecimento não
só sobre o homem, mas também sobre a relação deste com o universo
que o circunda e com o seu poder, entendido como a revelação do co-
nhecimento na forma da imagem – ecos, entre outros, de Symbols that
stand for themselves (Wagner, 1986a) e da influência dos escritos sobre o
ritual Ndembu de Turner (Wagner, 1983 e 1984).
Entretanto, ainda que o autor afirme acima que o outro não é tão ne-
cessário assim para que a diferenciação tenha lugar, em “The talk of
Koriki: a Daribi contact cult” (1979), Wagner afirma que conceitos
como cultura, parentesco, papel [role] e sociedade tornam-se “epifenômenos
negociáveis de diálogos construtivos ou inventivos. A fatualidade e a
objetividade tornam-se inerentes aos atos criativos de expressão, co-
municação e percepção, e não a objetos de crença, a frágeis quadros
ou taxonomias culturais.” (Wagner, 1979, p.140) Assim, os conceitos
são epifenômenos do diálogo e é esse diálogo que é construtivo ou
inventivo. Entretanto, se os conceitos devem ser considerados epife-
nômenos do diálogo, existe uma relação intrínseca entre ambos na
qual os primeiros devem resultar do último. Os conceitos devem ser,
em última instância, dialógicos. E conceito é, portanto, para Wagner,
o que surge da interação dialógica e se torna visível na etnografia e na
teoria.
Contudo, pode-se argumentar – e Wagner o reconhece – que os
antropólogos não vão a campo destituídos de vieses, resultantes tanto
de sua cultura quanto de sua disciplina. Não retomarei o argumento
desenvolvido acima. Gostaria apenas de apontar que há aqui um
paradoxo produtivo no que diz respeito à relação entre trabalho de
campo e teoria, por um lado, e entre o que o autor considera fenome-
nologia e dialética, por outro. Se, na consideração dos conceitos como
epifenômenos do diálogo, o diálogo parece ser a fonte da qual se originam
os conceitos, a ideia de dialética proposta em A invenção da cultura
indica que deveria haver uma relação de retroalimentação entre
teoria e experiência. Assim, a afirmação de Wagner de que as ideias
6 Ainda que o autor tenha concordado com minha hipótese quando eu a apresentei a
ele, que leu uma versão preliminar deste texto, apresentado no encontro da American
Anthropological Association em Montreal em novembro de 2011.
7 Essa distinção entre o que existe como potência e o que é dado a aparecer de fato
ganha força em sua obra mais recente e aproxima o autor, de certa forma, da feno-
menologia. O próprio Wagner não discordou dessa minha observação, mas colocou
a ressalva de que a fenomenologia deveria ter prestado mais atenção à etnografia. A
observação a seguir o confirma: “É como se as características íntimas da localidade
formassem uma espécie de prisma por meio do qual os fatos globais da existência po-
deriam ser descritos.” (Wagner, 2001b)
“Eu escrevi muito sobre a obviação como método e mostrei como ela
é uma espécie de consumação da noção hegeliana de dialética que
termina em síntese. A diferença é que com a obviação obtém-se uma
síntese e então uma antissíntese, o que espelha a configuração ori-
ginal da dialética, a qual opunha uma antítese a uma tese. É essa a
inovação que Hegel apresentou em relação à dialética grega clássica,
tradicional, que era composta apenas de tese, antítese, tese, antítese…
Ele acrescentou a ela a síntese, o terceiro ponto. Ora, o terceiro ponto
é o ponto de definição e consumação onde o dois – a dualidade –
chega ao fim. O que a obviação faz é acrescentar um quarto elemento
que inverte o primeiro, um quinto que inverte o segundo e um sexto
que inverte o terceiro … Em outras palavras, acho que Hegel não foi
suficientemente longe com a dialética. Ele não montou a dialética
com base em sua própria lógica, que é o que a obviação faz. É assim
que eu defenderia a obviação em termos hegelianos. Eu não sou he-
geliano. Acho que Hegel não entendeu a dialética porque pensou que
sua descoberta traria o fim da história. Mas não. Karl Marx envolveu-
-se com a questão e deu início a uma outra história, pois Marx virou
a dialética de ponta-cabeça. Eu não sou marxista nem tampouco sou
hegeliano. A obviação é o estado natural de um símbolo. Ela é o que
o símbolo é. Define a condição do simbolismo. Deixe-me explicar
isso de forma um pouco diferente. Todos os símbolos perdem carac-
terísticas, simplificam-se ao longo do tempo. Acho que isso é o que
há de genérico em todo simbolismo, inclusive no mito: ele obvia. Ele
se torna uma espécie de negação de si mesmo e então uma transcen-
dência de si mesmo, que é o que se chama de sublação e o que Hegel
chamou de aufhebung. Assim, para Hegel, o resultado final da obviação
seria uma espécie de sublimação transformada em um domínio de ex-
periência diferente, uma dimensão diferente, se preferirem. Não gosto
de usar a palavra ‘dimensão’, mas dimensão de experiência. Assim, a
obviação é a versão sequencial da metáfora. O que é uma metáfora
estendida? Pegue uma metáfora, faça uma metáfora dessa metáfora,
faça uma metáfora dessa metáfora e assim por diante. Até onde se
chega? O resultado é uma obviação do início. A forma como os seres
humanos formam sentidos é, basicamente, através de metáforas. As
metáforas são os sentidos que Don Juan chamaria de não fazeres da
linguagem. O que é expresso na metáfora não pode ser definido, não
pode ser afirmado, pois ela é nagual. Como no verso que escrevi:
‘No metaphor is what it thinks you are, but that it take your word as happens-
tance.’ [Nenhuma metáfora é o que ela pensa que você é, mas toma
sua palavra como acaso.] Isso significa, literalmente, que as metáforas
podem pensar. Trata-se de um deslocamento sujeito-objeto.”
(Dulley, Ferrari, Marras, Pinheiro, Sztutman & Valentini, 2011, p.974–
975; ver também Dulley, 2011)
forma mais convencional, ou masoso, de seu tadak, e talvez por seu goron
tadak mais distintivo.”
(Wagner, 1986b, p.109–110)
Desse modo, a analogia tem uma relação íntima com o poder, tanto
entre os Barok descritos por Wagner quanto em sua própria teoria.
Segundo Wagner (1987), há entre os Barok o poder em potência – a
lolos – e o poder manifesto – iri lolos –, atualização ou instanciação da
possibilidade de poder barok. No cotidiano, uma das formas mais
importantes de incorporação desse poder em sua forma acabada é o
kastam barok, palavra derivada, no pidgin,⁸ do inglês custom [costume].
Kastam é a categoria mais ampla que elicia as relações importantes
para a cultura barok: relações sociais e de parentesco; centralidade
da imagem não verbal nas ideias barok sobre poder; imagética dos
rituais realizados na casa dos homens. Aliás, não só kastam (para
Wagner (1991c), relacionado à reprodução cultural barok) é uma
palavra emprestada do inglês, como também o é meaning [sentido, sig-
nificado], palavra que, segundo Wagner, é usada para descrever algo
profundamente potente em barok. Esses dois empréstimos do inglês,
instanciação da dialética entre comunicação e cultura nos termos
wagnerianos, têm, segundo Wagner, a capacidade de fixar a cultura
barok: aquilo a que os dois vocábulos, em princípio estrangeiros,
referem-se tem a capacidade de “eliciar significados essenciais da
cultura nas pessoas” (Wagner, 1987, p.57). Ora, isso ocorre por meio
de imagens autoanalíticas. A imagem, assim como a estrutura social
barok, funciona por meio da dialética entre contenção e eliciação.
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Iracema Dulley é doutora em Antropologia Social pela usp (2013), mestre em An-
tropologia Social pela Unicamp (2008) e bacharel em Filosofia pela usp (2004).
Atualmente, é pesquisadora visitante na London School of Economics e pesquisadora
do CEBRAP. Suas principais áreas de atuação são teoria antropológica e antropologia
da África.
O Collège de Sociologie
e a proposição de uma “sociologia sagrada”
1 A École des Chartes foi concebida em 1821, pouco tempo após a Revolução Francesa,
para ser um serviço público de conservação do patrimônio francês e formação de pes-
quisadores e profissionais interessados em trabalhar em bibliotecas públicas, arquivos,
museus e coleções por todo o país. Segundo Jean-Michel Leniaud (1993), a função de
resguardar o patrimônio, que antes era da Igreja, passaria agora às mãos do Estado
laico, e era preciso formar profissionais qualificados para lidar com esse material his-
tórico. Assim, os alunos de Chartes teriam contato com uma ampla e especializada
grade de disciplinas, que privilegiava o estudo aprofundado da Idade Média e seus
manuscritos – “paleografia, línguas românicas, diplomacia, instituições políticas,
administrativas e judiciárias da França, direito civil e canônico na Idade Média, arque-
ologia da Idade Média e um curso opcional de bibliografia, classificação de bibliotecas
e arquivos” (Leniauld, 1993, p.620) –, saindo de Chartes não apenas como arqui-
vistas-paleógrafos, mas como verdadeiros eruditos, formando parte da elite do saber
francês: “A conjunção de estudos generalistas na Faculdade e a aprendizagem acética
de disciplinas muito especializadas permitia aos alunos entrever mais que alguns
cargos patrimoniais que se ofereciam a eles.” (Leniauld, 1993, p.624)
2 Para mais detalhes da relação entre Bataille e Leiris, ver Bataille & Leiris (2004).
Sobre a relação entre Bataille e Caillois, o segundo dá alguns depoimentos sobre o en-
contro em Caillois & Ocampo (1981).
3 Acéphale pode ser considerado o projeto mais ousado de Bataille nesse período e,
não por acaso, aquele do qual Leiris mais se afastaria, apesar da ligação intensa que
mantinha com seus principais agitadores: Bataille; Colette Peignot, companheira do
último; e o pintor André Masson, nesse momento exilado na Espanha devido à ex-
pansão fascista. A sociedade secreta, seguida de uma revista homônima, teria sido
pensada por Bataille e Masson, em 1936, para ser não só um espaço de reflexão, mas
também de militância política. Apesar de a proposta ser em parte parecida com a
do Collège de Sociologie, Acéphale era marcada por um antirracionalismo extremo e
pelo vínculo entre ação política e religião. Acreditava-se que era através do planeja-
mento de uma “conjuração sagrada”, da destruição e do consumo exacerbado que se
chegaria a uma verdadeira revolução social. Até mesmo a execução de um sacrifício
humano consentido fazia parte dos planos do grupo. Acéphale duraria quatro anos,
sendo que o primeiro número da revista anual sai em junho de 1936, e o último, em
junho de 1939.
4 Monnerot chegara ao Collège por meio de Roger Caillois, de quem era grande
amigo nessa época. Os dois se conheceram e se tornaram amigos no âmbito do movi-
mento surrealista de Breton, no qual ingressaram em 1932. Em 1936, desenvolveram
juntos a revista Inquisitions, que teria apenas um número, precedendo a fundação do
Collège de Sociologie.
5 Sabe-se que Caillois teve, a partir de 1938, depois que a conhecera nas sessões do
Collège de Sociologie, uma relação amorosa duradoura com Victória Ocampo, se ins-
talando na Argentina no período da Segunda Guerra Mundial e estabelecendo uma
importante relação com os escritores latino-americanos. Também é conhecido o fato
de que Bataille hospedou Walter Benjamin em sua casa e que por volta de 1940, na
iminência da invasão de Paris pelas tropas alemãs, Benjamin confiou a ele vários de
seus escritos, mantidos por Bataille na Biblioteca Nacional.
Mas voltemo-nos a nosso alvo: Michel Leiris. Qual era sua posição
no Collège? Como podemos compreender sua participação no grupo?
Além disso, como inserir sua produção autobiográfica em meio às re-
flexões políticas mobilizadas ali? Há alguma relação entre a escrita de
si de Leiris e a “sociologia sagrada” produzida pelo Collège?
Um trio de dois?
7 Sobre esse ponto, Aliette Armel fará uma observação interessante: de certa forma,
Leiris ocupa no Collège de Sociologie uma posição que é oposta à construção de sua
imagem no âmbito da etnologia. No início de sua carreira na antropologia e, princi-
palmente, a partir da publicação de seu diário africano, Leiris passa a ser considerado
como literato e pouco científico no ambiente universitário. Já no espaço do Collège,
que supostamente teria uma atmosfera mais liberal, ele é aquele que reivindica a cien-
tificidade. Nas palavras da biógrafa: “Ele escreve um texto literário sobre o sagrado
em um ambiente muito técnico e científico para tal, enquanto ao inverso, sua situação
social o coloca para velar ao rigor científico das atividades do Collège.” (1997, p.388)
8 O motivo da ausência de Caillois era a primeira visita que fazia a Victória Ocampo
em seu país de origem, em julho de 1939. Caillois fora convidado por Victória para
dar algumas conferências referentes ao trabalho no Collège de Sociologie, em Buenos
Aires. Sabe-se que logo ao fixar residência na Argentina, o autor fundou com Ocampo
uma espécie de filial do Collège em solo latino-americano. Ao que parece, o grupo
argentino acabou se voltando para temas radicalmente distintos daqueles explorados
nos dois anos anteriores na França: um deles é o republicanismo, tema desconcertante
“para alguém que, poucos meses antes, tinha defendido a formação de sociedades se-
cretas e ilhadas para reencantar o mundo” (Aguilar, 2009, p.192).
11 Muito já foi dito sobre a revista Documents, editada de 1929 a 1931 e primeiro projeto
comum a Bataille e Leiris. Em grande medida, os trabalhos versam sobre a relação da
revista com a etnologia francesa – principalmente, em referência à reformulação do
Museu de Etnografia do Trocadéro – e com os movimentos artísticos da época. Para
uma retomada da revista e detalhes sobre sua estruturação, ver Hollier, 1991; Jamin,
1999; Débaene, 2002; Brumana, 2002; Clifford, 2008; e Feyel, 2010.
13 Jamin sugere que é no “quase romance” Aurora (que o autor começa a escrever
quando retorna de uma viagem ao Egito e à Grécia), de 1927, que está enraizado seu
projeto autobiográfico: “Ao retornar dessa viagem, Leiris anota em seu diário um
‘projeto de autobiografia de Democlès Siriel’, onde são elencados fatos marcantes que
A idade viril retomará e desenvolverá.” (1992, p.15)
14 É importante considerarmos que o dossiê escrito por Leiris tinha como finalidade
ser apresentado a um comitê científico, “que deveria avaliar sua passagem de mestre
a diretor de pesquisas no cnrs (Centre Nacional de la Recherche Scientifique)”
(Jamin, 1994, p.11). Nesse caso, é possível pensar que, quando insere “Le sacré dans
la vie quotidienne” entre seus trabalhos etnológicos, o autor tenha tido também a in-
tenção de incrementar a parte etnológica de seu currículo, compatível com o cargo
visado.
15 Não quero com essa afirmação dizer que não há no diário íntimo de Leiris refle-
xões sobre o mundo social. Apenas creio ser importante diferenciá-lo do que constitui
sua obra autobiográfica publicada ou realizada com esse intuito. Como chama a
atenção Jamin, o diário íntimo de Leiris é um diário “atípico”: “Bloco de notas, lista,
álbum, ‘coisas vistas’, folhas de rota, caderno de ensaio, livro de bordo ou mesmo carnet
de laboratório.” (Jamin, 1992, p.11)
pode-se dizer que, aqui, essa vinculação ainda não é orgânica.¹⁶ Creio
que em “Le sacré dans la vie quotidienne” e depois em L’âge d’homme
fica mais claro o uso que o autor faz de sua própria vida enquanto
material de análise para a compreensão do mundo e da sociedade em
que vive. Nesses dois últimos trabalhos, no primeiro de maneira mais
incipiente e no segundo mais escancaradamente, suas memórias e a
construção autobiográfica a partir das mesmas não são paralelas à
análise do mundo ao seu redor, mas ao material mesmo sobre qual ele
se debruça para compreendê-lo.
Entendo esse procedimento usado por Leiris, pelo menos nesses
textos escritos em 1938 e 1939, menos como uma “etnografia de si
mesmo”, como nos diz Jean Jamin – isto é, como a aplicação de um
método científico descritivo para a compreensão de uma vida ou de
uma singularidade – e mais como um “‘ensimesmamento’ da etno-
grafia”, com o perdão do neologismo (Jamin, 1994, p.17). Parece-me
que o que está em jogo é justamente trazer a vida, em seu movimento
incessante, em seu cotidiano sagrado, como o autor nos diz (1938),
para a atividade de pensar a realidade objetiva. Aqui, a vida é um
material privilegiado e um instrumento de análise do mundo que a
circunda.
Reitero, assim, que a narrativa de Leiris sobre sua vida nesse
momento era, na esteira da “sociologia sagrada” pensada pelo
Collège, também uma proposta político-metodológica, uma maneira
de construir o pensamento, uma perspectiva de trabalho que queria
privilegiar o imbricamento entre práticas e saberes. Assim como nos
movimentos de vanguarda com a qual tivera contato íntimo, havia
no trabalho de Leiris uma preocupação em trazer novamente a vida
cotidiana para o seio do pensamento e da arte, que estariam se tor-
nando formas cada vez mais abstratas: era preciso fazer com que essas
fossem esferas essencialmente comunicáveis e, portanto, associadas
16 Em L’Afrique fantôme, por mais que Leiris ensaie a escrita autobiográfica, creio que
ela não está posta ainda como centro de sua atenção. Aqui, a escrita de si parece ser
uma espécie de mediação necessária para o alcance da mais objetiva e real compre-
ensão possível do outro primitivo. No projeto de prefácio o autor explica: “Narro
apenas os fatos a que eu mesmo assisti. Descrevo pouco. Anoto os detalhes e é lícito a
qualquer um declará-los deslocados ou fúteis. Descuido de outros que se pode julgar
mais importantes. Nada fiz, por assim dizer, para corrigir, posteriormente, o que há
de excessivamente individual, mas sim para alcançar o máximo de verdade, pois só o
concreto é verdadeiro. É levando o particular ao extremo que, com frequência, atinge-
-se o geral; exibindo o coeficiente pessoal aos olhos de todos, permite-se o cálculo do
erro; conduzindo a subjetividade ao ápice, toca-se a objetividade.” (2007, p.301) Como
comenta Luis Felipe Sobral, “Leiris faz as vezes de um sisifista moderno: está con-
denado eternamente a empurrar a pedra da subjetividade até o cume da exposição,
apenas para, uma vez lá em cima, vê-la rolar morro abaixo, momento de retomar sua
tarefa” (2008, p.208).
Referências
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Júlia Vilaça Goyatá é bacharel em Ciências Sociais pela ufmg (2009), mestre em
Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (2012) e doutoranda na mesma
universidade. As pesquisas realizadas no âmbito dessas instituições se vinculam prin-
cipalmente à teoria antropológica de matriz francesa e aos temas que envolvem o
cruzamento entre memória social, expressão artística e experiência política.
“Era fato sabido entre civilizados e índios da zona que eu tinha sido
preso e morto. Já eu o tinha ouvido quando de passagem em Tonan-
tins. Em Santa Rita, soube dos pormenores: fui preso porque viajei
nos igarapés dos Tukúna sem licença e morto porque foi descoberto
que eu era espião alemão.”
(Hartmann, 2000, p.308)
Nimuendaju sabia que esse boato havia sido criado pelo subdelegado
De fato, desde o início do ano havia pressão para que o Brasil decla-
rasse guerra aos países do Eixo, uma vez que, na prática, o Governo
Vargas já vinha progressivamente se alinhando aos Estados Unidos,
tendo inclusive autorizado a instalação de bases americanas na costa
em troca de incentivos comerciais e compra de armas. A guerra foi
oficialmente declarada em 22 de agosto, depois do torpedeamento de
inúmeros navios brasileiros por submarinos alemães e italianos, in-
cluindo os cinco mencionados por Estevão de Oliveira, afundados no
período de poucos dias – deixando claro o despreparo da marinha na-
cional em lidar com as agressões sem o apoio militar norte-americano
(Alves, 2005).
É preciso, ainda, considerar as complicadas negociações de au-
torização, por parte do Conselho de Fiscalização, para a coleção e
a venda de objetos etnográficos. Essas negociações também foram
conduzidas por Estevão de Oliveira, entre o órgão federal e as institui-
ções estrangeiras que financiavam parte da pesquisa de Nimuendaju,
já que envolviam questões de soberania, por se tratar de patrimônio
nacional em um período delicado da política internacional. Em carta
Considerações
sobre a importância atribuída à obra de Nimuendaju
“[Essas vendas poderiam] cobrir apenas uma parte das despesas das
minhas viagens e longas estadas entre os índios durante as quais me
vejo às vezes obrigado a prestar-lhes socorro que me ficam mais caros
que os trabalhos científicos e as colecções. O resto do dinheiro eu ar-
ranjava lá ‘como Deus fora servido’, contraindo dívidas e pagando-as
com sacrifício, até que a California University, isto é, doutor R Lowie
começou a interessar-se pelos resultados.”
(Erlich, 1970, p.190)
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Wilton C L Silva
Autobiografia e ego-história
quer pelos temas que levanta ou omite, quer pelas referências nas
quais se espelha, estabelece uma nova relação com a verdade, não
pela factualidade, mas pelo seu significado.² Isso porque as proprie-
dades atribuídas aos eventos caracterizam a relevância da memória
a partir da importância pessoal atribuída ao acontecimento, à fre-
quência com que o evento foi revisitado de forma mental e/ou oral,
assim como à sua originalidade e proximidade ou distanciamento
temporal, entre outros aspectos.
Se a diferenciação desses modelos narrativos não pode ser
pensada a partir de uma maior ou menor factualidade/ficcionalidade,
com certeza remete a diferentes perspectivas de retrospecção/intros-
pecção, distanciamento temporal entre o vivido e o registrado, grau
de minúcia descritiva, nível de inclusão do receptor e foco analítico:
o diário, por exemplo, aproxima a narrativa do vivido, permite uma
descrição minuciosa e pormenorizada das experiências e de suas
percepções, voltada não para o que se fez, mas para o que se é, e tem
uma natureza privada – de uma escrita de si para si, em claro con-
traste com a biografia.
Um historiador de domingo:
micro-história, ego-história e autobiografia
2 Fentress & Wickham (1992, p.10) afirmam que o “significado social da memória, a
sua estrutura interna e o modo de transmissão não são afetados pela sua verdade”,
mas pela forma como conquistam a credibilidade no interior dos grupos que a cons-
troem, de acordo com a adequação do passado ao presente. Aqui, a questão do relato
autobiográfico ganha uma nova dimensão, a saber, a forma como se constrói em
termos retóricos o auditório, ou seja, o conjunto daqueles que o orador quer influen-
ciar com sua argumentação.
imigração destes para São Paulo, dos negócios da família e de sua in-
fância e adolescência. O livro, de 230 páginas, é estruturado com uma
introdução e sete capítulos, intitulados: “Turquia e Sefarad”, “Da
Europa central à América”, “Imigrantes em São Paulo”, “Bairros
paulistanos e o Triângulo”, “Tempos angelicais?”, “Colégio Ma-
ckenzie” e “Final da história”, além de contar com 27 imagens, fotos
do arquivo familiar.
No segundo, Memórias de um historiador de domingo (2010), o perso-
nagem e a forma da narrativa se mantêm, com ênfase na trajetória
pessoal a partir da entrada na Faculdade de Direito de São Paulo,
passando pelo trabalho como advogado, pela militância trotskista e
pela vida acadêmica de historiador, embora se perceba, até pelo título
dos capítulos, a adoção de uma perspectiva mais “informal”. O livro,
de 287 páginas, apresenta uma introdução e 15 capítulos, intitulados:
“À sombra das Arcadas”; “A política intra e extramuros”; “Futebol
e cinema: um mundo masculino”; “Advogado, meio a contragosto”;
“O fascínio da União Soviética e a micromilitância”; “O camarada
Crispim: entrismo e saidismo”; “Um balanço da micromilitância”;
“Na pátria do proletariado”; “Cynira e sua história”; “Ubatuba não
há mais”; “Os últimos anos de meu pai”; “Tempos de repressão”;
“Historiador de domingo”; “A República de Ibiúna: notas sobre uma
geração”; “Um tango argentino”. Além disso, oferece 22 fotos.
A guinada temática do autor é percebida pela introdução do tema
da imigração e da memória de uma trajetória que se consolidou com
abordagens sobre revolução, trabalho, industrialização e criminali-
dade. A inovação na forma se dá pela abordagem da história familiar
e pessoal, e pela narrativa em primeira pessoa que apresenta “painéis
contextuais superpostos”, e a nova metodologia se desdobra no uso
não só de fontes tradicionais, mas também da memória pessoal e fa-
miliar. Grinberg (2008) analisa a escrita de Boris Fausto em Negócios e
ócios: história da imigração (1997), identificando, nesse trabalho, mudança
significativa de tema, de forma e de método:
“Ao lidar com lembranças, com histórias que lhe foram contadas, com
episódios dos quais se lembra mas não viveu, e com outros, que viveu
mas não se lembra, Boris Fausto escreveu uma narrativa que, longe de
ser ficcional, é baseada em fragmentos e sensações, ingredientes fun-
damentais para a composição de um bom retrato, que é justamente o
que o leitor tem à sua frente quando se depara com o livro.”
(Grinberg, 2008, p.110)
pelo livro por ele ter sido escrito justamente por Boris Fausto, trata-se
efetivamente de um ensaio de ego-história” (Grinberg, 2008, p.112).
Sem dúvida, o segundo livro, Memórias de um historiador de domingo,
lançado dois anos após o artigo de Grinberg, reforça a perspectiva
autorreflexiva do autor e o seu vínculo com a escrita de si no modelo
da ego-história.
Assim, o nome do autor, esse patrimônio que em alguns casos
define tanto uma pessoa como uma obra, justifica uma forma de se
contar a trajetória familiar e pessoal mesmo antes de tal obra se es-
truturar. Entre tantas narrativas sobre memória, família, judeus e São
Paulo, essa é a criada pelo historiador Boris Fausto, e o “pacto auto-
biográfico” é construído tendo essa particularidade como elemento
constitutivo.
No caso dos historiadores, o falar de si parece desafiar os refe-
renciais acadêmicos clássicos, ciosos da objetividade narrativa, que
estabelecem de forma clara os limites além dos quais se localizam o
subjetivo, o impróprio, o inconfessável e o estigmatizado. Nora (1989,
p.11), já na introdução de Ensaios de Ego-História, afirma o necessário
afastamento dos diferentes textos da ambição ou do risco de se
constituírem como “autobiografia falsamente literária”, “confissões
inutilmente íntimas”, “profissão de fé abstrata”, ou mesmo “tenta-
tiva de psicanálise selvagem”, pois, em cada capítulo, só restaria ao
autor “explicitar, como historiador, o elo entre a história que se fez
e a história que vos fez.” O exercício de ego-história de Duby (1987),
por exemplo, intitulado “O prazer do historiador”, termina com
uma confissão de desconforto do autor com o aspecto público dessa
autorreflexão, e resulta em uma exposição asséptica, com ênfase na
trajetória pública e institucional, como forma de autopreservação.
Guimarães, aludindo ao texto, diz que o historiador:
“Disso resulta que não pude preencher muitas lacunas de fatos apenas
aflorados, de datas, de vivências. Preferi descartar a ficção, não porque
o recurso não me atraía, mas por me parecer que, no caso, levaria a
um produto híbrido, algo enganoso. Nessa linha, achei melhor espe-
cular algumas vezes sobre idades de personagens e manter o caráter
fragmentário de alguns relatos. Essa opção é, em si mesma, indicativa
do quanto se perde e de quanto se recria na passagem de uma geração
para outra e, ainda mais, na longa duração das gerações.”
(Fausto, 1997, p.8)
7 Ambos os autores são importantes intelectuais judeus, assim como Boris Fausto.
8 Nega o papel ativo da Princesa Isabel na abolição, pois esta “nem apressou, nem
deteve a marcha triunfante dessa ideia. Cedeu.” (Albuquerque, 1942, p.73)
9 Um imperador que “tinha a mania de erudição. É o caso de falar de mania, porque
nem tudo nele era sincero” ou somente “quereria ter essa fama de sábio” (Albuquerque,
1942, p.21), sendo, na realidade, “um charlatão hipócrita” (Albuquerque, 1942, p.75).
10 O presidente que “nunca foi um prodígio de coragem” (Albuquerque, 1942, p.77) e
foi o exemplo “mais nefasto de quantos houve em nossa terra. Ele perverteu completa
e irremissivelmente o regime presidencial e a imprensa.” (Albuquerque, 1934, p.26)
11 Que o autor descreve como “aquele negrão gordo, com uma cara empapuçada de
alcoólico, um modo de andar gingando” (Albuquerque, 1942, p.59).
12 Que teria a aparência “profundamente repugnante pela sua avidez de arrivista,
frio, implacável” (Albuquerque, 1934, p.63).
“Não creio que tenha sido mau professor, no que diz respeito a prele-
Considerações finais
Referências
Biografias judiciárias:
analisando laudos psiquiátricos
de autos de processos penais
Nesse sentido, entendo que a documentação dos autos pode ser lida e
compreendida como um tipo de narrativa biográfica judiciária. Frag-
mentos ou fatos de uma vida passam por um tipo de filtro jurídico
ou, como nos diz Kant de Lima (1995), “serão submetidos a um tra-
tamento lógico-formal, característico e próprio da ‘cultura jurídica’ e
daqueles que a detêm”.
Nos autos, temos apropriações de fragmentos de vidas que
entram de forma controlada na documentação (no recolhimento
de provas, nos depoimentos) e que também são utilizados de forma
1 Olimpia Maluf, ao analisar os laudos periciais sobre Francisco de Assis Pereira, co-
nhecido como “maníaco do parque”, mostra-nos que a anamnese foi dividida em duas
partes: “a) antecedentes pessoais (dados coletados com o próprio periciando e com
seus familiares sobre sua história de vida, da gestação até o momento presente). Trata-
-se, pois, dos aspectos biopsicossociais do seu desenvolvimento, acrescidos do relato
dos seus comportamentos nas atividades que desenvolveu em suas ‘vidas’ – escolar, la-
borativa, militar, afetiva e sexual; b) antecedentes familiares (levantamento das doenças
psiquiátricas nos antecedentes e colaterais diretos, esses dados são levantados com o
próprio examinando e com seus familiares).” (2000, p.43–44)
Os laudos psiquiátricos:
notas sobre uma
“curva de vida defeituosa”
“Nasci em uma bela fazenda do interior de Minas, onde meu pai era
respeitado e temido como o homem mais rico e valente da região …
Sempre ouvi dizer que muitas de suas fazendas lhe eram desconhe-
cidas por estarem distantes. Filho de família rica, gastou toda sua
herança quando jovem, casando-se depois com mamãe e recome-
çando a vida nos sertões de Minas Gerais, onde a única lei era a do
revólver. Antes de tudo, meu pai foi um bravo.”
(Cançado, 1991, p.12–13)
“Há sete anos mamãe não tinha filhos, quando se deu meu nasci-
mento. Daí tornar-me objeto de atenção de toda família e o orgulho
de meu pai … O sexo foi despertado em mim com brutalidade.
Cheguei a ter relações sexuais com meninas de minha idade. Isso aos
6 ou 7 anos … Possuindo muita imaginação, costuma inventar his-
tórias exóticas a meu respeito. Aos 7 anos, estudando numa cidade
próxima à fazenda, onde morava minha irmã Didi, mentia para
minhas colegas: ‘Sou filha de russos, tenho uma irmã chamada
Natacha e um dos meus tios nasceu na China, durante uma viagem
dos meus avós.’ Ó, o meu tio chinês, eu o via mentalmente, de rabicho
e tudo, tal os chineses dos livros que lia … No colégio Sacre-Coeur de
Marie passei a envergonhar-me de minha família. Algumas de minhas
colegas tinham parentes elegantes, bem-vestidos, que as visitavam.
Outras, não. Minha família, apesar de mais rica do que a maioria da-
Esse relato está em seu livro Hospício é Deus. Nele, Maura conta que,
quando criança, foi tomada por uma série de doenças, as quais
fizeram dela centro de grande atenção. Tudo teria começado depois
da morte de um agregado da casa, Pabi, de quem sua mãe era ma-
drinha. Após sua morte, seu irmão José disse ter visto Pabi em uma
aparição e que este lhe dissera: “Diga à minha madrinha que não
chore tanto por mim, pois não estou sofrendo. Brevemente, voltarei
para buscar Maura.” (Cançado, 1991, p.15) Depois desse fato, sua mãe
fez uma promessa à Virgem Maria: vestiria a filha de branco e azul
até que ela completasse 7 anos. Estava, então, com 4 anos. Contudo,
os 7 anos marcaram o início de suas crises convulsivas.
Maura já estava separada, deixara o filho com sua mãe e vivia uma
vida considerada livre demais para os padrões familiares. O resul-
tado foi o gradativo afastamento da família, de acordo com o que me
contou Ana, uma das sobrinhas de Maura. O hábito da família era
enviar as meninas para estudar no Sacré-Coeur de Marie e os meninos
para o Colégio Arnaldo, ambos em Belo Horizonte. No entanto,
depois da mudança de Maura, seus irmãos não mandaram mais os
filhos para estudar em Belo Horizonte, a fim de evitar os maus exem-
plos da tia. Seu nome não era sequer pronunciado, segundo Ana.
Não posso afirmar que os peritos tenham lido Hospício é Deus,
já que isso não é mencionado em nenhum momento da documen-
tação. Podem tê-lo feito, assim como Maura pode ter-lhes contado
as mesmas passagens do livro, ou ambos os casos, já que precisavam
recolher material sobre sua vida. O que considero importante res-
saltar é a forma como o laudo atualiza esse relato autobiográfico de
Maura. Se colocadas lado a lado, a narrativa de Hospício é Deus e a que
compõe laudo, na anamnese, são histórias muito semelhantes, mas o
laudo atribui à sua própria narrativa um sentido definitivo, único. Ao
atentar para os sentidos que estão implícitos na narrativa de Maura,
lembro-me de Assis Brasil (1975), em texto escrito sobre Hospício é Deus
que o considera como um relato de denúncia, um documento social:
5 Um dos muitos exemplos do diário: “30/12/1959 Durvalina tem um olho roxo. Está
toda contundida. Não sei como alguém não toma providências para que as doentes
não sejam de tal maneira brutalizadas. Ainda mais que Durvalina se acha completa-
mente inconsciente. Hoje fui ao quarto-forte vê-la. O quarto-forte fica nos fundos da
Seção M B, onde Isabel está. Isabel é considerada ‘doente de confiança’, carrega as
chaves da seção, faz ocorrências e tem outras regalias. Abriu-me o quarto para que
de vida que é contada aos peritos e depois recontada por eles. Logo,
o que se percebe é que há escolhas. E mais ainda: quando os peritos
colocam o trecho acima citado, é no sentido de reafirmar ao juiz a
violência da paciente, mas em nenhum momento associá-la à situação
“lógica e justa” diante das práticas institucionais. A responsabilidade
precisa ser atrelada à paciente. No laudo, em nenhum momento
a responsabilidade do hospital no qual Maura estava internada é
questionada.
Frente a essas narrativas, duas questões poderiam ter sido con-
templadas no laudo: a primeira é relacionada ao ambiente violento
das instituições psiquiátricas da época; a segunda, a responsabilidade
da clínica em questão, que não apresentava condições de impedir
qualquer reação violenta de pacientes, tanto contra si próprios quanto
contra outros. De certa forma, como mostrei, essas questões estavam
contempladas de alguma forma no requerimento dos advogados e nos
relatos de Maura, mas, para os peritos, elas não existiam. O tipo de
abordagem desses psiquiatras era pautado pela classificação dos indi-
víduos a partir de seus antecedentes pessoais. O objetivo era saber em
que medida o crime fora determinado por essa personalidade indivi-
dual. Daí as instituições psiquiátricas, seus mecanismos e práticas não
influírem nesse olhar sobre Maura, ainda que os peritos soubessem do
sistema falho, da violência instituída. Ignorar esse sistema era e ainda
é parte da prática.
No Brasil, o movimento que começa a questionar a violência
nos manicômios, as práticas asilares, as consequências dessas práticas
sobre os pacientes e o próprio saber psiquiátrico surgiria em 1978,
de forma tímida. Contudo, a reforma psiquiátrica e o movimento de
crítica que ela estabelece sobre práticas e saberes desse campo não
parecem alcançar os casos em que a loucura e o crime são vincu-
lados. Os laudos de sanidade mental inscritos nos autos do processo
de Maura mostram o quanto a psiquiatria dos peritos fica presa ao
indivíduo e à doença, sem se preocupar com o entorno social no qual
este sujeito está inserido. Segundo Peter Fry (1985), no Brasil essa
tendência à psicologização do crime começou com Heitor Carrilho e
perdura até os dias de hoje.
Considerações finais
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estágio no Institut des Textes et Manuscrits Modernes (item, Paris, 2006–2007),
mestre em Antropologia Social pela unicamp (2004). Atualmente é professora
de Antropologia no Centro Universitário Curitiba (unicuritiba) e membro do
Núcleo de Antropologia do Direito (nadir), na usp. Suas principais áreas e temas
de atuação são: antropologia, antropologia do direito, narrativas biográficas, histórias
de vida, tribunais do júri, sujeitos de direito.
Messianismo
no neonazismo estadunidense:
a autobiografia de David Lane
Adriana Dias
2 Ron McVan, coautor de Creed of Iron com David Lane e conhecido autor de livros
de rituais usados por esses grupos, afirma ter sido muito importante na pesquisa de
campo de Gardell, tendo hospedado-o nos EUA, quando este viajara da Suécia para
realizar seu trabalho de campo. Fizeram juramentos de fidelidade em rituais. McVan
lhe emprestou seu carro e visitou junto com ele vários líderes do movimento, apresen-
tando-os como Elsie Christiansen, e o próprio David Lane. Gardell faz ligeira menção
disso em seu texto. Posteriormente, McVan o acusa de auxiliar grupos que o acusavam
de plagiar seus textos de livros do movimento Asatru. Nesse emaranhado de rancores e
acusações, o que é certo é que houve uma forte relação pessoal entre Gardell e McVan
durante pelo menos uma década, antes da publicação do referido livro, e que eles
compartilhavam crenças.
O slogan, inicialmente apenas definido como “We must secure the exis-
tence of our people and a future for White Children” [“Nós devemos assegurar
a existência de nosso povo e um futuro para as crianças brancas”]
recebeu uma segunda versão durante a prisão de Lane, ou pouco ante-
rior a esta, e divulgada durante sua prisão: “Because the beauty of the White
Aryan women must not perish from the earth.” [“Porque a beleza da mulher
ariana não pode desaparecer sobre a Terra.”] Ao se referir ao capítulo,
Lane demonstra que as 14 palavras são vistas como uma iniciação, e
que é no território político que o biológico e o mítico se unificariam.
Principalmente na construção do primeiro slogan, Lane assume
uma identidade hitlerista: busca em sua obra uma inspiração, dá uma
versão pessoal a 88 de suas palavras – o que, em linguagem simbólica
neonazista, é uma saudação, pois 88 é a repetição de Heil Hitler, por
ser formado pelo número que representa a oitava letra do alfabeto.
Repetir o slogan é, portanto, fazer referência a Hitler, ao texto, ao capí-
tulo e a Mein Kampf.
A morte de Lane, em 28 de maio de 2007, na prisão federal de
Terre Haute, depois de 22 anos de encarceramento, gerou nos sites
neonazis uma narrativa sempre entrelaçada à sustentação de um luto
profundo, que localiza Lane como um dos mais importantes líderes do
movimento racista, muitas vezes comparando-o a Hitler, nos Estados
Unidos e no mundo. Sua prisão foi descrita como um “ato político”
e ele foi definido como “prisioneiro de guerra”. Lane é o autor dos
mais importantes credos “neoarianos”, como “As 14 palavras”, os “14
Porquês”³ e os “88 Preceitos”,⁴ textos em que o ódio racial é signi-
3 Neste texto, Lane faz um resumo de seu projeto, balizado no ódio aos inimigos, des-
crevendo-o como única possibilidade à ameaça de extinção que paira sobre os arianos
no mundo.
4 Nestes preceitos, Lane fala do lugar dos brancos e de seu tempo, evocando imagens
de interação direta com a natureza. O lugar do ariano é entre as montanhas, cercado
por verde e sob um céu estrelado. É neste lugar que o verdadeiro ariano se encontra
com a natureza e consigo mesmo. Ele é a própria natureza a serviço da vida. O tempo
do ariano não é o tempo contemporâneo, diz Lane: este é um tempo de degeneração
moral, marcado pela mídia judaica, pela homossexualidade, pela tirania, pela corrupção
e pelo aborto.
5 É muito comum pelos grupos neonazistas o uso do léxico genômico para legitimar
seu discurso como científico.
1934, aos 30 anos, no mesmo ano que a conheceu. Ele fora um traba-
lhador agrícola nômade e sua mãe era uma jovem garota de 15 anos
quando foi desposada por ele.
Lane foi o quarto filho do casal, e nasceu em 2 de novembro
de 1938, uma quarta-feira (Dia de Woden), na cidade de Woden,
Iowa, para justificar o pseudônimo de Wodensson (filho de Odin
ou Wotan). Recorda, ainda, que seu pai biológico, principalmente
quando estava bêbado, era uma criatura verdadeiramente desprezível.
Afirma que ele teria vendido sua mãe para seus amigos e estranhos
por dinheiro para bebida, e que teria espancado toda a sua família,
muitas vezes, com uma cinta, sendo o responsável pela surdez de
seu irmão Roger ao perfurar seus tímpanos em uma dessas surras.
Um dos muitos abusadores de Lane é morto por pancadas com um
martelo, após o pai ter deixado o lar (quando Lane tinha apenas 4
anos) e sua mãe ser obrigada a “cantar e tocar em um bar fazer coisas
que ele não sabe e não quer saber”. Posteriormente, eles e os irmãos
foram levados para um orfanato.
A substituição da figura biológica pela mítica, no caso de Lane,
é um recurso para fugir de sua própria história, mas principalmente
para se demarcar como predestinado ao arianismo: ele nasce no dia
de Wotan, na cidade de Wotan, e como Thor, filho de Wotan, tem seus
inimigos mortos a marteladas. Nesse sentido, pode-se assinalar como
uma autobiografia se oferece como um universo assaz fecundo e, no
caso presente, como um elemento essencial para a abordagem etno-
gráfica. Ademais, como apenas por meio da experiência etnográfica
anterior (Dias, 2007) muitos elementos da autobiografia se tornaram
inteligíveis, por permitirem que eu compreendesse o sentido de certas
imagens escolhidas para darem sentido “ariano” à autobiografia.
No segundo capítulo, “Infância”, Lane fala de sua vida no
orfanato e relata sua adoção por um pastor luterano, que falava di-
namarquês e viajava o país para realizar pregações. Esse pastor lhe
impôs “horas intermináveis de devoções” e um Jesus que Lane con-
siderava “puro tédio”. Os antigos Deuses Wotan e Thor foram lhe
apresentados como vencidos, e ele conta que se sentia extremamente
atraído por suas histórias, mas não pela forma como os luteranos os
descreviam, quase como se desde criança Lane soubesse que estes
deuses lhe eram mais íntimos. Sua trajetória cruza os relatos da
Segunda Guerra Mundial, em especial as notícias que se divulgavam
a respeito da morte em massa dos judeus em campos de concentração
nazistas, notícias que ele ouve com total incredulidade, imediata-
mente, segundo relata. Também refere seu brincar “de guerra” com
outros garotos, em que sempre fazia o papel de alemão, para gritar
“Heil Hitler” e “Sieg Heil” para os outros adolescentes. Enamora-se por
jovens loiras de olhos azuis, “seus anjos”, o que mais tarde, segundo
ele, definiria sua inquietação constante em construir a luta para evitar
o desaparecimento da beleza da mulher branca da Terra.
A narrativa prossegue em seu propósito de ressaltar seus laços e
sua vocação com o mundo ariano: jamais se deixou ludibriar pelas
religiões cristãs, preferia continuar a ser fiel aos Deuses verdadeiros,
nórdicos, desde muito jovem. Ainda adolescente foi capaz, no meio de
grande propaganda inimiga, de reconhecer o judeu como inimigo e o
alemão como herói. Ao descrever seus amores juvenis como a fonte de
sua luta pela preservação da mulher ariana (condensada na máxima
de Lane: “Porque a beleza da mulher Branca não deve desaparecer
da terra”), o autor descreve sua relação com o mundo feminino
como algo que, “desde o início, transcenderia o elemento puramente
sexual”. Foi no olhar para as mulheres, afirma, que descobriu seu
propósito de vida. Ele também descreve nesse capítulo como se irritou
com um ex-combatente que contara como mantivera relações sexuais
com moças alemães em troca de comidas e roupas, e como por sua
posição de classe social inferior ele teve pouco acesso a mulheres
brancas belas, que preferiram judeus ricos ou atletas negros, possibi-
lidades seguras de ascensão social. Lane salienta que teve sua cota de
moças bonitas, mas que se irritava com o modo como o valor de um
homem valia menos na América que o seu salário ou o ganho de seus
pais. Dessa forma, ele pretendia falar ao americano médio, que sonha
com as belas atrizes de cinema, afirmando o quanto o sistema é des-
trutivo (suicida, diz ele) por exilar o homem do belo.
No terceiro capítulo, “Despertar”, Lane descreve sua “conscien-
tização”: segundo o que ele recorda, em 1978, conclui que de fato as
nações ocidentais estavam governadas por uma conspiração sionista.
Os aspectos econômicos, políticos e religiosos da conspiração não lhe
interessavam de maneira vital, a não ser pelo modo como eles influen-
ciam o ponto verdadeiramente central da questão: essa conspiração
sionista acima de tudo desejava exterminar a raça ariana. Todo o
estudo se organizou no ato de cunhagem das “14 palavras”: “Devemos
assegurar a existência de nosso povo e um futuro para as crianças
brancas” – e Lane começou seu ativismo no estado do Colorado, até,
segundo ele, ser interrompido por entidades sionistas.
No quarto capítulo, Lane se dedica à Irmandade Schweigen
(Irmandade Silenciosa) – que posteriormente ficou conhecida como
A Ordem –, relatando sua fundação e atuação. Em poucos deta-
lhes, conta como o Estado, em seu delírio, aparelhou-se por perjúrio
para incriminar todos os presos da guerra racial, e relata o quanto
seria melhor se eles tivessem mais experiência em criminalidade e
crueldade antes dos atos praticados. A Ordem foi fundada em 22 de
7 Jesus Cristo viveu seu ministério como messias a partir dos 30 anos, segundo a tra-
dição cristã, na qual Lane foi criado, e na qual se espelha como um duplo. É esse o
sentido de ministério que Lane pretende dar à sua tarefa ao evocar que sua missão
como messias ariano havia se tornado pública aos 30 anos.
Autobiografia
Creed of Iron
Deceived, Damned & Defiant
KD Rebel
Victory or Valhalla
Referências
Michael Barkun, Religion and the racist right: the origins of the Christian Identity movement,
Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1994
P Bourdieu, “Espaço social e gênese de classes”, O poder simbólico, Rio de Janeiro: Ber-
trand Brasil, 1989
–, “A ilusão biográfica”, in: M M Ferreira & J Amado (organização), Usos e abusos da
história oral, Rio de Janeiro: Editora da fgv, 2000
Edward M Bruner, “Ethnography as narrative”, in: Victor W Turner & Edward M
Bruner, The anthropology of experience, Urbana: University of Illinois Press, 1986,
p.139–155
James Clifford, Person and myth: Maurice Leenhardt in the melanesian world, Berkeley: Univer-
sity of California Press, 1982
Édouard Conte & Cornelia Essner, A demanda da raça: uma antropologia do nazismo,
Lisboa: Instituto Piaget, 1998
Raphael Bispo
1 A Revista Amiga tv Tudo! era editada pelas Organizações Bloch e circulou no país a
partir de maio de 1970 – portanto, bem no momento de ascensão da indústria cultural.
Considerada a primeira revista que se dedicou exclusivamente a cobrir a programação
televisiva brasileira, documentou também a vida de seus principais artistas, feito
inédito para uma imprensa que ainda se voltava para os produtos midiáticos estran-
geiros, como o cinema americano e suas “divas”.
Voltemos à revista O Cruzeiro, pois Glória Maria nunca foi tão indí-
gena como naquela publicação. Tanto na capa quanto nas fotografias
internas, o fotógrafo Fernando Seixas fez questão de valorizar o apelo
sensual da jovem através de imagens que a tornavam o estereótipo
da selvagem sexualizada, bastante recorrente no imaginário erótico
dos brasileiros. Um cocar com penas de cores fortes, inúmeros ade-
reços pelo corpo como colares de dente de onça, armas de guerra em
punho, além de uma curtíssima tanga tapando suas genitálias, mas
que deixavam à mostra o bumbum. Nada tapava os seios, apenas
o longo aplique de cabelos negros estrategicamente posicionados
impedia com que a revista “da família brasileira” beirasse os tão cri-
ticados periódicos eróticos que começavam a pulular pelas bancas de
forma sorrateira, fugindo da censura federal. As narrativas tecidas
em O Cruzeiro sintetizam em palavras de enaltecimento uma pos-
sível razão para seu grande sucesso, aquilo que seria constantemente
formulado em torno de sua persona na imprensa em geral ao longo
dos anos de sucesso: a combinação de uma beleza “estonteante”,
“exótica”, “tipicamente brasileira” com a dedicação à maternidade e
à família, o amor às suas duas filhas.
Foto interna e de página inteira de Índia Potira na revista O Cruzeiro em abril de 1972
Reportagem avulsa do acervo de Índia que nos mostra uma maneira recorrente como
a chacrete era apresentada na imprensa
“A famosa Índia Potira – poucos sabem que seu nome é Glória Maria
– fez suas confidências: disse que seu maior desejo é tocar um apito,
conforme fizeram outros índios, seus antepassados. Mas, para a sua
infelicidade, só falta o apito. Por isso, o Chacrinha já bolou outro con-
curso. Vai dar um milhão para quem levar o apito mais bonito. A
única jurada será esta bela Índia, que pelo que parece, entende muito
de apito. Mas, enquanto não começa este concurso vocês poderão ver
o concurso dos calouros, e também a final do mais belo penteado na
Buzina de logo mais.”
(1972, n.129, p.46)
“Certos homens têm muita raiva de mim, assim como suas mulheres.
E eu vou explicar o porquê. Os homens ficam se mordendo por causa
das chacretes. Daí a inveja, o despeito, porque gostariam de estar
no meu lugar. Eles pensam mais ou menos assim: “Este velho deve
passar na cara todas essas mulheres.” E as mulheres que não têm o
que fazer, que não têm ocupação a não ser o forno e o fogão, ficam
umas ‘araras’ quando olham para a tv e vêem as chacretes – as mu-
lheres mais quentes do Brasil – dançando e mostrando sua beleza.
Essas mulheres que têm ódio das chacretes, que vivem criticando-as,
são feias, gordas, mal-amadas e só têm relações sexuais uma vez por
ano (quando têm!). É por isso que elas têm despeito das chacretes e
formam uma concepção errada das nossas bailarinas.”
(“Chacrinha por dentro e por fora”, Homem, n.29, v.2, p.23, 1980)
Concluindo
Referências
Edifício Master:
o documentário e a experiência
de vida na metrópole
O tema
1 Sempre que a palavra “espectador” for utilizada, ela se refere à autora do texto.
O documentário:
conceito utilizado
Narração e cortes:
o prédio e suas transformações
Vera:
“Vim para aqui com 1 ano… Já morei no 803, no 715, no 714, 306,
morei no 117. Vinte e oito apartamentos… A nossa vida era de cigano,
mas sempre dentro do edifício… Vou falar primeiro de uma maneira
Corte.
Céu. Ela faz uma descrição hilária da primeira fase do prédio. Sua
risada é contagiante. É uma daquelas pessoas que fala completando
as palavras com gestos. Transpor suas palavras simplesmente não
demonstraria sua diversão ao falar dos velhos tempos. Fica também
a impressão, escutando e vendo sua declaração, de que ela também
se divertia com a desordem do prédio. Vendo, por exemplo, homens
descendo por cordas quando chegava a rádio patrulha. Ou seu prazer
com a troca de notícias da madrugada anterior, uma brincadeira
que mantinha com uma amiga, onde faziam “as reportagens”. A
desordem do prédio, narradas pelos dois primeiros entrevistados,
ganha agora um ar carnavalesco e transmite uma sensação de que
as pessoas, pelo menos alguns moradores, se divertiam com isso.
Depois, quando fala que tudo mudou com a eleição de Sérgio para
administrador, ela muda de expressão, fica séria. Demonstra tristeza
quando fala do quanto o administrador sofreu. Mas essa mudança
também parece uma tristeza devido a uma nova ordem, que não
seria divertida. De qualquer forma, a representação fílmica permite,
principalmente hoje com os aparelhos de reprodução domésticos,
questionar e refletir sobre o rosto do outro, e nos encoraja a uma
leitura que alcance o inconsciente visual da personagem. Individu-
almente, podemos apenas reunir duas subjetividades: uma exposta
e outra que quer conhecer a primeira, mas tem apenas os caminhos
incertos de sua intuição. A imagem permite uma análise.
O uso do documentário também permite que as pessoas discutam
essas impressões do espectador. Sei que a filmagem de uma narrativa
de história de vida não pode ser apontada como uma prática de pes-
quisa sempre disponível em levantamentos de biografias. Mas entendo
que a possibilidade de ser utilizada quando possível deixa um objeto
precioso para aprofundar os estudos no campo, o preparo de pesqui-
sadores e para apresentar resultados etc. O Edifício Master não é uma
narrativa da vida, são várias histórias contadas e condensadas. Mas o
documentário deixa para a antropologia, particularmente para a an-
tropologia urbana, uma forma de captar a vida social na metrópole,
que complementa muitos trabalhos já realizados e abre espaço para
a discussão da condição do indivíduo/pessoa de uma maneira mais
complexa. Além disso, instiga discussões porque acrescenta imagens
às palavras, que combinam-se no movimento das sequências e dos
cortes.
Walter Benjamin
e as transformações da percepção humana com o cinema
“Os objetos que mais gosto são os meus retratos. Porque eu me amo.
A gente tem que se amar… A gente mora no cartão postal do Rio,
que é Copacabana. Mas é muito violento aqui, muito violento. Eu ia
passando na Siqueira Campos, ali na porta da Telemar, e um rapaz
me abordou, me abordou com uma mulher, e eu me assustei. Ele tirou
o revólver e disse: ‘Cala a boca e não olha para lado nenhum.’ Ele
queria saber onde eu morava. Olha, quando eu entrei aqui, eu tive
tanto medo, tanto medo do rapaz. Um rapaz bonito, branco, bem
vestido, mas muito bem vestido mesmo. Aí ele disse: ‘Pega o cartão da
Caixa Econômica.’ Eu abri a gaveta, joguei tudo no meio da cama.
Eu tremia. Eu tive que me arrastar, pegar nas pernas dele, pegar nas
pernas dele, aquele gatinho, e pedir para ele não apertar o gatilho. Aí
eu fui com ele, ele tirou todo o meu dinheiro. Oito mil reais… Eu vim
para a casa, o senhor não imagina como eu fiquei. Chorando, cho-
rando, chorando. Ele: ‘Pode ficar com seu dinheiro que eu não preciso
de seu dinheiro.’ Aí ele me deu aquela sacola, até hoje eu guardo
aquela maldita sacola [procura e mostra uma sacola xadrez, com um
envelope dentro, onde estão dois maços de papéis, dobrados como di-
nheiro]. Eu fiquei desesperada. Fiquei zanzando aqui, eu devia C&A,
Ponto Frio… Quando deu 4 horas, eu botei uma calça e fui na janela
para pular.… [Ela explica que não pulou por causa de suas dívidas.]
Porque eu não sou dessas pessoas que dizem: defunto não paga.
Porque quando eu morrer, eu quero morrer em paz, eu quero morrer
sem dever nada a ninguém. Hoje eu tenho um namorado bacana.
Porque a solidão machuca muito, machuca muito.”
“Eu sonho em fazer uma coisa assim. Quando eu saí de casa, minha
mãe falou: ‘Eu não dou uma semana para você passar fome com sua
prima e voltar implorando um prato de comida.’ Eu falei: ‘Mãe, só
puta eu não vou ser. E não vou matar ninguém, posso passar fome,
mas na sua casa eu não venho mais.’”
Renata conta que tinha uma mãe liberal, mas que não aceitara a
gravidez da filha adolescente “preocupada com o que os outros iam
falar”. Ela levou a filha a um centro de umbanda, onde lhe foi dado
um preparado para provocar aborto. O feto morreu, mas continuou
no corpo da mãe. Renata passou muito mal e foi internada. Ao sair do
hospital não aceitou o convite da mãe para voltar para casa. Ela res-
ponde: “Olha, mãe, a senhora tem que lembrar que com filho na sua
casa eu não ia ficar, agora sem filho eu não quero ficar.” Renata fala
de uma grande mágoa com a mãe. Em um instante, porém, retoma
a alegria inicial para dizer que agora ninguém a derruba mais e ela
é a Renata, a “number one do Brasil”. Para o espectador, fica a dúvida
sobre a relação amorosa contada no início da entrevista. Principal-
mente porque, apesar da alegria, Renata demonstrava ansiedade,
mexendo sem parar nos cabelos. Levando em conta que ela mesma
usou a palavra “sonho” relacionando com o casamento com o ame-
ricano rico e apaixonado, dúvidas ficam no ar. O diretor também
parece ter tido a mesma sensação, quando diz que Renata saiu do
prédio poucos dias depois da entrevista. Não para ir para os eua,
mas para outro prédio semelhante.
Conclusão
Walter Lima Jr, que no dvd comentou o filme junto com o diretor,
chegou à seguinte conclusão:
Referências
Walter Benjamin, Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura,
São Paulo: Brasiliense, 1994
Nöel Carrol, “Ficção-não e cinema de asserção pressuposta: uma análise conceitual”,
Teoria Contemporânea do cinema, São Paulo: Senac, 2004
Eduardo Coutinho (direção), Edifício Master, João Moreira Salles & Maurício Andrade
Ramos (produção executiva), Eduardo Coutinho, Walter Lima Jr & Consuelo
Lins (comentários), Vídeo Filmes, Brasil, 2002
Vincent Crapanzano, “A cena: lançando sobre o real”, Revista Mana, v.11, n.2, p.357–
384, 1995
C Writh Mills, A nova classe média, Rio de Janeiro: Zahar, 1969
George Simmel, “As grandes cidades e a vida do espírito”, Psicologia do dinheiro e outros
ensaios, Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2009
Gilberto Velho, A utopia urbana, Rio de Janeiro: Zahar, 1973
Hugo Ciavatta
2 Frúgoli Jr & Spaggiari (2010) recuperam o termo que Nestor Perlongher (2008)
utiliza para descrever a circulação de um mercado de prostituição masculina em São
Paulo.
3 De 1987 a 1990, Alda Marco Antônio esteve à frente da Secretaria Estadual do
Menor. Nesse período, foi criada uma estrutura dissociada da burocracia estatal da
Secretaria da Promoção Social. A Secretaria Estadual do Menor incorporou o pro-
grama Criança de Rua, desta última secretaria, e criou os Clubes da Turma, como o
da Mooca, frequentado por Esmeralda. Ali, havia atividades lúdicas, de formação e
esportes, e como complementação escolar surge também o Circo-Escola (Gregori &
Pereira, 2000, p.21–23). A trajetória de Esmeralda entre a infância e a adolescência,
retratada em Esmeralda – por que não dancei?, é também fruto dos deslocamentos institu-
cionais pelos quais passou o Estado e o governo, bem como pelo conjunto de relações,
tramas e disputas políticas que se deram nesse contexto.
“O insight foi música. Eu já sabia que ela gostava de música. Você vai
tentando na conversa, sem ser maçante, vai conquistando aos poucos,
descobrindo o que é que puxa esse menino, qual é seu projeto de vida.
A Esmeralda foi dando indícios de que o grande eixo da vida dela
era a música. Eu, que não gostava de Zeca Pagodinho, fui obrigada
a comprar o disco, andar com um gravador, tentar gravar a sua voz
cantando. Aí ela queria ouvir sua própria voz e isso se tornou uma
forma de aproximação, uma forma de ela se permitir parar. A música
fez essa ponte. A partir daí, ela começou a resgatar algumas coisas, as
composições que ela tinha, começou a cantar.”
(Ortiz, 2000, p.129)
“Eu não acreditava mais neles… Eu dizia: ‘Se você não vai me dar
comida, não vai me dar coberta, pode sair fora, não estou mais a fim
de vocês falarem de projeto não.’ Eu falava porque eles começavam
um projeto, ficavam por um tempo, depois fechavam. A gente às vezes
criava um vínculo com eles.”
(Ortiz, 2000, p.126–127)
4 “É uma parceria entre sindicatos e bancos que instituiu, em 1996, uma fundação
para desenvolver programas educativos para meninos e meninas em situação de rua
no centro da cidade. No primeiro momento, as atividades são realizadas nos espaços da
rua, por educadores de rua. No segundo momento, os meninos realizam atividades artís-
ticas e esportivas em diversos espaços. Recebem bolsa e voltam para dormir na casa
de familiares ou em abrigos. Essas atividades devem prepará-los para frequentar os
espaços da comunidade com outros garotos. Eles ainda são acompanhados pelos edu-
cadores. No terceiro momento, os meninos e meninas passam a frequentar atividades na
comunidade, com acompanhamento dos educadores.” (Ortiz, 2000, p.127)
curtir, não pra ter noia. Eu não parava de fumar, mas sentia desejo de
parar.”
(Ortiz, 2000, p.125)
“Às vezes vinham os pastores na Sé, à noite, levar sopão pra gente.
Eles rezavam, cantavam hinos, eu cantava com eles. Aquilo me pre-
enchia. Eu tinha uma satisfação imensa além da droga. Eu ficava
louvando a Deus. O pessoal da jeame, Jesus Ama o Menor, ficava
pregando. Eles cantavam louvor pra nós e oravam. Na Sé apa-
recia também um pessoal da Legião da Boa Vontade e da Igreja
Universal. Eles levavam cobertores no tempo de frio, de madru-
gada. Eles já sabiam o ponto onde a gente dormia. Levavam sopa e
medicamentos.”
(Ortiz, 2000, p.128)
“Em casa, minha mãe me batia. Batia muito. Quando estava bêbada
e quando estava sóbria… Eu me lembro que quando ela estava sã ela
ficava tremendo… Ela esperava a gente dormir e batia em nós com
um pedaço de pau, tacava objetos. Às vezes ela me cutucava com
bituca de cigarro, e, como lá não tinha fogão a gás e a gente cozinhava
no fogão à lenha, tinha bastante pau em casa. Então minha mãe espe-
rava a gente dormir e dava paulada… Eu me sentia presa num mundo
desconhecido onde toda a minha família sofria, inclusive eu… Lá era
tudo assim, minha mãe, minha avó, meu tio, minha tia, meus primos.
Eram todos assim… De vez em quando ela [mãe] me tratava melhor,
falava que me amava. Ela gostava de mim. Se me maltratava muito,
era por causa do álcool. O álcool tirava o afeto dela por mim, então
vinham os maus-tratos, e ela dizia que não gostava de mim, que queria
ter me abortado antes de eu nascer. O álcool tirava o afeto dela, e eu,
devido a essas circunstâncias, perdi o afeto por ela também.”
(Ortiz, 2000, p.24–25)
A vida nas ruas, nesse sentido, passa a ser para Esmeralda, quando
abandona aquele universo e escreve sua autobiografia, um teste-
munho. Mas, além do que aquele de uma experiência de miséria, de
uso de crack e dos casos de violência sexual, é um testemunho de morte
de relações (Das, 2011), das relações afetivas, familiares, da infância, e
também daquelas constituídas e vividas nas ruas.
Com 8 anos, ao lado de uma amiga, Priscila, que vivia na mesma
favela que a família de Esmeralda na Vila Penteado, elas dormiram
pela primeira vez “na rua”, na rua São Bento. Esmeralda se perdeu
de Priscila, mas alguns dias depois encontrou Giselda, sua irmã mais
velha, que a levou de volta para casa (Ortiz, 2000, p.56). Depois de
apanhar novamente da mãe, poucos dias depois, Esmeralda relata
que estava de volta às ruas, e em seguida foi encaminhada à febem.
Policiais que procuravam por meninos que haviam realizado um ar-
rastão, uma sequência de roubos, levaram-na para o distrito policial
e posteriormente para a uap3. Em um quarto pequeno, ela dividiu
o espaço com outras nove meninas. Não havia separação por idade
e as meninas crianças e adolescentes ficavam todas juntas na mesma
unidade, crianças abandonadas que sofriam maus-tratos, ou que ti-
vessem cometido qualquer tipo de infração legal, segundo Esmeralda
(Ortiz, 2000, p.59). Uma assistente social depois lhe informou que ela
estava presa como carente, e não como infratora. Com o endereço
da mãe, ela foi levada para casa novamente. No mesmo dia, todavia,
reencontrando a mãe alcoolizada, Esmeralda voltou para a rua e 15
dias depois estava outra vez na febem. Assim, Esmeralda entende
a maneira que se tornou “de rua” definitivamente, saindo dessa situ-
ação quase dez anos depois, para uma Casa de Passagem, em 1997,
antes de completar 18 anos, quando também estava integrada ao
projeto Travessia, na rua Tabatinguera, próximo à Sé, e, por meio
(Gregori & Pereira, 2000, p.30–31). Ainda no início da vida nas ruas,
Esmeralda conta que depois da primeira internação na febem,
quando foi levada para casa e em seguida estava nas ruas novamente,
é que ela passou a dormir em “mocós”.
“Debaixo das pontes tem às vezes buracos feitos pelos ratos. A gente
ia lá e terminava o trabalho: aumentava o buraco, do tamanho pra
gente caber. Era só pegar um papelão e forrar o chão, porque é tudo
de areia debaixo da ponte, na parte que ela já está no chão. Assim a
gente fazia o nosso mocó. Em alguns cabiam vinte pessoas. No mocó
era gostoso dormir porque era bem quentinho. Dormiam meninos e
meninas, às vezes só meninas, às vezes só meninos. Fui parar no mocó
da avenida 23 de Maio, que eu não conhecia, mas era um lugar muito
falado. Todo mundo que eu via ia pro mocó. O mocó era onde tinha
mais drogas, então era onde tinha mais movimento.”
(Ortiz, 2000, p.64)
Depois dos dois primeiros encontros que tive com Esmeralda em sua
casa, a febem como refúgio e o uso de crack só apareceram na con-
versa quando Esmeralda passou rapidamente diante de um pequeno
vidro de esmalte, dizendo que, quando fumava crack, até o cheiro
do corante para as unhas era capaz de despertar a obsessão por uma
pedra da droga. Perguntei o que ela teria para falar sobre o Centro
de São Paulo com a intervenção da polícia. Ela disse que até es-
crever o livro sua dimensão do mundo não ultrapassava a unidade da
febem no Tatuapé, e em seguida voltou a ficar em silêncio, refor-
çando que o que eu quisesse estudar sobre ela já estava no livro, que
não tinha nada a acrescentar. O primeiro encontro da irmandade
dos na substituiu o silêncio de Esmeralda sobre seu próprio livro. Es-
meralda me convidou para uma reunião temática coordenada por
ela na mesma Zona Norte, mais próximo à Brasilândia, em uma sala
atrás da paróquia do bairro. A reunião aconteceu com a presença de
pouco mais de dez pessoas, todos homens, à exceção de Esmeralda.
A sala também servia para aulas, cursos diversos que a paróquia da
Igreja Católica ali oferece durante o dia e encontros de associações
do bairro no período noturno. Ademais da lousa preenchida de “tra-
dições” e “orações” da irmandade dos na, estava organizada uma
estante de livros, pequenos cartões, quadros e uma bandeira da ir-
mandade, todos com mensagens de apoio, de ajuda, como guias de
comportamento aos presentes. Apresentei-me como pesquisador que
acompanhava Esmeralda, enquanto todos se diziam “adictos⁵ em
recuperação”. Diferentes entre si, as apresentações falavam da depen-
dência, de como haviam passado os últimos dias, da condição como
5 O termo “adicto” pode se referir à “pessoa que se submete a, que depende, que está
com ou outro ou se lhe junta por afeição”; “adjunto, adstrito”; “aquele que usa uma
droga habitualmente e tem por ela uma ânsia incontrolável que se torna um hábito
mórbido”.
“Na casa dos meus pais, sou o cara que foi um garoto-problema; na
Igreja, no culto, sou o negro certinho, um exemplo a ser seguido; no
trabalho, sou o cara que cumpre o que tem que ser cumprido, mas
pra quem se olha torto só porque pegou um cigarro careta pra fumar
no corredor – ‘nossa, mas você… você fuma?’ –; pra minha esposa,
sou o amorzinho às vezes, e às vezes também o negro safado de quem
se tem que ficar no pé, regulando; no fim das contas, ‘quem sou eu?
Tenho que ficar escondendo até cigarro no corredor agora?’”
As cidades de
Carolina Maria de Jesus e Esmeralda Ortiz
de vez em quando minha irmã dormia lá, e eu dormia com ela. Esse
quarto tinha uma cama improvisada. Nós pegávamos quatro blocos
para serem os pés da cama e em cima deles colocávamos madeirite e
um colchão. Era a maior imundice aquele quarto. Tinha um armário,
até que ele era bonitinho, era azul, era um armário de cozinha. Na
cozinha tinha umas panelas que eram pretas por causa do fogão a
lenha, um fogão improvisado e típico da família, pois quase todos
usavam esses fogões porque não tinham condições de comprar um a
gás … No quarto onde ninguém dormia tinha um peniquinho. Era
um baldinho parecido com esse em que vem silicone, porque em casa
não tinha banheiro e nem chuveiro. O banho era tomado com cane-
quinha ou no tanque. Quem quisesse chuveiro tinha que ir na casa da
vizinha.”
(Ortiz, 2000, p.28–29)
Lugares de narrativas
Referências
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de práticas de lazer e trabalho na Gal Osório”, Ponto Urbe, v.11, p.1–18, 2012
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Histórias e narrativas
envolvendo a ocupação Mauá
3 Este parágrafo e os seguintes, até o início da próxima seção (“A ocupação Mauá:
para dentro, para fora”), contêm trechos que foram publicados em Paterniani (2013b).
4 Esta e todas as falas de Nelson foram ditas por ele no Encontro de Formação do
MMRC, no Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, na cidade de São Paulo, em
janeiro de 2012.
5 Dados e informações sobre ocupações, do período de 1997 a 2012, podem ser con-
sultados em Paterniani (2013a), Neuhold (2009) e Oliveira (2010).
“Aí vi coisa. Setenta e cinco famílias na rua, sem ter pra onde ir. E tí-
nhamos que lutar. Me deu na cabeça soldar a porta. E aí foi aquele
desmantelo. Era pra acabar mesmo com o movimento, preparamos
nossa resistência.”
(Nelson, 2012)
A ocupação Mauá:
para dentro, para fora
grave e de difícil reparação às partes, assim como nos casos em que o juízo a quo não
admite a interposição de apelação, ou ainda quando o recurso for relativo aos efeitos
em que a apelação é recebida”.
Considerações finais
18 Quero dizer com isso que, embora governo municipal e federal pareçam dois
lugares monolíticos, as pessoas que os compõem se cruzam, se movimentam, têm vín-
culos com instituições que influenciam ambos. Assim como o político e o técnico não
têm fronteiras claras: a capacitação de lideranças para entenderem o conceito de Ha-
bitação de Interesse Social, por exemplo, ou os trâmites legais envolvidos em processos
de desapropriação de imóveis ociosos, demonstra como decisões políticas e conheci-
mento técnico estão associados.
20 Estou me referindo ao conceito de arena de Victor Turner (2008) que, por definição,
é composta por atores antagonistas.
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Agradeço a professora doutora Suely Kofes e a Hugo Ciavatta pela leitura e comentá-
rios de uma versão preliminar deste texto. Agradeço também aos participantes do GT
32, Etnografia e Biografia na Antropologia – Experiências com as Diversas Grafias
sobre a Vida Social, da 28ª Reunião da Associação Brasileira de Antropologia. As ela-
borações aqui contidas, contudo, são inteiramente de minha responsabilidade. Este
capítulo é uma versão resumida de alguns pontos e argumentos que estão em minha
dissertação de mestrado (Paterniani, 2013a).
Luiz Ruffato:
1961 – Cataguases (mg)
“Não era Roça ainda, pois que esta começava para além da fazenda
do seu Maneco Linhares, mas cidade também não, ermo cujo vizinho
mais perto não o alcançava os gritos desatinados da mãe em uma
tarde submersa no antes.”
(Ruffato, 2011a, p.16)
Aprendemos com Michel de Certeau que esta pode ser uma prática
do espaço. Em Luiz Ruffato estão presentes os traços de uma “socie-
dade em agonia”, uma cidade em frangalhos, permeada de migrações
“Eu não sei dirigir. Nunca aprendi a dirigir, não tenho interesse em
dirigir. Em São Paulo eu ando muito, ando de ônibus, ando de metrô,
ando a pé e eu penso que eu conheço razoavelmente bem São Paulo
por conta disso. E em todos os lugares, em todas as cidades que eu
vou, eu faço questão disso. Eu tô sempre caminhando, eu tô sempre
Fernando Bonassi:
1962 – São Paulo (SP)
por empreitada, cabos da pm, amigos de, filhos de, ladrões de toca-
-fitas, caseiros, seguranças, porteiros…”
(Bonassi, 1996, p.61)
Bernardo Carvalho:
1960 – Rio de Janeiro (RJ)
“Se para mim a experiência foi terrível, para o livro foi muito legal,
porque sem ela não traria essa patologia. Os protagonistas da história
são outsiders, tudo de um jeito estranho. Do ponto de vista do perse-
guido, daquele que tem que escapar. Em vez de achar a cidade bonita,
comecei a ver que ela foi construída por um sistema de poder abso-
luto. As esplanadas são enormes, as ruas, largas, enfim, tudo é visível.
Um militante da oposição, por exemplo, não tem como escapar.”
(Carvalho, 2009, p.18)
Joca Terron (1968), de Cuiabá, Mato Grosso, tem sua experiência li-
terária entre suas origens e a vida em São Paulo. Escreveu o romance
Não há nada lá (2001); a novela Hotel Hell (2003), escrita inicialmente
Em seu trabalho Curva de Rio Sujo aparecem uma das marcas dessas
narrativas literárias de lidar com esquecimentos, que são como
rasuras da memória social, ou como essa memória funciona como
uma “curva de rio sujo”, ou como Terron afirma em outro momento:
“Preencho os espaços, mas o resultado é sempre o mesmo.” O nar-
rador revela, de certa maneira, um extravio: “Escreve para esquecer”,
e considera que “esquecer é uma função da memória tão importante
quanto recordar” (Terron, 2003, p.9).
Isto nos revela um dos traços da socialidade: suspender o ins-
tituído socialmente, apagá-lo, ou mesmo contar fazendo escolhas
entre o que foi vivido. O ser humano aparece como uma “construção
abandonada”, inacabada, incompleta (Terron, 2003, p.71). Será que
o sujeito, para se reinscrever diante da vida social, não precisaria
esquecer o que a vida social tenta impregnar nele? Rasurar as socia-
bilidades com as socialidades? Talvez seja relevante pensar que em
“redor do continente da memória, as ilhas e as penínsulas do esque-
cimento sempre existiram” (Gagnebin, 1999, p.4). Como aparece em
um dos comentários sobre o referido autor, é possível ver que:
Férrez:
1975 – São Paulo (SP)
Marcelino Freire:
1967 – Sertânia (pe)
gente deste lixo. Eles dizem que sim, que vão. Mas não acredito. Eles
nunca vão conseguir tirar a gente deste paraíso.”
(Freire, 2000, p.23–25)
Este livro foi adaptado para o teatro pelo Coletivo Angu de Teatro e
encenado no dia 3 de maio de 2007, em São Paulo, na 2 Mostra La-
tino-Americana de Teatro de Grupo no Centro Cultural São Paulo.
Publicou também Balé ralé em 2003, pela mesma editora. Organizou
a antologia Os cem menores contos brasileiros do século, com cem escritores
da nova geração contemporânea. Em 2006, publicou Contos negreiros,
livro vencedor na categoria Contos do Prêmio Jabuti 2006. Neste
livro retoma a questão do negro, em seus contos, que são cantos, la-
mentos que mostram como ressalta em uma das epígrafes escolhidas
de Marcelo Yuka, “que todo camburão tem um pouco de navio
negreiro.” O autor fala das violências urbanas, que perpassam o coti-
diano, e os muitos sujeitos e situações de escravidão no cotidiano das
cidades contemporâneas.
“Eu só tenho a minha inquietação. Meus contos para mim são cantos.
Contos negreiros é um livro abolicionista … Sou filho de sertanejo,
minha mãe batia panelas, adoro vexames, ladainhas, convivi num
cenário em que as mulheres não se contêm, cheias de ladainhas … A
paz fica bonita na televisão, é muito organizada, certinha, tadinha, ela
é muito branca. ‘A cidade se organiza para salvar a pele de alguém…’”
(Freire, 2006)
Enunciações pedestres:
rastros e práticas urbanas
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João Gilberto Noll, Hotel Atlântico, Rio de Janeiro: Rocco, 1989
6 Nas trajetórias estudadas, observo esse movimento por diferentes lugares da cidade
em busca de um espaço para firmar moradia – a busca da casa própria produziu di-
ferentes trajetos na vida dessas pessoas, que exerceram papel fundamental sobre suas
vidas e suas representações sobre si e a cidade.
Mapa 1
Salvador: regiões administrativas*
(Souza, 2002)
Mapa 2
Trecho de Plataforma, São Bartolomeu e Pirajá
Imagem 1
Fotografia de “Uma vista da cidade de Salvador”,
(Biblioteca Universitária Reitor Macedo Costa/UFBA, “Vista da cidade de Salvador,
vendo-se do Elevador Lacerda”, 1966, série de documentação: 318, negativo: 170–11a)
“Foi a situação financeira de meu pai, que tava muito ruim. Não dava
pra viver mais no interior e ele viajava muito pra Salvador, eu não
me lembro que trabalho era que ele fazia, eu não me lembro. Eu sei
que ele viajava pra Salvador. Aí ele achou melhor trazer a família pra
Salvador.”
(Dona Elizete)
Imagem 2
Fotografia da “Vista parcial da cidade de Salvador”
(Biblioteca Universitária Reitor Macedo Costa/Universidade Federal da Bahia/
UFBA, “Vista parcial da cidade de Salvador, vendo-se o Elevador Lacerda e a Igreja
da Conceição da Praia”, 1966, série de documentação: 241, negativo: 167–6a)
“Não sei nem como é que eu devo dizer! Esse povo assim, como é!?
Prostituta!? Era prostituta que morava. E aí meu pai levou família
pra morar ni [sic] um casarão desse. Eu me lembro que minha mãe
chorava. Ela diz[ia] que não queria criar os filhos dela ali. Eu não
entendia, porque eu gostava de tudo, achava bonito, vinha do inte-
rior! Agente passeava, eu tinha na base de 6 anos, 6 pra 7 anos; e meu
irmão caçula tinha – era mais novo do que eu – tinha 5 anos. Aí nos
vivemos ali.”
Imagem 3
Foto de dona Honorina e seu Erotildes:
pose em frente à “casa do Cabrito”, nos anos 1980
(Acervo de família de dona Elizete, material coletado no trabalho de campo, 2012)
Imagem 4
Dona Honorina em uma 3 × 4
(Acervo de dona Elizete, material coletado no trabalho de campo, 2012)
“Meu pai era sapateiro, sapateiro, quer dizê: ele consertava sapato. E
minha mãe era costureira, aí ela costurava pras vizinha lá do prédio.
Ela costurava e meu pai trabalhava de sapateiro, né!? De limpar
sapato, botar meia-sola, essas coisa! E minha mãe costureira! Aí
minha mãe conseguiu um lugar pra trabalhar, pra fazer farda de tra-
balho. Aí meu pai não deixou, tinha um ciúme dela, não queria que
ela saísse, morria de ciúme.”
(Dona Elizete)
12 Ser “do prédio” aparece como marca de distinção na narrativa de dona Elizete
para caracterizar as mulheres que formavam a clientela de sua mãe naquela época.
turava as farda e levava. Isso era a vida que nós tivemos ali. Ninguém
era registrado.”
Seu Erotildes parecia temer que a esposa pudesse ser associada
às “prostitutas” que viviam e circulavam pelas ruas da Conceição
– o mesmo receio que sua esposa tinha em relação às filhas. Sapa-
teiro, pôde instalar “na Preguiça… o ponto dele, que trabalhava de
consertar sapato”. Já conhecedor dos espaços da cidade e de suas di-
nâmicas, afinal, “ele viajava muito pra Salvador”, escolheu a Ladeira
da Preguiça, próxima à residência, espaço de grande circulação e
intenso comércio à época. A Preguiça também aparece como um
lugar de memória na narrativa de alguns migrantes. Na canção do
poeta e músico baiano, Gilberto Gil (1971), a Ladeira da Preguiça
aparece como referência das lembranças e saudade de casa e de sua
gente. A partir dela, olha para outros lugares da cidade e para as prá-
ticas depreendidas por seus agentes. A Preguiça reporta-se a diferentes
sentidos – o não trabalho, a festa, descanso permanente, o descanso
paradisíaco –, que reificam aspectos identitários de uma “baianidade”
vista a partir do Recôncavo e performatizada na Cidade da Bahia.
Porém, a historiografia destaca que esse lugar, durante as primeiras
décadas do século xix, foi construído para viabilizar a ligação entre
as duas áreas da cidade: a baixa e a alta, com a finalidade de fazer
transportar as mercadorias que vinham do porto e deveriam chegar
aos diferentes pontos e abastecer a cidade. Esse trabalho, à época, era
realizado pelos negros escravizados, muitos dos quais demonstravam
resistência ao duro trabalho que era carregar grandes “fardos” de
mercadorias.
Da mesma forma que outros lugares, a Ladeira da Preguiça, em
diferentes momentos, é ritualizada e reatualizada através das lem-
branças de diferentes agentes. Salvador é uma cidade que se configura
geograficamente em duas. Entretanto, social e culturalmente, não só
de duas se configura a Cidade da Bahia, mas em muitas, muitas dessas
escondidas e invisibilizadas aos olhares dos holofotes que trazem à
cena a “cidade da festa e da alegria”.
Como deixa assinalado dona Elizete em sua narrativa, “ninguém
era registrado”, ao se referir a si e aos seus irmãos, o que era muito
comum entre as pessoas nas cidades do interior do estado da Bahia.
O “registro” (certidão de nascimento), na época, não constituía
uma obrigatoriedade para que pudessem, por exemplo, acessar o
ensino formal. Por outro lado, para acessar esse e outros serviços em
Salvador, o “registro” era um pré-requisito. Dona Honorina, uma
mulher que dispunha de conhecimentos forjados em uma educação
formal, reconhecia e queria que os filhos também dispusessem do
mesmo. Por isso, fez questão de registrá-los logo ao chegar na cidade.
Entretanto, sua mãe reafirmava que “não queria criar os filhos ali” e
seu pai “conseguiu uma casinha de aluguel no Cabrito”. A mudança
para o Cabrito possibilitou à dona Elizete deslindar outras Salvador e
construir, dessa forma, outras percepções e representações sobre ela,
como veremos na seção seguinte.
Dona Elizete: “Para o Cabrito foi de barco. Não me lembro onde foi
que o barco ancorou, não me lembro!”
Cristiane: “A senhora lembra da viagem?”
“porque quando nós chegamos uma noite, tudo escuro, só tinha mato.
E lá no interior nós morávamos na cidade. Não morava na roça.
Nós viemos de Jiquiriçá e fomos morar ali na Conceição. Dali, nós
mudamos pro Cabrito, a casa não tinha luz… Que diferença! Muito
diferente, tudo escuro!”
Dona Elizete: “Minha mãe foi logo capinando. Tinha área na casa e
ela foi logo capinando, aí plantou. Aquilo que ela colhia ela botava
pra vender: quiabo, chuchu, coentro… Ela vendia. Minha mãe foi
uma guerreira, viu! Uma trabalhadeira mesmo. Trabalhou muito.”
Cristiane: “Ela vendia por ali mesmo?”
Dona Elizete: “Era. As pessoas vendia assim nas casa, né! A gente
chamava quitanda. Aí o que ela colhia ela entregava nas quitanda. E
servia pra nossa alimentação, né? Aquilo que ela plantava. E a escola
ela tinha dentro de casa. Ela botou logo a escola e ensinava aquelas
crianças. Foi o que mais!? Quero me lembrar do Cabrito! Aos poucos
nós fomos nos acostumando, aprendendo a pegar ganhamun, a ma-
riscar – a gente ia pra maré mais meu pai mariscar –, fazia aquelas
moqueca de peixe. Aí a vida foi se abrindo pra gente … Mas tinha a
queixa de minha mãe, porque a gente morava de aluguel, não tinha
casa própria.”
Imagem 5
Dona Elizete aos 18 anos
(Acervo de dona Elizete, material coletado no trabalho de campo, 2012)
14 Nos conflitos e na disputa pela propriedade das terras que conformam o terri-
tório do subúrbio ferroviário de Salvador, figuram diferentes agentes. De um lado, a
Companhia Progresso e União Fabril, pertencentes à família Catharino, à Leste Ferro-
viária e à Marinha brasileira; de outro, as famílias que, no processo de ocupação, estão
vivendo em pequenas parcelas/lotes, frutos de compras sem documentação, invasão e
usucapião há mais de três gerações. Entre estas famílias encontra-se a de dona Elizete.
O terreno de Pirajá, onde foi construída a casa, foi comprado de um parente sem
título. A disputa entre a União Fabril e os moradores de Plataforma está há 7 anos na
justiça. Ver, nesse sentido, Antonia Garcia (2009).
Imagem 6
Foto das ruínas da antiga Casa do Cabrito
(Pesquisa de campo, 2011, foto produzida pela autora)
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Foto 1
Dona Ida Heine, Germano e Cleonice em retrato de 1927
(Redução das dimensões originais: 12 × 7,5 cm)
Foto 2
Carnaval na Escola Alemã da Vila Mariana, em 1940
(João Alt, dimensões originais: 17 × 24 cm, reprodução: 13,5 × 10,5 cm)
Foto 3
Cleonice no dia da despedida do sr Brenn, da Cia de Anilinas e Produtos Químicos,
em 30 de janeiro de 1945
(Redução das dimensões originais: 9 × 11,5 cm, Laboratório da Fotoptica)
Foto 4
O anônimo marido de dona Lina, tio das crianças Heine, em foto encontrada na
coleção Germano Heine – este personagem aparece algumas vezes, principalmente na
coleção do irmão de Cleonice
(Redução das dimensões originais: 7 × 9 cm)
4 Essa imagem é atribuída ao abade francês Louis Compte (Júnior, 2003, p.39).
5 Ao contrário destes, a produção profissional sobre a cidade dedicou-se a documentar
as transformações urbanas que, em São Paulo, se intensificaram já nas ultimas décadas
do século xix. O fotógrafo mais destacado é, sem dúvida alguma, Militão Augusto de
Azevedo, cujas imagens nos ajudam a compreender a importância do registro urbano
no processo de modernização da cidade. Sobre o seu trabalho há alguns estudos, entre
os recentes: Araujo (2010) e Campos (2007). Guilherme Gaensly foi outro fotógrafo que
produziu grande quantidade de imagens urbanas (ver Gaensly, 2011).
Figura 1
Carimbo comercial circulado em 1940, do fotógrafo João Alt
(Verso da foto 3)
Foto 5
Cleonice, a terceira mulher à direita, com duas amigas andando em rua do Centro da
cidade; à sua direita, o sr Conrado Velloso de Sousa Filho, inicialmente colega de tra-
balho, e mais tarde, seu patrão, 1939
Foto 6
Cleonice em praia não identificada em Santos, 1929
(Dimensões: 6,5 × 11 cm, papel Velox)
6 Famoso fotógrafo alemão nascido em 1827, em Berlim, e que fundou sua primeira
loja em São Paulo em 1882, ano de sua morte. O estabelecimento chamou-se Photo-
graphia Imperial.
Foto 7
Cleonice, à direita, sorrindo junto à família Sousa na Praia José Menino entre os dias 5
e 15 de dezembro de 1942
(Ampliação das dimensões originais: 6,5 × 9 cm, revelação: Papelaria LÉO, papel Agfa
Lupex)
Foto 8
A orla da praia de Cidade Ocian vista do apartamento do sr João Velloso, em 1959
(Ampliação das dimensões originais: 8,5 × 11 cm)
8 É possível que com a revolução digital esses interditos tenham se modificado, até
porque neste caso não há mais o processo de revelação, então um serviço que poderia
impor constrangimentos.
Foto 9
Cleonice no apartamento em Cidade Ocian, Praia Grande, em 1959
(Redução das dimensões originais: 8,5 × 13,5 cm)
Foto 10
Cleonice no caminho para a cachoeira grande, em Serra Negra, 1943
(Dimensões: 6 × 9 cm, papel Agfa Lupex)
9 Quem conseguiu captar a tensão que se estabeleceu entre doentes e turistas na-
queles anos foi Oracy Nogueira. Como afirma uma mulher tuberculosa por ele
entrevistada: “Esses sãos têm o mundo todo para passear. Nós somente podemos viver
neste pedacinho de terra. No entanto, eles vêm justamente aqui para nos fazer concor-
rência e nos causar dificuldade!” (Nogueira, 1950, p.37)
Foto 11
Cleonice, à extrema esquerda, com parte da família Velloso no Hotel Toriba, Campos
do Jordão 1955
(Ampliação das dimensões originais: 6 × 9 cm, papel Leonar)
Tabela 1
Cronologia extratificada
Foto 12
A coleção CMH em processo de organização, meados de 2010 (foto do autor)
Considerações finais
Acervos consultados
Referências
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2010
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Posfácio
Imagem,
sopro de um abismo narrativo
Fabiana Bruno
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