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57.01 año 14, jun.

2013

A dinâmica do espaço na habitação mínima


Pedro António Fonseca Jorge

Conceito

A definição de ‘dinâmico’ divide-se em vários métodos para diversificar


um espaço que à partida é contido. A noção de ‘mínimo’ não se resume à
restriçãode área útil, mas quando o espaço é limitado, esforços foram
feitos para que essa realidade fosse contornada. Entende-se a dinamização
do espaço como o conjunto de processos utilizados para dissimular a
frieza da fita métrica, criando a ilusão de um espaço mais vasto através
da sua versatilidade.

Dada a multiplicidade de soluções possíveis optou-se por debater no


presente artigo o modo de relacionar os diferentes espaços da casa de
modo a que tenham utilidade variável.

O presente estudo resultou de um estudo mais alargado, que abarcou cerca


de 200 modelos de habitação subsidiada edificados ou concebidos no
decorrer do século XX, e a partir dos quais se selecionaram os presentes
para ilustrar o modo como o recurso a determinados artifícios pode
aumentar sensorialmente ou fisicamente um espaço regra geral reduzido.

1. Privar/Privatizar/Versatilizar
Um dos denominadores comuns das propostas avaliadas é a de possuírem
espaço condicionado:para além da área reduzida, esta condição implica na
versatilidade com que se usa o espaço domésticomas também no tipo de
serviços oferecidos. É corrente vermos associadas certas utilidades a
desafogo económico, mas que,sem ser luxos, sãoconfortáveis por permitirem
a não sobreposição de usos ou a simultaneidade dos mesmos. Uma lavandaria
evitaria o uso da cozinha no processo de tratamento da roupa, uma casa de
banho (banheiro) de serviço liberaria a principal de usos ligeiros
durante o período dos banhos, rentabilizando o espaço destinado a um
número limitado de pessoas. Neste caso estamos não só a contabilizar área
adicional, mas acabamentos e peças sanitárias adicionais, etc.

Ao longo do tempo foram sendo executadas algumas experiências que visavam


contornar este óbice, tentando proporacessos, compartimentações e zonas
que aumentassem a privacidade dos espaços. Trata-se de simular
artificialmente uma área ou orçamento de que não se dispõe, sobrepondo
funções num curto intervalo de tempo.

1.1. Instalações Sanitárias

A casa de banho (banheiro) é das divisões da casa que obrigatoriamente


todos os membros do grupo doméstico usam, na maior parte das vezes em
horários similares, e em que se sente mais facilmente a sobrepovoação da
célula habitável.

1.1.1. Individualização da sanita (vaso sanitário): um dos processos mais


comuns para o uso simultâneo das instalações sanitárias consiste na
separação da sanita das restantes peças, podendo fazer-se uso desta
enquanto noutro espaço se toma banho, faz a barba, etc. Consiste, por
exemplo, numa solução enraizada na cultura francófona, mesmo na habitação
tradicional: Le Corbusier (1887 – 1965) faz uso desta na Unidade
Habitacional de Marselha (1947 – 1952), ainda que as instalações
sanitárias se dupliquem: a sanita e a banheira possuem um espaço próprio,
mas existe ainda um chuveiro num espaço anexo e um lavatório em cada um
dos quartos secundários. Na Unidade Habitacional de Nantes (1952 – 1953),
de área bastante mais reduzida, escusam-se a banheira e os lavatórios
privados, permanecendo a sanita única.

Unidade Habitacional de Nantes (1952 – 1953), Le Corbusier (1887 – 1965)

Legendas
Grivegnée (1953), Charles Carlier

É uma solução que se encontra ligada à definição clara deespaços públicos


e privados. A sanita é uma peça que pode ser usada por elementos
estranhos ao grupo doméstico, enquanto a banheira e o lavatório consistem
em espaços de uso exclusivo dos habitantes da célula. Não é por isso
estranho que a primeira peça se associe à entrada, como em Grivegnée
(1953): Charles Carlier coloca a sanita ‘à disposição’ do público, mas
remete as restantes peças para a zona dos quartos, definida como área
privada/nocturna.

1.1.2. Desconstrução: este processo de separação é levado mais além,


sendo proposta por alguns a individualização de todas as peças
sanitárias. Esta solução é usada por Van denBroek (1898 – 1978) e Bakema
(1914 – 1981) em Overschie (1957) (que dispõem cerca de metade da área
bruta de Corbusier: 66m2face aos 126m2da Unidade Habitacional de
Marselha) mas constitui neste caso nas únicas instalações sanitárias e
não um complemento das principais.

Embora tenham participado na sua revisão, são considerados como


‘expoentes do Movimento Moderno’ (1), o que se manifesta no cuidado com
que a planta é elaborada preservando o espaço privado. A separação
funcional está ligada à disposição das peças sanitárias, pois os quartos
possuem dois lavatórios privados e um chuveiro apenas acessível por estes
(permitindo um percurso circular da casa), estando apenas a sanita à
disposição de família e convivas. Pouco importa que os quartos abram para
o hall de entrada ou para a sala pois tudo o que é funções íntimas se
realiza dentro dos mesmos.

Overschie, 1957, Van den Broek (1898 – 1978) e Bakema (1914 – 1981)
Complexo Zezinho Magalhães Prado, 1968, Fábio Penteado (1928), Vilanova Artigas
(1915 – 1985) e Paulo Mendes da Rocha (1928)

Kitagata (1994 – 1998), Kazuyo Sejima e Ryue Nishizawa

Em 1968, Fábio Penteado (1928 - 2011), Vilanova Artigas (1915 – 1985) e


Paulo Mendes da Rocha (1928) apresentam no Complexo Zezinho Magalhães
Prado, em São Paulo, uma solução que consiste em separar o lavatório das
restantes peças, colocando-o num espaço que as antecede. Como não é um
espaço encerrado, permite uma utilização livre e o acesso à sanita e
chuveiro em qualquer circunstância. Em Kitagata (1994), o gabinete SANAA
(2) faz evoluir este conceito, tornando independentes a sanita e o
chuveiro, permanecendo o lavatório no espaço de circulação (embora de
forma muito mais exposta e talvez menos conseguida).

Van den Broek e Bakema resumem a melhor síntese do conjunto, ao proporem


um espaço privado controlado, versátil e contido em área, evitando áreas
de distribuição adicionais, o que se revela fundamental quando se dispõem
de uma área útil de 57m2para albergar um apartamento com dois quartos.

1.2. Zonas Comuns

Uma das principais diferenças entre o espaço comum e o privado de uma


casa consiste no facto do segundo ser constituídopor um somatório de
unidades independentes. Face ao comum, em que as unidades que o
constituem não se encerram e não têm um acesso limitado ao
‘proprietário’, os quartos da casa constituem um reduto íntimo em que a
entrada é condicionada. Não é de estranhar que o espaço comum seja
território de maior experimentação, porque é mais fácil unir espaços ou
intercomunicá-los. No entanto, o tipo de trabalho efetuado sobre a sala
(living)/cozinha dependeu igualmente das características próprias de cada
população, que se pretendeu rever nas propostas.

1.2.1. Passar pratos…: a mulher como operária, minimização do tempo


passado em casa, refeições ‘pré-fabricadas’: pormenores que levaram á
consideração da cozinha como um espaço menor, eliminando as suas
características sociais de convívio entre grupo doméstico e outros. Esta
postura encontra eco no Moderno, mas é em Alexander Klein (1879 –
1961)que encontramos uma aplicação mais direta deste princípio:
BadDürrenbergapresenta uma sucessão de Tipos que vão desde o T2 para 3
pessoas até ao T3 para 6 pessoas em que a cozinha é a mesma (aumentado
apenas a área nesta última proposta): o princípio é o de que a cozinha
apenas se destina a preparar as refeições, função desempenhada por uma
única pessoa, independentemente do número de comensais. A Sala Comum é
favorecida, pois o aumento da área verificado no Público beneficia esta:
de acordo com o Tipo, a sala inicia-se como 19m2, aumenta para 25m2,
26m2, culminando nos 34m2para, respectivamente T2/3, T2/4, T3/4 e T3/6
(3). O contacto entre a cozinha e a sala era realizado por um passa-
pratos, reforçando o carácter laboratorial e oculto do espaço.

Célula ‘C2’. Bad Dürrenberg (1928), Alexander Klein (1879 – 1961).

Célula ‘C9’. Bad Dürrenberg (1928), Alexander Klein (1879 – 1961).


Célula ‘C7’. Bad Dürrenberg (1928), Alexander Klein (1879 – 1961).

Célula ‘C16’. Bad Dürrenberg (1928), Alexander Klein (1879 – 1961)

Cozinhar em Frankfurt: o expoente desta idealização foi a ‘Cozinha de


Frankfurt’, desenvolvida a partir de 1926 por Margarete Schütte-Lihotzky
(1897 – 2000) e usada por Ernst May (1886 – 1970) na ‘Nova Frankfurt’,
conjunto de novos bairros nos quais foram utilizados os princípios do
‘Existenzminimum’. Este seria o tema do segundo congresso dos CIAM,
destinado a definir parâmetros mínimos de dignidade habitacional, focando
aspectos práticos como a salubridade ou insolação, mas também psíquicos,
do Homem. Científica, prática e depurada, a cozinha de Frankfurt
consistia num modelo prefabricado destinado a sair da fábrica
directamente para o canteiro da obra.

Cozinhar em Marselha: Corbusier faz perdurar este Tipo nas suas unidades
de habitação, mas interpretado de modo mais aberto: o balcão fronteiro à
cozinha e à sala possui uma abertura confortável e a parte superior do
mesmo consiste numa prateleira de fácil acesso. Melhora-se o contacto
entre os convivas, no que consiste numa evolução da cozinha
funcionalista: esta considera a preparação das refeições um acto único e
intervalado, que antecede o consumo, enquanto Corbusier admite que a
preparação faz parte do convívio, antes, durante e depois da refeição.

1.2.2. Passar pessoas…: o processo acima descrito tem ainda fortes raízes
funcionalistas, postura queesquecia um pouco a humanidade do habitante.
As suas necessidades de relacionamento eram descuradas num ideal de vida
asséptico, em que o objetivo era o ‘necessário’ e não o possível. Talvez
como reacção, talvez como reflexo de um modo de vida enraizado, outros
processos existem de tornar mais franca a relação entre cozinha e sala,
ou seja, entre as pessoas.

O corredor garante na maior parte dos casos o acesso directo a todas as


divisões da casa, mesmo que se desdobre em dois espaços de modo a
controlar o acesso aos quartos. Casos há em que se incluem os espaços de
circulação na zona da sala, o mais ‘público’ dos espaços e cuja área
surge visualmente ampliada. Mas é sempre possível acesso adicional entre
cozinha e sala, resultando num percurso circular em que se acede de
diversas formas a estas: a sua função é a de tornar mais directo o acesso
à sala ou ampliar sensorialmente o espaço através de uma abertura ampla.
Não se trata de uma mera porta, pois pode ser pequena, ampla ou ausente,
e também que tipo de sala liga a que tipo de cozinha, ou que espaço da
sala liga a que espaço da cozinha. Cada uma destas soluções esconde uma
raiz cultural que revela o tipo de relações que estabelecem familiarmente
ou entre conhecidos e que ganharam o seu lugar após a tentativa de
homogeneização do espaço à escala internacional. Não se trata da
recuperação do modelo burguês de habitar, muito embora a mobília de sala
de jantar para (raras) ocasiões especiais permaneça um hábito muito
enraizado entre os países do sul da Europa(onde funciona como dispositivo
de representação).

Após o apogeu do Moderno nos anos anteriores à Segunda Guerra Mundial,


nos anos 50 começam a sentir-se algumas mudanças. No geral afectaram toda
a concepção da arquitectura, mas, em particular, o espaço doméstico
começa a ser mais sensível às pessoas e às suas raízes.

Comer a norte: diversos exemplos suportam a existência de diferenças


entre os modos de vida a norte e a sul da Europa. Pode dizer-se que
existe uma certa amenização dessas diferenças nas zonas centrais ondeduas
influências, mediterrânica (e atlântica) e nórdica tendem a confluir.

O modo de vida mais liberal dos nórdicos induziu a relações menos rígidas
entre os espaços da casa. No espaço comum da célula, onde se procura
interligar os espaços, começa a desenhar-se um Tipo queparece ser popular
no final dos anos 1950: uma cozinha corredor, perpendicular á fachada,
com uma zona para mesa junto desta, aberta para a sala de estar.Nuno
Portas identifica este Tipo (4), mas refere também que na Suécia é comum
guardar este espaço para refeições correntes, adicionando uma mobília de
jantar mais formal na sala comum (5).

Exemplaressão os apartamentos de Alvar Aalto (1898 – 1976) para a


Interbau, em Hansaviertel, Berlim (1957). A proposta consiste numa
cozinha estreita com uma bancada lateral, acessível desde o hall de
entrada, e que culmina numa zona de refeições junto das janelas. Esta
contacta com uma varanda grandes que também se abre para a sala comum.
Ainda em 1957 Kaija e HeikkiSiren(1920 – 2001; 1918 – ?)fazem uso do
mesmo Tipo em Otaharju, mas com um segundo balcão de cozinha aberto para
a sala. A amplitude destas aberturas sublinha o aspecto convivial do
espaço comum, mas também deriva do facto destes edifícios consistirem em
alojamentos para professores universitários, temporáriose menos
circunspectos. E talvez por isso Nils Lonnroth reduza as aberturas a uma
porta em Forshagagatan (1959), mantendo contudo o duplo acesso à cozinha
a partir do hall de entrada e da sala de estar. Em nenhum destes casos se
exclui a possibilidade de haver um espaço de refeições mais formal nas
salas, dado que a dimensão destas o permite. O mesmo se sucede em
Leninova Trida (1974), de Joseph Polak, na República Checa, onde apenas
uma parede separa cozinha e sala.

Aparentada a esta solução é a de Nyem, em Finspäng, na Suécia (1970) (6),


onde a cozinha é central, situando a sala de estar na fachada oposta da
zona de refeições. Parecendo apenas uma deslocalização da sala acaba por
parecer uma sala de jantar assumida, apenas pertencendo à categoria acima
porque não existe limite físico entre refeições e preparação.

De referir quea solução em ‘kitchenette’ nunca foi encontrada nos Modelos


recolhidos, sendo preterida a favor de soluções queresguardam a cozinha,
mesmo que esta se veja reduzida ao espaço do balcão e um corredor
paralelo, como emComasinaNord (1957), Milão (7).

Hansaviertel, (1957), Alvar Aalto (1898 – 1976)

Otaharju (1957), Kaija e HeikkiSiren (1920 – 2001; 1918 - ?)


Forshagagatan (1959), Nils Lonnroth

Leninova Trida (1974), Joseph Polak


Nyem, Bertil Engstrand e Hans Speek

Barrio Comasina Nord, Attilio Mariano e Carlo Perogalli

Comer a sul: no Pós-Guerra italiano o ‘retorno’ a modos de vida mais


convencionais induziu à escolha de sistemas organizativos onde a cozinha
surge como um local privado face a elementos externos. Outras derivações
consistem no ‘nicho’ para a cozinha com uma zona de refeições anexa
(Sorgane, Florença, 1968, por Leonardo Savioli, (1917 – 1981/82), ou
ainda a cozinha espaçosa com espaço de refeições integrado, solução mais
tradicional (Tiburtino Est, Roma, de Federico Gorio), datado de 1952.

Esta passa por ser a situação exemplar do período em causa, mas no


entanto foi igualmente realizado um esforço para fazer evoluir este Tipo
doméstico, que se caracterizava por definir limites precisos entre
utilitarismo e formalidade. Se a cozinha era refúgio de muitos labores,
pretendeu-se a determinado momento criar um espaço de uso indiferenciado
onde se pudessem realizar actividades domésticas desligadas do acto de
cozinhar. Cria-se o lavoro, ‘espaço não convencional destinado às tarefas
domésticas, que frequentemente se impunha como centro organizativo do
fogo’ (8). Um exemplo o Núcleo Noncello, 1964, de Giulio Brunetta (1906 –
1978), onde no ‘lavoro’ entre a cozinha e a sala comumseriam realizadas
as tarefas domésticas, que não sendo do âmbito privado individual,
permaneciam privados face às visitas e aos espaços de representação por
estas acedidos: uma pequena mesa de trabalho, uma tábua de passar a
ferro, e claro, a mesa de refeições diárias.

Sorgane (1968), LeonardoSavioli (1917 – 1981/82)

Tiburtino Est, Federico Gorio


Núcleo Noncello (1964), Giulio Brunetta (1906 – 1978)

Massarelos (1994), Francisco Barata Fernandes (1950)

1.2.3. Passar por…: Espaço de convívio entre família, grupo doméstico e


elementos exteriores ao grupo, a sala permite não ser um espaço
totalmente encerrado, adicionando circulações que permitem criar desafogo
visual. A pertinência desta solução encontra-se ligada a modos de vida
menos formais: Nuno Portas desaconselha esta solução, referindo-a mesmo
como incompatível com a entrada da casa por não oferecer resguardo da
vida privada da família (9). Mas é possível contornar esta situação,
oferecendo um hall de entrada, com possibilidades de encerramento, e o
corredor integrado na sala, à semelhança da Cooperativa de Massarelos de
Francisco Barata Fernandes.

A nível das aspirações das populações, o desejo de uma casa burguesa


nascia da comparação das suas vidas com a dos mais abastados. As casas
operárias ou rurais consistiam num espaço único onde se desenvolviam
todas as actividades, sem privacidade ou conforto, enquanto a casa
burguesa, dividida em espaços consoante os usos, com espaços de aparato e
zonas recatadas, se manifestava como um desejo legítimo.

Mas foi a planta livre que permitiu maior desenvolvimento, pois a


distribuição da casa deixa de obedecer a uma ordem ritmada pelos
elementos de suporte. O aproveitamento intencional deste benefício foi
demonstrado por Mies van der Rohe (1886 – 1969) em Weissenhof, exposição
da DeutscherWerkbund (1927). Sem um cliente específico, serve-se desta
valência para variar paredes, portas e espaços para produzir várias
modalidades do espaço. A comunicação entre estes é favorecida, com
cozinhas, salas ou quartos a terem mais do que uma entrada. A sala é
espaço de circulação, em muitos casos, mas Mies amplia esse carácter
também aos quartos, o que se revela numa solução possível num T1, mas
improvável num T2.

Bahnhofstrasse, (1992), Florian Riegler e Roger Riewe


Schlesischestrasse (1994), Hilde Léon e KonradWohlhage

Actualmente têm sido preferidos esquemas que favoreçam a independência da


sala, porque a ambiguidade que na contemporaneidade se pretende atribuir
aos espaços de permanência da casa assim o induz: para que uma sala se
possa transformar num quarto, é necessário que a sala possa oferecer o
nível de privacidade/conforto que oferece o quarto comum. Se deste se
quiser fazer um escritório ou uma sala, não é necessário produzir
alterações na sua estrutura, já o inverso não é verdade. Assim sendo, em
prol dessa ambiguidade pretendida, a sala encerra-se, ainda que possuindo
portas/paredes de correr, que ‘versatilizam’ o seu uso.

Florian Riegler e Roger Riewe concebem em Bahnhofstrasse uma planta


modulada que sugere a livre apropriação dos espaços: a localização do
balcão da cozinha define o espaço de refeições contíguo, mas a zona de
estar pode encontrar-se contida neste espaço ou junto da fachada oposta.
Este espaço pode ainda vir a ser um quarto porque existem dispositivos de
encerramento que o tornam independente.

Hilde Léon e Konrad Wohlhage defendem o mesmo, mas aplicam-no de forma


menos evidente em Schlesischstrasse: no T3 é oferecida uma sala
‘encerrada’ que é de dimensões similares ao quarto no extremo oposto, o
que significa que podem ser intercambiáveis.

1.3. Espaços Privados

Como dispositivo de adição de funções ao espaço (mas não de substituição,


como no ponto 3) podem estabelecer-se relações entre os quartos que
compõem o fogo. São raros os modelos onde se pode dizer que existe esta
intenção de providenciar mais um uso ao quarto, pois implica com o espaço
privado do seu ocupante: alterar a função deste implica ‘expulsar’ o seu
inquilino, para que se possa ocupar o seu espaço com outra actividade.

Há a possibilidade de complementar o uso do quarto através de actividades


que possam ser exercidas por ambos (ou mais) ocupantes de dois quartos
durante um período de tempo que não se sobreponha à função de dormir.
Nuno portas fala da incompatibilidade entre ‘dormir/descanso pessoal’ e o
‘recreio das crianças’ (10), mas o facto é que estas não têm de se
realizar simultaneamente, e é também o próprio que afirma que os quartos
deveriam ser dotados de uma zona de expansão ‘como na Unidade
Habitacional de Marselha’ (11) (Figura 5I).

Este exemplo oferece uma porta de correr que une os dois quartos
secundários. Mais do que providenciar uma passagem pretende-se criar um
espaço de brincar comum, mantendo o carácter recolhido da zona destinada
à cama.

O já referido projeto de Bahnhofstrasse, de Riegler/Rieweusa duas portas


de correr em todos os espaços da casa. Possuem a dimensão de uma porta
normal, e estabelecem uma relação dinâmica entre espaços comuns e
privados, e não apenas entre espaços privados. Este seria o caso se a
sala de estar fosse usada como quarto, o que de resto é possível, pois a
lógica que dita as propostas contemporâneas é precisamente a ambiguidade
dos espaços.

1.4. Desvios

Propostas há que sobressaem pela sua singularidade, não pelo seu carácter
extremo ou experimental, mas por pequenas características que não
influenciam o carácter ‘vivível’ da célula (o que não é o caso de
determinadas utopias).

Uma solução curiosa é a de fornecer um acesso suplementar à casa de


banho, através da… cozinha. Pouco usual, esta proposta parece não ter
feito escola, pois apenas se encontra presente em dois Modelos
levantados, e separados por quase vinte anos. Otaharju, em 1957, cruza as
instalações sanitárias por um percurso que vai do hall de entrada à
cozinha, e em Leninova Trida, de 1974, de Joseph Polák faz o mesmo,
embora torne a sanita num espaço independente. Em ambas as células
recorre-se ao já referido Tipo nórdico que oferece a zona de refeições na
terminação da cozinha, com uma abertura ampla para a sala. Contudo,
nestes casos, essa abertura consiste no único acesso á cozinha, não
havendo uma entrada ‘principal’, como em Hansaviertel. Talvez por isso se
tenha considerado um acesso suplementar à cozinha, de modo a favorecer a
dona de casa durante as tarefas domésticas, mas parece mais bizarro no
caso de Polák, em a sanita se encontra separada: apenas se faz acesso ao
lavatório (e banheira), num uso que pode ser desempenhado pela pia da
loiça.
Otaharju (1957), Kaija e Heikki Siren

Leninova Trida (1974), Joseph Polak

1.5. Concluindo

O artigo apresentado, tal como foi referenciado, nasce da análise de


cerca de 200 casos de estudo de habitação social ou subsidiada. De acordo
com os modelos estudados foram 'sugeridos' temas a desenvolver de acordo
com as características físicas do mesmo. No presente caso, optou-se por
apresentar as soluções empregues nos modelos para tornar o espaço menos
estático, privilegiando um uso multiplicado de determinadas áreas da
casa. Com isto pretendeu-se contornar a área diminuta, através de
soluções que ao longo do tempo mostraram a sua pertinência, e outras que
foram abandonadas.

Dentro da mesma análise, outros temas foram sendo sugeridos (como por
exemplo o modo como a organização da casa manifestava a estrutura
familiar, real ou idealizada) que se formalizaram numa Tese de
Doutoramento ('A Célula Mínima na Experiência da Habitação de Custos
Controlados', Pedro Fonseca Jorge, Faculdade de Arquitetura da
Universidade do Porto, 2012). O fundamento deste trabalho não consistiu
em estudar habitação social para fazer habitação social, mas sim produzir
uma análise do século XX no âmbito do habitar (grande território de
experimentação), 'descobrindo' soluções empregues por variados autores
(conhecidos e desconhecidos na História 'oficial' da Arquitetura). Na
verdade, o objetivo subjacente foi o de encontrar soluções espaciais que
pudessem ser também usadas na habitação corrente, menos restringida no
espaço e no custo. Consequentemente, produzir casas mais racionais na
distribuição social e dotadas de mecanismos que se adaptassem a soluções
atuais.

Num momento em que a família já não é a estrutura do grupo doméstico que


habita a casa torna-se fundamental analisar exemplos, atuais ou
precedentes, que permitam tornar versátil o espaço, adaptando-o a
necessidades que se vão alterando em curtos espaços de tempo: a
coabitação entre conhecidos ou desconhecidos é um exemplo contemporâneo,
situação que se pode alterar rapidamente, caso a situação financeira do
habitante o permita (por exemplo) ou o grupo doméstico se altere (de
coabitação para matrimónio, aumento do número de familiares). Permitir
essa alteração sem grandes esforços tornou-se por isso uma premissa
maior.

Finalmente, no cerne deste artigo e do estudo mais alargado em que se


insere pretendeu-se demonstrar que a História não está morta, oferecendo
um catálogo de soluções úteis na atualidade (mesmo que no tempo em que
foram idealizadas se revelassem despropositadas), porque a sociedade se
encontra em constante mutação: o que antes podia não fazer sentido para o
grupo doméstico vigente é agora essencial para as novas necessidades.
Resumindo, trata-se de tentar fazer História com História.

notas

1
http//www.answers.com/topic/va-den-broek-bakema-2, [10.2008]

2
Kazuyo Sejima (1956) e Ryue Nishizawa (1966)

3
Tx/y, em que x é o número de quartos e y corresponde ao número de camas.

4
Portas, Nuno,‘A Habitação Social: proposta para a metodologia da sua
arquitectura’, Porto: Edições FAUP, 2004, 1.ª edição.

5
Portas, Nuno, ‘Funções e Exigências de Áreas da Habitação, Informação Técnica:
Edifícios’, Lisboa, Laboratório Nacional de Engenharia Civil, Fevereiro de 1969

6
Bertil Engstrand e Hans Speek

7
Attilio Mariano e Carlo Perogalli

8
Bandeirinha, José António,‘O processo SAAL e a arquitectura no 25 de Abril de
1974’, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2007, ISBN: 978-972-8704-
76-6
9
Portas, Nuno, ‘Funções e Exigências de Áreas da Habitação, Informação Técnica:
Edifícios’, Lisboa, Laboratório Nacional de Engenharia Civil,Fevereiro de 1969

10
Portas, Nuno, ‘Funções e Exigências de Áreas da Habitação, Informação Técnica:
Edifícios’, Lisboa, Laboratório Nacional de Engenharia Civil, Fevereiro de 1969

11
Portas, Nuno,‘A Habitação Social: proposta para a metodologia da sua
arquitectura’, Porto: Edições FAUP, 2004, 1.ª edição.

referências bibliográficas

Ábalos, Iñaki,‘A boa-vida, visita guiada às casas da modernidade’, 1ª edição,


2ª reimpressão, Barcelona.Editorial Gustavo Gili, 2008

Aymonino, Carlo, ‘La Vivienda Racional: ponencias de los congresos CIAM 1929-
1930’, Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1973.

Bandeirinha, José António, ‘O processo SAAL e a arquitectura no 25 de Abril de


1974’, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2007.

French, Hilary, 'Key Urban Housing of the Twentieth Century', Londres: Laurence
King Publishing Ltd, 2008, pág. 38.

Klein, Alexander, ‘Vivienda Mínima: 1906 - 1957’, Barcelona: Editorial Gustavo


Gili, 1980

Monteys, Xavier; Fuertes, Pere, ‘Casa Collage – un ensayo sobre la arquitectura


de la casa’, Barcelona: Editorial Gustavo Gili, pág. 72, 2005, 4ª edição.

Portas, Nuno, ‘Considerações sobre o organismo distributivo das habitações’,


in ‘Arquitectura(s) – Teoria e Desenho, Investigação e Projecto’, Série 2 –
Argumentos, volume 3, Porto: FAUP Publicações, Faculdade de Arquitectura da
Universidade do Porto, 2005.

Portas, Nuno, ‘Funções e Exigências de Áreas da Habitação, Informação Técnica:


Edifícios’, Lisboa, Laboratório Nacional de Engenharia Civil, Fevereiro de 1969

Portas, Nuno, ‘A Habitação Social: proposta para a metodologia da sua


arquitectura’, Porto: Edições FAUP, 2004, 1.ª edição.

Teige, Karel, ‘The Minimum Dwelling’, Cambridge, Massachusetts: The MIT Press,
2002.

sobre o arquiteto

Pedro António Fonseca Jorge (1977) é arquiteto formado na Faculdade de


Arquitetura da Universidade do Porto. Fez doutorado na mesma universidade com o
título “A célula mínima na experiência da habitação decustos controlados”.

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