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A GOURMETIZAÇÃO DA ALIMENTAÇÃO PARA PETS E SEUS PARADOXOS

A proposta deste trabalho é colocar em pauta a tendência atual de comida gourmet para um
nicho além da alimentação humana: a comida natural/orgânica caseira para animais de estimação.
Nossa pesquisa mostrou que a cada dia mais esse mercado cresce, com notável aumento de marcas
voltadas ao tema, envolvendo profissionais formados em gastronomia que passaram a se dedicar à
gastronomia e à confeitaria para pets (especialmente, cachorros e gatos). Existem também muitos
cursos específicos para a formação de profissionais para atuarem nesse mercado, além de
restaurantes voltados aos pets, com serviços que até algum tempo eram exclusivos a humanos.

Justificativa
O tema escolhido permite discutir diversos paradoxos próprios da contemporaneidade,
possibilitando uma reflexão relacionada a algumas das discussões do curso Gastronomia: História
e Cultura, especialmente da disciplina Paradoxos da Alimentação. A gourmetização/humanização
de pets parece ser uma tendência crescente que envolve profissionais da alimentação,
estabelecimentos comerciais, formação e a própria indústria, atravessando áreas que antes eram
exclusivas da alimentação humana. Daí a relevância de pensarmos sobre o assunto.

Objetivo
O objetivo central do trabalho foi formular e explicitar alguns paradoxos em que a temática
escolhida está envolvida, em consonância com as leituras e discussões da disciplina Paradoxos da
Alimentação. Selecionamos um paradoxo principal e outros três que dele podem ser derivados. São
eles:

Paradoxo principal:
- Colapso, fome e escassez para alguns X Requinte, distinção, status e excessos para outros

Paradoxos derivados:
- Fome e insegurança alimentar humana X Fartura alimentar para pets
- Tendência: ração e ultraprocessados para humanos X Tendência: Alimentação gourmet para pets
- Colapso na indústria da carne: sacrifício e maus tratos de alguns animais X Rentabilidade da
indústria para pets: humanização para outros animais

Metodologia
Com base nos paradoxos formulados, uma pesquisa foi feita para mapear o tema.
Recorremos a materiais de imprensa (reportagens em jornais e revistas), de mídias sociais e de
peças publicitárias. Para fundamentar nosso olhar sobre os materiais coletados, recorremos a
discussões e reflexões teóricas acerca de assuntos relacionados.
Referencial
Algumas hipóteses e formulações foram úteis para a reflexão sobre o tema, sobretudo as
seguintes:

- O conceito de especismo (RYDER, 2008): uma discriminação baseada na espécie, ou seja,


determinados animais são tratados e vistos apenas em decorrência da espécie a que pertencem;
trata-se de uma discriminação próxima de outros tipos de preconceito e discriminação baseado em
uma única categoria que acaba resumindo o indivíduo, como o racismo e o machismo.
- A compreensão de que, em alguns contextos sociais humanos, cada vez menos se come
comida in natura (ou de verdade): “[...] enquanto antigamente só se podia comer comida, hoje há
milhares de outras substâncias comestíveis com aparência de comida no supermercado” (POLLAN,
2008, p. 9).
- A compreensão de que a alimentação é uma prática essencialmente cultural, que muito diz
sobre o modo como vivemos e nos organizamos socialmente (MONTANARI, 2008).

A partir dessas noções, somadas aos dados recolhidos nos demais materiais consultados
(reportagens, mídias sociais e peças publicitárias), foi possível pensar no fenômeno da
gourmetização da alimentação pet como um efeito de certo especismo (que privilegia determinadas
espécies) que promove a valorização de uma alimentação pet com traços humanos (gourmet,
caseira, orgânica, in natura, de verdade), o que é representativo de características e paradoxos da
nossa sociedade atual.

Resultados alcançados
Fica evidente que existe um novo conceito em formação, abrangendo apenas uma parte dos
animais que tem acesso ao luxo de comer comidas gourmetizadas, preparadas por chefs formados e
outros profissionais. Assim como em outros campos, esse privilégio é apenas para alguns, enquanto
outros animais – a maior parte – continuará sem alimento e até sem um lugar para morar.
Mas o ponto principal e paradoxal que nos propomos a discutir não é esse, não se minimiza
ao plano de distinções sociais dos pets. Apesar de esta ser uma discussão importante e necessária,
ela não foi o foco do trabalho. Queríamos trazer uma reflexão sobre o ponto a que estamos
chegando – ou já chegamos – de dar a oportunidade de comer uma comida gourmet aos pets
enquanto há cada vez mais pessoas passando fome, sem uma refeição básica durante dias. Como
sabemos, o Brasil voltou ao mapa da fome, e em 2022 33,1 milhões de pessoas estavam em situação
de insegurança alimentar.1 Temos também números assustadores de desnutrição infantil no Brasil.
1
https://www.oxfam.org.br/noticias/fome-avanca-no-brasil-em-2022-e-atinge-331-milhoes-de-pessoas/#:~:text=No
%20Brasil%20de%202022%2C%20apenas,os%20que%20j%C3%A1%20passam%20fome.
Diante desses fatos, como falar e investir em comida gourmet orgânica para pets? A contradição
mostra um paradoxo próprio do nosso tempo, em que a própria indústria pensada e construída para
alimentar humanos (inclusive com carne animal) passa a se dedicar a um nicho mais lucrativo do
que sanar o problema da fome humana. Até mesmo o chamado nutricionismo (POLLAN, 2008),
que atravessa o olhar humano sobre a alimentação nos dias de hoje, também se volta para gerar
sofisticação (humanização) aos animais de estimação.
Pudemos observar não só o paradoxo da oposição a fome x excesso, mas também refletir
sobre o quanto nós, seres humanos, podemos ser individualistas, egoístas. Enquanto alguns
humanos são descartáveis aos olhos de outros, aumenta a humanização de determinados animais.
Pessoas preferem elitizar animais de estimação em vez de matar a fome de um outro alguém.
Pessoas estão alheias em suas bolhas, e enquanto umas gourmetizam alimentos para pet, outras
comem lixo. Essas constatações nos levam a refletir sobre a fome, sobre os diversos níveis de
desigualdade, podendo abrir nossos olhos para problemas relevantes dos nossos dias e nos levar a
pensar criticamente sobre os valores que temos cultivado como humanidade.

Referências:
MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. São Paulo: Senac São Paulo, 2008.
POLLAN, M. Em defesa da comida: um manifesto. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2008.
RYDER, R. Os animais e os direitos humanos. Revista Brasileira do Direito Animal, ano 3, n. 4,
2008.

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