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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA – CAMPUS TRINDADE

SENTIDOS E RE-SENTIDOS DA COZINHA: UMA AUTOETNOGRAFIA DOS


AFETOS PRODUZIDOS AO REDOR DA MESA

N° INSCRIÇÃO: 20230008770

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade

PROFESSOR(ES) ORIENTADOR(ES): Evandro Fiorin;

Rodrigo Gonçalves dos Santos;

Maria Inês Sugai;

FLORIANÓPOLIS

2023
1. RESUMO

O presente trabalho tem como tema as transformações da cozinha brasileira ao longo do


tempo, no contexto da cultura e da identidade racial, e tem como objetivo compreender como
as estruturas de poder moldam essas relações e como a ressignificação da cozinha pode ser
vista como uma forma de resistência cultural. Para tanto, busca explorar as modificações da
cozinha brasileira, desde a colonização até a apropriação contemporânea, e enfoca a falta de
reconhecimento à cultura negra na historiografia arquitetônica, entendida como resultado de
um sistema de dominação que apaga a diversidade cultural e reforça a supremacia branca.
Pretende-se, também, responder ao questionamento sobre o porquê essas mudanças ocorreram
e como a tendência arquitetônica contemporânea denominada de gourmetização, pode se
assemelhar ao modo de “usar” e “ocupar” a cozinha por pessoas negras. Como metodologia
propõe-se a utilização da autoetnografia, que possibilita a exploração das experiências
pessoais do autor, membro de uma família inter-racial, em relação à cozinha e às diferenças
entre as etnias. Como resultado, espera-se poder contribuir para uma melhor compreensão das
relações complexas entre a cozinha, a cultura e a identidade racial e das estruturas de poder
que moldam essas relações. Acredita-se, ainda, que o resultado desta proposta de pesquisa
possa oferecer percepções sobre a ressignificação da cozinha como um espaço de resistência,
de reconstrução cultural e de afirmação identitária para comunidades racialmente
marginalizadas.

2. INTRODUÇÃO

Esta proposta de estudo busca analisar as relações entre a cozinha – considerando as


significativas mudanças no espaço físico desde o período colonial – identidade racial e
cultura, com enfoque em como as estruturas de poder influenciam e moldam a formação da
percepção, do entendimento, da construção e da mercantilização do espaço.

Embora haja uma predominância na produção intelectual da arquitetura ocidental em


argumentar que as origens da habitação estão no burgo medieval europeu, entende-se, por esta
mesma abordagem, que a configuração espacial da cozinha surgiu com o domínio humano
sobre o fogo (ZABALBEASCOA, 2011). A partir desta premissa, parte-se do pressuposto de
que, até no Brasil, os sistemas de dominação e poder patriarcal supremacista branco
capitalista imperialista1 (HOOKS, 2022) moldaram os saberes, suprimindo outras culturas da
historiografia habitacional. Neste argumento, inclui-se a negligência e o apagamento das

1O conceito de patriarcado supremacista branco capitalista imperialista busca explicar como esses sistemas
interligados trabalham juntos para defender e manter as culturas de dominação, de forma a conectar as
diferentes pessoas brancas e dividir as pessoas pretas (HOOKS, 2022).
contribuições e costumes da população negra em relação às formas de uso e ocupação da
própria moradia, por meio de diversas estratégias, seja na própria produção e reprodução do
(re)conhecimento2 ou no desinteresse estatal da época em registrar, fiscalizar e preservar as
habitações negras (LEMOS, 1976). Ressalta-se a necessidade do estudo proposto justamente
para preencher partes das lacunas na historiografia da arquitetura e das práticas habitacionais
brasileiras, dando visibilidade e valorizando a cultura negra na construção do espaço da
cozinha e visando contrapor o argumento que defende que o âmago da cozinha
contemporânea no Brasil foi eurocentralizado. Entretanto, ressalta-se que não cabe, no limite
desse projeto, debater a construção dessa estrutura, mas apenas apresentá-la e questioná-la,
buscando contribuir para a valorização e a inclusão da cultura negra na historiografia da
cozinha e promover uma visão mais abrangente e diversa da evolução e do significado desse
espaço.

O objetivo principal do trabalho é compreender como as estruturas de poder moldam as


relações entre a cozinha, a cultura e a identidade racial e como a ressignificação da cozinha
pode ser vista como uma forma de resistência cultural. Para tal, será necessário: identificar as
modificações da cozinha ao longo do tempo, com ênfase em três representações na história
brasileira – a cozinha colonial, a cozinha moderna e a cozinha gourmet; levantar as principais
mudanças na percepção, no entendimento e na relação de valor atribuído à cozinha; rever a
relação das dinâmicas de poder na construção das conexões entre cozinha, cultura e
identidade racial; e investigar as experiências pessoais do autor e pesquisador em relação à
cozinha, identidade racial e cultura, utilizando uma abordagem autoetnográfica.

Inicialmente, a cozinha luso-brasileira era aberta e externa à residência, dispondo de um


amplo espaço exterior sem delimitações físicas; posteriormente, tornou-se oculta,
frequentemente localizada nos fundos da casa para evitar o contato e a interação entre os
brancos e os escravizados; mais adiante, o fim da escravidão, a importação do modernismo e
o surgimento das empregadas domésticas brancas, promoveram a industrialização da cozinha
– como no modelo de Frankfurt3 (LEMOS, 1976); e mais recentemente, prolifera-se o
processo da gourmetização. Essas transformações arquitetônicas podem ser entendidas como
reflexos tanto da evolução tecnológica de uma sociedade quanto das mudanças
comportamentais e culturais (LEMOS, 1976). Nesse sentido, pode-se considerar que a mais

2O “conhecimento” é vinculado a um ato cognitivo não público, já o “reconhecimento”, por sua vez, é um ato
expressivo e implica a atribuição de um valor social à outra pessoa (VITORIO, 2017).
3A cozinha de Frankfurt foi concebida em 1926 pelos arquitetos Ernst May e Margarete Schütte-Lihotzky para o
programa de planejamento municipal "Nova Frankfurt" na Alemanha. Este modelo de cozinha baseou-se no
sistema de organização industrial Taylorismo e é considerado como o protótipo da cozinha embutida moderna:
tão prática e compacta como uma estação de trabalho industrial.
recente alteração nas diretrizes espaciais da cozinha, a gourmetização, possui ressonância na
apropriação de valor da cultura negra em sua forma de uso e ocupação no espaço da cozinha,
pois o que antes era considerado um espaço desprezado, rejeitado e estritamente de serviço
pelas estruturas de dominação, passa, agora, por um processo de mercantilização e
valorização sustentado pelo mercado imobiliário e pela mídia. Esse novo plano disseminado
transformou a cozinha de um local de serviço à um espaço de convivência, de uso profissional
e de interação social (DE OLIVEIRA, 2018).

Refletindo sobre a própria experiência, remeto-me à minha infância. Cresci em uma família
inter-racial, filho de pai preto neto de alforriados e de uma mãe branca neta de italianos. A
partir dessa miscigenação pude vivenciar a diferença evidente na função social da cozinha
para essas duas culturas. Se, para o meu pai, a cozinha era o coração da casa, o local onde ele
recebia seus convidados e desfrutava de momentos particulares de lazer e descanso, para a
minha mãe era apenas o local de preparo e consumo das refeições, sem qualquer outro
propósito além do trabalho e do uso prático; seus momentos de lazer e socialização
aconteciam exclusivamente em outros lugares. Sendo assim, como e por que a gourmetização,
uma diretriz construtiva dominante de uma sociedade patriarcal capitalista supremacista
imperialista branca (HOOKS, 2022), pode se assemelhar tanto ao modo de uso e ocupação
desse espaço por uma pessoa preta?

Dessa forma, indaga-se a saber o porquê dessas mudanças, tendo em vista um espaço que,
anteriormente, era considerado "sujo", "malcheiroso" e associado à "negrinha serviçal"
(LEMOS, 1976) se tornou um símbolo de status e poder (FARIAS, 2018). A discussão
apropriada dessa questão envolve uma análise crítica das estruturas de poder da sociedade que
moldaram as representações culturais e históricas da cozinha. Essa análise levará em
consideração os aspectos históricos, sociais e culturais que influenciaram a transformação da
cozinha ao longo do tempo, envolvendo o estudo das mudanças nas práticas de organização
espacial da cozinha e nas representações culturais associadas a ela.

3. BREVE REFERENCIAL TEÓRICO E REVISÃO DE LITERATURA

O conceito “Zoneamento Habitacional” se refere aos grupos em que se dividem os espaços ou


cômodos da moradia, diferenciando-se pelo seu uso ou função. Este mesmo conceito pode ter
várias interpretações ou denominações, como é presente nas obras de Lemos (1976) e Farias
(2017). Lemos (1976) zoneia a habitação nos seguintes grupos: estar – espaço designado para
passar tempo livre (lazer em geral, televisão, rádio...) e receber visitas; habitação – local de
repouso, dormir e higiene pessoal; e serviço – aquele relacionado à estocagem de alimento e
produtos de limpeza, preparo de alimentos e trabalhos relacionados a roupagem e faxina. Por
sua vez, Farias (2017) utiliza-se do mesmo conceito, mas renomeia os grupos e vai um pouco
mais além, interpretando subdivisões dentro do cômodo da cozinha: o Espaço de Consumo –
lugar de tomada da refeição, móvel ou semifixo; e o Espaço de Confecção – aquele onde são
preparados os alimentos, fixo.

A gourmetização é um processo pós-moderno que vem sendo utilizado ao se referir à


qualificação de marcas, produtos e serviços associados à alimentação e à cozinha,
determinando um valor especial aos elementos e processos ligados a ela. Neste contexto,
observa-se que a ascensão da classe média e seu desejo de afirmação social, bem como a forte
exposição, proporcionada pela mídia, da relação entre morar e viver com lazer, prazer e
consumo, auxiliou a requintar a cozinha e o cozinhar, colocando-os no centro de interesse
dessa população. Quanto ao papel da arquitetura nesta concepção, desde os primeiros relatos
da cozinha no espaço interno da residência, ela sempre foi delimitada por paredes e compunha
a área de serviço. Atualmente, o novo estilo de uso e ocupação da cozinha fez com que suas
delimitações físicas começassem a se extinguir, integrando-a aos ambientes auxiliares e aos
de estar (copas, salas de jantar, estar, entre outras), reconfigurando-se no cotidiano dos
residentes não só como apenas um espaço de serviço, mas também como um ambiente social
(DE OLIVEIRA, 2018).

A autoetnografia é um método de pesquisa que se baseia na interconexão de três orientações


principais: a metodológica, apoiando-se na abordagem etnográfica e analítica; a cultural,
enfocando a interpretação de elementos vividos, relações entre pesquisador e sujeitos da
pesquisa, e fenômenos sociais estudados; e o conteúdo, usando autobiografia e reflexão. Essa
técnica valoriza a narrativa pessoal e experiências dos sujeitos da pesquisa, considerando o
papel político do autor e suas influências na pesquisa. Isso contribui para dar voz a diferentes
perspectivas, como nos estudos de gênero, feminismo e questões raciais. Como método, a
autoetnografia envolve descrever e analisar sistematicamente experiências pessoais para
compreender a cultura. É tanto um processo quanto um produto de pesquisa. Muitos adotaram
esse procedimento para produzir pesquisas envolventes, baseadas em experiências pessoais e
questões de identidade. Autoetnógrafos reconhecem a influência da experiência pessoal no
processo de pesquisa, incluindo decisões sobre o escopo e estrutura da investigação. Embora
algumas perspectivas debatam sobre a ênfase excessiva na abordagem autobiográfica, a
autoetnografia é vista como um método que entrelaça o pessoal com o político, o sujeito com
o social, e o micro com o macro, promovendo reflexão e análise crítica (SANTOS, 2017).
4. METODOLOGIA

A metodologia utilizada neste projeto é a identificação e análise sobre a própria experiência:


como pesquisador e autor, me identifico como sujeito da pesquisa e reflito sobre minha
própria experiência relacionada à cozinha, à cultura e à identidade racial. Nesse caso, como
autor, pretendo compartilhar as experiências pessoais de uma família inter-racial, e como
pesquisador proponho-me a observar as diferentes percepções e significados atribuídos à
cozinha pelos membros de minha família.

Esta pesquisa pretende também coletar dados autoetnográficos, registrando minhas vivências,
memórias e reflexões relacionadas à cozinha, fazendo uso de narrativas escritas, diários,
fotografias, vídeos ou qualquer outra forma de documentação que capte minhas experiências
pessoais e observações. Posteriormente, propõe-se uma análise e a interpretação dos dados
que envolvam a identificação de temas recorrentes, as conexões entre experiências individuais
e sociais, e a exploração das influências culturais e históricas presentes nas vivências da
cozinha.

Entende-se que será necessário estar atento à reflexividade e à autoconsciência para que seja
mantida uma postura analítica lúcida do posicionamento e das influências pessoais, assim
como a realização de autoavaliações contínuas para verificar se elas podem afetar a
interpretação dos dados e os resultados alcançados.

5. RESULTADOS ESPERADOS

Espera-se, ao final da pesquisa, conseguir apresentar os resultados da pesquisa


autoetnográfica de forma clara e coerente, por meio de relatos escritos, apresentações orais e
outras formas de comunicação que melhor se adequarem ao contexto de divulgação da
pesquisa, para destacar as principais descobertas, percepções e ensaios obtidos. Como
resultado, espera-se poder contribuir para uma melhor compreensão das relações complexas
entre a cozinha, a cultura e a identidade racial e das estruturas de poder que moldam essas
relações. Acredita-se, ainda, que o resultado desta proposta de pesquisa possa oferecer
percepções sobre a ressignificação da cozinha como um espaço de resistência, de
reconstrução cultural e de afirmação identitária para comunidades racialmente
marginalizadas.
6. CRONOGRAMA DE ATIVIDADES

7. BIBLIOGRAFIA

DE OLIVEIRA, Caroline Cavalcanti. Aspectos de inovação no espaço da cozinha: uma


análise da gourmetização como tendência em arquitetura e urbanismo. PAIC, 2018.

FARIAS, Hugo. A cozinha social - um novo espaço para o habitar contemporâneo.


Lisboa: CIHEL, 2017.

HOOKS, bell. Escrever além da raça. 1. ed. Elefante Editora, 2022.

LEMOS, Carlos A. C. Cozinhas, etc. São Paulo: Perspectiva, 1976.

LEMOS, Carlos A. C. História da Casa Brasileira. São Paulo: Contexto, 1989.

LESSA, M. A. Ouro Preto do meu tempo. 2. ed. São Paulo: IBRASA, 1981.

SANTOS, Silvio Matheus Alves. O método da autoetnografia na pesquisa sociológica:


atores, perspectivas e desafios. Revista do Programa de Pós‐Graduação em Sociologia da
USP, São Paulo, v.24.1, p.214-241, 2017.

VITORIO, Angelo. A tese da primazia do reconhecimento sobre o conhecimento em Axel


Honneth: contribuições para os processos educativos. Periódicos UNB, Brasília, 2017.

ZABALBEASCOA, A. Tudo sobre a casa. São Paulo: Gustavo Gili, 2013.

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