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das tradições locais.

Contudo, a democratização do acesso ao alimentos recentemente trouxe uma


retomada às tradições culinárias, mas, este retorno não é algo que deva ser visto de
forma negativa, pois é uma conexão entre o passado e futuro, como bem disse Flandin
e Montanari “o elogio da diferença e a preservação da identidade cultural não fazem
parte de uma temática passadista e retrógrada, mas do presente e do futuro, já que
dizem respeito a uma conquista recente, ainda em via de consolidação.” (2018, p. 868)
Para Poulain (2013, p. 24), estes produtos alimentares fazem parte da cultura
de uma determinada localidade e possuem um grande valor histórico e de identidade
de grupos sociais.
Menasche define que as práticas alimentares (patrimônio alimentar), acarretam
representações do imaginário destes grupos sociais, pois envolvem escolhas,
símbolos e demais classificações, representando além das características locais, toda
uma historicidade e identidade do povo.
Nesta mesma linha pesa Massimo Montanari, no sentido de que as tradições
alimentares se constroem através do tempo, pois como a história, são imóveis:

é porque as tradições – estamos sublinhando este aspecto, mesmo que isso


possa parecer evidente – não aparecem já completamente formadas na
orgiem, mas são criadas, modeladas, definidas progressivamente pela
passagem do tempo e os contatos entre culturas sobrepõem ou se
misturam. (...) cada cultura é o fruto de contaminações, cada “tradição” é
filha da história – e a história nunca é imóvel.
Mas, para alé, desses fenômenos relevantes, existe a história de cada dia,
feita de encontros e experiências que vão também construindo a identidade
pessoal e coletiva, sendo que cada um desses encontros e experiências a
confirma e remodela. (2018, p. 868)

Assim, podemos entender que os conceitos de tradição e patrimônio alimentar


estão intimamente ligados a identidade de um determinado local ou povo, o que nos
possibilita identificar a necessidade de regulamentação ou proteção deste “saber-
fazer” na preservação da identidade local.
O patrimônio alimentar como um segmento do direito a cultura é um tema pouco
debatido na área de Direitos Humanos, sendo um território muito próspero para
discussão teórica a respeito de sua importância, como forma de fomentar a criação de
políticas públicas para a preservação de culturas locais.
Com a globalização é certo que muitas preparações culinárias típicas foram
perdendo suas características, este acesso fácil a alimentos que não são
característicos dos grupos, até mesmo a busca por uma alimentação mais rápida faz
com que grande parte das tradições se perca com o tempo.
A alimentação é uma junção entre as questões sociais e a identidade local, e
portanto deve ser entendida como patrimônio, pois traduz a cultura de povos, nações,
comunidades e famílias. (MUELLER, 2010. p. 5)
A UNESCO , definiu como Patrimônio Cultural Imaterial ou Intangível “as
expressões de vida e tradições de comunidades, grupos e indivíduos em todas as
partes do mundo que recebem de seus ancestrais e passam seus conhecimentos a
seus ascendentes” (UNESCO, 2019).
Estes saberes são repassados de geração em geração, e atualmente
receberam uma grande valorização tanto pela busca de patrimonializá-los como forma
de preservação, como para recuperá-los, por se tratar muitas vezes de um saber oral.
Esta busca pela patrimonialização vem como uma forma de alteração da noção
de patrimônio do âmbito público para o privado, como meio de transformação social.
(POULAIN, 2013, P. 38). Ocorre que os registros sobre cozinha tradicional e regional
ainda são muito tímidos, sendo a sua maior incidência dos registros nacionais do que
os das pequenas tradições locais.
Faz-se necessário estudar a história dos pequenos produtos regionais, para
compreender a sua importância na memória coletiva. Estas pequenas tradições são
importantes para compartilhar memórias de grupo em comum, traduzindo o
sentimento de pertencimento e de identidade do grupo, protegendo o seu caráter
histórico e simbólico (MUELLER, 2010, p. 11).

2.4 O conceito de tradição e a tradição inventada

Ao longo da história o conceito de tradição foi construído por diversos


pensadores. No que diz respeito a cultura, podemos entendê-la de diversas formas,
tais como as manifestações artísticas, a música, o teatro, a dança, as tradições, entre
outras.
Podemos considerar que as tradições vão desde a utilização de vestimentas
para determinadas ocasiões, formas de cumprimento e até mesmo de alimentação.
Estes atos, repetidos em nosso dia a dia, muitas vezes passam despercebidos, mas
não podem ser ignorados, pois, em sua maioria, estão cheios de memórias históricas.
Segundo Cliford Geertz, o homem como ser social ao ser analisado, retirando
camada por camada, em uma delas poderemos identificar a cultura como constituinte
do seu ser.
O mesmo autor, ao criar uma teoria sobre a interpretação da cultura, a
conceitua como “uma realidade “superorgânica” autocontida, com forças e propósitos
em si mesmas” (GEERTZ, 1989. p. 21), e ainda, não podemos interpretá-la de forma
simplista, como se fosse um padrão de acontecimentos comportamentais que se
possam identificar em comunidades distintas, ou seja, ele busca desenvolver uma
teoria que possa identificar os aspectos simbólicos das ideologias, para que
compreender o significado da reprodução daqueles atos para o ser humano.
Para Geertz a ideologia também pode ser entendida como tradição, estas
dariam um sentido e formariam a identidade do indivíduo o aglomerando em grupo
sociais:

A ideologia coloca uma ponte sobre o fosso emocional existente entre


as coisas como são e as coisas como se gostaria que fossem,
assegurando assim o desempenho de papéis que, de outra forma,
poderiam ser abandonados pelo desespero ou pela apatia. A
“explicação da solidariedade” significa o poder da ideologia de unir um
grupo ou classe social (GEERTZ, 1989:175).

Assim, Geertz correlaciona os padrões culturais como um gabarito da


organização dos processos sociais, sendo necessária esta ligação para que haja uma
adesão entre os membros da comunidade, esta troca de conhecimentos, a força dos
símbolos, da retórica, possuem um poder que vai além da imagem, ela cria um
processo social que se manifesta em um mundo político, onde, segundo o autor “as
pessoas falam umas com as outras, dão nome às coisas, fazem afirmativas e, num
certo grau, compreendem umas às outras" (GEERTZ, 1989:184).

Ainda, para este autor a cultura (tradições) possui um papel psicológico, onde
a análise dos símbolos e das ideologias, devem ser interpretados de maneira a
identificar o papel que estes desempenham na sociedade, sendo necessária a criação
de uma ciência social capaz de “compreender os processos de formulação simbólica”
(GEERTZ, 1989:178).
Entendendo os grupos sociais como algo complexo, composto por diversos
elementos, sendo um deles o cultural, tendo a tradição papel fundamental na
constituição da identidade coletiva, a qual pode, incluir ou excluir daquele meio os que
não se identificam com ela:

A ‘antiguidade’ da associação, com tudo o que ela implicava,


conseguia, por si só, criar o grau de coesão grupal, a identificação
coletiva e as normas comuns capazes de induzir à euforia gratificante
que acompanha a consciência de pertencer a um grupo de valor
superior, com o desprezo complementar por outros grupos. (ELIAS;
SCOTSON, 2000:21).

Em que pese o entendimento de Clifford Geertz sobre tradições, no presente


trabalho utilizaremos o conceito de tradição trazido pelo historiador Eric Hobsbawm.
O autor, conhecido por sua teoria sobre tradições e as tradições inventadas, é
considerado um marco teórico ao introduzir as tradições inventadas como algo criado
em determinado contexto histórico e social.
Dentro da história da alimentação, o conceito de tradição trazido por Hobsbawm
é o mais utilizado, vez que ele considera as diversas transformações das práticas
sociais como algo legítimo e que não desnatura a tradição em si, como veremos a
seguir.
O conceito de tradição pode ser entendido segundo Hobsbawm (HOBSBAWM,
2012, p. 23) de duas maneiras, seja ela no sentido amplo da palavra, como no das
tradições inventadas.
Para o autor temos como tradição aquele conjunto de práticas, reguladas de
forma tácita, de maneira ritual ou simbólica e que se revelam cheias de valores e
normas de repetição, implicando em uma ligação com o passado.
De outro lado, o autor conceitua tradição inventada como:

Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas,


normalmente reguladas por regras tácitas ou abertas aceitas; tais
práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores
e normas de comportamento através da repetição, o que implica,
automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. (...)
Contudo, na referência a um passado histórico, as tradições
“inventadas” caracterizam-se por estabelecer com ele uma
continuidade artificial. Em poucas palavras, elas são reações a
situações novas que ou assumem a forma de referência a situações
anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição
quase obrigatória. (2012, p. 8 e 9)
Ainda, Hobsbawm (HOBSBAWM, 2012, p. 23) afirma que para que os atos
sejam considerados como tradições, inclusive as tidas como “inventadas”, devem ser
invariáveis, ou seja, devem sempre respeitar práticas fixas, pois do contrário teríamos
apenas um costume, e não uma tradição.
Vale frisar que, segundo o autor, a invenção das tradições é em regra um
processo de formalização e de ritualização que busca se referenciar ao passado,
mesmo que pela imposição da repetição, e ainda, é difícil identificar a sua origem, se
inventada e desenvolvida em grupos fechados.
Hobsbawm afirma que as tradições podem ser “inventadas” pelo fato de não se
adaptam mais a realidade daquele grupo:

Quando uma transformação rápida da sociedade debilita ou destrói os


padrões sociais para os quais as “velhas tradições” foram feitas,
produzindo novos padrões com os quais essas tradições são
incompatíveis; quando as velhas tradições, juntamente com seus
promotores e divulgadores institucionais, dão mostras de haver
perdido grande parte da capacidade de adaptação e da flexibilidade;
ou quando são eliminadas de outras formas. Em suma, inventam se
tradições quando ocorrem transformações suficientemente amplas e
rápidas tanto do lado da demanda quanto do lado da oferta.
(HOBSBAWM; RANGER, 1997:12)

Sob esta perspectiva podemos entender que, devido às transições sociais, a


modernização de algumas tradições podem ser perdidas ou não fazerem sentido para
aquele grupo, ou até mesmo, por serem tão frágeis podem se perder através do
tempo. Com essa perda, seja ela do aspecto simbólico ou até mesmo material,
algumas tradições podem ser retomadas ou adaptadas ao contexto no qual os
componentes do grupo social se encontram.
Esta criação (invenção), de modo algum pode ser entendida como algo não
genuíno, ela é transformação/modernização daquele ato tão simbólico para o grupo
social. Outras realidades podem ser agregadas ao ato, trazendo novos sentidos
àquela prática.
Neste contexto, Carneiro (2003, p. 22) entende como tradições alimentares os
rituais instauradores de disciplinas, técnicas reiteradas e permanentes em uma certa
comunidade.
Zuin (2008., p. 30) relata que para poder analisar uma tradição esta deve ser
observada no contexto da comunidade na qual ela é representada, vez que são
elementos constitutivos da cultura e das relações sociais.
Em que pese as tradições possam ser “inventadas”, mesmo no âmbito das
tradições alimentares, estas trazem representações da memória afetiva, renovam as
práticas anteriores, e perpetuam a história das comunidades.
Sob esta perspectiva, podemos observar que a Colônia de Witmarsum desde
a sua fundação trouxe a produção de leite como ponto importante para o
desenvolvimento da comunidade. Por suas influências europeias, e pela essência da
produção agrícola, e até mesmo pela localização geográfica, os integrantes da
comunidade de Witmarsum produziam gado leiteiro de qualidade para a venda local.
Como vimos, a Cooperativa Leiteira foi criada desde a fundação da comunidade, e
baseou toda a estruturação econômica e social da comunidade.
O consumo de leite era comum na alimentação do paranaense, porém, o
consumo de queijo não fazia parte de seu cardápio, sendo que este era feito de
maneira residual nas colônias com o excedente de leite produzido e, em regra, para o
consumo próprio.
Podemos ver que, durante anos as produções no Estado do Paraná se baseiam
na cultura de peixe, carne de gado e erva-mate, sendo pouco usual a produção ou
comercialização de queijos e laticínios, os quais eram tidos apenas para consumo de
subsistência.
Tal produção se refletiu e muito na alimentação dos paranaenses, e em
especial na comunidade de Witmarsum, mas, como dito, havia uma produção singela
de queijo colonial local, o qual não era comercializado, uma vez que o forte da
produção era o Leite Cru.
É sabido que havia sim algumas receitas produzidas na comunidade, porém,
ao longo do tempo e, infelizmente, com o falecimento de membros mais antigos da
comunidade, as receitas se perderam. Mas, mesmo com o esquecimento, e aí
ressaltamos a importância da história oral para o registro das tradições alimentares,
muito recentemente é que se buscou através de produtores de queijos vindos de fora,
trazer para dentro da comunidade a tradição de produção de queijos.
Ocorre que, para os que frequentam a comunidade de Witmarsum e, os que
consomem os seus produtos, a produção de queijos é algo tido como tradicional, no
sentido de que a produção é realizada a anos. Mas, como vimos, esta tradição da
produção de queijos é algo muito recente na comunidade, mas, mesmo assim, pode
ser considerado como uma tradição.
Quando o projeto de produção de queijos surgiu na comunidade, houve uma
seleção dos pecuaristas locais para verificar a qualidade do leite produzido pelo gado
e se este se adaptava aos níveis de exigência e padrões exigidos pela cooperativa. A
produção de Leite em Witmarsum foi o caminho escolhido pelos seus fundadores
tendo em vista as características climáticas e do solo, a rigorosidade na produção do
leite e no manejo do gado sempre esteve presente e, de certo modo manifestaram a
essência da comunidade e o desejo de união.
A produção de queijos começou de maneira comedida e foi reescrita pelos
cooperados como uma forma de manter ainda a tradição da produção de leite e
derivados de qualidade. Podemos observar que a produção de queijos não cresceu
desde a fundação da comunidade, mas surgiu da transformação da prática da venda
de leite de qualidade, com a preocupação com a alimentação e bem estar do animal,
do armazenamento e manejo do queijo.
Conforme bem disse Hobsbawm ao conceituar tradição, ela não é algo que
pode sofrer transformações mas sem perder a essência de traduzir o sentimento do
grupo que a pratica. Assim é a produção de queijos na comunidade de Witmarsum,
criada e transformada ao longo do tempo, traduz o sentimento de pertencimento dos
que vivem no local, traduzem a união da comunidade e os valores menonitas.
Nem sempre precisamos pensar que as tradições cresceram no cerne do grupo
social. Como vimos, em Witmarsum, a venda de queijos coloniais e finos somente
ganhou força em 2002, quando as primeiras máquinas foram instaladas na
comunidade e, atualmente, conquistaram o mercado além das fronteiras de
Witmarsum, sendo muito conhecidos pela sua qualidade e tradição na produção de
queijos.
Assim, sob o conceito de tradição e de tradição inventada, a comunidade de
Witmarsum tem a produção de queijo como algo novo, porém, não menos legítimo
que lhe traga representatividade, seja internamente, ou para os que não compõe o
grupo, que os reconhecem como legítimos queijos produzidos pelos menonitas.
Mesmo que criadas ou adaptadas, as tradições alimentares trazem consigo a
representatividade do grupo, e a forma com que estes querem ser vistos pela
sociedade, ainda, ela tem papel fundamental na luta contra a homogeneização
cultural, pois se mantém firmes mesmo com a globalização.
As tradições podem ser adaptadas com o passar do tempo, adequando-se
àquela realidade, e mesmo assim não perdem a sua função como constituinte da
identidade individual e social.

2.5- O Multiculturalismo E O Dever De Proteção Das Pequenas Tradições

Para entendermos a necessidade de se preservar as pequenas culturas, é


necessário entender que a sociedade é composta por diversos grupos de pessoas, e
estes grupos são compostos por experiências culturais diferentes.
A preservação das tradições é importante para a manutenção da identidade
destes grupos sociais, para que não ocorra sobre a sociedade uma homogeneização
cultural, ou especificamente uma imposição de uma cultura tida como superior sobre
as consideradas inferiores, como um ato colonial.
A colônia de Witmarsum, desde a sua fundação e pelas suas características
culturais sempre se manteve fechada para a entrada de outras pessoas que não
fizessem parte da comunidade. Isso fez com que a sua cultura e tradições fossem
mantidas, evitando também até mesmo muitas interações que o mundo globalizado
nos trás. A conservação da arquitetura, paisagem, linguagem e demais tradições,
manteve a memória e a identidade da comunidade até os dias atuais.
Mesmo com a globalização e a abertura dos portões da comunidade para o
turismo, Witmarsum permanece sendo reconhecida por ser a colônia de alemães
menonitas, a manutenção das tradições locais foi o meio para com o qual os
menonitas se mantiveram ao longo dos anos.
Mesmo após a o movimento nacionalista na Era Vagas, os menonitas de
Witmarsum encontraram maneiras de manter vivo o Mennonitentum, como forma a
manter viva a memória e a identidade de seus fundadores, mesmo com as diversa
intervenções do mundo globalizado, o que demonstra a importância na preservação
das pequenas tradições e da proteção às pequenas culturas, como forma de
individualizar os grupos e manter sua diversidade.
As pequenas tradições são formas de proteção e até mesmo de luta contra a
homogeneização das culturas pela globalização. As pequenas tradições e
manifestações culturais são, muitas vezes, a forma de expressão e de fazer com que
estes grupos sejam vistos e ouvidos pela sociedade.
Neste sentido Mignollo (2005, p. 47) aborda sobre o imaginário do mundo
moderno/colonial, como uma estrutura complexa, formada por pequenas
manifestações culturais, sociais, econômicas e religiosas
Este mesmo autor aborda o imaginário moderno como algo construído sob um
olhar colonizador, e que deve ser afastado, pois reduz a identidade social, vejamos:

O imaginário do mundo moderno/colonial surgiu da complexa


articulação de forças, de vozes escutadas ou apagadas, de memórias
compactas ou fraturadas, de histórias contadas de um só lado, que
suprimiram outras memórias, e de histórias que se contaram e se
contam levando-se em conta a duplicidade de consciência que a
consciência colonial gera.” (2005, p. 40)

Em contraponto a este olhar colonizador sobre os Direitos Humanos


Boaventura Souza Santos traz o conceito de multiculturalismo, como uma forma de
melhor entender e aplicar a proteção destes direitos, entendendo a formação histórica
da sociedade (1997, p. 17).
Neste sentido o autor conceitua o multiculturalismo como “pré-condição de
uma relação equilibrada e mutuamente potenciadora entre a competência global e a
legitimidade local, que constituem os dois atributos de uma política contra hegemônica
de direitos humanos no nosso tempo”. (1997, p. 19)
Ainda, segundo Boaventura,(1997, p. 11-30) para entendermos os Direitos
Humanos precisamos olhá-lo sob uma ótica contra hegemônica, segundo suas
premissas que se consistem em:

a) Superar o debate do universalismo e relativismo cultural, vez que as


culturas são relativas e carregadas de especificidades, sendo que olhá-la
sobre um aspecto universal seria um erro;
b) Analisar que cada cultura possui uma percepção sobre a dignidade
humana, porém, nem todas elas os enxergam como um direito;
c) A cultura deve ser analisada como algo incompleto, e que se transforma
através do tempo, uma vez que é composta pela pluralidade de tradições,
e tal fato é importante para a concepção multicultural de direitos humanos;
d) Entender que as diversas culturas tem seus conceitos sobre dignidade
humana, nem sempre se entende que os direitos civis e políticos podem
ser associados aos sociais e econômicos, e portanto, não se pode analisar
os direitos humanos como algo único para toda a sociedade e, por fim;
e) Compreender que as culturas geralmente dividem as pessoas em dois
grupos, um de acordo com a igualdade, seja ela de casta ou hierárquica, e
outro pelas diferenças, seja ela pelo sexo, raça ou religião.

Assim, ao analisar os direitos humanos sob estas perspectivas é que podemos


manter um diálogo intercultural, entre as diferenças de saberes e culturas.
Sobre esta mesma perspectiva, Herrera Flores também afirma que para
entendermos os direitos humanos estes devem ser observados de modo complexo,
compreende não só o multiculturalismo, mas também o interculturalismo, pois, a
sociedade não é composta por um único fato, e sim por uma construção de
acontecimentos históricos, que dão as culturas um aspecto especial, de preservação
e até mesmo de compreensão de determinadas sociais sobre os direitos humanos.
Nesta ótica, Herrera Flores afirma que:

Os direitos humanos no mundo contemporâneo necessitam dessa


visão complexa, dessa racionalidade de resistência e dessas práticas
interculturais, nômades e híbridas para superar os obstáculos
universalistas e particularistas que impedem sua análise
comprometida há décadas. Os direitos humanos não são unicamente
declarações textuais. Também não são produtos unívocos de uma
cultura determinada. Os direitos humanos são os meios discursivos,
expressivos e normativos que pugnam por reinserir os seres humanos
no circuito de reprodução e manutenção da vida, nos permitindo abrir
espaços de luta e de reivindicação. São processos dinâmicos que
permitem a abertura e a conseguinte consolidação e garantia de
espaços de luta pela dignidade humana. (2001, p. 215-244)

Sob a perspectiva multicultural dos direitos humanos, podemos


entender que a sociedade está em constante transformação, e que os acontecimentos
históricos, a perspectiva religiosa e entre outras determinantes, fazem com que os
grupos sociais enxerguem a proteção e a aplicação dos direitos de forma diversa.
O universalismo cultural põe sobre os pequenos grupos sociais um
olhar colonizador, fazendo com que muitas vezes com que o “colonizado” não
compreenda tais determinações, surgindo os conflitos de identidade.
A preservação de pequenas tradições, e da diversidade cultural faz
com que os grupos sociais sintam-se pertencidos a suas microssociedades, e
compreender esta heteronomia cultural é de grande importância para se observar a
aplicação dos direitos humanos, pois, como já dito, estes têm aplicações e
compreensões diferentes a depender de cada grupo analisado.
Assim, a preservação de pequenas culturas e tradições além de serem
importantes para a compreensão da concepção de direitos humanos para aquele
grupo social, também o é para evitar atos de colonialidade.
Neste sentido nos ensina Escrivão Filho, com fundamento no pensamento de
Herrera Flores, sobre a necessidade de “reinventarmos” os Direitos Humanos sobre
uma perspectiva única e indissociável, os entendendo como:

um processo de luta pela dignidade, ou seja, um conjunto de práticas


sociais, institucionais, econômicas, políticas e culturais levadas a cabo
pelo movimento de grupos sociais em sua luta por um acesso
igualitário e não hierarquizado a priori aos bens que fazem digna a vida
que vivemos. ( 2016, p. 46)

Escrivão Filho ( 2016, p. 46), afirma em sua obra que os direitos humanos
estão intimamente ligados a dignidade material dos cidadãos, e como tal, devem servir
com forma de rebeldia ao colonialismos e de oposição a privilégios à países centrais,
marginalizando os periferizados, pois, os Direitos Humanos devem ser vistos sob a
ótica de igualdade de armas, dando a todos o direito de se manifestar política e
socialmente, não podendo serem divididos em classes de importância.
Assim, podemos entender que não existe uma distinção entre os Direitos
Humanos, muito menos uma hierarquia entre eles, que justifique uma divisão, pois
estes são interdependentes.
Visto isso, sabemos que os Direitos Culturais são uma parte importante na
preservação e na sobrevivência de pequenos grupos sociais. A expressão cultural,
pode ser vista com uma manifestação social e política, visto que muitos grupos sociais
protestam contra o colonialismo a partir de suas expressões culturais.
A proteção dos Direitos Culturais, está intimamente ligada à sobrevivência
desses pequenos grupos sociais, ante a todo o contexto histórico e identitário que se
encontram por trás da manutenção destas práticas.
Segundo José Ricardo Fernandes (1995, p. 31) , direitos culturais são
“aqueles direitos que o indivíduo tem em relação à cultura da sociedade da qual faz
parte, que vão desde o direito à produção cultural, passando pelo direito de acesso à
cultura e até o direito à memória histórica”.
Ainda, segundo Janice Braga (2014, p.06) a cultura está por várias vezes
ligada à educação, nas manifestações artísticas, nos meios de comunicação em
massa, nas festas e cerimônias tradicionais, nas crenças de um povo, na comida, ou
até mesmo em seu idioma. Os Direitos Culturais podem ser identificados em diversas
formas de manifestação, bem como a sua importância para a formação de uma
sociedade, vez que estão presentes em diversas partes da nossa vida (2014, p. 05).
Os direitos culturais podem ser considerados como a base da sociedade,
pois, conforme expôs sua composição se dá pelos costumes e cultura local, fomentam
a convivência harmônica, a preservação da história de um povo, de uma nação ou
uma pátria.
Este elemento é uma importante característica do ser humano, da sua
dignidade, constrói o pensamento e forma cidadãos, sendo considerado um meio para
que o indivíduo construa seu pensamento crítico, com base em seus valores sociais,
e possa, portanto, gozar de seus direitos de uma forma ampla.
A preservação e o fomento dos direitos culturais vão muito além da
manutenção de pequenas tradições, este serve como formador de identidade,
consciência política, e elemento formador de identidade social.
A salvaguarda destes direitos no sentido de preservar pequenas tradições
populares torna-se importante não só para a manutenção da identidade social de
determinados grupos sociais, mas está intimamente ligado à sua condição como
sujeito de direito que, por meio de seu grupo, possa expressar e usufruir seus ideais
políticos, econômicos e civis.
As tradições são elementos que compõem a cultura de pequenos grupos
sociais, a sua repetição forma a identidade social destas comunidades, dando a ele o
sentimento de pertencimento a um grupo.
Em que pese algumas tradições serem inventadas ao longo do tempo, estas
não perdem seu caráter histórico, pois, estas ainda preservam a memória e a
identidade de determinado grupo social.
Nesse sentido, entendemos que as tradições fazem parte do patrimônio
cultural social e, por consequência, integram a cultura local, e por este motivo devem
ser protegidos.
A preservação destas diferenças culturais é de grande importância para
garantir a todos o direito à cultura, e a manifestação de seus demais direitos, visto que
estes não podem ser vistos de maneira dissociada.
O Direito à Cultura é parte integrante da formação do pensamento social,
compõe o cidadão como ser político. Devemos, portanto, buscar a proteção das
pequenas tradições como forma de manutenção da memória histórica desses povos
e preservar a sua diversidade.
Neste sentido, a melhor forma de se compreender a importância de um olhar
decolonial sobre a cultura e os direitos humanos é a partir da perspectiva multicultural,
na qual entende a sociedade como um organismo em formação, composto por grupos
diversos, formados em contextos sociais, religiosos, raciais diferentes, preservando e
respeitando suas desigualdades.
Compreender os direitos humanos sobre o aspecto multicultural e garantir que
cada grupo social seja respeitado em sua integralidade, sem a imposição ou a
hierarquização de culturas, pensamentos, raças e religião.

3. História oral – como fonte de pesquisa sobre patrimônio alimentar

Como vimos, o ato de preparar alimentos é algo muito antigo, vem antes
mesmo da dominação do fogo. Em que pese ser essencial, o ato de se alimentar não
é democrático, uma vez que em nossa sociedade, ainda há falta do que se comer e,
por isso, o ato de se alimentar é algo relevante socialmente.
Assim, podemos ver a importância da alimentação e dos patrimônios
alimentares como fonte de estudo na história e, também, nos direitos humanos,
vejamos:

O alimento constitui uma categoria histórica, pois os padrões de permanência e


mudanças dos hábitos e práticas alimentares têm referências na própria dinâmica
social. Os alimentos não são somente alimentos. Alimentar-se é um ato nutricional,
comer é um ato social, pois constitui atitudes ligadas aos usos, costumes,
protocolos, condutas e situações. Nenhum alimento que entra em nossas bocas é
neutro. A historicidade da sensibilidade gastronômica explica e é explicada pelas
manifestações culturais e sociais como espelho de uma época e que marcaram uma
época. Neste sentido, o que se come é tão importante quanto quando se come,
onde se come, como se come e com quem se come. Enfim, este é o lugar da
alimentação na História. (SANTOS, 2005).

Sob este aspecto o Professor Carlos Roberto, nos diz que a alimentação e,
as cozinhas locais, são “produtos da miscigenação cultural, fazendo com que a
culinária revelem vestígios das trocas culturais.”(2005, p. 02), assim, podemos afirmar
que a alimentação é uma categoria histórica, capaz de ser fonte de estudo das
permanências e evoluções sociais. (2005, p.02)
E assim, como fonte histórica, muitas vezes as práticas alimentares não são
registradas formalmente de maneira escrita, facilitando assim a consulta do
pesquisador. Em sua maioria, as tradições alimentares são repassadas de geração
em geração, por isso, a história oral é a melhor forma pela qual se pode extrair
informações importantes, sentimentos. Por óbvio, este olhar sobre a história oral deve
ser tratada em conjunto com outras fontes, a fim de corroborar as informações tidas
pelos depoimentos.
Além disso, a metodologia de história oral nos traz uma amplitude de
possibilidades de estudos,vez que através de um depoimento podemos colher
inúmeras informações do objeto estudado, e para isso, precisamos delimitar o tema
estudado e o basear em um bom referencial teórico.
Assim, podemos conceituar história oral como uma metodologia “que busca,
pela construção de fontes e documentos, registrar, através de narrativas, induzidas e
estimuladas, testemunhos, versões e interpretações sobre a História e suas múltiplas
dimensões" (DELGADO, 2006, p. 15).
Ainda, Portelli nos diz que a fonte oral e a oralidade em si é um meio de
darmos aos que não são ouvidos um meio para que seus discursos tenham “acesso
à esfera pública, ao discurso público, e o modifiquem radicalmente”. (PORTELLI,
2010, p 3)
Neste sentido, afirma Thomson:
Mesmo quando existem fontes documentais produzidas e
preservadas por membros de comunidades migrantes, a evidência
oral pode atuar como um ‘corretivo poderoso’. Ela também pode
proporcionar uma afirmação positiva de identidade para o narrador,
para os membros de uma comunidade particular e para o mundo lá
fora. (s.d., p 344)

Não só isso, Halbswachs, também nos diz sobre a fonte oral “a lembrança
é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados
do presente” (2004, p.75).
Desta forma, podemos ver que o trabalho com história oral é de grande
importância para analisarmos e entendermos como a se construíram as tradições
alimentares de determinados grupos sociais e, a sua importância e relevância social
para eles, sendo, muitas vezes a única forma de se registrar a fala e as práticas tidas
como patrimônio imaterial.

3.1. Memória e história oral

Quando tratamos de tradições, e principalmente quando falamos em tradições


alimentares, na maioria das vezes estas não são registradas, mas sim transmitidas de
maneira oral. A história oral muitas vezes dá forças e voz aos que muitas vezes
esquecidos, fazendo com que cada indivíduo seja autor da história.( JOUTARD, ANO,
p. 33).
Em casos como estes, nos baseamos na memória dos indivíduos para
extrairmos as informações das quais nunca haviam sido escritas. Se tratando de
memórias, Jacques Le Goff (2013, p. 388) afirma que a memória pressupõe uma
estruturação e uma auto-organização das atividades, caracterizando uma função
social, e a memória “étnica” se consubstancia na reprodução de comportamento das
sociedades (2013, p. 389).
Neste mesmo sentido, o mesmo autor afirma sobre a importância da memória
coletiva, pois segundo ele, “são as sociedades cuja memória social e, sobretudo, oral,
ou que estão em vias de constituir uma memória coletiva escrita, aquelas que melhor
permitem compreender esta luta pela dominação da recordação e da tradição, esta
manifestação da memória (2013, p. 435).
As memórias são importantes na formação da identidade dos grupos sociais
e, muitas das vezes, não são registradas, principalmente nas sociedades em que a
escrita ainda não é inserida e, por isso, a história oral se mostra eficiente para registrar
fatos históricos.
Neste sentido, François Dosse afirma que o historiador pode ter informações
do inconsciente das práticas coletivas, pode resgatar informações que pelos demais
métodos empíricos não seria possível e, com isso relatar com maior convicção os
acontecimentos históricos. (2017, p. 289)

Podemos observar que na comunidade de Witmarsum, principalmente


durante a Era Vargas, foi proibida de realizar registros, falar, ou praticar tradições em
língua alemã ou que remetesse a sua nacionalidade, sendo tolhidos de suas práticas
culturais, perdendo muitos dos seus registros.
Contudo, mesmo neste momento de privação e perseguição dos
descendentes alemães, estes recriaram formas de se expressar culturalmente e
driblar a fiscalização, fazendo uso de dialetos antigos para enganar os policiais
brasileiro e ainda permanecer aceso o sentimento de pertencimento daquela
comunidade.
Por não haver registros escritos, muitas tradições foram se perdendo ao longo
do tempo, seja ela pelo esquecimento ou até mesmo pelo fato de que aqueles que as
vivenciaram nos deixaram e levaram com eles os momentos vividos. Por essas e
outras razões, a memória e a história oral são de extrema importância para registrar
aquilo que não que não foi transformado pela escrita, a história oral não é só uma
maneira de transcrição de lembranças, mas, também, de rememorar e reconstruir os
acontecimentos histórico para que possamos analisar os acontecimentos no futuro
com detalhes que a escrita não é suficiente para registrar.

4- A Criação da comunidade luterana de Witmarsum - da sua origem a chegada no


Paraná

Para entendermos como se formou a cultura de produção de queijo na


comunidade de Witmarsum, primeiramente precisamos fazer uma síntese histórica de
como a comunidade de alemães menonitas se fixou no Brasil e ainda entender qual o
seu contexto cultural em seu país de origem.

Para compreendermos a cultura da comunidade de Witmarsum, precisamos


entender quem foi Menno Simons que, segundo Wilson Maske (2019, p. 35), o
fundador do Anabatismo nasceu em 1496, na cidade de Witmarsum, de uma família
de camponeses que eram dedicados à produção leiteira.

De formação religiosa católica, permaneceu na doutrina cristã até 1536,


quando passou a se engajar ao Anabatismo e, por meio de seus estudos bíblicos
Menno passou a liderar o movimento anabatista, o qual foi amplamente aceito pelos
membros, mudando a sua denominação para menonitas em homenagem a ele.
(MASKE, 1999, p. 36)
Por muitos anos os menonitas foram perseguidos por líderes de outros
posicionamentos religiosos e até mesmo por governantes, uma vez que discordavam
de sua opinião política, o que fez com que mais e mais este grupo fosse se isolando
e se agrupando em comunidades rurais, o que deu uma característica muito própria
do grupo.

Segundo Maske (1999, p.11), o grupo religioso considerava alguém como


menonita após sua conversão por meio do batismo e seu engajamento em uma
comunidade, contudo, aqueles que não aderiram a uma comunidade também
poderiam ser considerados como menonitas, uma vez que estes se conectam pela
língua, cultura, pela prática de suas tradições, etc.

Além disso, por sua orientação religiosa havia uma proibição ao casamento
com membros de outros grupos, ou ainda, se assim fosse feito, os filhos deste
casamento não poderiam ser integrantes da comunidade menonita. Tais posições
acabaram por gerar desconforto na sociedade e ainda uma pressão por parte do
Governo Prussiano, local este onde haviam se estabelecido por um longo período.

O auge da mudança foi por volta de 1786 quando o governo Prussiano passou
a se preparar para os confrontos militares que estavam para acontecer (Revolução
Francesa e Guerras Napoleônicas). A pressão para a participação do corpo militar fez
com que os menonitas se afastassem mais, por sua oposição a militarização, e ainda
para que sofressem sanções pelo governo a fim de forçar a sua participação no
serviço militar.

Quando a situação se tornou insustentável perante a comunidade Menonita,


estes se viram obrigados a migrar para outras regiões que lhe dessem oportunidade
para o desenvolvimento de seu grupo fechado com “disponibilidade de amplos
territórios, privilégio de exclusão ao serviço militar, independência administrativa,
instituição de um sistema educacional autônomo e completa liberdade religiosa.”
(MASKE, 1999, p. 44)

Neste momento os menonitas se estabeleceram em outras regiões tornando


a comunidade muito próspera, porém essa prosperidade não perdurou fazendo com
que eles migrassem para outros países como Estados Unidos, Canadá e Brasil em
1873 (MASKE, 1999, p. 51).
Por não possuírem um território comum no qual este grupo se fixou, e devido
aos grandes ciclos migratórios, os menonitas não se apresentavam vínculo direto com
o seu país de origem, mas sim pelos seus laços religiosos, suas tradições e origens
étnicas, tornando-se base de sua identidade (MASKE, 199, p. 12).

Ao chegarem na América do Sul, alguns grupos menonitas se dirigiram ao


Paraguai com uma proposta de que lá poderiam desenvolver suas atividades sem
qualquer imposição ou perseguição, entretanto, ao chegar na região viram que as
terras não eram prósperas para o desenvolvimento agrícola e pecuário, assim,
aceitaram a proposta de se mudarem para o Brasil onde encontrariam terras maiores
e isoladas, próprias para acomodar a comunidade menonita.

Durante o período de 1929-1930, a Sociedade Colonizadora Hanseática


(SCH) passou a colonizar as faixas do sul do Brasil. Anteriormente, a antecessora da
SCH, a Sociedade Hamburguesa de Colonização passou a fazer grandes
propagandas sobre o promissor projeto de colonização do Brasil, visando a instalação
de colonos nas terras devolutas no estado de Santa Catarina. Neste período, seriam
trazidos para o Brasil cerca de 6.000 alemães para colonizar um território de
aproximadamente 600.000 hectares. (MASKE, 1999, p. 62)

Em que pese o Brasil oferecer diversas vantagens, como um vasto território


no qual os menonita poderiam criar suas colônias em grupos fechados, a vegetação
e a geografia aterrorizavam os colonos que aqui chegaram. Entretanto, mesmo com
tantas adversidades, em 1931 chegaram ao Brasil cerca de 1.236 menonitas.
(MASKE, 1999, p. 66).

Antes de migrarem para o Paraná, os menonitas se instalaram ao longo do


Rio Krauel, no estado de Santa Catarina, onde fundaram a primeira colônia chamada
Witmarsum, em homenagem ao seu líder religioso Meno Simons.(MASKE, 199.P. 73).
Contudo, esta primeira colônia não estabilizou, momento em que os colonos decidiram
migrar para o estado do Paraná.

A nova comunidade, também nomeada de Witmarsum, foi formada por


alemães menonitas que migraram do Estado de Santa Catarina, que buscaram no
Paraná novas condições de vida, momento em que adquiriram a Fazenda Cancela no
município de Palmeira, com uma área de 7.800 hectares, que foi dividida em pequenos
lotes para cada família1.

Segundo Maske (1999, p. 73), a colônia de Witmarsum foi construída para ser
a capital do território menonita, concentrando nela a administração, escolas, hospitais,
a igreja e a sede da Cooperativa Witmarsum.

Os menonitas desenvolveram em suas colônias um comportamento pautado


no senso de comunidade, muito próximo a tradição desenvolvida em sua terra natal,
baseados sempre no compromisso com a fé comum. (op cit, KLASSEN, Peter Pauls,
1998, p. 100, em HAMM, 2018)

Ainda, as comunidades de imigrantes eram baseadas no regime de agricultura


familiar e, conforme nos diz Giralda Sayfert:

O modelo de povoamento baseou-se na concessão de um lote rural familiar, fixado,


aproximadamente, em 25 hectares depois da regulamentação da venda de terras
públicas, ocorrida em 1854. As unidades chamadas colônias (ou núcleos coloniais)
– com extensão territorial de duas até seis Léguas em quadro (conforme a legislação
pertinente) – eram divididas em Linhas (ou picadas que pudessem funcionar como
vias de comunicação) que partiam, inicialmente, de um lugar previsto para ser um
futuro povoado (demarcado com lotes urbanos). Os colonos encaminhados às
Linhas não podiam se fixar no povoado, pois havia a obrigação contratual
(registrada nos títulos provisórios de propriedade) de residir no lote recebido. Assim,
a noção de colônia configurou um tipo de exploração agrícola fundamentado na
pequena propriedade, uma unidade de produção voltada à policultura (portanto, ao
abastecimento) e trabalhada com mão de obra familiar. (2012, p. 15)

Ainda, segundo Hamm, a criação da colônia de Witmarsum teve um propósito


maior:

“A Colônia Witmarsum foi formada, dessa forma, a partir de um desejo de se reconstruir o que
os menonitas viveram no passado. Não o passado como um todo, mas um passado idealizado
que representava quem eles entendiam que eram ou queriam ser. Ou seja, a forma como os

1
https://www.witmarsum.coop.br/a_cooperativa/historico.html, visualizado em 01/02/2021,
às 15h45.
menonitas se identificam e que ficou marcada na Colônia Witmarsum é baseada em parte na
forma como eles lembram o passado.” (2018, p. 46)

Hamm ainda afirma que, há época existiam dois grupos de menonitas, os de


origem suíça migraram para a Pensilvânia e Estados Unidos e, após o século XVII
para a Alemanha, já os de origem holandesa migraram para a Polônia,
especificamente próximo ao rio Vistula e a região de Gdansk, e ao fim do século XVIII
para a Rússia, descendendo deste último grupo os menonitas que fundaram a Colônia
de Witmarsum no Brasil. (2018, p. 28)

Este mesmo grupo vinha de um contexto social urbano e rural, e em sua


maioria o grupo foi formado por comerciantes, artesãos e em especial de fazendeiros
(Hamm, 2018, p. 28). Os menonitas construíram suas vilas baseadas no senso de
comunidade, com a padronização de construções, ainda a autonomia e a
administração deste grupo nas colônias criaram ambientes com identidade étnica,
importantes para o desenvolvimento e coesão do grupo. (Hamm, 201, p. 39)

Em que pese as diversas migrações dos grupos menonitas e a certa


aculturação, ou até uma ausência de referência cultural após a mudança deste grupo
para a Rússia, a identificação deles com a cultura alemã foi reforçada, como bem
afirma Hamm:

“Embora os menonitas tenham sido questionados quanto à sua origem, se


holandesa ou alemã, a identificação cultural se mostrou mais importante, e
prevaleceu nas colônias a língua alemã e a consciência de identidade alemã.”
(2018, p. 40)

Para compreendermos a formação cultural dos imigrantes alemães, devemos


sempre estar atentos que para eles a igreja e a germanidade, em especial nos grupos
evangélicos-luteranos, sendo que a noção de pátria (Heimat) e do espírito nacional
(Volksgeit), estavam intimamente ligados identidade étnica do grupo, que buscava
construir sua nova pátria em terras brasileiras, mantendo ao máximo as tradições de
sua origem e, principalmente a língua materna (SAYFERT, 2012, p.18).
Além deste da influência alemã na cultura, os menonitas criaram seu estilo
cultural próprio, o Mennonitentum, que caracterizaria a identidade do grupo, baseada
na literatura, união do grupo, a origem alemã, o cuidado com a educação e a religião.
(BARBOSA, 2009)

É importante lembrar que o grupo de menonitas que formaram a colônia de


Witmarsum são dissidentes de um grupo de menonitas formados em Santa Catarina.
Este grupo se constituiu próximo a região do vale do rio Krauel, contudo, essa colônia
não se desenvolveu como planejado, houve entre os moradores muitos dissensos e
insatisfações, não representando a imagem e a identidade menonita.

Assim, segundo Hamm a mudança para o Paraná e a criação da Nova


Witmarsum foi uma forma de colocar em prática a real identidade menonita:

“A Colônia Witmarsum foi formada, dessa forma, a partir de um desejo de se


reconstruir o que os menonitas viveram no passado. Não o passado como um todo,
mas um passado idealizado que representava quem eles entendiam que eram ou
queriam ser. Ou seja, a forma como os menonitas se identificam e que ficou
marcada na Colônia Witmarsum é baseada em parte na forma como eles lembram
o passado.” (2018, p. 46)

Ainda, segundo a mesma autora, a reprodução do ideal menonitas não se deu


só no comportamento de seus membros, mas, inclusive, na geografia e paisagem
local2.

Não obstante, além das demais manifestações para reprodução de sua


cultura, os menonitas buscavam através da educação preservar sua identidade
cultural, inclusive por meio da continuidade de sua língua. (MASKE, 1999, p. 120)

Assim, a mudança e criação da comunidade de Witmarsum no Paraná foi o


projeto dos menonitas em recriar a sua identidade segundo seus ideais de

2
A idéia da concentração das atividades da colônia para sua subsistência, mantendo-a
fechada para os que não pertenciam a comunidade menonita perdurou até meados de 1974,
quando foi necessário se adequar ao mercado e a legislação vigente, expandindo os negócios
da cooperativa além de Witmarsun.(HAMM, 2018. p. 55).
religiosidade, passando a seriedade daquele povo e baseado na memória que seus
fundadores tinham das colônias formadas na Rússia.

A Colônia de Witmarsum é conhecida pela grande produção de laticínios, a


Fazenda Cancela, localizada a 65 km da capital paranaense, com aproximadamente
7.800 hectares para criação de gado durante o período do século XVIII e XIX (HAMM,
2018, p. 49).

Em meados do século XVIII o comércio interno brasileiro começou a se


consolidar, deslocando a produção para o Sudeste, devido a necessidade de
abastecimento da região mineira (GUTIERREZ, 2004, 102). Segundo o mesmo autor,
a pecuária teve um papel importante nos círculos mercantis, pelo fato de ser a única
fornecedora do meio de transporte de os produtos produzidos para importação,
inclusive sendo instrumento de trabalho nos engenhos e fonte de alimento (2004,
p.102).

No estado do Paraná a pecuária sempre funcionou em conjunto com outras


atividades tais como o tropeirismo, a invernagem e a criação, e assim estimulou a
instalação de fazendas e comércio nas proximidades das estradas, que serviam,
sobretudo para alugar pastos e auxiliar os comboios (GUTIERREZ, 2004, p. 103).

Assim, em Witmarsum o centro da comunidade e da Fazenda Cancela foi


fundado na Cooperativa Mista de Witmarsum, tendo como foco a produção de leite
para beneficiamento exclusivo pela cooperativa.

A Cooperativa foi fundada em 1952, e tinha como objetivo ser o ponto central
da comunidade e, ainda evitar que a sociedade se enfraquece como ocorreu nas
Colônias de Santa Catarina, representando o “modo de ser e viver menonitas de
acordo com a sua tradição” (op cit, KLASSEN, 1998, p. 110, in HAMM, 2018, p 54).
Tendo como premissa que todos aqueles que faziam parte da cooperativa deveriam
se comprometer com a colônia e com a comunidade, sendo importante para a
produção de consumo local (HAMM, 2018, p. 54).

4.1 - NACIONALISMO NA ERA VARGAS E A CRISE IDENTITÁRIA IMIGRANTE

O Brasil formado por uma multiplicidade de culturas teve em alguns momento


na sua história acontecimentos que marcaram a criação de uma identidade nacional.
Podemos dizer que essa criação de uma identidade brasileira teve seu início na
proclamação da república, com o desenvolvimento dos heróis republicanos, os
símbolos, etc (CARVALHO,2011), passando pelo pela independência até a revolução
de 1930.
A identidade é forjada de acordo com o interesse de uma maioria, sendo um
produto derivado dos grupos dominantes da elite intelectual e política. (CARVALHO,
2016, apud GIACON, E. M, 2011). Esta identidade é formada por inúmeros fatores,
seja na paisagem, na língua, no folclore, pelos símbolos nacionais, criando uma ideia
de pertença e, não necessariamente de unicidade, mas sim de união.
Em sua primeira perspectiva, o Brasil criou sua imagem por meio de uma raça,
formada por diversas culturas, diferenciando-se muito do ideal iluminista europeu.
Esta multiplicidade de cultura era usada como resposta a justificar uma certa
defasagem educacional no país, e tal fato incomodava a elite intelectual brasileira.
Em que pese a grande tentativa em criar uma identidade única pelos
intelectuais brasileiros, esse ideal nacionalista teve um reforço na Revolução de 1930.
Mas, antes de adentrarmos aos acontecimentos históricos, é importante frisar que o
conceito de nacionalismo e identidade são opostos, porém se complementam pelo
fato de um ser decorrente do outro.
Segundo o Dicionário das Ciências Sociais, podemos conceituar o
nacionalismo como a consciência de grupo que acarreta no senso de unicidade entre
um indivíduo e um Estado político existente ou em aspiração, podendo ser igualado a
um estado de espírito com afinidades entre grupos. (SILVA, 1987, p. 802) Dicionário
das Ciências Sociais, 2ª Edição. Editora: Fundação Getúlio Vargas, 1987
Já a identidade pode ser definida segundo Giacon como:

A identidade nacional antes de estar associada a uma atitude, a uma preferência, a


um momento histórico, a uma raça ou até mesmo a confluência alguns fatores que
faz com que um grupo de pessoas adote um mesmo território, onde possam viver e
desenvolver-se, a identidade nacional é uma forma discursiva produzida em
determinado contexto histórico. Se considerarmos que a identidade é um discurso,
sua definição passa, então, a estar associada ao fruto do pensamento intelectual e
político de cada época da história dessa comunidade. (GIACON, 2011, p.01, apud,
CARVALHO, 2016, p. 06)

Desta maneira, por diversas vezes a identidade brasileira foi forjada a


fim de construí-la e dar àquele grupo um sentimento de pertencimento a algo maior.
No decorrer da história brasileira vimos a criação dos símbolos nacionais, do
hino, do folclore, da comida e até mesmo pelo futebol, com instrumentos da identidade
nacional. Contudo, podemos dizer que na Era Vargas o nacionalismo tomou grandes
vertentes, o projeto de educação durante este período foi muito além de uma ideia de
pertencimento.
Assim, em 1930 quando Getúlio Vargas assumiu o poder os ideais de
nacionalismo ficaram bem delimitados por ele e por aqueles que compactuam com
suas ideias. O governo autoritário passou a delinear o seu posicionamento sob a ótica
de uma autoridade que contivesse as camadas inferiores, aquecendo nos grupos os
debates sobre eugenia e nacionalismo.
Não apenas no controle das camadas sociais é que o nacionalismo de Getúlio
Vargas se posicionou, também foi declarada a Emenda Constitucional de 1934, que
resultou no art. 121, que garantia ao imigrante uma “integração étnica” e restringia a
imigração a um total de 2% sobre o número de nacionais no ano, vedado, inclusive, a
concentração de imigrantes no território nacional para evitar a formação de grupos
étnicos. (1988, p. 30)
Durante todo o período do Governo Vargas, em especial em 1937 com o golpe
de estado, o autoritarismo se tornou a linha central, o governo tinha como princípios
para coibir e a insurgências políticas a proteção ao homem brasileiro e ao progresso
da moral brasileira.(1988,p.32)
Este cenário de governo não deixava abertura para uma política migratória,
vez que buscava a homogeneização da população, fazendo grandes projetos contra
a entrada de estrangeiros no país, e buscando “abrasileirar” os grupos imigrantes já
existentes. (1988, p. 33)
Nesse sentido de controle dos imigrantes, a política migratória teve grande
influência no controle dos grupos, uma vez que estes eram estrategicamente
colocados em terras devolutas, afastada dos centros urbanos, e colocados em
condições diversas das vividas em sua terra natal, tornaram-se um meio de
‘aculturação”, pelo fato destes terem que adaptar seu modo de alimentar, morar, vestir
ao ambiente brasileiro. (SEYFERTH, 2011, p. 51).
Não bastando isso, com o apoio da Igreja Católica ao governo Vargas, a qual
se tornou a mais adepta no país, foi instituído na grade curricular o ensino religioso
através da Tribuna e, ainda, a Igreja teve um papel contundente na construção da
nação, sob as suas perspectivas. Sob a mesma ótica a educação nacional ganhou
enfoque, pois, para o governo, esta seria importante para o crescimento da nação.
Contudo, com o acontecimento da Segunda Guerra Mundial, o nacionalismo na Era
Vargas mudou de foco, a ideia do fortalecimento da educação mudou de lugar com
uma posição mais autoritária do governo.
Como parte da política nacionalista de Vargas, durante a Segunda Guerra
Mundial houve uma grande política de abrasileiramento, mais fortemente aplicado na
região sul, quando o governo passoua acompanhar os estrangeiros alemães de forma
mais próxima.
Em que pese o Getúlio Vargas no início ter uma grande admiração pelo
governo nazista, após a coalizão do Brasil com os EUA isto mudou de figura,
passando então a fazer uma forte perseguição a tudo aquilo que fizesse menção ao
nazismo.
Em 1930, com a conquista o poder pelo Governo Vargas, e como o
fortalecimento da política nacionalista, passou-se a tentar “abrasileirar” a população
imigrante, inclusive tento minimizar as influências estrangeiras aqui. (MASKE, 1999,
p. 130)
A partir desse momento os imigrantes alemães foram perseguidos e, não
bastando isso, tudo aquilo que o governo entendesse por prática de risco ao Estado
Nacional acarretaria na prisão e até em deportação. Com tais medidas, passou-se a
restringir a cota de imigrantes no país, a utilização da língua estrangeira, seja ela
escrita ou falada, e até mesmo às práticas culturais.
Não só as práticas culturais foram proibidas, mas, também, a comercialização
com imigrantes alemães, nem mesmo altos cargos de administração poderiam ser
desempenhados por teuto-brasileiros, até mesmo algumas localidades tiveram que
alterar seus nomes para uma denominação brasileira adequada aos novos padrões
da política de nacionalização. (MASKE,1999, p. 146)
Vale ressaltar que esta perseguição começou antes de 1930, com a primeira
guerra mundial os olhares do governo já estavam mais atentos às comunidades
germânicas, em especial quando verificaram a existência de um grande número de
imigrantes vinculados a esta origem em território nacional. (MASKE, 1999, p. 144)
Desde 1919 os estados já estavam aplicando políticas nacionalistas,
restringindo ao máximo as manifestações culturais estrangeiras, em especial as teuto-
brasileiras
Esta perseguição, característica dos governos totalitários, veio repaginar a
imagem do brasileiro, e para tanto era necessária a extrema valorização dos velhos
símbolos nacionais, como a língua, os heróis e de valores como a nacionalidade, o
trabalho e a moral, como principais na construção do homem brasileiro (1988, p. 35).
Segundo Maske (1999, p. 120), interessava muito aos menonitas que os participantes
da comunidade frequentarem escolas dentro da própria colônia, pois este era um meio
de preservar a sua identidade e a continuidade do Deutschtum e da língua alemã.
Ocorre que o governo brasileiro não deixou de perceber esta interferência na
continuidade do projeto nacionalista, tendo, inclusive, sido enviado por este um
professor de língua portuguesa à comunidade para ensinar jovens e adultos e os
professores locais, a fim de inibir a utilização da língua alemã. (MASKE, 1999,p. 121)
Os menonitas durante o período de 1938 foram duramente perseguidos pelo
governo brasileiro, não podiam realizar manifestações culturais que fizessem lembrar
as tradições alemãs, ainda, foram proibidos, inclusive, de usar a língua alemã, sendo
punidos com multa e até prisão caso algum fiscal os flagrasse. (MASKE, 1999, p. 128).
Com isso os menonitas passaram a se valer da ambiguidade de sua
nacionalidade e passaram a se comunicar por meio do Plautdeutsh, um dialeto
holandês, e com isso conseguiram burlar a proibição do governo brasileiro e perpetuar
a sua cultura. (MASKE, 1999,p. 128)
Esta habilidade de transformação adquirida pelos menonitas se deu muito ao
fato de, ao longo de sua história, terem a necessidade de mudar constantemente de
local, uma vez que a intolerância religiosa os obrigava a imigrar para novas terras
onde pudessem desenvolver, sobretudo, seu estilo de vida. (MASKE, 1999, p. 146)
Em que pese as grandes perseguições durante a Era Vargas sobre os
imigrantes, em especial os alemães, a proibição do uso da língua estrangeira não foi
óbice para a manutenção da etnicidade daquele grupo, permaneceram e foram
absorvidos pelos imigrantes outros hábitos que não os seus de origem, no entanto,
esta absorção não os dissociava de sua origem, vez que perpetuavam sua pertença
por meio da organização social, dos hábitos e nas práticas do dia-a-dia (SEYFERTH,
2011, p 53).
No caso de Witmarsum, como já dito, como maneira de burlar a fiscalização
fazendo uso de sua trajetória cultural e influência holandesa, os menonitas passaram
a utilizar o dialeto holandês como maneira de manter seus vínculos e tradições que,
para o governo brasileiro estava associado a sua origem geográfica na Alemanha, e
não a sua de ancestralidade menonita.
Mesmo após todo o período nebuloso no Governo Vargas e as grandiosas
restrições de manifestação cultural e até econômica aos imigrantes alemães, não foi
suficiente para fazer com que estes grupos e, no caso em comento, os Menonitas,
deixassem que cultivar suas tradições étnicas e manter viva na comunidade o
sentimento de pertencimento.

4.2 O QUEIJO NO BRASIL

Pelo fato do Brasil ter sido colonizado por portugueses e, para eles o consumo
de queijo era muito tímido, nós não tivemos desde a nossa formação a cultura de
produção de derivados do leite.
Não obstante a esse fato, não sabemos ao certo onde a produção de queijo
surgiu, sendo que no mundo, o seu consumo é amplamente praticado devido ao valor
nutricional do leite e de sua praticidade de conservação. (NETTO, 2014, p. 28). Com
o aprimoramento das técnicas agrícolas, e as suas práticas voltadas para o sustento
das famílias camponesas e, uma vez que o leite se trata de um produto altamente
perecível a sua transformação em queijo manteiga tornou-se o meio mais prático para
a sua conservação.
Conforme cita Braga, os séculos XV a XVIII são importantes no
desenvolvimento da produção queijeira no Brasil e tempo posterior, e após este
período a indicação de origem na produção de queijo passaram a ter relevância no
comércio do produto.(2019, p. 53)
O século XV foi de grande importância para o desenvolvimento da produção de
queijo, a partir deste momento é que se passou a sofisticar a sua manufatura,
deixando de ser um alimento de fácil conservação e valor nutritivo, para algo mais
saboroso. (BRAGA, 2019, p. 53)

4.3 A PRODUÇÃO DE LEITE E DE QUEIJO EM WITMARSUM

Pela própria influência dos seus antepassados que vieram dos Países Baixos,
os menonitas sempre viveram em comunidade, e tal prática refletiu no modo com que
eles foram se estabelecendo ao longo do tempo e consequentemente em como se
fixaram no Brasil.
Ao longo dos anos, e ao perceberem que a Fazenda Cancela não seria um
local para a produção agrícola, devido ao solo e o clima local, os colonos optaram pela
produção pecuária, primeiramente na produção de queijo e, recentemente, na
produção de queijos.
Witmasum, com cerca de 33 mil habitantes, aproximadamente 2 mil pessoas
trabalham na pecuária com a produção de leite. A colônia chega a produzir 80 mil litros
de leite, sendo da produção extraído uma tonelada de leite ao dia3.
A opção pela produção de queijos veio de a de encontro a uma necessidade
dos cooperados que viram a diminuição do interesses dos jovem que vivem na colônia
na produção de leite e a saída destes da comunidade e, no ano de 2000 iniciou-se o
projeto de produção de leite na comunidade4.
Atualmente a comunidade produz uma gama de queijos com certificação de
procedência, sendo eles o colonial e os tipo minas, ricota, brie, camembert,
appenzeller, emmental, raclette e a mistura para fondue5. Segundo informações da
própria Cooperativa, os queijos são produzidos por meio de uma coleta rápida do leite,
em uma altitude de 1000 metros acima do nível do mar, com controle de pastagem e
de rebanho, caracterizado pela exclusividade de vacas da raça holandesa e pardo
suíco.
Recentemente a comunidade de Witmarsum recebeu a certificação de
indicação geográfica de procedência pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial
- INPI, para tanto, foi necessário criar um manual rigoroso sobre o modo como o pasto,
o gado, e o leite deve ser envasado e armazenado, para sempre produzir queijos de
qualidade.
A seleção dos produtores para fornecimento de leite para que seja feita a
produção de queijo na cooperativa é extremamente rigorosa, sendo exigido dos
produtores o controle de doenças como brucelose e aftosa, a análise dos
equipamentos, controles sanitários, manutenção e produção animal e demais normas
sanitárias.

3
In, ttps://www.gazetadopovo.com.br/viver-bem/turismo/conheca-witmarsum-terra-do-leite-e-queijo-
em-palmeira-no-parana/
4
https://www.gazetadopovo.com.br/viver-bem/turismo/conheca-witmarsum-terra-do-
leite-e-queijo-em-palmeira-no-parana/
5
https://www.witmarsum.coop.br/produtos/queijos/queijo.html
Além da produção, também é controlado a forma com que os cooperados
fazem o armazenamento e limpeza dos tanques de refrigeração de leite. Todo este
modo de fazer, desde o manejo do animal até o tratamento do leite para a produção
de queijo fazem parte do saber fazer preservado e tido como tradicional pela
comunidade, e transformam o e traduzem a imagem de seriedade e carinho que a
comunidade de Witmarsum tem pelo produto produzido.
A este método podemos denominar de Terroir, ou seja, a produção de
determinado produto e a sua qualidade é determinada por padrões específicos de
produção em determinados locais.
Sobre este aspecto e a complexidade de produção, os queijos artesanais
devem ser vistos muito além do que a transformação da coalhada do leite, eles
representam todo o histórico dos que o produzem, desde a passagem das tradições
pelas gerações, as memórias trazidas na sua produção e até mesmo pelo
reconhecimento de outras comunidades sobre a história e o que é produzido.

1.1
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS

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https://www.witmarsum.coop.br/a_cooperativa/historico.html, visualizado em
01/02/2021, às 15h45.

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