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As seis principais epidemias, doenças e moléstias da Literatura Fantástica

Ao ler a lista abaixo, perceba que a relação entre o Fantástico e as enfermidades foi mudando de
acordo com o contexto histórico e cultural. À medida que o conhecimento sobre uma doença
especifica foi evoluindo, ou a sociedade encontrou meios para vencê-la, ela saiu dos domínios do
sobrenatural, e do Fantástico, para dar espaço para outra moléstia ou temas.

1. Catalepsia
O que é: Doença que ataca o sistema neurológico levando a pessoa a sofrer de paralisia dos
músculos e redução das funções vitais. Não há, entretanto, perda dos sentidos. Pode durar de
minutos a alguns dias. A Medicina ainda não consegue explicar totalmente o distúrbio.
A Catalepsia pode ser Patológica, que é a versão mais conhecida da doença e a Projetiva, quando a
pessoa acorda pela manhã e não consegue momentaneamente se mexer ou esboçar qualquer som.

A catalepsia era motivo de preocupação ao longo do século 19 e muitas pessoas vitimas de morte
sem motivo aparente eram enterradas com pequenos sinos.
Associado no Fantástico a: Vampiros, Zumbis e os personagens insanos de Edgar Allan Poe.

Principais obras: “A queda da casa de Usher” (1839), de Edgar Allan Poe.

Apontado por séculos como uma das possíveis teorias para a lenda do vampiro, e do zumbi haitiano,
a catalepsia tem no mestre do gótico norte-americano Edgar Allan Poe um de seus mais hábeis
utilizadores por manter em seus contos a tensão entre o racional e o sobrenatural.

2. Lepra

O que é: Uma das doenças contagiosas mais antigas a serem registradas. A palavra foi criada pelo
médico grego Hipocrates para descrever manchas brancas na pele e no cabelo que se assemelhavam
a escamas (léprêã). A ligação deste termo médico com o universo espiritual se deu quando da
passagem para o grego dos textos do Antigo Testamento por volta do século 3 a.C. Ao se realizar a
tradução do hebraico tsara’ath (“ímpio”, “profano”) para o grego optou-se pela palavra léprêã.
passando a designar então a pessoa com a pele de aparência estranha e impura.

É caracterizada pela gradual e profunda deformação da pele e dos membros. Hoje a doença é
chamada de Hanseníase e é tratável. O Brasil foi um dos países em que a Lepra mais demorou para
ser combatida.
Associado no Fantástico a: Personagens marcados por maldição, sacerdotes e párias em geral.
Principais obras: “A marca da besta” (1890), de Rudyard Kipling / “Pelo caiapó velho” (1917), de
Hugo de Carvalho Ramos / “As morféticas” (1944), de Bernardo Élis.

Associada a lugares de atraso e superstição, a lepra no conto de Kipling surge na forma de uma
maldição lançada sobre um jovem inglês por um sacerdote hindu, levando-o a sofrer uma terrível
mudança animalesca.

Já nos contos de Ramos e Élis, vemos a representação do sertão brasileiro como um lugar
ameaçador e cercado de mistérios, algo que um jovem perdido constatará ao entrar em uma humilde
casa.

Há de se destacar também a influencia da lepra na criação da doença Escamagris (Greyscale, no


original em inglês) na série literária As Crônicas de Gelo e Fogo (2011- ), de George R. R. Martin,
base para a série televisiva Game of Thrones.
3. Porfiria

O que é: Na verdade a porfiria é um grupo de doenças genéticas que podem ser herdadas ou
adquiridas e caracterizada pela deficiência de enzimas no organismo, que em casos mais graves
podem provocar sensibilidade à luz, alterações da cor da pele, distúrbios mentais e convulsões. O
nome vem do grego porphýra (“pigmento roxo”)

A doença causa uma profunda deformação em casos extremos


Associado no Fantástico a: Vampiros e Lobisomens

Principais obras: Drácula (1897), de Bram Stoker

A Porfiria foi por muito tempo apontada como uma das principais responsáveis pela crença em
vampiros, em virtude das características da doença.

No entanto, no fim do século vinte, o pesquisador Paul Barber demonstrou no livro Vampires,
Burial and Death (1988) que, ao ser examinada de perto, essa ligação da doença com o vampiro não
se sustentava.

A origem do vampiro folclórico europeu permanece como o resultado da falta de conhecimento das
populações do século 18 sobre o processo de decomposição dos cadáveres.

4. Raiva

O que é: Doença transmitida para humanos pela saliva de algum animal infectado, geralmente por
meio de mordida. O vírus no ferimento se desloca rapidamente para o cérebro provocando inchaço e
inflamação aguda e letal.

Quase sempre leva a morte se a pessoa começar a demonstrar sinais da doença, tais como confusão,
salivação em excesso e convulsões. Dai a importância da vacina preventiva.

A Raiva é uma ameaça real a humanidade.


Associado no Fantástico a: Vampiros e Zumbis

Principais obras: Extermínio (2002), direção de Danny Boyle / Guerra mundial Z (2006), de Max
Brooks / trilogia Apocalipse Z (2010-2011), de Manel Loureiro

Ainda que também tenha sido apontada como uma das doenças por trás da lenda do vampiro, por
conta das mordidas que os vitimados pela doença podem proferir, é com o zumbis que a Raiva
encontra a maior associação hoje.

Esta ligação é reforçada pela ameaça real da doença na nossa sociedade em que há a proximidade
com animais domésticos que são portadores naturais da doença.
Esta proximidade, aliada ao desequilíbrio da natureza provocada pelo homem, pode gerar uma
possível mudança adaptativa na Raiva, levando a mesma a se tornar ainda mais agressiva e
contagiosa para o homem.

Se outras doenças listadas aqui pertencem ao passado pelo combate as condições de higiene e
fabricação de vacinas, o mesmo não aconteceu com a raiva.

Esta ameaça paira no filme de Danny Boyle, no romance reportagem de Max Brooks e na trilogia
de Manel Loureiro

5. Sífilis

O que é: Infecção sexualmente transmissível caracterizada por uma ferida indolor no local da
entrada da doença que desaparece após 4 ou 5 semanas do contágio.

Também chamada de “Cancro duro” pelo eventual surgimento de gânglios em partes do corpo. É
um inimigo silencioso que pode levar anos e décadas para se manifestar de forma violenta.

Possui diferentes fases, sendo a terciária e a congênita as mais agressivas, levando a lesões na pele,
convulsões, danos nos órgãos internos, reflexos exagerados, perda auditiva, insônia e AVC.

A Sífilis era uma dos grandes fantasmas da rígida (e hipócrita) sociedade inglesa da segunda metade
do século 19.
Associado no Fantástico a: Vampiros e Duplos

Principais obras: O médico e o monstro (1886), de Robert Louis Stevenson / O retrato de Dorian
Gray (1891), de Oscar Wilde / Drácula (1897), de Bram Stoker

Vinculada a práticas sexuais proibidas pelas normas de conduta, a Sífilis é a doença que aparece nas
entrelinhas dos romances góticos de fim do século 19.

Mas, não se engane: Ela está lá, nos atos indizíveis do Sr. Hyde, no retrato da imoralidade de Dorian
Gray e na vinculação de Drácula com a sujeira e impureza.

6. Tuberculose

O que é: Doença até hoje cercada de mitos e preconceitos, a “TB”, como também é chamada a
Tuberculose, é infecciosa, transmissível e afeta principalmente os pulmões.

A principal manifestação da doença é um tosse seca e persistente que dura meses. Outros sintomas
são febre baixa, emagrecimento, palidez, suor noturno e falta de apetite.

Pode vir acompanhada de acesso de tosses e catarro com sangue. O tratamento usa antibióticos e
dura cerca de seis meses.

A TB alternava períodos de calmaria com acessos violentos.


Associado no Fantástico a: mulheres mortas

Principais obras: Todos os contos de Edgar Allan Poe com personagens femininos / Noite na
Taverna (1855), de Álvares de Azevedo.

Por vias tortas, a Tuberculose foi a principal musa inspiradora de poetas e escritores românticos na
Inglaterra, Estados Unidos e Brasil no século 19.

Doença que vitimou muitos artistas em plena juventude, a TB encontrou em Edgar Allan Poe um de
seus principais promotores.

Poe perdeu a mãe biológica, a mãe adotiva e a esposa para a Tuberculose.

Como consequência, as mulheres de seus contos e poemas sempre são cercadas por uma aura
sobrenatural, vivendo no plano físico e espiritual. São seres além do alcance dos homens que as
veneram.

Esta mesma visão do ser feminino está retratada na obra do ultra-romântico Álvares de Azevedo,
onde as mulheres complementam as taras dos personagens transviados.

Ao responder, portanto, a pergunta que dá título a este post, lembro da frase “Se não pode vencê-
los, junte-se a eles”.

Se as epidemias, pestes e doenças são um tormento para a humanidade elas tem, como ponto
positivo, o fato de proporcionarem matéria prima para grandes obras e produções ligadas ao mundo
do Fantástico, na Literatura, Cinema, Quadrinhos e Games.

E por isso devemos gostar delas.

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deseja bem.

Obrigado e até a semana que vem!

Fontes utilizadas

BARBER, Paul. Vampires, Burial and Death. New York: Yale University Press, 1988.

BARING-GOULD, Sabine. Lobisomem: um tratado sobre casos de licantropia. Trad. Fernanda M.


V. de Azevedo Rossi. São Paulo: Madras, 2003.

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Vol. 1. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1986.

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Vol. 3. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1987.

DUBY, Georges. Ano 1000, ano 2000: na pista de nossos medos. Trad. Eugênio Michel da Silva.
São Paulo: Editora Unesp, 1998.

FARRELL, Jeanette. A assustadora história das epidemias: pestes e epidemias. Trad. Mauro Silva.
São Paulo: Ediouro, 2002.
MELTON, J. Gordon. O livro dos vampiros: a enciclopédia dos mortos-vivos. São Paulo: M.Books
do Brasil Editora, 2003.

RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade Média. Trad. Marco Antônio
Esteves da Rocha e Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

RUSSELL, Jamie. Zumbis: o livro dos mortos. Trad. Érico Assis, Marcelo Andreani de Almeida.
São Paulo: Leya Cult, 2010.

SILVA, Alexander Meireles da. SOLETRAS. N. 27 (jan. – jun. 2014) Disponível em http://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/soletras/article/view/1119. Acesso em 02, fev. 2017.

UJVARI, Stefan Cunha. A história e suas epidemias: a convivência do homem com os


microorganismos. Rio de Janeiro: SENAC Rio, 2003.

ZUMBIS: a ciência, a história e a cultura pop por trás do fenômeno. São Paulo: Abril, 2012
(Superinteressante Coleções).

Contato: Alexander Meireles da Silva

Email: fantasticursos@gmail.com

ALEXANDER MEIRELES DA SILVA


Nerd, Doutor em Literatura Comparada, Mestre em Literaturas de Língua Inglesa e Especialista em
Educação a Distância. Professor Associado de Língua Inglesa e Literaturas na Universidade Federal
de Goiás - Regional Catalão e Pesquisador do Fantástico (Fantasia, Gótico e Ficção Científica) na
Literatura e no Cinema.

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