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COMPÊNDIO HISTÓRICO DE

MULHERES DA ANTIGUIDADE

TI O
AR
R ISÃ
Vol. 1: A Presença das Mulheres

LH
na Literatura e na História

PA V
M E
O R
C A R
ÃO PA
R ÃO
VO RS
N
FA VE

Tempestiva
Goiânia, 2021.
Editora Tempestiva, 2021
© Todos os direitos reservados.

Capa: Ivan Vieira Neto.


Revisão: Semíramis Corsi Silva.
Edição/diagramação: Ivan Vieira Neto / Wemerson Romualdo.
Imagem de Capa: A Greek Woman. Sir Lawrence Alma-Tadema (1869).

TI O
Óleo sobre tela. Imagem de domínio público (Wikimedia Commons).

AR
R ISÃ
LH
PA V
M E
O R
C A R
ÃO PA
R ÃO

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


________________________________________________________________
VO RS

X000
N

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade: a presença das mulheres na


FA VE

Literatura e na História / Semíramis Corsi Silva, Rafael de C. Matiello Brunhara


& Ivan Vieira Neto (org.). - Goiânia: Tempestiva, 2021.

ISBN 978-65-992343-5-4

1. Enciclopédia. 2. Compêndio. 3. Antiguidade. 4. Gênero. 5. História das Mulheres.


I. Silva, Semíramis Corsi. II. Brunhara, Rafael de C. Matiello. III. Vieira Neto, Ivan.
Organizadores
Semíramis Corsi Silva,
Rafael Brunhara & Ivan Vieira Neto

TI O
AR
R ISÃ
COMPÊNDIO HISTÓRICO DE

LH
MULHERES DA ANTIGUIDADE

PA V
M E
Vol. 1: A Presença das Mulheres
O R
na Literatura e na História
C A R
ÃO PA
R ÃO

Prefácio de Pedro Paulo A. Funari


VO RS
N
FA VE

Tempestiva
Goiânia, 2021.
FA VE
VO RS
R ÃO
N
ÃO PA
C A R
O R
M E
PA V
R ISÃ
TI O
LH
AR
Sumário

As Mulheres, protagonistas na História e na Cultura:

TI O
AR
Antiguidade a serviço da convivência.................................19

R ISÃ
Prefácio de Pedro Paulo A. Funari

LH
PA V
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade, 1:
M E
A Presença das Mulheres na Literatura e na História
O R
C A

Apresentação...........................................................................27
R

Semíramis Corsi Silva, Rafael Brunhara & Ivan Vieira Neto


ÃO PA

§01 Mulheres Míticas..............................................................37


R ÃO

por Flávia Regina Marchetti


VO RS

Musas................................................................................44
N

por Bruno Palavro


FA VE

Ninfas...............................................................................48
por María Cecilia Colombani

Dafne................................................................................55
por Pedro Schmidt

Hermafrodite..................................................................64
por Pérola de Paula Sanfelice
Psiquê...............................................................................69
por Nádia Maria Weber Santos
& Ivan Vieira Neto

Pandora............................................................................79
por Marta Mega de Andrade

TI O
AR
Europa..............................................................................85

R ISÃ
por Félix Jácome Neto

LH
PA V
Pasífae...............................................................................91

M E
por Thirzá Amaral Berquó
O R
Esfinge.............................................................................99
C A

por Francisco Marshall


R
ÃO PA

Sêmele............................................................................105
por Juarez Oliveira
R ÃO

Dânae.............................................................................113
por Renata Cardoso Belleboni Rodrigues
VO RS
N

Medusa...........................................................................120
FA VE

por Renata Cardoso Belleboni Rodrigues

Andrômeda....................................................................127
por Clara Lacerda Crepaldi

Galateia (Mulher de Pigmalião).......................................131


por Leni Ribeiro Leite
& Ariane Ribeiro Santana
Aracne............................................................................140
por Iván Pérez Miranda

Geropso..........................................................................145
por Carolina Kesser Barcellos Dias

Alcmena.........................................................................153

TI O
AR
por Ivan Vieira Neto, Jaqueline da Silva
& Ana Lina de Carvalho Rodrigues

R ISÃ
LH
Etra.................................................................................159

PA V
por Vander Gabriel Camargo

M E
& Thirzá Amaral Berquó
O R
Ariadne..........................................................................167
C A
por Ariadne Borges Coelho
R

Eurídice..........................................................................173
ÃO PA

por Juarez Oliveira


R ÃO

Atalanta..........................................................................181
por Thirzá Amaral Berquó
VO RS

Hipsípile........................................................................189
N

por Murilo Tavares Modesto


FA VE

Leda................................................................................197
por Lolita Guimarães Guerra

Galateia (Nereida).........................................................206
por Júlia Batista Castilho de Avellar

Lâmias e Empusas.........................................................217
por Semíramis Corsi Silva
§02 Mulheres na Antiga Mesopotâmia............................227
por Kátia M. P. Pozzer
Ku-Baba........................................................................239
por Fábio Vergara Cerqueira

Enheduana....................................................................249
por Janaina de Fátima Zdebskyi

TI O
AR
Tarām-Kūbi e Šimat-Aššur...........................................255

R ISÃ
por Anita Fattori

LH
Sammu-ramat...............................................................263

PA V
por Anita Fattori
M E
O R
Semíramis......................................................................269
por Marina Regis Cavicchioli
C A

& Henrique Edigton da Costa e Silva


R
ÃO PA

Naqi’a.............................................................................277
por Kátia M. P. Pozzer
R ÃO

Libbāli-šarrat.................................................................285
por Simone Silva da Silva
VO RS
N

Deportadas na Assíria.................................................291
por Simone Silva da Silva
FA VE

Nitócris da Babilônia.....................................................297
por Simone Silva da Silva

§03 Mulheres na África Antiga............................................305


por Margaret Marchiori Bakos

Neith-iqret (Nitócris do Egito)..................................311


por Wellington Rafael Balém
Ahmés Nefertiry............................................................317
por Moacir Elias Santos

Hatshepsut.....................................................................325
por Priscila Scoville

Tiye.................................................................................331

TI O
por Priscila Scoville

AR
R ISÃ
Nefertiti.........................................................................337

LH
por Gisela Chapot

PA V
Ankhiry.........................................................................345
M E
por Liliane Cristina Coelho
O R
Naunakhte....................................................................351
C A

por Thais Rocha da Silva


R
ÃO PA

Makeda (Rainha de Sabá)............................................357


por Raisa Sagredo
R ÃO

Ankhnesneferibre........................................................363
por Wellington Rafael Balém
VO RS
N

Tsenhor.........................................................................369
por Wellington Rafael Balém
FA VE

Arsinoé II.......................................................................375
por Joana Campos Clímaco

Berenice II.....................................................................383
por Karine Lima da Costa

Shanakdakhete.............................................................387
por Fábio Amorim Vieira
Cleópatra VII................................................................393
por Camilla Ferreira da Silva Paulino

Amaniremas..................................................................401
por Fábio Amorim Vieira

Amanishaketo...............................................................407

TI O
AR
por Raisa Sagredo

R ISÃ
LH
Amanitare......................................................................413
por Fábio Amorim Vieira

PA V
M E
Sha-Amun-en-su e ‹Kherima›: as múmias femininas
O R
do Museu Nacional........................................................419
C A
por Helinny Machado da Silva
R
ÃO PA

§04 Mulheres no Antigo Testamento.....................................429


por Joel Antônio Ferreira
R ÃO

Lilith...............................................................................439
VO RS

por Sue’Hellen Monteiro de Matos


N

Eva..................................................................................445
FA VE

por Sue’Hellen Monteiro de Matos

Sara................................................................................451
por Nayara do Vale Moreira
& Rosemary Francisca Neves Silva

Rebeca...........................................................................455
por Valmor da Silva
Lia...................................................................................461
por Karine Marques Rodrigues Teixeira
& Rosemary Francisca Neves Silva

Raquel............................................................................467
por Karine Marques Rodrigues Teixeira
& Rosemary Francisca Neves Silva

TI O
AR
Tamar.............................................................................473

R ISÃ
por Janaina de Fátima Zdebskyi

LH
Judite..............................................................................479

PA V
por Victor Passuello
M E
O R
Diná...............................................................................485
por Janaina de Fátima Zdebskyi
C A R

Miriam.........................................................................491
ÃO PA

por Nathália Pawlowski Mariano

Joquebede e Zípora.......................................................499
R ÃO

por Raquel dos Santos Funari


VO RS

Cinco Filhas de Salfaad...............................................507


N

por Joel Antônio Ferreira


FA VE

Raab................................................................................513
Sue’Hellen Monteiro de Matos

Rute...............................................................................517
por Joel Antônio Ferreira
& Gláucia Loureiro de Paula

Débora...........................................................................523
por Nathália Pawlowski Mariano
Dalila..............................................................................529
por Luiz Alexandre Solano Rossi

Jezabel............................................................................535
por Semíramis Corsi Silva
& Tailiny Femi Fabris

TI O
AR
§05 Mulheres na Épica Homérica...........................................543

R ISÃ
por Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho

LH
Criseida..........................................................................556

PA V
por Antonio Orlando Dourado-Lopes
M E
O R
Briseida..........................................................................561
por Antonio Orlando Dourado-Lopes
C A R

Helena............................................................................567
ÃO PA

por Ivan Vieira Neto

Hécuba...........................................................................577
R ÃO

por Christian Werner


VO RS

Andrômaca....................................................................583
N

por Christian Werner


FA VE

Calipso...........................................................................591
por Camila Jourdan

Penélope.........................................................................597
por Lilian Amadei Sais

Euricleia.........................................................................603
por Teodoro Rennó Assunção
Nausícaa........................................................................611
por Rafael de A. Semêdo

Arete...............................................................................619
por Rafael de A. Semêdo

Circe...............................................................................625

TI O
AR
por Dolores Puga

R ISÃ
LH
Sereias.............................................................................633
por Mary de Camargo Neves Lafer

PA V
M E
§06 Mulheres na Grécia Arcaica, Clássica e no Mundo Greco-
O R
-Macedônico........................................................................641
por Fábio de Souza Lessa
C A R

Artesãs Ceramistas.......................................................649
ÃO PA

por Gilberto da Silva Francisco

Hetairas.........................................................................657
R ÃO

por Glória Braga Onelley


VO RS

Musicistas......................................................................663
N

por Fábio Vergara Cerqueira


FA VE

Musicistas nos Períodos Arcaico e Clássico.................671


por Fábio Vergara Cerqueira

Musicistas nos Períodos Helenístico e Imperial.........677


por Fábio Vergara Cerqueira

Artemísia I da Cária.....................................................685
por Anderson Zalewski Vargas
Cinisa.............................................................................693
por Luis Filipe Bantim de Assumpção

Gorgo.............................................................................699
por Luis Filipe Bantim de Assumpção

Timéia............................................................................705

TI O
AR
por Luis Filipe Bantim de Assumpção

R ISÃ
LH
Xantipa..........................................................................709
por Miguel Spinelli

PA V
M E
Neera..............................................................................717
O R
por Daniel Barbo
C A

Olímpia de Épiro........................................................721
R

por Henrique Hamester Pause


ÃO PA

§07 Poetas Helênicas...............................................................729


R ÃO

por Giuliana Ragusa


VO RS

Safo.................................................................................737
N

por Giuliana Ragusa


FA VE

Cleobulina.....................................................................743
por Isabella Demarchi

Mírtis..............................................................................749
por Rafael de Carvalho Matiello Brunhara

Corina...........................................................................753
por Clara M. Sperb
Praxila............................................................................757
por Isabella Demarchi

Telesila...........................................................................763
por Thais Rocha Carvalho

Ânite de Tégea............................................................767

TI O
AR
por Marina Lacerda Machado

R ISÃ
LH
Erina...............................................................................771
por Clara M. Sperb

PA V
M E
Mero...............................................................................779
O R
por Thais Rocha Carvalho
C A

Nóssis.............................................................................783
R

por Flavia Vasconcellos Amaral


ÃO PA

Melino..........................................................................787
por Thais Rocha Carvalho
R ÃO
VO RS

§08 Mulheres no Romance Antigo.....................................793


N

por Adriane da Silva Duarte


FA VE

Calírroe.........................................................................801
por Adriane da Silva Duarte

Quartila........................................................................807
por Fabrício Sparvoli

Fortunata.......................................................................813
por Fabrício Sparvoli
Matrona de Éfeso..........................................................819
por Renata Senna Garraffoni

Circe (Satyricon).............................................................827
por Fabrício Sparvoli

Proselenos....................................................................833

TI O
AR
por Sandra Maria Gualberto Braga Bianchet

R ISÃ
LH
Ântia...............................................................................839
por Adriane da Silva Duarte

PA V
M E
Leucipe...........................................................................843
O R
por Lucia Sano
C A

Méroe.............................................................................849
R

por Sarah Silva Tolfo


ÃO PA

Panfília...........................................................................853
por Nátalle Garcia dos Santos
R ÃO

Fótis..............................................................................859
VO RS

por Sarah Silva Tolfo


N
FA VE

Cloé................................................................................863
por Lucia Sano

Caricleia........................................................................869
por Lucia Sano

§09 Mulheres na Literatura Latina......................................879


por Anderson Martins
Dido..............................................................................894
por Paulo Martins

Camila............................................................................907
por Sérgio Murilo de Anadrade Barbosa

Lavínia...........................................................................913

TI O
AR
por Alexandre Agnolon

R ISÃ
LH
Reia Sílvia......................................................................920
por Caroline Morato Martins

PA V
M E
Aca Larência..................................................................927
O R
por Sérgio Murilo de Andrade Barbosa
C A

Sabinas...........................................................................935
R

por Alexandre Agnolon


ÃO PA

Tanaquil........................................................................943
por Caroline Morato Martins
R ÃO

Lucrécia.........................................................................951
VO RS

por Renata Cerqueira Barbosa


N
FA VE

Lenas...............................................................................957
por Beatriz Rezende Lara Pinton

Meretrizes......................................................................963
por Charlene Martins Miotti
& Beatriz Rezende Lara Pinton

Virgo..............................................................................971
por Amy Richlin
Syra................................................................................979
por Amy Richlin

Lésbia.............................................................................983
por Alexandre Cozer

Cíntia............................................................................989

TI O
AR
por Paulo Martins

R ISÃ
Délia...............................................................................995

LH
por Maria Ozana Lima de Arruda

PA V
M E
Corina (Ovidiana).........................................................998
por Guilherme Horst Duque
O R
C A
Dipsas...........................................................................1005
R

por Gabriel Paredes Teixeira


ÃO PA

Canídia e Sagana........................................................1011
por Semíramis Corsi Silva
R ÃO

Medeias Latinas..........................................................1019
por Fernanda Messeder Moura
VO RS
N

Ericto............................................................................1027
FA VE

por Anderson Martins


& Carlos Eduardo da Costa Campos

§10 Mulheres Guerreiras.......................................................1035


por Mateus Dagios

Amazonas....................................................................1041
por Iván Pérez Miranda
Hipólita.......................................................................1047
por Paulina Nólibos

Pentesileia...................................................................1055
por Ivan Vieira Neto

Teuta............................................................................1065
por Paulo Pires Duque

TI O
AR
R ISÃ
Tômiris........................................................................1073

LH
por Rodrigo dos Santos Oliveira

PA V
Blenda de Småland....................................................1079
M E
por Renan Marques Birro
O R
Hervör..........................................................................1085
C A

por Pablo Gomes de Miranda


R
ÃO PA

Lagertha.......................................................................1091
por Pablo Gomes de Miranda
R ÃO
VO RS
N
FA VE
FA VE
VO RS
R ÃO
N
ÃO PA
C A R
O R
M E
PA V
R ISÃ
TI O
LH
AR
TI O
AR
R ISÃ
LH
MULHERES NA

PA V
LITERATURA LATINA
M E
Compêndio Histórico de
O R
Mulheres da Antiguidade
C A

Volume I
R
ÃO PA
R ÃO
VO RS
N
FA VE
FA VE
VO RS
R ÃO
N
ÃO PA
C A R
O R
M E
PA V
R ISÃ
TI O
LH
AR
Mulheres na Literatura Latina
por Anderson Martins

Nosso olhar sobre as sociedades da Antiguidade —e, por

TI O
extensão, o olhar sobre uma característica específica de algumas

AR
dessas sociedades, tal qual a literatura— é sempre e de modo

R ISÃ
inarredável um olhar contemporâneo. É dizer, estamos todos

LH
nós, pesquisadores da Antiguidade, cingidos pelas amarras irre-

PA V
mediáveis de um certo anacronismo, que advém da circuns-

M E
tância mesma de nosso ofício de interpelar, hoje, uma civili-
O R
zação que deixou de existir há séculos, que não se nos apresenta
senão como uma rede fragmentária de «mitos, emblemas e
C A

sinais», para retomar o paradigma indiciário de Ginzburg.


R

Impedidos, pela injunção do decurso do tempo, de


ÃO PA

empreender uma pesquisa de campo antropológica que nos


permitisse compreender cabalmente, por meio da complemen-
R ÃO

taridade entre as abordagens êmica e ética, o funcionamento


da sociedade da Roma republicana e imperial, estamos fadados
a observar, questionar e falar sobre Roma a partir de nossa
VO RS

própria conjuntura, a sociedade brasileira do início do século


N

XXI. É a partir das inquietações de nosso tempo que lemos


FA VE

nossos autores, em sua maioria (ao menos para a República e


início do Principado), homens pertencentes às elites de Roma
ou de demais cidades da Península Itálica. Formados, que
somos, em uma cultura específica —e ela é machista, LGBTfó-
bica, racista e, nos últimos anos, crescentemente fascista (ou,
pelo menos, para agradar a historiadores mais severos, autori-
tária)— e com a mentalidade de mulheres e homens de nossa
época, perscrutamos o que restou de Roma e da sua literatura.
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

E, por mais desolador que possa parecer, nada pode


transpor o hiato dos conceitos entre Antigos e Modernos, já
que ou usamos, em nossa tarefa de refletir sobre as obras e os
autores romanos, termos e conceitos contemporâneos —como
gênero, identidade, sexualidade e mesmo literatura (como
bem lembra Florence Dupont, o que chamamos de «litera-
tura latina» é uma criação moderna)—, ou adotamos termos

TI O
AR
luzidios com irrefutável lastro na Antiguidade – família, viri-

R ISÃ
lidade, erotismo, religião, autor, filosofia e tantíssimos outros,

LH
que recebem a chancela dos puristas —que não guardam
equivalência semântica e cultural com os seus pares antigos.

PA V
Estamos, repito, fadados a um certo grau de anacronismo—
M E
donde o corajoso «elogio do anacronismo» de Nicole Loraux
O R
—e lidamos com ele com uma variedade de modelos teóricos
e metodológicos, dos mais ingênuos e primitivistas aos mais
C A

conscientes e modernistas.
R

De uma perspectiva contemporânea, a representação das


ÃO PA

mulheres na literatura latina – especialmente, neste volume,


desde seus inícios, com a comédia plautina, até o início do
Principado – chama nossa atenção com duas grandes questões
R ÃO

preambulares, de que trataremos neste texto. Primeiramente,


a sub-representação. Se levarmos em conta que a razão sexual
VO RS

entre humanos é muito próxima de 1:1 (ou seja, de forma geral


N

e em média, a proporção entre homens e mulheres nos diversos


FA VE

grupos populacionais é equilibrada, de modo que há algo


próximo a 100 homens para cada 100 mulheres, desprezamos
aqui a ligeira predominância da população masculina atual
apontado pela Organização Mundial de Saúde, que apresenta
estimativas de até 1,06 homem nascido/mulher) e que este
coeficiente é relativamente estável ao longo do tempo, havia,
na população de Roma ao tempo de Augusto, por exemplo, um
número muito próximo de romanos e romanas. Cabe salientar
que mesmo considerando a insistência de estudiosos sobre
880
A presença das mulheres na Poesia e na História

um possível desequilíbrio, durante o principado de Augusto,


resultando em uma quantidade de cidadãos romanos de nasci-
mento livre (ingenui) ligeiramente maior do que as mulheres
romanas de mesmo status (McGinn 2004), não parece haver
razões para afirmar que a razão sexual da população de Roma
era muito diferente da média histórica de 1 para 1. Em vista
disso, temos que lidar com o fato de que as mulheres apareciam

TI O
AR
pouco nas obras literárias da Roma Antiga. Literariamente, as

R ISÃ
mulheres apareciam muito menos do que sua presença real na

LH
sociedade, o que equivale a dizer, portanto, que sofriam uma
significativa sub-representação.

PA V
Não nos referimos à disparidade da importância, ou, mais
M E
precisamente, do destaque dado às personagens masculinas em
O R
relação às femininas, já que nos parece fato evidente, mesmo
aos que têm pouca intimidade com a literatura romana. Indis-
C A

cutivelmente, de maneira geral, personagens masculinas têm


R

mais relevo do que femininas: ainda que haja um só Eneias


ÃO PA

contra três personagens femininas a ele correlatas pelo matri-


mônio ou por outros laços erótico-afetivos, seria mesmo
uma platitude afirmar que Creúsa, Dido e Lavínia, ainda que
R ÃO

juntas, podem competir com a relevância dada por Virgílio


ao herói de sua epopeia que, não por outro motivo, recebeu
VO RS

o nome de Eneida. Em contrapartida, reportamo-nos apenas


N

à mera evidência quantitativa: há muito menos mulheres do


FA VE

que homens representados na literatura latina. Se utilizarmos


o mesmo exemplo da Eneida, dentre os personagens mais
recorrentes —como nos informa João Ângelo Oliva Neto
no Índice dos principais nomes, ao final da edição crítica e
anotada da tradução da Eneida por Carlos Alberto Nunes— há
92 homens para apenas 33 mulheres (computamos individu-
almente cada variação de nome do mesmo personagem, por
exemplo: Vênus e Citeréia contam duas vezes, da mesma forma
como Febo e Apolo; contamos, igualmente, de acordo com seu
881
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

gênero, figuras mitológicas que não tenham forma humana,


como é o caso de Cila, de gênero feminino, e de Cíclope, de
gênero masculino; além disso, entram na contagem grupos
masculinos, como os Faunos, e femininos, como as Fúrias, e
também cada um de seus integrantes que aparecerem na lista,
como é o caso da Fúria Alecto), ou seja 10:3,6 (10 homens
para 3,6 mulheres, arredondando para cima a casa decimal).

TI O
AR
Talvez se possa argumentar, para relativizar a discrepância,

R ISÃ
que é da própria natureza do gênero épico, no qual se inscreve

LH
a Eneida, exaltar os feitos dos heróis – quase todos homens,
bem entendido – e que, apenas por este motivo, as mulheres

PA V
tenham um papel secundário. Ainda que possamos aceitar o
M E
argumento – falacioso, sem dúvida, já que o mesmo fato que
O R
o épico privilegie a ação de heróis e não de heroínas (a não ser
por via de exceção e para ilustrar valores masculinos presentes
C A

em uma mulher, como é o caso de Camila) reforça nossa afir-


R

mação, em vez refutá-la –, basta passar a outras obras, como


ÃO PA

as comédias plautinas, que são, em certa medida, um contra-


ponto à Épica, na medida que estão muito mais próximas da
realidade social de sua época (segunda metade do século III e
R ÃO

início do século II aEC) do que a magnum opus (ou qualquer


outra obra) de Virgílio.
VO RS

E o que encontramos em Plauto é uma proporção não


N

muito mais alentadora de mulheres: se usarmos como exemplo


FA VE

uma de suas peças mais conhecidas, como a Aululária, todos


os personagens principais (Euclião, Megadoro, Liconides e
Estrobilo) são homens; entre os secundários ou de menor
relevo, temos o deus Lar e os cozinheiros Congrião e Ântrax
contra três mulheres: Estáfila, Eunômia e a discreta (e silente)
Fedria – 7 personagens masculinas para 3 femininas, o que se
converte em 10:4,3, arredondando para cima a casa decimal.
E o saldo nem é tão negativo como nas Báquides, para tomar
outro exemplo aleatório, que, embora tenham o nome das
882
A presença das mulheres na Poesia e na História

duas únicas personagens femininas da peça, conta com 10


personagens masculinas – 10:2, exatamente. E, reforçamos,
não tratamos aqui do relevo dos papéis femininos, pois, se
assim, fosse, a representação feminina nas Báquides seria ainda
menor, considerando que, na razão de 10:2 (10 homens para
duas mulheres), estas últimas aparecem apenas na primeira e
na última cenas.

TI O
AR
O leitor atento pode arguir o lapso temporal de quase dois

R ISÃ
séculos entre o período de composição da Eneida e o das comé-

LH
dias plautinas e preferir comparar a composição de Virgílio

PA V
com seus contemporâneos. Talvez, afinal, na literatura augus-

M E
tana a mulher apareça mais em outras composições literárias de
O R
outros gêneros literários, que não a Épica. Pois examinemos
esta hipótese pelo mesmo método, de amostragem e pouco
C A

preciso, que usamos acima e nos voltemos para os autores da


R

chamada Elegia erótica. Utilizemos como exemplo as elegias


ÃO PA

de Propércio, que as escreveu lá pela mesma altura que Virgílio


trabalhava na Eneida e, caso raro entre os poetas da época,
R ÃO

que se mostra fiel ao modelo heterossexual de amor e não


divide a atenção que dispensa a Cíntia com nenhum Márato
ou Juvêncio. É mesmo de se esperar que um gênero que se
VO RS

dedica de tal modo a cantar a mulher amada – e, no caso do


N

insuspeito Propércio, repetimos, não há nenhuma distração


FA VE

que dê origem a um ciclo de elegias de amor homossexual


– tenha uma preponderância de mulheres; é dizer, trata-se
de procedimento de cherry picking contrário à nossa hipótese.
Pois o que vemos no index – bastante exaustivo e cuidadoso –
ao final da tradução de Goold é a menção a 345 personagens
masculinos contra 167 femininas (retomanos nesta contagem
os procedimentos observados para o cômputo das personagens
da Eneida e, além deles, contamos também as personificações
883
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

de virtudes e noções abstratas, como em Mens Bona, Pudicitia,


Fama etc.), o que nos dá a proporção de 10:4,8 (10 homens
para 4,8 mulheres, arredondando para baixo a casa decimal).
Sem dúvida, é uma proporção superior aos 10:3,6, que
encontramos em Virgílio, mas ainda muito distante de um
10:10, o que nos faz reafirmar que as personagens femininas
—sejam mulheres, como a épica Dido ou Cíntia de Propércio;

TI O
AR
sejam deusas, como Juno e Minerva, ou monstros, como Cila

R ISÃ
e Caríbdis, que aparecem em ambos autores; sejam perso-

LH
nificações de ideias abstratas, como Fides, em Virgílio e
Mens Bona, na elegia— aparecem sensivelmente menos do

PA V
que seus contrapares masculinos, em uma (des)proporção de
M E
aproximadamente 50%, na melhor das contagens, até 20%,
O R
no pior dos casos (i.e. que as mulheres aparecem, respecti-
vamente, entre 50% e 80% menos do que os homens).
C A

E, ainda importante dizer, para respeitar a divisão de gêneros


R

literários proposto para esta coleção, deixamos de lado autores


ÃO PA

muito significativos, como Cícero e Tito Lívio, que escre-


veram pouco antes ou pouco depois de Virgílio, cujas obras,
muito provavelmente, nos dariam uma proporção ainda mais
R ÃO

sombria pendendo para personagens masculinas. A literatura


latina foi marcada, repisamos a assertiva, pela sub-represen-
VO RS

tação das mulheres.


N

A segunda grande questão relacionada ao tema da repre-


FA VE

sentação das mulheres na literatura latina é número ínfimo de


obras de escritoras romanas que nos chegou, fenômeno que
Moses Finley sintetiza no título de um capítulo bem conhecido
e não menos pessimista: «The silent Roman women», original-
mente publicado em 1965 e que figura em uma obra sobre
gênero e sexualidade na Antiguidade, organizada por Laura
McClure (2002, 147-160). É dizer, enquanto, no espaço lite-
rário romano, os homens se autorrepresentam, as mulheres, ao
contrário, são alorrepresentadas. Não possuímos, com efeito,
884
A presença das mulheres na Poesia e na História

nenhuma obra completa de qualquer escritora romana (ou de


expressão latina, para ser mais preciso) no período compre-
endido por este volume, e mesmo o minguado material que
nos alcançou tem suscitado polêmicas infindáveis. Desde o
século XIX até o fim do século XX, classicistas, homens em
sua maioria, têm se recusado a aceitar fato de que este excerto
de carta ou aquele poema elegíaco sejam autênticos ou tenham

TI O
AR
sido escrito por mulheres romanas, preferindo, na dúvida,

R ISÃ
atribuí-los a um homem —in dubio, pro viro. Alicerçado, é

LH
verdade, na penúria de evidência, essa atmosfera científica de
pessimismo— expressa, por exemplo, pelo enunciado fatalista

PA V
de Niklas Holzberg, que sentencia, no início de um artigo:
M E
«Roma na Antiguidade é uma espécie de decepção para aqueles
O R
interessados em gender studies» (1998-1999, 169) —foi tóxica
para o avanço dos estudos da produção literária feminina na
C A

Antiguidade Romana. De maneira que, salvos pelo esforço


R

de gerações de mulheres classicistas, que, desde a década de


ÃO PA

1970, têm trabalhado para «restaurar as vozes perdidas» das


escritoras romanas (Hemelrijk 2004, 140), temos hoje mais
instrumentos, seja para compreender o silenciamento dessas
R ÃO

mulheres no espaço literário de Roma, seja para reavaliar o


minguado material de que dispomos, seja para compreender
VO RS

as obras perdidas, ou seja, as escritoras cujas produções não


N

sobreviveram, mas, ainda assim, foram reconhecidamente


FA VE

importantes no seu tempo.


Algumas dessas mulheres romanas escaparam à «domi-
nação masculina» (expressão que tomamos de empréstimo
a Bourdieu) da sociedade da Roma antiga e, mais especi-
ficamente, às constrições impostas às escritoras romanas.
Citamos aqui —julgamos fundamental o seu registro nesta
obra—cinco figuras, que nos parecem as mais emblemá-
ticas, por ordem cronológica e sem distinguir as autoras
cujas obras (ou fragmentos) sobreviveram daquelas que, em
885
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

contrapartida, apenas temos o nome e o testemunho dos antigos.


A primeira menção cabe a Cornélia (c. 190 – c. 110 aEC), filha
de Emília Paula e Cornélio Cipião Africano e mãe dos irmãos
Gracos. Embora haja muitas evidências de cartas redigidas
por mulheres, aparentemente somente as de Cornélia foram
publicadas e alcançaram tal sucesso de modo a serem elogiadas
por Cícero (Brutus, 211) e por Quintiliano (Institutio Oratoria,

TI O
AR
1. 1. 6). Há controvérsias sobre a autenticidade de dois trechos

R ISÃ
de uma carta de Cornélia a seu filho Caio Graco, preservada

LH
em alguns manuscritos que contém fragmentos de uma obra

PA V
perdida de Cornélio Nepos, mas, ainda assim, sabemos que

M E
produção epistolar da autora era marcada pelos conselhos
O R
de uma matrona sobre atuação política dos irmãos Gracos.
A personificação da figura da «matrona» na figura lite-
C A

rária de Cornélia dá azo a comentários céticos como o de


R

Thomas Hubbard, para quem é impossível saber se essas cartas


ÃO PA

eram autênticas ou a «construção literária de autores mascu-


linos de uma matrona idealizada» (2004-2005, 189).
R ÃO

Muitos anos depois, na última geração da República


Romana, temos Cornifícia, poeta pertencente provavelmente
ao círculo dos poetas neotéricos, talvez por intermédio do
VO RS

irmão Cornifício, também poeta e amigo de Catulo, ou de seu


N

esposo Camério, igualmente amigo de Catulo, que dedica a


FA VE

ele o poema 55. Nada nos restou de seus poemas, que, entre-
tanto, são citados nas Crônicas de Jerônimo, que ao consignar
a morte irmão Cornifício, em 41 aEC, nos informa Chro-
nicon, 184ª Olimpíada, 3a): «huius soror Cornificia, cuius insignia
extant epigrammata» (a irmã deste era Cornifícia, cujos notáveis
epigramas sobrevivem). Ou seja, sua produção, a julgar pela
letra do texto de Jerônimo, teria sobrevivido pelo menos por
quatro séculos (até o final do século IV EC).
886
A presença das mulheres na Poesia e na História

Já no período augustano, alcançamos a escritora romana


que, possivelmente, teve maior renome (e, consequentemente,
suscitou mais polêmica entre os classicistas) na contempora-
neidade: Sulpícia, poeta elegíaca do círculo de Tibulo (ou, vale
dizer, do círculo de Messala), da qual restam seis pequenos
poemas no Livro III do Corpus tibullianum – volume apenso,
em um manuscrito de época carolíngia, aos dois livros do

TI O
AR
poeta e possivelmente uma recolha de poemas de amigos

R ISÃ
de Marco Valério Messala Corvino. Os poemas atribuídos à

LH
Sulpícia – precedidos pela assim chamada Grinalda de Sulpícia
(3. 8-12), de autoria desconhecida – são os 3. 13-18, conforme

PA V
a anotação tradicional nas principais edições do século XX.
M E
Esses 40 versos em dísticos elegíacos representam o único
O R
conjunto cujos manuscritos atribuem a uma mulher romana
em toda a literatura latina clássica e, talvez por isso mesmo, sua
C A

autenticidade tem sido objeto de calorosas discussões por mais


R

de um século e meio (Hubbard 2004-2005, 177-183). Sulpícia


ÃO PA

teria sido sobrinha, por parte de mãe, de Valério Messala


Corvino (64 aEC – 8 EC), patrono das artes e cônsul em 31
aEC, e filha de Sérvio Sulpício Rufo, o que a coloca na mais
R ÃO

fina flor da aristocracia romana. Provavelmente teve seu floruit


nas últimas décadas do século I aEC (Hemelrijk 2004, 145) e,
VO RS

na amostra de seus poemas que nos chegou, canta seus amores


N

por um certo Cerinto (Cerinthus), que, como ela, era solteiro.


FA VE

E é precisamente este seu status que alimenta grande parte das


suspeitas sobre a autoria dos poemas, como vemos no já citado
Hubbard, para quem seria inconcebível que uma jovem poeta
romana escrevesse com tal liberdade de expressão seus desejos
amorosos por Cerinto, seja ele quem fosse – ou seja, mesmo
que ele fosse uma mera criação literária (2004-2005, p. 178).
Na mesma esteira, Niklas Holzberg, de forma menos sexista,
é verdade, atribui os poemas de todo o livro III, incluindo os
de Sulpícia, a um imitador de Tibulo, posterior a Ovídio, que
887
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

teria escrito sob o principado de Tibério (1998-1999, 178).


Para uma análise mais aprofundada sobre o tema, recomen-
damos a leitura de Emily Hemelrijk, que acolhe a tese da
existência real de Sulpícia e da autenticidade da autoria dos
poemas (2004, 145 e ss.).
Uma escritora consideravelmente diferente das que
viveram no século anterior é Agripina Menor (15 – 59 EC),

TI O
AR
filha de Agripina Vipsânia e de Germânico. Primeiramente,

R ISÃ
Agripina tinha uma influência política ímpar em seu tempo:

LH
foi esposa do imperador Cláudio e mãe de Nero, sucessor
deste – e, a julgar pelos relatos de Tácito, Suetônio e Díon

PA V
Cássio, responsável por orquestrar essa sucessão. Junto com
M E
Lívia, esposa de Augusto, foi talvez a mulher mais atuante
O R
politicamente nos primeiros anos do Principado romano, o
que não era o caso das poetas referidas anteriormente. Sobre
C A

sua posição única na família imperial – com efeito, Agripina


R

era filha de Germânico, aclamado imperator em função de suas


ÃO PA

vitórias na Germânia, irmã de Calígula e, como já dissemos,


esposa de Cláudio e mãe de Nero –, Tácito escreve (Ann. 12.
42. 3): «imperatore genitam, sororem eius, qui rerum potitus sit, et
R ÃO

coniugem et matrem fuisse unicum ad hunc diem exemplum est»


(único exemplo, até o dia de hoje, de uma mulher filha
VO RS

de um imperator, irmã, mulher e mãe de um imperador).


N

Em segundo lugar, e em decorrência de seu status, Agripina


FA VE

adotou um gênero inusitado para as mulheres romanas: os


commentarii, para utilizarmos o nome com que Tácito classifica a
obra (Ann. 4. 53. 3), o qual podemos traduzir como «memórias».
O livro, provavelmente publicado, é citado também por
Plínio, o Velho, ao comentar o mau presságio que marcou
o nascimento de Nero (N.H. 7. 46). E o que faz da obra,
da qual nada nos restou, tão significativa no espaço literário
das autoras romanas é seu próprio gênero, já que os commen-
tarii eram um tipo de autobiografias de políticos – homens
888
A presença das mulheres na Poesia e na História

romanos pertencentes às elites – que, embora não tivessem


pretensão literária, representando mormente notas destinadas
a informar o trabalho dos historiadores propriamente ditos,
eram um meio de aumentar sua própria dignitas, de apre-
sentar a sua perspectiva sobre a história política do período.
E, a considerar apenas pelas menções presentes em Tácito e
em Plínio, o Velho, Agripina conseguiu deixar demarcado o

TI O
AR
seu legado no espaço extremamente sexista da política romana

R ISÃ
de meados do século I EC.

LH
Finalmente, chegamos a Sulpícia, poeta satírica – também
chamada de Sulpícia II, para diferenciá-la da poeta elegíaca

PA V
homônima, ou de Sulpicia Caleni, i.e. «Súlpícia de Caleno»
M E
(esposa de Caleno), forma que, ainda que possa ter sido o
O R
modo como os romanos se referiam a suas mulheres e que
C A
possa agradar a alguns puristas mais apegados às expressões
R

antigas, preferimos evitar. Esta Sulpícia viveu e, possivelmente


(Merriam 1991, 303; Stevenson 2005, 45), produziu sob o
ÃO PA

principado de Domiciano (81 – 96 EC) e foi celebrada por


Marcial nos epigramas 10. 35 e 10. 8. No primeiro, o autor se
R ÃO

refere explicitamente à produção poética de Sulpícia (Ep. 10.


35. 1-4) – Omnes Sulpiciam legant puellae/ uni quae cupiunt viro
VO RS

placere (todas as moças que queiram agradar a um só homem


N

leiam Sulpícia) – que é apresentada como modelo de amor e


fidelidade conjugal. Sua obra, de acordo com Emily Hemelrijk
FA VE

(2004, 154) e Jane Stevenson (2005, 45), é marcada pela exal-


tação do amor conjugal e mesmo pelo desejo que sentia por seu
marido, o que pode ter lhe valido o julgamento negativo de
Ausônio, que a acusa de «licenciosidade» (Merriam 1991, 304).
No segundo epigrama, endereçado a Caleno, Marcial come-
mora os quinze anos de sua união conjugal com Sulpícia, que
compara com o casamento mítico da ninfa Egéria e do rei
Numa, famoso pela retidão de costumes e pela religiosidade
889
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

(Ep. 10. 35. 13-14). Da obra de Sulpícia, nada sobrou, a não


ser dois versos iâmbicos trímetros, citados por um escoliasta
do século IV EC (Emelrijk 2004, 331).
Com esse rol de apenas cinco autoras, cujas obras são ou
lacunares ou não nos chegaram, não desejamos desencorajar
as futuras pesquisadoras e pesquisadores. Focamos naquelas
que nos parecem mais representativas, quer seja do ponto de

TI O
AR
vista político, como Cornélia e Agripina, quer do ponto de

R ISÃ
vista literário, como Cornifícia e as duas Sulpícias; mas, em

LH
nenhuma hipótese, esta lista deve ser lida como um cânone ou,
o que é pior, como uma enumeração exaustiva. Já se passaram

PA V
muitos anos desde a ideia de «uma meia-dúzia de mulheres de
M E
língua latina que tentaram escrever», como Holzberg (98-99,
O R
169) se refere à lista de Santirocco (1979, 229). Houve muitas
mais, sobretudo se consideramos a evidência epigráfica e se
C A

aumentamos o nosso recorte temporal de modo a alcançar a


R

Antiguidade Tardia. Contudo, ainda assim, no estágio atual


ÃO PA

das pesquisas, não podemos escapar do que asseveramos acima:


o número de escritoras romanas que nos chegou é ínfimo
quando comparado ao total de escritores homens.
R ÃO

E isso nos reconduz à segunda grande questão relacionada


ao tema da representação das mulheres na literatura latina e ao
VO RS

corolário do fenômeno da exiguidade de escritoras: as romanas


N

foram representadas, de forma quase que absoluta, por homens, e


FA VE

não por elas próprias. Sofreram, portanto, uma alorrepresentação,


cujas consequências são conhecidas e, em grande medida,
estudadas pelos especialistas. Destarte, as mulheres romanas –
e gregas, e bárbaras – do espaço literário romano são figuras
cinzeladas por homens e não escapam às expectativas e ao ideário
de uma sociedade machista e patriarcal. Como seriam, por outro
lado, essas mulheres romanas em uma literatura autorrepresen-
tativa é difícil de prever, já que os poucos dados de que ainda
dispomos nos impedem de formular hipóteses.
890
A presença das mulheres na Poesia e na História

Apresentamos aqui dois fenômenos que dizem respeito à


relação entre a literatura latina e a sociedade romana: a sub-re-
presentação e a alorrepresentação. E vimos o óbvio, as mulheres
aparecem pouco, ocupam em regra um papel menor do que os
homens na literatura e, para acréscimo, não há, praticamente,
nenhuma autora romana cuja obra nos tenha chegado de forma
integral. Cabe, portanto, a nós, contemporâneos, a quem se

TI O
AR
coloca a nítida questão da representatividade da mulher na nossa

R ISÃ
sociedade, fazer o melhor que podemos para pôr em evidência

LH
essas personagens. É nossa tarefa fazer justiça àquela metade da
população de Roma que, embora tenha atuado ativamente na

PA V
construção da República e, depois, do Império, foram silenciadas,
M E
por diversos expedientes, na literatura latina. É preciso relem-
O R
brar o ânimo guerreiro de Camila, a coragem (que se revelou
revolucionária) de Lucrécia, o furor das Medeias romanas.
C A

É preciso, além disso, fazer falar as personagens sem voz.


R

Tal tarefa, a tarefa deste volume, só se consegue pelo diálogo


ÃO PA

entre duas temporalidades: a Antiguidade Romana, nosso objeto


de estudos, e a contemporaneidade com nossas próprias lutas e
R ÃO

questões. E precisamente isso fazem, cada um ao seu modo, os


eruditos autores e autoras dos verbetes contidos neste capítulo.
VO RS

Referências
N

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FA VE

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M E
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C A R
ÃO PA
R ÃO
VO RS
N
FA VE

894
Dido
por Paulo Martins

Daquilo que sabemos sobre Dido —também chamada


Elisa—, os elementos seguramente mais antigos referem-se

TI O
AR
à migração de um grupo de fenícios de Tiro (atualmente no

R ISÃ
Líbano) para Cartago (hoje na Tunísia), em aproximadamente

LH
814 AEC. Foi Dido que, em desavença com seu irmão Pigma-
leão, liderou a fuga dos tírios para fundar uma nova cidade

PA V
(Qart-Hadašt), significado literal de Cartago.
M E
Ela tinha se casado com um sacerdote de Hércules, Siqueu
O R
—também chamado Sicarbas –, cuja fortuna era disputada pelo
rei, seu irmão, Pigmaleão, que o matou. Restou à filha do rei
C A

Muto (Agenor ou Belo), a sidônia Dido, fundar uma nova


R

Tiro e obedecendo ao fantasma de Siqueu, achou seu tesouro,


ÃO PA

tomou a fortuna do irmão e partiu a fim de cumprir sua saga


no oeste da África.
Em sua jornada para cumprir sua missão, sua esquadra
R ÃO

faz uma escala em Chipre onde seus companheiros raptam


oitenta jovens moças do serviço à cípria Vênus e as tomam por
VO RS

suas esposas. Tal ação pode, em certa medida, ser responsável


N

por seu trágico futuro. Em seguida, parte da ilha retornando


FA VE

à África mais ocidental, onde funda Cartago (ver Virgílio.


Eneida, vv. 1.330-401). Cidade historicamente importante,
pois que rivalizará comercial e politicamente com Roma
nos séculos vindouros. Rivalidade esta que culminou com as
Guerras Púnicas entre 264 – 146 AEC, quando Roma quase
caiu sob os ataques de Aníbal.
As referências mais antigas sobre a fundação de Cartago e
consequentemente sobre Dido vêm de Timeu de Tauromênio
(c.350 – 260 AEC), cujos textos não chegaram até nós a não
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

ser por fonte indireta. Outro documento importante e indireto


é de Menandro de Éfeso que, citado por Flávio Josefo (histo-
riador do século I EC), nos apresenta uma lista de reis tírios
entre os séculos X e IX AEC. A numismática também nos
oferece vários registros extemporâneos acerca de Dido. Um
bom exemplo pode ser observado numa moeda (figura 1), que
nos oferece uma efígie de Elisa. Essa raríssima tetradracma foi

TI O
AR
cunhada entre 320 – 310 AEC, na Sicília, provavelmente em

R ISÃ
Entela (Ἔντελλα), portanto algo em torno de 150 anos antes

LH
das guerras púnicas.

PA V
M E
O R
C A R
ÃO PA
R ÃO
VO RS

Fig. 1: Tetradracma de Dido - SNG Lloyd, 1628.


N
FA VE

Ainda que tenhamos referências à rainha sidônia feitas


por historiadores como Valeio Patérculo (c. 19 AEC – c. 31),
(História Romana, 1. 6. 4) quando aponta que Cartago fora
fundada 65 anos após a fundação de Roma pela rainha ou
Tácito (c. 56 – 117), (Anais, 16.1) que descreve o sonho de
um cartaginês que logrou ludibriar Nero, dizendo que em
suas terras em Cartago havia um tesouro ocultado por Dido,
definitivamente são as fontes poéticas as mais instigantes e
detalhadas que temos dessa personagem. Advêm de Névio
896
A presença das mulheres na Poesia e na História

nos Anais; de Virgílio (70 – 19 AEC) na Eneida; de Ovídio


(43 AEC – 18 EC) nas Heroides, nos Fastos e nos Remédios do
Amor, afora as de Marcial (40 – 104 EC) nos Epigramas, Sílio
Itálico (28 – 103 EC) na Púnica e Aulo Gélio nas Noites Áticas
(123 – 165).
Entretanto Virgílio e Ovídio também são fontes impor-
tantíssimas. Ambos, ao contrário de Fernando Pessoa, fizeram

TI O
AR
da história de Dido o seu mito e esse fecundou a poesia. Para

R ISÃ
o poeta português “a lenda (de Ulisses) se escorre/ a entrar na

LH
realidade” (Pessoa. Mensagem, 6), afinal dele vem o nome de
Lisboa (Ulissipona). Já para aqueles poetas romanos, Dido, uma

PA V
realidade, como outras tantas, tornou-se efabulação poética.
M E
Nesse viés, a rainha fenícia é uma mescla de personas de três
O R
gêneros letrados, sem contarmos a historiografia: a épica, a
elegia e a tragédia. Mesmo que tenhamos na historiografia
C A

antiga a possibilidade de alusão mítica, em certa medida, refe-


R

rendada por Heródoto na arqueologia (História, Clio, 1-5),


ÃO PA

essa personagem traz consigo a marca da ficcionalidade e da


inventividade poética que irá sendo cristalizada a partir do séc.
I AEC, muita vez, com o crivo de validade histórica.
R ÃO

Murari (1999, 147-148 e 181), por exemplo, vê na epopeia


os princípios da narrativa na questão do valor-utilidade, qual
VO RS

seja, o princípio teleológico e, assim, entendemos que o mito


N

de Dido cumpre uma função literária ligada mas não engen-


FA VE

drada por sua “nua” realidade histórica. Decorre, pois, que


nesse caso a natureza poética daquilo que “poderia ser”, logo
mais verdadeiro do que “aquilo que foi” acaba por ganhar
contornos históricos com toda vênia de Aristóteles.
A lenda de Dido, reelaborada por Virgílio, tem um ponto
de contato com um evento histórico, já que Dido parece ter
se matado. As versões mais antigas, informam que assim que
a rainha fundou Cartago, um rei de uma cidade vizinha, um
tal Jarbas, a propôs casamento ao qual não poderia recusar
897
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

sob a ameaça de guerra iminente. Ela pediu três meses para


responder, pois cumpria luto pela morte de Siqueu. Ao final
do prazo, subiu a uma pira funerária e lá se suicidou. Esse
desfecho, ainda que de forma arrevesada, teria contribuído
para a construção da narrativa sobre heroína na Eneida.
Três momentos na epopeia virgiliana reputo impor-
tantes na construção da personagem. Os primeiros contatos

TI O
AR
entre a sidônia e o troiano, Eneias, no primeiro canto. O enlace

R ISÃ
amoroso entre ambos, provocado por Cupido, e o desfecho

LH
trágico urgido por Vênus no canto quarto. E o reencontro
dos dois na catábase do sexto canto. Não que Dido desapareça

PA V
completamente no decurso da epopeia, afinal sua memória
M E
é reestabelecida, a partir de presentes que ofertou ao filho
O R
do herói (Eneida, 5. 571), um cavalo e a Eneias, uma cratera
(Eneida, 9. 266) e um manto (Eneida, 11. 74).
C A

Seu primeiro contato com o protagonista é quando sua


R

flotilha após a tempestade urdida por Juno e apaziguada por


ÃO PA

Netuno os faz aportar em Cartago. Daí Eneias em sua explo-


ração encontra num templo as imagens da guerra de Troia
da qual acabara de participar – uma bela écfrase (ver Martins
R ÃO

2013, 48-68). É neste local que ele vê Dido (Eneida, 1. 496),


porém ele ganha a invisibilidade. Outros membros da esquadra
VO RS

chegam e ela mostra toda sua hospitalidade, convidando-os,


N

todos, para um banquete, lamentando que Eneias não esteja


FA VE

presente (Eneida, 1. 516-519). Aí herói reaparece resplande-


cente (ver figura 2 e Eneida, 586-595). Tais circunstâncias
são semelhantes a Odisseu no palácio do rei feácio, Alcino,
(ver Martins 2013, 32-46) dado que neste episódio Eneias
passa a narrar os eventos dos quais participou até sua chegada
a Cartago (ver figura 3). Mas o mais importante: enquanto
Eneias manda buscar o filho nos navios, sua mãe Vênus pede
a Cupido que “contamine” a rainha com seus poderes e a faça
apaixonar-se pelo troiano.
898
A presença das mulheres na Poesia e na História

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Fig. 2: The Meeting of Dido and Aeneas (1766), Sir Nathaniel


Dance-Holland. Tate Britain, Londres.
ÃO PA

Nos cantos segundo e terceiro, temos o flashback dos


R ÃO

eventos que antecedem a chegada a Cartago. Esses irão line-


arizar estruturalmente narrativa iniciada. Assim, o canto quatro
retoma os eventos presentes do canto primeiro. É nos versos 1.
VO RS
N

123 – 150 que encontramos o himeneu da rainha e do troiano


(ver figura 4), uma cilada urdida num conluio entre Vênus e
FA VE

Juno, dupla vingança. De acordo com a causalidade, a rainha


afetada pelo Amor/Cupido irá degenerar seu alumbramento
em morte. Amor, morte, decepção e sofrimento são temas
igualmente explorados na épica, mas na elegia romana ganha
contornos interessantes demarcados por alguns lugares comuns
como a milícia do amor; a guerra do/no amor; o lamento do
amor não correspondido aliado do sofrimento e da decepção;
a morte e o suicídio que culmina na descida aos infernos.
899
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

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Fig. 3: Énée racontant à Didon les malheurs de la ville de Troie.


Huile sur toile (1815), Pierre-Narcisse Guérin, Musée des
Beaux-Arts de Bordeaux, Bordeaux.
R ÃO
VO RS

Aponta Oliva Neto em seus comentários à epopeia:


N

“exemplo do refinamento da poética helenístico-romana, o


FA VE

livro dedicado à malfadada paixão de Dido é interlúdio amoroso


em meio aos feitos heroicos de Eneias” (Virgílio. Eneida).
A incompatibilidade entre sua condição de mulher e rainha com
o amor e o poder na união com Eneias a leva a uma condição
de degenerescência ética, pois que percorre o caminho que
vai do desvelamento da paixão à morte por suicídio (ver figura
5). Nesse sentido, ainda que tenha contornos trágicos, o canto
quarto está estreitamente ligado à elegia romana (ver Martins;
Rodrigues 2017, 91-108).
900
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Fig. 4: Mosaico romano,encontrado em Low Ham, Somerset


– c. IV sec. E.C. – Somerset County Museum (Taunton),
Somerset, Inglaterra.
R ÃO
VO RS
N
FA VE

Figura 5: La mort de Didon (séc. XVII), Andrea Sacchi. Musée


des Beaux-Arts de Caen, Caen.
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

A última aparição de Dido na Eneida é significativa.


Eneias em sua descida ao mundo subterrâneo, em busca
de seu pai, Anquises, que lhe apresentará o futuro a partir
de imagens que se caracterizam pela atemporalidade numa
mescla de passado, presente e futuro. Nesta viagem o herói
é guiado pela Sibila de Cumas, que é capaz de protegê-lo
dos perigos que lá estão guardados. Ao chegar no vestíbulo

TI O
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do inferno Virgílio faz com que Eneias conheça divindades

R ISÃ
próprias, pois que lá “vê” essas como imagens primordiais

LH
e não concretas: o Medo, as Doenças, a Fome, a Discórdia
etc. São imagens de um mundo essencialmente únicas, logo

PA V
verdadeiras platonicamente pensando.
M E
Logo após a travessia do Aqueronte – onde conhece
O R
Caronte – tem contato com os Campos Lugentes, isto é,
os campos daqueles que choram eternamente: almas de
C A

crianças, de suicidas e daqueles que morreram de amor, pelo


R

o que lhe surge Dido (Eneida, 450-476). Ela a despeito de


ÃO PA

sua condenação ao sofrimento eterno, ao eterno choro, por


vontade própria, de acordo com a narrativa, impõe a Eneias,
um desprezo categórico. “Ela, porém, sem olhá-lo de frente,
R ÃO

olhos fixos na terra/ não se deixando abalar pelas frases melí-


fluas de Eneias,/ mais parecia de sílex ou pedra a lavrar de
VO RS

Marpeso”, isto é, mais parecia uma estátua de mármore de


N

Paros quase uma referência ao mito de Pigmaleão, aqui não o


FA VE

irmão de Dido, mas o rei da ilha de Chipre que se apaixonou


por sua escultura.
Quanto à recepção do mito podemos observar que o
encontro com o herói troiano que sela sua marca trágica o fez
repercutir, por exemplo, tanto nas Heroides de Ovídio em que
recupera os minutos anteriores ao suicídio, como na ópera
moderna do inglês Henry Purcell (1658 –1695) Dido and
Aeneas de 1689 a sinalização do trágico é muito acentuada.
Já o mosaico romano de Low Ham e a tela de Dance-Holland
902
A presença das mulheres na Poesia e na História

de 1766, por seu turno, resgatam o primeiro canto quando


Eneias surge majestosamente trajado diante da rainha e o
intercurso amoroso do canto quarto, ambos do poema de
Virgílio. A tela de Guérin (1815), por sua vez, apresenta a
recepção das estórias do herói na presença de Dido dos cantos
segundo e terceiro da Eneida. Sachi, por outro lado, nos passa
o momento patético do suicídio de Dido que irá repercutir

TI O
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como vimos no canto sexto da Eneida.

R ISÃ
Entretanto, algo nos parece muito curioso quanto ao

LH
mosaico inglês do século IV E.C., no qual vemos a imagem

PA V
do mito de Dido e Eneias cristianizada, uma vez que ao

M E
conluio amoroso une-se uma serpente ao torno do corpo
O R
nu de Dido.
Por fim, o que devemos guardar desta “mithistória”,
C A

Dido, é que sua relação com Roma e com Enéias, ultrapassa


R

a natureza do amor. Antes, as personagens estão ligadas por


ÃO PA

seus éthe, ambos são fundadores. Eneias tem a incumbência


de fundar Roma, a nova Troia; a Dido é dada a função de
fundar a nova Tiro, Cartago. A essas duas potências indepen-
R ÃO

dentemente do amor e da tragédia foi dado o poder comercial


e político do Mediterrâneo ocidental. Se mito ou se nada
VO RS

pouco importa. Mas é inegável o poder cartaginês e romano.


N

Se veio com amor ou desamor, é coisa da Fortuna.


FA VE

Referências
Fontes históricas
DANCE-HOLLAND, N. 1766. The Meeting of Dido and
Aeneas. Londres: Tate Britain. Disponível em: em https://
commons.wikimedia.org/wiki/File:Sir_Nathaniel_Dance-
-Holland_-_The_Meeting_of_Dido_and_Aeneas_-_Google_
Art_Project.jpg. Acesso em: 31 jul. 2021.
903
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

GUÉRIN, P.-N. 1815. Énée racontant à Didon les malheurs de la


ville de Troie. Huile sur toile. Bordeaux: Musée des Beaux-Arts
de Bordeaux. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/
wiki/File:Dido_y_eneas.jpg. Acesso em: 31 jul. 2021.
HERÓDOTO. 1985. História. Tradução de Mário da Gama
Kury. Brasília: Editora da Universidade de Brasília.
PESSOA, F. 1981. Obra Poética (volume único). Petrópolis:

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Nova Aguilar.

R ISÃ
ROMAN MOSAIC OF LOW HAM. Somerset County

LH
Museum (Taunton): Sumerset, Inglaterra. Disponível em :

PA V
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Low_ham_mosaic.

M E
jpg. Acesso em: 31 jul. 2021.
O R
SACCHI, A. La mort de Didon. Caen: Musée des Beaux-Arts.
Acesso em 31 jul. 2021. Disponível em: https://pt.wikipedia.
C A

org/wiki/Dido#/media/Ficheiro:Sacchi,_Andrea_-_The_
R

Death_of_Dido_-_17th_c.jpg. Acesso em: 31 jul. 2021.


ÃO PA

TÁCITO. 1970. Anais. Tradução de J. L. Freire de Carvalho.


Rio de Janeiro: W. M. Jackson Editores.
R ÃO

VELEIO PATÉRCULO. 1998. The Roman History. Tradução


de F. W. Shipley. Cambridge, Mass.: Harvard University Press.
VIRGÍLIO. 2014. Eneida. Tradução de Carlos Alberto Nunes.
VO RS

Organização, apresentação e nota de João Angelo Oliva Neto.


N

São Paulo: Editora 34.


FA VE

Referências bibliográficas
MARTINS, P. 2013. Pictura Loquens, Poesis Tacens. Limites da
Representação. Tese de Livre Docência defendida na Univer-
sidade de São Paulo – USP.
MARTINS, P.; RODRIGUES, M. 2017. A Elegia no Canto
IV da Eneida, CODEX - Revista de Estudos Clássicos, 5.2, p.
91-108.
904
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MURARI, F. 1999. Mithistória. São Paulo: Humanitas.


ROBINSON, E. S. G. (Ed.). 1933. Sylloge Nummorum Grae-
corum: Lloyd Collection London: Oxford University Press.

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Camila
por Sérgio Murilo de Andrade Barbosa

Camila (Camilla, no latim) é uma virgem guerreira volsca


aliada de Turno contra Eneias, herói troiano fundador das bases

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de Roma. Devota à deusa Diana, Camila desde muito nova

R ISÃ
foi treinada nas artes da caça e da guerra, além de surpreender

LH
por sua beleza, extrema velocidade e habilidade em combate.
Apresentada no catálogo de guerreiros do sétimo livro da

PA V
Eneida, Camila é uma personagem feminina cuja criação acre-
M E
dita-se ser quase exclusiva de Virgílio, pois ela não aparece em
O R
nenhum outro documento literário ou epigráfico anterior à
Eneida (Mota 2020, 134). Desse modo, o poema é a principal
C A

fonte para tratarmos dessa personagem.


R

Virgílio produz a Eneida, de 29 aEC até aproximada-


ÃO PA

mente 19 aEC, a fim de valorizar a grandiosidade do passado,


presente e futuro de Roma. Para isso, exalta a origem divina
e heróica do Império e da linhagem de Augusto, descendente
R ÃO

de Eneias. A Eneida narra os feitos de Eneias, herói troiano


que, após a derrota para os gregos na Guerra de Tróia, navega
VO RS

rumo ao Ocidente a fim de estabelecer na Itália as bases da


N

Troia renascida: Roma. Nos doze livros que formam a obra,


FA VE

Virgílio relata os últimos dias da guerra, a fuga de Eneias, o


combate contra os povos itálicos e a vitória final das forças do
troiano. Nos Livros VII e XI identificamos a amazona Camila,
aliada de Turno contra Eneias.
Camila faz parte dos elementos da literatura do período
de Augusto. Após longos e intensos conflitos, Roma cami-
nhava rumo a uma reconfiguração do sistema republicano
de governo, que resultou no Principado de Otaviano César.
Logo após derrotar Marco Antônio na batalha do Áccio, na
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Grécia, Otaviano torna-se o único senhor em Roma. Entre


as medidas adotadas para se legitimar no poder, está o inves-
timento e valorização da produção intelectual, principal-
mente de poetas que tratassem das grandiosidades do Império
Romano. Virgílio fez parte do Círculo de Mecenas, grupo de
poetas que recebiam apoio de Augusto para que pudessem
produzir suas obras.

TI O
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Acredita-se que a história de Camila teve narrativas popu-

R ISÃ
lares italianas daquele contexto como fundamento. Entretanto,

LH
não se sabe detalhes sobre esses elementos locais que inspiraram
Virgílio, porém há modelos mais famosos que influenciaram

PA V
as características da personagem, por exemplo: as caracterís-
M E
ticas físicas e seu desempenho em campo de batalha da rainha
O R
amazona Pentesileia; e a história da infância da guerreira
Harpálice.
C A

A primeira menção a ela ocorre no final do catálogo dos


R

comandantes itálicos aliados de Turno (Virgílio. Eneida, VII.


ÃO PA

803-817). Segundo essa parte, suas mãos femininas não foram


acostumadas a utilizar o fuso e as agulhas, dons de Minerva,
mas se endureceram nos trabalhos duros dos campos de guerra.
R ÃO

Sua velocidade ultrapassava até os ventos mais rápidos, pare-


cendo passar sobre os trigais sem esmagá-los ou sobre a super-
VO RS

fície das águas sem que seus delicados pés sentissem a umidade
N

da água. Constata-se nessa parte que, diferentemente do que


FA VE

se esperava de uma mulher na cultura romana, a guerreira não


se dedica às aptidões domésticas de Minerva (Mota 2020, 135).
A passagem de Camila no combate faz com que jovens e
mulheres velhas corram para admirar sua elegância, seu manto
púrpura que cobre seus ombros delicados, a fivela de ouro
que prende seus cabelos, a aljava da Lícia que traz sempre ao
lado (Camila é associada a Diana, deusa caçadora, venerada na
Lícia) e a lança de mirto com ponta de ferro. A descrição de
suas roupagens formam os versos que concluem o Livro VII.
908
A presença das mulheres na Poesia e na História

A infância de Camila é descrita em uma sequência conhe-


cida por leitores e ouvintes de epopeias: violência, perseguição,
exílio e nutrição por animais ou seres do universo frontei-
riço (Mota 2020, 136). Sua vida é narrada pela deusa Diana à
ninfa Ópis (Virgílio. Eneida, XI. 535-584). Segundo a deusa,
Metabo, pai de Camila, foi rei de Priverno, cidade volsca da
qual foi expulso por uma insurreição popular contra seus atos

TI O
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de tirania. Expulso após a morte de sua mulher, Casmila, ele

R ISÃ
foge através dos bosques levando a recém-nascida Camila.

LH
Os inimigos o perseguem até às margens do rio Amaseno,

PA V
no Lácio, que impede sua passagem, pois o volume das águas

M E
havia aumentado pelas chuvas. Metabo consagra Camila à
O R
deusa Diana, quando, para protegê-la, a envolve nas cascas de
um sobreiro e a atira para a outra margem presa a uma lança.
C A

Alcançado pelos perseguidores, ele mergulha e atravessa o rio


R

a nado, encontrando a lança com a criança sã e salva.


ÃO PA

Ele passa a viver entre os pastores, ensina à filha as artes


rurais e a alimenta com leite de uma égua selvagem. Quando
R ÃO

mal se sustenta de pé e dá os primeiros passos com dificuldade,


Camila começa a lançar seus dardos e já é capaz de abater o
grou ou o cisne com sua funda. Esses detalhes evidenciam a
VO RS

introdução precoce de Camila nas artes da caça e, por conse-


N

quência, militares. Já passível de contrair matrimônio, muitas


FA VE

mães desejam tê-la como nora, porém ela se contenta apenas


com o culto à Diana e mantém sua virgindade sem manchas.
O próprio nome de Camila dá indícios de sua estreita relação
com a divindade. Camilla e Camillus (versão masculina) eram
servos ou assistentes empregados em algumas cerimônias reli-
giosas (Glare 1968, 262). Desse modo, esses meninos e meninas
eram dedicados ao culto aos deuses, assim como Camila era
ao culto de Diana.
909
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

No Livro XI ocorre o embate entre as forças de Eneias e


Turno; Camila se apresenta a Turno como sua aliada; perce-
bemos sua desenvoltura em combate; e, por fim, temos seus
últimos momentos de vida (Virgílio. Eneida, XI. 498-831).
A guerreira apresenta-se cheia de autoconfiança e até se propõe
a ir, apenas com suas tropas, confrontar Eneias. Em meio à
guerra, Camila arremessa dardos uns atrás dos outros com uma

TI O
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mão, maneja um sólido machado com a outra, além de trazer

R ISÃ
o arco de ouro e as armas de Diana nos ombros. Sua paixão

LH
ardente pelos combates faz com que ela exulte em meio à
matança. O cenário muda quando, ao longe, ela avista Cloreu,

PA V
um guerreiro adornado de vestes esplendentes e armas magní-
M E
ficas. Sua juventude e feminilidade, até aí dominadas, saem de
O R
seu controle quando a virgem guerreira o vê e não o perde de
vista, ficando cega para todo o resto e desejando apenas aqueles
C A

despojos (Torrão 1993, 114).


R

Camila se enfurece com um amor feminino pelo saque e


ÃO PA

despojos: femíneo praedae et spoliorum ardebat amore (Virgílio.


Eneida, XI. 782). Percebemos a mistura do antigo código
heróico (a tomada de despojos) com um desejo feminino
R ÃO

inesperado por cetim e brocado (Rosenmeyer 1960, 161).


Com olhos apenas para aqueles despojos, ela não vê outro
VO RS

guerreiro, Arrunte, que a persegue de longe sem cessar.


N

A amazona não ouve sequer o ruído do dardo que ia em sua


FA VE

direção, ela apenas sente a dor que ele provoca ao atingir seu
seio descoberto. Camila cai, tenta em vão remover o dardo,
não resiste ao ferimento e morre. Apesar de ser represen-
tada com qualidades masculinas (segundo o ideário romano),
Camila é traída pelo seu lado feminino, o desejo de possuir as
belas vestes de Cloreu, que a leva à morte por falta de cautela
(Vasconcellos 2001, 321). Desse modo, sua morte é atribuída
ao desejo irresponsável por despojos de guerra, um desejo
caracterizado como tipicamente feminino (Keith 2000, 28).
910
A presença das mulheres na Poesia e na História

Em produções posteriores, Camila aparece n’A Divina


Comédia de Dante Alighieri (1265-1321), poeta e político de
Florença, na Itália. No poema dantesco produzido no início do
século XIV, a guerreira é mencionada no verso 104 do Canto
II e no verso 124 do Canto IV, ambos do Inferno (primeira parte
do poema). Nessa obra, Camila aparece no círculo dos virtu-
osos da Antiguidade. Desse modo, Dante não julga a amazona

TI O
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pelas mortes que causou em batalha, nem por sua excessiva

R ISÃ
autoconfiança ou por seu desejo desmedido pelos despojos de

LH
Cloreu. Apesar de Dante Alighieri colocar Camila no Inferno,
ela está junto àqueles que não pecaram, porém viveram antes

PA V
da vinda de Cristo ao mundo, portanto não foram batizados
M E
e não viveram segundo os ensinamentos cristãos.
O R
Camila é um paradoxo para o leitor. Sua velocidade é
superior à dos ventos, parece flutuar sobre o chão e as águas.
C A

Entretanto, ao mesmo tempo em que sua elegância e beleza


R

pasmam aqueles que a observam, suas mãos delicadas seguram


ÃO PA

armas e a amazona exulta em meio à matança da guerra.


Ademais, sempre muito habilidosa na caça e na guerra, Camila
R ÃO

morre por descuido após avistar e desejar as vestes e armas de


outro guerreiro.
VO RS

Referências
N

Fontes históricas
FA VE

DANTE. 2016. A Divina Comédia. Tradução de Italo Eugenio


Mauro. São Paulo: Editora 34.
VIRGÍLIO. 2016. Eneida. Tradução de Carlos Alberto Nunes.
São Paulo: Editora 34.

Obras de referência
GLARE, P. G. W. 1968. Oxford Latin Dictionary. London:
Oxford University Press/Clarendon Press.
911
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

KEITH, A. M. 2000. Engendering Rome: Women in Latin Epic.


New York: Cambridge University Press.
MOTA, T. E. A. 2020. O tema da infância heroica na Eneida
de Virgílio: os casos de Ascânio-Iulo e Camila, a rainha dos
volscos, Romanitas, n. 16, p. 121-141.
ROSENMEYER, T. G. 1960. Virgil and Heroism: “Aeneid”
XI, The Classical Journal, vol. 55, n. 4, p. 159-164.

TI O
AR
TORRÃO, J. M. N. 1993. Camila, a virgem guerreira, Hvma-

R ISÃ
nitas, vol. 45, p. 113-136.

LH
VASCONCELLOS, P. S. 2001. Efeitos Intertextuais na Eneida
de Virgílio. São Paulo: Humanitas/FAPESP.

PA V
M E
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C A R
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R ÃO
VO RS
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912
Lavínia
por Alexandre Agnolon

Lavínia (Lauinia) é uma personagem lendária relacionada aos


mitos fundadores da civilização romana. Segundo o conjunto

TI O
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das fontes antigas disponíveis, em linhas gerais, Lavínia é filha

R ISÃ
única do rei Latino, epônimo dos latinos, e de sua esposa,

LH
Amata; foi dada pelo pai em casamento a Eneias, com quem
teve posteriormente um filho, fato responsável para a conso-

PA V
lidação da aliança entre os troianos que, prófugos, desembar-
M E
caram na Itália e os povos aborígenes, habitantes do Lácio
O R
naquele tempo, época pouco posterior ao saque e destruição
de Troia e que precede, pois, em muitas gerações a fundação
C A

de Roma, em 753 aEC, conforme a datação convencional, por


R

Rômulo. Lavínia, por vezes, também é figurada como uma


ÃO PA

das filhas de Ânio, sacerdote de Apolo em Delos (cf. Aurélio


Vítor. Origem do povo romano, 9). Este mesmo Ânio também
é representado, nas fontes, simultaneamente como antístite do
R ÃO

deus e rei de Delos (cf. Ovídio. Metamorfoses, XIII. 632-3).


Diversos são os autores, gregos e romanos, que fazem
VO RS

referência à princesa latina, compreendendo um longo arco


N

temporal que vai desde o século III aEC até a época tardia
FA VE

do império do Ocidente, portanto o século IV da Era cristã.


Destaque-se, entre as fontes que de Lavínia tratam, a própria
Eneida de Virgílio (séc. I aEC), por certo a obra mais famosa
que lhe faz menção, bem como a História de Roma, de Tito
Lívio (séc. I aEC – I EC). Além disso, temos à disposição, ainda
que fragmentária, a obra Origens, de Catão, o velho (séc. III –
II aEC), referenciada amiúde por Sérvio Honorato (séc. IV EC),
gramático comentador de Virgílio; As Antiguidades Romanas,
de Dionísio de Halicarnasso (séc. I aEC), sobretudo o livro
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

primeiro que se debruça sobre os eventos e personagens


que antecedem à fundação da Urbe; o primeiro volume da
História Romana de Apiano (séc. II EC) dedicado à realeza e,
finalmente, as partes iniciais do opúsculo de Aurélio Vítor (séc.
IV EC) intitulado Origem do povo romano.
Lavínia é citada amiudadas vezes ao longo do canto VII da
Eneida. Virgílio inicia o canto pela invocação à Érato (Eneida,

TI O
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VII. 37), como se sabe, musa da poesia erótica. A passagem é

R ISÃ
tanto imitação de passo análogo das Argonáuticas de Apolônio

LH
de Rodes (Argonáuticas, III. 1-3), como, obliquamente, guarda

PA V
também similitude quanto à matéria, já que a temática amorosa

M E
assume papel importante, em ambas as epopeias, para o desen-
O R
volvimento da narrativa: em Apolônio, narra-se a paixão de
Medeia por Jasão, inspirada por Eros, a mando de Afrodite,
C A

fato de fundamental centralidade para o sucesso do herói


R

na conquista do velo de ouro; em Virgílio, os eventos que,


ÃO PA

prodigiosos, determinam o noivado de Eneias e Lavínia, causa


última da guerra entre troianos e rútulos narrada na segunda
R ÃO

metade da Eneida. Virgílio pede auxílio à deidade para expor


a situação em que se encontrava o Lácio no momento em
que Eneias e os troianos alcançaram finalmente, após tantos
VO RS

trabalhos, a foz do Tibre (Eneida, VII. 37-40).


N

Conta o poeta mantuano que os campos e as cidades do


FA VE

Lácio eram governados pelo velho rei Latino, descendente


de Saturno e filho de Fauno com a ninfa Marica – em outras
fontes, o rei é filho de Héracles (cf. Dionísio de Halicarnasso.
Antiguidades Romanas, I. 43). Em concórdia com os povos
vizinhos, vivia o rei em Laurento, a capital do reino, com
Amata, sua esposa (só mencionada nominalmente adiante no
v. 343 do canto), e sua filha, Lavínia, já nubente. A princesa
latina possuía muitos pretendentes provindos do Lácio e de
914
A presença das mulheres na Poesia e na História

toda a Ausônia, Amata, porém, fazia grande empenho para que


Lavínia desposasse Turno, grande guerreiro e rei dos rútulos,
povo também habitante das imediações.
No entanto, grandes prodígios serviram de óbice aos
desígnios da rainha. À época da chegada dos troianos, um
grande enxame de abelhas deteve-se, com suas patas enlaçadas
mutuamente, no cimo do grande loureiro que se encontrava no

TI O
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palácio e que fora, no tempo da fundação da cidade, dedicado

R ISÃ
outrora por Latino a Apolo – daí o nome Laurento, derivado

LH
de laurus, «loureiro» em latim. Um sacerdote, contemplando a
cena, declara de pronto tratar-se de um augúrio: chegaria em

PA V
pouco um estrangeiro, originário das mesmas terras daquelas
M E
abelhas, acompanhado de um grande exército e tornar-se-ia
O R
ele o senhor do alto da cidadela. Após isso, Lavínia junta-
mente com o pai queimava incensos nos altares no momento
C A

em que as chamas tomaram seus cabelos, consumindo-lhe os


R

adornos e o véu que portava, as chamas tomaram o palácio.


ÃO PA

O fogo apagou-se, a princesa restava incólume, donde


se interpretou que Lavínia teria enorme fama; o povo, no
entanto, sofreria com guerras e pesar. Assustado, Latino resolve
R ÃO

consultar seu pai, Fauno, que lhe revela o oráculo: Lavínia


casar-se-á com um estrangeiro que elevará o nome latino até
VO RS

os astros; seus filhos e netos, no devido tempo, submeterão os


N

povos do orbe sob seu império. (vv. 37-101).


FA VE

Em seguida, uma delegação troiana liderada por Ilioneu


parte para fazer uma visita ao rei Latino em nome de Eneias.
Os troianos são bem acolhidos pelo rei que, depois de receber
presentes e propostas de alianças por parte dos troianos, todas
aceitas, oferece Lavínia em casamento a Eneias, atento que
estava o rei dos prodígios que antes presenciara, percebendo
que o herói troiano era justamente o estrangeiro prometido
(vv. 107-285). Juno, ao notar o que se sucedia, recorre a uma
das fúrias, Alecto, para que esta, infundindo a discórdia entre
915
os povos latinos, provoque a guerra e protele os intentos
troianos. Para tanto, Alecto busca Amata, enfurecendo-a: a
rainha, primeiro, tenta dissuadir o marido do plano de casar
a filha com o forasteiro, fracassa (vv. 286-372); depois, em
furor, erra pelos bosques em companhia de outras matronas
enfurecidas (vv. 373-405). Alecto, por sua vez, transmutada na
velha Cálibe, visita Turno, destilando ódio e rancor, porque

TI O
AR
noivo preterido de Lavínia, recobra-lhe, pois, os brios, para

R ISÃ
que o rútulo pegue em armas contra os troianos. Logo em

LH
seguida, a divindade dirige-se às matas onde Ascânio caçava
e, desviando uma flecha disparada pelo jovem, atinge mortal-

PA V
mente um cervo querido de Sílvia, filha de Tirro, guarda do
M E
rebanho de Latino. A morte do animal, que falece aos pés de
O R
sua dona, provoca, assim, a fúria dos pastores que, instados por
Alecto, perseguem Ascânio, salvo por pouco pelos compa-
C A

nheiros durante o combate que se segue (vv. 406-515).


R

Turno, então, com o apoio da rainha Amata, passa a liderar


ÃO PA

os latinos à revelia do rei que, em sua impotência, se refugia


no palácio, após se recusar a abrir as portas do templo de Jano
– simbologia para a declaração de guerra –; todavia, são elas
R ÃO

escancaradas de uma só vez por Juno (vv. 620-622). A guerra se


alastra pelo Lácio, tendo como desfecho a vitória de Eneias, e a
VO RS

morte de Turno. Como havia revelado o oráculo, a fama ilustre


N

de Lavínia só seria alcançada à custa de grande mortandade.


FA VE

A narrativa de Virgílio que envolve Lavínia destoa


um pouco das fontes historiográficas supérstites. Ademais,
elas também tratam muita vez de maneira diversa a própria
guerra e as circunstâncias das bodas entre a princesa e Eneias.
Ora, Tito Lívio, por exemplo, conta que, quando desembar-
cara na Itália, Eneias, pressionado pela pobreza, já que nada
lhe restara a não ser as armas e as naus, dedicou-se à pilhagem,
de modo que o rei Latino recorreu às armas para expulsar os
invasores. O historiador oferece, então, duas versões para a
aliança entre troianos e latinos que culmina com o casamento
de Eneias e Lavínia: uma assegura que o rei Latino teria se
esforçado por fazer as pazes com o herói troiano porque se
vira subjugado pelas forças inimigas; a outra versão, mais afim
à virgiliana, revela que Latino, quando ambos os exércitos
já se postavam para a batalha, decide estabelecer conversa-
ções com o invasor inquirindo-lhe o nome e a origem.

TI O
AR
Ciente agora de que se tratavam dos troianos liderados por

R ISÃ
Eneias, filho de Anquises e Vênus, admirado por tamanha fama

LH
e nobreza, resolve aliar-se a eles e, como prova de amizade,
dá ao herói sua filha, Lavínia, em casamento. Diz ainda Tito

PA V
Lívio – e não só, mas também Apiano (História Romana, I.
M E
1) e Dionísio de Halicarnasso (Antiguidades Romanas, I. 59)
O R
– que, pouco depois, Eneias funda uma cidade a que chama
Lavínio em honra de sua jovem esposa (Tito Lívio. História
C A

de Roma, I. 1). A guerra contra os rútulos, comandados por


R

Turno, é posterior, portanto, ao casamento com Lavínia e à


ÃO PA

fundação de Lavínio, segundo o historiador, destoando, assim,


da versão da Eneida. A guerra, a propósito, fora motivada,
segundo Lívio, pelo ciúme de Turno que, antigo pretendente
R ÃO

de Lavínia, via-se incapaz de ser preterido por um estrangeiro


(cf. Tito Lívio. História de Roma, I. 2; Apiano, História Romana,
VO RS

I. 1). Os latinos – assim denominados por Eneias em honra


N

a seu sogro – vencem o conflito, o herói troiano, porém,


FA VE

perece em batalha, sendo sepultado às margens do rio Númico


(cf. Tito Lívio. História de Roma, I. 2). Em outra versão, Eneias
enfrenta as forças combinadas de Turno e Latino, este último
tombando em batalha (cf. Catão, o velho. Origens, fr. 6).
Pouco tempo depois da morte de Eneias, Lavínia dá à
luz um filho; porque infante ainda, ela assume a regência do
reino com pulso firme, preservando, em virtude da tamanha
índole de seu caráter, o Lácio dos inimigos e mantendo de
pé o reino até que o príncipe pudesse governar. Chegada
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

a maioridade, seu filho funda Alba Longa, sob os pés do


monte Albano, legando à mãe o governo de Lavínio, cidade
já bastante povoada e opulenta (cf. Tito Lívio. História de
Roma, I. 3). As fontes disponíveis divergem quanto à identi-
dade do filho de Lavínia: Tito Lívio chama-o Ascânio, mas
evita dizer se se trata do filho de Lavínia ou de Creúsa, aquele
que acompanhara ao pai na fuga de Troia, amiúde também

TI O
AR
chamado Iulo, donde a gens Iulia afirmava descender, apenas

R ISÃ
toma por certo que se tratava do filho de Eneias (cf. Tito

LH
Lívio, História de Roma, I. 3). Virgílio, por seu turno, deno-
mina-o Sílvio, seu nome, segundo o poeta, advém do fato

PA V
de ter sido educado nas matas (educet siluis regem regumque
M E
parentem – Eneida, VI. 765; grifo nosso). Há, porém, em Tito
O R
Lívio (História de Roma, I. 3), menção a um Sílvio, nascido nas
matas, mas este é filho e herdeiro de Ascânio. No comentário
C A

ao passo de Virgílio, Sérvio Honorato, aduzindo Catão, o


R

velho, informa que Sílvio é criado nas matas porque Lavínia,


ÃO PA

temendo Ascânio, foge grávida colocando-se sob a proteção


do pastor Tirro, intendente de seu pai (cf. Virgílio. Eneida,
VII. 485). Ascânio, morrendo sem filhos, deixa todo o reino
R ÃO

para Sílvio, filho de Lavínia e Eneias. Essa versão é contada


também por Dionísio de Halicarnasso (Antiguidades Romanas,
VO RS

I. 70), mas com variações: segundo o autor grego, o pastor que


N

acolhe Lavínia chama-se Tirreno e é este quem cria o menino


FA VE

e lhe dá o nome de Sílvio.


Lavínia é ainda citada por autores posteriores à Antigui-
dade. Dante, por exemplo, refere-a no verso 126 do canto IV
do Inferno, em sua Divina Comédia, ao lado de seu pai Latino,
arrolada entre personagens da história romana a habitar o
limbo, como César, Eneias e a guerreira Camila. Boccaccio,
por seu turno, dedica à Lavínia uma pequena biografia em
seu Sobre as mulheres famosas (1361-1362), retomando na
obra aspectos de sua representação, já canônicas na tradição
918
A presença das mulheres na Poesia e na História

lendária romana: Boccaccio, inclusive, narra o episódio da


fuga de Lavínia, presente em Dionísio de Halicarnasso e nos
comentários de Sérvio Honorato à Eneida. O autor do Deca-
merão faz referência ainda – dado curioso – a uma versão da
lenda que, após a morte de Eneias, teria Lavínia contraído
novas núpcias com um certo Melampo, homônimo do
adivinho mencionado por Apolodoro (Biblioteca, I. 9. 11) que,

TI O
AR
por salvar umas serpentes, recebera a dádiva de compreender

R ISÃ
a língua dos animais, enquanto lhe teria Apolo concedido o

LH
dom da profecia.

PA V
Referências
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N
FA VE

920
Reia Sílvia
por Caroline Morato Martins

Nas narrativas antigas que comunicaram as origens míticas


de Roma, Reia Sílvia (R[h]ea Silvia) foi apresentada como

TI O
AR
mãe dos gêmeos fundadores da cidade, Rômulo e Remo (Tito

R ISÃ
Lívio. I, 3, 10 ss.). A única variação sobrevivente registrada de

LH
seu nome é o de Ilia, mencionada por por Dionísio de Halicar-
nasso (Antiguidades Romanas. I, 76, 3), Dião Cássio (Fragmentos

PA V
do Livro I. 5, 1) e Plutarco (Vida de Rômulo. 3) (Radke 1979).
M E
As representações de Reia Sílvia centram-se em seu
O R
lugar como mulher que originou os primeiros líderes do que
viria a ser a cidade de Roma. Neste sentido, o episódio de
C A

onde oriunda a gravidez da personagem, violentada por uma


R

divindade romana, é mencionado em outras fontes antigas,


ÃO PA

como Virgílio (Eneida. VII, 659), e Ovídio (Fastos. IV, 201).


Este episódio, em especial, também foi representado na arte
romana e difundiu-se amplamente na tradição moderna
R ÃO

ocidental.
As menções a Reia Sílvia nas obras antigas concentra-
VO RS

ram-se especificamente no papel de progenitura dos gêmeos


N

prodigiosos do tempo de fundação de Roma. Como fonte


FA VE

de estudo da linhagem familiar da personagem e, portanto,


também de seus filhos, Lívio relata que, após várias gerações
de membros da família dos Sílvios, teria havido um homem
chamado Proca. Este teve um filho mais velho, Numitor, que
foi quem legou o antigo reino da dinastia dos Sílvios. Contudo,
Numitor teve seu trono usurpado por seu irmão, Amúlio.
Neste ponto da linhagem dinástica, a figura de Reia Sílvia
é mencionada, já definida como mãe dos gêmeos Rômulo
e Remo. Amúlio destronou o irmão e assassinou seus filhos
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

homens e, sob pretexto de honraria, escolheu a filha do irmão,


então sua sobrinha, Reia Sílvia, como vestal, impedindo-a de
ser mãe pelo voto de virgindade e, portanto, negando-a a
possibilidade de gerar sucessores legítimos, que representariam
ameaça a Amúlio.
De acordo com difundida vertente das narrativas sobre a
fundação e origens de Roma à época de Lívio e Virgílio, ou

TI O
AR
seja, o período de transição da República e estabelecimento

R ISÃ
do Principado, Réia Sílvia foi restrita pelo tio à condição de

LH
vestal, tendo sido vítima de violação. Segundo Lívio, para
enobrecer o evento do estupro, ela atribuiu ao deus Marte a

PA V
paternidade dos gêmeos. A partir deste evento foi relatado o
M E
que foi, provavelmente, o mais famoso e mais representado
O R
episódio da história das origens de Roma: o rei Amúlio, tio
C A
da vestal grávida, puniu a sacerdotisa com prisão e mandou
R

os filhos serem lançados no rio Tibre. Assim, nesta versão


lendária, a figueira ruminal abrigou a loba e os bebês. A loba os
ÃO PA

amamentou e cuidou deles até que o pastor Fáustulo os encon-


trou. Ele os levou para o estábulo para sua mulher, Larência,
R ÃO

criá-los. Em outra tradição, Larência teria sido uma prostituta


Fig. 1 - Tetradracma de Dido - SNG Lloyd, 1628.
«loba» (lupa), pois como transmitiu Lívio e é amplo consenso,
VO RS

há uma coincidência do uso deste termo em latim, sendo essa


N

a origem da lenda da loba. Assim, há duas tradições, uma que


associa o termo à mulher do pastor, vinculada a um compor-
FA VE

tamento moral negativo, e outra que associa ao animal, uma


loba, de forma que há ao menos dois autores antigos, Valério
Antias e Licinius Macer, que divergem narrativamente sobre
o passado romano escrito no tempo de Lívio, então fins do
século I aEC Catão teria sido o primeiro autor antigo a associar
as duas versões. A imagem da loba amamentando os gêmeos
é uma das mais conhecidas e difundidas representações no
mundo moderno associadas à história de Roma.
922
A presença das mulheres na Poesia e na História

A personagem de Reia Sílvia não foi desenvolvida


profundamente na obra dos autores antigos, pois seu papel
fundamental é ser progenitora dos gêmeos e, cumprida esta
contribuição primária, os autores não fornecem detalhes ou
ponderações sobre a figura. Pode-se inferir sobre Reia Sílvia
que ela foi representada como uma mãe comum sem exercer de
fato alguma postura destacada neste lugar. A personagem não

TI O
AR
exibiu nenhuma atuação proeminente em função dos filhos

R ISÃ
que, por exemplo, garantiria o exercício de poder dos gêmeos.

LH
Neste sentido, a representação de Reia Sílvia como mãe destas

PA V
figuras masculinas tão importantes da história de fundação de

M E
Roma contrasta com a representação de outras mães repre-
O R
sentadas nas narrativas sobre as origens de Roma, como é o
caso de Lavínia, que teria sido liderança política, assegurando
C A

por trinta anos o poder, até que seu filho pudesse assumi-lo.
R

Apesar da brevidade e carência de detalhes sobre Reia


ÃO PA

Sílvia, é notável na narrativa a preocupação do rei, tio da


personagem, com a perspectiva de geração de filhos legítimos
R ÃO

ao trono. Isto indica informações relevantes para o contexto


histórico em que a personagem se insere. As ações de Amúlio
contra Reia Sílvia e seus filhos esclarecerem o lugar da proge-
VO RS

nitura e da maternidade, especialmente neste espaço histórico


N

e geográfico do período chamado inicial da história de Roma,


FA VE

assim como o aspecto da legitimidade de poder envolver


descendência sanguínea. Portanto, o vínculo sanguíneo seria
elemento importante da disputa política na narrativa contada
sobre todo o período monárquico romano. Por esta razão, o
rei assassinou os sobrinhos homens, irmãos de Reia Sílvia, e
realizou medida preventiva contra a única mulher descendente,
sua sobrinha, intervindo e exercendo controle na disputa
dentro da linha de sucessão.
923
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

O item da preocupação e tentativa de controle masculino


sobre a geração de filhos por parte de mulheres que compõem
dinastias não funciona de forma drasticamente diferente nos
períodos posteriores à monarquia. É importante notar que as
narrativas sobre o período da Roma inicial, que contaram as
origens lendárias da cidade, foram majoritariamente escritas
durante o período de transição da República para o Principado

TI O
AR
romano. Assim, torna-se relevante que no período de princí-

R ISÃ
pios do império romano, a possibilidade de uma mulher da casa

LH
governante gerar descendentes seguirá sendo algo relevante.

PA V
Por outro lado, houve fatores que causaram alterações consi-

M E
deráveis, como a perda da centralidade de laços de sangue por
O R
meio da possibilidade de adoções (Saller 1984), e por novas
dinâmicas implicadas nos casamentos e divórcios.
C A R

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925
FA VE
VO RS
R ÃO
N
ÃO PA
C A R
O R
M E
PA V
R ISÃ
TI O
LH
AR
Aca Larência
por Sérgio Murilo de Andrade Barbosa

Aca Larência (Acca Larentia, no latim), para os romanos,


denotava duas figuras diferentes que acabaram se confundindo

TI O
AR
ao longo da história: a mãe adotiva dos gêmeos Rômulo e

R ISÃ
Remo (também associada à loba que os amamentou) e a pros-

LH
tituta que legou aos romanos suas riquezas. As fontes fornecem
poucos detalhes sobre sua vida, não encontramos a descrição

PA V
de sua aparência, origem, infância etc. Sua aparição se dá já
M E
adulta como ama de Rômulo e Remo, e esposa de Fáustulo,
O R
ou como a meretriz que doou sua herança aos romanos.
Aca é mencionada por autores de um longo período,
C A

desde o século III aEC até por volta do século V EC. As obras
R

produzidas durante esse extenso recorte temporal tratam de


ÃO PA

filosofia, política, oratória, história, poesia etc. Em meio às


transformações e instabilidades que marcaram a República
e o Império Romano, muitos autores retornaram às origens
R ÃO

do povo, buscando afirmar a superioridade, a identidade,


os direitos e as posses de Roma. Aca Larência está entre os
VO RS

elementos que constituem as produções a respeito dos primór-


N

dios de Roma.
FA VE

Aca Larência apresenta duas versões principais. Para


compreender a primeira, é necessário analisar uma parte do
mito de Rômulo e Remo. Filhos de Marte e Rhea Silva, foram
jogados ainda bebês nas águas do Tibre a mando de seu tio, o
rei Amulius. Uma loba, que tinha acabado de parir, os encon-
trou e os alimentou com seu próprio leite. Um pastor, Fáus-
tulo, se deparou com eles e os levou para casa a fim de que
sua esposa, Aca Larência, os criasse (Daly 2009, 128). Segundo
Masúrio Sabino (15 aEC – ?), jurista romano, afirmava-se que
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Aca era a criadora de Rômulo, a qual teve doze filhos e perdeu


um para a morte (Sabino. Memorias apud Gélio. Noites Áticas,
VII. 7). Sabino e Plínio, o Velho (23 – 79), dizem que Rômulo
tomou o lugar do falecido filho e chamou a si mesmo e aos seus
irmãos de Irmãos Arvais (em latim: Fratres Arvales, «irmãos dos
campos») (Sabino. Memorias apud Gélio. Noites Áticas, VII. 7;
Plínio. História Natural, XVIII. 2).

TI O
AR
De acordo com a segunda versão, no reinado de Anco

R ISÃ
Márcio (ou Rômulo), o guardião do Templo de Hércules,

LH
em Roma, convidou Hércules para participar de um jogo de
dados. Se vencesse, receberia um presente valioso do deus, se

PA V
perdesse, serviria um banquete e ofereceria uma prostituta a
M E
ele. Hércules venceu e o guardião lhe serviu um banquete e
O R
lhe garantiu os favores da mais bela moça que então se falava
em Roma: Aca Larência. Hércules a aconselha a se colocar
C A

a serviço do primeiro homem que conheceu. Esse foi um


R

etrusco, o rico Tarúcio. Eles se casam, mas ele morre e deixa


ÃO PA

sua fortuna (vastas propriedades nos arredores de Roma)


para Aca. Já velha, Aca desapareceu sem deixar vestígios no
Velabro, mesmo local de sepultamento de Larência, esposa
R ÃO

de Fáustulo. Ao morrer, ela legou sua herança aos romanos


(versão, provavelmente, utilizada para conferir títulos legais à
VO RS

posse de territórios reivindicados por Roma) (Grimal 2005, 2).


N

Catão, o Velho (234 aEC – 149 aEC), político de Roma,


FA VE

e Aulo Gélio (125 – 165), jurista e gramático latino, atribuem


a riqueza de Larência à prostituição. Ela teria deixado suas
posses para os romanos (ou Rômulo), por isso recebia home-
nagens e sacrifícios públicos. Catão especifica que as proprie-
dades eram os campos de Túrax, Semurio, Lintirio e Solinio
(Catão. Origens apud Macrobio. Saturnais, I, 10. 16; Gélio.
Noites Áticas, VII. 7). Gayo Licinio Macro, político e analista
romano, afirma que Aca era a esposa de Fáustulo, e Larência
era a ama de Rômulo e Remo, a qual se casou com Tarúcio,
928
A presença das mulheres na Poesia e na História

recebeu sua herança e, ao morrer, deixou para Rômulo, pois


ela o criou, e ele instituiu um sacrifício sagrado e um dia de
festa a ela (Macro. Anales apud Macrobio. Saturnais, I, 10. 17).
Pela semelhança em alguns aspectos, as duas Acas foram
confundidas com o tempo. As fontes não são unânimes ao
afirmar que a Larentália, culto funerário celebrado em 23 de
dezembro, era dedicada à primeira ou à segunda das Acas,

TI O
AR
e muitas deixam em aberto (Hraste; Vukovic 2015, 14).

R ISÃ
No poema Fastos, do poeta romano Públio Ovídio Naso

LH
(43 aEC – 17 EC), Larência foi a esposa de Fáustulo, ama do
povo romano e é associada à Larentália (Ovídio. Fastos, III.

PA V
52-58). A respeito do local dos sacrifícios a Larência, Marco
M E
Túlio Cícero (106 aEC – 43 aEC) afirma que ocorriam num
O R
altar localizado no Velabro (Cícero. Cartas a Bruto, XXIV. 8).
Mas é Marco Terêncio Varrão (116 aEC – 27 aEC), um filó-
C A

sofo e antiquário romano, que nos fornece informações mais


R

precisas (Mayorgas 2018, 26). Varrão afirma que a Larentália


ÃO PA

ocorria no sexto dia após a Saturnália e os sacrifícios ocorriam


no Velabro, onde terminava na Via Nova, no túmulo de Aca
(Varrão. Sobre a Língua Latina, VI. 23-24). Todavia, na obra
R ÃO

de Ambrósio Teodósio Macróbio (370 – 430), filósofo e filó-


logo romano, a Larentália ocorria no décimo dia antes das
VO RS

Calendas, ou seja, 21 de dezembro (no calendário de Numa),


N

para Aca, a prostituta que se casou com Tarúcio, por conselho


FA VE

de Hércules, e foi enterrada no Velabro após doar aos romanos


sua herança (Macróbio. Saturnais, I, 10. 11-15).
Lúcio Méstrio Plutarco (46 – 120), historiador, biógrafo e
filósofo grego, separou as duas figuras. Aca recebia honras em
abril e foi mãe adotiva de Rômulo. Enquanto isso, a prostituta
de Hércules, Larência, cujo sobrenome era Fábula, se tornou
conhecida pela já citada história do guardião do templo de
Hércules e o casamento com Tarúcio, que lhe doou a herança
que depois foi deixada para os romanos (Plutarco. Questões
929
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Romanas, 35). Prestava-se, também, homenagem a ela, que


desapareceu no mesmo local onde a Larência antiga havia sido
enterrada: no Velabro (Plutarco. Rômulo, V. 1-5).
Plutarco registra uma outra ambiguidade sobre Aca:
a confusão causada pelo nome lupa (loba). Plutarco explica que
os latinos chamavam de lobas as mulheres de «caráter frouxo»,
tal como era a esposa de Fáustulo, de lupae (lobas), ou seja, o

TI O
AR
nome fez com que a história fosse para o reino do fabuloso

R ISÃ
(Plutarco. Rômulo, IV. 3). Dionísio de Halicarnasso (53 aEC

LH
– ?), historiador e crítico literário grego, e Tito Lívio (59 aEC
– 17 EC), historiador romano, corroboram essa ideia. Além

PA V
disso, para Dionísio, dizia-se que os bebês foram entregues a
M E
Fáustulo, que os levou para sua esposa Larência, chamada de
O R
lupa por já ter se prostituído (Dionísio de Halicarnasso. Anti-
C A
guidades Romanas, I, 84. 1-4). Isso teria dado origem à história
R

maravilhosa da suposta loba (Tito Lívio. História de Roma, I,


IV. 6-9).
ÃO PA

Aca foi recebida por autores cristãos que basicamente


não oferecem novas informações e utilizam a prostituição
R ÃO

para atacar a religião pagã (Mayorgas 2018, 25). Lucio Célio


Firmiano Lactâncio (250 – 325), um dos primeiros autores cris-
VO RS

tãos, retoma as informações já conhecidas: a Larentália ocorria


N

em homenagem à ama de Rômulo e Remo, esposa de Fáustulo,


chamada de «lupa» e representada como fera por ter sido uma
FA VE

prostituta. Em Lactâncio, a meretriz amante de Hércules é


Faula, enquanto Flora é a meretriz que adquiriu grande fortuna
e deixou para o povo (homenageada na Florália) (Lactâncio.
Instituições Divinas, 20). Aca Larência aparece ao lado de Flora
na obra de Marco Minúcio Félix (? – 250), um apologista latino
do cristianismo, como meretriz vergonhosa que deveria ser
contada entre as doenças e as divindades dos romanos (Félix.
Otávio, 25. 6-7).
930
A presença das mulheres na Poesia e na História

Para Tertuliano (155 – 220), autor romano das fases


iniciais do cristianismo, Larentia era uma prostituta, seja como
ama de Rômulo (chamada de loba, por ser prostituta), seja
como amante deificada de Hércules. Ela se enriqueceu após
casar-se com um homem rico, por conselho de Hércules,
e legou aos romanos suas propriedades (Tertuliano. Para as
Nações, II, 10). Tertuliano descreve Larência como uma pros-

TI O
AR
tituta pública (Tertuliano. Apologia, XIII. 9), para a qual, ao

R ISÃ
lado de Stercolo (divindade agrícola) e Mutuno (divindade de

LH
fertilização), os romanos deveriam atribuir suas vitórias, pois
eram deuses originários de Roma (ele pontua ironicamente)

PA V
(Tertuliano. Apologia, XXV. 3). Tertuliano afirma que os
M E
romanos nunca prestaram tanta homenagem a outros deuses
O R
quanto à prostituta Larência (Tertuliano. Apologia, XXV. 9).
Agostinho de Hipona (354 – 430), teólogo e filósofo
C A

dos primeiros séculos do cristianismo, ao falar sobre a loba e


R

Rômulo, menciona a discussão sobre ela ter sido um animal


ÃO PA

e ou uma meretriz (Agostinho. A Cidade de Deus, XXII, VI).


Larência seria a meretriz oferecida a Hércules após sua disputa
com o guardião de seu templo. Após se casar com Tarúcio por
R ÃO

conselho de Hércules, ela deixa o povo romano como herdeiro


universal da fortuna herdada de Tarúcio, para ser grata ao favor
VO RS

divino (Agostinho. A Cidade de Deus, VI, VII). Agostinho


N

menciona a dualidade do nome lupae e afirma haver aqueles


FA VE

que diziam que os bebês foram recolhidos por uma meretriz,


a qual foi a primeira a amamentá-los Depois eles foram pegos
por Fáustulo e foram alimentados por Aca, sua mulher (Agos-
tinho. A Cidade de Deus, XVIII. XXI).
Portanto, a partir das passagens analisadas, pode-se
deduzir que a história de Aca Larência apresenta algumas
versões, porém alguns elementos são recorrentes, por exemplo,
a prostituição, o envolvimento com Hércules, a doação dos
bens aos romanos (diretamente ao Estado ou por meio de
931
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Rômulo). De modo geral, Aca Larência não era tratada como


uma deusa, pelo contrário, era seu caráter humano, como mãe,
esposa e prostituta, que era ressaltado. Desse modo, na Laren-
tália ocorriam os cultos a uma mulher que foi importante na
história romana, seja por ter feito um ato de benfeitoria ao
povo doando sua herança, seja por ter cuidado de Rômulo,
personagem fundamental na origem mítica de Roma. As fontes

TI O
AR
demonstram que Larência se complexificou e se ramificou,

R ISÃ
mostrando-se presente na memória dos romanos através da

LH
topografia, rituais e produções textuais diversas.

PA V
Referências
M E
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A presença das mulheres na Poesia e na História

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933
FA VE
VO RS
R ÃO
N
ÃO PA
C A R
O R
M E
PA V
R ISÃ
TI O
LH
AR
Sabinas
por Alexandre Agnolon

As sabinas são fundamentalmente conhecidas, na história


lendária romana, pelo episódio do «rapto das sabinas», ocor-

TI O
AR
rido nos primeiros tempos de Roma (753 aEC) – Dionísio de

R ISÃ
Halicarnasso (Antiguidades Romanas, II. 31. 1) considera que

LH
o fato ocorrera no quarto ano depois da fundação da Urbe,
ao passo que Plutarco (Vida de Rômulo, 20), único a fazê-

PA V
lo, situa-o no quarto mês logo após sua fundação. Segundo
M E
o conjunto das fontes, elas foram raptadas pelos romanos a
O R
mando de Rômulo, durante o festival por este promovido em
honra de Netuno equestre, sob o pretexto de prover esposas
C A

para os cidadãos, visando a continuidade da raça e a perpe-


R

tuação, pois, da própria Cidade. Uma vez que o rapto confi-


ÃO PA

gurara clara violação dos direitos de hospitalidade, seguiram-se


ao episódio conflitos sangrentos, principalmente contra os
sabinos – povo antigo coabitante do Lácio – que se viram
R ÃO

destituídos de suas donzelas. A guerra só chegou ao fim com a


intervenção direta das raptadas: agora na condição de esposas
VO RS

e mães, adentraram o campo de batalha, apelando aos maridos


N

e pais que combatiam entre si. A atitude extremada alcançou


FA VE

o resultado desejado, já que, comovidos pela iniciativa das


mulheres, genros e sogros reconciliaram-se. A paz promovida
por elas foi responsável pela união entre os povos romano e
sabino.
Variadas são as fontes antigas, inclusive materiais, latinas
e gregas, que fazem referência ao episódio. Distinguem-se a
História de Roma de Tito Lívio, a Vida de Rômulo de Plutarco,
o Sobre a República de Cícero, Os Fastos e a Arte de Amar de
Ovídio, as Antiguidades Romanas de Dionísio de Halicarnasso,
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

bem como a História Romana de Apiano; sem falar nas reite-


radas alusões ao «rapto das sabinas» na tradição literária romana,
como ocorrem na Eneida de Virgílio e nas Sátiras de Juvenal,
por exemplo. Elas são inclusive representadas em moedas do
tempo da República, particularmente as emitidas à época da
Guerra Social (91 – 88 aEC). Ênio, ademais, teria escrito uma
praetexta – tragédia de assunto romano – chamada Sabinae, o

TI O
AR
episódio também é aludido pelo vate nos Anais (fr. 47-50 e

R ISÃ
possivelmente também o fr. 274; ver Natividade 2009, 8).

LH
A Roma dos primeiros tempos, conta-se, cresceu muito
rapidamente, fazendo frente desde cedo a outras cidades mais

PA V
ou menos próximas. Com o intento de aumentar sua popu-
M E
lação, Rômulo cercou-se de pessoas numerosas de obscura
O R
origem, provenientes de vários lugares, formando «toda uma
turba indiscriminada de homens livres e escravos» (Tito Lívio.
C A

História de Roma, I. 8; cf. também Plutarco. Vida de Rômulo,


R

20). Grimal (2018, 19) justamente observa que, a fim de


ÃO PA

povoá-la, Rômulo «atraiu para a Cidade os jovens pastores


da vizinhança e, mais tarde, todos os vagabundos, todos os
proscritos, todos os sem-pátria do Lácio». Mathisen (2019, 60)
R ÃO

vai mais longe incorporando ao contingente dos primeiros


romanos não somente populações itálicas variadas e de baixa
VO RS

extração, mas também bandoleiros de toda espécie. Ora, essa


N

origem obscura, como já se disse aqui, e pouco heroica não


FA VE

se coaduna por óbvio com o caráter aristocrático e austero


com que a tradição textual romana pintara seus representantes
célebres; isso não significa, todavia, que não fossem os romanos
amiúde conscientes dessa origem, por assim dizer, espúria e
com frequência ironizassem isso (ver Cícero. Cartas a Ático,
II. 1; Juvenal. Sátira, 8).
Justamente em razão da constituição heteróclita da popu-
lação de Roma nos primeiros tempos de sua história – popu-
lação essa, aliás, carente de mulheres, o que comprometia a
936
A presença das mulheres na Poesia e na História

perpetuação da própria Cidade – , os povos vizinhos recu-


savam, de maneira peremptória, a possibilidade de casamentos
e alianças com o povo romano, que era tratado com inimizade
(Dionísio de Halicarnasso. Antiguidades Romanas, II. 30. 2) e
grande desprezo (Plutarco. Vida de Rômulo, 20). Acresce ainda
o medo que nutriam, haja vista que Roma muito rapidamente
crescia e se elevava já ao estatuto de um poder não desprezível

TI O
AR
na região (Tito Lívio. História de Roma, I. 9). Não impor-

R ISÃ
tava quantas embaixadas o rei romano enviasse ou benesses

LH
oferecesse às cidades das cercanias, não havia boa acolhida,
chegando ao ponto de amiúde questionarem de modo zombe-

PA V
teiro os legados romanos, perguntando-lhes, já que Roma
M E
acolhia gente de toda sorte, se por acaso não se poderia fazer
O R
o mesmo com as mulheres (Tito Lívio. História de Roma, I. 9).
Ato contínuo, Rômulo, ressentido diante de tal afronta,
C A

arquiteta um plano: organiza jogos em honra de Netuno


R

equestre durante as Consualia, festival dedicado a Conso, divin-


ÃO PA

dade agrária, também ligada à morte, cujas festividades ocor-


riam após o plantio e, depois, na colheita; seu altar mantinha-se
ao longo do ano coberto de terra e só era desenterrado por
R ÃO

ocasião dos festejos. A respeito do altar subterrâneo, Dionísio


de Halicarnasso (Antiguidades Romanas, II. 31. 3) refere outra
VO RS

tradição: a de que fora construído posteriormente e era na


N

verdade dedicado a uma deidade, inominável, sentinela dos


FA VE

desígnios ocultos, o que, numa visão prospectiva, pode remeter


aos feitos dolosos liderados por Rômulo. Para esse espetáculo,
acorreram a Roma massa enorme de pessoas provenientes das
cidades vizinhas, como ceninenses, crustuminos e antenates,
mas sobretudo os sabinos, em companhia de muitas donzelas.
Em meio aos jogos e festividades, segundo Tito Lívio (História
de Roma, I. 9; cf. também Dionísio de Halicarnasso. Antigui-
dades Romanas, II. 30. 5), as virgens sabinas são, ao primeiro
sinal de Rômulo, tomadas à força pelos romanos – em Plutarco
937
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

(Vida de Rômulo, 20), o primeiro rei romano, de pé, teria


lhes sinalizado dobrando e desdobrando a aba da túnica que
portava. Segue-se um grande alvoroço, quando os pais das
sabinas raptadas correm em desespero a acusar os romanos de
violar os direitos de hospitalidade. Porque narrativa etiológica
do próprio casamento romano, diz-se ainda que, durante o
rapto, uma das sabinas, a mais bela aliás, é levada para um

TI O
AR
certo Talássio: uma vez que perguntassem, com o fim de evitar

R ISÃ
qualquer violência contra a jovem, a quem seria ela entregue,

LH
diziam aos clamores «a Talássio», o que dá origem ao grito que
se costumava entoar nos casamentos romanos (cf. Tito Lívio.

PA V
História de Roma, I. 9; Plutarco. Vida de Rômulo, 21).
M E
Após o pandemônio provocado pelo rapto, Rômulo em
O R
pessoa dirigiu-se a cada uma das sabinas com o intento de
lhes acalmar os ânimos, atribuindo a causa de tudo ao ultraje
C A

e à obstinação dos pais das donzelas; dizendo ainda que não


R

haveria opróbrio algum, já que se casariam com os romanos,


ÃO PA

com quem teriam filhos legítimos. O número de mulheres


raptadas varia bastante: Plutarco (Vida de Rômulo, 20) infor-
ma-nos números muito diversos, mas não endossa nenhum
R ÃO

deles com segurança. Menciona que alguns diziam ser trinta


as mulheres raptadas – essa quantidade advém do fato de que
VO RS

seus nomes foram dados às trinta linhagens do povo romano – ;


N

outros ainda, como Valério Âncio, escreve o biógrafo grego,


FA VE

diziam ser 527; ao passo que Juba, 683, número este que coin-
cide com o de Dionísio de Halicarnasso (Antiguidades Romanas,
II. 30. 6). As fontes antigas, em linhas gerais, atribuem o rapto
não somente a uma forma de vingança de Rômulo às recusas
reiteradas dos povos vizinhos, mas sobretudo à necessidade
premente de constituir alianças e perpetuar a raça romana –
não à toa, Ovídio, por exemplo, n’Os Fastos (II. 431), alude às
sabinas nas partes dedicadas à Lupercalia, festividade de caráter
agrário e propiciatório. A ideia, pois, de que a necessidade
938
A presença das mulheres na Poesia e na História

motivara as ações do primeiro rei romano parece ser prepon-


derante na maioria das fontes. Assim é em Tito Lívio (História
de Roma, I. 9), em Dionísio de Halicarnasso (Antiguidades
Romanas, II. 30. 2), bem como em Cícero (Sobre a República,
17. 8) e Apiano (História Romana, I. 5). Por outro lado, o
mesmo Ovídio (Arte de Amar, I. 101-134) atribui o rapto das
sabinas ao desejo e à libidinagem de Rômulo e de seus homens

TI O
AR
solitários: fundamental notar que, neste caso, as causas do rapto

R ISÃ
põem-se em harmonia – causa do decoro portanto – com o

LH
ambiente licencioso da própria elegia erótica, mais ainda em

PA V
sua possibilidade erotodidática.

M E
O rapto das sabinas gerou efeito imediato: diversas
O R
cidades vizinhas entraram em guerra contra Roma. Os ceni-
nenses, primeiro, atacaram os territórios romanos; Rômulo,
C A

como resposta, atacou-os e, ao matar rei ceninense, Ácron,


R

segundo Plutarco (Vida de Rômulo, 24), põe em deban-


ÃO PA

dada o exército, tomando-lhes em seguida a própria cidade.


No local onde seria erguido o templo de Júpiter Ferétrio –
R ÃO

«aquele que leva os despojos» – Rômulo depositou as armas


do rei vencido (Tito Lívio. História de Roma, I. 10), seria
esse, por iniciativa de Rômulo, o primeiro triunfo instituído
VO RS

(Dionísio de Halicarnasso. Antiguidades Romanas, 2. 34. 3).


N

Destino semelhante tiveram os antenates e crustuminos, pois


FA VE

que, derrotados, tiveram suas respectivas cidades ocupadas


pelos romanos vencedores. Os sabinos, por seu turno, liderados
por Tito Tácio, astutos que eram e desejosos de vingança,
tomaram de assalto a cidadela do monte Capitolino com o
auxílio da vestal Tarpeia que facilitara a entrada dos inimigos
por causa da promessa de ouro. No entanto, logo após, ela
foi morta sob o peso das armas dos sabinos – por esse motivo,
por muito tempo se chamou o Capitolino de monte Tarpeio,
939
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

e seus penedos, de onde eram lançados depois os malfeitores,


de «Pedra Tarpeia» (Varrão. Sobre a Língua Latina, 5. 41-43;
Plutarco. Vida de Rômulo, 26).
A luta entre romanos e sabinos foi tenaz, sobretudo
porque os últimos ocupavam posição estratégica em relação
ao inimigo, em baluarte acima da planície entre o Palatino e
o Capitolino. Por causa disso, os romanos foram desbaratados,

TI O
AR
mas temporariamente, já que Rômulo, após dirigir preces a

R ISÃ
Júpiter e prometer-lhe um templo – a Júpiter «Stator», ou seja:

LH
«que faz parar» – , reúne os mais fortes romanos que passam
agora, sob o comando de seu rei, a perseguir o inimigo, que

PA V
foge. No meio da peleja, porém, percebendo a gravidade da
M E
situação, as sabinas intervêm, suplicando aos maridos e aos
O R
pais que cessassem o conflito. Segundo Dionísio de Halicar-
nasso (Antiguidades Romanas, II. 45. 6), fora Hersília, a líder
C A

das sabinas, a responsável pelos rogos; seu papel, pois, é impor-


R

tante, muito embora, nas fontes, ocupe posições diversas: ora


ÃO PA

é ela, por sua linhagem, a sabina que, após o rapto, Rômulo


toma como esposa, ora fora ela a esposa de Hostílio (Plutarco.
Vida de Rômulo, 20). Fato é que, após os apelos das sabinas,
R ÃO

os homens, comovidos, renunciam à luta e fazem as pazes.


Rômulo e Tito Tácio passam a reinar juntos, transferindo para
VO RS

Roma a sede da realeza e unindo, assim, os dois povos.


N

O rapto das sabinas é muitíssimo importante para se


FA VE

compreender a própria forma mentis romana, justamente


porque o episódio funda, nas relações matrimoniais muita
vez pautadas na violência e na submissão, a própria domus
romana, célula mater do Estado. Não é, portanto, coinci-
dência que a história do rapto das sabinas seja, por exemplo,
aludida, tão simbolicamente por Virgílio, na écfrase do escudo
de Eneias (Eneida, VIII. 635-41) que condensa nas armas do
herói troiano os eventos vindouros dos triunfos romanos:
nesse sentido, a violência é fato inexorável e constitutivo da
940
A presença das mulheres na Poesia e na História

formação de Roma. Com efeito, o rapto é indicativo não só do


papel reservado às mulheres na sociedade romana que, muito
embora juridicamente inferior, «não deixa de ser depositária
e garante do contrato em que assenta a cidade» (Grimal 2018,
18); outrossim, convertido em topos, o rapto (ou melhor: o
estupro), como etapa que antecede à união propriamente dita,
recebe tratamento cômico em Plauto e Terêncio. Como o

TI O
AR
lugar-comum é figurável, é amiúde representado pelas artes,

R ISÃ
de Giambologna a Picasso. Na mentalidade, por assim dizer,

LH
mítico-histórica romana, enfim, a violência contra mulheres
se é indicativa de misoginia não deixa de marcar também,

PA V
como observa Mary Beard (2017, 119), «simbolicamente o
M E
início e o fim do período dos reis» – ora, mister recordá-lo:
O R
o rapto das sabinas inaugura o efetivo início da monarquia com
Rômulo, e a queda da realeza tem como estopim justamente
C A

o estupro de Lucrécia.
R
ÃO PA

Referências
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São Paulo: Editora 34.

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R ÃO

tradução e notas. Dissertação de Mestrado em Letras defendida


na Universidade de São Paulo – USP.
VO RS
N
FA VE

942
Tanaquil
por Caroline Morato Martins

Nas narrativas antigas que transmitiram as origens mitológicas


de Roma, Tanaquil foi a primeira personagem definida como

TI O
AR
rainha e a penúltima a ocupar este lugar em Roma (Tito Lívio.

R ISÃ
I, 34). Ela foi apresentada como esposa de Lucumã, que teria

LH
mudado seu nome para Lúcio Tarquínio Prisco quando o casal
emigrou da cidade de Tarquínia para Roma (Tito Lívio. I, 34-35).

PA V
Na cidade, seu marido se tornou o quinto e primeiro rei etrusco
M E
de Roma. Os autores Tito Lívio e Dionísio de Halicarnasso (Anti-
O R
guidades Romanas. III, 47, 4; IV, 2, 2; 10, 6) designam a perso-
nagem como apenas Tanaquil (em grego, Θanaχvil, Τανακυ[λ]
C A

λίς; em etrusco, Thanchvil, Thanchufil, Thanchfil), enquanto outro


R

autor, Rufo Festo ou Sexto, historiador romano cuja obra sobre-


ÃO PA

viveu através de um epítome, indicou ter a rainha alterado seu


nome, resultando na variação Gaia Cecília (Gaia Caecilia) (cf.
também Plínio, o Velho. História Natural, VIII, 194).
R ÃO

Há menções a figuras femininas do período monárquico


romano em diferentes narrativas antigas, mas aquela composta
VO RS

por Lívio apresenta as mais consistentes representações.


N

Nesta fonte, Tanaquil, conjuntamente a Túlia, que foi sua neta


FA VE

e última rainha de Roma, foi representada como a mais proemi-


nente mulher na transição da Monarquia para a República.
Em Lívio, Tanaquil foi precedida e próxima, em seus traços
morais e pelos temas que guiaram os episódios de que faz parte,
de outras figuras femininas, como Hersília, Tarpéia e Horácia.
Estas são personagens do mesmo tempo histórico e geográfico
de Tanaquil. Se notada a posição de Tanaquil dentro de um
coletivo de personagens femininas do tempo da Roma inicial,
entende-se que sua representação integrou narrativas romanas em
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

que se observa a construção de exemplos morais. Neste sentido,


o exemplum de Tanaquil compôs o repertório ético-moral criado
por Lívio, que versava mais sobre a regulação do comportamento
feminino como debatida à época do historiador latino, ou seja,
ao tempo da República tardia e início do Principado Romano,
do que propriamente ao passado de fundação da cidade.
A intervenção de Tanaquil em questões públicas cruciais

TI O
AR
aparece na narrativa como uma reminiscência do comporta-

R ISÃ
mento de Hersília e Tarpéia, personagens antecessoras no relato,
devido ao tema da lealdade ter sido central nos episódios de todas

LH
essas figuras. Além dessas, a mulher que imediatamente ante-

PA V
cede Tanaquil em Lívio, Horácia, se vincula à ela mostrando a

M E
conexão entre todas estas personagens pelo tema da deslealdade
O R
familiar e a Roma. Tanaquil, portanto, se conecta como sucessora
destas mulheres anteriores na narrativa, sendo não só semelhante
C A

a Tarpéia e Hersília, mas estabelecendo contraste com as mulheres


R

sabinas e Clélia. O tema da lealdade ou intervenção, positiva ou


ÃO PA

negativa, foi central nos episódios de todas essas personagens.


O item do não pertencimento a Roma foi outro elemento
importante presente no exemplum de Tanaquil, assim como no
R ÃO

seguinte, de Túlia, uma vez que elas integram uma linhagem


dinástica de reis não romanos. A introdução de Tanaquil
VO RS

ocorreu com a figura de Lucumã (Lucumo), homem rico


N

que não poderia ter cargo político em Tarquínia, na Etrúria,


por ser estrangeiro. Com o casamento com Tanaquil, a
FA VE

ambição do homem teria sido intensificada (Tito Lívio. I, 34).


Ela foi descrita com origem nobre e como quem não tolerava a
humilhação que o marido representava por ser desprezado como
estrangeiro em Tarquínia (Tito Lívio. I, 34).
O traço moral primário de Tanaquil está na sua ambição
vista em seu desejo de migrar para Roma. Ela conseguiu, desta-
ca-se que facilmente, convencer seu marido a abandonar a pátria
onde viviam (Tito Lívio. I, 34). Esta descrição específica sobre

944
A presença das mulheres na Poesia e na História

a maneira com que ela persuadiu o marido faz evocar a atitude


de influência de personagem anterior da história de fundação,
Hersília, que havia influenciado Rômulo, que igualmente acatara
facilmente um conselho da recém esposa sobre o conflito entre
sabinos e romanos. Hersília, assim como Tanaquil, era uma esposa
estrangeira (Tito Lívio. I, 11).
Como esposa que estimulou a ambição do marido, Tana-

TI O
AR
quil foi representada como agente da ascensão de seu marido

R ISÃ
como rei. Contudo, a interferência principal dela se mostra

LH
a partir da morte do rei. Lívio relata que, por volta do trigé-
simo ano de reinado de Tarquínio, já havia enorme preferência

PA V
por um sucessor chamado Sérvio Túlio (Tito Lívio. I, 39-41)
M E
(Dião Cássio, Fragmentos do Livro IX). Após Tarquínio ser
O R
morto pelos inimigos descendentes do antigo trono, Tana-
quil atuou de forma fundamental para a ascensão deste
C A

sucessor escolhido, também como genro (Tito Lívio. I, 41).


R

Neste sentido, Tanaquil representou o ápice desse tipo de


ÃO PA

intervenção, essencialmente política, que exibiram mulheres


na narrativa sobre a Roma inicial. Ela é diretamente respon-
sável pela ascensão de dois reis estrangeiros em Roma:
R ÃO

seu marido e genro. O patrocínio, ou patronagem, que essa


mulher concede a eles, causou atrito com outros pretendentes
VO RS

ao trono e ocasionou a morte de ambos. No caso do marido, o


N

papel da mulher se deu já no princípio, escolhendo Roma como


FA VE

lugar para sua ambição e, no caso de Sérvio Túlio, seu desem-


penho se mostrou também prematuramente na vida desse rei
(Tito Lívio. I, 39).
Sérvio Túlio crescera no palácio, por isso, a atuação de Tana-
quil parece ter sido fundamental em sua criação como futuro rei,
atuando na preparação e aceitação do poder desta figura. Lívio
atribuiu fala relevante à ela sobre Sérvio Túlio (Tito Lívio. I, 39).
Nenhuma outra personagem antes ganhou voz nesta narrativa.
Na situação, em que Sérvio Túlio é salvo de um incêndio quando
945
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

criança, ela anunciou o presságio sobre o destino grandioso dele,


assim como havia recebido o presságio primeiramente sobre o
sucesso do marido em Roma.
A postura de Tanaquil na morte de Tarquínio Prisco
e o aconselhamento do sucessor, seu genro Sérvio Túlio, é a
mais substancial descrição e atuação vinculada a uma perso-

TI O
nagem feminina em relatos da Roma inicial. Assim, Tana-

AR
quil se mostra, após inúmeras outras personagens, a mais bem

R ISÃ
desenvolvida figura feminina. Como rainha que se tornava

LH
viúva, ela controlou a situação de assassinato promovido pelos

PA V
filhos de Anco, que reivindicaram o poder, então tentando
M E
salvar o marido, incitando justiça pelo crime, legitimando
O R
o poder de Sérvio Túlio, controlando o palácio e omitindo
C A
a morte do rei enquanto o sucessor se estabelecia no poder.
R

Em uma segunda fala atribuída à personagem, direcionada a


ÃO PA

Sérvio Túlio, ela incute-lhe coragem para que assuma o trono,


em semelhança ao que fez antes com o marido (Tito Lívio. I, 41).
A performance de Tanaquil possui grande proximidade com
R ÃO

aquela de figuras posteriores ao tempo histórico dela, especifi-


camente o período em que viveu Tito Lívio. Lívia Drusila, a
VO RS

primeira imperatriz romana, por exemplo, foi descrita como a


N

madrasta cruel que assassinou os concorrentes de seu filho Tibério.


FA VE

Para lhe garantir o poder, como sugerido nos relatos posteriores


a Lívio, Tácito (Anais. I, 5-6) e Suetônio (Tibério. III, 22), ela
poderia ter ajudado o sucessor com a morte do marido Augusto,
fechando o palácio, controlando as notícias da morte do impe-
rador e ainda, teria assassinado Agripa Póstumo a fim de gerir
a sucessão do poder imperial. Contudo, no caso de Tanaquil, já
que sua filha foi uma mulher de nome desconhecido, favoreceu
o genro na sucessão monárquica.
946
A presença das mulheres na Poesia e na História

Tanaquil, considerando suas antecessoras femininas, conso-


lidou uma percepção romana de que as mulheres foram perce-
bidas como ameaça ao exibirem agência, uma vez que se mostram
como importantes agentes de ligações e mudanças políticas. Essa
é uma conclusão inegável pela análise do relato sobre Tanaquil.
Outro fator relevante se vincula à monarquia etrusca,

TI O
uma vez que esta coincide com uma mudança significativa na

AR
representação que fez Lívio sobre os exempla femininos. A nova

R ISÃ
atenção na narrativa dedicada a personagens femininas, então

LH
com a relevância dada à Tanaquil e suas sucessoras, sobretudo,

PA V
Túlia, é uma forma de preparar os leitores para a maior mudança
M E
política da primeira parte da obra: da Monarquia à República. Tal
O R
mudança foi concluída no relato do episódio de Lucrécia, usada
C A
como motivação inicial para queda da Monarquia e instauração da
R

República (Tito Lívio. I, 57-60). Entretanto, há ainda uma espe-


ÃO PA

cificidade que conecta a virada que Tanaquil inaugura na repre-


sentação feminina na visão da sociedade, fortemente patriarcal,
da Roma augustana do tempo de Lívio: essa sociedade não apro-
R ÃO

vava o envolvimento de mulheres proeminentes na política. Tal


crítica, em Lívio, foi arrematada com Tanaquil e reforçada através
VO RS

de Túlia. No relato, paulatinamente essas mulheres represen-


N

tadas ganharam poder de agência política e pública, havendo


FA VE

uma progressão no fim da Monarquia, representada primeira-


mente por Tanaquil, e que se intensificou na República, culmi-
nando nas mulheres imperiais, igualmente associadas ao tema
da corrupção e decadência morais. A despeito dessa tradição em
grande parte negativa acerca de Tanaquil, note-se, por fim, que
Plutarco (Moralia. 243D) não deixa de mencionar a inteligência
dessa mulher, indicando certa ambivalência na valoração feminina
pelos autores que escreveram sob o Império Romano.
947
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Referências
Fontes históricas
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Earnest Cary with Herbert B. Foster. Massachusetts: Harvard
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ÃO PA
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VO RS
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FA VE

949
FA VE
VO RS
R ÃO
N
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M E
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R ISÃ
TI O
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AR
Lucrécia
por Renata Cerqueira Barbosa

Lucrécia (Lucretia), filha de Espúrio Lucrécio Tricipitino


(provavelmente cônsul substituto em 509 aEC) e esposa de

TI O
AR
Lúcio Tarquínio Colatino (Cônsul em 509 aEC) foi utilizada

R ISÃ
como exempla de pudicitia para as matronas romanas, e seu

LH
estupro por Sexto Tarquínio, filho do Rei de Roma, foi consi-
derado um evento de caráter fundador na história da cidade,

PA V
que acarreta a expulsão dos reis e a instauração da República.
M E
Conforme nos conta Tito Lívio (Ab urbe condita libri, I. 57-60)
O R
o rei de Roma, Tarquínio Soberbo, tentou tomar Ardéia,
nação dos Rútulos que se destacava por sua riqueza. Durante
C A

a campanha, os jovens príncipes se reuniam em banquetes e


R

festas e em um desses encontros na casa de Sexto Tarquínio,


ÃO PA

filho do Rei, o assunto recaiu sobre suas esposas e seus dotes.


A discussão, regada a vinho, tornou-se acalorada, quando
Tarquínio Colatino sugeriu que todos fossem pessoalmente
R ÃO

observar o comportamento das esposas. Enquanto as noras do


Rei participavam de um suntuoso banquete com as amigas
VO RS

em Roma, em Colacia, Lucrécia encontrava-se fiando a lã,


N

juntamente com suas servas. Lucrécia gentilmente recebeu


FA VE

seu marido e os Tarquínios em sua casa. Foi então que Sexto


Tarquínio teve o desejo de possuir Lucrécia. Conforme Tito
Lívio, «a beleza aliada à virtude, o seduziram» (Tito Lívio. Ab
urbe condita libri, I. 57).
Alguns dias depois, Sexto Tarquínio voltou a Colacia e
foi muito bem recebido por Lucrécia, que o convidou a jantar
e a se hospedar em sua casa. Quando todos foram dormir,
Sexto Tarquínio subiu as escadas e se aproximou de Lucrécia
já adormecida em seu leito, dizendo: «— Silêncio Lucrécia.
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Eu sou Sexto Tarquínio e tenho a espada na mão. Se disseres


uma palavra, morrerás» (Tito Lívio. Ab urbe condita libri, I. 58).
Tarquínio declarou seu amor à Lucrécia, mas diante de sua
firmeza que não cedia nem pelo temor da morte, Tarquínio
acrescentou ao medo a ameaça de desonra. Ao lado de seu
cadáver colocaria o de um escravo estrangulado e nu, para
que se dissesse que ela fora assassinada num adultério ignóbil.

TI O
AR
Sob essa ameaça, Lucrécia cedeu aos desejos de Tarquínio, o

R ISÃ
qual partiu contente por ter desonrado uma mulher. Abatida

LH
por tal acontecimento, Lucrécia enviou um mensageiro a
Roma e a Ardéia para pedir ao pai e ao marido que viessem

PA V
imediatamente acompanhados de um amigo fiel. Espúrio
M E
Lucrécio veio com o filho de Públio Valério Volésio e Cola-
O R
tino com Lúcio Júnio Bruto, que havia encontrado a caminho
de Roma quando atendia ao chamado da esposa.
C A

À chegada do pai e do marido, Lucrécia desfez-se em


R

lágrimas. Quando o marido lhe perguntou «— como vais?»,


ÃO PA

ela respondeu: «— Mal. Como pode ir bem uma mulher


que perdeu a honra? Vestígios de outro homem, Colatino,
acham-se em teu leito. Aliás só meu corpo foi violado, minha
R ÃO

alma permaneceu pura. Minha morte servirá de testemunha.


Mas dai-me vossas mãos como garantia de que não deixareis
VO RS

impune o culpado. Foi Sexto Tarquínio quem, sendo nosso


N

hóspede, agiu como inimigo e veio esta noite de espada desem-


FA VE

bainhada contra mim para conseguir um prazer criminoso»


(Tito Lívio. Ab urbe condita libri, I. 58).
Todos deram suas palavras, um após outro. Lucrécia então
disse: «Vós cobrareis o que aquele homem deve. Mesmo isenta
de culpa, não me sinto livre do castigo. Nenhuma mulher há
de censurar Lucrécia por ter sobrevivido a sua desonra» (Tito
Lívio. Ab urbe condita libri, I. 59). Ao pronunciar essas palavras,
cravou no peito o punhal que havia escondido em suas vestes
e tombou agonizante em meio aos gritos do marido e do pai.
952
A presença das mulheres na Poesia e na História

Deixando-os entregues a sua dor, Bruto extraiu da ferida


o punhal ensanguentado e jurou expulsar Lúcio Tarquínio
Soberbo e sua família de Roma. Entregou o punhal a Cola-
tino, depois a Lucrécio e a Valério, que se mostravam atônitos
diante do acontecimento inesperado e da lucidez de espírito
de Bruto. Como lhes foi ordenado, repetiram o juramento.
A dor se transformou em cólera, e quando Bruto os convidou

TI O
AR
a partir imediatamente para combater a realeza, eles o seguiram

R ISÃ
como a um chefe. O corpo de Lucrécia foi transportado à

LH
Roma e depositado no Fórum, onde a população se comoveu
com o acontecido, incriminando a violência do príncipe.

PA V
Diz a tradição, que após esses acontecimentos, os Tarquí-
M E
nios foram expulsos de Roma e teve início a República.
O R
O conto de Lucrécia finaliza o livro I de Tito Lívio. Segundo
C A
Ogilvie (1965, 218-219), considera-se uma tradição tão bem
R

estabelecida que dificilmente se poderá duvidar do seu suporte


histórico.
ÃO PA

No que diz respeito ao autor, pairam dúvidas sobre a data


de nascimento de Titus Livius, cujo cognomen é desconhe-
R ÃO

cido. Com base na crônica de São Jerônimo, ele nasceu em


Pádua (Patavium), por volta de 59 aEC. e faleceu na mesma
VO RS

cidade em 17 EC Outra possibilidade proposta por historia-


N

dores modernos, seria o ano de 64 aEC, o mesmo ano de


nascimento de Valério Messala Corvino. Conforme Vitorino
FA VE

(2012, 69), a datação tradicional adviria de um erro causado


por uma confusão entre os nomes dos cônsules do ano 64,
César e Fígulo, e os de 59, César e Bíbulo.
Pádua, uma das mais antigas cidades do território Italiano,
pertencia à Gália Cisalpina, hoje localizada na região de
Vêneto. Em 49 aEC Júlio César a conquista e ao anexá-la
à Roma, concedeu cidadania à população. A aristocracia da
cidade era considerada muito presa às tradições republicanas,
953
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

pois após o assassinato de César tomara partido pelos optimates.


Provavelmente, este contexto influenciou a ideologia conser-
vadora e moralizante do historiador (VITORINO 2012, 69).
Ronald Mellor (1999) destaca que o teor da obra nos
leva a crer que Tito Lívio dominava a escrita, a retórica e a
História de Roma, tendo em vista que sua obra é conside-
rada a maior que chegou até nós da Antiguidade. Em seu

TI O
AR
prefácio, Tito Lívio apresenta o tema a ser tratado, a estrutura

R ISÃ
da obra e explicita o objetivo central, que apresenta uma série

LH
de exempla aos cidadãos romanos. Nesse sentido, os histo-
riadores modernos o criticaram por ser impreciso nas narra-

PA V
tivas dos fatos. No entanto, hoje, seu estilo é entendido como
M E
simbólico no processo de construção da identidade romana.
O R
Nessa perspectiva, o prefácio já indicaria aos leitores que o
trabalho é uma espécie de conjunto de ações individuais dos
C A

personagens, modeladas por Lívio para indicar as realizações


R

coletivas dos Romanos. Defensor das prerrogativas republi-


ÃO PA

canas, mas com viés moralista, Tito Lívio exaltava a liberdade


e defendia o mos maiorum. Nesse sentido, o conto de Lucrécia
ressalta e estabelece a pudicitia como valor primordial do caráter
R ÃO

feminino romano (Marques 2007, 109).


Nesse contexto de restauração cultural e política de
VO RS

Augusto, poemas como Fastos de Ovídio e Eneida de Virgílio


N

também relatam o conto de Lucrécia, entre outros autores


FA VE

antigos. A história é convencionalmente reconhecida como


política nas versões de Tito Lívio e Dionísio de Halicarnasso e
como sentimental na versão de Ovídio. Os críticos raramente
notam o contexto político em Ovídio, embora este contexto,
transmitido na descrição das origens da festa do Regifugium,
seja central no poema (Newman 1994, 304).
Dentre as produções que mais se destacaram posterior-
mente, a obra de Shakespeare, The Rape of Lucrece, ganha
evidência. Na análise de Jane Newman, o progresso da narrativa
954
A presença das mulheres na Poesia e na História

é frequentemente interrompido por monólogos interiores e


peças retóricas que dilatam a história essencialmente política
de Lívio e Ovídio sobre o estupro e suicídio de Lucrécia, em
uma longa e quase psicológica investigação da motivação e
das implicações das ações de Lucrécia e Tarquínio (Newman
1994, 304). Já em meados do século XX, surgem outras obras
que tratam da temática, dentre elas está a de Melissa Matthes

TI O
AR
(1965) que analisa como os teóricos republicanos de diferentes

R ISÃ
momentos históricos, como Tito Lívio, Maquiavel e Rousseau,

LH
recontam a história do estupro de Lucrécia para apoiar suas
próprias concepções de republicanismo.

PA V
Muitos autores, da Antiguidade aos dias atuais, revi-
M E
sitam e reanalisam o conto de Lucrécia, partindo de várias
O R
possibilidades. Pierre Grimal (1991, 35-36) interpreta que a
C A
paixão é destruidora da ordem, pois teve consequências polí-
R

ticas. Lucrécia não poderia admitir que a carne sem a adesão da


alma não comprometesse um ser; o que estava em jogo era o
ÃO PA

platonismo amoroso que se desenvolveu mais tarde em Roma


e, ali como em outros lugares, subordinando o corpo à alma,
R ÃO

autorizou todos os sofismas e todos os comprometimentos.


Análises comparativas entre personagens literários
VO RS

diversos têm trazido outras possibilidades de estudo, como


N

o caso de Philip Hardie, que ao investigar as ligações entre a


versão virgiliana de Dido e Lucrécia, sustenta que, na socie-
FA VE

dade patriarcal romana, resguardar o pudor e a fama femi-


ninos é essencial para a estabilidade da ordem familiar e social.
A agressão pessoal cometida pelo filho do tirano contra o corpo
e a reputação de Lucrécia é uma metonímia para a agressão do
tirano contra as estruturas políticas e morais da cidade como
um todo – a confusão do público e do privado é uma carac-
terística definidora da imagem de um tirano na Antiguidade
(Hardie 2010, 96).
955
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Para além das possibilidades de interpretação do conto


narrado por Tito Lívio, tanto no que se refere à questão
política, quanto à questão cultural ou literária, este, reflete
a intenção moralizante do autor ao colocar Lucrécia como
exempla de pudicitia: «Depois de mim, nenhuma mulher poderá
faltar ao pudor, apoiando-se no exemplo de Lucrécia».

TI O
AR
Referências

R ISÃ
Fontes históricas

LH
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Tradução de Paulo Matos Peixoto. São Paulo: Paumapé.

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NEWMAN, J. O. 1994. “And Let Mild Women to Him Lose
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VITORINO, J. C. 2012. Tito Lívio. In: PARADA, M. Os
Historiadores Clássicos da História: de Heródoto a Humboldt. Rio
de Janeiro: Editora Vozes, p. 68-87.
956
Lenas
por Beatriz Rezende Lara Pinton

O termo latino lena deriva do verbo leno – inculcar, alco-


vitar, prostituir –, que por sua vez está associado a lenio –

TI O
AR
abrandar, acariciar, afagar, tornar favorável. As lenas eram

R ISÃ
mulheres que se dedicavam ao ofício de alcoviteiras, mediando

LH
as relações profissionais das meretrizes sob seus cuidados e
estabelecendo as regras a serem seguidas pelos amantes.

PA V
A contraparte masculina, o leno, exerce o mesmo ofício,
M E
mas há particularidades relativas apenas ao gênero feminino:
O R
em geral são descritas pelos autores romanos como mulheres
que já foram também prostitutas na juventude, e que entregam
C A

as próprias filhas para o meretrício. Embora o ofício fosse


R

reconhecido em Roma, meretrizes e lenas são juridicamente


ÃO PA

consideradas infames, status que gera restrições, como a impos-


sibilidade de pleitear perante um tribunal ou casar-se com
homens livres, além do estigma social da desonra e da má fama
R ÃO

(para a infâmia atribuída às meretrizes, ver Edwards 1997).


Na poesia amorosa latina, o estereótipo da lena é associado à
VO RS

mulher idosa, execrável e gananciosa, que antagoniza com o


N

jovem amante, já que sua influência sobre a puella entra em


FA VE

conflito com os interesses da persona poética, especialmente


no que diz respeito à remuneração (para uma análise mais
aprofundada da condição social da lena e sua representação
na poesia elegíaca latina, ver Myers 1996).
A lena aparece como uma personagem-tipo tanto na
elegia como na comédia latina, comparecendo na obra de
Tibulo (I. 5) como figura literária familiar (inclusive já sob a
perspectiva pejorativa, sendo referenciada como a sua ruína,
exitium meum, I. 5. 47-8). A alcoviteira Frina, citada em outra
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

elegia (II. 6. 45), é motivo de frustração para o poeta, porque


o impede diretamente de ter contato com a amada: manda-o
embora, nega que a moça esteja em casa, alega que ela está
doente ou recebendo outros clientes (v. 47-52). O tópos da
maldição à lena é frequente na elegia e na comédia, gêneros
em que o jovem apaixonado externa desgosto pelas atitudes
das cafetinas, dirigindo-lhes imprecações (Tibulo, II. 6. 53-54;

TI O
AR
Ovídio, Amores I. 8. 113-14; Plauto, Asinaria 129-135; Plauto,

R ISÃ
Mostellaria 191-193, 203, 206-207, 212-213).

LH
Em Propércio (IV. 5), temos um poema elegíaco dedicado
inteiramente à lena Acândite, cujo nome provém de acanthus,

PA V
em referência a espinhos. O poeta expressa descontentamento
M E
com a intervenção da mulher nas suas investidas amorosas,
O R
além de frisar as habilidades mágicas da lena, que a aproximam
C A
ainda mais do estereótipo da feiticeira (v. 13-14). Propércio
R

ressalta a capacidade da alcoviteira em ser persuasiva, conven-


cendo a puella a prestar mais atenção ao ouro do que à mão que
ÃO PA

o traz (v. 53). Também é perceptível o aspecto erótico-didático


do discurso da lena, sugerindo estratégias de conquista para
R ÃO

a jovem meretriz, de modo a manter o amado interessado e


generoso, a qual deve se adaptar às vontades de cada um dos
VO RS

homens, desde que eles ofertem presentes e possuam riquezas


N

(v. 29-52). Ovídio, nos Amores (I. 8), narra a conversa entre
a sua amada e a lena Dipsas, ouvida em segredo pelo poeta.
FA VE

O tom se assemelha bastante ao da elegia de Propércio, na qual


a alcoviteira aconselha a jovem a respeito de como atrair vários
pretendentes e manter o interesse dos amantes ricos, recebendo
presentes constantemente, sem se apaixonar por nenhum deles.
O nome dipsas, atribuído também a uma pequena serpente,
estaria vinculado à sede que sua picada supostamente infligia
às vítimas, sugerindo também o alcoolismo e a natureza nociva
da cafetina (Amores, I. 8. 3-4).
958
A presença das mulheres na Poesia e na História

Os conflitos frequentes entre o poeta e a lena surgem


devido à posição de magister/magistra amoris que ambos
ocupam, cada um sendo o veiculador de uma lição diferente.
O poeta se concentra nos ensinamentos ao adulescens, equipa-
rando amor e guerra (militia amoris) ao lecionar estratégias para
conquistar os favores da puella e enganar os inimigos, identifi-
cados como os pretendentes rivais e as lenas. A lena direciona

TI O
AR
os seus conselhos para as jovens meretrizes e, muitas vezes assu-

R ISÃ
mindo a responsabilidade de provedora da família, preocupa-se

LH
com a segurança financeira dela mesma e das filhas, garantida
pela conquista dos divites amatores. Suas atitudes rígidas se justi-

PA V
ficam por encarar o meretrício como ofício e sustento, no qual
M E
há pouco ou nenhum espaço para a imprudência do amor nos
O R
moldes que os poetas propõem.
C A
Na comédia latina, as lenas aparecem nas peças de
R

Plauto: Cleareta (Asinaria), Syra e Melaenis (Cistellaria), todas


ocupando também o papel de mães de meretrizes. Scapha
ÃO PA

(Mostellaria) não possui tal vínculo com a recém-liberta mere-


triz Philematium, mas também age como conselheira e prote-
R ÃO

tora. Em segundo plano, os enredos das três obras plautinas


abordam a dinâmica da relação entre as prostitutas e as lenas,
VO RS

explorando o tópos das meretrizes apaixonadas e a repreensão


N

das cafetinas, por vezes suas mães.


Em Asinaria, a proibição de Cleareta de que a filha, Phile-
FA VE

nium, volte a se encontrar com o amado (v. 504-44), por mais


dura que possa parecer, assegura a sobrevivência de ambas.
A prostituição de Philenium é, ao seu próprio modo, um ato
de pietas e decorum, através do qual demonstra sua devoção
filial ao colocar as necessidades da família como prioridade.
Cleareta, em seus confrontos com Argyrippus, lembra-o de
que o pagamento é destinado às compras, essencialmente pão
e vinho (As. 200).
959
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Na Cistellaria, o tema predominante é o da relação de


amizade entre um grupo de meretrizes: Gymnasium e Sile-
nium, duas jovens cortesãs, e as suas mães, Syra e Melaenis, que
após a vida de meretrício, tornaram-se também lenae respon-
sáveis pela sobrevivência de suas famílias. Faz-se referência
a uma ordo meretricius, ou seja, um coletivo profissional de
meretrizes, que ao invés de competirem entre si, estão dispostas

TI O
AR
a se ajudarem mutuamente. Em Cistellaria, 23, por exemplo,

R ISÃ
a lena menciona hunc ordinem para se referir ao grupo das

LH
meretrizes que deveriam ser benevolentes entre si e, no verso
33, a referência se repete, nostro ordini, também na fala da lena,

PA V
incluindo a si mesma, a filha e as amigas no mesmo coletivo;
M E
para comparação entre meretrizes e matronas (Fantham 2011;
O R
Dutsch 2019). Até mesmo a rivalidade citada entre as cortesãs e
C A
as matronas é interpretada por elas como injusta, uma vez que
R

as prostitutas não escolheriam o seu ofício, mas seriam levadas


a isso pela necessidade. A lena aponta que não foi a vaidade
ÃO PA

(superbia) que fez com que ela escolhesse o meretrício, mas a


fome (ut ne esurirem, Cist. 38-41). Ao final da peça, é esclarecida
R ÃO

a origem de Silenium, que era filha do mercador Demipho –


reviravolta que lhe permite casar-se com o amado, o jovem
VO RS

Alcesimarchus. Antes disso, porém, Melaenis a aconselha sobre


N

as armadilhas do amor para uma prostituta.


Em Mostellaria, embora não tenham um vínculo fami-
FA VE

liar, Scapha alerta Philematium sobre como ela poderia usar


a beleza para atrair os pretendentes e sobre como não deveria
restringir-se ao relacionamento apenas com um homem,
porque esse seria o dever de uma matrona, não de uma mere-
triz (v. 189-90). Philolaches, o jovem apaixonado que as escuta
escondido, lança maldições à lena, porque ela ensina à amada
as estratégias para conquistar o amor, bem como a riqueza
do adulescens e dos rivais (v. 212-13). Apesar de o jovem ter
960
A presença das mulheres na Poesia e na História

comprado a liberdade da meretriz, Scapha recomenda que ela


não considere esse gesto como suficiente, demandando sempre
mais presentes enquanto ainda for nova e atraente (v. 216-17).
Se, no seio familiar do adulescens, os assuntos financeiros
são comumente discutidos com pais que se negam a emprestar
dinheiro para que o filho o desperdice com os caprichos da

TI O
juventude, a lena assume o papel feminino equivalente ao

AR
do pater familias, controlando as finanças e sendo responsável

R ISÃ
pela segurança e bem-estar de seu núcleo familiar. Plauto usa

LH
o conceito de decorum (As. 514) para se referir ao sentimento

PA V
da filha em relação à mãe, criando um efeito cômico a partir
M E
da realidade invertida proposta pela comparação entre a auto-
O R
ridade de uma cafetina sobre a sua filha e a de um cidadão
C A
sobre sua família.
R
ÃO PA

Referências
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R ÃO

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R

Universidade de São Paulo – USP, 1990.


ÃO PA
R ÃO
VO RS
N
FA VE

962
Meretrizes
por Charlene Martins Miotti
& Beatriz Rezende Lara Pinton

Em latim, há mais de cinquenta termos para designar “pros-

TI O
AR
tituta”, sendo os mais comuns scortum e meretrix. Enquanto

R ISÃ
scortum originalmente significava “pele” ou “couro” (referin-

LH
do-se à vagina, tomada então metonimicamente), a palavra
meretrix, composta pelo radical do verbo mereo – receber

PA V
recompensa, fazer-se pagar, merecer – seguido por sufixo de
M E
substantivo feminino -trix, indica, etimologicamente, a mulher
O R
que prestava serviços pelos quais era paga (para uma discussão
mais detalhada sobre nomes latinos usados para o mesmo
C A

propósito, sugerimos ver Adams 1983). Na Roma antiga,


R

embora a prostituição fosse reconhecida como ofício devida-


ÃO PA

mente cadastrado e gerando coleta de impostos, as mulheres


que a exerciam, majoritariamente escravas ou libertas, eram
privadas de direitos civis, como o de se casar legitimamente,
R ÃO

legar testamento ou herdar bens (para um breve resumo sobre


o estatuto social da meretriz na antiguidade, sugerimos a leitura
VO RS

de Silva 2012).
N

No mundo helenizado (Egito incluído), as ἑταίραι


FA VE

(hetairai) eram, geralmente, mulheres refinadas, que ofereciam


a seus clientes companhia e estímulo intelectual em troca de
presentes e participavam de esferas da sociedade normalmente
vedadas ao restante das mulheres (tal é o caso de Teodota, cuja
conversação com Sócrates é descrita por Xenofonte em Memo-
ráveis, III. 11), como os simpósios – vale lembrar que o termo
ἑταίρος (hetairos), no masculino, raramente era empregado
com conotação sexual, designando simplesmente um homem
bem-educado. As πόρναι (pórnai, provavelmente do verbo
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

πέρνημι, pérnemi, significava exportar ou vender, dado que as


prostitutas gregas eram, em sua maioria, comercializadas), por
sua vez, trabalhavam nas ruas ou em bordéis, mais expostas a
insalubridades.
Luciano de Samósata, nos Diálogos das cortesãs, dá voz a
elas em cenas dramáticas e preciosas para a análise social do
meretrício na sociedade ateniense do século II de nossa era.

TI O
AR
Ateneu de Náucratis, no início do século III, conta que muitos

R ISÃ
outros autores (entre os quais Sosícrates de Panagoreia, Nice-

LH
neto de Samos ou Abdera, Apolodoro, Calístrato e Górgias)
escreveram catálogos de mulheres ou tratados sobre meretrizes

PA V
(Banquete dos Eruditos, XIII). Ele mesmo faz um longo relato
M E
sobre as mais célebres de que se tem notícia: Taís, a ateniense
O R
(amante de Alexandre, o Grande, e Ptolomeu, primeiro rei
do Egito; é um personagem de Luciano e também dá nome a
C A

uma das peças mais famosas de Menandro), Gnatena (amante


R

de Dífilo, o comediógrafo), Laís de Corinto (também mencio-


ÃO PA

nada por Ovídio em Amores I. 5. 12; filha de Damasandra,


amante de Alcibíades), Friné de Téspias (amante de Praxíteles,
a qual, famosa por sua beleza e riqueza, teria se oferecido para
R ÃO

financiar a reconstrução das muralhas de Tebas destruídas por


Alexandre; também nome de uma alcoviteira em Tibulo II. 6.
VO RS

45), Herpílis (amante de Aristóteles), Arqueanassa de Cólofon


N

(amante de Platão), Aspásia de Mileto (amante de Péricles e de


FA VE

Sócrates), Tígris de Leucádia (amante de Pirro, rei do Épiro),


Olímpia (a Lacedemônia, mãe de Bíon de Borístenes, o filó-
sofo), Téoris (amante de Sófocles, poeta trágico), Arquipe
(curiosamente, herdeira de todas as propriedades do amante
Hegesandro), Metaneira (amante de Isócrates e Lísias), Lágis
(amante de Lísias, para a qual Céfalo, o orador, teria escrito
um panegírico), Naís (a quem Alcídamas, pupilo de Górgias,
também teria composto um panegírico), Lagisca (outra amante
de Isócrates, com quem ele teria tido uma filha), Mirrina (a
964
A presença das mulheres na Poesia e na História

Sâmia, amante do rei Demétrio, último dos sucessores de


Alexandre), Eirene (amante de Ptolomeu, filho do Filadelfo),
Dânae (amante de Sófron, governante de Éfeso, e filha de
Leontion, a Epicurista, também ela meretriz), Mista (amante
do rei Seleuco), Lampito (amante de Demétrio de Faleros),
Nicarete (amante de Estéfano, o orador), Plangon de Mileto
(de alcunha “Pasífila”, “por todos amada”), Báquide de Samos

TI O
AR
(figura que Menandro e Plauto exploram, respectivamente,

R ISÃ
em Dìs Exapaton e Bacchides), Glícera (amante de Menandro,

LH
personagem da comédia Perikeiroméne e do Diálogo das cortesãs;
nome também mencionado por Horácio em Odes I. 33. 2),

PA V
Dórica (a quem Heródoto chama Ródope, ignorando, segundo
M E
Ateneu, que fossem duas pessoas diferentes; teria sido amante
O R
de Cáraxo, irmão de Safo, a poeta), Arquedice de Náucratis
(segundo Heródoto, origem de belas meretrizes, II. 135. 5),
C A

Safo de Éreso, Nicarete de Mégara (nascida de pais livres e


R

pupila do filósofo Estilpão), Bilístique (a Argiva, cuja ascen-


ÃO PA

dência remontaria aos Atridas), Lide da Lídia (amante de Antí-


maco), Nano (amante de Minermno), entre outras.
Em Roma, foram muitos os autores que pintaram
R ÃO

imagens (explícitas ou apenas sugeridas) de prostituição em


suas obras. No contexto da poesia amorosa latina, a dualidade
VO RS

amante/meretriz, marcada frequentemente pelo emprego de


N

pseudônimos que remetem a hetairas gregas, reflete – para


FA VE

além do tópos foedus et fides, convencional do gênero elegíaco,


em que o jovem apaixonado demanda fidelidade de sua amada,
mesmo que entre eles não haja laço oficial – conflitos morais
típicos de uma sociedade patriarcal. É o caso de Licóris em
Cornélio Galo; das Lésbias em Catulo (2, 3, 5, 7, 8, 11, 13, 38,
43, 51, 58, 60, 68b, 70, 72, 75, 76, 79, 83, 85, 86, 87, 92, 104,
107, 109) e Marcial (Epigramas I. 34; II. 50; V. 68; VI. 23, 34;
VII. 14; VIII. 73; X. 39; XI. 62, 99; XII. 44, 59; XIV. 77); de
Cíntia em Propércio (I.1, 3, 4, 5, 6, 8a, 8b, 10, 11, 12, 15, 17,
965
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

18, 19; II. 5, 6, 7, 13, 13b, 14, 19, 24a, 29b, 30b, 32, 33a, 34b;
III. 21, 24, 25; IV. 7, 8); de Délia e Nêmesis em Tibulo (I. 1,
2, 3, 5, 6; II. 3, 4, 5, 6); de Corina (Amores I. 5, 10, 11, 12, 14;
II. 6, 13; III.12; personagem também do Diálogo das cortesãs
de Luciano) e Cipásside (II. 7 e 8) em Ovídio; Lídia (Odes I.
8, 13, 25; III. 9), Glícera e Mírtale (Odes I. 33) em Horácio.
Paralelamente, encontramos mulheres nobres figurando como

TI O
AR
meretrizes, por exemplo, em Propércio (III. 11. 39-42), que

R ISÃ
representará Cleópatra como meretrix regina, rainha prosti-

LH
tuta, e em Juvenal, que, na famosa sátira contra as mulheres
(Sátiras, VI. 115-135), descreve Messalina, esposa do imperador

PA V
Cláudio, como meretrix Augusta, atuando num bordel sob o
M E
pseudônimo Lícisca. Ainda no gênero satírico, são de interesse
O R
a descrição de meretrizes (como Origo, que teria atuado em
farsas populares chamadas mimos) na sátira horaciana I. 2.
C A

47-134, e as cenas entre os capítulos XVI e XXVI do Satyricon


R

de Petrônio, com o trio Quartila, Psiquê e Paniques (de apenas


ÃO PA

7 anos de idade).
Na comédia latina, a figura da meretrix contrasta com as
da matrona e a da uirgo. Tradicionalmente, a primeira repre-
R ÃO

senta a mulher fora do círculo familiar, que não almeja vínculo


através de matrimônio (prerrogativa reservada somente às
VO RS

últimas), mas se empenha na conquista e manutenção dos


N

favores masculinos, na maioria das vezes para o próprio


FA VE

sustento. Suas principais artimanhas são a fala suave (blanditia) e


os cuidados com a beleza (sobre as estratégias de persuasão das
meretrizes em Plauto, ver Rocha 2017). Pelo fato de trocarem
serviços por dinheiro, são frequentemente acusadas de serem
gananciosas: não se contentam nunca com um único amante e
faltam com a lealdade aos valores tradicionais da família. Esses
são comportamentos que entram em conflito com o padrão de
pudicitia feminina (Strong 2016). Em Plauto, as personagens
que se aproximam dessa descrição são Erócia (Menaechmi),
966
A presença das mulheres na Poesia e na História

Fronésio (Truculentus), as irmãs Báquides (Bacchides) e Ginásio


(Cistellaria), todas mulheres livres. Entre as libertas e escravas,
estão Acropolistis (Epidicus) e Astáfio (Truculentus), criada da
meretriz Fronésio. Um segundo tipo de personagem recor-
rente nas comédias, tanto de Plauto, como de Terêncio, é
a bona meretrix, para a qual a designação de prostituta não
implicaria necessariamente uma conduta viciosa. Trata-se de

TI O
AR
uma mulher de baixo status social que, por sua generosidade

R ISÃ
e virtuosidade, transcende a má reputação associada às mere-

LH
trizes. Terêncio escreve duas peças em que o roteiro gira em
torno do romance entre bonae meretrices (Báquide em Hecyra

PA V
e Taís em Eunuchus) e jovens provenientes de famílias ricas
M E
(para um perfil detalhado da bona meretrix, ver Gilula 1980).
O R
Plauto também representa meretrizes apaixonadas, cujo obje-
tivo no enredo não é extorquir seus amantes, como Filênio
C A

(Asinaria), Filocomásio (Miles Gloriosus), Selênio (Cistellaria),


R

Palestra (Rudens), Planésio (Curculio), Filemátio (Mostellaria),


ÃO PA

Pasicompsa (Mercator) e Fenício (Pseudolus).


As meretrizes aparecem também como personagens nas
controuersiae (gênero associado aos exercícios formativos das
R ÃO

escolas de retórica), figurando ao lado de personagens-tipo


oriundos do universo cômico, como o senex e o adulescens. A
VO RS

própria representação das prostitutas nas declamações romanas


N

evidencia a influência da comédia sobre o gênero retórico,


FA VE

considerando as notáveis semelhanças de enredo e a retomada


dos tópoi. Em Pseudo-Quintiliano, temos o caso da poção de
ódio (Decl. maiores, 14-15), em que o amante pobre presta
queixa contra a meretriz pelo crime de veneficium (envenena-
mento): ela lhe teria administrado, sem seu consentimento,
uma poção que transformou sua obsessão amorosa em ódio.
Na declamação de acusação, vê-se a associação da personagem
com a figura da feiticeira (venefica), enquanto a defesa apre-
senta o ponto de vista da mulher, utilizando argumentos que
967
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

corroboram a percepção da prostituição enquanto um ofício,


indispensável para a manutenção da ordem social. Como
exemplo do paralelismo entre gêneros, pode-se tomar ainda
o argumentum da peça Mercator, de Plauto, e as declamações de
Calpúrnio Flaco (Decl. 37) e Pseudo-Quintiliano (Decl. minores
356): o filho de um homem rico é encarregado de comprar
a prostituta pela qual o pai é apaixonado. Ao invés disso, usa

TI O
AR
o dinheiro para comprar a meretriz que ele mesmo amava e,

R ISÃ
em seguida, é deserdado.

LH
As representações literárias das meretrizes refletem, enfim,
a curiosa ambivalência que circunscreveu a realidade histórica

PA V
dessas mulheres simultaneamente entre o desejo e o desprezo.
M E
O R
Referências
C A
Fontes históricas
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FA VE

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VO RS
R ÃO
N
ÃO PA
C A R
O R
M E
PA V
R ISÃ
TI O
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AR
Virgo
por Amy Richlin

Virgo é uma importante personagem na comédia de


Plauto, Persa. Apropriadamente, ela não tem nome: «Virgo»

TI O
AR
é apenas um rótulo, que significa «garota livre solteira».

R ISÃ
Como tal, ela é uma exceção importante à regra de que

LH
virgens livres não falam no palco nas primeiras comédias
romanas. Em outras peças de Plauto, meninas livres estão fora

PA V
do palco: dando à luz como resultado de estupro (Aulularia),
M E
apenas tendo dado à luz (Truculentus) ou, ainda, usadas como
O R
um motivador da ação (Trinummus). Virgo também é única
por ser filha de um parasita, um tipo de personagem comum
C A

que é um homem pobre sempre com fome, sempre tentando


R

arranjar uma refeição, tentando ganhar o seu sustento contando


ÃO PA

piadas – muito parecido com os atores nessa forma de comédia.


Seu pai no palco, Saturio («O Comilão»), é o único parasita
da comédia antiga que tem uma família. Na peça, a fim de
R ÃO

manter o acesso a refeições gratuitas na cozinha de seu amigo,


o escravo Toxilus, Saturio concorda em emprestar a filha para
VO RS

Toxilus usá-la em uma fraude. Toxilus planeja vendê-la a um


N

cafetão, fazendo-a passar por uma prisioneira de guerra roubada


FA VE

«do fundo da Arábia» durante uma guerra na qual os persas


saquearam a Cidade de Ouro árabe. Outro amigo de Toxilus,
o escravo Sagaristio, se disfarçará como o comerciante da Pérsia
que está procurando vender a garota. Depois que o cafetão
a comprar, o plano é que Saturio apareça repentinamente e
reivindique sua filha como cidadã local, forçando o cafetão a
perder o dinheiro da compra para Sagaristio. Assim que Saturio
concorda com o plano, Toxilus manda que busque uma fantasia
«estrangeira» para disfarçar a jovem Virgo.
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Virgo, então, está disfarçada desde o primeiro momento


em que a vemos. Ela aparece em duas cenas principais da peça:
uma discussão com o pai, na qual ela o censura por concordar
com tal plano e aponta o que isso significará para ela (linhas
329-399); e a cena da venda (especialmente as linhas 543-675),
em que ela mostra ao público como é ser vendida para um
cafetão, e demonstra que é a pessoa mais inteligente no palco,

TI O
AR
falando acima não apenas do cafetão, mas de Toxilus e Saga-

R ISÃ
ristio. Seus discursos, então, apelam, muitas vezes, diretamente

LH
ao público (ver Richlin 2017, 260-265).
Ela poderia muito bem esperar que eles simpatizassem com

PA V
ela. As primeiras comédias romanas se desenvolveram durante
M E
uma época de guerras constantes em todo o Mediterrâneo,
O R
incluindo a Península Itálica, e a guerra frequentemente envolvia
escravizações em massa quando as cidades eram saqueadas.
C A

Diz-se que Plauto floresceu durante a Segunda Guerra Púnica,


R

durante a qual a Itália foi ocupada pelos exércitos cartagineses


ÃO PA

sob Aníbal; as estradas estavam lotadas de deslocados e caixões de


escravos. Nesse ponto, não havia teatros permanentes na Itália
central; As peças de Plauto provavelmente foram encenadas
R ÃO

em palcos simples de madeira, montados temporariamente no


Fórum ou em frente ao templo da divindade homenageada no
VO RS

festival. O público se sentava em bancos; a entrada era gratuita;


N

o público ainda não era segregado por categoria, e há ampla


FA VE

evidência de que escravos, libertos e livres sentavam-se lado a


lado. Muitas pessoas na platéia teriam perdido parentes para a
escravidão e, de fato, os palcos foram montados à vista de onde
os escravos eram vendidos, enquanto as prostitutas escravas eram
fáceis de se encontrar no Fórum. Com base nas piadas nas peças,
parece certo que pelo menos alguns dos atores eram escravos,
e os personagens escravos costumam ocupar o centro do palco
(ver Marshall 2013 sobre escravos sexuais no palco). Em Persa,
os únicos personagens livres são o cafetão, Saturio e sua filha.
974
A presença das mulheres na Poesia e na História

Esse ambiente reforça a ideia de Clara Hardy (2005) de que


o traje que Saturio consegue para sua filha não é apenas estran-
geiro, mas trágico. Sua situação cruza linhas de gênero, e sua
entrada na cena da venda pode ser comparada com a impressio-
nante entrada de Cassandra no Agamenon de Ésquilo, ou melhor,
de Iole em As Traquínias de Sófocles. Mais próxima do contexto,
sua aparência poderia muito bem ter lembrado ao público a da

TI O
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personagem-título da Andrômaca de Ênio, uma peça conside-

R ISÃ
rada tão importante que gerações de alunos memorizaram os

LH
discursos de Andrômaca, como sabemos por Cícero (Tusculan
Disputations, 3. 53). O cruzamento de gêneros, se presente para

PA V
os espectadores, pode muito bem ter sido visto como engraçado,
M E
como quando o Pernalonga se veste de personagem de uma
O R
grande ópera. No entanto, mesmo assim, isso só teria reforçado
a qualidade de estrela de Virgo.
C A

A cena de Virgo com seu pai demonstra tanto sua frieza


R

quanto sua superioridade moral. Ele a vê como sua propriedade;


ÃO PA

ela vê os dois como vulneráveis à opinião pública, o que é ainda


mais severo para os pobres. Ela ressalta que não tem dote e
que, se ele permitir que ela seja vendida a um cafetão, mesmo
R ÃO

que ele a redima imediatamente, sua reputação ficará irreme-


diavelmente manchada. Ela nunca vai encontrar um marido.
VO RS

Seu pai responde que ela tem um dote em sua coleção de livros
N

de brincadeiras e sugere que ela achará fácil um marido – um


FA VE

mendigo. Resignada com seu destino, ela segue com ele.


Na cena da venda, a encenação enfatiza sua importância
como um contrapeso para Toxilus (ver Marshall 1997). Pergun-
tada por seu nome, ela se dá um: «Lucris», um trocadilho que
pode ser traduzido como «Vendida». Ela foi mercantilizada e
mostra que sabe disso. Questionada sobre de onde era (patria),
ela responde que só pode ser do lugar onde está agora: verda-
deira em três níveis (é isso que o cativeiro faz a você, enquanto
sua antiga pátria está perdida; ela está literalmente na terra onde
975
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

nasceu; está na situação que o pai criou para ela). Múltiplos


significados semelhantes permeiam suas respostas enquanto ela
debate com o cafetão que, eventualmente, lhe diz que ela logo
será livre – se passar bastante tempo em suas costas. No evento,
seu pai chega tarde o suficiente para que ela se preocupe (724).
Ela é vista pela última vez seguindo seu pai fora do palco (752).
Quando refletimos que por baixo de seu traje pode muito

TI O
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bem haver um jovem menino escravo, talvez ele próprio expe-

R ISÃ
riente em exploração sexual, o impacto desse personagem sem

LH
nome é redobrado. Porém, falar em Drag em Plauto é algo
complexo pelo estado desconhecido dos atores sob o traje envol-

PA V
vente e a máscara coberta que, provavelmente, foram usados (ver
M E
Richlin 2017, 281-303). A audiência também era mais complexa
O R
do que podemos imaginar, pois eles sabiam o que a escravidão
significava por dentro e seus conhecimentos variavam de pessoa
C A

para pessoa. Mas Virgo não tem nome. Diante disso, quem vai
R

procurar «Virgo» neste Compêndio? No entanto, ela fala pelos


ÃO PA

que não têm voz.

Tradução do inglês para o português:


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Semíramis Corsi Silva.


VO RS

Referências
N

Fontes históricas
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PLAUTUS. 2011. The Merchant, The Braggart Soldier, The


Ghost, The Persian. Edited and translated by Wolfgang de
Melo. Cambridge, MA: Harvard University Press.
T. MACCI PLAUTI. 1903-1905. Comoediae. 2 vols. W. M.
Lindsay (Ed.). Oxford: Oxford University Press.

Obras de referência
HARDY, C. S. 2005. The Parasite’s Daughter: Metatheatrical
Costuming in Plautus’ Persa, Classical World, 99.1, p. 25-33.
976
A presença das mulheres na Poesia e na História

MARSHALL, C. W. 1997. Shattered Mirrors and Breaking


Class: Saturio’s Daughter in Plautus’ Persa, Text & Presentation.
18. p. 100-109.
MARSHALL, C. W. 2013. Sex Slaves in New Comedy. In:
AKRIGG, B.; TORDOFF, R. (Ed.). Slaves and Slavery in
Ancient Greek Comic Drama. Cambridge: Cambridge Univer-
sity Press, p. 173-196.

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RICHLIN, A. 2017. Slave Theater in the Roman Republic:

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Plautus and Popular Comedy. Cambridge: Cambridge Univer-
sity Press.

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Syra
por Amy Richlin

Syra é uma personagem secundária na comédia O Mer-

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cador de Plauto. Ela representa um grande grupo de escravas

R ISÃ
domésticas colocadas no palco, muitas das quais não têm ne-

LH
nhuma fala ou têm apenas algumas, mas tendem a apoiar suas
donas, pelo menos fisicamente (ver James 2012). Ela entra

PA V
carregando a bagagem de seu dono e, como outros escravi-
M E
zados no palco, ela reclama de seus fardos enquanto seu dono
O R
a repreende por sua lentidão (Para as circunstâncias históricas
por trás da representação da escravidão nas peças de Plauto,
C A

consulte o verbete Virgo). Como uma mulher idosa – Syra


R

se identifica tendo oitenta e quatro anos em seu discurso de


ÃO PA

entrada – ela representa um grupo de mulheres consistente-


mente desprezadas no palco, às vezes criticadas como nojen-
tas, bêbadas e fedorentas (ver Richlin 2017, 302-303). Além
R ÃO

disso, por seu nome, “Syra”, ela representa outro grupo insul-
tado: os escravizados da Síria, estereotipados tanto nas peças
VO RS

de Plauto quanto em outros lugares como naturalmente ser-


N

vis, feios (se mulher), adequados apenas para trabalho enfado-


FA VE

nho (sobre Syra e os estereótipos raciais em Plauto, ver Starks


2010). Syra raramente aparece falando, mas faz um discurso
que deveria ser lido em todas as aulas sobre mulheres antigas
(ver Richlin 2017, 265-268).
Depois de descobrir que (conforme ela pensa) o marido
de sua dona comprou uma jovem escrava sexual e a trouxe
do mercado para morar na casa da família, Syra dá o alar-
me e, então, é deixada sozinha no palco para fazer um bre-
ve monólogo (linhas 817- 829). De forma única em toda a
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

literatura latina, ela deplora o duplo padrão que opera nas


famílias romanas, segundo o qual um marido pode impune-
mente “contratar uma prostituta” pelas costas da esposa, mas
se a esposa põe os pés fora de casa sem o conhecimento do
marido, o marido tem motivos para o divórcio. Syra deseja
que mulheres e homens vivam segundo regras iguais e que
as esposas tenham os mesmos direitos que os maridos – usar

TI O
AR
a infidelidade do cônjuge como fundamento para o divórcio.

R ISÃ
Ela conclui estimando que, se assim fosse, mais maridos se
divorciariam de suas esposas do que vice-versa.

LH
A importância desse discurso não é realmente prejudi-

PA V
cada pelo fato de que as esposas, em várias peças de Plauto,
M E
ameaçam se divorciar de seus maridos: Alcumena em O Anfi-
O R
trião, devido à sua acusação de que ela foi infiel a ele; a esposa
de Menecmo em Os Menecmos, cujo marido está de fato visi-
C A

tando uma prostituta e que, por conta disso, chega a chamar


R

seu pai; e o dono de Syra. O divórcio era legal em Roma, e as


ÃO PA

esposas podiam iniciar o pedido (ver Watson 1971, 23-24),


embora o vizinho de Cleustrata fale do divórcio como uma
ameaça terrível na peça Cásina. No entanto, a retumbante de-
R ÃO

claração de Syra se destaca, com sua abertura vigorosa: “Por


Castor, as mulheres (mulieres) vivem de acordo com uma lei
VO RS

rígida!” Nós devemos nos perguntar qual teria sido seu efeito
N

desse discurso, falado no palco por um ator masculino vestido


FA VE

como uma velha e decrépita mulher escravizada. Os escravi-


zados não podiam se casar sob a lei romana; por que, então,
Syra deveria falar em nome das mulheres casadas? Este é ou-
tro exemplo de lealdade, como Sharon James argumentaria?
O traje enfraquece a força do discurso? O verdadeiro ponto
do discurso é o insulto final aos homens casados, como os da
platéia? As peças de Plauto insultam regularmente membros
da audiência de várias formas, e os homens casados ​​nas pe-
ças geralmente são considerados tolos. Ou seria a escolha das
980
A presença das mulheres na Poesia e na História

palavras de Syra importante aqui, já que mulieres como um


substantivo de grupo se refere mais frequentemente a mulhe-
res escravizadas do que a todas as mulheres?

Tradução do inglês para o português:


Semíramis Corsi Silva.

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Referências

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Fontes históricas

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PLAUTUS. 2011. The Merchant, The Braggart Soldier, The
M E
Ghost, The Persian. Edited and Translated by Wolfgang de
O R
Melo. Cambridge, MA: Harvard University Press.
C A
PLAUTUS. 2 VOLS. 1903-1905. Edited by W. M. Lindsay.
R

Oxford: Oxford University Press.


ÃO PA

Referências bibliográficas
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JAMES, S. L. 2012. Domestic Female Slaves in Roman Co-


medy. In: JAMES, S. L.; DILLON, S. (Eds.). A Companion to
VO RS

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235-237.
FA VE

RICHLIN, A. 2017. Slave Theater in the Roman Republic:


Plautus and Popular Comedy. Cambridge: Cambridge Uni-
versity Press.
STARKS Jr., J. H. 2010. Servitus, sudor, sitis: Syra and Syrian
Slave Stereotyping in Plautus’ Mercator, New England Classi-
cal Journal 37.1, p. 51-64.
WATSON, A. 1971. Roman Private Law around 200 BC.
Edinburgh: Edinburgh University Press.
981
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Lésbia
por Alexandre Cozer

Dentre as mulheres que aparecem como personagens na


literatura latina, certamente Lésbia está entre as mais famosas.

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Figurante n’O livro de Catulo, a personagem literária inaugura

R ISÃ
para os textos romanos uma sequência de personagens femininas

LH
presentes nos textos elegíacos e epigramáticos, com os quais
interagem os escritores dessas poesias e que os levam à loucura, à

PA V
possessão sentimental, ao sofrimento, e que os motivam mesmo
M E
à escrita. O nome não era o de uma pessoa romana que convivia
O R
com Catulo, mas era relacionado à ilha de Lesbos e sua expli-
cação é ambígua: pode ter sido motivada pela inspiração que
C A

foi Safo para o poeta romano, já que a autora vivera nessa ilha;
R

pode também ser alusão à fama de que as meninas da ilha fossem


ÃO PA

bonitas.
Entretanto, como primeira personagem do tipo, Lésbia
também é identificada com uma mulher na História de Roma:
R ÃO

uma das filhas de Apio Cláudio Pulcro, provavelmente a quarta,


mais conhecida como Cláudia Metelo. Tal paralelo se dá a partir
VO RS

da percepção de que Lésbia é uma mulher casada por quem


N

Catulo se apaixona e a qual deseja beijar e amar. Em certos


FA VE

trechos, Lésbia é mencionada tendo relação com um Lesbius


considerado pulcher pelo poeta em um sugestivo poema que
combina com as acusações de Cícero sobre Cláudia em seu Pro
Caelio. O fato de Lésbia parecer também superior a Catulo em
nível social e talvez até educativo, já que ela demonstra suas
opiniões sobre o livro e trata Catulo como cliente, sustentaram
os argumentos historicistas de L. Schwabe desde 1862, mantido
nas interpretações mais recentes da obra, endossando a conexão
entre a personagem real e a literária.
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Com isso, o contexto histórico no qual viveria Lesbia é o


mesmo de Catulo, de Cícero, de César — a quem o poeta se
opõe em uma de suas poesias de raro engajamento político — e
de Cláudia. No último século antes da era cristã, Roma havia
se tornado uma República de muitos territórios e de muitas
conquistas que haviam trazido ali diversos escravos e permitido
a poucas famílias o acúmulo de fortunas outrora inimaginá-

TI O
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veis. Nesse contexto, estabeleciam-se relações de clientelismo,

R ISÃ
nas quais algumas famílias ricas de origem menos tradicional

LH
dependiam ou se associavam com as mais importantes, como
era a dos Metelos ou dos Julios. Também nesse contexto, a

PA V
cultura romana havia se transformado: a inserção de gêneros
M E
poéticos como a elegia e a epigramática ressaltam uma vida
O R
social mais próxima dos banquetes, jantares que se ofereciam
a tais clientes. Ao mesmo tempo, os anos finais da República,
C A

temos mulheres que agora podem casar-se sine manu, ou seja,


R

sem tornar-se propriedade do marido, o que lhes conferia mais


ÃO PA

independência e lhes permitia agir politicamente e até mesmo


ter a separação. Tudo isso contribui para dois dos fatores que
marcam as visões criadas sobre a Lésbia de Catulo: por um lado,
R ÃO

a realidade mais aristocrática contextualiza a realidade de festas e


de admiração mais criteriosa da poesia; por outro, a maior liber-
VO RS

dade das mulheres também convive com uma literatura agora


N

mais agressiva a elas, e com histórias contadas por moralistas


FA VE

sobre a depravação dessas senhoras ou o fato de elas traírem seus


maridos, como aconteceria nas próprias páginas de Cícero e
depois de outros historiadores romanos do período e posteriores.
No que concerne às interpretações, se já é raro interpretar
Catulo sem pensar sua relação com Lésbia e o lugar que ela tem
em sua poesia – alguns estudiosos como Vasconsellos (1991)
chegam a considerar o grupo de escritos a ela um cancioneiro
a parte – nossa personagem também é sempre considerada em
sua relação com o poeta. Entretanto, as interpretações sobre
984
A presença das mulheres na Poesia e na História

essa mulher romana variam muito. Em uma importante leitura


sobre O livro de Catulo, Kenneth Quinn (1969) defendia que o
poeta iniciara uma revolução na poesia romana: a de opor-se
ao gênero épico, ao desejo de guerra e à poesia longa, conside-
rada por muitos a mais erudita valorosa. Em oposição, o poeta
valorizaria sua vida cotidiana e, em uma reutilização do termo
ovidiano, iniciaria em Roma o movimento da militia amoris:

TI O
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negar a guerra e o político e observar os desejos e sentimentos

R ISÃ
cotidianos. Nessa poesia, Lésbia apareceria como uma repre-

LH
sentação de Clódia, mas certamente idealizada e cheia de inter-

PA V
ferências imaginárias da poesia. A interpretação de Quinn, em

M E
certa medida, dá azo a uma visão romantizada da relação de
O R
Catulo e Lésbia, na qual se figuraria uma mulher de classe alta
e que era, como uma espécie de musa, extremamente desejada
C A

pelo poeta que chega a confessar não considerar suficiente para


R

sanar seu desejo nem milhares de beijos (Poesias 5 e 16 do livro


ÃO PA

de Catulo).
De um ponto de vista da historiografia e da crítica lite-
R ÃO

rária feministas, a posição se inverte. Amy Richlin (1992), por


exemplo, atenta para o quanto Lésbia aparece como objeto
de desejo de Catulo, mas chama mais atenção ao fato de que
VO RS

a mulher, além de algumas vezes aproximar-se de realizar os


N

desejos do poeta, também parece consumar relações com outros


FA VE

rapazes por vezes até em um bar, como no Poema 37. Entre-


tanto, em que pese sua relação com o poeta e o afeto que esse
lhe demonstra, a Lésbia que se relaciona com outros homens
é julgada adúltera pela voz das poesias, apesar de não ser para
Catulo uma parceira conjugal. Tal aspecto leva Richlin e outras
historiadoras a questionarem a linguagem abusiva das poesias
que despreza essa personagem e a trata como objeto de desejo
e posse. Lésbia confirmaria, em uma etapa, a contradição da
985
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

cultura romana que jamais permitiria a uma mulher o compor-


tamento mais livre que essa personagem toma na obra, apesar
dos direitos que tinham no período.
Do ponto de vista mais historicista-literário, é comum
a afirmação de que Lésbia seria uma representação um pouco
exagerada da efetiva mas incognoscível relação entre Catulo e
Cláudia, e a poesia ou sua representação seriam o lugar de uma

TI O
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confissão, ao mesmo tempo que de uma crítica um pouco épicas

R ISÃ
ou dramáticas. Em Wiseman (1985), e com menor debate em

LH
Vasconsellos (1991), Lésbia é entendida como uma mulher mal
compreendida por sua cultura e, por isso, tão desejada por Catulo

PA V
e ao mesmo tempo tão ofendida por ele. Enquanto mulher de
M E
alto calão, ela estaria acima do poeta e teria com ele uma relação
O R
de poder, assim ele confessava seus desejos, a via sendo livre e
assumindo uma vida independente do marido, mas ao mesmo
C A

tempo retornava sobre ela e, sobretudo, aos amantes dela, em


R

violência contra seus atos sexuais ou suas expressões de desejo.


ÃO PA

Outra perspectiva interessante sobre a personagem é a que


analisa sua presença na poesia de Catulo de acordo com uma
divisão técnica da obra. O Livro seria composto em três partes:
R ÃO

polímetros que correspondem às poesias 1 até 60; versos longos


ou carmina docta, da 61 até 68; epigramas da 69 até 116. De
VO RS

acordo com M. Skinner (2003) e, em seguida, com J. Dyson


N

(2007), a relação de Catulo e Lésbia muda a cada parte da poesia,


FA VE

transformando-se quase em uma história fragmentada em seus


versos. Na parte polímetra, Lésbia aparece de forma muito
confusa e propositalmente imaginada pelo poeta, mostrando
o quanto sua presença ou sedução o deixariam desconectado
da realidade. Entre linda, amada, odiada por estar com outros
homens, nossa personagem faz prova de tanta sedução que chega
a colocar Catulo em um papel que seria feminino (Poemas 2
e 11) para os romanos mais conservadores: estar perdido de
amores. No Poema 68, Lésbia sofreria uma mutação com
986
A presença das mulheres na Poesia e na História

o poeta: ambos deixam de ser jovens e deixam de lado suas


puerícias, Catulo passa a vê-la como uma mulher realizada e
próxima até de uma deusa, ressaltando sua inferioridade social
em relação à Lésbia. Em seguida, nos epigramas, o poeta passaria
a reconhecer seu papel social e a superioridade, chegando a
estabelecer uma relação de amicitia em pé de igualdade.
Com todas essas oscilações e interpretações diferentes de

TI O
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Lésbia ressalta-se também uma na literatura brasileira. Em 1890,

R ISÃ
a escritora Maria Benedita Cândida Bormann, mais conhecida

LH
com o nome que emprestou de outra personagem antiga, Delia,

PA V
escreveu o romance Lesbia. No romance, com certa dúvida

M E
biográfica, Delia se inspira na Lésbia de Catulo para narrar a
O R
história de uma mulher de elite no Brasil aristocrático que se
entediava com seus homens, abandonava o marido e procu-
C A

rava não apenas viver novas paixões como também escrever


R

seus livros. A genialidade da Lésbia brasileira inspirava-lhe


ÃO PA

um enorme tédio dos homens que lhe desejavam e, em certo


ponto do romance, até daquele amante que ela própria nomeara
R ÃO

Catulo. A vontade de liberdade, a troca de parceiros, o impulso


amoroso e a condição social elevada certamente são reconfigu-
rações que a Lesbia brasileira faz da nossa personagem antiga.
VO RS
N

Referências
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Fontes históricas
BORMANN, M. B. C. 1999. Lesbia. Florianópolis: Editora
Mulheres.
CATULO. 1996. O livro de Catulo. Tradução de J. A Oliva
Neto. São Paulo: EDUSP.
CÍCERO. 2000. Pro Caelio. Cicero: Defense Speeches. Oxford
World Classics. Edited and translated by D. H. Berry. New
York: Oxford University Press.
987
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Obras de referência
DYSON, J. 2007. The Lesbia Poems. In: SKINNER, M.
A companion to Catullus. Oxford: Blackwell publishing, p.
254-275.
QUINN, K. 1969. The Catullan Revolution. Ann Arbor/
Michigan: The University of Michigan Press.
RICHLIN, A. 1992. The garden of Priapus: sexuality and

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aggression in Roman Humor. Nova Iorque: Oxford Univer-

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sity Press.
SKINNER, M. B. 2003. Catullus in Verona: a reading of the

LH
elegiac libellus. Columbus, Ohio: The Ohio State University

PA V
Press.

M E
VASCONCELLOS, P. S. 1991. Catulo: O cancioneiro de Lésbia.
O R
São Paulo: Hucitec.
WISEMAN, T. P. 1985. Catullus and his world: a reappraisal.
C A

Cambridge: Cambridge University Press.


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Cíntia
por Paulo Martins

Cíntia é uma personagem do poeta elegíaco romano


Propércio, que viveu entre 43 aEC e 17 EC, o que o posi-

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ciona entre os chamados poetas augustanos ou poetas da Época

R ISÃ
de Otávio Augusto. A poesia de Propércio é exclusivamente

LH
elegíaca, tendo como precursores, ora na poesia grega arcaica

PA V
com Mimnermo de Colofon (630 aEC – 600), ora na poesia

M E
helenística com o poeta e bibliotecário de Alexandria, Calímaco
de Cirene (310 aEC – 240), ora na poesia que o antecede em
O R
Roma, com os poetas novos (poetae noui) ou neotéricos, Catulo
C A
(84 aEC – 57) e Cornélio Galo.
R

A vertente elegíaca em Roma é, básica e não exclusiva-


ÃO PA

mente, erótica sem obviamente elidir sua vertente histórica, o


lamento e seu viés etiológico, mas o que une esses autores, a
saber, Galo, Catulo, Tibulo, Propércio e Ovídio é a construção
R ÃO

de personagens femininas que servem como alvo de sua poesia,


suas «amadas», respectivamente, Licóride, Lésbia, Délia, Cíntia
VO RS

e Corina.
N

O século XIX as transformou, essas elaborações poéticas,


FA VE

essas mulheres, em personagens históricas dissimuladas por pseu-


dônimos, crendo que o autor Apuleio (125 EC – 170), no século
subsequente, dissesse que fossem mesmo personagens históricas
já que dizia que Catulo ocultava Clódia em Lésbia, Tícidas,
Metela em Perila, Propércio, Hóstia em Cíntia e Tibulo, Plânia
em Délia, um absoluto rumor (Apuleio. Apologia, 10). Queria,
sim, Apuleio, autor formado na sofística, dizer que qualquer
personagem dissimula alguém pelo simples fato de aquelas são
verossímeis a essas, daí serem a expressão de um éthos.
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Essa leitura acabou por confundir a recepção do XIX e de


boa parte do século XX, todas as edições de Propércio desde o
século XV até o XIX, nas notas não davam nenhuma atenção
aos nomes, pois sabiam ser poesia. Assim, ainda que pudessem
dissimular uma personagem real e concreta, a persona perma-
necia como fictícia.
Esse jogo entre ficção e realidade é um ato absolutamente

TI O
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deliberado de Propércio e dos outros elegíacos e líricos. Importa

R ISÃ
ao autor construir um jogo, ludus ou iocus, em que seus leitores

LH
acabam por se reconhecer em suas personagens ficcionais.
Cíntia, portanto, é persona poética e não persona histórica, já

PA V
que a distância entre a ficção e a história já fora enunciada por
M E
Aristóteles muito tempo antes (Aristóteles. Poética, 9). Mais do
O R
que isso, Cíntia e todas suas «companheiras» na poesia possuem
características semelhantes, como bem demonstra Maria Wyke
C A

(2007).
R

Curiosamente, pode-se dizer isso não só de sua «amada»,


ÃO PA

mas de outras personagens citadas nos quatro livros de Propércio


que pertenceriam ao seu «círculo», configuravam-se interlocu-
tores na poesia: Augusto, Mecenas, Galo, Basso, Pôntico, Tulo,
R ÃO

Laís, Frina, Taís e a própria Cíntia, afora, uma gama enorme de


mitos que são associados às personagens como que, caracteri-
VO RS

zando o seu éthos, assim como próprio o auctor Propertius. Assim,


N

ainda que a persona elegíaca exista na realidade, ela permanece


FA VE

sempre persona ficta (modelada). O que contribuiu para uma


projeção moderna sobre essas personas dando-lhes existência
histórica, foi a inobservância da ideia de verossimilhança, asso-
ciada aos conceitos de fides (fidedignidade) e de éthos (caráter)
(Martins 2009).
Entretanto, a persona Cíntia não é tão trivial, ao contrário,
ela é extremamente complexa e bem desenhada. Assim, ela não
é apenas o decalque da realidade, mas a sobreposição de várias
camadas de significação que vão sendo alteradas no decurso
990
A presença das mulheres na Poesia e na História

dos quatro livros. Como que ela amadurecesse com o passar da


narrativa poética (disjuntiva), ou, simplesmente, expressasse a
volubilidade «ética» em estrito senso. Fato esse que permite ao
poeta matizá-la
O ponto essencial do qual devemos partir para compre-
endê-la é o fato de ser, antes de tudo, uma matéria poética.
Propércio nos dá duas chaves: a primeira é chamá-la de uita

TI O
AR
(vida) e a segunda de nomeá-la scripta puella (menina escrita).

R ISÃ
Chamar alguém de «vida» é comum até nos nossos dias,

LH
entre pares amorosos isso é muito comum. Aquilo que para nós
responde ao nível de importância do «outro» em relação ao «eu»,

PA V
em Propércio é, acredito, sinônimo de narrativa – pensemos
M E
no gênero historiográfico «vidas» ou «biói» – de uma elabo-
O R
ração linguística, um enunciado, afinal a vida não passa de uma
sucessão de eventos conexos e consequentes, portanto ligados
C A

por nexo causal.


R

Já no primeiro poema (Propércio. Elegias, I. 1. 1) ela é


ÃO PA

enunciada pelo nome. A primeira palavra do primeiro verso, do


primeiro livro é Cynthia, no primeiro verso da segunda elegia,
o poeta substituí seu nome, por uita (Propércio. Elegias, I. 2.
R ÃO

1). Essa utilização vai se alternando durante a construção da


narrativa elegíaca. Propércio sinaliza, portanto, que seu leit-
VO RS

motiv é Cíntia e ela mesmo, sua vida e sua escritura, pois que
N

enunciado, scripta puella, tanto é que, em alguns manuscritos, o


FA VE

primeiro livro aparece nomeado Cynthia. A confirmação desta


relação Cíntia é oferecida no segundo livro (Propércio. Elegias,
II. 10, 8) quando afirma ser Cíntia sua scripta puella, o próprio
enunciado poético.
Os dois primeiros níveis de significação de Cíntia estão
colocados: ela é amada e ela é poesia. Exatamente da mesma
maneira que Propércio é amante e poeta, mantendo-se, assim,
a relação literária e existencial. Não satisfeito por esta demar-
cação simbólica e, obviamente, significativa, o autor/amante
991
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

está sujeito ao ciúmes e no primeiro livro ele expõe esse senti-


mento em poemas cuja sua interlocução são: Basso (Propércio.
Elegias, I. 4); Pôntico (Propércio. Elegias, I. 7 e I. 9) e Galo
(I. 5; I. 10; I. 13; I. 20 e I. 21). Assim, num livro que possui
vinte e duas elegias, ele dedica oito elegias a figuras suposta-
mente anônimas. Mas há que se lembrar que Cornélio Galo
é poeta elegíaco; Pôntico seria um poeta épico, já que pontus

TI O
AR
(mar) é metáfora de poesia épica e Basso, um poeta «baixo»

R ISÃ
(é palavra cognata de bassus) de iambos. Assim, Cíntia está

LH
sendo assediada por poetas, representantes de gêneros poéticos
confins à elegia. Temos então que a poesia/amada (Cíntia) está

PA V
sendo ameaçada por personas que são simultaneamente rivais
M E
amorosos e êmulos poéticos de Propércio, poeta e amante.
O R
A polissemia está instaurada. Cíntia, poesia, está encurralada
por poetas cortejadores. Cíntia, amada, está sendo posta à prova
C A

quanto a sua fidelidade.


R

E assim termina o primeiro livro, Cíntia construída em


ÃO PA

duas dimensões. Ocorre a partir do início do segundo livro


quando surge uma aproximação mítica que contribui para
uma amada imaculada ou impoluta. Diz Propércio na primeira
R ÃO

elegia do segundo livro que se está com ela nua na cama, em


seguida, compõe longas Ilíadas – aplicação do lugar comum
VO RS

do ato amoroso com a guerra (a militia amoris – milícia do


N

amor). E qualquer coisa que ela fale ou faça, ele, poeta e amante,
FA VE

do nada, nasce uma nobilíssima história (maxima ... historia).


Corrobora-se nesse caso o caráter narrativo da história de amor,
entretanto ao nomear «história» acaba por confundir a recepção
em nome do jogo elegíaco. Mas se fosse história realmente,
estaríamos em outro gênero que não a elegia.
Entretanto, na terceira elegia deste livro (Propércio. Elegias,
II. 3. 31-32), a beleza de Cíntia rivaliza com a de Helena de
Troia. Se nos dedicarmos àquilo que Helena pensa de si mesma.
É literal, chama-se de cadela (Homero. Ilíada, III. 180; VI, 344
992
A presença das mulheres na Poesia e na História

e 356), então Propércio aponta para uma vulgarização de seu


éthos, senão uma desmitificação de Cíntia. Isto é significativo.
Na elegia II, 4, o ego-elegíaco, Propércio, – ele também é uma
persona fictícia – se afasta de Cíntia, para na próxima elegia
afirmar que Cíntia está na boca de Roma, sua fama libertina
corre pela cidade. Na seguinte (Propércio. Elegias, II. 6), a
rebaixa no limite do jambo. Compara Cíntia com prostitutas

TI O
AR
arquetípicas, Frina de Tebas, Taís de Atenas e Laís de Corinto.

R ISÃ
Se repensarmos os três níveis de significação para a tríade

LH
amada/poesia, amante/poeta e rival/êmulo, a vulgarização de

PA V
Cíntia aponta para o entendimento de que Cíntia, muitas vezes,

M E
converte-se completamente em poesia. Assim, ao compará-la a
O R
Helena, ao dizer que ela está na boca de Roma (uma catacrese);
ao colocá-la lado a lado das três meretrizes, Propércio constrói
C A

uma alegoria. Afirma na verdade que sua poesia «Cynthia», fez


R

sucesso. Todos a leem. Todos a desejam. Sua poesia é manu-


ÃO PA

seada. No século XVII, o poeta metafísico inglês, John Donne


(1572-1663), escrevendo uma elegia, dizia só a poucos homens
R ÃO

é dado «ler» uma mistress. Sua mulher também era uma poesia.
Mas Propércio não foi tão inovador, um de seus êmulos,
Catulo (87 – 57 aEC), valeu-se do mesmo expediente poético,
VO RS

com sua amada/poesia. Quando diz no poema 58 que Lésbia


N

está nos becos e nas encruzilhadas felando os netos Remo, sendo


FA VE

o mesmo poeta/amante com a qual trocava milhares de beijos


sem fim (Poema 5).
A construção dos éthe na elegia principalmente entre
Tibulo, Propércio e Ovídio é referencial, portanto essas
mulheres elegíacas que para Paul Veyne, eram mulheres de
vida irregular, nada mais eram do que metáforas para a poesia,
ainda que decalcadas em mulheres que circulavam em Roma,
como por exemplo Clódia, Hóstia ou Plânia, mais do que isso
993
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

eram mulheres cultas e sábias (cultae et doctae) nas artes poesia,


canto e dança e muito prestimosas também na ars amatoria.
(Veyne 2013, 10)

Referências
Fontes históricas
APULEIO, 2017. Apologia; Florida; De de Socratis. Translated

TI O
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by Christopher P. Jones. Cambridge, Mass.: Harvard Univer-

R ISÃ
sity Press.
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Halliwell. Cambridge, Mass.: Harvard University Press.

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HOMERO. 2013. Ilíada. Tradução de Frederico Lourenço.

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São Paulo: Penguin/Cia. das Letras.
O R
PROPÉRCIO. 2014. Elegias de Sexto Propércio. Tradução de
Guilherme Gontijo Flores. Belo Horizonte: Autêntica.
C A R

Obras de referência
ÃO PA

MARTINS, P. 2009. Elegia Romana: Construção e Efeito. São


Paulo: Humanitas.
VEYNE, P. 2013. Elegia Erótica Romana. Tradução de Mariana
R ÃO

Achalar. São Paulo: Edunesp.


WYKE, M. 2007. The Roman Mistress. Oxford: Oxford
VO RS

University Press.
N
FA VE

994
DÉLIA
por Maria Ozana Lima de Arruda

Délia é o nome de uma das amadas do poeta romano


Álbio Tibulo (Albius Tibullus), associada com o ideal

TI O
AR
pacífico de vida amorosa no campo (Maltby 2002, 43-44).

R ISÃ
Délia, conforme retratada por Tibulo, seria uma mulher casada,

LH
pois aparece relacionada a um coniunx, ou, uma vez que não
use os trajes típicos de uma matrona romana, poderia ser uma

PA V
libertina, isto é, uma escrava liberta, possivelmente ligada em
M E
um relacionamento amoroso a um homem, rival do poeta
O R
(Maltby 2002, 44). Tibulo teria vivido aproximadamente entre
55 aEC - 19 aEC e escreveu em dísticos elegíacos uma obra
C A

inserida no Corpus Tibullianum, dividido em três livros, no qual


R

encontram-se reunidas obras de três poetas: Tibulo, Lígdamo


ÃO PA

e Sulpícia. Os dois primeiros livros (o primeiro com 10 poemas


e o segundo com 6 poemas) contém apenas elegias de Tibulo
e Délia aparece como a amada do poeta apenas no primeiro
R ÃO

(composto a partir de 32 aEC e publicado provavelmente em


27 ou 26 aEC), nas elegias 1, 2, 3, 5 e 6. O primeiro livro de
VO RS

Tibulo é também marcado pela forte influência das Éclogas


N

de Virgílio, obra em verso hexamétrico na qual é retratado


FA VE

o ambiente pastoril, e na qual, pela primeira vez, Délia é


usado também para referir-se à Diana (Virgílio. Éclogas, VII.
29), irmã de Apolo – que por sua vez, é chamado Délio –,
aos quais, segundo a tradição, está devotada a ilha de Delos,
ligada à noção de ambiente agrário intocado (Maltby 2002,
43-44). Ainda em relação ao nome Délia, alguns estudos
relacionam os nomes das amadas dos elegíacos (além de Délia,
Lésbia de Catulo, Cíntia de Propércio e Corina de Ovídio)
a nomes associados à poesia; assim, o nome da amada de
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Propércio seria uma referência ao monte Cíntio, que fica


em Delos, uma ilha devotada deus da poesia – Apolo –,
e da qual viria a inspiração para o nome de Délia. Há ainda
uma tentativa de relacionar os nomes das amadas dos poetas
elegíacos a mulheres da época dos escritores, nesse sentido,
seguindo o que faz com as outras amadas dos poetas elegíacos,
Apuleio, escritor do primeiro século EC (Apuleio. Apologia,

TI O
AR
X), identifica Délia com uma mulher de nome Plânia, tradução

R ISÃ
do nome grego de Délia (δῆλος = planus), possibilidade que

LH
é atualmente refutada e considerada apenas um palpite de

PA V
Apuleio baseado na equivalência do significado dos dois nomes

M E
(Maltby 2002, 44).
O R
Tibulo escreveu durante o que chamamos de período
Augustano e fez parte do círculo de Valério Messala Corvino,
C A

sob cujo comando o poeta participou de algumas campanhas


R

militares. As questões bélicas são abordadas nos poemas e


ÃO PA

servem de contraponto ao ideal de vida campestre desejado


pelo poeta ao lado da sua amada, ainda que na pobreza, mas
R ÃO

devotado ao amor, no qual ele é bom combatente e bom


soldado (Tibulo. Elegias, I. 1. 75). É nesse contexto idílico-
amoroso, sob a proteção das divindades ligados às atividades
VO RS

agrícolas, que Délia figura na primeira elegia de Tibulo, em


N

que o poeta diz não se preocupar com louvores se estiver ao


FA VE

lado dela, com quem espera estar também na hora da morte,


segurando-lhe a mão (Tibulo. Elegias, I. 1. 59-60). No entanto,
nas elegias seguintes, percebe-se que a história de amor entre
o poeta e Délia sofre adversidades e há sempre alguém que
se interpõe (Martins 2016, 37): um homem com quem ela se
relacione (Tibulo. Elegias, I. 2, 5), a alcoviteira (Tibulo. Elegias,
I. 5) ou mesmo a porta trancada (Tibulo. Elegias, I. 2), de modo
que o próprio poeta, na elegia 1.5, em mais um episódio de
996
A presença das mulheres na Poesia e na História

separação, lembra os versos de amor bucólico por ele cantados,


retratando-os como fruto da sua imaginação (Tibulo. Elegias,
I. 1. 19-36).
Além do já mencionado Apuleio, Ovídio, poeta
contemporâneo a Tibulo, também menciona Délia nos seus
Amores, em um poema no qual lamenta a sua morte prematura,
ela é apresentada como o primeiro amor de Tibulo (Ovídio.

TI O
AR
Amores, III. 9. 31, 51-52), em referência ao fato de que ela

R ISÃ
é celebrada no primeiro livro, em contraste com Nêmesis, a

LH
puella do livro 2.

PA V
Referências
M E
Fontes históricas
O R
APULEI PLATONICI MADAURENSIS OPERA QUAE
SUPERSUNT: Pro se de magia liber (Apologia). 1972. Ed.:
C A

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R

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ÃO PA

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Maronis Opera). Oxford: Oxford.
OUDIUS. 1977. Amores (Ovid in Six Volumes). Cambridge:
R ÃO

Harvard University Press.


SEXTUS PROPERTIUS ELEGIARUM LIBRI IV. 2006.
VO RS

Edited: P. Fedeli. Müchen & Leipzig: De Gruyter - Biblio-


N

theca Scriptorum Graecorum et Romanorum Teubneriana.


FA VE

TIBULLUS. 1971. Albii Tibulii Aliorumque carminum libri tres.


Ed.: F. W. Lenz and G. K. Galinsky. Leiden: Brill.

Obras de referência
BACA, A. R. 1968. The role of Delia And Nemesis In The
Corpus Tibullianum, Emerita - Revista de Linguística y Filología
Clásica, vol. 36, p. 49-56.
KENNEDY, D. 2017. What’s in a name? Delia in Tibullus
1.1, The Classical Quarterly, vol. 67, n. 1 p. 193-98.
997
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

MALTBY, R. 2002. Tibullus: Elegies. Text, introduction and


commentary. Cambridge: Francis Cairns.
MARTINS, M. H. A. 2016. A Elocução do Amor em Tibulo.
Dissertação de Mestrado em Letras defendida na Universidade
Federal do Ceará – UFC.

TI O
AR
R ISÃ
LH
PA V
M E
O R
C A R
ÃO PA
R ÃO
VO RS
N
FA VE

998
Corina (Ovidiana)
por Guilherme Horst Duque

Corina (Cŏrinna, ae, f. – Gr. κόρη) é a personagem criada


por Ovídio e celebrada pelo poeta ao longo de seus três livros

TI O
AR
de elegias eróticas, os Amores, seguindo a tradição estabele-

R ISÃ
cida por Catulo, Galo, Tibulo e Propércio de dedicar elegias

LH
amorosas a uma puella literária. Seu nome, derivado do grego
κόρη – kore (menina), é também uma alusão à poetisa lírica

PA V
grega homônima do século V aEC. A primeira aparição de
M E
Corina nos Amores se dá na quinta elegia do primeiro livro
O R
(Am. I, 5.9), onde se lê o desenrolar de uma união sexual em
uma tarde quente. O poeta se encontra em um quarto privado,
C A

parcialmente escuro e plácido, quando a jovem aparece de


R

cabelos soltos, vestindo apenas uma túnica translúcida, e,


ÃO PA

após um breve jogo erótico de procura em resistência, o casal


se entrega aos prazeres do sexo. A atmosfera onírica dessa
primeira aparição da personagem marcará o caráter elusivo da
R ÃO

puella ao longo das elegias. Nos Amores, a presença de Corina


parece muitas vezes periférica, até mesmo nos poemas em que
VO RS

ela figura como personagem central. Entre eles, destaca-se


N

Am. II, 13, em que a jovem encontra-se em risco de vida após


FA VE

submeter-se a um procedimento abortivo (tema raro na poesia


augustana). Ovídio abre a elegia descrevendo o estado delicado
da saúde de Corina, demonstrando ao mesmo tempo preocu-
pação e ira, pois a tentativa de aborto se deu sem o seu conhe-
cimento. No sétimo verso do poema, no entanto, o poeta se
volta a divindades egípcias a quem pede socorro, e o poema
se torna um catálogo de deuses à moda alexandrina. Corina
retorna apenas nos versos finais, em que Ovídio promete
dedicar uma oferta aos deuses, tendo seu pedido atendido,
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

com a inscrição (Am. II, 13, 25): «seruata Naso Corinna» (Nasão,
pela cura de Corina). Semelhantemente, Corina também tem
um papel importante em Am. II, 6 (elegia em que se lamenta
a morte do papagaio da jovem, seguindo o modelo de Catul.
II), em Am. II, 11 (em que o poeta lamenta a ausência da
jovem, que se encontra em viagem, e os perigos de se partir em
jornadas ultramarinas) e em Am. II, 12 (em que o poeta come-

TI O
AR
mora o acesso que conquistou a intimidades com a jovem).

R ISÃ
Em todos esses casos, porém, a jovem não é mais que o meca-
nismo introdutor de um outro tema que será desenvolvido

LH
pelo poeta, a saber, a morte do papagaio, a invectiva à ausência

PA V
da amante, e a celebração da habilidade de sedução do poeta,

M E
respectivamente. Outras breves menções anedóticas de Ovídio
O R
a Corina podem ser encontradas em Am. I, 11; II, 8; II, 17;
II, 19; III, 1; III, 7; e III, 12, além de duas outras passagens
C A

na Ars Amatoria (Ars III, 538) e nos Tristia (Tr. IV, 10, 60).
R

De fato, muitas outras elegias dos Amores relatam situações


ÃO PA

pelas quais Ovídio passa com uma amante não nomeada que
poderia ser interpretada como Corina. No entanto, em mais
de uma ocasião o poeta alude a relações que teve com outras
R ÃO

mulheres (cf. por exemplo Am. II, 10 e III, 7, 23-24), o que nos
impede de afirmar definitivamente que em todos os encontros
VO RS

eróticos reportados nos Amores a amante anônima seja de fato


N

Corina.
A historicidade das puellae elegíacas é um tema deba-
FA VE

tido desde a Antiguidade clássica, e em duas das menções à


Corina listadas acima Ovídio demonstra que sua personagem
foi submetida ao mesmo escrutínio da curiosidade popular
(cf. Am. II, 17, 28-30 e Ars III, 538). Seguindo comentadores
e poetas antigos, o entendimento comum teria sido de que por
trás dos nomes usados pelos poetas elegíacos em seus poemas
existiriam mulheres reais com quem os poetas teriam casos
amorosos. Tal é a interpretação registrada, por exemplo, por

1000
Apuleio em Apologia (10.2-4), que identifica Clódia (Lésbia),
Hóstia (Cíntia) e Plânia (Délia) como as amantes históricas de
Catulo, Propércio e Tibulo – note-se, porém, que a identidade
de Corina não figura na lista. Evidentemente, não temos meios
de comprovar se tais equivalências seriam factuais ou não,
mas desde meados da década de 1980 a crítica literária tem
enfatizado a textualidade da puella elegíaca, lendo-a como um

TI O
AR
recurso literário, um elemento estrutural do gênero elegíaco

R ISÃ
sem vínculos com a realidade. Esse é um traço que marca, por

LH
exemplo, os estudos de Maria Wyke, Paul Veyne e Duncan F.
Kennedy em meados das décadas de 1980 e 1990. Estudiosos

PA V
mais recentes, no entanto, como Sharon L. James, buscam
M E
conciliar a ficcionalidade dessas personagens com as condi-
O R
ções materiais históricas do período em que os textos que as
imortalizaram foram escritos.
C A

Em termos gerais, o status social das puellae é ambíguo.


R

Conforme aponta Sharon L. James (2003, IX), elas são


ÃO PA

mulheres socialmente independentes de uma figura masculina,


mas dependentes financeiramente dos homens que seduzem.
O jogo elegíaco, portanto, seria a tensão entre as necessidades
R ÃO

materiais das jovens e a resistência dos poetas em suprir tais


necessidades. Nas raras vezes em que as condições materiais
VO RS

das puellae são mencionadas, o que se tenta enfatizar são geral-


N

mente artigos de luxo ou supérfluos. Corina, por exemplo,


FA VE

é dona de duas escravas cuja função destacada é arrumar seu


cabelo, Nape (Am. I, 11) e Cipássis (Am. II, 7; 8); além das
escravas, ela também tem um papagaio de estimação, perso-
nagem principal de uma elegia construída em forte diálogo
com Catulo II (Am. II, 6). Se ampliarmos o escopo do inven-
tário para incluir uma elegia contendo uma amante que pode
ou não ser identificada como Corina, temos ainda tratamentos
capilares e compra de perucas importadas (Am. I, 14) suge-
rindo um acesso pelo menos moderado a artigos de luxo.
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Mas apesar da dependência financeira dos amantes que,


conforme as convenções do gênero, seriam explorados por
elas, as puellae desfrutam de certa liberdade social, tendo o
poder de rejeitar amantes quando convém (Am. I, 12; II, 17)
e cultivar múltiplos romances simultâneos como forma de
potencializar os lucros (cf. Am I, 8). Por isso, elas são com
frequência comparadas às meretrizes cômicas. No entanto, é

TI O
AR
importante notar que os acordos de compensação financeira

R ISÃ
em troca de favores sexuais, cujos termos são geralmente claros

LH
na comédia, são muito mais voláteis na elegia. Apesar dos
indícios de que as puellae tenham uma expectativa de ganho

PA V
material em seus romances, os termos da transação não são
M E
prescritos ou combinados antecipadamente, mas são condu-
O R
zidos informalmente em um jogo de solicitação e resistência
entre a amante e o poeta (cf. e.g. Ars I, 417-436). A única
C A

menção a uma espécie de contrato formal entre poeta e puella


R

se encontra em Propércio (III, 20), que, na interpretação de


ÃO PA

Friedrich Leo (1900), se trata de uma elevação dos contratos


com meretrizes típicos da comédia ao campo da elegia, onde
o objeto do contrato deixa de ser os serviços contratados por
R ÃO

meio do pagamento de um valor acordado, passando a ser


promessas de fidelidade eterna (cf. por exemplo Am. III, 12,
VO RS

16).
N

A maior parte das elegias protagonizadas por Corina


FA VE

encontram-se no segundo livro dos Amores, em especial no


conjunto que se estende de Am. II, 7 a Am. II, 14. Diferente
das demais menções anedóticas à jovem encontradas nos livros
I e III (cf. lista no primeiro parágrafo), esse grupo de elegias
parece narrar uma série de eventos possivelmente conectados
revelando um período turbulento na relação de Corina com
Ovídio. Am. II, 7 e 8 indicam que o poeta estaria tendo um caso
com Cipássis, uma das escravas de Corina, tendo sido desco-
berto e confrontado pela jovem. Ele se defende das acusações
1002
A presença das mulheres na Poesia e na História

tentando convencê-la de que ele não teria atração por uma


escrava, mas, embora ele suponha que tenha sido convincente
(Am. II, 8, 9-10), as elegias seguintes retratam um amante
torturado pelo próprio amor (Am. II, 9a e 9b) e indeciso entre
duas amantes (Am. II, 10), até que em Am. II, 11, Corina parte
em uma viagem apesar dos protestos do poeta. É importante

TI O
AR
esclarecer que o texto em si não faz nenhuma ligação explícita

R ISÃ
entre os episódios, mas é possível relacioná-los tendo em mente

LH
o lugar comum da viagem como tentativa de se escapar a um
amor danoso (ver, por exemplo, Plauto Merc. 80-84, e Ovídio

PA V
Rem. 213-224). Os eventos de Am. II, 12, elegia seguinte,
M E
reforçam tal hipótese, pois o poeta celebra o acesso renovado
O R
à jovem, que presumivelmente teria retornado. À união do
C A

casal, então, seguem-se as elegias da tentativa de aborto a que


R

Corina se submete, e embora Ovídio inicialmente presuma


ÃO PA

ser o pai do feto interrompido, nos versos 5 e 6 ele põe em


dúvida a própria certeza da paternidade. Entre todas as elegias
R ÃO

eróticas romanas que chegaram até nós, Am. II, 13 e 14 são


as únicas que retratam uma tentativa de aborto, bem como
VO RS

suas consequentes complicações. Lidas no contexto de um


N

momento turbulento da relação de Ovídio e Corina, levan-


FA VE

do-se em consideração a própria viagem da jovem, o papel de


tais elegias na narrativa dos Amores fica mais claro.
Menções à Corina fora do corpus ovidiano são extrema-
mente limitadas mas existem. Marcial refere-se a ela em três
epigramas (Epigr. V, 10; VIII, 73 e XII, 44), nas três ocasiões
reportando-se à obra de Ovídio, cumprindo, assim, a promessa
de Ovídio em Am. I, 3 de que o seu nome e o de sua amante
estariam para sempre ligados.
1003
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Referências
Fontes históricas
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lated by C. P. Jones. Cambridge, MA: Harvard University
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WYKE, M. 1994. Taking the woman’s part: engendering
Roman love elegy, Ramus, n. 23, p. 110-128.
1004
Dipsas
por Gabriel Paredes Teixeira

Dipsas é uma personagem fictícia presente no oitavo poema


do primeiro livro de Amores, de Ovídio. A obra pertence à

TI O
AR
tradição da elegia erótica latina, que possui como uma de

R ISÃ
suas principais características a grande ênfase às aventuras

LH
e desventuras amorosas do poeta (Citroni et al. 2006, 548).
Dipsas é apresentada como uma velha alcoviteira (lena) que

PA V
tenta convencer a amada do poeta a abandoná-lo em prol de
M E
amantes ricos. A velha é descrita como uma feiticeira conhe-
O R
cedora das artes mágicas e seus conselhos à jovem amada
(que Ovídio não nomeia no poema, mas que podemos crer
C A

tratar-se de Corina) ocupam a maior parte dos versos.


R

A presença da persona do autor no interior da narrativa


ÃO PA

e sua interação com a lena nos versos finais do poema sugerem


que as ações narradas sejam contemporâneas à atividade literária
de Ovídio, o que as localizariam durante o período augustano e,
R ÃO

provavelmente, em Roma. Os eventos se passam na casa da amada


do poeta, que, escondido atrás da porta, ouve todo o monólogo
VO RS

da velha e os conselhos dirigidos à jovem.


N

A posição passiva do autor, que é transformado em mero


FA VE

espectador das palavras da lena durante a maior parte do poema


(v. 23-108), enfatiza o poder persuasivo da velha. Esse dado é
especialmente relevante quando considerado tratar-se do poema
mais longo e que ocupa a posição central no primeiro livro de
Amores (que é composto de um total de 15 poemas). O destaque
dado à Dipsas pela narrativa sugere que a lena seja uma verdadeira
antagonista ao narrador na disputa pelo amor da jovem, que ela
tenta aliciar através da retórica – mesma ferramenta utilizada pelo
poeta no decorrer da obra (Gross 1996).
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

O nome Dipsas é derivado do verbo grego διψάω - dipsáō,


que significa «ter sede» ou «estar sedento». Conforme o poema,
o nome estaria de acordo com o costume da velha de embebe-
dar-se. Velhas bêbadas (anus ebriae) constituem um tema recor-
rente na literatura latina (Pollard 2008, 138), tendo sido utilizado
por Ovídio nos Fastos (II. 571-582), para caracterizar uma velha
feiticeira. O termo dipsas, em latim, também era utilizado para

TI O
AR
designar um tipo de serpente, cuja picada era capaz de gerar

R ISÃ
sede extrema em suas vítimas, o que sugere uma natureza traiço-

LH
eira da personagem, que é comparada a um animal peçonhento
(Cokayne 2003, 146).

PA V
As capacidades mágicas atribuídas à Dipsas pelo poema
M E
são várias: a reversão do curso das águas dos rios, a utilização de
O R
ervas, da secreção das éguas no cio (substância conhecida como
hippomanes e utilizada para a confecção de poções de amor) e
C A

do rhombo (instrumento composto de fios ao redor de um fuso,


R

utilizado para atrair o amor), o controle do clima e dos astros, a


ÃO PA

invocação de fantasmas e a capacidade de transformar-se em ave.


Além disso, os versos atribuem à velha pupilas duplas capazes de
lançar raios.
R ÃO

A caracterização de Dipsas e seus poderes mágicos a


aproxima de outras feiticeiras da literatura latina, como as velhas
VO RS

Canídia e Ságana (de Horácio) ou as feiticeiras da Tessália, repre-


N

sentadas por Ericto (de Lucano), Méroe e Pânfila (de Apuleio).


FA VE

A lena que tenta aliciar a amada e é descrita como uma feiticeira


constitui um tópos da elegia latina. A fonte mais antiga desse
tema é um poema de Tibulo (Elegias, I. 2), que pode ter servido
de inspiração para os poemas semelhantes de Propércio (Elegias,
IV. 5) e de Ovídio (Amores, I. 8) (Maltby 2009, 281).
O autor conscientemente aproxima Dipsas de Circe,
ao afirmar que a velha é conhecedora dos «encantamentos de
Eeia» (Aeaea carmina) – ilha habitada pela famosa feiticeira grega
(Homero. Odisseia, X. 135-6). Contudo, a caracterização da velha
1006
A presença das mulheres na Poesia e na História

recorre mais aos temas populares latinos sobre a feitiçaria do que


aos gregos. A presença da pupila dupla, a invocação de fantasmas,
a transformação em ave e a utilização do rhombo para atrair o amor
são crenças bastante difundidas na cultura latina com relação à
feitiçaria.
A crença de que mulheres com a pupila dupla pudessem

TI O
gerar destruição através do olhar pode ser encontrada na enci-

AR
clopédia escrita por Plínio, o antigo (História Natural, VII. 18).

R ISÃ
Transformações de feiticeiras nas aves striges – corujas que se

LH
alimentavam de sangue, principalmente de crianças – são apre-

PA V
sentadas por Ovídio (Fastos, VI. 131-140) e Petrônio (Satyricon,
M E
LXIII). A utilização do rhombo como uma ferramenta mágica para
O R
atrair o amor foi representada na poesia de Propércio (Elegias,
C A
III. 6. 25) e de Marcial (Epigramas, IX. 29. 9). A invocação de
R

fantasmas é outra prática recorrente das feiticeiras e podia ser


ÃO PA

utilizada para vários fins, como a previsão do futuro (cf. Horácio.


Sátiras, I. 8; Lucano. Farsália, VI. 507-830) ou a realização de
vinganças e assassinatos (Apuleio. Metamorfoses. IX. 29).
R ÃO

Embora tenha sido apresentada em apenas um poema,


alguns autores enxergam em Dipsas a inspiração para «a Velha»
VO RS

(la Vieille), personagem do poema medieval Roman de la Rose,


N

de Jean de Meung (séc. XIII). No poema, profundamente


FA VE

influenciado pela obra de Ovídio, a Velha defende a utilização


da persuasão pelas mulheres para a obtenção de presentes e
favores de amantes ricos, em um discurso muito semelhante
àquele utilizado por Dipsas para tentar convencer Corina.
No romance de Meung, a Velha cita Ovídio, ao afirmar que
o amor do poeta vale menos do que algumas bebidas – o que
também a aproxima de Dipsas, com sua caracterização como uma
anus ebria e seu desprezo pelo poeta (Fyler 2009, 414).
1007
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Referências
Fontes históricas
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by A. Hanson. Cambridge, MA: Harvard University Press.
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HORACE. 1929. Satires – Epistles – Art of Poetry. Translated

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Cambridge, MA: Harvard University Press.

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Cambridge, MA: Harvard University Press.
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OVID. 1914. Heroides – Amores. Translated by G. Showerman,
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Harvard University Press.


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PETRONIUS; SÊNECA. 1987. Satyricon – Apocoloncyntosis.


Translated by M. Heseltine; W. Rouse. Cambridge, Mass.;
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London, Eng.: Harvard University Press.


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Cambridge, MA: Harvard University Press.


FA VE

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In: CITRONI, M. Literatura de Roma Antiga. Tradução de W.
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Gulbenkian, D. L. 2006.
COKAYNE, K. 2003. Experiencing old age in ancient Rome.
London and New York: Routlegde.
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A presença das mulheres na Poesia e na História

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MALTBY, R. 2009. Tibullus and Ovid. In: KNOX, P. (org.) A
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art: new thoughts on an old image, Magic, Ritual, and Witch-

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Canídia e Ságana
por Semíramis Corsi Silva

Canídia e Ságana são duas personagens feiticeiras (veneficae,

TI O
sagae, anus, maleficae) criadas por Quinto Horácio Flaco (65-8

AR
aEC), poeta latino que mais escreveu sobre o tema da magia.

R ISÃ
Elas aparecem nas Sátiras (publicadas entre 35 e 30 aEC) e

LH
nos Epodos (publicados em 30). O Livro I das Sátiras foi o

PA V
primeiro publicado por Horácio, embora seja possível que

M E
alguns Epodos tenham sido escritos antes de algumas Sátiras.
O R
Não podemos precisar, portanto, a ordem exata de aparição
dessas personagens, havendo pesquisadores que apontam o
C A

Epodo 5 como tendo sido escrito antes da Sátira I, 8, os dois


R

principais poemas em que Canídia e Ságana são protagonistas


ÃO PA

(Tupet 1975, 318; Paule 2017, 44).


Nos Epodos, a primeira menção à Canídia está em no
R ÃO

Epodo 3, quando ela é referida como uma mulher pérfida que


produz venenos/magias (venena). Depois disso, Canídia apare-
cerá no Epodo 5. Nesse poema dramático, Horácio relata a
VO RS

morte cruel de um menino para a preparação de uma poção


N

mágica (venenum, potio) a fim de conquistar um homem


FA VE

chamado Varo. Lucano (Farsália, 6, 558-564), também faz


alusão a esse tipo de crime relacionado a feiticeiras como
Ericto, o que parece ter sido uma crença popular entre os
romanos. A morte de uma criança é assassinato forçosamente
premeditado, recaindo sobre a Lex Cornelia de sicariis et vene-
ficis, que vigorava na época de escrita dos poemas e que pautou
o crime contra praticantes de magia (veneficus/venefica). Uma
inscrição encontrada no Esquilino em Roma, no túmulo de
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Iucundus, uma criança de quatro anos, nos remete à crença


em assassinatos de crianças realizados por feiticeiras (CIL, VI,
19747, Roma, dat. 1 a 50 EC).
Voltando ao Epodo 5, outras feiticeiras aparecem na
cena: Véia, Fólia e Ságana. Horácio apresenta o trabalho de
feiticeiras em associação, havendo uma hierarquia entre elas.
As feiticeiras apresentam características em comum, mas também

TI O
AR
traços de individualismo, há poderes diferenciados respeitados.

R ISÃ
Elas também apresentam certo profissionalismo, pois conhecem

LH
bem os gestos que compõem o ritual. Canídia se destaca nesse
poema e, da mesma forma, ela aparecerá mencionada sozinha

PA V
novamente nas Sátiras II, 1 e II, 8 e no Epodo 17, esse último
M E
sendo um poema dedicado somente à ela, quando o poeta se
O R
redime perante à feiticeira (verso 1 ao 52) e lhe deixa falar
(verso 53 ao 81).
C A

Canídia aparece com Ságana também na Sátira I, 8, consi-


R

derada pelos críticos como a sátira de caráter mais agressivo


ÃO PA

escrita por Horácio. Diferentemente do Epodo 5, a Sátira I, 8


não possui um tom trágico e sim um humor satírico. Nesse
poema, Horácio imagina um tronco de figueira, no qual foi
R ÃO

esculpida a figura do Deus Priapo, assistindo a cena em que


Canídia e Ságana procedem encantamentos (carmina). O local
VO RS

do ritual é o Esquilino, antigo cemitério de escravizados e


N

plebeus que Mecenas, o patrono das artes da época do impe-


FA VE

rador Augusto (27 aEC – 14 EC), transformou em um jardim,


onde Canídia e Ságana vão em busca de ossos e ervas maléficas
e a fim de atrair a alma dos mortos (manis/animas/umbrae) para
um ritual necromântico.
Como no Epodo 5, na Sátira I, 8, as feiticeiras se encon-
tram em um grande estado de agitação. Segundo Anne-Marie
Tupet (1976, 293), as feiticeiras da Antiguidade conheciam as
propriedades de drogas tóxicas de origem vegetal, o uso dessas
drogas poderia ser a causa de estados de transe e movimentação
1012
rápida durante os rituais. Dessa maneira, tal representação mais
do que uma fantasia do poeta poderia reproduzir uma realidade
da feitiçaria antiga. Também na Écloga 8, de Virgílio, pode
ser notado este estado de agitação da feiticeira. Tupet (1976,
301) acrescenta que esse é um gesto ritual comum, praticado
pelas Bacantes, por exemplo, que usavam vinho para entrar
em êxtase. As drogas, o haxixe em especial, eram absorvidas

TI O
AR
como poções, fumo ou unguentos.

R ISÃ
Outro elemento interessante das feiticeiras literárias

LH
que Horácio não deixa de utilizar em suas personagens é seu
estado animalesco em algumas ocasiões. Canídia e Ságana

PA V
uivam (ululantem), escavam a terra com as unhas e rasgam
M E
um cordeiro negro com os dentes na Sátira I, 8. E Horácio
O R
compara Ságana a um javali (aper) em fuga no Epodo 5.
C A
Na Sátira I, 8, Horácio coloca Canídia, como no Epodo
R

5, com os cabelos em desordem, o que talvez fosse uma forma


usada pelo poeta para lhe conferir um aspecto horrendo e
ÃO PA

até engraçado. Canídia usa uma longa toga preta e tem os


pés descalços. Assim, já em Horácio notamos um estereótipo
R ÃO

comum de feiticeiras que dura até os dias atuais em certas repre-


sentações. No final da Sátira I, 8, o espantalho do deus Priapo
VO RS

não aguenta mais ver a cena e emite sons engraçados para


N

causar o aspecto cômico, parecidos com um flato. Com esse


som, Priapo coloca em fuga as duas feiticeiras. Aqui Horácio
FA VE

as expõe ao ridículo. Canídia perde os dentes e Ságana, de


cabelos arrepiados, deixa o material que elas recolheram cair
de seus braços. O fato de os dentes de Canídia caírem pode
nos indicar o uso de uma dentadura, o que poderia se referir
à personagem como uma mulher velha (Tupet 1976, 290).
Portanto, as feiticeiras de Horácio são mulheres idosas, um
modelo comum em outras representações de feiticeiras da lite-
ratura latina.
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Canídia terá mais duas pequenas aparições nas Sátiras.


Na Sátira II, 1, ela é mostrada como aquela que usa do veneno
de Albúcio, um romano conhecido, possivelmente, como
tendo envenenado sua esposa. A aparição de Canídia na
Sátira II, 8, nos últimos versos desse que é o último poema
dos dois livros de Sátiras, encerra os poemas satíricos, sendo
que ela aparece nessa última Sátira como uma mulher capaz

TI O
AR
de contaminar alimentos.

R ISÃ
A identidade da possível Canídia que teria inspirado

LH
Horácio suscitou diversas hipóteses. Uma delas seria que
Canídia era Cecília de Como, que aparece em poemas de

PA V
Catulo sob o pseudônimo Mecília (Herrmann, 1958). Em outra
M E
interpretação, também de Leon Herrmann, Canídia poderia
O R
ser a irmã de Canídio Craso, um político romano da gens
Canídia que se tornou cônsul em 40 aEC (Tupet 1976, 294).
C A

Ou, ainda, ela poderia ser Cecília, filha de Clódia Metelli (Paule
R

2017, 5). Conforme outra hipótese bastante popular e advinda


ÃO PA

de informações de Pompônio Porfírio, um escritor do século


II EC que comenta as obras Horácio, Canídia seria uma fabri-
cante de unguentos napolitana chamada Gratídia, talvez uma
R ÃO

ex-amante que o poeta tinha raiva. Assim, os unguentos de


Gratídia seriam identificados com poções mágicas pelo poeta.
VO RS

Horácio não a atacaria diretamente porque isso poderia lhe


N

trazer problemas legais. Sendo possível, por isso, que Horácio


FA VE

tenha empregado uma prática usada pelos poetas romanos de


dar às mulheres sobre as quais escreviam um pseudônimo de
mesmo padrão métrico do nome real. Maxwell Paule (2017,
3), no entanto, acredita que essa informação de Porfírio pode
ter confundido os estudiosos, não havendo nenhuma Gratídia
por trás da Canídia literária. Para esse pesquisador, é mais inte-
ressante abordar Canídia como uma personagem puramente
ficcional, cujos detalhes foram moldados de forma consciente
pelo poeta.
1014
A presença das mulheres na Poesia e na História

Já de acordo com estudos filológicos, o nome de Canídia


poderia vir de canis (cão, cadela). Ou, talvez, do termo canus,
branco, acrescentado ao sufixo idius/idia, dando a ideia de ser
uma mulher de cabelos brancos, já envelhecida, no sentido
figurado (Tupet 1976, 296). Ságana, por sua vez, poderia ter
seu nome vindo do vocábulo saga/ae, que significa feiticeira
em latim, dessa maneira, ela seria a feiticeira por excelência.

TI O
AR
Segundo Cícero (De Divinatione, I, 30), sagire significava ter

R ISÃ
uma percepção profunda e, por isso, mulheres idosas eram

LH
chamadas de sagae anus, aquelas que conheciam muitas coisas,

PA V
também os cachorros (canes) podiam ser chamados de sagaces.

M E
Já Pompônio Porfírio diz que Ságana teria sido uma liberta de
O R
um senador chamado Pompônio (Tupet 1976, 297). Ságana
é referida na Sátira I, 8 como Sagana maiore, o que poderia
C A

dar-nos a entender que ela era uma mulher velha ou que


R

haveria duas feiticeiras com esse mesmo nome, uma mais


ÃO PA

jovem e a mais velha que acompanha Canídia na Sátira I, 8.


Diante do que foi apresentado, acreditamos que, mesmo
R ÃO

que filólogos e demais estudiosos tentem encontrar pessoas


reais ou raízes para os nomes das personagens, é importante
perceber como Horácio lhes atribui um comportamento que
VO RS

acredita ser próprio de feiticeiras, lhes caracterizando como


N

uma espécie de modelo de feiticeira dentro de um novo topos


FA VE

literário, uma vez que, diferentemente das belas feiticeiras


gregas da literatura grega, Canídia e Ságana inauguram o
modelo da feiticeira feia e velha que será comum na literatura
romana a partir de então. Além disso, as feiticeiras de Horácio
refletem uma crença generalizada de sua época na capacidade
feminina em agir de maneira sobrenatural. Há, dessa forma,
elementos interessantes de gênero que podem ser altamente
explorados na construção dessas personagens.
1015
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Sobre o momento histórico de escrita e publicação dos


poemas, por volta de 40 e 30 aEC, sabemos que em 33 aEC,
Agripa, então edil, proíbe a permanência de astrólogos e magos
em Roma. Pouco tempo depois, em 27 aEC, a ascensão de
Otávio como Augusto e Príncipe inaugura um novo ciclo,
em que o governante se vê como único intérprete dos deuses
(Grimal 1992, 37) e passa a promover uma série de pautas

TI O
AR
morais. Era um período de transformações políticas intensas,

R ISÃ
no qual era preciso controlar os romanos, seus atos e as gran-

LH
dezas do Império conquistado.
Assim, a magia (veneficia, maleficium, carmen, ars magica)

PA V
estaria como a cobiça, a avareza, o adultério, também criticados
M E
por Horácio em sua obra, colocando em risco o patrimônio
O R
ético sobre o qual se estrutura a sociedade romana. Ao escrever
C A
seus poemas, Horácio estabelece um diálogo com a camada
social que faz parte e mostra que não admite ser a magia algo
R

masculino, isso contraria o ideal guerreiro romano, indo em


ÃO PA

oposição à construção do austero, resistente e verdadeiro


cidadão de Roma. As ímpias práticas de magia se opunham
R ÃO

aos costumes ancestrais (mores maiorum), só podendo ser uma


prática de mulheres, consideradas desmedidas, especialmente
no que diz respeito à libido e ao amor. Porém, mesmo sendo
VO RS

considerada uma prática feminina, a magia de Canídia e


N

Ságana era cruel e digna de maldição, como mostra as pala-


FA VE

vras do menino morto no Epodo 5, mas também era ridícula


e motivo de risada, como vemos na Sátira I, 8.

Referências
Fontes históricas
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Translated by William Armistead Falconer. Cambridge/
London: Harvard University Press (Loeb Classical Library).
1016
A presença das mulheres na Poesia e na História

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Disponível em: http://db.edcs.eu/epigr/epikl.php?s_spra-
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à la fin du régne d’Auguste. Vol. 01. Paris: Les Belles Lettres.


GRIMAL, P. 1992. O século de Augusto. Lisboa: Edições 70.
HERRMANN, L. 1958. Canidia, Latomus. Revue d’Études
Latines, XVII, p. 665-668.

1017
FA VE
VO RS
R ÃO
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C A R
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R ISÃ
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LH
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Medeias Latinas
por Fernanda Messeder Moura

À figura mítica de Medeia (Μήδεια) associam-se quatro atri-

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butos míticos essenciais: sua genealogia divina, sua condição

AR
de estrangeira, o uso de feitiços e o assassinato dos próprios

R ISÃ
filhos. A expansão geográfica e cultural das narrativas ligadas

LH
à Medeia, desde a sua proveniência da região da Cólquida,

PA V
na costa do Mar Negro (conforme, por exemplo, Píndaro,

M E
ca. 518 aEC - 438 aEC, na quarta ode pítica), até a reelabo-
O R
ração da sua figura pelos latinos, com acréscimos de aspectos
ritualísticos de tradição etrusca (como na tragédia Medeia ou
C A

Argonautas, de Ácio, 170 aEC - ca. 86 aEC) e a forma com


R

que esses atributos trágicos e místicos foram acrescentados por


ÃO PA

autores posteriores leva mesmo à necessidade de se falar em


Medeias, no plural.
R ÃO

As fontes documentais antigas do mito de Medeia esten-


dem-se desde os séculos VIII aEC até depois do século I EC,
ou seja, dos primórdios da literatura em grego, com Hesíodo
VO RS

(ca. 700 aEC), até poetas dos últimos estágios da literatura


N

da antiga Roma, como Sêneca (ca. 4 aEC - 65 EC) e Valério


FA VE

Flaco (ca. 45 EC - ca. 90 EC). Passam ainda por diversos


gêneros, como as odes de Píndaro, a tragédia de Eurípides
(ca. 480 aEC - ca. 405 aEC) e, em latim, de Ênio (239 aEC -
ca.169 aEC), Ácio, Pacúvio (ca. 220 aEC - 130 aEC), Sêneca
e Ovídio (43 aEC-17 EC), este último também a referir-lhe
em versos líricos e épicos, e incluem alusões esparsas seja em
prosa seja em verso, em Plauto (ca. 254 aEC - ca. 184 aEC),
Cícero (106 aEC - 43 aEC), Horácio (65 aEC - 8 aEC),
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Propércio (ca. 50 aEC - ca.15 aEC), Juvenal (ca. 55-60 EC-


ca.125 EC), Quintiliano (35 EC - ca. 100 EC) e Tácito (56
EC - ca.120 EC).
Medeia é um dos mitos ligados pela genealogia à primeira
geração dos deuses gregos, àquela dos titãs, conforme, histo-
ricamente, registros poéticos primeiros (Teogonia 956-960).
Ela é filha de Idia, uma Oceânide (cujos pais são os titãs Oceano

TI O
AR
e Tétis), e de Eetes, rei da Cólquida, ele próprio filho de outra

R ISÃ
Oceânide, Perseis, e de Helios, deus sol. Em outras fontes,

LH
Hécate é apresentada como mãe de Medeia.
Aspecto central ao mito de Medeia e às suas adaptações

PA V
pelos poetas antigos é seu amor por Jasão, herói que liderou
M E
os Argonautas, uma geração antes da Guerra de Troia, em
O R
busca do velo de ouro. Hesíodo atribuiu à própria deusa do
amor, Afrodite, a união de Medeia e Jasão (Teogonia, 961-962);
C A

Píndaro reduz a intervenção de Afrodite à divindade que traz


R

do Olimpo a ave com a qual ensinará, a Jasão, o artifício pelo


ÃO PA

qual será ele a despertar o amor de Medeia e a fazê-la perder


o respeito pelos próprios pais (Pítica 4, 213-223).
Dois atributos são recorrentes na figuração mítica de
R ÃO

Medeia em seu tratamento poético: a ligação de sua condição


de estrangeira com feitiços a partir de elementos da natureza
VO RS

(por exemplo em Píndaro, Pítica 4, 233) e sua condição de


N

assassina (Pítica 4, 250). Quanto ao uso da magia, a relação


FA VE

de Medeia com Jasão fê-la ser aos poucos inserida na própria


narrativa dos Argonautas: em Homero (ca. 750 aEC), apenas
o nome de Jasão é evocado por outra feiticeira, Circe, tia de
Medeia, na Odisseia (12. 69-72). Já no período helenístico,
Apolônio de Rodes (ca. 295 a.C.), nas Argonáuticas, apresenta
Medeia como sacerdotisa de Hécate (Arg. 3. 250-255), atri-
buindo à ação de Eros, com sua flechada, o despertar do amor
por Jasão em Medeia (Arg. 3. 284). Antes, Píndaro concedera a
Medeia fala profética, na Ilha de Tera (Pítica 4, 13-56), acerca
1020
A presença das mulheres na Poesia e na História

da bem-sucedida passagem da nau de Jasão por entre as rochas


Simplégades, e atribuíra a ela a preparação dos antídotos (233),
que garantiriam a vitória de Jasão. Na tragédia latina, Sêneca
enfatiza a escolha das ervas por Medeia (Medeia, 705-730) e
expande geograficamente, para muito além da Grécia, para
margens dos rios que delimitam as fronteiras do mundo
romano, desde o Danúbio até o Tigre (Boyle 2014, 309), as

TI O
AR
localidades em que ela as busca para sua magia.

R ISÃ
Ao tratamento trágico do mito de Medeia, a condição

LH
de assassina se mostra central. Eurípides constrói o enredo de
sua tragédia a partir da chegada de Medeia em Corinto, onde

PA V
reinava Creonte e onde habita sua filha, Glauce, dada em casa-
M E
mento a Jasão, após sua expulsão de Iolco, região da Tessália, ao
O R
lado de Medeia, que fugia por ter sido responsável pela morte
de Pélias, rei de Iolco. Exacerba-se, com Eurípides, a figura
C A

da assassina, que, nesta versão, além de matar Glauce, torna-se


R

filicida, em vingança à perfídia de Jasão, que aceita receber


ÃO PA

a filha de Creonte como esposa em detrimento de Medeia.


Eurípides ainda retrata Medeia em fuga bem-sucedida após os
crimes, por intervenção de seu avô, Helios, que lhe permite
R ÃO

fugir pelos ares em uma carruagem por ele enviada para tanto.
Conforme referência de Cícero (Da República 3.9.14), o trage-
VO RS

diógrafo Pacúvio retratou em latim essa carruagem em que


N

foge Medeia como tendo sido levada por serpentes aladas.


FA VE

A recepção do mito de Medeia pelos romanos e sua


expansão em uma Medeia latina criam episódios que oferecem
aos séculos seguintes um panorama expandido em relação à
apresentação do mito na literatura grega, num movimento que
vai da Cólquida a Iolco, atravessa Corinto, passa por Atenas, e
retorna a Cólquida. Dos fragmentos que dispomos da tragédia
de Ácio, Medeia ou Argonautas, além de recuperar-se a asso-
ciação de Medeia à arte dos prodígios, soma-se a inspeção
das vísceras, prática divinatória empregada pelos romanos
1021
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

via tradição sobretudo etrusca, e ganha destaque a reverência


com que se endereça a Medeia o irmão, Absirto, ao tratá-la
como divindade (dia Medea). Ainda na tradição das antigas
peças trágicas em latim, Ênio qualifica a condição de Medeia
como a de exilada (Medea exul), fazendo-a evocar em primeira
pessoa o exílio para si e, para Jasão, a morte. Dos versos rela-
cionados à sua caracterização trágica, destacam-se a errância,

TI O
AR
a enfermidade de um espírito acometido por um amor cruel,

R ISÃ
o enfrentamento do parto pela mulher em ato de coragem três

LH
vezes superior ao do homem que combate na guerra, a ira, o
crime, a ruína e a invocação ao Sol. Os dois curtos fragmentos

PA V
de que dispomos da Medeia de Ovídio nos trazem falas da
M E
protagonista que denotam sua capacidade de salvar e destruir
O R
conforme o seu desejo e o estado em que pode entrar como
se tomada por uma divindade. Já no gênero lírico, no terceiro
C A

livro dos Tristes, Ovídio condensa em um único verso (9), na


R

nona elegia, caráter, nome e ação quando designa Medeia


ÃO PA

como ímpia em relação ao pai, e oferece explicação licenciosa


e poética no último dístico para o nome da cidade de Tomos,
por ter sido aquele o local em que Medeia teria desmembrado
R ÃO

o irmão. Ovídio, nas Heróides, compõe um retrato poético de


Medeia por seu próprio ponto de vista na carta que endereça a
VO RS

Jasão, sendo notável o passo em que diz ter-se tornado estran-


N

geira. Nas Metamorfoses, Medeia recebe tratamento épico no


FA VE

sétimo canto (Met. 1-424), primeiro referida em relação ao


pai, então nomeada na fala que endereça a si mesma (Met. 1.
9-13), passo em que Ovídio esboça o vão duelo entre razão
(ratio) e paixão (furor). Destaca-se o testemunho dos deuses do
pacto nupcial e das juras de amor (Met. 1. 46-47) de Medeia
de modo a ser chamada de esposa (Met. 1. 60-61). A partir do
verso 74, enfatiza-se a arte de sua magia, a escolha das ervas e
ritos de invocação, aspectos igualmente explorados na Medeia
de Sêneca.
1022
A presença das mulheres na Poesia e na História

A Medeia em recepção latina ainda se observa signifi-


cativamente com Cícero, que a menciona inúmeras vezes a
partir desses tragediógrafos latinos: nas Tusculanas (4. 32. 69),
cita versos de Ênio e Pacúvio, sem nomeá-los, dado repre-
sentativo no que tange à recepção dessa figura mítica em sua
configuração trágica à época da República. Cita-os nesse passo
de modo a repreender o amor de Medeia e a série de misérias

TI O
AR
que ele lhe ocasionou bem como a ousadia de Medeia em dizer

R ISÃ
ao pai a primazia que confere a seu marido na comparação do

LH
amor que nutria por um (Jasão) e por outro (seu pai). Em sua
defesa a Célio, já em contexto político, é notória a alusão a

PA V
Clódia como a Medeia do Palatino (Palatinam Medeam), isto é,
M E
a alusão a quem teria tentado vingar-se de quem a abandonou.
O R
Do sumário do mito oferecido por Higino (ca. 64 aEC -
17 aEC) é clara a distinção feita entre o status de donzela (uirgo)
C A

e mulher (mulier) na fala de Alcínoo, quando, entre colcos e


R

argivos, deliberou que Medeia fosse entregue ou ao pai ou ao


ÃO PA

marido, a depender de sua condição. Por intermédio de Arete,


esposa de Alcínoo, Jasão teria sido avisado por um mensageiro
dessa sentença e a desvirginado durante a noite numa caverna,
R ÃO

de modo a impedir que seu irmão, Absirto, a levasse de volta a


seu pai, Eetes. Os atributos que Higino confere à Medeia em
VO RS

seu relato sumário são os de estrangeira (aduenam), feiticeira


N

(ueneficam) e criminosa (scelerata), esse último a razão pela qual


FA VE

a sacerdotisa de Diana teria pedido o seu segundo exílio, o que


leva Medeia a retornar à Cólquida.
Foi esse aspecto posterior de feiticeira e infanticida que
marcou a recepção do mito de Medeia na modernidade. Como
sói dos escritos antigos em geral, deu-se pela primeira via do
latim, sobretudo por Ovídio e por Sêneca. Shakespeare, por
exemplo, faz menção à Medeia que se valeu de ervas encan-
tadas para rejuvenescer o idoso Jasão (Mercador de Veneza, 5.
1. 12-14). Desde a primeira edição da Medeia de Eurípides
1023
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

impressa em Florença no século XV, traduções em neo-latim


da tragédia foram também realizadas, por exemplo, por George
Buchanan, embora tanto as edições quanto suas traduções
tenham tido menor circulação e influência que suas versões
latinas, sobretudo as de Ovídio e Sêneca.

Referências

TI O
AR
Fontes históricas

R ISÃ
APOLLONII RHODII ARGONAUTICA. 1961. Hermann

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BESSONE, F. 1997. P. Ovidii Nasonis Heroidum Epistula XII:

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Paulo: Editora 34.


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1024
A presença das mulheres na Poesia e na História

HORNBLOWER, S.; SPAWFORTH, A.; EIDINOW, E.


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Oxford University Press.
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Ericto
por Anderson Martins
& Carlos Eduardo da Costa Campos

Os poetas latinos como Horácio e Ovídio povoaram o imagi-

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nário social romano e posterior com suas feiticeiras em cenas

R ISÃ
de amarração amorosa, produção de poções e sacrifício infantil.

LH
Entretanto, neste verbete, temos interesse em analisar outra
importante personagem deste cenário mágico da literatura latina:

PA V
Ericto (Ἐριχθώ), a feiticeira que o poeta Marco Aneu Lucano
M E
(século I EC) apresenta em sua obra Farsália, também conhecida
O R
como Bellum Ciuile.
Preliminarmente, frisamos que toda produção literária é obra
C A

de um contexto e não há como se desvincular autor e socie-


R

dade. Dessa forma, é importante apontar o contexto social de


ÃO PA

produção e a estrutura da obra, antes de darmos ênfase à perso-


nagem. Lucano era de Córdoba (região da Bética) e foi enviado,
ainda jovem, para Roma. Era sobrinho de Sêneca, o Jovem e
R ÃO

neto de Sêneca, o Velho. Na Vrbs ele teve contato com a filosofia


estóica, a literatura latina e grega, bem como os estudos retóricos.
VO RS

Acredita-se que a influência do estoicismo seja o resultado de sua


N

formação com o liberto Aneu Cornuto. Ademais, Lucano teria


FA VE

completado os seus estudos em Atenas entre os anos de 57 e 58


(Zientek; Thorne 2020, 1-14). Segundo Bruno Vieira (2011,
15), Lucano integrou o círculo de poetas que era patrocinado
pelo imperador Nero, bem como participou da magistratura e da
vida pública romana. Entretanto, a partir de 63, Lucano teve suas
relações desgastadas com Nero, tendo sido banido e participando
da conspiração de Pisão, que foi descoberta e levou o escritor ao
suicídio para evitar a execução de sua condenação (Vieira 2011,
17-18).
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

A obra, Bellum Ciuile (Guerra Civil ou Farsália), é uma narra-


tiva dos conflitos entre Júlio César e Pompeu Magno, entre 49 e
48 aEC. Laura Zientek e Mark Thorne (2020, p. 10 -14) argu-
mentam que essa obra plasma os temores da aristocracia romana
sob o governo autocrático de Nero. Devemos compreender o
poema não apenas na tradição de uma epopeia de cunho histórico,
mas também por suas características didáticas, elegíacas, satíricas,

TI O
AR
epistolográficas, bem como por seus elementos relacionados à

R ISÃ
dialética platônica e ética estoica, por exemplo. Dessa forma, a

LH
obra reúne fatos históricos e ficção, como no episódio da consulta

PA V
de Sexto Pompeu à feiticeira tessália Ericto (6. 413-830).

M E
Enquanto uma saga, compreendemos a personagem Ericto
O R
como detentora de um saber – poder que gerava temor em seus
contemporâneos, no âmbito da ficção. De acordo com Georg
C A

Luck (1995, 41), a saga era quem detinha o controle sobre a natu-
R

reza para demonstrar o seu poder e fazer valer os seus desejos,


ÃO PA

assim como sabia canalizar e manipular os sentimentos dos indi-


víduos que iam buscar o seu auxílio.
R ÃO

Ericto morava na Tessália e foi consultada por Sexto


Pompeu na véspera da decisiva batalha de Fársalo 48 aEC
(6. 333-830). Pompeu procura conhecer o resultado da batalha,
VO RS

e, a fim de profetizá-lo, Ericto executa atos de necromancia. Ela


N

primeiro seleciona o cadáver de um soldado recém-falecido (6.


FA VE

624-666); então infunde o corpo com poções (6. 667-684) e força


sua alma a voltar com ameaças e encantamentos (6. 685-774).
Ogden (2002, 197-198) salienta que Ericto era capaz de assumir
um comportamento de uma Fúria em direção ao submundo,
manipulando cobras e emanando um poder capaz de afrontar
mortais e imortais, tanto que ela realmente assume na narrativa
a aparência de uma Fúria, bem como se torna capaz de ameaçar
Hécate e Perséfone (6. 667-746).
1028
A presença das mulheres na Poesia e na História

Stephen A. Samson (2020) frisa que há vários elementos


intertextuais nas ações de Ericto com referências à Sibila de
Virgílio (Eneida, 6) e à Medéia de Ovídio (Metamorfoses, 7). Para
Samson (2020, 612), Lucano representa Ericto como o oposto da
Sibila de Virgílio. Ela, portanto, serve como guia e supervisora
do submundo de Sexto Pompeu, assim como a Sibila faz para
Enéias, no Livro 6, da Eneida. Entretanto, a função de Ericto é

TI O
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realizar a necromancia solicitada para fins espúrios. Os ingre-

R ISÃ
dientes de sua magia envolvem desde uma cobra voadora até a

LH
fênix, fato esse que para Ogden (2002, p. 197) alude às maravi-

PA V
lhas do Egito, descrito por Heródoto (Histórias, 2. 73-5). Ericto

M E
produz sons tenebrosos na narrativa para iniciar o seu feitiço
O R
(667-718), completamente inarticulados, ao contrário das voces
magicae, mas como eles, havia um significado especial nessa forma
C A

de comunicação (Ogden 2002, 197).


R

Vale ressaltar que Ericto também circulou no imaginário


ÃO PA

social através dos séculos, assim sendo objeto de diversas relei-


turas. Mesmo a representação da feiticeira em Lucano pode ter
R ÃO

partido das Heroides de Ovídio, que teria fornecido a primeira


menção à personagem. Thea S. Thorsen (2014, 96-122) explora
a querela literária sobre a autenticidade da epístola XV, que
VO RS

se desenvolveu no século XIX e se arrasta até os dias atuais.


N

De um lado, autores como Lachmann (1848) e Tarrant (1981),


FA VE

criticando o estilo de sua composição, argumentam que a epístola


XV não se aproxima do modelo de Ovídio. Em posição contrária,
outros eruditos encampam a possibilidade de que a epístola seja
ovidiana, fazendo com que a menção a furialis Erichtho, «furiosa
Ericto» (15. 139) represente a introdução da personagem no
imaginário latino e tornando-se a base para Lucano, que retoma
as características de errante e temível, como Thorsen apresenta
em seu texto (2014, 96-122).
1029
Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Uma das recepções de Ericto ocorreu na Divina Comédia, do


poeta florentino Dante Alighieri (século XIV). No canto 9 (vv,
22-27), Dante dialoga com Virgílio sobre os círculos do inferno e,
precisamente nesse trecho, vemos a menção a Ericto, que vagava
pelo mundo dos mortos para pegar almas e utilizar em rituais
de necromancia. Outra recepção da nossa feiticeira está na peça
Fausto, de Johann Wolfgang von Goethe (século XIX). Desta-

TI O
AR
camos que, no segundo ato, Ericto estabelece um discurso em

R ISÃ
que se representa como uma vítima de disforização pelos poetas,

LH
como uma referência à construção de seu retrato por Lucano.
Em suma, Ericto é uma personagem complexa e intrigante

PA V
tanto em Lucano como em suas recepções. Entretanto, sobre a
M E
Ericto de Lucano, cabe salientar que a compreendemos como
O R
a representação da ordem moral invertida, ela transgride cada
limite cuidadosamente mantido em torno do mos maiorum, como
C A

piedade, lei, religião, os deuses, vida e morte. Logo, o discurso de


R

Lucano sobre Ericto é, provavelmente, a mais elaborada, exage-


ÃO PA

rada e assustadora descrição de uma feiticeira na literatura clássica.


R ÃO

Referências
Fontes históricas
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VO RS

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London; New York, NY: Bloomsbury Publishing, p. 1-14.

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