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XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA – Tempos de transição - 1


ISSN 1808-9690

DOENÇAS DA IMAGINAÇÃO: A PATOLOGIZAÇÃO DO CONTATO COM O


SOBRENATURAL NA FRANÇA DOS SÉCULOS XVII E XVIII

Gabriel Elysio Maia Braga1


(UFPR – Doutorado)

Resumo: As doenças da imaginação foram mais plenamente definidas no século XVIII. Elas
serviram para se referir à produção de imagens, pela imaginação, que não condiziam com a
realidade. O problema das ilusões foi muito tratado pelos demonólogos. Ao longo do século
XVII a representação que se fazia do Diabo perdeu diversas das características atribuídas na
“virada demoníaca”, ocorrida entre 1280 e 1350. Com o crescente interesse dos filósofos pela
Natureza, as ações do Demônio passaram a ser explicadas pelo viés natural, ou seja, de uma
criatura com plenos poderes, Satã passou a ser considerado apenas um manipulador da Natureza
e das imaginações humanas. Foi sob esse viés que, desde a década de 1590, passou-se a
considerar diversos casos de contato com o sobrenatural não como a ação de Deus ou do Diabo,
mas sim como problemas da imaginação, posteriormente doenças da imaginação, que não possuíam
relação alguma com o divino ou o demoníaco. Os casos de possessão demoníaca são muito
interessantes para pensarmos no desenvolvimento do conceito de doenças da imaginação. Nesta
comunicação, apresentarei algumas contestações francesas à realidade da possessão demoníaca
que defendiam uma rigorosa investigação dos casos e consideraram muitas das possuídas como
portadoras de problemas de imaginação, e não endemoninhadas.
Palavras-Chave: Imaginação; Sobrenatural; Doenças da Imaginação; Possessão Demoníaca.
Financiamento: CAPES

Introdução

O período entre 1280 e 1350 foi classificado pelo historiador Alain Boureau (2016)
como a virada demoníaca. Em suas palavras:

vemos se estabelecerem entre teólogos e juristas teses que afirmavam a


eficácia do poder demoníaco sobre o mundo natural e a possibilidade de
um complô entre os homens (qualquer homem!) e os anjos caídos. 2
A demonologia medieval acabou por estabelecer Satã como o inverso de Deus, o que se
tornou problemático na Idade Moderna. A doutrina da contrariedade, ao tratar Deus e o Diabo
como contrários, colocava-os em pé de igualdade em termos de poder. O primeiro descolamento
que desejo tratar, portanto, consiste nas reformas ocorridas no catolicismo durante o século XVII

1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da UFPR. Contato:


gab.braga94@gmail.com.

2 BOUREAU, Alain. Satã Herético: O nascimento da demonologia na Europa medieval


(1280 – 1350). Trad. Igor Salomão Teixeira. Campinas: Editora da Unicamp, 2016, p. 17.
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e os empreendimentos no sentido de diminuir a imagem do Diabo, no sentido de torna-lo


inferior a Deus.

O puritano John Gaule teve uma influência considerável nessa mudança de perspectiva.
Gaule denominara o Diabo de Macaco de Deus, ou seja, uma criatura que tentaria imitá-lo, mas o
faria de forma imperfeita. Somente a investigação atenta aos detalhes 3 poderia diferenciar a obra
de Deus da obra demoníaca.

O segundo deslocamento que destaco deve muito ao primeiro. Nas primeiras décadas
do século XVIII, de maneira mais enfática, mas podemos localizar a gênese dessa visão já em
finais do século XVI, passou-se a tentar compreender os fenômenos quotidianos fora do
binômio Deus-Diabo. Assim, a Natureza se tornou alvo das conjecturas filosóficas:

[...] principalmente do século XVII, mas já em produções do final do


século XVI, o exercício de um controle sobre a imaginação que
redirecionou os esforços investigativos para a Natureza, considerada
como o lugar do indefinido e, por isso, merecedora das conjecturas dos
filósofos. Com isso há uma alteração nos conceitos de sobrenatural e
natural e uma mudança na dinâmica de interação entre esses dois
âmbitos.4

Sendo, portanto, o local do indefinido,5 a Natureza se tornou a instância à qual os


filósofos poderiam direcionar suas conjecturas. Mesmo efeitos que possam parecer sobrenaturais
aos nossos olhos foram explicados na modernidade como naturais. Um bom exemplo de uma
força que parece ir além da natureza é a imaginação. Esta foi tida como força oculta da Natureza
pelo filósofo Michaël Ranft em sua dissertação De Masticatione Mortuorum in Tumulis, publicada em
1728. Nela o filósofo analisou os casos de vampirismo reportados nos Bálcãs, buscando uma
explicação que não se apoiasse em Deus ou no Diabo. Logo, uma explicação que levasse em
conta apenas os efeitos naturais.

Ranft defendeu, influenciado pelas teorias de Paracelso, que o corpo, mesmo após a
morte, mantinha uma espécie de vida vegetativa, em que diversos fenômenos corporais, entre eles
a imaginação, permaneciam ativos. A imaginação do cadáver poderia ser extremamente danosa
aos vivos. Ela possuía o poder de influenciar a imaginação dos vivos e causar a eles uma série de

3 A constante atenção cristã aos detalhes foi abordada por Michel Foucault no curso
Segurança, Território e População, ministrado entre 1977 e 1978, e no recém-lançado
Histoire de la Sexualité 4 – Les Aveux de la Chair (2018).

4 BRAGA, Gabriel. O Natural e o Sobrenatural na Modernidade: a polêmica erudita


sobre os mortos-vivos (1659-1751). 272 f. Dissertação (Mestrado em História) – Setor de
Ciências Humanas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2018, p. 20.

5 Cito indefinido tendo em mente o uso que Descartes fez dessa palavra em Princípios da
Filosofia (1637).
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doenças e até mesmo a morte.

De fato, toda a lenda do vampiro se baseia em um morto-vivo – ou seja, cuja morte não
é absoluta – que traz malefícios aos vivos. Ranft tomava como verdadeira a sentença de que
mortos poderiam trazer malefícios aos vivos, sendo assim, buscou explicações que sustentassem
as crendices populares, mas que ao mesmo tempo enfatizassem o caráter natural de tais
fenômenos.

Apesar de sua insistência nos poderes da imaginação, não é possível considerar a


opinião de Ranft completamente original. De fato, desde finais do século XVI já havia
contestações aos casos de possessão demoníaca alegando falsidade – fingimento – ou doença.
Nas últimas décadas desse século alguns pensadores já haviam se proposto a classificar alguns
casos de possessão demoníaca como distúrbios naturais, 6 ou seja, como fenômenos desatrelados
do sobrenatural.

Percebi que nas investigações sobre casos de possessão demoníaca poder-se-ia chegar
em 3 conclusões possíveis. A primeira era a confirmação da veracidade, uma cumplicidade entre
saber médico e Igreja. A segunda era a falsidade, ou seja, que todos os sintomas tidos como
sendo de possessão foram produzidos intencionalmente pela suposta endemoninhada. A última
opção era a conclusão de doença. As convulsões e alterações da suposta possuída poderiam,
então, ser frutos de uma doença que acometia a imaginação, a produção de imagens, produzindo
ilusões ou como considerou Descartes, representando realidades. 7

Objetivos

Desde o mestrado estudo produções que analisaram fenômenos aparentemente


sobrenaturais buscando uma definição sobre seu estatuto. Ao longo do século XVII, como
pontuei anteriormente, foi considerável a redução do poder do Diabo dentro da demonologia.
Cada vez menos se falou em poderes demoníacos e cada vez mais se lidou com a Natureza
enquanto local do indefinido.

Busco compreender como era entendida a imaginação e os papeis das doenças da


imaginação na gênese de um saber psiquiátrico. Considero que os casos de possessão em muito se
opuseram aos de bruxaria em especial no que diz respeito ao tratamento concedido às mulheres.
Enquanto as bruxas eram condenadas à fogueira, as possuídas eram acolhidas no seio da Igreja,
eram como que internadas para passar por um tratamento físico e espiritual, o ritual de exorcismo.

Essa mudança passa pelo que o filósofo Michel Foucault denominou, no curso Os

6 RIBAS, João C. As Fronteiras da Demonologia e da Psiquiatria. 183f. Tese (Livre-


Docente em Clínica Psiquiátrica) - Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de
São Paulo. São Paulo, 1963, p. 9.

7 DESCARTES, R. Regras Para a Direção do Espírito. Trad. João Gama. Lisboa: Edições
70, 1985, p. 76.
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Anormais, de mudança do paradigma da lepra para o paradigma da peste. 8 Assim sendo, com a
recepção das possuídas gerou-se diversos saberes em torno do fenômeno. A figura da possuída
pode ser melhor estudada e tornou-se alvo de diversas empreitadas filosóficas, visando encontrar
a causa dos sintomas que apresentava.

Resultados

Apresento nesta seção alguns resultados preliminares de minha pesquisa de doutorado,


sobre a figura da possuída e as produções médicas e filosóficas que a analisaram; juntamente com
considerações acerca de minha dissertação de mestrado, sobre a produção intelectual que analisou
os casos de vampirismo vindos dos Bálcãs. Em ambas as pesquisas a imaginação é um importante
elemento para compreender os argumentos médicos e filosófico-naturais dos autores
selecionados.

Ao longo de minhas pesquisas desenvolvi o conceito de controle da imaginação investigativa.


Com isso pretendi descrever um processo que se deu desde finais do século XVI com as
primeiras contestações a casos de possessão. Percebi um empenho no sentido de desenvolver um
controle sobre a imaginação dos filósofos-naturais, médicos e teólogos. Esse controle buscava
redirecionar os esforços imaginativos para a Natureza, ou seja, reposicionar do Sobrenatural para
um patamar sobre o qual não era mais importante – nem ao menos recomendado – direcionar
esforços investigativos.

A imaginação tornou-se, assim, uma grande obsessão. Além do trabalho de Michaël


Ranft, destacado nas seções anteriores, há o tratado do monge beneditino francês dom Augustin
Calmet, Traité sur les apparitions des esprits et sur les vampires ou les revenans de Hongrie,
Moravie, etc. (1751). Calmet buscou analisar de que forma poderiam ser reais os casos de
vampirismo relatados. Em suas conclusões pontuou que os relatos provavelmente eram frutos de
uma imagination frappé [imaginação ferida].

Para o beneditino “a imaginação produzia realidades, logo, nenhum relato, a não ser os
bíblicos e demais escritos religiosos, era confiável”. 9 Os vampiros, então, foram explicados como
reais e falsos ao mesmo tempo. Para aqueles que relatavam, eles eram reais, porém aos olhos
daqueles que possuíam uma mente forte, eles eram apenas fruto de uma imaginação ferida.

Considerações Finais

O conceito de imaginação ferida é muito importante. Calmet e Ranft se basearam no

8 FOUCAULT, M. Os Anormais: curso no Collège de France (1974 – 1975). Trad. Eduardo


Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 55 – 59.

9 BRAGA, G. O Natural e o Sobrenatural... Op. Cit., p. 251.


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argumento de que a imaginação poderia produzir algo mais além das quotidianas imagens. Ela
ainda era possuía poderes não muito bem compreendidos e poderia ser tratada. A imaginação ferida
não era uma condição permanente. Calmet defendeu os estudos e a prática da fé como modos de
fortalecer a imaginação, deixando-a protegida contra as investigas demoníacas e apta às
investigações, importantes para distinguir o real do ilusório.

A pesquisa histórica acerca de fenômenos que foram ou são considerados como


sobrenaturais pode render diversas considerações acerca da gênese do saber psiquiátrico. Ao
longo da Idade Moderna foram empreendidos diversos esforços no sentido de estabelecer regras
de investigação para identificar problemas de imaginação e diferenciá-los de fenômenos verídicos
cuja proveniência era a Natureza – ou a Sobrenatureza, porém apenas em raríssimos casos, já que
o Cristianismo moderno defendia a raridade dos milagres.

Nos casos de possessão demoníaca dos séculos XVI e XVII, podemos observar a
tentativa dos religiosos de ultrapassar a exclusão pregada na caça as bruxas. Trazendo as
possuídas para o seio da Igreja poder-se-ia ter um maior controle de suas atitudes e mesmo de
sua vida pós-possessão. Ademais, permitiu a produção de saberes médicos relacionados as
potencialidades e aos perigos da imaginação.

Nesse entremeio o que mais sofreu mudanças foi o contato com o sobrenatural. Optei
no título pelo termo patologização, pois a bruxaria e a possessão demoníaca – ambas
majoritariamente femininas – foram taxadas como produtos de uma mente fraca, ferida,
deturpada, por fim, frutos da loucura. A diminuição do poder do Diabo na produção
demonológica, as investigações sobre as potencialidades e os perigos da imaginação e a
estigmatização do contato com o sobrenatural como sintoma de loucura fazem parte de um
mesmo processo de controle da imaginação que teve forte presença na Idade Moderna e na
fundação da ciência moderna.

Referências

BOUREAU, Alain. Satã Herético: O nascimento da demonologia na Europa medieval (1280 –


1350). Trad. Igor Salomão Teixeira. Campinas: Editora da Unicamp, 2016.

BRAGA, Gabriel. Considerações Sobre a Figura do Vampiro e o Sobrenatural no Século


XVIII a Partir da Obra de Dom Calmet (1672 – 1757). 104f. Monografia (Graduação em
História) – Setor de Ciências Humanas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2015.

____________. O Natural e o Sobrenatural na Modernidade: a polêmica erudita sobre os


mortos-vivos (1659-1751). 272 f. Dissertação (Mestrado em História) – Setor de Ciências
Humanas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2018.
Anais eletrônicos -
XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA – Tempos de transição - 6
ISSN 1808-9690

CALMET, Dom Augustin. Traité sur les apparitions des esprits et sur les vampires ou les
revenans de Hongrie, Moravie, etc. Tome I. Paris: Debure l’aîne, 1751.

____________. Traité sur les apparitions des esprits et sur les vampires ou les revenans
de Hongrie, Moravie, etc. Tome II. Paris: Debure l’aîne, 1751.

DESCARTES, René. Princípios da Filosofia. Trad. João Gama. Lisboa: Edições 70, 1997.

____________. Regras Para a Direção do Espírito. Trad. João Gama. Lisboa: Edições 70,
1985.

FOUCAULT, M. Os Anormais: curso no Collège de France (1974 – 1975). Trad. Eduardo


Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

RANFT, Michael. De la Mastication des Morts dans leurs Tombeaux. 1ª ed. Grenoble:
Jérôme Million, 1995 [1728].

RIBAS, João C. As Fronteiras da Demonologia e da Psiquiatria. 183f. Tese (Livre-Docente


em Clínica Psiquiátrica) - Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo. São
Paulo, 1963.

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