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Flamínio, Isabel
O Espaço da Cozinha na Habitação Plurifamiliar Urbana. Modos de Vida e Apropriação
do Espaço
Sociologia: Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, vol. XVI, 2006, pp.
251-277
Universidade do Porto
Porto, Portugal
Introdução
*
Centro de Estudos da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto.
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1
Na obra Architectures de la vie priveé. Maisons et Mentalités XVII-XIX siècle, de, Monique
Eleb com Anne Debarre, é descrita a multifuncionalidade do espaço da cozinha na habitação
burguesa europeia entre os séculos XVII e XIX.
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Fig.4 - Imagem da cozinha da Casa “Am Horn”, 1923. (DROSTE, 1994,p.108) Esta é a
primeira cozinha que alia a preparação dos alimentos e o seu armazenamento, através da
utilização de armários fixos localizados por debaixo da banca de trabalho e em cima
encastrados na parede. É uma cozinha concebida unicamente como local de trabalho, com
uma disposição em L, com uma grande bancada de trabalho contínua, nivelada sob um vão
de janela. A eficácia do funcionamento da cozinha é notável.
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Na sua dimensão o espaço da cozinha tem que receber os novos e cada vez
mais regulares avanços tecnológicos, bem como tem de estar apto aos diferentes
modos de vida dos grupos domésticos. A criação das medidas standard em
resultado da produção industrial em série, que a partir de 1945 determinou que
as superfícies de trabalho teriam 0,6m de profundidade por 0,9 de altura, medidas
estas adaptadas à estatura da mulher americana, transforma a cozinha corrente
praticada dos dias de hoje num objecto compacto, formado por uma série de
módulos dispostos segundo diversas composições. Actualmente é possível reduzir
imenso a superfície da cozinha, densificando nela todo o tipo de equipamento
necessário ao armazenamento, preparação e cozedura dos alimentos. Ou seja,
existe um modelo de cozinha doméstica, moderno, que está na origem da sua
actual composição e que é um espaço que herdou um carácter de superfície
mínima mas que, por sua vez, deverá ser receptivo a evoluções tecnológicas e
sociais no seu interior2.
2
“A noção de superfície mínima, implica aquela de equipamento máximo””(LÉGER, 1990,
p. 100).
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“O centro da casa camponesa é a cozinha e, particularmente, o espaço junto à lareira ou ao
fogão de lenha (que nas habitações dos camponeses mais ricos, é actualmente utilizado para
confeccionar a alimentação e como meio de aquecimento)” (CABRAL,1989, p. 66)
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dinâmicas sociológicas estão inerentes a este espaço e como é que ela se formaliza
arquitectonicamente no seio da habitação portuguesa.
O conceito de ter uma cozinha aberta para outros espaços, como por exemplo
a kitchenette4, não se encontra nos padrões da sociedade portuguesa, embora
comece a ser aceite como nova concepção de espaço, do habitar, mais atraente a
classes jovens ou a pessoas que aderem mais facilmente a outros modos de habitar,
modos diferentes do tradicional habitar português5. Por outro lado, o conceito de
cozinha aberta ou relacionada directamente com outros espaços da casa é muito
desenvolvido noutros países, como nos países nórdicos e nos Estados Unidos.
Nas edificações plurifamiliares urbanas portuguesas são desenvolvidos
exemplos de cozinha, que embora sejam diferentes na sua concepção e formali-
zação, apresentam um carácter geral que as define globalmente no contexto da
habitação urbana. Têm a mesma função (espaço de serviço), a sua dimensão na
casa é pequena e têm a superfície optimizada.
4
Tipologia onde o espaço da cozinha se relaciona física e visualmente com o espaço da sala.
5
Nas tipologias tradicionais da habitação plurifamiliar portuguesa os diversos espaços da
casa, incluindo o espaço da cozinha, estão nitidamente diferenciados espacialmente, cada espaço
tem uma função e não existe relação visível entre eles.
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Fig. 8 - Edifício 15
Novembro
Outro objectivo a abordar na escolha destas três obras é ter como alvo as
variadas vertentes económicas da classe média urbana, uma vez que um segmento
muito relevante dos habitantes da cidade se enquadram nela e vivem em edifícios
plurifamiliares urbanos. É de referir que em todos os edifícios residem grupos
domésticos de diferentes escalões económicos, mas, no seu conjunto, estas obras
albergam a dita classe média dentro da qual os níveis económicos variam entre o
alto e baixo.
Os diferenciados meios económicos dos grupos domésticos, as suas pro-
fissões, os seus níveis culturais, ou seja, os diferentes modos de vida, deter-
minam largamente a forma como o grupo doméstico ou o indivíduo usam o espaço
e o adaptam às suas necessidades.
Procura-se também com a escolha destas obras, abordar as várias gerações
que constituem o nosso meio urbano, desde os grupos domésticos compostos
por três gerações, avó, filhos e netos, como casais jovens, adultos e idosos, famílias
monoparentais, pessoas a viver sozinhas, pessoas que não têm qualquer tipo de
relação familiar mas coabitam o mesmo espaço da habitação... para entender os
usos e as significações de um espaço como a cozinha corrente no quotidiano
destes diferentes grupos.
Os casos de estudo apontados abarcam, então, diversos grupos domésticos,
caracterizados por diversos factores que estão interligados entre si, como as suas
actividades, a sua evolução no que diz respeito às transformações ocorridas no
próprio grupo e a relação entre os seus membros.
A própria diferenciação arquitectónica dos edifícios inerente a diferentes
objectivos e contextos na sua projecção pelos seus autores, corresponde igual-
mente à diversidade dos grupos domésticos que os habitam. No caso da Coopera-
tiva de Massarelos, a programação visava o acolhimento de uma grande parte de
pessoas que habitavam anteriormente em edificações com baixas condições de
habitabilidade, portanto a grande maioria dos grupos domésticos que se abordaram
pertencem a uma classe média baixa e o seu agregado familiar é geralmente
denso. No caso da Cooperativa de Aldoar, a população apresenta, por sua vez,
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mas a sua diminuta dimensão na habitação corrente não permite que no seu interior
se passe a ferro, ou que se estenda a roupa para secar. Estas práticas, que
pressupõem a existência de espaço, são transferidas para qualquer outro local da
casa, onde seja mais favorável o seu desenvolvimento.
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Foram realizadas no total 18 entrevistas aos habitantes dos casos em estudo (8 entrevistas
aos habitantes da Cooperativa de Massarelos, 6 entrevistas aos habitantes do Edifício Sache da
Cooperativa de Aldoar e 4 entrevistas aos habitantes do Edifício 15 de Novembro) e ainda 3
entrevistas aos arquitectos responsáveis pelo projecto dos edifícios.
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L av.
C ozin ha
H all de
e ntra da Qu arto
Dp. WC
WC Cor redo r
Qua rto
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ocupado por um dos membros do grupo familiar. Nesta situação a maioria dos
habitantes opta por manter a porta constantemente fechada (fig.11), ou pura e
simplesmente encerram o vão com alvenaria de tijolo, por motivos relacionados
com a propagação dos cheiros provenientes da cozinha.
Lav .
Co zinha
Quar to
WC Dp.
WC
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Essa área é aplicada na sala, que, neste caso, está muito acima da área mínima
estipulada pelo INH para os edifícios de custos controlados. Proporciona-se assim,
na divisão da sala, um espaço de refeições e outro de estar suficientes na sua
dimensão, já que o espaço da cozinha não foi concebido para serem lá realizadas
as refeições principais.
“De um modo geral, eu, nos meus projectos, dou muita importância ao
espaço da cozinha. Naquele primeiro edifício de que lhe falei, em Aldoar, utilizei
um critério de subdivisão, um espaço onde se fabrica a comida e um espaço com
umas portas de correr, criando então uma zona de grande interface, que é o
espaço onde se come. Portanto, no fundo, abrindo as portas funciona como um
espaço só, fechando as portas funciona como uma zona de laboratório que ficou
encerrada quando não há actividade na zona da cozinha, ficando o espaço
restante mais integrado na zona da sala.” (Arq. Manuel Correia Fernandes)
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Sala estar/jantar
D p.
C o pa WC
Co z .
Lav.
Fig.14 - Plantas dos dois meios pisos que corres-
pondem à zona comum da habitação. Edifício Sache, Gale ria
Cooperativa de Aldoar. Esc. 1/200.
7
A organização tradicional que se aborda assenta no desenvolvimento a partir do século
XVIII da uma tipologia das habitações burguesas, cuja transformação originou a matriz que suporta
a organização tipológica interna das habitações contemporâneas. Sobre este tema ver,
Transformação e permanência na habitação portuense. As formas da casa na forma da cidade,
de Francisco Barata Fernandes.
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Quar to Qu arto
Quarto
Co z .
Hall
ent rada
La v .
Esc. 1/200.
papel na organização interna do espaço é, dos três casos, o que mais a dissocia na
relação que estabelece com os restantes espaços da casa. Ou seja, por exemplo,
em Massarelos o espaço da cozinha é um local de atravessamento, em Aldoar ela
faz parte visual do espaço público da casa, neste caso, funciona como um espaço
perfeitamente autónomo, o que o caracteriza essencialmente como local de
trabalho.
Neste edifício, a maioria das tipologias apresentam o espaço da cozinha
ligado à lavandaria (fig.16).
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mais favorável, poderá ser utilizada para tomar pequenas e rápidas refeições por
um ou dois habitantes, não pelo número total dos membros do grupo doméstico.
Mas a necessidade e vontade de realizar as refeições no espaço da cozinha,
é neste caso, regular. Algumas das famílias entrevistadas, a viverem nas tipologias
T3, procederam a alterações no projecto inicial da cozinha, porque também, à
partida, não era um processo que apresentasse dificuldades. Implicava apenas
pequenas alterações, que, na maioria dos casos, foram realizadas no período de
construção do edifício.
2 3
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1 F
4
5
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Novo Balcão
0.90
N
o
v
o
B
a
l
c
ã
o
Fig.23 - Imagem e planta, esc. 1/100, de uma Fig.24 - Planta de uma cozinha numa
cozinha numa habitação T3 no edifício 15 de habitação T2 que vai ser alterada no
Novembro. A alteração protagonizada pelos edifício 15 de Novembro.
habitantes incide na colocação de mais
armários para permitir colocar mais
elementos necessários a um melhor
funcionamento do espaço da cozinha.
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Conclusão
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Este género de abordagem, que alia a arquitectura àqueles que dela usufruem,
pode conduzir a novas interpretações do espaço doméstico, à experimentação
arquitectónica dessas mesmas interpretações, ao enriquecimento do espaço
arquitectónico das tipologias habitacionais e concede ao arquitecto meios para
explorar a arquitectura no contexto da sua apropriação.
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The space of the kitchen in multi-family urban housing. Ways of life and
space appropriation.
Abstract
Different social, economic and cultural factors favoured the evolution of the
kitchen space in the urban housing. Today, this space appears as a more systematic
space tendentiously characterized by its rationality and functionality.
This scene sprouts questions concerning the use that the inhabitants make of
this space and the meaning of the kitchen in the domestic daily life.
In this article this thematic is approached through the interpretation of three
examples of urban housing and the analysis of interviews to the inhabitants of the
buildings. Here we try understanding the importance of a space as the kitchen in the
daily life of the inhabitants and in the intends of project of architecture.
This is a reflection that relates architecture itself with the experience of space
acknowledging, from the study of the kitchen, the dynamic interactions between them.
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