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Resumo: As doenças da imaginação foram mais plenamente definidas no século XVIII. Elas
serviram para se referir à produção de imagens, pela imaginação, que não condiziam com a
realidade. O problema das ilusões foi muito tratado pelos demonólogos. Ao longo do século
XVII a representação que se fazia do Diabo perdeu diversas das características atribuídas na
“virada demoníaca”, ocorrida entre 1280 e 1350. Com o crescente interesse dos filósofos pela
Natureza, as ações do Demônio passaram a ser explicadas pelo viés natural, ou seja, de uma
criatura com plenos poderes, Satã passou a ser considerado apenas um manipulador da Natureza
e das imaginações humanas. Foi sob esse viés que, desde a década de 1590, passou-se a
considerar diversos casos de contato com o sobrenatural não como a ação de Deus ou do Diabo,
mas sim como problemas da imaginação, posteriormente doenças da imaginação, que não possuíam
relação alguma com o divino ou o demoníaco. Os casos de possessão demoníaca são muito
interessantes para pensarmos no desenvolvimento do conceito de doenças da imaginação. Nesta
comunicação, apresentarei algumas contestações francesas à realidade da possessão demoníaca
que defendiam uma rigorosa investigação dos casos e consideraram muitas das possuídas como
portadoras de problemas de imaginação, e não endemoninhadas.
Palavras-Chave: Imaginação; Sobrenatural; Doenças da Imaginação; Possessão Demoníaca.
Financiamento: CAPES
Introdução
O período entre 1280 e 1350 foi classificado pelo historiador Alain Boureau (2016)
como a virada demoníaca. Em suas palavras:
O puritano John Gaule teve uma influência considerável nessa mudança de perspectiva.
Gaule denominara o Diabo de Macaco de Deus, ou seja, uma criatura que tentaria imitá-lo, mas o
faria de forma imperfeita. Somente a investigação atenta aos detalhes 3 poderia diferenciar a obra
de Deus da obra demoníaca.
O segundo deslocamento que destaco deve muito ao primeiro. Nas primeiras décadas
do século XVIII, de maneira mais enfática, mas podemos localizar a gênese dessa visão já em
finais do século XVI, passou-se a tentar compreender os fenômenos quotidianos fora do
binômio Deus-Diabo. Assim, a Natureza se tornou alvo das conjecturas filosóficas:
Ranft defendeu, influenciado pelas teorias de Paracelso, que o corpo, mesmo após a
morte, mantinha uma espécie de vida vegetativa, em que diversos fenômenos corporais, entre eles
a imaginação, permaneciam ativos. A imaginação do cadáver poderia ser extremamente danosa
aos vivos. Ela possuía o poder de influenciar a imaginação dos vivos e causar a eles uma série de
3 A constante atenção cristã aos detalhes foi abordada por Michel Foucault no curso
Segurança, Território e População, ministrado entre 1977 e 1978, e no recém-lançado
Histoire de la Sexualité 4 – Les Aveux de la Chair (2018).
5 Cito indefinido tendo em mente o uso que Descartes fez dessa palavra em Princípios da
Filosofia (1637).
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De fato, toda a lenda do vampiro se baseia em um morto-vivo – ou seja, cuja morte não
é absoluta – que traz malefícios aos vivos. Ranft tomava como verdadeira a sentença de que
mortos poderiam trazer malefícios aos vivos, sendo assim, buscou explicações que sustentassem
as crendices populares, mas que ao mesmo tempo enfatizassem o caráter natural de tais
fenômenos.
Percebi que nas investigações sobre casos de possessão demoníaca poder-se-ia chegar
em 3 conclusões possíveis. A primeira era a confirmação da veracidade, uma cumplicidade entre
saber médico e Igreja. A segunda era a falsidade, ou seja, que todos os sintomas tidos como
sendo de possessão foram produzidos intencionalmente pela suposta endemoninhada. A última
opção era a conclusão de doença. As convulsões e alterações da suposta possuída poderiam,
então, ser frutos de uma doença que acometia a imaginação, a produção de imagens, produzindo
ilusões ou como considerou Descartes, representando realidades. 7
Objetivos
Essa mudança passa pelo que o filósofo Michel Foucault denominou, no curso Os
7 DESCARTES, R. Regras Para a Direção do Espírito. Trad. João Gama. Lisboa: Edições
70, 1985, p. 76.
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Anormais, de mudança do paradigma da lepra para o paradigma da peste. 8 Assim sendo, com a
recepção das possuídas gerou-se diversos saberes em torno do fenômeno. A figura da possuída
pode ser melhor estudada e tornou-se alvo de diversas empreitadas filosóficas, visando encontrar
a causa dos sintomas que apresentava.
Resultados
Para o beneditino “a imaginação produzia realidades, logo, nenhum relato, a não ser os
bíblicos e demais escritos religiosos, era confiável”. 9 Os vampiros, então, foram explicados como
reais e falsos ao mesmo tempo. Para aqueles que relatavam, eles eram reais, porém aos olhos
daqueles que possuíam uma mente forte, eles eram apenas fruto de uma imaginação ferida.
Considerações Finais
argumento de que a imaginação poderia produzir algo mais além das quotidianas imagens. Ela
ainda era possuía poderes não muito bem compreendidos e poderia ser tratada. A imaginação ferida
não era uma condição permanente. Calmet defendeu os estudos e a prática da fé como modos de
fortalecer a imaginação, deixando-a protegida contra as investigas demoníacas e apta às
investigações, importantes para distinguir o real do ilusório.
Nos casos de possessão demoníaca dos séculos XVI e XVII, podemos observar a
tentativa dos religiosos de ultrapassar a exclusão pregada na caça as bruxas. Trazendo as
possuídas para o seio da Igreja poder-se-ia ter um maior controle de suas atitudes e mesmo de
sua vida pós-possessão. Ademais, permitiu a produção de saberes médicos relacionados as
potencialidades e aos perigos da imaginação.
Nesse entremeio o que mais sofreu mudanças foi o contato com o sobrenatural. Optei
no título pelo termo patologização, pois a bruxaria e a possessão demoníaca – ambas
majoritariamente femininas – foram taxadas como produtos de uma mente fraca, ferida,
deturpada, por fim, frutos da loucura. A diminuição do poder do Diabo na produção
demonológica, as investigações sobre as potencialidades e os perigos da imaginação e a
estigmatização do contato com o sobrenatural como sintoma de loucura fazem parte de um
mesmo processo de controle da imaginação que teve forte presença na Idade Moderna e na
fundação da ciência moderna.
Referências
CALMET, Dom Augustin. Traité sur les apparitions des esprits et sur les vampires ou les
revenans de Hongrie, Moravie, etc. Tome I. Paris: Debure l’aîne, 1751.
____________. Traité sur les apparitions des esprits et sur les vampires ou les revenans
de Hongrie, Moravie, etc. Tome II. Paris: Debure l’aîne, 1751.
DESCARTES, René. Princípios da Filosofia. Trad. João Gama. Lisboa: Edições 70, 1997.
____________. Regras Para a Direção do Espírito. Trad. João Gama. Lisboa: Edições 70,
1985.
RANFT, Michael. De la Mastication des Morts dans leurs Tombeaux. 1ª ed. Grenoble:
Jérôme Million, 1995 [1728].