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1. Explique a transformação do conceito de gastronomia ao longo da História.

Porque consideramos que o moderno conceito de gastronomia foi criado na


França e se espalhou pelo restante do mundo.

Etimologicamente, o termo gastronomia, de origem grega, remonta a ao


menos quatro séculos anteriores à era cristã. Porém, em sua acepção moderna e
coincidente com a noção atualmente difundida, o uso do termo é fruto de
transformações mais amplas de um momento específico, em um cenário histórico,
social e geográfico também específico. Tal é a compreensão de uma perspectiva
assumida por parte de alguns estudiosos do assunto.

Nessa perspectiva, vista como um fenômeno histórico, com surgimento em


um contexto determinado, a gastronomia, da forma como hoje a conhecemos, deve
sua emergência à configuração social francesa ao longo do século XVII e sua
consolidação a transformações datadas do século XIX – também francês.

Caracterizado por uma relação estética com a comida – envolvendo todo o


aparato material e simbólico no entorno das refeições –, o conceito de gastronomia
a que aqui nos referimos parte essencialmente de uma busca pelo prazer resultante
do ato de alimentar-se e também de compartilhar – em sentido público – o contexto
em que esse ato se dá.

A localização de tal emergência prática e discursiva na França daquela época


decorre, sobretudo, do entendimento de que ali a relação com a comida teria
adquirido um sentido atravessado por múltiplas dimensões: políticas, sociais,
culturais, distintivas de classe, sendo sustentáculo de uma identidade nacional que
então se fazia necessária.

A França de então, supõem os estudiosos do tema, reuniria uma série de


fatores propícios à emergência de uma nova relação com a comida: uma identidade
nacional unificada e valorizada; a preponderância cristã/católica (cujos preceitos
possibilitavam uma relação hedonista com a alimentação, diferentemente, por
exemplo, da vertente protestante); uma aristocracia sedimentada, que servia como
espelho para uma burguesia que buscava se consolidar em sua esteira, gerando
novos esforços de distinção social por parte da nobreza etc.

Nesse cenário, de construção, valorização e disputa por poder, distinção e


boas maneiras, a emergente gastronomia acabou por assumir posto central, o que
teria se tornado possível a partir de uma conjunção de fatores reunidos no contexto
da sociedade francesa. Após consolidados os costumes à mesa que ali se forjaram,
bem como certa relação com a comida marcada por uma aspiração mais hedonista
do que dietética, eles são então exportados ao restante do mundo e adotados sem
grandes restrições, na esteira do capital simbólico que os padrões franceses
denotavam e ainda denotam.
2. Que relações podemos estabelecer entre as modernas concepções de gosto e
o desenvolvimento da gastronomia na França? Explique a ruptura entre a
ideia de prazer e saúde nesse contexto. Que comparações podemos fazer
com a China imperial?

Pode-se dizer que hoje concebemos o gosto, ao falar em gastronomia, em um


sentido que ultrapassa as necessidades fisiológicas, alcançando dimensões relativas a
um prazer sensorial de cunho intelectual. Trata-se aqui de conceber a noção de gosto
essencialmente como uma construção social.

Nessa direção, o modo como o gosto (em acepção ampla, compartilhada, e


não apenas referenciada à experiência individual) foi se transformando como um
marcador coletivo está diretamente relacionado a transformações em diversos
âmbitos. O surgimento de determinadas tecnologias que influenciam modos de
preparo e o acesso a recursos é um dos fatores que influenciam nesse processo.

Aqui vale mencionar a difusão do açúcar, o papel das especiarias, a


introdução de novos ingredientes a partir do contato com outras culturas, a
valorização ou não da sobreposição de sabores, a predominância ou não de
ingredientes de origem animal, a mistura ou não de sabores (doce e salgado no
agridoce, por exemplo) etc. Cada um desses aspectos, cabe salientar, guarda uma
vinculação com as contingências de algum contexto tempo-espacial específico.

Vale mencionar, ainda, a transformação pela qual passou o estatuto do gosto:


de sentido antes desvalorizado, considerado inferior diante de outros sentidos
humanos (como a visão e a audição), passa, posteriormente, a ser marca distintiva de
status social considerado superior, refinado, dotado de elegância, o que fica
evidente, por exemplo, na ideia de bom gosto. Um dos fatores que influenciaram
nessa mudança foi a conversão do gosto de sentido natural para sentido cultural.

Tal surgimento da ideia de bom gosto prestou-se não apenas à relação com
aquilo que se oferece ao paladar, mas também adquiriu relevância em referência às
demais artes, em um uso marcadamente metafórico. Evidenciava-se, assim, o já
referido fenômeno de estetização da comida (marca essencial da gastronomia, na
acepção tratada aqui, inclusive identificada a partir de então como também sendo
um tipo de arte).

Num contexto em que o gosto era índice de posição na escala social,


compartilhar o gosto daqueles que eram dotados de prestígio na sociedade equivalia
a estar em posição semelhante.

Na China imperial, a comida também adquiriu pronunciado caráter de índice


de distinção social, tanto no que se refere à diversidade de gêneros alimentícios,
quanto no que se refere aos modos de preparo (e o viés ritualístico neles
envolvidos), o que diferenciava povos considerados mais bárbaros ou mais
civilizados.

Nesse sentido, ali também teria havido um movimento de


estetização/elitização das relações com a alimentação, porém estas permaneceram
essencialmente vinculadas à noção de saúde, a princípios de compreensão do
alimento ligados a uma certa dietética condizente com uma busca de equilíbrio
nutricional e enérgico característica daquela cultura, de modo que não se configurou,
em tal contexto, o mesmo isolamento do prazer como forma prioritária de fruição da
comida – condição interpretada, na literatura sobre o assunto, como necessária à
emergência do conceito moderno de gastronomia.

Em uma comparação com as transformações do gosto operadas no contexto


ocidental, o contexto oriental (aqui ilustrado pelo cenário chinês) manteve uma
relação com o gosto atrelada à saúde, à nutrição, à dietética. Ainda que guardasse
margem à estetização e que o gosto ali estivesse, sim, vinculado a certo hedonismo,
a uma busca pelo prazer, esta se mantinha-se em relação íntima com certo
entendimento do que fazia bem à saúde.
5. Explique a importância dos conceitos de cortesia e civilidade (boas
maneiras) nos banquetes e na corte. Como esses conceitos se desenvolveram
historicamente e como influenciaram o desenvolvimento da gastronomia?

Percorrer a história da gastronomia e do desenvolvimento dos hábitos


alimentares que hoje cultivamos é também se dar conta da complexidade e da longa
extensão desse processo. Nesse percurso, deparamos com outros processos
avizinhados, os quais também se prestaram, historicamente, a erigir dimensões
cruciais do que hoje compreendemos como sendo uma civilização essencialmente
humana.

Digno de nota, a esse respeito, é o desenvolvimento progressivo do controle


social necessário à civilidade, que aos poucos impôs limites ao corpo e a seus gestos,
limites estes que se fariam necessários ao controle exigido em torno da mesa
compartilhada no contexto de luxo dos banquetes da corte francesa, à época aqui
tratada.

Diante do absolutismo francês, centralizado na figura do Rei Luis XIV, o


culto ao luxo possibilitou a prática dos banquetes como costume distintivo da corte,
no exercício de manutenção do poder. Assim, pode-se dizer que o desenvolvimento
dos modos e das condutas que constituem as noções de cortesia, civilidade e boas
maneiras oferece, em muitos sentidos, um pano de fundo ao papel que a gastronomia
(derivada de uma relação com a comida surgida nos banquetes da corte e
posteriormente ampliada a outras camadas da população) ocuparia no cenário
francês a partir do século XVII.

Vale mencionar que o que Brillat Savarin afirma com relação ao prazer da
mesa (tipicamente humano, em oposição ao prazer do comer, este compartilhado
com outros animais) ilustra de forma interessante o modo como a necessidade
distintiva de boas maneiras é satisfeita na prática da comensalidade, sendo esta um
prato cheio para tanto: desde o refinamento do gosto até o contorno dos gestos etc.
Se a herança da civilidade vinda de outrora foi pano de fundo aos referidos
banquetes, é possível dizer que ali (e no que deles decorreu) também se forjaram
novos padrões de conduta. Afinal, a necessidade de adaptação do comportamento
social aos atributos da época: sociedade cada vez mais urbanizada, industrializada,
com uma burguesia em ascensão etc.

As exigências vão, assim, se complexificando à medida que a necessidade de


distinção social se intensifica. Nesse cenário, o valor simbólico dos gestos e do
comportamento à mesa complementa, de forma exemplar, o papel que a gastronomia
adquiriu aos arranjos sociais em emergência.

Não restrita à França, a noção de bom gosto que daí deriva, aliada aos novos
ditames de cortesia, civilidade e boas maneiras (que não se resumiam à gastronomia,
mas a incorporavam), seria exportada para outros territórios e contextos sociais,
ajudando a consolidar o poderio francês, seu capital simbólico e sua consequente
influência no contexto europeu e mundial de então.

Cabe concluir, por fim, que o que hoje entendemos como boas maneiras e
regras de etiqueta à mesa derivam basicamente de uma necessidade de distinção
social.

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