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A HABITAÇÃO SOCIAL NO HORIZONTE DA SUSTENTABILIDADE: um metaprojeto a partir de espaços coletivos do habitar em Porto Alegre e Lisboa na segunda metade do
século XX View project
All content following this page was uploaded by Ana Silva Moreira on 01 October 2020.
Resumo:
res. Uma outra faceta, não menos importante, é a da habitação como produto de con-
sumo, em especial desde as últimas décadas do século XX, tornando-a sensível a
modas e imaginários do viver ideal e a alterações relacionadas com padrões de con-
sumo e hábitos alimentares. De acordo com estas premissas é possível afirmar que os
espaços do habitar têm sofrido profundas transformações nos últimos anos.
O presente artigo tem como âmbito de estudo o espaço da cozinha, tido como o espa-
ço doméstico em que as condicionantes sociais e de consumo são, hoje, mais deter-
minantes.
Assim, sugere-se que tem emergido, recentemente em Portugal, uma nova tipologia
de cozinha que podemos denominar de ‘cozinha social’. Este espaço, desenhado co-
mo parte integrante dos espaços de estar/comer adquire assim novas funções, novos
usos, novas significações, e uma nova posição e importância na estrutura espacial da
casa. Afastando-se da cozinha-laboratório proposta pela arquitectura do Movimento
Moderno, de carácter puramente utilitário, assumindo-se como um espaço de serviço
mas igualmente de socialização, esta nova cozinha assume um novo papel na casa.
O objectivo principal do artigo é a sua caracterização. Já existente, há algumas déca-
das, em outras sociedades ocidentais, pretende-se encontrar justificações para o seu
aparecimento e implementação, identificar as suas características físicas, espaciais,
de relação, compreender o seu programa funcional e de uso, bem como identificar al-
guns exemplos interessantes da sua aplicação recente.
Focando a sua atenção não apenas no território português, a investigação procura
identificar a tendência em outros países do espaço lusófono, nomeadamente no Brasil,
onde este espaço – muitas vezes apelidado de ‘cozinha gourmet’ – tem vindo a tornar-
se quase obrigatório na promoção de habitação de mercado nas principais cidades.
O artigo procura assim contribuir para o reconhecimento de uma tendência actual nos
projectos de habitação e nos modos de habitar das famílias lusófonas, enfocando a
‘cozinha social’, suas características arquitectónicas, funcionalidade e usos, procuran-
do identificar os factores que estão na sua génese, permitindo compreender melhor a
sociedade contemporânea no que diz respeito às exigências, necessidades e desejos
em matéria de habitar.
1. Introdução
Entendendo a habitação como produto cultural de uma sociedade é importante perce-
ber que as alterações nos modos de vida se traduzem em novos paradigmas do habi-
tas, novos usos do espaço ou mesmo novos espaços no interior doméstico. Segundo
Hanson (1998), “(…) the fit between the internal organization of the space of the dwell-
ing presents a fairly precise map of the social relations of the members of the house-
hold. As the composition of the dwelling group changes, the use of rooms may change,
or rooms are added or demolished accordingly.” [1]
O presente artigo pretende discutir o espaço da cozinha na habitação, entendida como
o espaço doméstico onde o contexto e as alterações sociais são mais relevantes e
aquele que corresponde ao imaginário do estilo de vida ideal: “(…) the kitchen (…) be-
comes a surrogate, the clearest indicator of real taste and aspiration, if only rarely, iro-
nically, of the way life is actually lived.” [2]. O artigo procura a identificação e caracteri-
zação de uma nova e emergente tipologia de cozinha, a cozinha-social, identificando a
sua génese e factores que contribuíram para o seu aparecimento. Para tal, é feito um
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Modos de Habitar
1.2 Conceitos
Como ponto prévio é relevante discutir alguns dos conceitos que serão referidos ao
longo do estudo, inerentes ao espaço e funções da cozinha. De acordo com Salvador
[3] importa distinguir espaço de confecção e espaço de consumo: espaço de confec-
ção como o lugar onde são preparados os alimentos, fixo no espaço na acepção de
Lefebvre [4]; espaço de consumo como o lugar de tomada de refeição, móvel ou semi-
fixo [4]. Relevante para a investigação que se propõe, é ainda o espaço do estar, palco
de actividades sociais ou vida íntima familiar conjunta. Como se procurará demonstrar,
estes espaços têm sido alvo de mudanças ao longo dos tempos, tendo-se por vezes
convergido e por vezes distanciado e, neste último caso, em distâncias mais ou menos
relevantes.
Um outro conceito interessante é o de eixo da comida, ou food axis, introduzido por
Cromley [5]. Relacionado com os espaços de confecção e consumo, na medida em
que os contém, o conceito de eixo da comida compreende a relação entre os espaços
relacionados com a alimentação: cozinha, espaços de armazenamento e espaços de
refeição.
Procurar-se-á analisar a história da cozinha e a sua evolução à luz destes conceitos,
permitindo uma simplificação da relação dos espaços, seus usos e significados.
2. A Cozinha na história
De modo a melhor contextualizar e compreender a cozinha dos nossos dias é impor-
tante perceber a sua evolução, aliando as suas características espaciais, funcionais e
de significado simbólico aos modos de vida do seu tempo e sociedade.
Embora alguns autores comecem a história da cozinha pelo evento da descoberta do
fogo e da sua manutenção [6,7], importa neste artigo analisar como início a cozinha
medieval, ou a habitação medieval, como o faz Rybczynski [8], considerando-se os
burgos medievais a génese das cidades europeias e a casa medieval o ponto zero da
habitação ocidental. A habitação medieval caracteriza-se pela multifuncionalidade e
unidade do espaço doméstico. Conhecidas como hall ou halle, estas residências apre-
sentavam um espaço único, sem compartimentos ou divisórias, com sobreposição de
usos (a noção de função era ainda inexistente) consoante as necessidades e alturas
do dia: cozinhar, comer, receber, fazer negócios e dormir todos justapostos no mesmo
espaço e, por vezes, no tempo [8] (Fig. 1, 2). O conceito de privacidade era também
ele inexistente, decorrente do igualmente diferente conceito de família.
Analisando a casa medieval na perspectiva do eixo da comida é notório que o eixo não
existe, existe apenas um ponto no espaço, um contentor de todas as funções e espa-
ços alimentares (e sociais também), fruto da sobreposição do espaço de confecção e
espaço de consumo (Fig. 3). É ainda interessante perceber que esse ponto não é
constante ao longo do dia – por vezes existe (quando há necessidade de preparar e
consumir) e por vezes desaparece (por exemplo à noite), não é fixo. O espaço de es-
tar não é aqui considerado – a sociedade e casa medievais desconheciam ainda o
conceito de conforto.
3
4º CIHEL – Congresso Internacional da Habitação no Espaço Lusófono | A Cidade Habitada
Fig.1 – ‘Hall’ Medieval, corte e planta [9]; Fig. 2 – Representação de ‘Hall’ Medieval [10];
Fig. 3 – Esquema do eixo da comida
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Modos de Habitar
os alimentos são preparados para reinventar-se como uma das áreas de ócio na ca-
sa.” [17] (Fig.4) É também aqui que se defende uma ligação mais forte entre cozinha e
sala de jantar. “Frederick propôs que se abrissem as cozinhas a fim de que a pessoa
que cozinhava (a mulher) não ficasse isolada do resto da vida familiar e pudesse, ao
mesmo tempo, vigiar as crianças.” [17] Esta abertura, embora ainda apenas visual, e
este conceito novo influenciam posteriormente Frank Lloyd Wright e as suas casas
usonianas onde é proposto o open plan e onde os espaços da habitação se fundem
uns nos outros sem barreiras: “This new openness rejected rooms in favour of functio-
nal areas.” [18]
Deste modo, e enquanto na Europa nas habitações burguesas o eixo da comida conti-
nua alongado (embora menos que em séculos anteriores – Fig. 7), relegando o espaço
de confecção para um ponto afastado dos restantes (consumo e estar), nos Estados
Unidos este eixo condensa-se tornando quase equidistantes os pontos que o com-
põem, o que demonstra uma igualdade de importância e significado no seio da habita-
ção (Fig. 5).
Fig.4 – Planta de piso térreo de habitação – Christine Fredericks [19]; Fig. 5 – Esquema de eixo
de comida; Fig. 6 – Planta de apartamento, Rue Dufren 6, 1907 [20]; Fig. 7 – Esquema de eixo
de comida
São estas diferenças entre os dois continentes no dealbar do século XX que determi-
nam as diferentes evoluções dos espaços de confecção e consumo nas duas culturas.
Na Europa, o Movimento Moderno segue na direcção da racionalização e da procura
pelo espaço mínimo (Existenzminimum), surgindo a cozinha de Frankfurt (Fig.8) como
epítome dessa racionalização e espaço eficiente e taylorista. A família torna-se mais
reduzida, nuclear, e o papel da mulher altera-se. Perdem-se os criados e a dona de
casa é responsável pelas tarefas domésticas ao mesmo tempo que entra no mercado
de trabalho. Na habitação moderna o eixo da comida reduz-se (Fig. 11) como havia
acontecido na habitação americana de fim de século XIX e os espaços de confecção,
consumo e estar tornam-se adjacentes, existindo na maior parte das vezes uma so-
breposição entre espaço de consumo e espaço de estar (partilhando o mesmo com-
partimento – a sala comum) (Fig. 9 e 10). O carácter da sala de jantar também se alte-
ra, perdendo a sua formalidade e função teatral de recepção e encenação [21], adap-
tando-se à vida moderna familiar nuclear.
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4º CIHEL – Congresso Internacional da Habitação no Espaço Lusófono | A Cidade Habitada
Fig. 8 e 9 – Cozinha e Sala Comum, Casa Ernst May, Siedlung de Römerstadt [22]; Fig. 10 –
Planta do piso térreo da Casa Ernst May [17]; Fig. 11 - Esquema de eixo de comida
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Modos de Habitar
3. O contexto português
“No contexto português, em geral, o espaço da cozinha é um local muito central na
vida dos habitantes, remontando a sua importância às tipologias tradicionais portugue-
sas encontradas ainda presentemente nos meios rurais.” [28] Este habitar tradicional
coloca actividades de confecção e consumo no mesmo espaço físico, condensando o
eixo da comida, podendo estabelecer-se um paralelismo entre estes modelos e os
modelos medievais, até pela noção de família alargada e co-residência [29]. Tradicio-
nalmente, também, o espaço de estar (embora não com a mesma significação con-
temporânea) justapõe-se aos anteriores, com excepção das situações especiais de
recepção formal em que a sala é utilizada, não sendo, no entanto, o espaço central da
casa: “A importância da cozinha numa casa camponesa não é ditada meramente por
necessidades práticas: a vida da casa organiza-se em volta da cozinha, onde se en-
contra a lareira.” [30].
Por oposição, a casa urbana, burguesa, apresenta uma estrutura diferente, sintomáti-
ca de um modo de vida distinto. A habitação urbana de início do século XX correspon-
de à lógica da tripartição do espaço, colocando, no entanto, a sala de jantar junto da
cozinha, nas traseiras e a sala de estar junto à fachada principal (Fig. 14), encurtando
o eixo da comida (Fig. 15) mas afastando estes espaços de confecção e consumo do
centro da casa e do espaço de estar.
No Estado Novo (Fig. 16) adaptam-se os programas habitacionais e os espaços de
confecção, consumo e estar tornam-se adjacentes e interligam-se, encurtando o eixo
da comida (Fig. 17) e a relação deste com o estar, persistindo a divisão tripartida da
habitação.
Entre estes dois modelos habitacionais a diferença reside na localização do espaço de
consumo: a evolução verifica-se no sentido da aproximação do espaço de consumo à
zona social (espaço de estar), afastando-se da zona de serviço (espaço de confecção)
(Fig. 15 e 17).
7
4º CIHEL – Congresso Internacional da Habitação no Espaço Lusófono | A Cidade Habitada
Fig. 14 – Planta de apartamento em prédio de rendimento, início séc. XX, Lisboa [31]; Fig. 15 -
Esquema do eixo de comida
Fig. 16 – Planta-tipo do edifício situado na Alameda Afonso Henriques, n.º41, Porfírio Pardal
Monteiro, 1943 [32]; Fig. 17 - Esquema do eixo de comida
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Modos de Habitar
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4º CIHEL – Congresso Internacional da Habitação no Espaço Lusófono | A Cidade Habitada
se voltar a condensar, o que nos traz progressivamente à nova tipologia que se apre-
senta nesta investigação – a cozinha-sala, ou a cozinha-social.
4. A Cozinha-Social
A denominação cozinha-social surge pela necessidade de afastamento e distinção da
cozinha-serviço, espaço isolado e demarcado. Como referido, relaciona-se com a cul-
tura e modo de vida e de habitar americanos, sendo, por isso, conhecida muitas vezes
como cozinha americana. No nosso país, embora os programas habitacionais se man-
tenham tradicionalmente fiéis à lógica dos interiores burgueses ou modernos, quer em
termos de espaços ou usos do espaço, como é patente em Pedro [42], advoga-se que
tende a emergir esta nova tipologia como resposta a novas necessidades e novos mo-
dos de habitar, intrínsecos a novos tipos de agregado familiar e modos de vida e traba-
lho [43]. O mesmo defende Zabalbeascoa, afirmando que “Recuperar a relação com o
resto da residência, abrir as cozinhas, será precisamente a chave de sua evolução no
século XXI.” [44]
Importa, então, perceber as características da cozinha e do seu uso contemporâneo
no nosso contexto, para que se possa entender a necessidade de implementação des-
ta tipologia. Para tal, podemos tentar responder às questões suscitadas por Plante
[45], consideradas importantes para a sua definição espacial e funcional – o que é a
cozinha, o que faz e quem a usa – ou às variáveis definidas por Pereira [46] – a forma
do espaço (o que é e como é), os utentes e suas características sociológicas (quem a
usa), e os modos de habitar destes últimos (em termos efectivos ou simbólicos – o que
faz ou como é utilizada).
Sobre o que é a cozinha, Heathcote relembra: “The modern kitchen is very much the
heart of the home. It has become the default contemporary social space, a place for
both intimate family meals and of informal social intercourse.” [47] Também Zabal-
beascoa defende a cozinha como centro da vida doméstica, por ser lugar de convivên-
cia de inúmeros aparelhos tecnológicos [48]. Considerada o centro da habitação, a co-
zinha, em Portugal, continua como um espaço onde várias funções se sobrepõem –
desde as tarefas domésticas, às refeições familiares, ao trabalho intelectual ou estudo
e brincadeiras das crianças –, constituindo-se como palco de uma multiplicidade de
usos. Nos agregados domésticos compostos por casal ou casais com filhos, a cres-
cente consciência da igualdade do género e da partilha de tarefas determina que se-
jam ambos a executar as actividades ditas domésticas nesse espaço.
É possível, assim, apontar vários factores como geradores da necessidade de imple-
mentação da cozinha-social e que, por sua vez, justificam a sua adequação ao modo
de habitar contemporâneo. De cariz social, um dos mais importantes relaciona-se com
a vida familiar e as relações entre os membros do agregado e prende-se com a possi-
bilidade de trabalho doméstico no espaço de confecção e convívio simultâneo com ou-
tros membros da família nos espaços de estar, garantindo participação na vida familiar
a todos os membros do agregado e, no caso de pais e filhos, o controle das activida-
des dos últimos. Um outro factor, de fundamentação sociológica, é o requisito de hos-
pitalidade, referida por alguns autores como fundamental na definição dos espaços de
confecção e consumo [49, 50] e nos nossos dias relacionada com o receber informal.
De modo análogo à propiciação da vida familiar, a cozinha-social permite uma sociali-
zação de anfitriões e convivas num espaço alargado de confecção, consumo e estar,
em que o acto de cozinhar não é tanto uma obrigação mas uma actividade social e de
lazer, ou como Cromley definiu: “(…) the pleasures of dining and sociability.” [51] Ana-
lisando do ponto de vista do programa da habitação, dos espaços e respectivas áreas
é possível fazer a apologia desta tipologia do ponto de vista da economia de espaço.
10
Modos de Habitar
Fig.19 – Planta de Loft, Edifício Lisboa Loft, 2001 [56]; Fig. 20 – Fotografia de cozinha de Loft
[57]
Fig. 21 - Esquema do eixo de comida
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4º CIHEL – Congresso Internacional da Habitação no Espaço Lusófono | A Cidade Habitada
eu estou a vê-las estou a falar com elas. E acho que é isso que ajuda realmente ao
convívio entre as pessoas. (L4a) Passei a cozinhar mais quando vim para cá. (…)
Aqui, se calhar, também pelo facto de sentir mais prazer em receber as pessoas, co-
mecei a cozinhar (…). (L7) As pessoas até se sentem mais à vontade a vir a minha
casa do que propriamente a outras casas. A casa acabou por ser muito mais o centro
de encontro (…). (L2) [58] Dos três testemunhos (L4a, L7 e L2), todos realçam o ca-
rácter social do espaço único confecção-consumo-estar, salientando a propiciação da
hospitalidade e a sua maior efectivação numa tipologia deste género.
Mais recentemente têm surgido outros exemplos de projectos habitacionais com pro-
postas de cozinha-social (Fig. 22 a 24), indiciando uma mudança dos modos de vida e
do pensamento dos espaços do habitar e uma crescente representatividade da tipolo-
gia.
Fig. 22 – Apartamento em Lisboa, Ana Timóteo, 2016; Fig. 23 - Apartamento no Porto, José
Carlos Cruz, 2016; Fig. 24 – Apartamento em Lisboa, Pedro Reis, 2016 [59]
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Modos de Habitar
Fig. 28 – Planta do piso térreo, projecto original [60]; Fig. 29 - Esquema do eixo de comida
Fig. 30 – Planta do piso térreo, reabilitação [61]; Fig. 31 - Esquema do eixo de comida
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4º CIHEL – Congresso Internacional da Habitação no Espaço Lusófono | A Cidade Habitada
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Modos de Habitar
Uma das alterações no programa habitacional mais sintomática desta fronteira ténue
entre necessidade e imaginário ideal é a do espaço da cozinha. Como noutros países,
entre eles, Portugal, como já referido, tem emergido uma nova tipologia de cozinha no
contexto brasileiro, aliada aos espaços de estar e consumo. Designada cozinha gour-
met, é frequente nas habitações contemporâneas das classes mais altas, denotando a
própria denominação alguma superficialidade, colocando o foco na qualidade estética
e não espacial. Este novo espaço do habitar brasileiro pode assim ser comparado à
sala de jantar da Idade Moderna – um espaço de encenação, de representação, sím-
bolo de status: “Dentre a elite recifense, por exemplo, a atitude de escolher morar num
‘condomínio club’ ou num edifício que oferece, dentre outras facilidades, salão de festa
com ‘espaço gourmet’ e apartamentos com ambientes ‘da moda’ como os dissemina-
dos home theater e home office, passa a ser essencial para se “morar bem”. Recipro-
camente, essa maneira de “morar bem” é tida como um dos atributos necessários para
que os moradores desses apartamentos sejam reconhecidos como membros de de-
terminados grupos sociais.” [72]
Não obstante os factores que permitiram a sua génese, a cozinha gourmet apresenta
características idênticas à cozinha-social – aberta para a zona social, de estar, desti-
nada ao convívio familiar e de convidados num espaço uno [73]. “Os apartamentos
permitiram a união da cozinha com a sala de jantar, tornando-o um ambiente único e
cada vez mais visto como um ponto de convívio informal compondo um espaço inte-
grado onde se pode cozinhar, comer e receber, voltando a se tornar a alma da casa.
Apesar dos espaços reduzidos, a cozinha passou a adquirir um novo sentido na vida
dos moradores de apartamentos, começando a ser valorizada tanto esteticamente
como em relação ao seu uso.” [73]
De acordo com estes autores, as promoções imobiliárias não oferecem ainda estas
tipologias, sendo os interiores transformados posteriormente pelos moradores, tendo a
sua pesquisa concluído que estes espaços gourmet (não só cozinhas, mas varandas,
que também aliam funções de consumo, confecção e estar) têm pouca utilização efec-
tiva, constituindo-se verdadeiramente como espaços cénicos de uma vida moderna:
“Portanto, não há como afirmar que os espaços e hábitos domésticos foram modifica-
dos, pois a cozinha não passa de uma sala de estar. Os equipamentos e utensílios
caros e sofisticados são raramente utilizados, os espaços não são pensados para a
preparação de alimentos e sim para a recepção de convidados, comprovando a hipó-
tese desta pesquisa segundo a qual as cozinhas gourmet são construídas com finali-
dade de elevação do status social.” [73]
5. Conclusões
Embora evidentemente distintas, as duas realidades apresentadas demonstram ser
real a emergência de uma nova tipologia de espaço de confecção, aliado aos espaços
de consumo e estar. A denominação escolhida pelos autores do presente artigo pre-
tende aproximar-se da essência da live-in kitchen ou living kitchen americana, do sim-
bolismo de convívio familiar e de um novo modo de vida e de vivência do habitar, afas-
tando-se da cozinha-gourmet brasileira, simbolicamente uma peça expositiva, vulnerá-
vel a tendências apresentadas na publicidade como ideais de vida.
Não obstante esta clivagem, a implementação da tipologia tem vindo a dilatar, cami-
nhando-se no sentido da redução do eixo da comida e da sua fusão com o espaço de
estar, formando uma unidade multifuncional central no espaço da habitação contempo-
rânea. Importa, a este respeito, introduzir um conceito que se julga determinante – o
da divisão do espaço na habitação. Tradicionalmente, seguindo a lógica burguesa, que
tem perdurado na nossa sociedade, o programa habitacional é dividido em sectores
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4º CIHEL – Congresso Internacional da Habitação no Espaço Lusófono | A Cidade Habitada
funcionais, tripartindo-se em zona social, zona de serviços e zona íntima. Esta triparti-
ção não é válida nas habitações em que a cozinha-social é proposta, pois não se veri-
fica a separação entre o social e o serviço. Em vez deste conceito, os autores pro-
põem que se adopte a classificação de espaços já referida por Paricio e Sust [74], di-
visão entre dia e noite. Esta divisão é especialmente apropriada nos exemplos anteri-
ormente descritos da tipologia Loft e da moradia unifamiliar, que se desenvolvem em
dois andares, sendo o térreo palco de usos diurnos (vida social e familiar) e o superior
de usos essencialmente nocturnos (descanso).
Como nota final, os autores crêem ser importante realçar a necessidade de um novo
pensamento no que concerne o programa habitacional, procurando dar resposta a ne-
cessidades variadas e a agregados diferenciados, com modos de vida não tradicio-
nais, evitando-se a padronização destinada a um homem-tipo que já não existe.
Referências Bibliográficas
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[10] (Salvador, 2014: 131)
[11] (Heathcote, 2012: 58)
[12] (Rybczynski, 2001: 51)
[13] (Salvador, 2014: 268)
[14] (Rybczynski, 2001: 159)
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[16] (Zabalbeascoa, 2011: 73)
[17] id.
[18] (Cromley, 1996: 17)
[19] Frederick C. Household Engeneering. Scientific Management in the Home, Chi-
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[21] (Heathcote,2012: 51-56)
[22] http://ernst-may-gesellschaft.de/mayhaus/musterhaus.html
[23] (Cromley, 1996: 18-19)
[24] Hellman, C. “The Other American Kitchen: Alternative Domesticity in 1950s De-
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http://www.americanpopularculture.com/journal/articles/fall_2004/hellman.htm
[25] (Cromley, 1996: 19)
[26] Plante E. The American Kitchen 1700 to Present: From Hearth to Highrise, New
York: Facts on File, Inc, 1995. (p.XI)
[27] id., p. 269
[28] Flamínio I. “O Espaço da Cozinha na Habitação Plurifamiliar Urbana. Modos de
Vida e Apropriação do Espaço” [em linha], Porto. [consult. Dezembro 2016]
(p.259)
Disponível em http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4630.pdf
[29] Cabral J. Filhos de Adão, Filhas de Eva, Lisboa: Dom Quixote, 1989. (p.65)
[30] id., p.66
[31] Planta fornecida por familiar, moradora no edifício.
[32] Caldas J. Porfírio Pardal Monteiro Arquitecto, Lisboa: AAP, 1997. (p.76)
[33] Moreira A. À Procura dos Novos Modos de Habitar, Lisboa: Tese de Mestrado,
Faculdade de Arquitectura, 2013 (pp. 67-71)
[34] Portas N. Funções e Exigências de Áreas da Habitação. Lisboa: LNEC, 1979.
(p.38)
[35] id., p.33
[36] id., p.51
[37] Plantas desenhadas por Ana Moreira com base nos desenhos constantes em
Pereira M., Gago M. Inquérito à Habitação Urbana, Lisboa: LNEC, 1984.
[38] Pereira M., Gago M. Inquérito à Habitação Urbana, Lisboa: LNEC, 1984.
[39] Pereira M., Gago M. O Uso do Espaço na Habitação, Lisboa: LNEC, 1983.
[40] Pereira M., Gago M. O Uso do Espaço na Habitação, Lisboa: LNEC, 1983. (p.
76)
[41] Pedro J. Programa Habitacional. Espaços e Compartimentos, Lisboa: LNEC,
2014
[42] id.
[43] Flamínio (p. 260) defende que “O conceito de ter uma cozinha aberta para ou-
tros espaços (…) não se encontra nos padrões da sociedade portuguesa, em-
bora comece a ser aceite como nova concepção de espaço, do habitar, mais
atraente a classes jovens ou a pessoas que aderem mais facilmente a outros
modos de habitar, modos diferentes do tradicional português.” Importa contra-
por a tradição da habitação plurifamiliar a que Flamínio se refere à tradição ru-
ral, onde o modo de habitar ditava exactamente a abertura da cozinha a outros
usos.
[44] (Zabalbeascoa, 2011: 73)
[45] (Plante, 1995: 291)
[46] Pereira, S. Casa e Mudança Social. Uma Leitura das Transformações da Soci-
edade Portuguesa a partir da Casa, Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2012
[47] (Heathcote, 2012: 56)
[48] (Zabalbeascoa, 2011: 83)
[49] Kunze apud Salvador, 2014: 63
[50] (Heathcote, 2012: 54)
[51] (Cromley, 1996: 19)
[52] (Pedro, 2014: 36)
[53] (Heathcote, 2012: 57)
[54] (Pereira, 2012: 110)
[55] id., p.115
[56] id., p.114
[57] id., p.214
17
4º CIHEL – Congresso Internacional da Habitação no Espaço Lusófono | A Cidade Habitada
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Modos de Habitar
Notas Biográficas
Ana S. Moreira
Licenciada em Arquitectura pelo Instituto Superior Técnico em 2004, iniciou prática
profissional no ano de 2005 no atelier Mendia+Spencer, tendo prosseguido a sua car-
reira profissional em atelier próprio a partir de 2008, paralelamente à actividade inves-
tigativa académica, concluindo o Mestrado Integrado em Arquitectura pelo Instituto
Superior Técnico, em 2010, e o Mestrado Integrado em Arquitectura de Interiores pela
Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa, em 2013. Desde 2014 que se
constitui doutoranda do Curso de Doutoramento em Arquitectura da Faculdade de Ar-
quitectura da Universidade de Lisboa.
Hugo L. Farias
Arquitecto em 1992, pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lis-
boa. Pós-Graduação em Arquitectura da Habitação em 1996, pela Faculdade de Arqui-
tectura da Universidade Técnica de Lisboa. Doutoramento em Arquitectura em 2011,
pela Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Madrid, Espanha. Professor Auxiliar
na área científica do Projecto de Arquitectura da Faculdade de Arquitectura da Univer-
sidade de Lisboa, onde lecciona unidades curriculares de Projecto ao 1º Ciclo do Mes-
trado Integrado em Arquitectura, e unidades curriculares de Arquitectura da Habitação
ao 3º Ciclo. Actualmente é Co-coordenador do Curso de Doutoramento em Arquitectu-
ra da FAUL.
Desenvolve investigação na área da arquitectura portuguesa do século XX, enfocando
sobretudo a arquitectura da habitação da segunda metade do século: habitação colec-
tiva, habitação de interesse social e habitação unifamiliar.
Arquitecto responsável e sócio gerente do gabinete de arquitectura OU arquitectos em
Lisboa, desde 1994, onde desenvolve projectos de arquitectura, desenho urbano e re-
abilitação arquitectónica.
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