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Recensões. Sapiens: História, Património e Arqueologia.

[Em linha]. N.º 3/4 (Dezembro 2010), p. 164‐168. URL:


http://www.revistasapiens.org/Biblioteca/numero3_4/recens
oes_universidade_sem_condicao.pdf

DERRIDA, Jacques – A Universidade sem condição.


Coimbra: Angelus Novus, 2003. 112 pp. ISBN: 972‐8827‐
15‐6.

Jacques Derrida nasceu em El Biar, na Argélia, a 15 de Julho de


1930 e morreu em Paris a 8 de Outubro de 2004. Autor de
várias obras, defensor da desconstrução, foi um dos filósofos
contemporâneos mais importantes da Europa.
A obra que recenseamos, uma tradução da Prof. Doutora
Fernanda Bernardo, da Universidade de Coimbra, publicada
pela Angelus Novus, em 2003, foi originalmente publicada em 2001. Trata‐se de uma obra em
que se verifica o culminar de longas reflexões sobre a Universidade e sobre os
condicionamentos de pensamento a que muitas vezes estas instituições se encontram
“amarradas”. A Universidade é reflectida, nesta obra, através do processo da desconstrução,
conceito atribuído a este autor, embora a noção de desconstrução tenha surgido um pouco
antes (Edmund Husserl). Efectivamente, Jacques Derrida entende que a desconstrução está
bem longe de ser um discurso teórico. Antes pelo contrário é, para este pensador, tudo aquilo
que acontece no mundo. A desconstrução está em curso e toda a História do Mundo se
desconstrói por si mesma. Este pensamento leva, inevitavelmente, à interrogação de tudo: da
História, do homem, do conceito e da própria Universidade. É nesta linha de pensamento que
Derrida reflecte a Universidade: esta tem de ser desconstructiva, no sentido de ter o direito
incondicional de colocar questões críticas. De facto Derrida faz uma profunda reflexão sobre a
Universidade, defendendo que esta deveria ser o lugar por excelência do exercício de uma
liberdade incondicional de questionamento e proposição e o local onde se professa um
comprometimento sem limites com a verdade. Esta é a “profissão de fé”, de que Derrida parte
para uma série de reflexões sobre as ideias de profissão, trabalho, ofício, e um inabalável apelo
à universidade e, através dela, às Humanidades de amanhã.

SAPIENS – Revista de História, Património e Arqueologia, n.º 3/4, 2010


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Das Humanidades, porque tudo o que diga respeito à questão e à história da verdade
na sua relação com a questão do homem e do direito do homem deve ter o seu lugar de
discussão incondicional, o seu local de trabalho, na universidade e, aí, nas Humanidades.
Porque é aí que se tem acesso a um novo espaço público transformado pelas técnicas de
comunicação, informação, arquivo e produção de saber. Mas Derrida também alarga o
conceito de Humanidades, deixando de lado o conceito conservador e humanista ao qual se
usa associar o Humanismo e os seus cânones antigos para incluir o direito, as teorias da
tradução, aquilo a que se chama “theory” na cultura anglo‐saxónica, ou seja, teoria literária,
filosofia, antropologia, psicanálise, etc, e, em todos esses lugares, as práticas
desconstrutivistas.
Derrida diz‐nos que esta Universidade sem condição deveria partir de uma resistência
incondicional de tudo questionar – o que levaria a uma oposição a um grande número de
poderes, de Estado, económicos, ideológicos, religiosos, culturais, etc. – onde nada pudesse
ser isento de ser posto em questão, nem sequer a ideia de democracia, a ideia de crítica
teórica, e do pensamento como “questionar”.
Mas porque ligar a Universidade à Profissão? Porque, através da história do trabalho –
nas suas varáveis de ofício, profissão, professor – o autor deseja associar a universidade sem
condição a um penhor, um compromisso, a uma profissão de fé, Na universidade esta
“condição” articula a fé com o saber.
A ideia base na Profissão é a ideia de crença, de professar, é a ideia de fé, fé na
responsabilidade ética. A fé aqui é o sinónimo da confiança no outro, confiança que todos nós
devemos ter. É crer no outro sob palavra. Não é uma fé dogmática, mas é a fé no outro que é
outro, é a condição da relação social, sendo que esta condição da relação social é também a
condição da própria Humanidade.
Derrida diz‐nos que a profissão tem na sua origem esta ideia de professar, este
compromisso sem papel, este mero compromisso na palavra dada ao outro. A profissão
pressupõe uma espécie de juramento, de confiança, um juramento na competência, na
responsabilidade, no exercício desse saber. Profissão é saber e um compromisso incondicional
que a profissão implica, lembrando‐nos o princípio de responsabilidade, o ético, o justo que
subjaz, inspira, que dita, ou deve ditar o exercício de qualquer profissão.
Professar é, pois, comprometer‐se declarando‐se, dando‐se por, prometendo ser isto
ou aquilo; não somente ser isto ou aquilo, mas comprometer‐se a sê‐lo.
Derrida faz algumas considerações sobre o trabalho, alertando para o facto de que
nem toda a acção, nem toda a actividade é trabalho1 e que é necessário distinguir entre

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trabalho social em geral, ofício e profissão. Geralmente, fala‐se por excelência da profissão de
médico, advogado, etc., como se a profissão implicasse o comprometimento de uma
responsabilidade livremente declarada e como que sob juramento, ou seja, professada: no
fundo, um compromisso a manter, a declaração de responsabilidade. Cabem então aqui, neste
seu discurso, todas as profissões: as mais antigas e as mais recentes. A profissão de gestor
cultural, de gestor do património cultural, de gestor de bens históricos, de museólogos. A estas
profissões, tal como às outras, assiste obrigatoriamente a dualidade do profissional ser um ser
humano indissociável do profissional. Não pode haver lugar a um ser que ao assumir‐se como
profissional “dispa” a pele da sua humanidade.
A ideia de profissão supõe também que, para lá do saber, do saber‐fazer e da
competência, um compromisso, uma liberdade, uma responsabilidade ajuramentada, uma fé
jurada, obrigam o sujeito a prestar contas diante de uma instância a definir2.
O autor utiliza frequentemente uma frase Como se, diz, o fim do trabalho estivesse na
origem do mundo. E dá‐lhe diversos sentidos. O “como se” traduz uma dimensão de ficção,
uma dimensão de virtualização do próprio princípio incondicional. Ele não existe como tal, ele
não é real, ele não se traduz, não se trai linguisticamente ou discursivamente, ele está
presente como um espírito (ver “Spectres de Marx” do mesmo autor), como um espírito da
justiça, como um espírito da invenção, da melhoria com uma insatisfação de tudo isto.
Ninguém pode dizer, “eu sou responsável”, “eu sou humano”, “eu sou ético”, “eu sou um bom
profissional”, porque, sê‐lo é desejar sê‐lo a cada instante.
Mas o conceito de trabalho está impregnado de sentido, de história e de equívocos, e é difícil
pensá‐lo para além do bem e de mal, pois está associado à vida, à produção, à história, ao
bem, à liberdade, mas também ao mal, ao sofrimento à servidão3.
Derrida utiliza a expressão “fim do trabalho” emprestada de um livro de Jeremy Rifkin, e sobre
o que este chama a “terceira revolução industrial”, que “tanto poderia ser utilizada para o bem
como para o mal”, na medida em que as novas tecnologias da informação, tanto podem ser
utilizadas para libertar, ou, antes pelo contrário, desestabilizar a própria civilização. Rifkin
acrescenta ainda que cada vez será preciso menos trabalhadores para produzir bens e serviços
destinados à produção do planeta e que o fim do trabalho tem a ver com as inovações
tecnológicas e com o economicismo que nos empurram para os começos de um mundo sem
trabalhadores, ou quase4.
Concorde‐se ou não com este discurso, Derrida atenta que algo de grave, de facto, está a
acontecer ao que se chama “trabalho, teletrabalho, trabalho virtual”, bem como àquilo que

2
P. 47.
3
Cf. p. 51.
4
Cf. pp. 52‐53.

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chamamos “mundo” – e, portanto, ao homem. E que tal depende de uma “mutação


tecnocientífica”5, que afecta este novo mundo tecnológico, e simultaneamente a transmissão
do saber, toda a comunidade e do que advém6.
Depois das duas primeiras revoluções industriais – carvão, aço, têxtil/electricidade, automóvel
– que ainda deixaram trabalho humano disponível, não substituível pela máquina – a presente,
do ciberespaço, da robótica, pressagia uma saturação pelas máquinas que anunciaria o fim do
trabalhador e, logo, um certo fim do trabalho. Enquanto a agricultura, a indústria e os serviços
enviam milhões de pessoas para o desemprego, a única categoria poupada seria a do “saber” –
cientistas, técnicos, intelectuais etc., que não absorvem a massa dos desempregados. Ou seja,
algo aconteceu neste século ao trabalho, à realidade e ao conceito de trabalho, efeito
indiscutível da tecnociência, com a virtualização e a deslocalização mundializante do
teletrabalho, afectando o trabalho nas suas formas clássicas. Num mundo marcado pela
desigualdade no mercado de trabalho, onde uns carecem de trabalho e outros trabalham
excessivamente é, em termos absolutos, a situação mais trágica na história da humanidade7.
Derrida recua ao século XIV e a Jacques Le Goff, onde demonstra que estariam aí as premissas
de um direito do trabalho e ao trabalho, mais tarde inscritas nos direitos do homem e onde já
coexistiam as reivindicações pelo alargamento e pela redução da duração do trabalho.
Na última parte da obra, Derrida reitera que as Humanidades de amanhã deveriam em todos
os departamentos estudar a sua história e a história dos conceitos que as instituíram e anuncia
sete teses ou sete profissões de fé.
Por fim, Derrida afirma que a Universidade sem condição não se situa necessariamente nem
exclusivamente nos precintos do que hoje se chama a universidade, mas sim em todos os
lugares onde essa incondicionalidade possa enunciar‐se, em todos os lugares onde ela, talvez,
se dê a pensar8.
A Universidade é onde este princípio da incondicionalidade não só se deve ensinar como se
deve exercer e praticar, mas podemos talvez extravasar esta incondicionalidade para a
instituição geral, para o instituído e mesmo para o princípio que talvez deva inspirar as nossas
profissões: a própria gestão, a própria programação, a própria conservação, o próprio
restauro. Colocar questões às instituições onde trabalhamos, nomeadamente, museus,
câmaras municipais, institutos, bibliotecas, etc.
Não só a Universidade é colocada em questão contínua, bem como a profissão, na acepção
que temos vindo a enunciar. Como nos diz Fernanda Bernardo no posfácio, é a desconstrução

5
Cf. p. 53.
6
Cf. pp. 53‐54.
7
Derrida menciona que as responsabilidades a tomar perante esta situação que Rifkin menciona
terão de ser sujeitas a exame: linguagem cristã da fraternidade, sentido para a vida, etc., p. 57.
8
P. 73.

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da Universidade na própria Universidade em nome de uma outra “ideia” de Universidade e por


uma Universidade por vir.9 Ou não fosse Derrida aquele que confessa não ter nunca amado
senão o impossível.
Anabela Guimarães

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