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A Cozinha Social: Um Novo Espaço Para O Habitar Contemporâneo

Conference Paper · January 2017

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2 authors:

Hugo Farias Ana Silva Moreira


University of Lisbon Technical University of Lisbon
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A HABITAÇÃO SOCIAL NO HORIZONTE DA SUSTENTABILIDADE: um metaprojeto a partir de espaços coletivos do habitar em Porto Alegre e Lisboa na segunda metade do
século XX View project

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TEMA B – MODOS DE HABITAR

A ‘COZINHA SOCIAL’. UM NOVO ESPAÇO PARA O HABITAR


CONTEMPORÂNEO

Ana Silva Moreira a Hugo L. Farias b


a
Licenciada e Mestre em Arquitectura pelo Instituto Superior Técnico, Mestre em
Arquitectura de Interiores pela Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa,
Doutoranda do Curso de Doutoramento em Arquitectura da Faculdade de Arquitectura
da Universidade de Lisboa; ana.silva.moreira@gmail.com.
b
Licenciado em Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica
de Lisboa. Doutorado em Arquitectura pela Escola Técnica Superior de Arquitetura da
Universidade Politécnica de Madrid. Professor Auxiliar na Faculdade de Arquitetura da
Universidade de Lisboa. Investigador Efectivo do Centro de Investigação em
Arquitectura, Urbanismo e Design (CIAUD); hfarias@fa.ulisboa.pt.

Resumo:

A habitação é um produto cultural, influenciada pelas características da sociedade que


a idealiza e materializa. Como tal, é vulnerável às alterações sociais. Transformações
ao nível dos modos de habitar familiares são um factor importante, influenciadas pelas
modificações nas composições dos agregados e nas dinâmicas e hierarquias familia-
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res. Uma outra faceta, não menos importante, é a da habitação como produto de con-
sumo, em especial desde as últimas décadas do século XX, tornando-a sensível a
modas e imaginários do viver ideal e a alterações relacionadas com padrões de con-
sumo e hábitos alimentares. De acordo com estas premissas é possível afirmar que os
espaços do habitar têm sofrido profundas transformações nos últimos anos.
O presente artigo tem como âmbito de estudo o espaço da cozinha, tido como o espa-
ço doméstico em que as condicionantes sociais e de consumo são, hoje, mais deter-
minantes.
Assim, sugere-se que tem emergido, recentemente em Portugal, uma nova tipologia
de cozinha que podemos denominar de ‘cozinha social’. Este espaço, desenhado co-
mo parte integrante dos espaços de estar/comer adquire assim novas funções, novos
usos, novas significações, e uma nova posição e importância na estrutura espacial da
casa. Afastando-se da cozinha-laboratório proposta pela arquitectura do Movimento
Moderno, de carácter puramente utilitário, assumindo-se como um espaço de serviço
mas igualmente de socialização, esta nova cozinha assume um novo papel na casa.
O objectivo principal do artigo é a sua caracterização. Já existente, há algumas déca-
das, em outras sociedades ocidentais, pretende-se encontrar justificações para o seu
aparecimento e implementação, identificar as suas características físicas, espaciais,
de relação, compreender o seu programa funcional e de uso, bem como identificar al-
guns exemplos interessantes da sua aplicação recente.
Focando a sua atenção não apenas no território português, a investigação procura
identificar a tendência em outros países do espaço lusófono, nomeadamente no Brasil,
onde este espaço – muitas vezes apelidado de ‘cozinha gourmet’ – tem vindo a tornar-
se quase obrigatório na promoção de habitação de mercado nas principais cidades.
O artigo procura assim contribuir para o reconhecimento de uma tendência actual nos
projectos de habitação e nos modos de habitar das famílias lusófonas, enfocando a
‘cozinha social’, suas características arquitectónicas, funcionalidade e usos, procuran-
do identificar os factores que estão na sua génese, permitindo compreender melhor a
sociedade contemporânea no que diz respeito às exigências, necessidades e desejos
em matéria de habitar.

Palavras-chave: Habitação, Cozinha, Cozinha Social, Modos de Habitar, Soluções e


Tipologias do Habitar Contemporâneo

1. Introdução
Entendendo a habitação como produto cultural de uma sociedade é importante perce-
ber que as alterações nos modos de vida se traduzem em novos paradigmas do habi-
tas, novos usos do espaço ou mesmo novos espaços no interior doméstico. Segundo
Hanson (1998), “(…) the fit between the internal organization of the space of the dwell-
ing presents a fairly precise map of the social relations of the members of the house-
hold. As the composition of the dwelling group changes, the use of rooms may change,
or rooms are added or demolished accordingly.” [1]
O presente artigo pretende discutir o espaço da cozinha na habitação, entendida como
o espaço doméstico onde o contexto e as alterações sociais são mais relevantes e
aquele que corresponde ao imaginário do estilo de vida ideal: “(…) the kitchen (…) be-
comes a surrogate, the clearest indicator of real taste and aspiration, if only rarely, iro-
nically, of the way life is actually lived.” [2]. O artigo procura a identificação e caracteri-
zação de uma nova e emergente tipologia de cozinha, a cozinha-social, identificando a
sua génese e factores que contribuíram para o seu aparecimento. Para tal, é feito um

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Modos de Habitar

elenco prévio das etapas de evolução deste espaço doméstico, caracterizando-o em


termos espaciais, funcionais e simbólicos desde a idade média até à contemporanei-
dade, procurando-se exemplos da existência e aplicação desta nova tipologia nas ha-
bitações correntes actuais no contexto Português e Brasileiro, contrapondo as duas
realidades.

1.2 Conceitos

Como ponto prévio é relevante discutir alguns dos conceitos que serão referidos ao
longo do estudo, inerentes ao espaço e funções da cozinha. De acordo com Salvador
[3] importa distinguir espaço de confecção e espaço de consumo: espaço de confec-
ção como o lugar onde são preparados os alimentos, fixo no espaço na acepção de
Lefebvre [4]; espaço de consumo como o lugar de tomada de refeição, móvel ou semi-
fixo [4]. Relevante para a investigação que se propõe, é ainda o espaço do estar, palco
de actividades sociais ou vida íntima familiar conjunta. Como se procurará demonstrar,
estes espaços têm sido alvo de mudanças ao longo dos tempos, tendo-se por vezes
convergido e por vezes distanciado e, neste último caso, em distâncias mais ou menos
relevantes.
Um outro conceito interessante é o de eixo da comida, ou food axis, introduzido por
Cromley [5]. Relacionado com os espaços de confecção e consumo, na medida em
que os contém, o conceito de eixo da comida compreende a relação entre os espaços
relacionados com a alimentação: cozinha, espaços de armazenamento e espaços de
refeição.
Procurar-se-á analisar a história da cozinha e a sua evolução à luz destes conceitos,
permitindo uma simplificação da relação dos espaços, seus usos e significados.

2. A Cozinha na história
De modo a melhor contextualizar e compreender a cozinha dos nossos dias é impor-
tante perceber a sua evolução, aliando as suas características espaciais, funcionais e
de significado simbólico aos modos de vida do seu tempo e sociedade.
Embora alguns autores comecem a história da cozinha pelo evento da descoberta do
fogo e da sua manutenção [6,7], importa neste artigo analisar como início a cozinha
medieval, ou a habitação medieval, como o faz Rybczynski [8], considerando-se os
burgos medievais a génese das cidades europeias e a casa medieval o ponto zero da
habitação ocidental. A habitação medieval caracteriza-se pela multifuncionalidade e
unidade do espaço doméstico. Conhecidas como hall ou halle, estas residências apre-
sentavam um espaço único, sem compartimentos ou divisórias, com sobreposição de
usos (a noção de função era ainda inexistente) consoante as necessidades e alturas
do dia: cozinhar, comer, receber, fazer negócios e dormir todos justapostos no mesmo
espaço e, por vezes, no tempo [8] (Fig. 1, 2). O conceito de privacidade era também
ele inexistente, decorrente do igualmente diferente conceito de família.
Analisando a casa medieval na perspectiva do eixo da comida é notório que o eixo não
existe, existe apenas um ponto no espaço, um contentor de todas as funções e espa-
ços alimentares (e sociais também), fruto da sobreposição do espaço de confecção e
espaço de consumo (Fig. 3). É ainda interessante perceber que esse ponto não é
constante ao longo do dia – por vezes existe (quando há necessidade de preparar e
consumir) e por vezes desaparece (por exemplo à noite), não é fixo. O espaço de es-
tar não é aqui considerado – a sociedade e casa medievais desconheciam ainda o
conceito de conforto.

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Fig.1 – ‘Hall’ Medieval, corte e planta [9]; Fig. 2 – Representação de ‘Hall’ Medieval [10];
Fig. 3 – Esquema do eixo da comida

Com a entrada na Idade Moderna o espaço do habitar evolui e compartimenta-se, ga-


nhando novos espaços com funções próprias e simbólicas. Surgem a sala de estar, ou
salle, como espaço central e principal da habitação, destinado a tomada de refeições e
recebimento de visitas; e também a cozinha como espaço definido, em divisão própria
mas afastada da sala, entendida como zona de serviço, de uso dos serviçais e onde
os donos da casa nunca terão entrado [11]. A casa torna-se palco da vida familiar,
perdendo a função de espaço de trabalho, e a privacidade e conforto surgem como
características a promover: “Domesticity, privacy, comfort, the concept of the home
and the family: these are, literally, principal achievements of the Bourgeois Age.” [12]
A partir do séc. XVII começa a ser cunhado o termo salle à manger, a sala de jantar,
reforçando a compartimentação da casa e a especialização dos espaços, passando a
existir um espaço para cada função – confecção, consumo e estar.
Nas habitações desta época o eixo da comida alonga-se e ramifica-se.
O século XIX assistiu a novas alterações, mas não na Europa, onde a habitação man-
teve as características dos séculos anteriores e onde se introduziu a noção da triparti-
ção do espaço do habitar – zona social (inclui a sala e sala de jantar), zona íntma
(quartos) e zona de serviço (cozinha e espaços de apoio) (Fig. 6). “No século XIX, o
espaço de confecção sofreu algumas transformações espaciais e tecnológicas mas
continuou a ter um papel secundário na casa. (…) desejava-se que permanecesse
longe do resto da família e dos convidados. A cozinha, espaço de serviço onde se
preparava a refeição, opunha-se à sala de jantar, espaço de recepção onde esta era
servida.” [13] A distância entre a zona social e a zona de serviço corresponde simboli-
camente à separação entre a vida familiar e pública dos donos da casa e os criados e
as tarefas domésticas, encontrando também justificação na necessidade real de isolar
ou minimizar a propagação de cheiros dos alimentos e da sua preparação.
Nos Estados Unidos, por sua vez, havendo poucos criados, surgiu a necessidade da
dona da casa se tornar em dona de casa, tendo a seu cargo tarefas domésticas. Foi
neste contexto que surgiram as Engenheiras Domésticas (Catherine Beecher e Chris-
tine Frederick, nomeadamente), exprimindo um ponto de vista inovador – o do utiliza-
dor [14]. As suas ideias, consideradas precursoras do movimento moderno [15,16],
baseavam-se na racionalização dos espaços da comida com base em análises de uso
e pesquisas sociológicas. A cozinha ganha um lugar mais central na habitação, agora
domínio da dona de casa, e afasta-se “(…) do lugar esfumaçado e engordurado onde

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Modos de Habitar

os alimentos são preparados para reinventar-se como uma das áreas de ócio na ca-
sa.” [17] (Fig.4) É também aqui que se defende uma ligação mais forte entre cozinha e
sala de jantar. “Frederick propôs que se abrissem as cozinhas a fim de que a pessoa
que cozinhava (a mulher) não ficasse isolada do resto da vida familiar e pudesse, ao
mesmo tempo, vigiar as crianças.” [17] Esta abertura, embora ainda apenas visual, e
este conceito novo influenciam posteriormente Frank Lloyd Wright e as suas casas
usonianas onde é proposto o open plan e onde os espaços da habitação se fundem
uns nos outros sem barreiras: “This new openness rejected rooms in favour of functio-
nal areas.” [18]
Deste modo, e enquanto na Europa nas habitações burguesas o eixo da comida conti-
nua alongado (embora menos que em séculos anteriores – Fig. 7), relegando o espaço
de confecção para um ponto afastado dos restantes (consumo e estar), nos Estados
Unidos este eixo condensa-se tornando quase equidistantes os pontos que o com-
põem, o que demonstra uma igualdade de importância e significado no seio da habita-
ção (Fig. 5).

Fig.4 – Planta de piso térreo de habitação – Christine Fredericks [19]; Fig. 5 – Esquema de eixo
de comida; Fig. 6 – Planta de apartamento, Rue Dufren 6, 1907 [20]; Fig. 7 – Esquema de eixo
de comida

São estas diferenças entre os dois continentes no dealbar do século XX que determi-
nam as diferentes evoluções dos espaços de confecção e consumo nas duas culturas.
Na Europa, o Movimento Moderno segue na direcção da racionalização e da procura
pelo espaço mínimo (Existenzminimum), surgindo a cozinha de Frankfurt (Fig.8) como
epítome dessa racionalização e espaço eficiente e taylorista. A família torna-se mais
reduzida, nuclear, e o papel da mulher altera-se. Perdem-se os criados e a dona de
casa é responsável pelas tarefas domésticas ao mesmo tempo que entra no mercado
de trabalho. Na habitação moderna o eixo da comida reduz-se (Fig. 11) como havia
acontecido na habitação americana de fim de século XIX e os espaços de confecção,
consumo e estar tornam-se adjacentes, existindo na maior parte das vezes uma so-
breposição entre espaço de consumo e espaço de estar (partilhando o mesmo com-
partimento – a sala comum) (Fig. 9 e 10). O carácter da sala de jantar também se alte-
ra, perdendo a sua formalidade e função teatral de recepção e encenação [21], adap-
tando-se à vida moderna familiar nuclear.

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Fig. 8 e 9 – Cozinha e Sala Comum, Casa Ernst May, Siedlung de Römerstadt [22]; Fig. 10 –
Planta do piso térreo da Casa Ernst May [17]; Fig. 11 - Esquema de eixo de comida

O século XX nos Estados Unidos assiste a uma evolução da cozinha no sentido da


sua abertura ao resto da casa e ao sector social. “These merged kitchen-dining-living
areas represented a spatial change that sustained the social change towards a serv-
antless household (…). (…) When the kitchen opened onto the dining area and the liv-
ing area, housewives at their sinks and stoves could become part of the social activity
of the house, not be segregated like a maid in a closed-off kitchen.” [23] Esta tipologia
tornou-se o símbolo da modernidade, propagandeada como um modo de vida a ideali-
zar (Fig.12) e proliferando-se em inúmeras urbanizações (Levittown, por exemplo),
sendo a imagem do modo de vida americano e da sua sociedade [24], difundida pelo
continente Europeu em feiras e mostras como a Exposição Americana de 1959, em
Moscovo, tendo sido palco e motivo do conhecido Kitchen Debate entre Nixon e
Khrushchev.
Caracterizada pela diluição de fronteira com o espaço de estar (por vezes separados
por ilhas ou penínsulas ou elementos permeáveis), a cozinha americana, a living-
kitchen de Fordyce, manteve o seu carácter até aos dias de hoje, sendo encarada co-
mo family room ou great room, “(…) the social core of the home.” [25]
Aqui, como na habitação medieval o eixo da comida é inexistente, é um ponto que
contém todas as funções e usos dos espaços de confecção, consumo e estar (Fig.13),
com a diferença de ser um ponto fixo e tendencialmente central: “The history and evo-
lution of the American kitchen indicate that the concept of this area as a family-oriented
space has come full circle. Like the early eighteen-century hall with massive cooking
hearth, today’s kitchen is often planned as the core of the home.” [26]

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Modos de Habitar

Fig. 12 – Propaganda a cozinha General Electric [27]


Fig.13 - Esquema do eixo de comida

3. O contexto português
“No contexto português, em geral, o espaço da cozinha é um local muito central na
vida dos habitantes, remontando a sua importância às tipologias tradicionais portugue-
sas encontradas ainda presentemente nos meios rurais.” [28] Este habitar tradicional
coloca actividades de confecção e consumo no mesmo espaço físico, condensando o
eixo da comida, podendo estabelecer-se um paralelismo entre estes modelos e os
modelos medievais, até pela noção de família alargada e co-residência [29]. Tradicio-
nalmente, também, o espaço de estar (embora não com a mesma significação con-
temporânea) justapõe-se aos anteriores, com excepção das situações especiais de
recepção formal em que a sala é utilizada, não sendo, no entanto, o espaço central da
casa: “A importância da cozinha numa casa camponesa não é ditada meramente por
necessidades práticas: a vida da casa organiza-se em volta da cozinha, onde se en-
contra a lareira.” [30].
Por oposição, a casa urbana, burguesa, apresenta uma estrutura diferente, sintomáti-
ca de um modo de vida distinto. A habitação urbana de início do século XX correspon-
de à lógica da tripartição do espaço, colocando, no entanto, a sala de jantar junto da
cozinha, nas traseiras e a sala de estar junto à fachada principal (Fig. 14), encurtando
o eixo da comida (Fig. 15) mas afastando estes espaços de confecção e consumo do
centro da casa e do espaço de estar.
No Estado Novo (Fig. 16) adaptam-se os programas habitacionais e os espaços de
confecção, consumo e estar tornam-se adjacentes e interligam-se, encurtando o eixo
da comida (Fig. 17) e a relação deste com o estar, persistindo a divisão tripartida da
habitação.
Entre estes dois modelos habitacionais a diferença reside na localização do espaço de
consumo: a evolução verifica-se no sentido da aproximação do espaço de consumo à
zona social (espaço de estar), afastando-se da zona de serviço (espaço de confecção)
(Fig. 15 e 17).

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Fig. 14 – Planta de apartamento em prédio de rendimento, início séc. XX, Lisboa [31]; Fig. 15 -
Esquema do eixo de comida

Fig. 16 – Planta-tipo do edifício situado na Alameda Afonso Henriques, n.º41, Porfírio Pardal
Monteiro, 1943 [32]; Fig. 17 - Esquema do eixo de comida

Com a Geração Moderna adoptam-se os programas do Movimento Moderno europeu,


com especial influência do Existenzminimum alemão e dos princípios da Carta de Ate-
nas e começa a pensar-se na arquitectura de habitação como uma resposta às neces-
sidades e as características sociológicas dos habitantes [33]. A casa reduz-se em
área, compartimentos e funções e especializa-se. O eixo da comida também encolhe
pela sobreposição frequente espaço de estar e espaço de consumo e a proximidade
destes ao espaço de confecção.
A partir desta transição começam a ser relevantes estudos sobre a aferição das ne-
cessidades e exigências dos moradores em termos de espaços e usos, tendo o LNEC
dedicado grande parte a sua investigação a este estudo. A publicação de Portas, Fun-
ções e Exigências de Áreas da Habitação, de 1969 [34], procura identificar as activi-
dades desenvolvidas na habitação e os espaços em que ocorrem, estabelecendo a
cozinha como espaço de preparação e dividindo o espaço de consumo em refeições
correntes e refeições formais, abarcando os três no grupo da Alimentação. O Estar é
dividido em Reunião de tempos livres e Receber. Um pouco como haviam esquemati-
zado as Engenheiras Domésticas do século XIX, Portas procura caracterizar cada fun-

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Modos de Habitar

ção e identificar as necessidades de espaço e articulação com outros espaços e fun-


ções com o intuito de tornar mais eficiente a habitação. Sobre a cozinha, afirma que,
além de espaço de confecção, é palco da maioria das refeições correntes familiares
(“A cozinha tradicional é, na prática, o lugar da mesa de (3) Refeições correntes (…)”
[34], defendendo que deve ser previsto no programa da habitação um espaço para
consumo acoplado à cozinha ou que esse espaço exista na própria cozinha
[35].Relativamente à articulação com outros espaços, defende a proximidade à zona
de refeições (indicando a possibilidade de soluções passa-pratos que permitem a faci-
lidade de serviço e visibilidade entre os espaços) e com os locais de vida em comum
da família de modo a que a dona de casa possa participar das actividades familiares.
Estas zonas de estar, preconiza, que se materializem na sala comum [36]. Portas refe-
re ainda a tipologia de cozinha-comum [36], um espaço que agrega confecção, con-
sumo e estar, ressalvando, no entanto, que à data algumas famílias inquiridas não
consideraram esta solução adequada.

Fig. 18 – Plantas-tipo de apartamentos na urbanização Olivais Sul [37] apresentando duas


soluções distintas de organização dos espaços de confecção, consumo e estar: a primeira
propõe uma união espacial, a segunda uma relação de visibilidade através da bancada
parcialmente aberta para a sala. Estes exemplos ilustram a diversidade de planimetrias na
urbanização Olivais Sul.

Contemporaneamente é levado a cabo o Inquérito à Habitação Urbana [38] (Fig. 18),


procurando entender o grau de satisfação dos moradores em relação à habitação. De-
corrente deste inquérito é publicado, em 1983, O Uso do Espaço na Habitação [39].
Nele as autoras concluem que os espaços de consumo por excelência são as salas
únicas ou comuns, que associam o consumo ao estar e receber; que as refeições cor-
rentes têm lugar na cozinha maioritariamente, sobrepondo confecção e consumo; e
que o estar se articula com o consumo (refeições) em salas únicas, sendo que “O Es-
tar isolado não é muito frequente (…).” [40].
Mais recentemente é de referir Pedro e a publicação Programa Habitacional: Espaços
e Compartimentos [41], que consiste numa actualização do trabalho de Portas, sendo
as indicações relativamente aos espaços e funções muito semelhantes.
Posta esta contextualização é possível compreender e simplificar a evolução dos es-
paços de confecção, consumo e estar da nossa sociedade: da tradição rural de espa-
ço único familiar; passando pela tripartição burguesa ora segregando os espaços de
confecção (numa primeira fase), ora aproximando-os das zonas sociais (consumo e
estar); à casa moderna com variedade de tipologias e relações espaciais na qual pre-
dominam soluções de triângulo confecção-consumo-estar, em que muitas vezes o
consumo e o estar se efectuam no mesmo espaço. Analisando esta evolução à luz do
eixo da comida é notória a transformação em dois sentidos: o aumentar do eixo e das
distâncias entre espaços e usos (mesmo em termos simbólicos e sociais) para depois

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se voltar a condensar, o que nos traz progressivamente à nova tipologia que se apre-
senta nesta investigação – a cozinha-sala, ou a cozinha-social.

4. A Cozinha-Social
A denominação cozinha-social surge pela necessidade de afastamento e distinção da
cozinha-serviço, espaço isolado e demarcado. Como referido, relaciona-se com a cul-
tura e modo de vida e de habitar americanos, sendo, por isso, conhecida muitas vezes
como cozinha americana. No nosso país, embora os programas habitacionais se man-
tenham tradicionalmente fiéis à lógica dos interiores burgueses ou modernos, quer em
termos de espaços ou usos do espaço, como é patente em Pedro [42], advoga-se que
tende a emergir esta nova tipologia como resposta a novas necessidades e novos mo-
dos de habitar, intrínsecos a novos tipos de agregado familiar e modos de vida e traba-
lho [43]. O mesmo defende Zabalbeascoa, afirmando que “Recuperar a relação com o
resto da residência, abrir as cozinhas, será precisamente a chave de sua evolução no
século XXI.” [44]
Importa, então, perceber as características da cozinha e do seu uso contemporâneo
no nosso contexto, para que se possa entender a necessidade de implementação des-
ta tipologia. Para tal, podemos tentar responder às questões suscitadas por Plante
[45], consideradas importantes para a sua definição espacial e funcional – o que é a
cozinha, o que faz e quem a usa – ou às variáveis definidas por Pereira [46] – a forma
do espaço (o que é e como é), os utentes e suas características sociológicas (quem a
usa), e os modos de habitar destes últimos (em termos efectivos ou simbólicos – o que
faz ou como é utilizada).
Sobre o que é a cozinha, Heathcote relembra: “The modern kitchen is very much the
heart of the home. It has become the default contemporary social space, a place for
both intimate family meals and of informal social intercourse.” [47] Também Zabal-
beascoa defende a cozinha como centro da vida doméstica, por ser lugar de convivên-
cia de inúmeros aparelhos tecnológicos [48]. Considerada o centro da habitação, a co-
zinha, em Portugal, continua como um espaço onde várias funções se sobrepõem –
desde as tarefas domésticas, às refeições familiares, ao trabalho intelectual ou estudo
e brincadeiras das crianças –, constituindo-se como palco de uma multiplicidade de
usos. Nos agregados domésticos compostos por casal ou casais com filhos, a cres-
cente consciência da igualdade do género e da partilha de tarefas determina que se-
jam ambos a executar as actividades ditas domésticas nesse espaço.
É possível, assim, apontar vários factores como geradores da necessidade de imple-
mentação da cozinha-social e que, por sua vez, justificam a sua adequação ao modo
de habitar contemporâneo. De cariz social, um dos mais importantes relaciona-se com
a vida familiar e as relações entre os membros do agregado e prende-se com a possi-
bilidade de trabalho doméstico no espaço de confecção e convívio simultâneo com ou-
tros membros da família nos espaços de estar, garantindo participação na vida familiar
a todos os membros do agregado e, no caso de pais e filhos, o controle das activida-
des dos últimos. Um outro factor, de fundamentação sociológica, é o requisito de hos-
pitalidade, referida por alguns autores como fundamental na definição dos espaços de
confecção e consumo [49, 50] e nos nossos dias relacionada com o receber informal.
De modo análogo à propiciação da vida familiar, a cozinha-social permite uma sociali-
zação de anfitriões e convivas num espaço alargado de confecção, consumo e estar,
em que o acto de cozinhar não é tanto uma obrigação mas uma actividade social e de
lazer, ou como Cromley definiu: “(…) the pleasures of dining and sociability.” [51] Ana-
lisando do ponto de vista do programa da habitação, dos espaços e respectivas áreas
é possível fazer a apologia desta tipologia do ponto de vista da economia de espaço.

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Modos de Habitar

De acordo com Pedro [52], a solução generalizada é a inclusão de zona de refeições


na cozinha, embora exista, também na maioria das habitações portuguesas, uma zona
de refeições na sala comum ou mesmo uma sala de jantar compartimentada. Esta so-
lução programática, ou de uso efectivo, implica uma duplicação dos espaços de con-
sumo e, por conseguinte, desperdício de área útil da habitação visto que um dos es-
paços é apenas usado esporadicamente. Na cozinha-social esta duplicação não se
verifica. A questão da economia de espaço pode ainda ser analisada sob o prisma do
tempo disponível para execução de tarefas domésticas, entre elas a confecção. He-
athcote [53] identifica o paradoxo: a cozinha torna-se mais visível, mas o seu uso efec-
tivo diminui.
Posta esta introdução às características da cozinha-social e aos factores que contribu-
em para a sua difusão e aceitação é possível apresentar exemplos da sua aplicação
no contexto português.
Um dos exemplos mais representativos é o do loft, tipologia habitacional de origem
nova-iorquina, explorada no empreendimento Lisboa Loft. A cozinha-social é uma so-
lução inerente a esta tipologia habitacional, caracterizada pela permeabilidade quase
total dos espaços, materializando, de acordo com Pereira, “(…) com maior clareza al-
gumas das características da Segunda Modernidade.” [54] Pereira adianta ainda que a
adesão às tipologias comercializadas foi grande, tendo pouco menos de metade dos
fogos disponíveis sido vendido em planta (entre 2000 e 2003), demonstrando aceita-
ção dos conceitos de permeabilidade e justaposição de usos. “A esmagadora maioria
dos lofts disponibilizada neste empreendimento caracteriza-se pelo duplo pé-direito
que é aproveitado através de um mezanino: em cima localiza-se a zona íntima, do
quarto e casa de banho, e em baixo, a zona social, que inclui um lavabo, e de serviços
(a cozinha aberta tipo kitchenette).” [55] 69 das 77 unidades apresentam este layout e
programa funcional de bipartição espacial (Fig. 19). Nestas unidades, o eixo da comida
e do estar reduz-se a um ponto, o piso inferior do duplex que constitui o loft (Fig.20 e
21).

Fig.19 – Planta de Loft, Edifício Lisboa Loft, 2001 [56]; Fig. 20 – Fotografia de cozinha de Loft
[57]
Fig. 21 - Esquema do eixo de comida

Quando inquiridos sobre a cozinha-social, os moradores atestam o benefício desta ti-


pologia: “Recebia pessoas (na outra casa) mas agora recebe-se mais. Eu acho que a
casa presta-se a isso. (…) Mas como é um espaço amplo parece que convida a que
as pessoas venham cá. (…) Permite muito convívio porque as pessoas não se isolam
e estão num espaço grande. As pessoas estão na cozinha, mas se eu estou na sala

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eu estou a vê-las estou a falar com elas. E acho que é isso que ajuda realmente ao
convívio entre as pessoas. (L4a) Passei a cozinhar mais quando vim para cá. (…)
Aqui, se calhar, também pelo facto de sentir mais prazer em receber as pessoas, co-
mecei a cozinhar (…). (L7) As pessoas até se sentem mais à vontade a vir a minha
casa do que propriamente a outras casas. A casa acabou por ser muito mais o centro
de encontro (…). (L2) [58] Dos três testemunhos (L4a, L7 e L2), todos realçam o ca-
rácter social do espaço único confecção-consumo-estar, salientando a propiciação da
hospitalidade e a sua maior efectivação numa tipologia deste género.
Mais recentemente têm surgido outros exemplos de projectos habitacionais com pro-
postas de cozinha-social (Fig. 22 a 24), indiciando uma mudança dos modos de vida e
do pensamento dos espaços do habitar e uma crescente representatividade da tipolo-
gia.

Fig. 22 – Apartamento em Lisboa, Ana Timóteo, 2016; Fig. 23 - Apartamento no Porto, José
Carlos Cruz, 2016; Fig. 24 – Apartamento em Lisboa, Pedro Reis, 2016 [59]

Embora tenham sido introduzidos exemplos de unidades habitacionais em conjuntos


multifamiliares, a tipologia da cozinha-social não é deles exclusiva, surgindo também
em habitações unifamiliares. O exemplo que se selecciona reside numa reabilitação de
uma habitação unifamiliar, em Lisboa, num bairro de habitações sociais do Estado No-
vo, caracterizadas pelas áreas reduzidas e uma lógica burguesa de distribuição dos
espaços/funções (Fig. 28 e 29). Os proprietários, casal sem filhos na altura do projec-
to, foram os responsáveis pela concepção do interior doméstico, concebendo no piso
térreo um espaço único familiar que engloba espaço de estar, espaço de consumo e
espaço de confecção (Fig. 25 a 27 e 30), ocupando os quartos a totalidade do andar
superior. A opção por um espaço social único afirmam, prende-se com questões de
hospitalidade, não isolamento nas tarefas domésticas (confecção essencialmente),
abertura e fluidez espacial e a sensação de espaço contínuo comensuravelmente mai-
or. Acreditam também que este tipo de espaço, colocando a zona de consumo entre o
estar e a confecção contribui para a integração desta função e uma maior utilização,
por oposição à sala de jantar marginal na sala comum ou à hermética em comparti-
mento próprio. À semelhança dos lofts, esta casa apresenta uma divisão bipartida dos
espaços – zona social e íntima em pisos distintos – concentrando o eixo da comida e
do estar num ponto que se corporiza no piso da entrada (Fig. 31).

12
Modos de Habitar

Fig. 25, 26, 27 – Casa Unifamiliar, Lisboa, Ana Moreira, 2014

Fig. 28 – Planta do piso térreo, projecto original [60]; Fig. 29 - Esquema do eixo de comida

Fig. 30 – Planta do piso térreo, reabilitação [61]; Fig. 31 - Esquema do eixo de comida

Paralelamente aos exemplos construídos referenciados considera-se relevante fazer


menção ao imaginário da casa ideal, manifestado na publicidade, influenciando a soci-
edade, moldando as suas aspirações e, consequentemente, os modos de vida. Espe-
lhando a cultura americana do seguindo pós-guerra, a propaganda de cozinhas procu-
ra vender um estilo de vida. Escolhe-se a palavra propaganda e não publicidade por
acarretar como significado a difusão de uma ideia, sendo ela, neste caso, o viver ideal
a almejar. O exemplo mais emblemático no nosso contexto é a casa IKEA, acessível a
um largo espectro social (Fig. 32). Apresentando disposições diversas de cozinha, in-

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clui alguns exemplos da cozinha-social, ilustrando ambientes de estilos diversificados


como indicação das possibilidades da tipologia.

Fig. 32 – Imagens de cozinhas IKEA [62]

Também no Brasil o poder da publicidade e das promoções imobiliárias é reconhecido


[63, 64, 65], desempenhando um papel dual: “(…) peças publicitárias tanto represen-
tam o desejo de consumidores, quanto são a origem destes desejos.” [66]
Vários autores brasileiros [67, 68, 69] indicam haver uma alteração nos programas ha-
bitacionais, embora nem sempre por consequência tout court de uma evolução ou
transformação dos modos de habitar: “(…) novos usos demandam novos lugares, en-
quanto novos hábitos de consumo e sociabilidade se consolidam diante da avalanche
tecnológica, da proliferação de equipamentos e das necessidades simbólicas da vida
de cada morador, casal ou família.” [70] É importante atentar nesta afirmação, sobre-
tudo na relação que se estabelece entre alteração programática e novos usos, hábitos
de consumo e necessidades simbólicas, sugerindo que algumas das mudanças no de-
senho do espaço não correspondem necessariamente a uma resposta a necessidades
efectivas mas sim a uma tentativa de acompanhamento de uma tendência. Esta dico-
tomia é identificada por Griz e Amorim [71], contrapondo gosto de necessidade e gosto
de luxo.

14
Modos de Habitar

Uma das alterações no programa habitacional mais sintomática desta fronteira ténue
entre necessidade e imaginário ideal é a do espaço da cozinha. Como noutros países,
entre eles, Portugal, como já referido, tem emergido uma nova tipologia de cozinha no
contexto brasileiro, aliada aos espaços de estar e consumo. Designada cozinha gour-
met, é frequente nas habitações contemporâneas das classes mais altas, denotando a
própria denominação alguma superficialidade, colocando o foco na qualidade estética
e não espacial. Este novo espaço do habitar brasileiro pode assim ser comparado à
sala de jantar da Idade Moderna – um espaço de encenação, de representação, sím-
bolo de status: “Dentre a elite recifense, por exemplo, a atitude de escolher morar num
‘condomínio club’ ou num edifício que oferece, dentre outras facilidades, salão de festa
com ‘espaço gourmet’ e apartamentos com ambientes ‘da moda’ como os dissemina-
dos home theater e home office, passa a ser essencial para se “morar bem”. Recipro-
camente, essa maneira de “morar bem” é tida como um dos atributos necessários para
que os moradores desses apartamentos sejam reconhecidos como membros de de-
terminados grupos sociais.” [72]
Não obstante os factores que permitiram a sua génese, a cozinha gourmet apresenta
características idênticas à cozinha-social – aberta para a zona social, de estar, desti-
nada ao convívio familiar e de convidados num espaço uno [73]. “Os apartamentos
permitiram a união da cozinha com a sala de jantar, tornando-o um ambiente único e
cada vez mais visto como um ponto de convívio informal compondo um espaço inte-
grado onde se pode cozinhar, comer e receber, voltando a se tornar a alma da casa.
Apesar dos espaços reduzidos, a cozinha passou a adquirir um novo sentido na vida
dos moradores de apartamentos, começando a ser valorizada tanto esteticamente
como em relação ao seu uso.” [73]
De acordo com estes autores, as promoções imobiliárias não oferecem ainda estas
tipologias, sendo os interiores transformados posteriormente pelos moradores, tendo a
sua pesquisa concluído que estes espaços gourmet (não só cozinhas, mas varandas,
que também aliam funções de consumo, confecção e estar) têm pouca utilização efec-
tiva, constituindo-se verdadeiramente como espaços cénicos de uma vida moderna:
“Portanto, não há como afirmar que os espaços e hábitos domésticos foram modifica-
dos, pois a cozinha não passa de uma sala de estar. Os equipamentos e utensílios
caros e sofisticados são raramente utilizados, os espaços não são pensados para a
preparação de alimentos e sim para a recepção de convidados, comprovando a hipó-
tese desta pesquisa segundo a qual as cozinhas gourmet são construídas com finali-
dade de elevação do status social.” [73]

5. Conclusões
Embora evidentemente distintas, as duas realidades apresentadas demonstram ser
real a emergência de uma nova tipologia de espaço de confecção, aliado aos espaços
de consumo e estar. A denominação escolhida pelos autores do presente artigo pre-
tende aproximar-se da essência da live-in kitchen ou living kitchen americana, do sim-
bolismo de convívio familiar e de um novo modo de vida e de vivência do habitar, afas-
tando-se da cozinha-gourmet brasileira, simbolicamente uma peça expositiva, vulnerá-
vel a tendências apresentadas na publicidade como ideais de vida.
Não obstante esta clivagem, a implementação da tipologia tem vindo a dilatar, cami-
nhando-se no sentido da redução do eixo da comida e da sua fusão com o espaço de
estar, formando uma unidade multifuncional central no espaço da habitação contempo-
rânea. Importa, a este respeito, introduzir um conceito que se julga determinante – o
da divisão do espaço na habitação. Tradicionalmente, seguindo a lógica burguesa, que
tem perdurado na nossa sociedade, o programa habitacional é dividido em sectores

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funcionais, tripartindo-se em zona social, zona de serviços e zona íntima. Esta triparti-
ção não é válida nas habitações em que a cozinha-social é proposta, pois não se veri-
fica a separação entre o social e o serviço. Em vez deste conceito, os autores pro-
põem que se adopte a classificação de espaços já referida por Paricio e Sust [74], di-
visão entre dia e noite. Esta divisão é especialmente apropriada nos exemplos anteri-
ormente descritos da tipologia Loft e da moradia unifamiliar, que se desenvolvem em
dois andares, sendo o térreo palco de usos diurnos (vida social e familiar) e o superior
de usos essencialmente nocturnos (descanso).
Como nota final, os autores crêem ser importante realçar a necessidade de um novo
pensamento no que concerne o programa habitacional, procurando dar resposta a ne-
cessidades variadas e a agregados diferenciados, com modos de vida não tradicio-
nais, evitando-se a padronização destinada a um homem-tipo que já não existe.

Referências Bibliográficas
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ty Press, 1998. (p.13)
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[9] (Salvador, 2014: 130)
[10] (Salvador, 2014: 131)
[11] (Heathcote, 2012: 58)
[12] (Rybczynski, 2001: 51)
[13] (Salvador, 2014: 268)
[14] (Rybczynski, 2001: 159)
[15] Giedion S. Space, Time and Architecture: The Growth of a New Tradition,
Cambridge, MA: Harvard University Press, 1970. (pp. 367-368)
[16] (Zabalbeascoa, 2011: 73)
[17] id.
[18] (Cromley, 1996: 17)
[19] Frederick C. Household Engeneering. Scientific Management in the Home, Chi-
cago: American School of Home Economics, 1923. (p.74)
[20] Eleb M., Debarre A. L’Invention de l’Habitation Moderne: Paris, 1880-1914, Par-
is: Hazan, 1995. (p.74)
[21] (Heathcote,2012: 51-56)
[22] http://ernst-may-gesellschaft.de/mayhaus/musterhaus.html
[23] (Cromley, 1996: 18-19)
[24] Hellman, C. “The Other American Kitchen: Alternative Domesticity in 1950s De-
sign, Politics, and Fiction”, Americana. The Journal of American Popular Culture

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Modos de Habitar

(1900 to Present) [em linha], Fall 2004, Volume 3, Issue 2, 2004. [consult. De-
zembro 2016] (p.4). Disponível em
http://www.americanpopularculture.com/journal/articles/fall_2004/hellman.htm
[25] (Cromley, 1996: 19)
[26] Plante E. The American Kitchen 1700 to Present: From Hearth to Highrise, New
York: Facts on File, Inc, 1995. (p.XI)
[27] id., p. 269
[28] Flamínio I. “O Espaço da Cozinha na Habitação Plurifamiliar Urbana. Modos de
Vida e Apropriação do Espaço” [em linha], Porto. [consult. Dezembro 2016]
(p.259)
Disponível em http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4630.pdf
[29] Cabral J. Filhos de Adão, Filhas de Eva, Lisboa: Dom Quixote, 1989. (p.65)
[30] id., p.66
[31] Planta fornecida por familiar, moradora no edifício.
[32] Caldas J. Porfírio Pardal Monteiro Arquitecto, Lisboa: AAP, 1997. (p.76)
[33] Moreira A. À Procura dos Novos Modos de Habitar, Lisboa: Tese de Mestrado,
Faculdade de Arquitectura, 2013 (pp. 67-71)
[34] Portas N. Funções e Exigências de Áreas da Habitação. Lisboa: LNEC, 1979.
(p.38)
[35] id., p.33
[36] id., p.51
[37] Plantas desenhadas por Ana Moreira com base nos desenhos constantes em
Pereira M., Gago M. Inquérito à Habitação Urbana, Lisboa: LNEC, 1984.
[38] Pereira M., Gago M. Inquérito à Habitação Urbana, Lisboa: LNEC, 1984.
[39] Pereira M., Gago M. O Uso do Espaço na Habitação, Lisboa: LNEC, 1983.
[40] Pereira M., Gago M. O Uso do Espaço na Habitação, Lisboa: LNEC, 1983. (p.
76)
[41] Pedro J. Programa Habitacional. Espaços e Compartimentos, Lisboa: LNEC,
2014
[42] id.
[43] Flamínio (p. 260) defende que “O conceito de ter uma cozinha aberta para ou-
tros espaços (…) não se encontra nos padrões da sociedade portuguesa, em-
bora comece a ser aceite como nova concepção de espaço, do habitar, mais
atraente a classes jovens ou a pessoas que aderem mais facilmente a outros
modos de habitar, modos diferentes do tradicional português.” Importa contra-
por a tradição da habitação plurifamiliar a que Flamínio se refere à tradição ru-
ral, onde o modo de habitar ditava exactamente a abertura da cozinha a outros
usos.
[44] (Zabalbeascoa, 2011: 73)
[45] (Plante, 1995: 291)
[46] Pereira, S. Casa e Mudança Social. Uma Leitura das Transformações da Soci-
edade Portuguesa a partir da Casa, Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2012
[47] (Heathcote, 2012: 56)
[48] (Zabalbeascoa, 2011: 83)
[49] Kunze apud Salvador, 2014: 63
[50] (Heathcote, 2012: 54)
[51] (Cromley, 1996: 19)
[52] (Pedro, 2014: 36)
[53] (Heathcote, 2012: 57)
[54] (Pereira, 2012: 110)
[55] id., p.115
[56] id., p.114
[57] id., p.214

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4º CIHEL – Congresso Internacional da Habitação no Espaço Lusófono | A Cidade Habitada

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[58] id., pp.214-215


[59] Fotografias Fernando Guerra.
Disponíveis em http://ultimasreportagens.com/ultimas.php
[60] Desenho de Ana Moreira
[61] id.
[62] www.ikea.pt
[63] Amorim L., Loureiro C. “ Dize-me teu nome, tua altura e onde moras e te direi
quem és: estratégias de marketing e a criação da casa ideal 2”, Arquitextos [em
linha], 2005. [consult. Dezembro 2016]
Disponível em http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/05.058/490
[64] Griz C., Amorim L. “O Luxo como Necessidade. Projectos de Apartamentos Tí-
picos da Elite Recifence”, Arquitextos [em linha], 2015. [consult. Dezembro
2016] Disponível em
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/16.186/5846
[65] Rossetti E. “Morar Brasileiro. Impressões e Nexos Actuais da Casa e do Espa-
ço Doméstico”, Arquitextos [em linha], 2014. [consult. Dezembro 2016]
Disponível em
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/15.169/5220
[66] (Amorim, Loureiro, 2005)
[67] (Griz, Amorim, 2015)
[68] (Rossetti, 2014)
[69] Brandão L., Manhas A. “Espaço doméstico e edifícios multifamiliares. Uma per-
cepção da cozinha gourmet no setor de serviço contemporâneo em apartamen-
tos de alto padrão em Maceió AL”, Arquitextos [em linha], 2015. [consult. De-
zembro 2016] Disponível em
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/16.184/5825
[70] (Rossetti, 2014)
[71] (Griz, Amorim, 2015)
[72] id.
[73] (Brandão, Manhas, 2015)
[74] Paricio I., Sust X. La Vivienda Contemporânea: Programa y Tecnologia. Barce-
lona: ITEC, 2000.

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Modos de Habitar

Notas Biográficas

Ana S. Moreira
Licenciada em Arquitectura pelo Instituto Superior Técnico em 2004, iniciou prática
profissional no ano de 2005 no atelier Mendia+Spencer, tendo prosseguido a sua car-
reira profissional em atelier próprio a partir de 2008, paralelamente à actividade inves-
tigativa académica, concluindo o Mestrado Integrado em Arquitectura pelo Instituto
Superior Técnico, em 2010, e o Mestrado Integrado em Arquitectura de Interiores pela
Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa, em 2013. Desde 2014 que se
constitui doutoranda do Curso de Doutoramento em Arquitectura da Faculdade de Ar-
quitectura da Universidade de Lisboa.

Hugo L. Farias
Arquitecto em 1992, pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lis-
boa. Pós-Graduação em Arquitectura da Habitação em 1996, pela Faculdade de Arqui-
tectura da Universidade Técnica de Lisboa. Doutoramento em Arquitectura em 2011,
pela Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Madrid, Espanha. Professor Auxiliar
na área científica do Projecto de Arquitectura da Faculdade de Arquitectura da Univer-
sidade de Lisboa, onde lecciona unidades curriculares de Projecto ao 1º Ciclo do Mes-
trado Integrado em Arquitectura, e unidades curriculares de Arquitectura da Habitação
ao 3º Ciclo. Actualmente é Co-coordenador do Curso de Doutoramento em Arquitectu-
ra da FAUL.
Desenvolve investigação na área da arquitectura portuguesa do século XX, enfocando
sobretudo a arquitectura da habitação da segunda metade do século: habitação colec-
tiva, habitação de interesse social e habitação unifamiliar.
Arquitecto responsável e sócio gerente do gabinete de arquitectura OU arquitectos em
Lisboa, desde 1994, onde desenvolve projectos de arquitectura, desenho urbano e re-
abilitação arquitectónica.

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