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O Antropoceno

e os contextos de
emergências e
desastres

TERRASEMAMOS
Brasil, 2023
© Editora Terra sem Amos, 2023.
© Yan Leite Chaparro (org), 2023.
© Josemar de Campos Maciel (org), 2023.
Editora Terra sem Amos
instagram: @tsa.editora • facebook: /tsa.editora
twitter: @tsaeditora • tsa.editora@gmail.com
Autoras e autores:
Adriana Garritano Dourado
Anita Guazzelli Bernardes
Avá Tendo Tá - Eliezer Martins Rodrigues
Avá Vera Rendy Ju - Antônio Carlos Benites
José Francisco Sarmento Nogueira
Josemar de Campos Maciel
Leandro Skowronski
Leonardo Borges Reis
Levi Marques Pereira
Lucas Luis
Marcio Bogaz Trevizan
Naziane Alcantra de Almeida
Ruben Artur Lemke
Yan Leite Chaparro
Edição:
Alexandre Wellington dos Santos Silva
Imagem de capa:
Laker (https://www.pexels.com/pt-br/@laker/)
Revisão gráfica:
Francisco Raphael Cruz Maurício
LICENÇA CREATIVE COMMONS (CC BY-SA)
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comerciais, desde que atribuam o devido crédito e que
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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


C462 Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (orgs.).
Chaparro, Yan Leite & Maciel, Josemar de Campos
(orgs.). O antropoceno e os contextos de emergências e
desastres. Editora Terra sem Amos: Brasil, 2023.
182p.
ISBN: 978-65-89500-44-5
1. Sociologia 2. Antropoceno 3. Ecologia humana I. Yan
Leite Chaparro (org). II. Josemar de Campos Maciel
(org). III. Título.
CDD: 304.2
Índice para catálogos sistemáticos:
1. Ecologia humana (304.2)
Yan Leite Chaparro
Josemar de Campos Maciel
(organizadores)

O Antropoceno
e os contextos de
emergências e
desastres
Adriana Garritano Dourado
Anita Guazzelli Bernardes
Avá Tendo Tá - Eliezer Martins Rodrigues
Avá Vera Rendy Ju - Antônio Carlos Benites
José Francisco Sarmento Nogueira
Leandro Skowronski
Leonardo Borges Reis
Levi Marques Pereira
Lucas Luis
Marcio Bogaz Trevizan
Naziane Alcantra de Almeida
Ruben Artur Lemke
Este

o nosso corpo,
a terra
(Palavras do Xamã Guarani
Nhandéva Cantalicio Godoi)
Yan Leite Chaparro, 2022.
Sumário

Tekoha y rembe y porã (aldeia Porto Lindo)


Avá Tendo Tá - Eliezer Martins Rodrigues...... 13
Desastre colonial, contextos de emergência
e processos de re-existência: experiências
Kaiowá e Guarani
Lucas Luis............................................... 18

O fim do mundo para os Kaiowá:


cataclismo e recomeço
Avá vera rendy ju - Antônio Carlos Benites &
Levi Marques Pereira.................................. 35
Apontamentos e reflexões a partir de uma
experiência com o povo Bororo em Meruri
José Francisco Sarmento Nogueira &
Leandro Skowronski................................... 49
Fogo no mato: a ciência encantadas das
macumbas. Uma resenha
Naziane Alcantra de Almeida....................... 70
Antropoceno, brutalismos e
políticas da vida
Anita Guazzelli Bernardes &
Adriana Garritano Dourado......................... 83
Capitaloceno e catástrofe:
uma crise antropológica
Leonardo Borges Reis.................................. 97
Uma lição de Schreber sobre o fim do mundo
para a época do Antropoceno
Ruben Artur Lemke.................................... 121
Ecologia e espiritualidade católica: anotações
de uma “campanha da fraternidade”
Marcio Bogaz Trevizan................................ 147
Envolvimento e hospitalidade: uma prototopia
para atravessar o antropoceno
Yan Leite Chaparro &
Josemar de Campos Maciel.......................... 162
Sobre as pessoas autoras......................... 176
Yan Leite Chaparro, 2022
Apresentação

O livro O Antropoceno e os contextos de emergên-


cias e desastres, nasce da busca de organizar em
um só material teórico e técnico, perspectivas de
diferentes condições de pesquisas e vidas sobre a
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

era do Antropoceno, pois é um tema que requer do


inicio até o fim, se colocar em meio de complexi-
dades entre disciplinas e mundos.
Trabalho que teve o apoio da Fundação de
Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e
Tecnologia do Estado do Mato Grosso do Sul/FUN-
DECT, por conta do estágio de pós-doutorado do
pesquisador Yan Leite Chaparro, e sediado dentro
do Grupo de Pesquisa Estudos críticos do Desen-
volvimento/CNPq e do Laboratório de Humanida-
des/LabuH, ambos coordenados pelo professor
Josemar de Campos Maciel.
Buscamos produzir uma rede de trabalhos
que perpassam por diferentes campos e contextos
de pesquisas, desde a filosofia, a antropologia, a
psicologia, a sociologia, a educação e os estudos
10 interdisciplinares, com o objetivo de revelar para
as pessoas leitoras os cruzamentos e os diferentes
debates sobre o tema, explicitando sempre como
objeto central as realidades de emergências e de-
sastres contemporâneas que envolve a era do An-
tropoceno.
Realidades que são a atenção principal do li-
vro, ou melhor, como podemos produzir estraté-
gias e ações que possam prevenir e enfrentar os
contextos de emergências e desastres cotidianos
que são apresentados como presente e futuro.
E para isso, compreendemos o livro como ma-
terial que possa auxiliar e provocar pesquisas e
ações no campo da politicas públicas, desde a edu-

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


cação até a defesa civil, pois compreende-se o tema
do Antropoceno como uma era que exige novas de-
mandas e ações do Estado e da sociedade civil.
Processo que nos coloca frente e imerso em um
tempo que requer um maior volume de pesquisas e
ações sobre os problemas desencadeados pela era
do Antropoceno, quando a Terra reage e determina
reorientações para modos de vidas, de existir e de
estruturas (sociais, políticas e econômicas), antes
que os fins dos mundos se concretizem.
Por fim, agradecemos imensamente as pes-
soas autoras que contribuíram generosamente
com seus escritos para a produção do livro, e a
Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensi-
no, Ciência e Tecnologia do Estado do Mato Gros-
11
so do Sul/FUNDECT. Sem as pessoas e o apoio da
Fundect, seria impossível a concretização do livro.

Yan Leite Chaparro, 2022


Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

12
Tekoha y rembe y porã
(aldeia Porto Lindo)
AVÁ TENDO TÁ - ELIEZER MARTINS RODRIGUES

Aldeia porto lindo, a minha aldeia onde eu


nasci e cresci. Os meus pais são pioneiros daqui,
o senhor Elias Martins e a dona Aparecida Rodri-
gues (in memorian). Conforme o meu pai diz, ele

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


morava perto do rio Iguatemi desde a infância, e o
nome Porto Lindo foi dado por um senhor chama-
do Ataliba, que era explorador da Cia Erva Matte
Laranjeira, naquela época, nos anos de 1930, disse
o meu pai, esse porto era onde os ervateiros em-
barcavam os sacos de ervas no barco, mas não era
somente esse porto lindo que tinha perto do Igua-
temi, haviam mais portos, como Porto Karuvai, o
Porto Moreno, eu trabalhei muito foi no Porto Ka-
ruvai disse o meu pai. Naquela época o território
Guarani Nhandeva era grande, e não tinha cercas
dos fazendeiros e nem gado, depois que acabou a
erva mate chegaram os fazendeiros, então foi di-
vidido as terras que começou a aldeia onde não
tinha ervas.
13
O território para um Guarani Nhandéva é
como o Guarani marca o seu território e através da
forma como cuida a natureza, como valoriza as ár-
vores, o rio, as nascentes, os animais, as flores do
mato, as abelhas. O território tem que estar ligado
com o corpo, a alma e o espirito, o modo de ser e
viver no território, respeitar os Jaras da natureza e
dentro do território, repassando todos os conhe-
cimentos dos sábios a respeito dos ensinamentos
sobre o Ayu, o dom divino que foi dado por Tupã,
o grande Deus em primeiro momento.
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

E para ser um bom Guarani Nhandéva preci-


sa saber as regras de vivência e saber usar o seu
dom que recebeu do rezador, cuidar para não falar
maldade para outra pessoa, precisa ter paciência
na fala com o outro e saber ouvir. O bom Guara-
ni tem que cuidar no momento de questionar e
de responder, pois o rezador ensina deste infân-
cia não jugar a pessoa sem ter o conhecimento da
situação, e ser obedientes aos seus pais. O bom
Guarani vive e compartilha as brincadeiras com
as crianças no dia a dia, durante a infância cada
família ensina a criança não xingar o seu parente,
na beira do fogo os pais sempre repassam o nhe e
marangatu, palavras sagradas, amar o seu próximo
para a crianca saber dividir o amor em primeiro
lugar e assim também, a comida, o carinho entre
o parente. O bom Guarani participa da reza, pre-
para o filho para acompanhar o rezador na reza,
14
no canto, no Kotihu, danças, pintura, e aprende
as rezas, a criança aprende a contar historinhas,
os contos, o sambo e a pintura, assim a criança
aprende dar valor a natureza, os riscos que existe
dentro da mata, e sabe o que pode acontecer se a
mata acabar, sabe os remédios que tem na mata, a
criança sabe a importância dos animais, sabe que
a saúde esta ligado com a natureza, o pai e o reza-
dor prepara remédio junto com o filho, fala sobre
os pássaros que vem de longe, o rezador fala que
tudo que a natureza fornece para a nossa sobre-
vivência, isto é para a saúde, para o nosso corpo,
desde a raiz até a folha, que tem na natureza, e
que é na natureza que encontramos a subsistência

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


para viver e o nosso futuro.
O mundo antigo e o mundo de hoje para o re-
zador Cantalicio Godoi, nome em Guarani é Tupa
Ava Veraju, um Guarani Nhandéva da aldeia Porto
Lindo, conforme ele, há muitos e muitos anos a
terra estava muito segura, tinha quatro alicerces
muito fortes em cada canto, e não havia preocu-
pação por parte da humanidade, o povo viviam de
uma maneira tranquila, o grande Tupã e os Yvyra`i-
ja ouvia e cuidava do povo, o rezador recebia todas
as orientações do Nhanderuete, Deus todo podero-
so, cada rezador fazia a sua reza conforme orien-
tado para combater a maldade quando ia aconte-
cer alguma coisa grave, o Tupã avisava através do
sonho os rezadores, então todos se preparavam e
15
faziam a reza para não acontecer ou para não che-
gar a acontecer na aldeia e no mundo. Através da
reza as coisa ruins iam para outro lugar onde não
há seres humanos, através da reza também pedia
para o grande Deus Tupã deixar ou para não acon-
tecer, e era tudo muito equilibrado, a nossa terra.
Porém no decorrer dos tempos houve grande
mudanças aqui no mundo, os povos, isto é a huma-
nidade esqueceu tudo e começou a invadir a lua, as
estrelas e o céu, enviando foguetes, balão, avião,
bombas, armas nucleares e destruindo a respira-
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

ção do grande mar, e acabando com a natureza, até


que chegou este momento em que vivemos, com
grandes riscos, doenças incuráveis, terremotos em
varias lugares, rios com muita poluição, animais
morrendo no céu. A lua e o sol ficam tristes em
ver tudo isso, têm dia que o sol não aquece mais
a terra, e a lua tem momento que não quer mais
iluminar a terra, e um grande risco são também as
estrelas caindo no mar a cada momento.
Quando chove a chuva vem com relâmpago e
trovões destruindo casas, e gente morrendo pela
água da chuva de enchentes, matando crianças,
e uma coisa muito grave é que um dos alicerces
que estava forte segurando a terra, começou a pe-
gar cupins, isto é começou a enferrujar caindo em
pedaços, e um grave acontecimento que o grande
Deus todo poderoso esta nos alertando, pois a na-
16
tureza esta acabando, o mar não esta respirando,
existe hoje muita destruição, e precisamos nos
unir e fortalecer os saberes do mundo, estamos
inseguros, a terra não esta suportando mais tanta
destruição. E o seu Cantalicio disse olhando para
o céu, eu sempre vou fazer a minha parte rezando
pelo meu povo, acredito ainda na humanidade, va-
mos fazer cada um a nossa parte, cuidar da natu-
reza, pois a terra esta pedindo socorro.

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres

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Desastre colonial, contextos de
emergência e processos de re-
existência: experiências Kaiowá e
Guarani
LUCAS LUIS
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

Fragmentos de um desastre

O violento extermínio dos povos indígenas do


Brasil não é de hoje, não começou em 2022 e nem
com o governo Bolsonaro. Contudo, essa condição
intensificou-se em função de seus discursos e po-
líticas que incitam e produzem violências contra
os povos originários e camponeses: “não terá um
centímetro quadrado [de terra] demarcado” e “o
cartão de visita para os marginais do MST tem que
ser um cartucho [fuzil] 762)”1.
A violência contra os povos indígenas é histó-
rica e compõe o processo de estruturação colonial
dos Estados-nação, das sociabilidades, das subjeti-

1 Para conferir esses discursos de incitação à violência e con-


trário as demarcações, acessar: http://bit.ly/3LivAax e http://
18 bit.ly/4044xEb.
vidades e intersubjetividades, das epistemologias,
dentre outras (QUIJANO, 2005). Para termos no-
ção, estima-se que a proporção do extermínio dos
povos Guarani promovido pela colonização assu-
me o quantitativo de 1 sobrevivente para cada 500
mortos (BRANDÃO, 1990).
O que para os colonizadores europeus foi a
oportunidade de avançar na disputa da hegemo-
nia geopolítica do sistema-mundo (WALLERS-
TEIN, 1974), para os povos originários consistiu
no desastre do encontro com o espírito coloniza-
dor e mercantil altamente destrutivo do branco
(DUSSEL, 1994; ALBERT & KOPENAWA, 2015). É
nesse contexto do encontro colonial, entre colo-

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


nizadores e colonizados, que se funda o que Da-
niel Munduruku (2012) nomeia como paradigma
exterminacionista. O objetivo desse paradigma
foi, e continua sendo, a exploração e expropriação
deliberada dos corpos-territórios não-europeus,
mesmo que esse processo ocasione o extermínio
de coletividades inteiras e das próprias condições
de vida humana.
Neste ensaio, tomo a colonização enquanto
desastre definido por “uma ruptura do funciona-
mento habitual de um sistema ou comunidade,
devido aos impactos ao bem-estar físico, social,
psíquico, econômico e ambiental de uma deter-
minada localidade”, de modo a ocasionar “destrui-
ção estrutural e/ou material significativa e altera 19
a geografia humana, provocando desorganização
social pela destruição ou alteração de redes fun-
cionais” (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA,
2021, p. 18). Nesse movimento, assumo essa quali-
ficação desde os efeitos para os povos originários,
compreendendo que esse processo para os colo-
nizadores adquire outras significações materiais,
simbólicas e psicossociais.
Para as/os Kaiowá e Guarani esse desastre tem
sido experienciado intensamente desde os primei-
ros contatos com os karai [não indígenas]. A litera-
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

tura da etnologia e historiografia Guarani aponta


o começo dessa relação desastrosa para estes po-
vos no início do século XVI (Equipe Mapa Guarani
Continental, 2016). A continuidade desse trágico
processo se perpetuou historicamente a partir de
fatos marcantes, a exemplo da guerra entre Brasil
e Paraguai, de 1864 a 1870, aonde os povos Kaiowá
e Guarani foram submetidos à disputa bélica entre
esses países que incidem liminarmente em seus
territórios originários (BENITES, 2014).
Após a guerra, com a vitória do Brasil sobre o
Paraguai, a ocupação das terras Kaiowá e Guarani
foi concedida à empresa Matte Laranjeira, entre
os anos de 1891 a 1902, à revelia dos interesses in-
dígenas e com a exploração da mão de obra destes
(BRAND, 2004). A partir de 1910, a desintegração
das sociabilidades Kaiowá e Guarani é mediada pe-
20
las políticas indigenistas de deslocamento forçado
de seus territórios tradicionais e confinamento em
pequenas porções de terras definidas pelo Estado
(BRAND, 2004). A delimitação dessas áreas teve
como objetivo a liberação das terras para expro-
priação dos colonos que chegavam à região por
incentivos econômicos do governo.
Uma das consequências imediatas desse pro-
cesso desastroso vivenciado pelas/os Kaiowá e Gua-
rani é a desterritorialização violenta de seus terri-
tórios originários e o afastamento das condições
objetivas e subjetivas de produção e reprodução da
vida de acordo com os modos de ser tradicionais
[ñandereko, teko porã, teko araguyje] (BENITES,
2014; PEREIRA, 2016; CHAMORRO, 2017; BENI-

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


TES, 2021). De acordo com estudiosas/os da Equi-
pe do Mapa Guarani Continental (2016, p. 10), “um
dos maiores males que os Guarani têm tido que su-
portar é a invasão e destruição de sua terra”.
A partir da década de 1940, e com a reconfi-
guração em 1970 pela mecanização das atividades
agrícolas, a invasão e destruição dos territórios
Kaiowá e Guarani tem sido violentamente exe-
cutado pelas políticas agroextrativistas (BRAND,
2004). O protagonista do atual desastre gerado às/
aos Kaiowá e Guarani, e estendido à toda popu-
lação e a natureza pela amplitude da devastação
empreendida por esse modelo, tem sido o agrone-
gócio. A seguir, abordamos os rastros destrutivos
do agronegócio. 21
Desastres dos nossos tempos

Como proposto anteriormente, a situação co-


lonial fundada pelo colonialismo e reproduzida ao
longo da história se configura como um desastre
para os povos originários. Por sua condição histó-
rica e para apreensão de sua concretude, enten-
demos a necessária substantivação da violência
empreendida por esse processo em seus termos co-
loniais (MARTÍN-BARÓ, 1987/2017; FARIA, 2021).
Em suas raízes, a violência colonial é instituída
aos povos indígenas e negros como mecanismo de
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

desumanização a partir da escala de humanidade


produzida desde os referenciais da hierarquização
racial europeia. Os parâmetros inventados pelo
eurocentrismo tiveram papel fundamental na co-
lonização para justificar a invasão dos territórios
indígenas, o sequestro e escravização dos povos
negros, e a exploração de seus corpos-territórios
em benefício dos colonizadores (QUIJANO, 2005).
A desumanização dos povos racializados e a
expropriação de suas terras através da exploração
do trabalho (escravizado e servil) para enriqueci-
mento dos colonizadores constitui as marcas da
colonização e da violência colonial enquanto uma
de suas estratégias de dominação (FARIA, 2021). A
leitura histórica a partir da análise da colonialida-
de permite compreender que esse processo não se
encerrou com o fim formal do colonialismo, mas
22
que esse padrão de poder se perpetuou por meio
da continuidade das relações desiguais nos âmbi-
tos políticos, econômicos, sociais, dentre outros
(BALLESTRIN, 2013).
Essas continuidades coloniais podem ser iden-
tificadas nos modos de operar do agronegócio, em
sua configuração transnacional, articulado ao Esta-
do brasileiro. Se antes a invasão e expropriação dos
territórios indígenas eram mediadas pelas institui-
ções imperiais, atualmente essa atuação é realizada
pela cadeia de produção agroextrativista. Essa ca-
deia articula empresas estrangeiras e nacionais, re-
presentantes políticos locais vinculados à estrutura
estatal e técnicos contratados pelo agronegócio.

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


Em recente dossiê nomeado como “Os financiado-
res da boiada”2, essas articulações são qualificadas
como “um ecossistema do lobby ruralista”.
De acordo com as investigações reunidas neste
dossiê, no comando do lobby estão as multinacio-
nais, sendo algumas delas a Syngenta, corporação
sino-suíça, e a alemã Bayer, que são os grupos que
mais se reuniram com o Ministério da Agricultu-
ra, Pecuária e Abastecimento (Mapa) durante o
governo Bolsonaro. Cabe destacar que, “enquanto
indígenas, camponeses e quilombolas são alijados
das discussões que impactam seu direito à vida e

2 Dossiê produzido pelo Observatório do Agronegócio no Brasil,


De Olho Nos Ruralistas, sistematiza os financiadores das polí-
ticas de destruição socioambiental, ver: http://bit.ly/403qqDE. 23
ao território, o poder econômico do agronegócio
transita livremente, impondo suas pautas” (De
olho nos ruralistas, 2022, p. 7).
Um dos desfechos para os/as Kaiowá e Gua-
rani engendrados nessa colonialidade no âmbito
político e econômico é apontado na constatação
de que “os índices de suicídios e homicídios ca-
minham em paralelo aos dados da produtividade
do agronegócio no Mato Grosso do Sul: a receita
do campo passou de 447,5 milhões de dólares, em
2003, para 3,81 bilhões de dólares em 2013” (MO-
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

RAIS, 2017, p. 67). Esses dados antecedem as polí-


ticas bolsonaristas demonstrando a forte atuação
desse campo mesmo em governos “progressistas”,
o que nos permite inferir não a inauguração atual,
mas a intensificação.
Esses dados desmistificam a retórica naciona-
lista propagandeada pelo agronegócio ao demons-
trar a submissão do Estado aos interesses políti-
co-econômicos internacionais em detrimento da
expropriação e genocídio dos povos originários
do país, aos quais é relegado os ônus da perca
territorial e das condições de vida. Essa situação
é compartilhada com as populações periféricas
que vivenciam situações de miséria e empobreci-
mento ao passo que os latifundiários/empresários
do agronegócio multiplicam suas produções para
exportação e seus lucros enquanto os índices de
24
fome aumentam3.
As mídias hegemônicas cumprem importante
papel no gerenciamento e divulgação da ideologia
agroextrativista que circunscrevem de forma po-
larizada os latifundiários como “pop, tech e tudo”
e os indígenas em imagens estigmatizadas/este-
reotipadas de “atrasados”, e, contraditoriamente,
“invasores” [de suas próprias terras]. Esses discur-
sos ideologizados contribuem para o processo co-
lonial de desumanização/inferiorização dos povos
indígenas, que justificam ideológica e subjetiva-
mente a exploração dos seus corpos-territórios, e
estabelece como socialmente aceitável os proces-
sos de violência. Em seguida, narraremos alguns

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


acontecimentos.

Emergência: Massacres e extermínios

O extermínio violento de pessoas e coletivi-


dades indígenas é, como apontado ao longo deste
ensaio, histórico e remonta o processo colonial de
genocídio e etnocídio em marcha desde a invasão
europeia. Marçal de Souza, Xurite Lopes, Marcos
Veron, Nísio Gomes, Clodiodi de Souza são alguns
entre tantos guerreiros/as Kaiowá e Guarani as-
sassinados/as na luta pelos territórios originários
Kaiowá e Guarani.

3 Ver: http://bit.ly/3JIRT8l. 25
Há tempos o Mato Grosso do Sul, especialmen-
te pelas experiências dos/as Kaiowá e Guarani, vive
um contexto de emergência, de guerra colonial. As
organizações Kaiowá e Guarani compostas pela
Aty Guasu (Grande Assembleia), Kuñangue Aty
Guasu (Conselho das Mulheres) e Aty Jovem (Con-
selho dos/as Jovens) têm denunciado os inúmeros
ataques e violências cometidas contra suas comu-
nidades nos últimos anos. Temos acompanhado,
desde 2019, o aumento de crimes como a queima
de Ogapysy4 (casas de reza), perseguição e violên-
cia contra ñandesys [rezadoras]5, ataques violentos
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

em áreas de retomada6 e assassinatos cruéis7.


Em menos de três meses, entre maio e julho
de 2022, os/as Kaiowá e Guarani enterraram três
guerreiros: Alex Lopes, Vitor Fernandes e Márcio
Moreira.
Alex, jovem de 18 anos, foi cruelmente assas-
sinado no dia 21 de maio quando buscava lenha
nas proximidades da Terra Indígena Taquaperi,
localizada no município fronteiriço de Coronel
Sapucaia. Após ser alvejado com pelo menos cin-

4 Ver: http://bit.ly/3JiTJeG.
5 Relatório elaborado pela Kuñangue Aty Guasu e Observatório
da Kuñangue Aty Guasu denunciam as violências de persegui-
ção, racismo e intolerância religiosa contra rezadoras/es, ver:
https://bit.ly/3Lhvccc.
6 Ver: http://bit.ly/428qcwM.
7 Ver: http://bit.ly/3ZFwiTK; http://bit.ly/3JcDxv7; http://bit.
26 ly/3TdRVIq
co disparos de arma de fogo, teve seu corpo leva-
do pelos assassinos e jogado no lado paraguaio
da fronteira. Vitor foi brutalmente assassinado,
em 24 de junho, durante ação truculenta e com
inconformidades legais realizada pela Polícia Mi-
litar (MS) na retomada de Guapoy, município de
Amambai. Essa ação policial, que contou com um
efetivo composto por diversas viaturas e um heli-
cóptero, está sendo nomeada como “Massacre de
Guapoy” pela truculência que vitimou Vitor e dei-
xou pelo menos 9 feridos, dentre estas dois adoles-
centes que foram hospitalizados. Márcio, sobrevi-
vente do Massacre de Guapoy, foi violentamente
assassinado poucos dias depois do Massacre em

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


uma emboscada.
Nos três casos o sangue Kaiowá e Guarani foi
derramado pela incidência da violência promovi-
da pelo agronegócio e/ou Estado com objetivo de
manutenção da expropriação dos territórios in-
dígenas em prol de enriquecimentos localizados,
atualizando o padrão de poder colonial desigual,
violento e desumanizante.
Mesmo com esses acontecimentos cruéis, os/
as Kaiowá e Guarani permanecem e potenciali-
zam suas lutas em movimentos de re-existência
(SEGATO, 2017). Aonde Alex tombou foi fundado/
levantado o tekoha [lugar de onde se é] Jopara.
Em marcha solidária com cerca de 2 mil pessoas,
o corpo de Vitor foi plantado no tekoha Guapoy, 27
local em que foi assassinado. Em vídeo gravado
durante o enterro de Márcio, também em Guapoy,
em meio a gritos e choros, é possível escutar a
musicalização no violão tocado por um jovem dos
versos: “Que mundo é esse tão cruel que a gente
vive?/ A covardia superando a pureza/ O inimigo
usa forças que oprimem, oprimem/ É, vai na paz,
irmão, fica com Deus”8. Para finalizar este ensaio
com boas palavras, como nos ensina a cosmologia
Kaiowá e Guarani, enfatizaremos as re-existências
aos desastres.
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

Re-existências: a urgência de
enfrentamentos aos desastres coloniais

“O nosso cotidiano tem sido de sobre-


viver em meio a guerra contra o nosso
povo Kaiowá e Guarani. Estamos de-
nunciando de todas as formas, esta-
mos todxs na mira do agro, que tem
aval do Estado para nos executar. A
gente tem percorrido os territórios se
abraçando para dar forças uma a ou-
tra, um ao outro, pois somos nós por
nós” (Kuñangue Aty Guasu, 2022)9.

O desastre vivido pelos/as Kaiowá e Guarani

8 Trecho da música “Que Mundo É Esse Tão Cruel”, de Mc Kevin


o Chris com participação de Mc Cajá.
9 Trecho publicado nas redes sociais da Kuñangue Aty Guasu,
28 ver: https://bit.ly/3JvZdTt.
é organizadamente promovido pelos ímpetos in-
cessantes/insaciáveis dos interesses capitalistas
forjados pelo colonialismo, atualmente atualizado
pelas colonialidades envoltas nas políticas agroex-
trativistas. A denúncia e transformação desse ce-
nário é urgente. Um dos movimentos possíveis é o
fortalecimento das organizações Kaiowá e Guara-
ni no processo de desideologização/conscientiza-
ção produzido na recuperação de seus territórios
originários.
As retomadas dos tekoha iniciadas ainda na
década de 1970 constituem importante ação de re-
-existência Kaiowá e Guarani. Esses movimentos
foram/são autonomamente gestados no interior

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


das Aty Guasu (Grandes Assembleias) através de
reuniões de lideranças comunitárias como estra-
tégia de sobrevivência destes povos, haja vista a
indissociabilidade entre a terra e o modo de ser
originário contido na significação do termo te-
koha [teko - modo de ser; ha – lugar]. Notando o
desinteresse e a ineficiência do Estado na garantia
de suas terras, as comunidades realizam autode-
marcações (BENITES, 2014).
Recuperar essa leitura histórica nos permite
a compreensão psicossocial dos acontecimentos
atuais, fundamentalmente para a desnaturaliza-
ção dos discursos e políticas coloniais. A violência
colonial gerenciada hoje pelas políticas do agrone-
gócio em conluio com o Estado reproduz aquelas 29
forjadas pelo colonialismo, com conteúdo distin-
to, mas nos mesmos termos da violência colonial.
Nesse sentido, é que as retomadas dos territórios
originários pelos povos indígenas significam mo-
vimentos em direção da possibilidade das (re)
existências com dignidade que foram danificadas
pelo processo colonial, em suas dimensões das:
sociabilidades, tradicionalidades, religiosidades,
saúde(s), relacionalidade, dentre outras.
Analisar essa conjuntura por essas sensibilida-
des [psicossociais] caminha na direção da apreen-
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

são dos poderes instaurados historicamente no


sentido de identificar as possíveis rupturas e trans-
formações, neste caso, a partir do protagonismo
indígena. Essa não deveria ser uma tarefa exclusi-
va aos povos originários, mas compartilhada com
aquelas/aqueles comprometidas/os com a vida co-
letiva. As necessárias e urgentes transformações
podem ser visualizadas pela recusa, distinta da
negação, dessa realidade desastrosamente violen-
ta e na denúncia das injustiças, tal como realizada
arduamente pelas organizações e movimentos in-
dígenas, a exemplo dos Kaiowá e Guarani.
São por estes caminhos, de luta e resistên-
cia originária, que percebemos a intervenção no
mundo como prática educativa que tem nos sujei-
tos (políticos e de conhecimento) a possibilidade
de reinvenção do(s) mundo(s) (FREIRE, 2000). Os
30
movimentos indígenas são pedagógicos neste pro-
cesso, é preciso nos abrirmos para (des)aprender
com seus acúmulos históricos de enfrentamentos
e re-existências (MUNDURUKU, 2012; MARTINS,
2022). Nesse horizonte reside o apoio e fortaleci-
mento das mobilizações indígenas como práxis
ético-política em enfrentamento aos desastres
coloniais. No cenário de guerra promovido pelos
poderes agroextrativistas, a reivindicação de de-
marcação dos territórios indígenas colide frontal-
mente aos interesses capitalistas do agronegócio,
o primeiro baseado na compreensão da vida cole-
tiva/comunitária em harmonia e o cuidado com a
natureza, o último pela (ir)racionalidade predató-
ria do mundo e das relações que tem nos levado à

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


deterioração das condições de vida em função da
lucratividade/enriquecimento de algumas poucas
empresas-pessoas.
O colonialismo europeu foi/é um desastre
para os povos originários e para humanidade, os
seus resquícios permanecem nas colonialidades,
aqui enfatizada desde as políticas do agronegócio.
O combate a este padrão de poder colonial é ur-
gente para a possibilidade de vida digna e saudável
para as coletividades. Permanecer nos rastros dos
desastres é antecipar o fim do mundo, historiciza-
-lo desde as compreensões originárias é adiar esse
fim e contribuir para segura-lo em suas harmonias
possíveis (KRENAK, 2019).
31
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O fim do mundo para os Kaiowá:
cataclismo e recomeço
AVA VERA RENDY JU - ANTÔNIO CARLOS BENITES
LEVI MARQUES PEREIRA

O tema do fim do mundo é recorrente na etno-


grafia sobre os povos de língua e cultura costumei-
ramente denominados de guarani. Schaden relata

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


o episódio por ele presenciado em sua pesquisa de
campo na aldeia kaiowá de Panambizinho, no final
da década de 1940, quando um xamã iniciou o ci-
clo de rezas destinado ao desencadeamento do fim
do mundo, após ter tomado conhecimento da de-
cisão do Governo de lotear as terras ocupadas pe-
los Kaiowá e distribuí-las aos colonos que estavam
chegando para ocupar as terras da comunidade:

No Panambi, Paí Chiquinho, ...quando


soube que, em obediência a determi-
nação do Ministério da Agricultura,
a direção da Colônia Federal de Dou-
rados decidira lotear as terras do Pa-
nambi, para distribuí-las a famílias de
imigrantes, sem atender às necessida-
des e aos direitos dos Kaiowá, resolveu 35
agir – sempre, porém, dentro do âmbi-
to de sua competência. Tomado de ira
sagrada, promoveu danças religiosas
com o intuito de apressar o fim desta
Terra, em que, pela incompreensão e
má vontade do homem branco, as con-
dições de vida se tornaram insuportá-
veis (SCHADEN, 1974: 99).

Nos conflitos atuais pela posse da terra entre


os Kaiowá e fazendeiros em Mato Grosso do Sul
é comum os Kaiowá ameaçarem retomar os can-
tos capazes de provocar a destruição da terra. Esta
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

ameaça é destinada principalmente às autorida-


des da FUNAI e outras esferas de governo, pressio-
nando-as para tomarem as medidas administrati-
vas e encaminhar os processos de demarcação das
terras.
O cataclismo desencadearia eventos contrá-
rios à vida humana na terra, como incêndios des-
controlados, inundações, secas, aparecimento de
seres monstruosos, ventos muito fortes e doen-
ças1. Existe uma série de acontecimentos na vida
social, na natureza e no universo celeste cujo obje-
tivo é indicar para o xamã a presença de forças dis-
ruptivas. Isto torna a ameaça do fim do mundo fato
concreto e rotineiro na cosmologia kaiowá. A des-
truição da terra implica na destruição das espécies

1 Meliá afirma inclusive que estes são temas “obsessivos na


36 mitologia guarani” (Meliá, 1990: 39).
vegetais e animais que aí habitam – inclusive o ho-
mem. Na cosmologia kaiowá as relações produzem
os próprios elementos que levam a sua deteriora-
ção, dada a condição de imperfeição, característi-
ca da vida na terra, de modo que as coisas tendem
a caminharem para sua destruição, e a atuação do
xamã, através das rezas - ñembo’e, é no sentido de
“segurar”, como afirmam. “Segurando”, ele impe-
de ou pelo menos retarda o desencadeamento do
processo de destruição. As forças destrutivas não
podem ser aniquiladas de uma vez por todas, a luta
é perpétua, o xamã vive segurando, nunca pode
soltar, pois se isto acontecer a destruição é irre-
versível. É por isso que o xamã não pode parar de

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


rezar, isso equivaleria a deixar as coisas seguirem
sua tendência intrínseca, inexoravelmente ligada
ao caos. O receio de que isto possa ocorrer é um
componente básico no horizonte guarani, ao que
tudo indica desde períodos anteriores à penetra-
ção colonial (MELIÁ, 1982: 41).
A terra “está sustentada sobre um ponto de
apoio que a qualquer momento pode cambalear
e cair. Fragilidade e inestabilidade ameaçam con-
tinuamente o universo guarani. A destruição está
sempre no horizonte” (MELIÁ, 1982: 39). Para o
Kaiowá, o futuro está fadado ao encontro inevitá-
vel com o caos, contrastando radicalmente com o
pensamento ocidental cristão para o qual o futuro
é indissociável da ideia de progresso e de evolução,
37
sendo, por isso, qualitativamente superior ao pre-
sente, da mesma forma que este é superior ao pas-
sado. Como consequência, a cosmologia moderna
produz perspectivas triunfalistas, como o cristia-
nismo, o positivismo e mesmo o comunismo.
O “pessimismo guarani” chamou a atenção
dos pesquisadores como sendo uma das princi-
pais características desse grupo étnico. No pen-
samento guarani, o futuro da formação social é o
inevitável encontro com o caos, e o esforço perma-
nente é voltado para negociar com as divindades
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

o prolongamento do equilíbrio cósmico por mais


algum tempo (BENITES e PEREIRA, 2021). Assim,
todo Kaiowá deve pela manhã saudar a divindade
kuarahy, representada no sol, no ritual denomina-
do de jehovasa. Só a partir daí deve planejar suas
atividades e iniciar com certa segurança o seu dia.
A proximidade do cataclismo se anuncia por
alterações perceptíveis pelo xamã kaiowá. Assim,
quando as colorações características da aurora
(leste) aparecem no ocaso (oeste), é sinal de grave
alteração no equilíbrio cósmico, prenunciando a
ocorrência de doenças nos humanos, pragas nas
lavouras, conflitos políticos ou o pior, a iminência
da destruição da terra. Avisado por estes sinais, o
xamã deve reunir seu grupo de reza e interceder
junto às divindades para afastar as ameaças.
Os Kaiowá, projetando o destino da formação
38 social humana na terra como marcado pelo ine-
vitável encontro com o caos, não podem deposi-
tar aí seu horizonte de porvir. Daí o empenho em
manter viva a crença na superação da condição
terrena; mais que possibilidade, ela é uma neces-
sidade. Este aspecto da cosmologia talvez ajude a
entender a enorme receptividade da mensagem
apocalíptica do pentecostalismo cristão dentro
das comunidades guarani de Mato Grosso do Sul
a partir de meados da década de 1980, tema que
ainda merece uma reflexão mais aprofundada.
Durante os estudos de levantamento para a
confecção do relatório circunstanciado de identi-
ficação e delimitação da terra indígena kaiowá de
Guyraroká, alguns xamãs insistiram muito sobre

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


a ameaça de destruição que pesa sobre o mundo.
Os xamãs se reuniram e fizeram questão de que
o tema apareceria no relatório (PEREIRA, 2002).
Um dos xamãs, Papito Vilharva da comunidade de
Guyra Roká disse: “isto é para você anotar, o Go-
verno tem que saber!”. Acreditam que uma ameaça
paira sobre a terra “e que está na mão dos caciques
(xamãs) o poder de controlar essas forças destru-
tivas”. Os xamãs enfatizaram a importância de o
Governo tomar conhecimento da ameaça que pai-
ra sobre a nação e consideram que o poder para
livrar o povo brasileiro da catástrofe “está na mão
dos caciques”. Papito Vilharva considera que este é
um bom motivo para o governo “Respeitar mais o
direito do índio, pois o cacique (nhaderu ou nhan-
39
desy) está cansado de ver seu povo sofrer e pode
um dia resolver rezar e pedir que Deus destrua a
terra de uma vez e acabe com tanto sofrimento”.
O cacique (nhaderu ou nhandesy), formas
como denominam o/a xamã, dispõe de amplo ar-
senal destrutivo que pode acionar um a um, atra-
vés de rezas específicas que só ele conhece, quan-
do decidir que chegou o momento de destruição
final da terra. As principais rezas seriam:

- as rezas para a divindade denomina-


Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

da Ju’y2, identificada ao arco-íris. Essa


divindade –tekojara, tem a capacidade
de fazer com que caiam raios sobre a
terra, queimando e destruindo tudo
que atingem;
- o Chiru Hyapu Guasu é considerado
uma das principais divindades, res-
ponsável direto pela existência dos
Kaiowá, “sem ele nós não existiría-
mos”, afirmam;
- tempestade sem controle – yvytu
guasu –, que destrói tudo, derruba ár-
vores, prédios, etc. Essa tempestade
pode ser acompanhada por chuva de
pedra, aumentando ainda mais o seu
poder destrutivo. Como é comandada

2 O dono do arco-iris constitui-se em perigo para a menina no


período de resguardo –jeko aku da primeira menstruação, pois
“tem que cuidar-se em especial do arco-iris (jy’y), cujo dono
constitui um perigo para a alma da menina em estado de ‘jeko
40 aku’” (MELIÁ, GRÜNBERG & GRÜNBERG, 1976: 253).
pelo Chiru Hyapu Guasu, uma vez de-
sencadeada, ninguém pode impedir
sua progressão;
- grande chuva – oky guasu/amã puku
– que dura dias seguidos, provocando
uma inundação que cobre toda a terra.
No caso da grande inundação, acredi-
tam que quando a água escoa para o
mar leva consigo toda a imperfeição
da terra, que então se regenera3;
- yvy okai fogo voraz que queima tudo,
inclusive a camada superficial da ter-
ra;
- pragas de mandarová (yso karu), ga-
fanhoto (tuku), abelha (eirague), e a
invasão de uma série de seres mons-

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


truosos, como mala vision, pai do mato
e pé de garrafa4;
- pode ainda fazer surgir a grande es-
curidão com o eclipse do sol e o fe-
nômeno do paikuara ojeó -pytumba,
envolvendo toda a terra. Em meio à

3 A camada externa da terra se degenera juntamente com a


formação social humana que vive sobre ela, é assim que os mor-
ros e elevações são testemunhos de destruições anteriores, es-
ses locais ficaram mais altos porque foram protegidos da ação
do fogo ou da água por se constituírem em refúgios de antigas
comunidades Kaiowá que aí residiam. O cataclismo retira a por-
ção corrompida da terra, desnudando uma nova camada para o
reinício da vida.
4 Alguns seres originários da mitologia Kaiowá fundiram-se
com crenças originárias do catolicismo popular, criando pontos
de conexão entre os dois sistema de crenças, embora a repre-
sentação desses seres no pensamento kaiowá apresente distin-
ções significativas em relação ao catolicismo. 41
escuridão aparecerão enormes morce-
gos carnívoros – mbopy guasu –, acom-
panhados de outros monstros carní-
voros que se apresentam como cópias
dos animais que vivem na terra, mas
são seres deformados, possuem asas,
enormes dentes de felinos e garras
afiadas, como o lagarto monstruoso
-teju jagua.

A terra e tudo o que nela se constitui é marcado


pela imperfeição, deterioração e corrupção, sen-
do por isso caracterizada como yvy mba’e megua- a
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

terra das coisas imperfeitas. Como um organismo


vivo, ela se desgasta e envelhece em sua camada
exposta à história e as relações, necessitando pe-
riodicamente passar por processos de renovação,
isto se dá através do cataclismo.
Para os Kaiowá, as sucessivas destruições da
terra imprimiram em sua superfície cicatrizes, ves-
tígios de destruições anteriores, no tempo dos an-
tepassados – yma guare, além de atestar a eficiência
de suas ações rituais, salvando certas comunidades
eficazmente dedicadas às práticas rituais.
Os morros em forma de chapadões caracterís-
ticos dos contrafortes ou franjas da serra de Mara-
caju (no Brasil) e Amambaí (no Paraguai), situados
no território de ocupação tradicional pãi-tavyterã
e kaiowá, testemunham que ali viveram comuni-
dades em tempos imemoriais. Quando adveio o
42
cataclismo, essas comunidades teriam se reunido
e rezado, impedindo a destruição do local. Isto ex-
plica sua elevação em relação à paisagem, pois, a
cada destruição, a terra fica mais baixa, desgasta-
da pela ação do fogo, água, vento ou outros agen-
tes provocadores da destruição.
O trabalho do xamã seria construir ativa e
permanentemente esta aproximação entre o pla-
no humano e o plano divino, daí a expressão: “o
xamã vive segurando”, é como se a ligação entre
as divindades e o homem estivesse atada por um
fio tênue e tenso, sempre pronto a se romper ou se
soltar. Qualquer descuido do xamã leva ao distan-
ciamento, e este, à destruição.

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


Com a palavra os xamãs e seus aprendizes –
YVYPA’JA YVYRAIJA KAIOWÁ

Os sinais da iminência do fim do mundo estão


nas manifestações da natureza que vem ocorrendo,
e para os Kaiowá sinalizam que o fim está próximo.
Uma das primeiras sinalizações para o fim do mun-
do se iniciaria com as plantas que não mais germi-
nariam e, mesmo quando conseguem germinar,
não crescem adequadamente, tendo o desenvolvi-
mento vegetativo e produtividade comprometidas.
Esse comprometimento da produção de ali-
mentos agrícolas teria relação direta com o afas-
tamento dos guardiões -jara das plantas, que não 43
estariam mais fazendo o seu papel de cuidado com
as plantas agrícolas sob seu domínio. O afastamen-
to gradual dos guardiões tem o efeito correlato na
diminuição dos praticantes rituais e rezas associa-
dos aos guardiões dos diversos modos de existir
–teko jara kuera. Desse modo, quando o dono das
plantas não estiverem mais presentes na terra, os
conhecedores dos cantos também irão sumindo,
não havendo mais xamãs com competência para
a realização de rituais como o batismo do milho, o
jerosy puku, de extrema importância para assegu-
rar a capacidade produtiva das plantas. Está cada
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

vez mais difícil realizar esse ritual e poucas comu-


nidades ainda insistem na prática.
No contexto kaiowá no estado do MS a reali-
zação do kunumi pepy já não existe mais, só em
poucas comunidades do lado paraguaio. Um dos
motivos é a diminuição dos yvyra’ija, auxiliares do
chefe de cerimônia, cada vez mais escassos nas
comunidades. Boa parte deles acaba se converten-
do às religiões neopentecostais, sendo forçados a
deixar a prática ritual.
A consequência direta do abandono do jehosy
puku, o bastimo das sementes, seria que as plantas
deixariam de germinar e produzir. O abandono
das práticas pré-natais e ritual de nominação te-
riam como consequências a interrupção dos nas-
cimentos de crianças, e as que nascessem teriam
44
morte prematura.
Os cuidados pré-natais kaiowá são extrema-
mente necessários. Realizados pelas parteiras, co-
nhecedoras da reza do parto e com domínio sobre
as técnicas de massagem, são elas que são respon-
sáveis pelo nascimento das crianças. O sistema de
saúde do governo impede ou dificulta a realização
desses cuidados, impondo muitas vezes o parto
hospitalizado, não raro com cesárea.
Na cosmologia kaiowá constitui fato grave cor-
tar a mãe para o nascimento do seu filho, sendo
esse um dos fatores que prenunciam o caminho
para o fim do mundo. As parteiras vêm sempre
narrando que estão sendo substituídas pelo bis-
turi. Muitas vezes são procuradas para ajudar as

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


mães no pós-parto, tenho de lidar com os proce-
dimentos já realizados, como o corte da mãe. Mes-
mo assim, as parteiras preparam remédios com
base em plantas e raízes medicinais tradicionais.
Outro indício do final do mundo é o abandono
dos animais que vivem na floresta por parte dos seus
guardiões. Os animais de cada espécie acabariam
morrendo porque seus donos se afastaram. Nesse
caso, os animais perderiam sua alma, ficariam deso-
rientados se acabariam pouco a pouco. Os guardiões
se afastam porque sua casa, a mata, está sendo des-
truída e não suportam o cheiro de veneno. Muitos
desses animais são recolhidos em patamares supe-
riores, onde existe mata, e para onde os guardiões
-teko jara, se recolhem (PEREIRA, 2004). 45
E por fim chegaria ao fim da humanidade que
é a última espécie a morrer com o fim do mun-
do, porque o mundo iria ficar sem a plantas, sem a
animais que contribuem para sua alimentação (só
os animais ferozes, seres jaguarizados, permane-
ceriam), sem os nascimentos da crianças e o fim
da humanidade. Após o mundo ficar sem nem os
recursos necessários à existência do homem, de-
sabaria a escuridão e o ataque dos animais fero-
zes, acabando com tudo.
Então os rezadores tem as rezas para fazer
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

este ato do fim do mundo acontecer e este fim do


mundo não seria algo que ocorreria rapidamente.
Aconteceria de forma lenta e dolorida para todas
as espécies existentes no universo.
E por fim a terra acabaria, como já acabou em
outras épocas, na iniciação do tempo -yma guare.
Depois, poucas pessoas retornariam e viveriam
nesta terra. Isto quando ocorresse o ressurgimen-
to da terra, renovada e com condições apropriadas
para a existência humana.
Entrevista do renomado xamã kaiowá, Atana-
sio Teixeira:

Nhande voi joty sapyaitepe hakuera


nanhandemokanhy moai, po jahata
peixa: remano há reho, há remano
há reho peixa hae e´reho hina, ha ko
yvy ndo pamoai, ko ara ndo pa moai
46 ave, ara oguereko ejekoha ropyta aje-
ve uperupi hae há hopyta, ajeve joty
hopyta hoa’paramo ko ikatu opa uvya
há ara, há yvaga ojere avei, opape yvy
ndo pamoai, po nhade yvypora japa
ara ointe, há mbayri kuera opavereita
oho, ko yvy hae no nhehundui moai,
há ojeaperira akuery yvytu guasugui
há amandau gui mi mbayri kuery. Aje-
ve joty ourõ yvytu guasu há amandau
nha roivatῐ arã nhemboepe há purah-
eipe, mba’asy katu hae nhande rundita
oho, ajeve joty nha hovaitῐ arã nhem-
boepe há puraheipe. (Entrevistada
11/07/2022) .

Tradução:

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


Nós mesmo não vamos acabar de uma
vez só, eles (refere se aos não indíge-
nas) não vão nos matar, mas vamos
assim: vamos morrer e ir embora e as-
sim morrer e ir embora, e a terra não
vai acabar, mas o céu não. O céu e a
terra tem o acento que segura. A terra
e o céu, agora se esses acentos caírem,
aí o mundo e o céu pode acabar, mas
não vai acontecer isso, mas a terra gira
também, mas acabar a terra não vai
acabar. Agora nós seres humanos, nós
vamos acabar, mas os não indígenas
vão acabar mais cedo, essa terra não
vai morrer, mas eles os não indígenas
vão estar em perigo por causa do tor-
nado, de vento forte e granizo. Então,
quando vir o tornado de vento forte 47
e granizo devemos cantar e rezar de
encontro com eles, para não atingir.
Agora a doença vai nos matar mesmo,
então devemos sempre rezar e cantar
para o encontro da purificação desses
eventos cataclísmicos.

Referências

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conhecimentos dos guardiões dos modos de ser –
teko jára, habitantes de patamares de existência
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

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sistema social e seu entorno. Tese de doutorado
em Antropologia. São Paulo, SP: Universidade de
São Paulo, 2004.

48
Apontamentos e reflexões a partir
de uma experiência com o povo
Bororo em Meruri
JOSÉ FRANCISCO SARMENTO NOGUEIRA
LEANDRO SKOWRONSKI

Li uma história de um pesquisador eu-

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


ropeu do começo do século XX que es-
tava nos Estados Unidos e chegou a um
território dos Hopi. Ele tinha pedido
que alguém daquela aldeia facilitasse
o encontro dele com uma anciã que ele
queria entrevistar. Quando foi encon-
trá-la, ela estava parada perto de uma
rocha. O pesquisador ficou esperando,
até que falou: “Ela não vai conversar
comigo, não?”. Ao que seu facilitador
respondeu: “Ela está conversando com
a irmã dela”. “Mas é uma pedra.” E o
camarada disse: “Qual é o problema?”.
(KRENAK, 2019)

O Núcleo de Estudos e Pesquisas das Popu-


lações Indígenas – Universidade Católica Dom
Bosco (NEPPI-UCDB), concorreu ao edital de um 49
projeto proposto pela Pró-reitoria de extensão
da UCDB em parceria com a Missão Salesiana de
Mato Grosso. A proposta do projeto baseava-se em
ações junto à comunidade de Meruri, onde reside
uma parte do povo Bororo e onde também se en-
contra uma das sedes da Missão Salesiana de Mato
Grosso. Meruri está localizado no estado de Mato
Grosso, a 1.000 km de Campo Grande, onde está
situada a UCDB.
O nome do projeto proposto era: “projeto vi-
vencias: operação Meruri, vivências de cidada-
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

nia”. O objetivo do projeto segundo o edital era o


de “desenvolver atividades de cidadania na comu-
nidade”. Uma das questões apontadas no edital ti-
nha uma relação com alguns trabalhos em que o
NEPPI já tinha alguma expertise, a relação com a
agricultura, formas sustentáveis de produção e a
relação da escola com as tecnologias digitais em
seu uso pedagógico, temas que já foram desenvol-
vidos em trabalhos de extensão e em pesquisas
publicadas pelo NEPPI.
Fizemos nossa proposta e fomos seleciona-
dos. Embora o perfil do edital não contemplasse
o formato em que acreditamos de projetos, nos
convencemos que devíamos participar pelo desa-
fio e apresentar uma proposta que se aproximasse
de nossa crença em relação a desenvolvimento de
projeto. Sabemos, por uma larga experiência em
50
comunidades tradicionais, que os projetos desen-
volvidos nesses locais, devem ser feitos a partir
do diálogo aprofundado com a comunidade, te-
mos a impressão de que não há espaço para um
bom andamento de projetos nessas ações de pro-
postas impositivas, verticais, e desenvolvidas sem
nenhuma “intimidade” com a comunidade, uma
relação de confiança e de afeto. O curto espaço de
tempo destes projetos “ligeiros” não permite estas
relações tão caras aos formatos pretendidos nos
projetos desenvolvidos pelo NEPPI. A relação de
“poder” na nossa concepção deve ser horizontal,
possibilitando um debate de ideias. Conhecer as
questões políticas, sociais e históricas da comu-
nidade, conhecer um pouco de suas tradições,

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


crenças, cosmovisão, etc. Sem algumas dessas
questões os projetos ficam desconectados com a
realidade local, e a chance de não ir a frente, ou
melhor de não ter continuidade por parte da co-
munidade é grande.
Outra característica que temos observados em
projetos junto as comunidades é a possibilidade
de construirmos essas ações junto a escola, pois é
um espaço em que muitas vezes as questões políti-
cas das comunidades são “filtradas” (não é um pa-
drão) mas as tensões políticas de uma associação,
das relações com as lideranças locais de grupos
de trabalho são mais diluídas na escola. A escola
é um espaço onde alguns temas podem ser relati-
vizados, problematizados, em torno de uma ideal
51
em comum: as crianças. Focamos então a ações do
projeto junto a escola, onde os professores seriam
os intermediadores deste processo.
De alguma forma subvertemos a proposta ini-
cial do projeto. A primeira ação foi dar um outro
nome ao projeto, entendemos que o nome era um
tanto pretencioso, principalmente no que tange a
questão da cidadania, nossa crítica perpassa um
discurso colonial de portadores de um “dom secre-
to” que é o de ser cidadão, de ser um ser civilizado,
não temos afinidade com esta proposição logo não
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

seria coerente desenvolver um projeto em que não


houvesse consonância com o título, que ao nosso
ver é a mola propulsora do desenvolvimento, o tí-
tulo anuncia o que se quer. Outra mudança pro-
posta foi em relação ao cronograma e a dinâmica
do projeto, inserimos rodas de conversas, debates
e dinâmicas antes de iniciar qualquer atividade.
Incluímos ainda uma ida a comunidade antes do
início do desenvolvimento do projeto, com o pro-
pósito de conhecer as lideranças locais, e em loco
entender (embora superficialmente) suas necessi-
dades, reivindicações, conflitos, esperanças, rela-
ção de poder e outras questões mais. Se tornou im-
portante para o desenvolvimento do projeto estas
pontuais inserções, embora entendamos que esta
relação com a comunidade será breve, tínhamos
a certeza que era melhor do que chegar do “nada”
para desenvolver algo.
52
Este trabalho tem o objetivo de apresentar as
dinâmicas adotadas, nossas expectativas em rela-
ção ao projeto e o encontro com a escola. Logo,
este artigo foi dividido em duas partes. A primeira
versa sobre as relações culturais na modernidade/
colonialidade, e os desafios impostos pelo prota-
gonismo cultural destes povos nas relações sociais
com o seu entorno e tendo como palco o espaço
escolar e a tentativa de uma escola “própria”. No
segundo momento, apresentamos algumas ques-
tões que circundam as escolas indígenas.

A pluralidade é a condição da ação


humana pelo fato de sermos todos os

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


mesmos, isto é, humanos, sem que
ninguém seja exatamente igual a qual-
quer pessoa que tenha existido, exista
ou venha a existir.” (ARENDT, 2009)

Cultura e suas relações com as tensões


identitárias

O NEPPI, no desenvolvimento de projetos em


comunidades tradicionais, tem se preocupado
com as tensões identitárias que são provocadas
na relação com o outro, as complexidades que
circundam a questão da alteridade, e os intensos
debates das definições que a contemporaneidade
tem apresentado sobre as relações culturais, tem
nos norteado as mais diversas percepções a res-
peito destes entrelaçamentos e os diversos con- 53
textos dialógicos promovido pela cultura e as tra-
mas que são tecidas a partir destas relações. O que
pretendemos em nossos projetos é entender as
possibilidades relacionais no contato com outras
culturas, sempre atentos a dinâmica e a relação
de poder estabelecidas nas relações com o outro.
Para o NEPPI, as vigílias a estas questões são mui-
to importantes, para o desenvolvimento de qual-
quer trabalho em comunidades autóctones.
As mudanças surgidas no Séc. XX, relativas
ao ambiente global, modificaram radicalmente a
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

maneira de pensar na nova configuração cultural


em que estamos inseridos. Essa “revolução cultu-
ral”, como chama Stuart Hall, deu visibilidade à
“margem”, a novos protagonistas do pensamento.
Tal revolução mexeu também com as estruturas
sólidas, pautadas em superestruturas ideológicas.
Em seu texto: “A centralidade da cultura: notas so-
bre as revoluções culturais do nosso tempo”, Hall
(1997) traça um panorama geral deste novo mode-
lo de sociedade, baseado nos fundamentos da cul-
tura: “No séc. XX vem ocorrendo uma revolução
cultural no sentido substantivo, empírico e mate-
rial da palavra. Sem sombra de dúvida, o domínio
constituído pelas atividades, instituições e práti-
cas expandiu-se para além do conhecido” (HALL,
1997, p. 2). Para esse autor, houve um aumento dos
meios de produção, da circulação e a troca cultu-
ral que se expandiu em particular, por meio das
54
tecnologias de comunicação e da revolução da in-
formação.
Nessa nova configuração em que a cultura se
torna protagonista das relações sociais, a antiga
distinção que o marxismo clássico fazia entre a
“base” econômica e a “superestrutura” ideológica
não se sustentam na época em que a mídia é “ao
mesmo tempo, uma parte crítica na infraestrutura
material das sociedades modernas” (p.2), e, tam-
bém, um dos principais meios de circulação de
ideias e imagens. Hall (1997) acrescenta:

O impacto das revoluções culturais so-


bre as sociedades globais e a vida coti-

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


diana local, no final do séc. XX, pode
parecer significativo e tão abrangen-
te que justifique a alegação de que a
substantiva expansão da “cultura” que
experimentamos, não tenha prece-
dentes. Mas a menção do seu impacto
na “vida interior” lembra-nos de outra
fronteira que precisa ser menciona-
da. Isto relaciona-se à centralidade da
cultura na constituição da subjetivida-
de, da própria identidade, e da pessoa
como um ator social (Id., 1997, p.6).

Essa acelerada velocidade de disseminação da


diversidade, carreada pelas forças da globalização
cultural - por meio de uma velocidade midiática
nunca antes experimentada, deu origem a um
novo quadro. Stuart Hall sublinha a questão da 55
fronteira cultural, a partir desse entendimento de
negociação e diálogo. Surge um novo cenário no
pensamento científico que trouxe à tona discus-
sões ainda mais significativas em diversos campos
do conhecimento.
No ambiente que rege o discurso do “pluralis-
mo cultural” muitos intelectuais contemporâneos
gostam desse termo que tangencia as relações das
identidades e diferença. No entanto, outros inte-
lectuais criticam o termo, pois acreditam que exis-
ta um “filão acadêmico” na discussão a respeito do
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

tema. Para Bauman (2003), os descendentes dos


intelectuais modernos querem e procuram “mais
espaço”. O engajamento com “o outro” ao invés de
deixá-lo em liberdade, em deixá-lo na possibilida-
de de se expressar, ou de criar meios para que isso
aconteça, reduz esse espaço ao invés de aumen-
tá-lo. Esse discurso do pluralismo, para Bauman,
mais limita, do que liberta, o protagonismo destes
sujeitos fica em segundo plano, neste “mar” cul-
tural simulado, artificial. Há, portanto a criação
um “novo” desprezo em relação à diferença que é
teorizado como o “pluralismo cultural”, para este
autor, a política que nos informam e defendem é a
do “multiculturalismo”.
Segundo Bauman (2003) vivemos uma verda-
deira confusão em relação ao respeito à diferen-
ça. Por enquanto o “multiculturalismo” torna-se
56
um joguete nas mãos da globalização, que não é
limitada politicamente, e essas forças escapam das
consequências devastadoras causadas em diversas
comunidades, sendo a principal questão das desi-
gualdades entre sociedades e dentro das socieda-
des. O hábito de explicar a desigualdade por uma
inferioridade é antigo, ostensivo e arrogante. Nes-
se sistema a inferioridade é inata em certas raças,
mas o discurso foi substituído por uma aparente re-
presentação de uma apiedada na condição huma-
na brutalmente desigual como direito inalienável
de toda comunidade a sua forma preferida de viver.
Alguns autores são defensores de uma política
“intercultural” e outros de uma política “multicul-
tural”. Outros consideram uma parte da outra. Ve-

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


jamos os argumentos de alguns autores que têm se
prestado a discutir tais conceitos.
Segundo (FLEURI, 2003, p. 16), “a perspecti-
va intercultural ganha força no cenário mundial,
emergem políticas afirmativas de minorias étni-
cas, propostas de inclusão de pessoas portadoras
de deficiência, de movimentos de gênero, de ter-
ceira idade”. Fleuri (2003) complementa que este
quadro pressupõe, por meio dessas propostas,
uma renovação dos paradigmas científicos e me-
todológicos.
De acordo com Candau (2012), na América
Latina, sobretudo no Brasil, a questão multicultu-
ral apresenta uma configuração muito particular,
pois o nosso continente foi inventado sobre uma 57
base multicultural muito forte que tem feito com
que as “relações interétnicas sejam uma constan-
te através de toda sua história” (p. 21). No que se
refere aos povos originários vemos uma história
multicultural dolorosa e trágica.
A eliminação física do outro ou sua escraviza-
ção marcou a nossa formação histórica, que são
maneiras violentas de negação da alteridade. Os
processos de negação do “outro” também se dão
no plano das representações e no imaginário so-
cial e, nesse sentido, o debate multicultural na
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

América Latina implica sujeitos históricos que fo-


ram massacrados ou que puderam resistir e conti-
nuam afirmando suas identidades fortemente na
nossa sociedade, mas numa situação de relações
de poder assimétricas, de subordinação e acentua-
da exclusão (CANDAU, 2012).
Este processo histórico de exclusão, de nega-
ção do outro é resultado de um projeto de moder-
nidade que determinou o “sujeito padrão” para
esta sociedade vislumbrada pela modernidade. É
como este projeto de um mundo idealizado sur-
gem diversas perguntas: O que é ser moderno?
Qual é o conhecimento “real”? O que é ciência? O
que é ser feliz? O que é estar na moda? Você está
à frente de seu tempo? São perguntas da moder-
nidade às quais os países tidos como periféricos
ficam “desesperados” para responder.
58 Essa dominação cultural imposta pelo projeto
de modernidade que dita as regras sociais que de-
vemos seguir e regulam nossa relação com o outro
e o mundo, monitorando o nosso comportamento
para que possamos atender suas demandas. Nos
“induzem”, ou melhor, criam um ambiente cul-
tural que provoca a exclusão daqueles que não se
enquadram em um perfil imaginado pelos que do-
minam. Questionamos realmente esta realidade?
Procuramos obter respostas e soluções sobre essa
opressão que é imposta a esses povos periféricos?
Veja a contribuição de Castro-Gómez para esse de-
bate: “O que queremos dizer quando falamos so-
bre “projeto da modernidade”? Em primeiro lugar,
nos referimos a intenção dramática de submeter

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


a vida a um controle absoluto do homem sob a
orientação de um conhecimento tido como certo”
(Castro-Gómez, 2005, p. 149).
É interessante (ou seria trágico?) perceber que
o “projeto da modernidade” como afirma Castro-
-Gómez, é um projeto de castração de ideias e um
monitoramento de pensamento. Para ser moder-
no o sujeito tem que se enquadrar em um padrão
estabelecido por um poder que não se vê, mas se
faz presente desde o momento em que os sujei-
tos destas populações (oprimidas) começam seus
processos de alfabetização. Vejamos como Gómez
esteia-se em conceitos relativos a essa realidade:

Para ser civilizados, para entrar e for-


mar parte da modernidade, para ser ci- 59
dadão colombiano, brasileiro ou vene-
zuelano, os indivíduos não só deviam
saber se comportar corretamente e sa-
ber ler e escrever, como também ade-
quar sua linguagem a uma série de nor-
mas. A submissão à ordem e à norma
conduz o indivíduo a substituir o fluxo
heterogêneo e espontâneo da vida pela
adoção de uma continuidade arbitra-
riamente construída desde a alfabeti-
zação (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p.149).

Neste processo de dominação e de explora-


Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

ção dos países hegemônicos, criou-se, nos países


periféricos, fórmulas e formas nas quais estes su-
jeitos tinham que de alguma forma se enquadrar,
tinham que se tornar “cidadãos” desse novo mun-
do criado pela modernidade e para que ele se tor-
nasse aquilo que ele não era, criou-se entre outras
normas, a constituição, um documento “legal” que
regulamenta o direito deste sujeito, agora cidadão,
de “ser”, de “existir”. Castro-Gómez (2005, p. 149)
assim desenvolve:

A formação do cidadão como “sujeito


de direito” só é possível dentro do mar-
co da escritura disciplinaria e, neste
caso, dentro do espaço de legalidade
definido pela constituição. A função
jurídico-política das constituições é,
precisamente, inventar a cidadania, é
dizer, criar um campo de identidades
60 homogêneas que fizeram viável o pro-
jeto moderno da governabilidade. A
constituição venezuelana de 1839 de-
clara, por exemplo, que só podem ser
cidadãos os homens, casados, maiores
de 25 anos que saibam ler e escrever,
donos de propriedades de raiz e que
pratiquem uma profissão que gere
renda anual não inferior a 400 pesos.
A aquisição da cidadania é, então, uma
peneira pela qual só passaram aquelas
pessoas cujo perfil se ajustasse ao per-
fil de sujeito requerido pelo projeto de
modernidade: homem, branco, pai de
família, católico, proprietário, letrado
e heterossexual. Os indivíduos que não
cumprem esses -requisitos (mulheres,
empregados, loucos, analfabetos, ne-

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


gros hereges, escravos, índios, homos-
sexuais, dissidentes) ficaram por fora
da ‘cidade letrada’, reclusos em um
ambiente de ilegalidade, submetidos
aos castigos e à terapia por parte da
mesma lei que os excluí.

Ao incidir sobre outras formas de conhecimen-


to, essa “destruição criadora” traduziu-se em epis-
temicídio. A morte de conhecimentos alternativos
acarretou a liquidação ou a subalternização dos
grupos sociais cujas práticas assentavam em tais
conhecimentos. Este processo histórico, que foi
violento na Europa, foi muito mais nas outras re-
giões do mundo sujeitas ao colonialismo europeu.
Historicamente, os países que sempre estiveram
61
na periferia do mundo, como os da África e Améri-
ca Latina que sofreram com os rudes processos de
colonização, ainda sentem os ecos desse processo
por meio da colonialidade, que é a continuidade e
garantia do processo de dominação e exploração
desses povos, pelas culturas hegemônicas.
Trata-se de um contínuo processo de relação
patriarcal, no qual os mais ricos ditam as regras
de acordo com seus interesses: como e o que deve-
mos fazer em nosso dia-dia, como devemos edu-
car em nossas escolas, como temos que nos vestir,
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

falar, se comportar, agir, pensar etc.


Esse controle, que muitas vezes é imperceptí-
vel, acentuou as diferenças sociais entre esses po-
los, onde a relação de “benefícios” sempre privile-
giou os mais ricos e os que estavam dentro deste
padrão determinado. Tudo que não está “dentro”
deste perfil hegemônico, conformado com este
“panorama” epistemológico, acaba sendo desme-
recido, desacreditado e marginalizado.
Um conhecimento fármaco a partir de então
pode ser denominado como bruxaria ou feitiço.
Uma língua ágrafa se torna dialeto. E assim outros
conhecimentos e tradições vão sendo colocados
de “lado” ou rotulados em nome de um conheci-
mento “certo” “ideal”. Podemos dizer que a moder-
nidade “vendeu” a ideia de que este conhecimento
tem o “modelo” da correção.
62
Diante das imposições históricas que estes po-
vos sofreram, surgem as escolas, um instrumento
a mais para estes povos dialogar, um modo oci-
dental de educar, de ensinar, de normatizar este
outro sujeito, que para fazer parte deste processo
de modernidade, para se tornar um outro civili-
zado, necessita passar por este espaço fechado e
aprender as diretrizes impostas pelo colonizador,
pelo Estado nação, dentro de uma perspectiva de
inserção destes sujeitos no um mundo do “bran-
co”. Desde então a escola tem se tornado um es-
paço em que estes povos lutam para se tornar algo
próximo de suas respectivas realidades culturais,
de sua cosmovisão. E é neste espaço dialético en-

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


tre o conhecimento tradicional e o ocidental que
se desenvolve este trabalho.

Escola indígena: o palco de reflexões em um


espaço colonial

O processo de colonização impôs aos povos ori-


ginários da américa latina uma lista interminável
de tecnologias, de filosofias, de cosmovisão, enfim,
impôs a estes povos a maneira de ser, de fazer e de
saber. A escola foi uma dessas tecnologias impostas
pela colonização, e que se perpetua na Moderni-
dade/Colonialidade. A escola então, se tornou um
espaço histórico de “adestradamento” do pensa-
mento colonial a estes sujeitos. Muito recentemen-
te muitos destes povos tentam de alguma forma 63
subverter o projeto primeiro desta escola, criando
a escola indígena, um espaço ainda em construção,
mas que tem apresentado grandes conquistas des-
de seu primórdio. O fato de se ter uma escola bilín-
gue é uma destas conquistas históricas.
Para Brand (1998), a educação diferenciada
indígena, pensada em uma tradição cultural pró-
pria, faz suscitar uma pergunta fundamental para
o novo milênio: “Remete para a pergunta sobre os
projetos de autonomia a partir dos quais são, cer-
tamente, definidos e constantemente redefinidos
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

os objetivos e o papel que a escola terá dentro des-


te contexto” (BRAND, 1998, p.1). Apesar dos avan-
ços que surgiram na última década, a questão de
Brand permanece atual.
Segundo Melià (1999), os povos originários se
sentiram acanhados para reivindicar esses direi-
tos e quem saiu perdendo foram ambos: “A edu-
cação indígena não é a mão estendida à espera de
uma esmola. É a mão cheia que oferece às nossas
sociedades uma alteridade e uma diferença, que
nós já perdemos” (MELIÀ, 1999, p.12). Para esse
pensador, a educação indígena, sobrevivente da
educação convencional representada pela escola
e pelos interesses do Estado, pode nos ajudar a
construir um mundo melhor e a pedagogia desses
povos pode ser um fator decisivo para um mun-
do melhor: “A alteridade indígena como fruto da
64
ação pedagógica não só manterá sua diferença,
mas também poderá contribuir para que haja um
mundo mais humano de pessoas livres na sua al-
teridade”. A apropriação dessas “ferramentas” (no
caso a escola) tem sido um fator importante para
que esses povos continuem a existir e consigam
manter suas tradições e seu modo de ser. “O índio
perpetua o seu modo de ser, nos seus costumes, na
sua visão do mundo, nas relações com os outros,
na sua religião” (MELIÀ, 1979, p. 9).
É neste ambiente em construção que propo-
mos o desenvolvimento do projeto, um lugar em
que se manifesta a apropriação desses povos as di-
versas fases em que foram submetidos a negociar
com o entorno, com as imposições culturais da co-

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


lonização e agora na colonialidade.

Considerações finais

A possibilidade de realizar um projeto que


contou com a participação efetiva de acadêmicos
da instituição foi de grande valia. O contato com
o povo Bororo dignificou nossas ações, o acolhi-
mento da comunidade e dos professores foi um
combustível a mais em meio às dificuldades im-
postas pelo clima da região.
Quando chegamos tínhamos em mente que
não devíamos impor nada e que o diálogo seria de
supra importância para o sucesso das ações. Ha-
víamos pensado em pré-ações com temas defini- 65
dos depois de nossa viagem de reconhecimento do
local. Esta viagem foi de extrema importância para
definirmos quais áreas do conhecimento iríamos
agregar ao projeto. A partir desta definição fize-
mos um esboço das possíveis ações, mas sabíamos
que não eram determinadas e essa liquidez nos
permitiria nos adequar melhor as reais demandas
que poderiam surgir. Essa decisão foi primordial
para a realização do projeto.
Ao conhecer os professores, conhecer mais da
realidade da comunidade, pudemos pensar juntos
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

nas ações. Os acadêmicos no início ficaram um


pouco inseguros, pois normalmente estes proje-
tos trabalham com certezas, com formatos pron-
tos, com imposições e uma certa verticalidade
nas proposições. Depois que conversaram com os
professores Bororo e ouviram, mais do que fala-
ram, os acadêmicos entenderam o sentido deste
processo, A importância de ouvir o outro e mergu-
lharam de cabeça na elaboração de suas oficinas.
Uma das questões mais relevantes na fala de
encerramento dos professores foi o reconheci-
mento das ações que levaram em conta as ques-
tões práticas e teóricas “já passaram alguns proje-
tos aqui, que só falam e falam, e não nos mostram
como fazer, e outros que fazem na prática e não
explica o porquê das coisas. Neste projeto vocês
conseguem unir as duas coisas, e por isso gosta-
66
mos muito” disse um dos professores.
Outra questão de suma importância foi a par-
ticipação dos alunos e o retorno para a vida deles,
que ficou claro na fala emocionada de um dos aca-
dêmicos no encerramento: “eu não tinha noção do
quanto isso seria importante para a minha vida,
saio daqui melhor do que cheguei e quero poder
colaborar sempre que puder”.
Por essas questões e outras tantas que enten-
demos que o projeto foi um sucesso. Conseguimos
cumprir o que havíamos imaginado, superar as di-
ficuldades e as surpresas com criatividade e muita
dedicação.
A dedicação de todos os acadêmicos da UCDB

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


e o valoroso acolhimento da Missão Salesiana de
Mato Grosso e dos professores Bororo foram de
grande importância para a efetiva conclusão do
projeto.
As reflexões que trouxemos em nosso texto, é
para nós mais importante que algumas ações de-
senvolvidas junto à este povo, pois não queríamos
um trabalho que narrasse nossas ações, mas que
pudesse de alguma forma, contar as inquietações
das relações históricas estabelecidas com este
povo, em particular com os salesianos.
A questão da colonialidade, a ideia de um proje-
to de modernidade e por conseguinte de moderni-
zar estes povos, esses corpos. Impondo-lhes regras
e padrões, no que diz respeito aos seus modos de
67
vidas e cosmovisão, de alguma forma incomodava
o nosso olhar desde sempre, sabíamos que iriamos
lidar com esta realidade e pretensão histórica.
A partir de nossa proposição de fazer um tra-
balho onde eles fossem os protagonistas e não os
que se acham detentores de conhecimento, da
ciência e do letramento ocidental, nós. Este limi-
te, este acordo não acordado, mas efetivo por meio
das ações propostas criou um clima muito bacana
de harmonia e de interação e, ambas as partes.
Se quisermos cria um mundo onde todas as
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

pessoas possam ser protagonistas de suas histó-


rias, e que estejam no mundo inteiras, sem medo
e vergonha de serem o que são, conseguiremos
criar um mundo bacana de se viver, um mundo de
harmonia de todos os seres.

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KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do
mundo. São Paulo: Editora: Companhia das Le-
tras, 2019
MELIÀ, Bartomeu. Educação indígena e alfa-
betização. São Paulo: Edições Loyola: 1979.
MELIÀ, Bartomeu. Educação indígena na es-
cola. Caderno Cedes, ano XIX, Dezembro de 1999.

69
Fogo no mato: a ciência encantada
das macumbas. Uma resenha
NAZIANE ALCANTARA DE ALMEIDA

O autor inicia a obra dando uma nota introdu-


Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

tória sobre a definição do macumbeiro:

“MACUMBEIRO: definição de cará-


ter brincante e político, que subverte
sentidos preconceituosos atribuídos
de todos os lados ao termo repudiado
e admite as impurezas, contradições e
rasuras como fundantes de uma ma-
neira encantada de se encarar e ler ao
mundo no alargamento das gramáti-
cas’’ (SIMAS; RUFINO, 2018, p.4).

O livro é composto por quatorze capítulos e


mais um que são as referências bibliográficas com
um total de cento e vinte folhas. No primeiro capi-
tulo temos “Cantando a pedra: a ciência encantada
das macumbas”, o autor fala sobre a diversidade
de indivíduos, entidades e todo o tipo de santo que
pode baixar em um terreiro em que todos são li-
70 vres para ir e vir o autor usa o termo “ em uma
terra livre do pecado onde, ao mesmo tempo, nin-
guém é santo” (SIMAS; RUFINO, 2018, p.9), nota
se a ambiguidade do sentido na qual o autor refere
o não pecado, mais ninguém é santo talvez esse
não ser santo se refira a natureza do intelecto de
cada santo por se tratar de um lugar em que todo
povo se manifesta cada ser com sua subjetividade .
Esse manifesto é praticado pelo cruzo no qual
esses santos vagueiam de lugar em lugar procuran-
do um indivíduo pra se fazer uma morada breve.
Outra parte interessante é que o autor refere que
pra grande parte das populações negro africanas
e ameríndias do novo mundo que a morte é tida
como espiritualidade e não como condição eterna.

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


Segundo o autor por muito tempo a macumba foi
vista com assombro sendo uma obra não credível
tida como demonizados (SIMAS; RUFINO, 2018).
Outro conceito que o autor deixa claro no tex-
to é o conceito de amarração que é proveniente da
sabedoria dos pretos velhos que através de enig-
mas tem muito o que dizer, com diferentes formas
de dizeres, uma amarração depois de lançada não
pode ser desfeita somente com outra desamarra-
ção isso mesmo tendo desfeito o ato físico (SIMAS;
RUFINO, 2018).
Esse é um tipo de capítulo em que o autor
aborda diversas questões sobre o emacumbado, o
cruzo e o ponto riscado que é assumido pelos cam-
bonos que fazem da macumba uma arte de conhe- 71
cimento.
Já no segundo capitulo “Encruzilhadas” o au-
tor inicia o texto demonstrando o poder da en-
cruzilhada, essa que oferendas, crenças de povos,
ofertas e culturas mitodológicas são executadas, a
rua tem esse poder de unificar esses atos.
O autor cita Exu que fez da encruzilhada sua
morada e usando de sua expertise prosperou, re-
cebia oferendadas de todos que passavam por lá
tanto fazia o ir e vir. São vários os conceitos que o
autor aborda no texto sobre a encruzilhada pode
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

se citar que, “a encruzilhada, afinal, é o lugar das


incertezas, das veredas e do espanto de se perce-
ber que viver pressupõe o risco das escolhas’’ (SI-
MAS; RUFINO, 2018, p.23). Tida como lugar de
possibilidades, que reúne várias vivencias, estan-
do ligada a vários conceitos e dependendo de no-
vas perspectivas de vida.
Já no “Cadê viramundo, pemba’’, fala sobre
as infinidades de saberes das encruzilhadas com
base nos conhecimentos e experiências anterio-
res, mas esses saberes só se tornam reconheci-
dos após serem praticados na macumba, não é de
qualquer forma existe todo um encantamento, um
cruzo como assim o autor sempre se refere no tex-
to, “a rasura e o encanto de determinado conhe-
cimentos por outros só é possível a partir do que
compreendemos como a arte de cruzamento’’ (SI-
72 MAS; RUFINO, 2018, p.25).
Em tudo a um princípio, um conjunto de fun-
damentos e experiências de um próprio rito. Ou-
tro fato lido no texto é que o autor diz que os sabe-
res existentes que são praticados no terreiro não
deve s fechar apenas sobre as bases de sua potên-
cia, mais ter a capacidade de “pensar o mundo e
repensar suas próprias praticas’’ (SIMAS; RUFINO,
2018, p.32).
No “O pesquisador cambono”, a perspectiva do
cruzo de que não há como existir no encantamen-
to das macumbas sem se afetar e viver do que vem
deles os efeitos e consequências são compreendi-
das como possibilidade como um saber. O autor
cita, “um saber encantado é aquele que não pas-

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


sa pela experiência da morte’’ (SIMAS; RUFINO,
2018, p.34).
Na macumba a morte é entendida como o fe-
chamento de possibilidades, tida como desencan-
tamento. A arte de cambonar é uma pratica reali-
zada pelo cambono, que é tido como o auxiliar do
pai de santo praticante do saber, “participa ativa-
mente das dinâmicas de produções e circulação de
saberes. Assim o cambono é aquele que opera, na
interlocução, com todas as atividades que proce-
dem os fazeres| saberes necessários para as aber-
turas de caminhos’’ (SIMAS; RUFINO, 2018, p.37).
Na “A Invenção do terreiro”, o autor tem a diás-
pora africana como possibilidade de muitos cami-
nhos, é nesse contexto que a população negra e 73
africana evidencia diversas experiências fato que
foi forçado devido a condição em que os negros
estavam na época, em meio a diversos aconteci-
mentos o autor refere que a diáspora africana se
configurou como uma encruzilhada (SIMAS; RU-
FINO, 2018).
Por tudo a um encantamento, uma travessia,
e condições que fizeram com que as experiências
vividas por esses povos fossem aprimoradas e re-
sinificadas a cada período, a vida e a arte faz parte
desse saber adquirido em sua cultura.
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

Em “Tudo que o corpo dá”, o autor reforça a


importância do corpo negro em diáspora que
é tido como o suporte de toda a sabedoria e en-
cantamento, eles veem o corpo negro como um
templo de saberes corporais e possibilidades de
diversas invenções e conhecimentos que poten-
cializam a arte de ser\ estar\ praticar, no que se
refere o encontro do terreiro, “o corpo é, assim,
a pedra fundamental na invenção dos terreiros,
[...] um suporte de saber e memoria que vem a se
potencializar uma infinidade de possibilidades de
escritas” (SIMAS; RUFINO, 2018, p.50).
“A gramatica dos tambores”, mostra o senti-
mento que a escravidão africana nas Américas
produziu nesses povos por consequência de uma
mudança brusca de vida que esses negros foram
submetidos na qual todo laço de vida, liberdade,
74 opinião teve que ser subalternizado a frente do in-
divíduo superior, ocorreu o processo de reinvenção
desses povos a nova realidade, “ a história da es-
cravidão é também, ao mesmo tempo, uma expe-
riência de reconstrução constante de práticas de
coesão, invenção de identidade, dinamização de
sociabilidades e vida’’ (SIMAS; RUFINO, 2018, p.58).
Com essa fragmentação de vida os africanos
tiveram que se reinventar, o cativeiro proporcio-
nou a criação de identidade comunitária desses
povos, assim como uma nova cultura, a arte de
tocar o tambor tornou se um ritual na qual o tam-
bor tem o encantamento de transmitir mensagens
independente do contexto como fica explicito na
linguagem do autor que, “o tambor é discurso de

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


vida. Eles, os tambores rituais, possuem gramáti-
cas próprias: contam histórias, conversam com as
mulheres, homens e crianças, modelam condutas
e ampliam os horizontes do mundo” (SIMAS; RU-
FINO, 2018, p.58). O tambor dá o sentido de muitas
linguagens ele fala por si.
Já nessa próxima passagem do livro a popula-
ridade de São Jorge é algo muito discutido pelo au-
tor em “Altar de Orixá, gongá de Santo”, tal santo,
mesmo sendo bastante popular pela comunidade
carioca, não está isento a críticas, pra uma parcela
da população o santo é de reverencia dos macum-
beiro tido como “santo de macumbeiro”, (SIMAS;
RUFINO, 2018).
O santo protagonista de toda essa populari- 75
dade acaba por ser sabotado, consequente dessas
cismas por parte de algumas populações, indepen-
dentemente dessa parcela, tal santo está sempre a
zelar pela vida cotidiana dos sujeitos que o devo-
tam, por meio de festas ele é exaltado na mesma
magnitude em que intervêm na vida de cada um
(SIMAS; RUFINO, 2018).
Aqui o autor demostra o São Jorge como san-
to macumbeiro, mais não ligado diretamente ao
terreiro a encantaria em que os afro- brasileiros
estão evidenciados, sua relação vem através das
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

múltiplas formas de relação, na qual o Santo inter-


vêm no cotidiano desses povos.
Em “Vence demandas”, a parte eu achei bem
interessante é a forma como o autor enaltece a
sabedoria dos Pretos Velhos que são tidos como,
“poetas, feiticeiros, mestres do poder e do encan-
tamento (SIMAS; RUFINO, 2018, p.74).
Na visão do autor são os donos das palavras dos
versos cantados, do palavreado pra eles “a palavra
tem poder” (SIMAS; RUFINO, 2018, p.74). Dai sur-
giu a amarração dos pontos cantados pelos pretos,
que na arte do improvisamente desarma o armado
mesmo que inédito no momento, “se a amarração
educação\ cultura nos foi lançada como um feitiço
cuspido da boca da Casa- Grande, chegou a hora
de improvisarmos um novo verso que não só desa-
te a demanda amarrada, mas também nos aponte
76 o curso de uma toada a ser mantida” (SIMAS; RU-
FINO, 2018, p.75).
“Zé Pelintra: juremeiro do catimbó e malan-
dro carioca”, o autor cita o culto do catimbó como
conjunto de atividades místicas na qual acontece
o encantamento de corpo, os mestres apoderam
se desses corpos na arte de emacumbá, os cabo-
clos da jurema como são denominados são espí-
ritos com dons de cura. Cada caboclo trabalha em
linhas do catimbó advindos de alguns reinos (SI-
MAS; RUFINO, 2018).
No texto o autor cita Zé pelintra como mestre
curador do nordeste, que ao chegar ao Rio de Ja-
neiro foi incorporado pela linha da malandragem

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


na umbanda. Para o autor o malandro “é um per-
sonagem que transmite, cruza e se adapta” (SI-
MAS; RUFINO, 2018, p.82).
O ser malandro é isso, é poder se adaptar em
diversos lugares independentemente das circuns-
tancias, “o malandro pode fazer morada tanto em
Juremá, quanto no casebre erguido no alto do
morro” (SIMAS; RUFINO, 2018, p.82). Sem perder
sua essência, sem perder seu encanto ou sabedo-
ria, dessa forma, “quando baixa não importa de
onde vem, mais sim o riscado que imprime no
chão” (SIMAS; RUFINO, 2018, p.83).
Nessa passagem o autor descreve todas as fa-
ces e nuances do malandro em sua malandragem
“pode ser um sujeito perigoso, mais não violento e
77
descumpridor das regras do jogo” (SIMAS; RUFI-
NO, 2018, p.86), não importa a ocasião sempre tem
algo pra se fazer na visão do malandro.
“Quem tem medo da Pombagira?”, figura im-
portante e de grande potência no meio do encan-
tado, tida como encarnação feminina no meio da
encantaria, esse caboclo expressa o máximo da fe-
minilidade, que encanta pelo seu ponto cantado.
Rainha do desembaraço e da amarração esses são
algumas nuances que descrevem essa entidade
exusiática (SIMAS; RUFINO, 2018).
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

A pombagira é figura que exalta o pode femi-


nino, quando o autor diz “o tom crítico acerca das
violências e desproporção em especial aquelas
cometidas contra as mulheres (SIMAS; RUFINO,
2018, p.90), em uma sociedade em que o racismo,
o machismo é tão frequente, pombagira ressig-
nifica esse poder feminino em seus pontos canta-
dos. Mesmo com toda essa potência a pombagira
costuma ser vista como ser vulgar, uma vagabun-
da, uma inferiorizada pelos conceitos machistas.
Assim “a toada que a pinta como mulher vul-
gar indica as limitações e o desmantelamento cog-
nitivo incapaz de se afetar por outras perspectivas
de mundo” (SIMAS; RUFINO, 2018, p.90), fere a
moral da mulher, marginaliza o sexo feminino.
Pré julgamentos, a ignorância do meio, resu-
me a pombagira ao conceito de sexualidade por
78
conta do seu encantamento de mulher, relacio-
nando a fragilidade do sexo feminino ao erótico.
Pombagira vai além do que dizem, ela é dona de
si, senhora de si, ela revigora o poder feminino,
ela não pode ser diminuída, ou se deixar levar por
racismos existentes (SIMAS; RUFINO, 2018).
O autor cita a polemica da rainha de bateria
de uma escola de samba, na qual debates e dis-
cussões vieram a intervir a representatividade da
pombagira no desfile (SIMAS; RUFINO, 2018). Des-
sa forma existe a importância do conhecimento e
da credibilidade desse encanto, afim de combater
as injustiças de pré conceitos “é a partir daí que
torna se emergencial rodar as saias afim de incor-

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


porar movimentos que credibilizem outros conhe-
cimentos” (SIMAS; RUFINO, 2018, p.96). O ponto
precisa ser riscado, precisam sentir a potência da
pombagira, precisam ter respeito e reverencia a
essa entidade encantada.
Uma passagem interessante que o autor deixa
explicito em “Caboclo: supravivente e antinomia
da civilidade’’, é que para eles a morte abre cami-
nhos sobrenaturais da possibilidade do encanto
logo, “a morte física se abre como possibilidade
de transformação” (SIMAS; RUFINO, 2018, p.100).
O transe é manifesto pelo umbandista no exer-
cício do cruzo entre os mundos da encantaria, é
a arte de transitar, ir e vir “visto aqui como viabi-
lizador da plena interação entre os mundos apa- 79
rentemente dicotômicas do visível e do invisível”
(SIMAS; RUFINO, 2018, p.100).
Outra questão levantada pelo autor é a supra-
vivencia do caboclo na qual “está além da nossa
concepção de vida biológica, fisiológica e históri-
ca” (SIMAS; RUFINO, 2018, p.101). Aqui o caboclo
supera todas as condições de vida e não vida ele é
o ser encantado, a de se dizer que ele também não
é um espirito. O que o faz de supravivente é sua
própria experiência e sabedoria, aqui é sua potên-
cia existencial como encantado (SIMAS; RUFINO,
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

2018). É um ser que não existe no curso natural da


vida, o que supera todas as condições do intelecto.
“Campo de batalha e campo de mandinga”
o autor refere aqui conhecimento em se saber a
mandigar, “não basta conhecimento da luta e do
campo em que se travarão as batalhas, deve se
credibilizar a mandinga” (SIMAS; RUFINO, 2018,
p.106). É preciso ter o conhecimento, conseguir
enxergar o invisível sem ver, acreditar no que vem
depois, no seu encanto.
Nesse último capitulo “Acendendo velas: o
exusíatico e o oxalufânico” o autor faz referência
ao cruzo “como novas possibilidades” (SIMAS; RU-
FINO, 2018, p.116), como geradora de novos cami-
nhos, faz relação com a encruzilhada, por se tratar
de um campo de possibilidades, a vida é assim um
campo cheio de encruzilhadas, são vários os ca-
80 minhos que nos levam a algum lugar e também a
lugar nenhum, o que se sabe é que qualquer lugar
também é algum lugar, e é assim que o encanto se
manifesta , em uma esquina , em uma encruzilha-
da em um ponto cantado , em um ponto riscado,
só basta acreditar no seu encanto que permite en-
riquecer o conhecimento da forma de como pen-
sar, assim como mostrar novas visões de mundo
desse conjunto de saberes ancestrais que ciência
das macumbas pode proporcionar.

Referências

SIMAS, L; e RUFINO, L. Fogo no mato: A ciên-


cia encantada das macumbas. 1. ed. Rio de Janei-

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


ro: Mórula, 2018.

81
Yan Leite Chaparro, 2022.
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

82
Antropoceno, brutalismos e
políticas da vida
ANITA GUAZZELLI BERNARDES
ADRIANA GARRITANO DOURADO

O falecido líder indígena Moura Tuka-


no, um dos padrinhos da atual geração
de indígenas escritores, certa vez con-
fessou que estranhava a humanidade

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


“branca” precisar de anos de forma-
ção para aprender o valor das coisas,
das plantas, dos animais, dos seres hu-
manos. E, em contrapartida, levar um
átimo para conhecer o valor dos miné-
rios. Ele também me disse que todo o
barulho que fazemos é pela incapaci-
dade de ouvir o silêncio. Para ele, o tal
desenvolvimento era mesmo um des-
-envolvimento (NEGRO, 2019, p. 10).

Escrever sobre o Antropoceno e contextos de


emergências e desastres soa quase uma redundân-
cia. A era do Antropoceno é, em si mesma, a era
dos desastres, das emergências e da intensificação
do “des-envolvimento”. O Antropoceno, quando
nomeado enquanto tal ao final do século XX, já era 83
efeito do que levou à necessidade de nomeá-lo. Os
esgarçamentos irrecuperáveis das formas de viver
humanas começam a cobrar a conta, evidente-
mente, de modos diferentes, já que essas próprias
formas se esforçam, sistematicamente, em produ-
zir desigualdades e, portanto, efeitos mais violen-
tos e rápidos para certas vidas do que para outras.
A vida, não só a humana, assume uma caracte-
rística quase desprezível frente às possibilidades
de produção e inovação tecnológica. Apesar de se
justificar que a produção e a inovação são para a
qualificação da vida, nem aquelas que, a princípio,
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

se beneficiarão, ao fim e ao cabo, estarão prote-


gidas dos efeitos do Antropoceno. O Antropoceno
produz barulho, não o barulho das alegrias, dos
cantos e encantos das vidas, mas o barulho das
máquinas, das tecnologias. O Antropoceno nos
“des-envolve” dos silêncios que nos permitem ou-
vir, então, a própria Vida.
Estamos pesados e barulhentos demais e, in-
felizmente, não é a biomassa que pesa, é a antro-
pomassa que superou a vida, mesmo se justifican-
do como voltada para a própria vida. Há algumas
controvérsias nesse jogo moderno, ocidental, ca-
pitalista: a vida humana vem para o centro com
uma bio-lógica, precisamos prolongá-la, qualifica-
-la, marcá-la como a condição que domina a na-
tureza para não ser dominada por ela; ao mesmo
tempo, precisamos nos tornar a medida de todas
84
as coisas, nos afirmarmos como humanos e não
como animais/vegetais/minerais, libertarmo-nos
da natureza, precisamos de um corpo biológico,
mas que possa transcender a sua própria biolo-
gia, tornarmo-nos um tecno-corpo. A biologia não
será o nosso limite, não seremos só parte de uma
biomassa, parte de uma espécie de seres vivos,
seremos antropomassas, tecno-massas, construi-
remos, dominaremos, controlaremos, poderemos
sonhar e transformar nossos sonhos em realida-
de, ultrapassaremos nossa finitude. O filme “2001,
uma Odisséia no espaço” (1968) já anunciava aquilo
que vivemos no século XXI.
O que ocorre é que nosso narcisismo ocidental

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


capitalista baseado nessa bio-lógica que quer su-
perar a própria bio, apesar de se apoiar em uma
bio que é apenas uma lógica anatômica/fisiológica
do corpo humano, depara-se cada vez mais com o
peso da biomassa. Essa biomassa que não se re-
duz a anatomias/fisiologias, mas àquilo que diz
respeito a toda a vida e formas vivas com as quais
compartilhamos os espaços que habitamos, sendo
esse próprio espaço também algo vivo – a própria
Terra. Esse peso da nossa antropomassa não sub-
sume a biomassa como potência do vivo. A bio-
massa responde a essas emergências que a exter-
minam. Ela, apesar de aniquilada, ainda é vida e,
portanto, reage como vida, como potência de um
vivo, daquilo que não se dobra a um antropoceno:
85
tufões, maremotos, vulcões, crateras, pandemias.
Aqui nosso narcisismo ocidental capitalista se
encontra com certas forças que nossas antropo-
massas não conseguem controlar, dominar, as ve-
zes conseguimos antever, mas não evitar, porque
as inovações tecnológicas permanecem focando
no humano como a medida de todas as coisas, é
para a permanência da vida humana que elas se
justificam, é a partir da vida humana que elas se
organizam. O antropoceno não apenas nos torna
cada dia mais pesados, como nos faz cada dia mais
centrados em nós mesmos. Embora seja necessá-
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

rio grifar que esse humano pesado que quer sobre-


viver à sua própria finitude de um vivo, esse “nós
mesmos” do narcisismo ocidental capitalista não
é extensível a todas as formas que, biologicamen-
te, seriam qualificadas como humanas. Há vidas
biologicamente definidas como humanas, porém,
tecnologicamente são apenas vivos, destarte des-
cartáveis como todas as formas que não são quali-
ficadas para viver na era do Antropoceno.
Achille Mbembe (2020) em “Políticas da Inimi-
zade” mesmo não discutindo diretamente as ques-
tões colocadas pela Era do Antropoceno e sim da
articulação entre democracia-colônia-plantation
para a compreensão do terror e do brutalismo da
nossa atualidade, indica que as configurações dos
impérios modernos tiveram como ferramentas
decisivas as tecnologias armamentistas, médicas
86
e de locomoção. Por meio dessas tecnologias foi
possível novas formas de povoamento e repovoa-
mento produzidas por deslocamentos de corpos,
desmatamentos de territórios, ocupações de es-
paços, modificação de percursos antes naturais
como os de rios, de migrações de animais, de re-
produção de espécies vegetais e animais, entre
tantos outros. Além disso, corpos humanos, com
distintas formas de viver, estreitaram encontros
e nesses encontros diferentes formas de viver, de
pertencer e de habitar espaços se deram a conhe-
cer. As inovações tecnológicas foram fundamen-
tais para isso, sem elas provavelmente a maior
parte daquilo que vivemos hoje não teria aconteci-

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


do. Mas o fundamental dessas considerações é que
as tecnologias aqui se referem a uma modalidade
específica, pois a relação do humano com a tecno-
logia faz parte das condições mediante as quais se
criam formas possíveis para a humanidade sobre-
viver como espécie. A modalidade aqui em ques-
tão é a de império, do progresso, da conquista, do
domínio, da expansão de uma forma sobre outras.
A inovação tecnológica que nos deixa cada
vez mais pesados não é aquela voltada para nos-
sa sobrevivência, mas aquela que implica uma
bio-lógica bélica, imperialista, “uma tentativa de
nós, humanos, nos projetarmos em matéria para
além de nossos corpos” (KRENAK, 2020, p. 17) e,
ao mesmo tempo, alimenta uma generalização do
87
medo que nos faz, justamente, consumirmos cada
vez mais tecnologias: medo de morrer, medo de
adoecer, medo de envelhecer. Temos mais medo
dessas condições que nos lembram que somos hu-
manos, porém como indivíduos – morrer, adoecer,
envelhecer –, do que daquelas que nos lembram
que somos mais um organismo vivo entre tantos
outros, contudo, parte de uma humanidade que
difere dos outros vivos – catástrofes, desastres,
etc. Essas últimas se apresentam para nós muito
mais em uma conformação teológica/divina do
que relativa aos modos como estamos vivendo e
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

nos tornando mais pesados. Na análise de Mbem-


be (2020, p. 54) “as disposições paranoicas da nos-
sa época se cristalizam em torno de duas grandes
narrativas: a do (re)começo e a do fim, o Apoca-
lipse”. O que está em jogo aqui é a existência da
humanidade: o fim do mundo ou o seu (re)começo
se refere aos humanos na Terra. A hecatombe hu-
mana é o mesmo que a hecatombe da Terra, mas
a “história do mundo e a história humana, ainda
que entrelaçadas, não terão necessariamente um
fim simultâneo” (MEMBE, 2020, p. 60).
Essa discussão do filósofo camaronês vem ao
encontro do que o intelectual e líder indígena Ail-
ton Krenak (2020) que também nos provoca ao di-
zer que é “como se tivessem elegido uma casta, a
humanidade, e todos que estão for dela são a sub-
-humanidade. Não são só os caiçaras, quilombolas
88
e povos indígenas, mas toda vida que deliberada-
mente largamos à margem do caminho. E o cami-
nho é o progresso: essa ideia perspectiva de que es-
tamos indo para algum lugar” (p. 10). Krenak (2020)
nos alerta ainda que a Terra, ao contrário do que o
nosso narcisismo ocidental capitalista pressupõe,
não nos tem como medida de todas as coisas e que
as catástrofes, desastres, pandemias não são apo-
calípticas, não são o fim do mundo, mas o fim da
humanidade e de que deveríamos “ter contato com
a experiência de estar vivos para além dos aparatos
tecnológicos que podemos inventar” (p. 11).
A generalização do medo tanto acentua o apelo
ao progresso, portanto ao aumento de nosso peso,

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


de nossa antropomassa, quanto aumenta os víncu-
los de inimizade, de abandonos de vidas que larga-
mos pelo caminho, de des-envolvimentos. Os vín-
culos de inimizade discutidos por Mbembe (2020)
aqui nos auxiliam a compreender as articulações
de nossa antropomassa com o medo e o progres-
so e as vidas deixadas pelo caminho de Krenak
(2020). O filósofo alerta que os vínculos de inimi-
zade normalizam a possibilidade de um poder ser
exercido às custas da vida de outros. Esses outros
vão sendo deixados pelo caminho, exterminados
pelo caminho tanto pela justificativa de um pro-
gresso, de um mundo que não pode parar, quan-
to por um medo de um outro que pode ameaçar
esse progresso ou tomar esse progresso. A produ-
89
ção tecnológica, assim, vem como uma estratégia
para nos proteger de nossos medos, para nos levar
a “algum lugar” mais progredido tirando alguns
do caminho, por conseguinte, a inovação tecno-
lógica, além de nos deixar mais pesados, também
fortalece vínculos de inimizades. A Era do Antro-
poceno, como experiência de um comum, opera
mais em um domínio da ficção científica, como
o foi o filme de Stanley Kubrick em 1968, já que
não conseguimos nos desprender da necessidade
do progresso para nos proteger de nossos medos
para chegarmos em algum lugar. O medo apoca-
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

líptico, inclusive, faz-nos acelerar ainda mais nos-


sos consumos, pois como não sabemos até quan-
do chegaremos em algum lugar, a lógica do “You
must have” se torna um imperativo em que não é a
vida do outro ou a vida da Terra que está em jogo,
mas a nossa própria vida para chegar em algum lu-
gar, “não sabemos ouvir o silêncio”. As ameaças do
Antropoceno têm como efeito uma política do eu,
nesses arranjos de uma sociedade da inimizade de
deixar vidas pelo caminho, uma relação inextrin-
cável com desastres e suas emergências. Um eu
que responde a uma bio-lógica quando consome
para qualificar, prolongar a própria vida, em uma
tentativa de evitamento da morte e, ao mesmo
tempo, um eu que consome para progredir (não se
sabe exatamente até onde ou em relação ao que)
mesmo que não saiba como será o dia de amanhã.
90
A antropomassa, assim sendo, a Era do An-
tropoceno é efeito de uma ocidentalização do
mundo, daquilo que os nossos des-envolvimentos
e inimizades têm produzido. Com ela não se glo-
balizam apenas mercados financeiros, controles
geopolíticos, mas também catástrofes, emergên-
cias e os mais diferentes modos de brutalismos.
Além disso, aqueles que são deixados pelo cami-
nho, aqueles que são passíveis de extermínio no
caminho, tanto em termos de formas humanas
– genocídios dos mais diferentes grupos e povos
subalternizados – quanto não humanas – extinção
de animais, vegetais, poluição ou desaparecimen-
to de rios, mares, desertificação de florestas – são

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


os primeiros a sofrer os impactos da imposição da
Era do Antropoceno.
Ao mesmo tempo, são essas vidas, essas for-
mas de viver que insistem, assim como a Terra,
que tem apresentado outras modalidades de rela-
ção com a vida. Por ser ela vida que, ao invés de
políticas de inimizade, apoia-se, justamente, em
políticas de um amor revolucionário, solidário,
em políticas da vida, por aquilo que bell hooks
(2021) professora, escritora e intelectual estadu-
nidense nos propôs quando certa vez acordou e
percebeu que o mundo em que vivíamos “já não
era aberto ao amor” (p. 26). Trata-se de uma éti-
ca amorosa, entretanto, não do amor como senti-
mento, mas como luta coletiva, como laço social,
91
apostando em um “direito a uma vida sossegada”.
O direito a uma vida sossegada é proposto no tex-
to de Françoise Vergés (2021) quando a cientista
política apresenta uma teoria feminista da violên-
cia, ou um feminismo decolonial: “É preciso ousar
sonhar com uma vida sossegada. Sossego, aqui,
não quer dizer pacificação nem apaziguamento,
mas uma política e uma prática de solidariedade,
do amor e da autodefesa” (p. 150). Mbembe (2020)
também traz algumas considerações sobre tradi-
ções africanas antigas que consideram que a exis-
tência humana está pautada na relação, nas reci-
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

procidades com o outro, com outros corpos, com


outras carnes, tratando-se de “co-composições”.
O direito a uma vida sossegada, uma ética
amorosa, uma co-composição pode aliançar-se ao
que Krenak conta sobre a juventude indígena que
tem saído pelo mundo, ligando-se ao campo da
arte, da cultura, mas que não o faz sozinha, pois
“andamos em constelação” (2020, p. 39). E é com
base nessas co-composições, nas constelações
para uma vida sossegada, uma ética amorosa que
compõem políticas da vida, que nos encontramos
com um grupo de jovens indígenas que, mesmo
em tempos de Antropoceno, insistem em produzir
outras marcas no mundo que não se tornem mais
antropomassa, mas políticas de solidariedade, de
lutas, de insistência de co-composições.
92
A projeção do vídeo das obras do grafiteiro
Kobra iniciou a oficina de grafite com os jovens
indígenas do CRAS de Dourados-MS. Quantos de-
senhos gigantes o cara fez.... Em prédios e muros
das cidades do Brasil e do mundo! Um grupo de
20 jovens participava da oficina e logo se escutou
a conversa: “como fazer um desenho daquele ta-
manho? De metros de altura?”, “Será que o Kobra
está sabendo que a gente tá se inspirando nele?”
Pensaram em avisar pelo Instagram.
Para projetar o desenho grande, é preciso ver o
passo a passo em pequenos quadrados, crescendo
em miúdos em cada pincelada de tinta e jatos com
as pistolas. Quando se vê uma imagem gigantesca
em um mural, não se imagina que olhando bem de

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


perto, nos detalhes, consegue-se ir devagarzinho,
até ver o negócio crescer.
Santa falta de paciência juvenil, não vai dar,
ouviram-se vários coros de que ninguém ia aguen-
tar até o final, quase desistindo, não é possível, vai
dar ruim, vai ficar torto, mas como fazer as partes
de curvas, e quando for desenho redondo?
Onde a juventude indígena se curva? E a ofici-
na de grafite ia começando... tinha bastante gente
interessada, tinha sempre pouca coisa por lá, me-
lhor aproveitar... Meninos e meninas indígenas fa-
lavam que ouviam dos pais que estavam longe de
seu tekohá, que já estavam em desvantagem mo-
rando naquela reserva longe de seus ancestrais,
mas que deviam aproveitar as oportunidades, 93
conquistar seus espaços, ter dignidade. E surgiu a
pintura, a arte, em um espaço em que eles podiam
criar, inventar, colocar vários símbolos indígenas
que gostavam. Mas havia a vontade de colocar ído-
lo do rap também, bicho da natureza, etc.
O Kobra que se cuide... Aliás, já ficou saben-
do da parada. Alguém deu um jeito de postar uma
foto e enviar para ele: “Oficina de grafite na comu-
nidade indígena conquista a juventude do territó-
rio”. A ideia não era desafiar, mas mostrar que eles
também podiam.
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

Quem diria, de centímetro em centímetro se


projetou o universo. O desenho da liderança assas-
sinada, da foto de uma mãe indígena amamentan-
do, de tucano, de beija-flor, da escrita em língua de
sinais no muro, aliás também não podia ser pala-
vra em português traduzido para língua de sinais:
tinha que ser em Guarani. No dia do encerramen-
to, eram mais de 30 indígenas com surdez que fo-
ram até o local sabendo do mural. Quase ninguém
estava sabendo que tinha tanta gente com surdez
na aldeia, eles ficam quietinhos. O que será que
escreveram? Todos iam saber, mas precisavam ter
interesse em aprender o Guarani e também a lin-
guagem de sinais... Então eles acabaram contan-
do: CORAGEM.
Grande sentimento o líder indígena assassi-
nado ia ter. A luta continuava... quem dera se as
94 armas fossem somente tinta, pincéis e pistolas de
grafite... Ele iria dizer: A GENTE NÃO SE CURVA!
E se Yacunã Tuxá estivesse lá diria: “ninguém
aqui é Iracema “, nada de submissão para coloni-
zador. A artista indígena que saiu da aldeia para
cidade grande, carregou sua cultura para onde foi
e mostrou que a Arte Indígena não é artesanato,
cocar ou marajá... É pintura em quadros, murais
da resistência em prédios, edifícios grandes ou pe-
quenos, murais do apagamento, em branco tam-
bém. Atravessando muros e rompendo barreiras:
aliás, é melhor o Kobra se cuidar mesmo.

Referências

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


BELL, hooks. Tudo sobre o amor: novas pers-
pectivas. São Paulo: Elefante, 2021.
KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo:
Companhia da Letras, 2020.
MBEMBE, Achile. Políticas da Inimizade. São
Paulo: N-1 edições, 2020.
NEGRO, Maurício (Org. e Ilustrações). Nós:
uma antologia de literatura indígena. São Paulo:
Companhia das Letrinhas, 2019.
VERGÉR, Françoise. Uma teoria feminista da
violência. São Paulo: Ubu Editora, 2021.
2001 - UMA ODISSEIA no Espaço. Direção e
Produção de Stanley Kubrick. Estados Unidos:
Metro-Goldwyn-Mayer Stanley & Kubrick Produc- 95
tions, 1968. 1 DVD (142 min.).

Agradecimentos
Agradecemos ao CNPq e à
Capes pelo financiamento.
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

96
Capitaloceno e catástrofe: uma
crise antropológica
LEONARDO BORGES REIS

A noção de catástrofe delimitada pela chega-


da ao antropoceno1 inaugurou uma importante
inflexão na concepção das mudanças geológicas
ocorridas no planeta terra. Até então as mudanças

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


na ordem climática (e de todo o sistema planetá-
rio) eram registradas em função de variáveis de or-
dem puramente natural. A classificação das eras
geológicas, antes da viragem em questão, atendia
a critérios de natureza física, química, etc. O an-
tropoceno é uma nova fase iniciada após o fim do
Holoceno, que durou cerca de 11.500 anos. Tal era

1 De acordo com a síntese de Veiga (2019) “O Antropoceno


foi inicialmente associado apenas à Revolução Industrial. Paul
Crutzen achou que atribuir uma data específica ao início da
nova época seria arbitrariedade [...] Por isso [...] sugeriu que a
referência toda a última parte do século XVIII [...] o primeiro cri-
tério do químico Crutzen foi o início do mais recente aumento
das concentrações atmosféricas de vários gazes de efeito estufa,
em particular CO2 e CH₄ [...] mais tarde, todo o período chama-
do de ‘era industrial’ – de 1800 a 1945 – passou a ser considera-
do apenas como um primeiro estágio do Antropoceno” (VEIGA,
2019, p.58). 97
do “homem” está marcada pela invenção da má-
quina a vapor, ou seja, o critério de alteração da
ordem natural passa a ser o engenho humano e
as profundas transformações da era industrial,
transformações tais empreendidas pelo que gene-
ricamente muitos cientistas designam por “espé-
cie humana”.
Nos processos analíticos e classificatórios a
respeito do conceito de antropoceno, tornou-se
quase inevitável não recorrer a um fundo moral
para argumentar sobre o apetite voraz da “huma-
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

nidade”, apesar da óbvia constatação empírica


(dadas as evidências estratigráficas) e objetiva dos
efeitos da expansão da economia capitalista de
mercado. A espécie humana, pela raiz genérica do
anthropos, na era geológica nascente, promove a
tirania sobre o meio ambiente, isto é, a humani-
dade como um todo torna-se o centro desta fase
de imensa depredação, que é registrada, aliás, há
bem mais de meio século por vozes que anunciam
a primavera silenciosa como um fenômeno so-
cietário do ocidente. O caminho de conversão da
espécie humana em força geológica parece, pois,
acertado, senão unanimidade, dados os processos
desencadeados pela ascensão da era do progresso.
Contudo, a derivação moral do processo classifi-
catório que envolve o antropoceno não nos parece
de todo adequada, afinal, falta calibrar os instru-
mentos para compreender que a humanidade em
98
geral não é a responsável pelo colapso em anda-
mento. Isto é, não nos satisfaz a caracterização de
uma culpa genérica e irrestrita atribuída difusa-
mente à espécie humana. O apelo moral à ação de
“nossa espécie”2 precisa ser colocado sob judicie.
Por mais que a construção argumentativa pareça
inofensiva, não deixa de esconder certa ideolo-
gia eurocêntrica, que carrega implícita a ideia de
que não haveria diferença entre sistemas sociais
e cosmológicos milenares. Além de tais sistemas
sociais não serem coincidentes, estão na maioria
das vezes em conflito aberto nas fronteiras do ca-
pitalismo, justamente em razão da diferença subs-
tantiva existente nas relações sociedade e nature-

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


za, sempre históricas e condicionadas. Para evitar
um conceito difuso quanto às responsabilidades
morais, tal como o de antropoceno, vemos como
um caminho mais razoável a noção de capitalo-
ceno: “a força motriz dessas mudanças não foi a
‘humanidade’ de forma abstrata, mas as pessoas
que viviam, trabalhavam e acima de tudo possuíam
coisas no modo de produção capitalista” (ALTVA-

2 A título de exemplo, Taibo (2019) no livro intitulado “Co-


lapso: capitalismo terminal, transição ecossocial, ecofascismo”
busca circunscrever as causas gerais do conceito de colapso ao
que considera um desdobramento inerente à organização capi-
talista da sociedade. Apesar de tal correlação, Taibo aponta dis-
paridades quantitativas de consumo entre EUA e Europa, além
de invocar em diversas passagens a fórmula geral do “impacto
da ação humana [que] passou a ser decisivo nas calamidades”
(TAIBO, 2019, p.45). 99
TER, 2022, p.234)
No presente capítulo temos por objetivo discu-
tir os fundamentos do chamado colapso, no que
preferimos reconhecer como capitaloceno. Em
segundo lugar, buscamos abordar a matriz socio-
política da crise em questão. Por último, mas não
menos importante, como sói acontecer, procura-
mos delinear o lugar das formações sociais3 que
construíram aberta resistência àquela do capitalo-
ceno, que insiste em tomar suas relações instru-
mentais como parâmetro para a humanidade. Tal
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

como o paradigma das teorias da modernização


e do desenvolvimento, implementadas nos anos
subsequentes à 2º guerra mundial, o parâmetro
universalizante da “ação humana maléfica” não
pode escamotear as hierarquias próprias ao mer-
cado mundial.
Definir e mesmo reconhecer o conceito de co-
lapso, tão caro ao Capitaloceno, não é uma tarefa
isenta de polêmica. Com a ascensão de operações
sistemáticas de negação das mutações climáticas,
pode-se dizer, na esteira do que foi proposto por
Bruno Latour (2020), que desde a década de 1980
vemos crescer uma certa consciência por parte

3 Quanto à consideração de formação social, tema com o qual


iremos nos enredar mais adiante, convém salientar que vemos
o capitalismo muito mais do que uma formação econômica e so-
cial, trata-se de um complexo imaginário que mudou profunda-
mente a existência humana, isto é, está impregnado no sistema
100 terra, em nossas formações subjetivas etc.
das elites quanto aos limites do progresso. Mas ao
invés de criticar o curso que o progresso tomou,
o novo regime climático leva parte considerável
das classes privilegiadas a se aferrar ao mundo
de privilégios que lhes restou, em detrimento do
restante das populações, sobretudo dos trabalha-
dores empobrecidos das periferias. Reconhecem a
escassez criada pela crise, mas defendem radical-
mente seus interesses de classe quanto ao acesso
privilegiado aos bens comuns. A nova corrida pelo
reforço das fronteiras é um dos elementos dessa
mudança. Se no período da Guerra Fria houve um
certo horizonte comum do crescimento social e
econômico, pelo menos no discurso - afinal a dis-

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


cussão sobre a possibilidade do desenvolvimento
e modernização para os retardatários no sistema
capitalista mundial é sempre problemática - do
que ficou conhecido na ideologia corrente como
“mundo livre”, com a chegada da globalização nos
anos 1990, e seu consequente amadurecimento
nas duas décadas iniciais do século XX, o cená-
rio sofre inflexões cruciais. Parte-se do reconhe-
cimento de que o desenvolvimento, tal como os
“recursos naturais” não são para todos. Estamos
segundo Latour numa fase de agudização do sal-
ve-se quem puder!
Após a descida da cortina de ferro, no aclama-
do fim da história, curiosamente, o tão decantado
triunfo do mundo livre de onde se abririam todas
101
as possibilidades dos livres mercados aos povos
torna a fechar-se. Se é que o desenvolvimento via
agenda ocidental, vide a aliança para o progresso
dos EUA, já esteve alguma vez completamente dis-
ponível como fórmula de amplo acesso. Do Brexit
às propostas de muros para imigrantes “o solo tão
sonhado da globalização está desaparecendo” (LA-
TOUR, 2020, p.14). E a explicação para a retomada
de fronteiras e renovados egoísmos está na amea-
ça ao projeto de modernização, dada a natureza
impossível que este atingiu perante os limites da
terra “incapaz de abarcar o ideal de progresso”.
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

Os limites físicos da modernização, para não falar


dos limites lógicos e econômicos demonstrados
pela teoria da dependência nos anos 1970, podem
ser melhor interpretados sob a luz do conceito de
catástrofe.
Do esfacelamento econômico até o fim do
acesso a necessidades básicas como água, ali-
mentação, abrigo, etc., a noção de colapso pode
denotar uma amplitude considerável de facetas. É
notório que tampouco o colapso é uma condição
contemporânea, inúmeros são os casos em que a
arqueologia se debruça a fim de compreender si-
tuações de colapso em diferentes culturas e socie-
dades4. A partir da proposta de análise promovida

4 É importante salientar que a diferença principal entre os colap-


sos do passado e o atual reside no caráter global do último. Os
colapsos do passado conforme as descrições de autores como Ja-
102 red Diamond, por exemplo, são circunscritos a efeitos regionais.
por Taibo (2019), que foi capaz de sistematizar di-
versas abordagens de colapso, fica a constatação
de que o colapso não precisa necessariamente ter
magnitude apocalíptica, pelo menos não nas suas
primeiras manifestações. Além do mais, a irrever-
sibilidade para determinado sistema social e para
as classes ligadas a este pode significar a possibi-
lidade de ascensão de outras, que mantém no sis-
tema uma posição muitas vezes marginal. Há pro-
cessos de ascensão e de declínio. Por isso o autor
espanhol compreende o colapso como um proces-
so, que de qualquer forma está marcado por picos
ou por “um horizonte de irreversibilidade” (TAI-
BO, 2019).

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


Taibo segue uma linha de argumentação mui-
to próxima àquela promovida por Latour quanto
aos efeitos de um colapso como processo, ou seja,
de um colapso lento. As respostas autoritárias, ul-
tranacionalistas e, nesse mesmo viés, negacionis-
tas, são um exemplo de reforço de uma tendência
oposta à reação construtiva, que parte em busca
de caminhos para a mudança de rota após o diag-
nóstico do colapso em andamento. Cabe ressal-
tar que o autor não desconsidera a possibilidade
de um colapso acelerado, até mesmo repentino,
dada a condição de resistência do imaginário co-
letivo, que funciona quase como um mecanismo
de defesa do ego, para usar uma metáfora. A ma-
quinaria da indústria cultural e os monopólios de
103
midiáticos atuam, em muitos casos, na tentativa
de anular a percepção mais imediata dos sinais do
colapso, o que certamente dificulta a leitura dos
processos lentos.
Resta compreender o que se entende pelas
múltiplas facetas do colapso. Taibo cita a estraté-
gia de ampliação do conceito de colapso tal como
aparece em Orlov5, isto é, existiriam vários co-
lapsos distintos, que podem se cruzar num feixe
causal múltiplo de forças exógenas e endógenas.
Nesse sentido fala-se em pelo menos cinco eixos,
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

a saber: colapso financeiro; colapso comercial;


colapso político; colapso social e colapso cultural.
Mais tarde Orlov acrescentaria o colapso ecológi-
co à lista em questão. Entre as causas mais gerais
do eventual colapso global, Taibo põe em relevo
o vago e generalizante impacto das “ações huma-
nas”, que no século XX tornam-se decisivas. E dois
fatores ganham destaque multiplicador dos efei-
tos: o processo de mudança climática e o esgota-
mento das matérias primas-energéticas.
As transformações citadas por Taibo, não obs-
tante, seguem a linha de causalidade de uma crise
moral de ordem humana genérica, conforme sa-
lientamos anteriormente. Há o reconhecimento
dos impactos causados pela sociedade industrial e
mesmo da forma de organização da economia ca-

5 ORLOV, D. The five stages of colapse. Survivor’s toolkit. Ga-


104 briola Island: New Society, 2013.
pitalista, mas tais aspectos não ganham destaque
e aprofundamento na análise. O que queremos di-
zer é que muitos autores, como Taibo, apesar de
reconhecerem no colapso um caráter global, algo
exclusivo da modalidade de colapso em andamen-
to no antropoceno, não relacionam a esse caráter
mundial a ascensão do próprio capitalismo como
sistema-mundo. A corrida por matérias-primas
energéticas, sejam em conhecidas formas como
o carvão, petróleo, etc., ou através da tentativa de
contornar o esgotamento por meio da energia so-
lar, eólica, entre outras modalidades, desencadeia
uma acirrada luta (como no caso dos metais raros)
em que o fato primordial está regido pelo proces-

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


so incessante de valorização do capital.
O processo fundamental de disputa por maté-
rias-primas energéticas está relacionado aos ciclos
elementares da acumulação (D-M...P...M’-D’), tal
fenômeno não é objeto de consideração em Taibo.
A fórmula genérica da filosofia moral do colapso
prefere atribuir a causalidade pela falência a pro-
cessos múltiplos oriundos da ação da “espécie hu-
mana”. Em alguns momentos Taibo chega a citar
os números avassaladores do consumo de energia
e matérias-primas pelos estadunidenses, e o faz
comparando aos números inferiores produzidos
pela sociedade europeia (da qual faz parte, é cla-
ro). Contudo, o capitalismo como sistema social e
econômico é relativizado. A nova etapa de acumu-
105
lação e seus colapsos históricos inauguram efeitos
globais, mas a globalidade do processo remete à
ação humana, indistintamente. Ora, nenhum co-
lapso generalizado ou global poderia deixar de ser
o colapso do capitalismo e do correspondente ci-
clo de valorização, que opera, igualmente, em es-
cala mundial. Se essa é a principal característica
do colapso atual em relação aos anteriores, ocor-
ridos ao longo da história, o mercado mundial ca-
pitalista é, em nossa hipótese, o elemento central
que liga o colapso geral ao sistema civilizatório
que triunfou desde a célebre ode de Fukuyama.
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

A noção de ciclo de reprodução de capital, ou


ainda, de padrão de reprodução do capital (MARI-
NI, 2012) permite compreender o télos do sistema
social-histórico em crise. A temporalidade das di-
ferentes etapas do ciclo, isto é, do capital em movi-
mento desde a forma mercadoria até a produção e
consequente valorização (M’) oferece amostras de
como o colapso também é processo. Por exemplo,
se há alguma dificuldade em valorizar as mercado-
rias por falta de matérias-primas básicas, ou ain-
da, pelo aumento dos custos de produção, o efeito
generalizado dessa situação, ainda no primeiro
ciclo do capital, ou seja, o ciclo de conversão de D
em meios de produção (consumo produtivo) terá
efeitos ao longo dos demais ciclos, inclusive sobre
as condições de trabalho, que podem ser depre-
ciadas pelo capital em busca de resolver a alta de
106
custos de produção. O efeito da transformação da
mercadoria valorizada pelo processo de produção
(pelo trabalho humano no caso!) de M’ em D’ re-
quer outra temporalidade, completamente adap-
tada às condições de realização desses valores na
segunda etapa da circulação. Logo, em situações
de colapso financeiro ou de superexploração da
força de trabalho pode ser mais difícil converter
M’ em D’, o que impacta diretamente o fluxo da re-
produção. Portanto, podemos sentir o colapso de
diferentes maneiras ao longo do ciclo de reprodu-
ção do capital, sem que necessariamente ocorra a
interrupção generalizada do mesmo.
Em termos do processo de reprodução do ca-

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


pital em escala mundial, a modulação da tempo-
ralidade do ciclo tem repercussões que remetem
à hierarquia entre os países. As relações entre
centro, semiperiferia e periferia fazem com que
o colapso se manifeste de diferentes maneiras,
com diferentes escalas de impacto. As vantagens
comparativas de novos ciclos de exploração de
matérias-primas energéticas podem muito bem
ser anuladas em função do maior peso tecnoló-
gico exigido para a exploração de recursos, como
no caso do “petróleo impuro”. Isto significa que o
custo dos bens de capital e da tecnologia mono-
polizada pelos países centrais afeta a acumulação
em detrimento daqueles que possuem apenas os
recursos energéticos. Por isso em muitos casos
107
as ondas de extrativismo são inócuas para o de-
senvolvimento orgânico das nações que investem
em tais commodities. De qualquer ângulo que se
observe a questão podemos considerar a necessi-
dade de matizar a filosofia moral da crise huma-
na do antropoceno. O colapso pode ser geral, de
fato, mas antes de sê-lo há colapsos ocorrendo das
periferias do sistema capitalista mundial, há tem-
pos. Além do colapso não ser sentido da mesma
maneira, dada a estrutura estratificada do merca-
do mundial capitalista, a origem do mesmo deve
ser ajustada para além da fórmula superficial de
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

uma crise tão-somente da espécie humana. A ge-


neralização das causas sem a atenção devida aos
detalhes do processo pode gerar uma visão equi-
vocada quanto às raízes do colapso. Se temos uma
crise antropológica que leva ao colapso, tal crise
é relativa à máquina antropológica que atua sob o
capitaloceno, produzindo uma forma social-histó-
rica sui generis.
À procura de um termo que melhor se adeque
a tais observações nos deparamos com a recente
substituição do Antropoceno pela categoria ca-
pitaloceno, conforme dissemos anteriormente.
Trata-se de uma categoria crítica ao discurso do
Antropoceno e ao excepcionalismo humano: “o
antropoceno se agarra ao poder imenso dessa abs-
tração falida de ‘homem’ e à terra prometida que
essa postura divina ainda pode entregar, i.e, um
108
planeta gerenciado para a produção de recursos
e governado para a contenção de riscos” (CRIST,
2022, p.49). Segundo Eileen Crist o “discurso do
Antropoceno” está irremediavelmente marcado
por uma condição de identidade suprema, e por
isso eivado por uma relação de poder, que estabe-
lece a dominação do Anthropos com severos efei-
tos éticos e existenciais.
Gostaríamos de problematizar a questão atra-
vés da reflexão legada por Cornelius Castoriadis
há algumas décadas, antes mesmo do nascimento
da tese do Antropoceno. Para Castoriadis o domí-
nio do Anthropos, domínio social-histórico por ex-
celência, emerge de condições particulares (mas

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


são superiores) da psique, isto é, dizer que há um
outro estrato que compõe a realidade (dimensão
simbólica) não significa submeter necessaria-
mente tudo que existe no estrato natural a uma
relação de uso instrumental, como se caracteriza
a modernidade no capitaloceno. A retomada da
ação humana, ação coletiva e autônoma, frente
às reificações da técnica como força emancipada
e heterônoma, passa necessariamente pela condi-
ção do próprio Anthropos como medida de todas
as coisas. Ademais, a existência de cosmologias e
formas sociais que renegam a ideia de progresso,
de Estado, de valor de troca, etc., é também uma
criação humana e, em tal âmbito da criação huma-
na, no caso, há diferentes relações dos homens e
109
do imaginário com o estrato natural. A criação do
progresso como força motriz da sociedade, e mes-
mo da ideia de crescimento ilimitado, ou ainda,
do desenvolvimento como fim único, é uma cria-
ção social-histórica, não a criação social-histórica
em si. Dizer que há domínio perene do Anthropos
como relação de poder significa ontologizar a do-
minação do capitaloceno e seu antropocentrismo,
que é histórico e, além do mais, está eivado por
lutas antitéticas, próprias aos movimentos de au-
tonomia. Dizer que o Anthropos é expressão da do-
minação pode ser e é uma verdade, mas trata-se
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

de uma verdade social-histórica, circunscrita ao


momento heterônomo que o processo civilizató-
rio do capitaloceno impõe.
Para Crist (2022) o discurso do Antropoceno,
associado ao domínio e ao poder ontologizado
do Anthropos, é responsável por uma clausura na
“mentalidade humanística”. A partir de tamanha
oclusão, a liberdade não humana, e a própria pos-
sibilidade da terra “gerar vida” estão sob ameaça.
O domínio sob a biosfera no Antropoceno, contu-
do, não é uma manifestação dos homens em ge-
ral, gostaríamos de insistir nesse aspecto, afinal,
a fórmula generalizante não permite explorar em
plenitude as lutas e resistências dentro do próprio
Anthropos, que não está unificado por um projeto
universal de cunho ontológico. Os povos da perife-
ria no capitaloceno sabem que a humanidade não
110
cabe no projeto ocidental. Ailton Krenak, impor-
tante voz entre os povos indígenas da América do
Sul é exemplar nesse estranhamento das fórmulas
genéricas: “precisamos ser críticos a essa ideia
plasmada de humanidade homogênea na qual há
muito tempo o consumo tomou o lugar daquilo
que antes era cidadania.” (KRENAK, 2019). Aliás, a
reivindicação dos povos “sub” acaba por ser mais
universal do que o pretenso direito universal do
mundo ocidental. A luta desses povos se reflete na
busca de condição de sobrevivência não apenas
para seu nicho, mas da própria humanidade, o que
inclui, aliás, outras inúmeras existências. E o pro-
jeto de modernização, conforme vimos em Latour,

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


indica a falência da universalidade exatamente no
momento de ascensão das fronteiras do privilégio.

111
Foto: Leonardo Borges Reis, 2022.
A crítica ao discurso do Antropoceno é urgen-
te, necessária e se apoia em avalanches de eventos
empíricos. Ao mesmo tempo ontologizar a “civili-
zação especista” no Anthropos é um equívoco, afi-
nal, não são os humanos, a mente humana, a es-
pécie humana etc., os responsáveis pelo desfecho
do capitaloceno. Há classes e classes, há povos e
povos, tal como modos de vida em disputa, e to-
dos estão sob o signo do Anthropos como criação
histórica. As formas sociais-históricas permitem
autonomia e heteronomia, são abertas a autocria-
ção ou à renúncia da criação explícita em nome
de forças externas. Uma visão íntegra do mundo
natural, que respeite seu valor intrínseco, para

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


além da redução à lógica instrumental dos recur-
sos (capital natural, serviços ecossistêmicos, etc.),
será um projeto humano e social, uma manifesta-
ção histórica do Anthropos, uma de suas camadas
e possibilidades. A crise ambiental é sobretudo
antropológica. Para Castoriadis (2006) o conteúdo
político da questão é inescapável, isto é, o desen-
volvimento tecnocientífico, no centro da socieda-
de capitalista e industrial está ligado ao núcleo de
um imaginário social de crescimento irrestrito do
consumo e da produção. E quando falamos em
imaginário do crescimento irrestrito, tal fenôme-
no não é de natureza meramente econômica, não
é função da esfera ocupada pelo homo economicus.
O capitaloceno poderia ser definido pelo conjunto
das significações imaginárias sociais que não são 113
meramente racionais enquanto significações so-
ciais, já que não podem ser derivadas de constru-
ções lógicas, nem reais, pois não se originam me-
ramente de coisas (causalidade). As instituições
que conformam o imaginário do capitaloceno não
procedem à significação como produto racional
ou funcional:

[...] não podemos compreender as ins-


tituições e menos ainda o conjunto da
vida social como um sistema simples-
mente funcional, série integrada de
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

arranjos destinados à satisfação das


necessidades da sociedade. Toda in-
terpretação desse tipo levanta imedia-
tamente a pergunta: funcional em re-
lação a que e com que fim – pergunta
que não comporta resposta dentro de
uma perspectiva funcionalista. As ins-
tituições certamente são funcionais
na medida em que necessariamente
devem assegurar a sobrevivência da
sociedade considerada [...] o que cha-
mamos ‘sobrevivência’ possui um con-
teúdo completamente diferente se-
gundo a sociedade que consideramos;
e, além deste aspecto, as instituições
são ‘funcionais’ relativamente a fina-
lidades que não dizem respeito nem
à funcionalidade nem ao seu oposto”
(CASTORIADIS, 2000, p.165).

A técnica capitalista enquanto técnica de pro-


114
dução e de organização da produção tornou-se
uma força autonomizada em relação a autolimi-
tação e autogoverno dos homens. Sem a inserção
da questão ecológica em um projeto democrático
radical, indissociável da crítica ao imaginário do
desenvolvimento, permaneceremos presos às “fi-
losofias da arrogância”, cuja presunção “entroniza
o homem como possuidor da natureza”. Encontrar
os caminhos para a autolimitação coletiva signifi-
ca impedir que a húbris predomine. Para os gregos
antigos, aliás, a húbris não se dissociava da néme-
sis. Com essa reflexão Castoriadis não estabelece
apenas a necessidade de reequilíbrio ou harmo-
nia, o que seria a superfície da questão, trata-se

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


sobretudo, na esteira da reflexão grega antiga, da
necessidade de autolimitação:

Trata-se de lembrar aos homens sua li-


mitação, não só individual, mas social.
E não é só que todo o mundo está sub-
metido à lei e vai morrer um dia; é que
todos juntos não podemos fazer qual-
quer coisa, temos de nos autolimitar.
A autonomia – a verdadeira liberda-
de – é a autolimitação necessária não
só nas regras de conduta intra-social,
mas nas regras que adotamos em nos-
sa conduta para com o meio ambiente.
(CASTORIADIS, 2006, p.246)

Mesmo a profunda deferência aos seres vivos


também é uma condição do Anthropos, da conso- 115
lidação de um imaginário que não tenha na natu-
reza apenas um elemento de dominação. Ao final
temos uma perspetiva dualista insuperável entre
sociedade e natureza? Castoriadis diria que não, a
relação entre os estratos em questão é fundadora,
condição sui generis, o caos psíquico é auto orga-
nizado graças a presença da lógica conídica ou
identitária, que constitui “uma dimensão essen-
cial e ineliminável, não apenas da linguagem, mas
de toda vida social” (CASTORIADIS, 2000, p.260).
A essência dessa lógica reside na circularidade,
segundo o autor grego. Isto é, toda forma lógica
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

aberta e linear costuma deixar distendida a ques-


tão da justificação de seus fundamentos. O ponto
de partida é um problema menor, algo a ser es-
camoteado, tal lógica “implica portanto que este
é externo ao discurso em questão e situado em
outro plano” (CASTORIADIS, 2000, p.260). As ope-
rações que Castoriadis nomeia como Legein (dis-
tinguir-escolher-estabelecer-juntar-contar-dizer
etc...) em alusão à teoria dos conjuntos, são parte
ontológica daquilo que sempre está estabelecido
na e pela linguagem, condição e ao mesmo tempo
base da criação da sociedade. O fazer/representar
da coletividade anônima seria impraticável fora
do legein. Mas a sociedade, por suposto, não é ape-
nas conjunto, nem hierarquia de conjuntos, seria
“assassinato estruturalista” pressupor que tal lógi-
ca possa esgotar a vida, afinal, a própria institui-
116 ção da sociedade é uma modalidade de instituição
do legein, mesmo a linguagem em seus processos
não se detém no legein. Qual o lugar, portanto, da
lógica conídica?

Dizer que toda a sociedade que conhe-


cemos pôde existir instituindo uma ló-
gica identitária, é dizer que existe uma
camada ou estrato daquilo que é, que se
dá ou se apresenta efetivamente como
podendo conduzir a uma organização
conjuntista. Neste estrato, o primeiro
estrato natural, o que existe presta-se
interminavelmente a um tratamento
que nele constitui elementos distintos
e definidos, podendo sempre ser reuni-
dos em coleções demarcáveis, possuin-

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


do sempre propriedades suficientes
para definir classes, conformando-se
sempre aos princípios de identidade e
do terceiro excluído, classificáveis em
hierarquias e justaposições ou cruza-
mentos não ambíguos de hierarquias.
Este estrato possui um representante
formidável na pessoa do ser vivo, ve-
getal e animal, com o qual, desde sua
origem, a sociedade lida imediata e ine-
vitavelmente e que compõe, também
imediatamente, sua própria matéria.”
(CASTORIADIS, 2000, p.267)

Portanto não apenas lógica abstrata, ou sim-


ples dualismo sociedade e natureza, tampouco re-
lação que paira sobre o ar. A gênese ontológica do
legein, ou ainda, “a conjuntização instituída pelo 117
legein apoia-se, em parte, no fato de que o que ela
encontra diante de si é em parte conjuntizável”
(CASTORIADIS, 2000, p.265). A natureza promo-
ve a sustentação da sociedade. O fato natural, que
fornece um ponto de apoio lógico e biológico, é
suporte para a instituição da significação, no en-
tanto “é quase nulo no que se refere ao teor das
significações”, o que se sustenta sobre o primeiro
estrato não significa que se reflete ou determina
por este. Por isso “a sociedade [...] define seu pró-
prio universo do discurso; e na medida em que a
sociedade não é simplesmente a espécie humana
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

enquanto simplesmente viva ou animal, este uni-


verso do discurso é necessariamente diferente do
animal homem” (CASTORIADIS, 2000, p.273).
Queremos dizer, por fim, que o Anthropos não
pode ser simplesmente reabsorvido ao útero uni-
versal da natureza do ponto de vista ontológico,
simultaneamente participa do mundo objetivo e
não será o pós-antropoceno senão a crítica antro-
pológica da apresentação do Anthropos como este se
apresenta no capitaloceno. Na melhor das hipóte-
ses, isto é, de uma sobrevivência ao colapso, pois,
é claro, no caso do colapso geral a reabsorção seria
completa, a oclusão total do psiquismo coletivo.

Referências

ALTVATER, Elmar. O capitaloceno, ou a geoen-


118
genharia contra as fronteiras planetárias do capi-
talismo. In: MOORE, Jason W. (Org.) Antropoceno
ou Capitaloceno? Natureza, história e a crise do
capitalismo. São Paulo: Elefante, 2022.
CASTORIADIS, Cornelius & COHN-BENDIT,
Daniel. Da ecologia à autonomia. São Paulo: Bra-
siliense, 1981.
CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imagi-
nária da sociedade. 5º edição. Rio de Janeiro: Paz
& Terra, 2000.
CASTORIADIS, Cornelius. Uma sociedade à
deriva: entrevistas e debates – 1974-1997. Apareci-
da: Ideias & Letras, 2006.

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


CRIST, Eillen. A pobreza de nossa nomencla-
tura. In: MOORE, Jason W. (Org.) Antropoceno ou
Capitaloceno? Natureza, história e a crise do capi-
talismo. São Paulo: Elefante, 2022.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do
mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
LATOUR, Bruno. Onde aterrar? Como se orien-
tar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro:
Bazar do tempo, 2020.
MARINI, R. M. O ciclo do capital na economia
dependente. In: FERREIRA, C.; OSORIO, J.; LUCE,
M. Padrão de reprodução do capital: contribui-
ções da teoria marxista da dependência. São Pau-
lo: Boitempo, 2012.
119
MOORE, Jason W. Antropoceno ou capitaloce-
no: natureza, história e a crise do capitalismo.
TAIBO, Carlos. Colapso: capitalismo terminal,
transição ecossocial, ecofascismo. Curitiba: Edito-
ra UFPR, 2019.
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

120
Uma lição de Schreber sobre o
fim do mundo para a época do
Antropoceno
RUBEN ARTUR LEMKE

Sobre a prodigiosa construção da Ordem do


Mundo, cuja sublimidade não pode ser capturada
pela atividade representativa de povo algum que

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


habita a terra, ocorreu “recentemente uma fra-
tura”. É deste modo, que o presidente Schreber
(2005, p. 43) faz a transição em suas memórias, do
capítulo onde explana seu conhecimento revelado
sobre Deus e a Ordem do Mundo, para o capítu-
lo onde descreve a crise dos reinos de Deus. Essa
fratura fundamental está ligada ao destino pessoal
do autor e vai desembocar no fim do mundo pró-
ximo. No epicentro da crise está a concepção do
“assassinato de almas”.
As memórias do presidente Schreber (2005)1
1 Não será apresentado aqui um apanhado da biografia de Schreber,
em um resumo do sistema de pensamento das memórias, nem um
comentário das diversas interpretações de seu sistema. Para isso o
leitor pode recorrer ao seu próprio relato autobibliográfico, além
dos diversos comentadores. 121
constituem referência fundamental no campo da
psicopatologia e é leitura incontornável para quem
se aventura na área. Diversos comentadores2
ilustres se debruçaram sobre as páginas de suas
memórias, pois o autor tem coisas importantes a
ensinar. Além de uma forte narrativa em primeira
pessoa sobre o universo da loucura, Schreber nos
ensina com autoridade sobre a experiência de es-
tar em um manicômio, nessa verdadeira “cozinha
do diabo” como apelidou uma destas instituições.
Em seu relato, nos conta como foi sua passagem
por tais lugares que lhe “dava uma impressão de
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

total abandono” (p. 76) e onde permanecia “total-


mente cortado do mundo externo, sem qualquer
relação” com sua família, e “nas mãos de rudes
enfermeiros, com os quais brigar de tempos em
tempos (p. 68)”.
O objetivo deste texto é trazer uma reflexão so-
bre uma lição de Schreber sobre o fim do mundo,
a partir de um conceito central no relato de suas
experiências que é a noção de assassinato de al-
mas. Vivemos sobre sob a sombra do fim iminen-
te. Termos como: novo regime climático, grande
aceleração e pontos de inflexão estão sendo dis-
cutidos no meio científico. Ao que tudo indica,
já podemos nos considerar habitando a época
geológica do Antropoceno3, onde reconhecemos

2 Destacaria Freud, Walter Benjamim e Lacan.


122 3 Isso implicaria que ainda estamos no Período Quaternário,
que a força mais importante a moldar a terra é a
atividade humana. Isto é, a intensa ação humana
sobre o globo já pode ser considerada equivalen-
te a um evento geológico e já produziu mudanças
sem ponto de retorno. Mudança na sedimentação
dos rios pela construção de barragens, mudança
na acidez dos oceanos, introdução no ambiente
de produtos químicos até então inexistentes, ra-
diação artificial, extinções abruptas de espécies e
construções humanas espalhadas pelo planeta em
escala global. Ainda não sabemos se o limite tem-
poral oficial do Antropoceno será no início da era
industrial ou as primeiras explosões atômicas em
1945 pelos sinais de radioatividade artificial (LA-

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


TOUR, 2020).
Latour (2020) alerta que vivemos em modo de
negação diante das mudanças climáticas, da acidi-
ficação dos oceanos, devastação de áreas naturais,
desmatamento, queimadas, extinção em massa de
espécies que mal tivemos tempo de conhecer. Há
por um lado a tomada de consciência do proble-
ma, por outro, um movimento de negação. O autor
chama “loucura da denegação4”. Vivemos nossas
tendo saído do Holoceno e ingressado no Antropoceno. De
acordo com Latour (2020), para ser aceito o termo Antropoce-
no, deve haver justificativa amparada em sinal geológico con-
sistente, no sentido de os estratos em formação serem amplos,
claros e distintos. Além disso, deve ser um termo útil para a co-
munidade científica.
4 Existem muitas maneiras de saber e ignorar ao mesmo tem-
po, afirma Latour (2020). 123
vidas como se não fosse um problema nosso, como
se estivéssemos desacoplados desse planeta e tra-
tássemos de um problema que será das novas gera-
ções. Como se fosse uma espécie de generosidade
com as gerações futuras discutir como podemos
minimizar a catástrofe que estamos produzindo.
Há um modo de desacoplamento fundamental
com a terra e com os diversos seres que nela ha-
bitam. Hoje só conhecemos a terra como consu-
midores de turismo. Mesmo quando adentramos
na outrora misteriosa selva ou subimos as outro-
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

ra sagradas montanhas, é ou como ecoturistas ou


como clientes de operadoras de turismo de aven-
tura. Em nossos modos de interação estamos mais
acoplados à nossa existência digital intermediada
pela tela de algum dispositivo, do que com a árvo-
re sob a qual estamos, o rio no qual nos banhamos
ou com o sol que nos esquenta.
Por outro lado, lidamos com um desacopla-
mento fundamental em nossa experiência do tem-
po. Lidamos com a crise ambiental como se nossos
filhos e os problemas que sobrevirão fossem como
duas retas paralelas, que só teoricamente pode-
riam se encontrar, lá longe, num futuro que não
nos concerne. Como se não pudéssemos pensar
em mudanças consistentes, endereçamos as pró-
ximas gerações a responsabilidade de salvar o pla-
neta, com a fé na ordem e no progresso humano.
124
Encontramos assim, uma resolução “assintótica”
do problema, para usar uma expressão de Freud
(1911, p. 59) em sua interpretação das memórias
de Schreber, ou seja, “adiar a solução do presente
para o futuro remoto”.
Trouxemos Schreber para a discussão pois
entendemos que ele é testemunha privilegiada
de uma experiência de fim do mundo. Deleuze e
Guattari (2011, p. 135) afirmam no Anti-Édipo que
a história das humanidades é o fluxo de onde o
delírio retira sua matéria de expressão. Segundo
os autores: “É próprio da libido investir no campo
social sob formas inconscientes e assim alucinar
toda história, delirar as civilizações, os continen-
tes e as raças, e ‘sentir’ intensamente um devir

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


mundial” (Grifos nossos). Schreber é um homem
que sem dúvida sentiu intensamente o devir mun-
dial, como é possível depreender da semelhança
que há entre o tema da criação de uma nova raça
de homens com a tragédia mundial que sobrevi-
ria da sociedade alemã nas décadas seguintes5.
E é interessante que tenha nascido em 1840, logo
depois da revolução industrial, um dos possíveis
marcos do início do Antropoceno.
Iniciaremos com um breve comentário sobre
como Schreber nos ensina a tratar com o devido

5 Ou tema das duas divindades do zoastrismo aplicado a idéia


de duas humanidades. O reino de Deus no sistema de Schreber
era dividido entre Ozmud, que tem preferência pelos arianos, e
Ariman, o deus dos morenos. 125
respeito o diálogo que muitas pessoas mantêm
com seus interlocutores invisíveis. Schreber faz
uma crítica epistemológica sobre os limites da per-
cepção do homem ocidental, formado no que To-
bie Nathan (1996) chama de “pensamento branco”.

A abóboda de nossa realidade o além dela e


nossa percepção

Em sua crítica ao Emil Kraepelin do “Tratado


de Psiquiatria” o presidente Schreber nos adver-
te: não devemos negar o mundo invisível. Os que
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

tentam colocar a saúde psíquica ao lado da nega-


ção do sobrenatural estão completamente presos
“às banais representações racionalistas do perío-
do iluminista do século XVIII”, nos afirma o autor
(Schreber, 1995, p. 82). Em suas memórias, o autor
nos alerta que é justamente a típica excitação dos
nervos que ocorre na doença mental que produz o
efeito de atrair os habitantes invisíveis do cosmos
e é a partir disto que se pode abrir as portas da
percepção. É o pandemônio sináptico na loucura
do homem que o permite cruzar os limites da ra-
zão e ter acesso às forças sobrenaturais.
No seu caso particular, sua própria falta de fé
em Deus é uma evidência de que realmente en-
trou em conexão com o mundo divino. Se fosse
um homem de fé, a excitação nervosa apenas ati-
varia as estruturas psíquicas correspondentes ao
126
seu credo pessoal. Já que nunca as possuiu, as ex-
periências que nos testemunha em seu relato são
certamente a ativação da potência de uma cone-
xão nervosa com os afastados rincões do mundo
celestial, conclui. Nos alerta ainda que a maioria
dos médiuns caem numa autoilusão, pois pensam
estar em conexão, mas não fazem mais que ativar
a matéria endopsíquica de seus próprios credos.
Alguns poucos homens certamente já produziram
conexão com o sobrenatural, mas nada compara-
do a experiência extraordinária de que nos é teste-
munha. Afirma, por fim, que a psiquiatria faz mal
ao produzir generalizações, colocando no mesmo
saco formas tão diferentes de percepção. Atra-

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


vés de seu julgamento precipitado, argumenta, a
psiquiatria acaba decaindo em um tipo de “mate-
rialismo grosseiro” (p. 83). Somos o povo da mer-
cadoria, nos afirma Kopenawa (2020) em sua an-
tropologia reversa e não conseguimos nem pensar
o mundo nem ativar nossos modos de compreen-
são sem o suporte da matéria.
Schreber ao seu modo nos fala de nosso dé-
ficit de percepção. Não podemos ver nada sem
o suporte da matéria. Estamos seguros de que a
redoma de nossa realidade está bem construída e
de que nela estamos confortavelmente instalados.
Schreber, em sua experiência de fim de mundo,
teve a redoma de sua realidade quebrada e por isso
está em posição de nos ensinar algo sobre ela e de
127
nos ajudar a suspeitar um pouco da consistência
de sua construção. Em sua redoma ocorreu uma
fratura, que tem origem no crime do assassinato
de almas.

O assassinato de almas e o fim do mundo

No drama cósmico relatado por Schreber, a


fratura que origina o desmoronamento da Ordem
do Mundo é causada pelo “assassinato de alma” do
qual é vítima, primeiramente de seu médico. No
que concerne o assassinato de alma? No livro de
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

memórias do presidente, uma complementação


importante para a explicitação conceitual é cen-
surada pelos editores, por ser, em seu julgamento,
inapropriado aos olhos de seus leitores. O capítulo
três, onde apresentaria exemplos práticos de ou-
tros membros de sua família também é censura-
do. A experiência do assassinato de almas carrega
a marca do enigmático para o autor, e dele temos
algumas pistas. Através destas, pretendemos fazer
uma tentativa de delimitar os contornos de um
conceito.
Marile Carone (2005, p. 361), tradutora das me-
mórias, no verbete “assassinato de alma” no glos-
sário, conceitua:

A possibilidade de interferência do
sistema nervoso de uma pessoa sobre
128 o de outra tem o seu desdobramento
máximo no assassinato de alma, quan-
do uma alma aprisiona outra, anulan-
do sua vontade própria. Schreber afir-
ma emprestar o termo da lenda e da
literatura, sempre com a conotação de
assenhoreamento de um ser humano
por outro. [...] As noções de assassi-
nato de alma, emasculação para fins
contrários a Ordem do Mundo, “deixar
largado” e destruição do entendimen-
to são bastante próximas.

No sistema de Schreber, a noção de conexão


nervosa é fundamental. Para nos explicar, Schre-
ber toma o exemplo do sol. O sol é uma manifesta-
ção divina e seus raios entram em contato instan-

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


taneamente com nosso corpo. O autor os chama
de raios divinos e através desses raios, Deus pode
se comunicar e se comunica principalmente com
a estrutura nervosa da alma dos mortos. O mesmo
pode ocorrer com os nervos das pessoas. Quando
morremos, nossos nervos se conectam com as es-
truturas dos reinos dos céus formando uma gran-
de rede de conexões na qual a personalidade in-
dividual acaba sendo dissolvida com o passar dos
séculos. É essa possiblidade que alguns astutos
aprenderam a usar em vida para levar vantagem
sobre a alma do semelhante gerando uma grande
crise cósmica, que não é totalmente esclarecida
nas memórias. É justamente a possibilidade do
estabelecimento da conexão nervosa que abre ca-
129
minho para algo como o assassinato de alma. Há
aqui algo de sexual e abusivo no estabelecimento
destas conexões, quando um excesso de proximi-
dade carrega todos os perigos de perda de subjeti-
vidade. Com a ocasião da conexão, “l’appetit vient
em mangeant” (p.44), afirma o autor, e as pessoas
“inspiradas pela ambição e pelo desejo de domi-
nação” (p.46) levariam as coisas adiante até o pon-
to do assassinato de alma. O assassinato de alma
ocorre por meio do “abuso de uma conexão ner-
vosa” (p.46), seja para “conseguir uma vida terre-
na mais longa, seja para se apropriar das forças
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

espirituais, seja ainda para obter uma espécie de


imortalidade pessoal ou alguma outra vantagem”
(p.46). Ou seja, o assassinato de alma é fazer mal
uso do excesso de proximidade no estabelecimen-
to de uma conexão nervosa, com o objetivo pér-
fido de extrair um gozo indevido ou algum outro
tipo de vantagem, que por definição não leva em
consideração os interesses da alma em questão6.
Segundo Schreber (2005, p. 15), “está difundida
em todos os povos pela lenda e pela poesia a ideia
de que é possível se apoderar de algum modo da
alma de outra pessoa para conseguir, à sua custa,

6 É interessante ter em conta que o autor teve essa intuição


no contexto do tipo de relação que ocorre dentro de uma insti-
tuição total, como é o manicômio, onde há um excesso de poder
das pessoas em relação a um destino de um sujeito e poucas
linhas de defesa desse sujeito contra a invasão de seu território
130 existencial.
uma vida mais longa ou alguma outra vantagem
que perdure além da morte”. Cita como exemplo
o Fausto de Goethe (1808), o Manfredo de Lord
Byron (1817) e a ópera Der Freischütz de Carl Maria
von Weber (1821). Três lendas em que os protago-
nistas entram em estreita relação com demônios
ou espíritos, através da invocação, feitiçaria ou
pacto, modos de relação que trazem excesso de
proximidade e compromissos que carregam todo
perigo de perda. Schreber (2005, p. 43) afirma:

Habitualmente, no entanto, é dado um


papel proeminente ao diabo, que pe-
nhora a alma de um homem mediante
uma pequena gota de sangue, em troca

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


de qualquer vantagem terrena etc., mas
sem que se veja bem que o diabo real-
mente faria com a alma aprisionada, a
menos que se queira supor que a tortura
de uma alma lhe proporcione um pra-
zer particular como um fim em si.

Schreber (2005) através de suas experiências


com os reinos celestes afirma não haver tal figu-
ra, como um opositor direto de Deus. Mas toma o
diabo na literatura como uma prova da existência
do fenômeno do rapto de alma. Trata-se aqui, do
medo ancestral do homem de perder sua alma,
como expresso no evangelho: “Que aproveita o
homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua
alma? ” ou a pergunta que vem a seguir: “Que da-
131
ria um homem em troca de sua alma”?7. Outro
exemplo é o temor que aparece no dito popular: “E
quem vai depressa demais, a alma fica pra trás8”.
Esse medo é o tema central nas diversas leituras
da tragédia de Fausto, e é muito curioso que na
leitura de Goethe (2013), Fausto assine o pacto no
momento em que, em seu escritório empoeirado
já percebe que havia perdido sua alma em algum
momento do caminho.
No estudo antropológico de Clement (1932), a
perda da alma é um dos cinco modelos explicati-
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

vos para adoecimento. O ator oferece em se livro


um esquema para os conceitos de doença entre
os diversos povos que habitam o globo, cobrindo
uma vasta distribuição geográfica. O objeto de seu
estudo, “conceitos de doença”, são as idéias manti-
das pelas pessoas quanto à causa de seu sofrimen-
to. O autor propõe três categorias. As naturais,
que incluem a medicina moderna, e todos os da-
nos infligidos por agentes materiais. A segunda é
a ação maléfica de algum ser humano e a terceira
é efeito de agentes sobrenaturais. Dentro dessas
categorias o autor propõe cinco tipos principais:
feitiçaria, intrusão de objeto patogênico, posseção
e “perda da alma” (soul loss)9. Que é o conceito que

7 Marcos 8.36 e 8.37.


8 Conforme aparece na música Roda de Chimarrão de Kleiton
e Kleidir.
9 De acordo com Dunker (2011) as teorias indígenas sobre o
132 adoecimento não divergem muito das concepções hegemônicas
nos interessa para a delimitação do noção de as-
sassinato de alma10.
Esta categoria inclui todas as teorias que atri-
buem a perda do alma como origem da doença.
A perda da alma pode ser produzida por espíritos
ou feiticeiros que de algum modo adquriram po-
der sobre a alma do sujeito. Ou ao sair do corpo na
atividade onírica pode ocorrer ao sujeito se perder
nos labirintos de seus pensamentos e não encon-
trar o caminho de retorno. O sujeito que perde a
alma logo adoece e pode vir a morrer se a alma
não for devolvida em breve. De acordo com o estu-
do de Clement (1932), a prática de cura nesses con-
textos consiste em um raciocínio simples de causa

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


e efeito. Se a doença é devido a perda da alma, a
cura é reencontrar e restituir a alma ao seu lugar.
Kopenawa nos dá um exemplo de nossa vizinha
Amazônia. “Com essa árvore você irá preparar o
pó yãkoana. A força dessa árvore revela a voz dos
xapiri. Ao bebê-la, você ouvirá a algazarra deles e
será sua vez de virar espírito [...]. Assim, quando
seus filhos adoecerem, você seguirá o caminho
dos seres maléficos que roubaram suas imagens
para combatê-los e trazê-las de volta!” (Kopenawa
e Albert, 2015).
Tanto no caso de uma alma perdida, como no

do mononaturalismo moderno.
10 O autor esclarece que alma tem um sentido diferente para cada
cultura O sentido mais comum é de sombra, um duplo do sujeito. 133
caso em que é mantida em cativeiro por algum es-
pírito maligno ou feiticeiro, a tarefa do xamã é en-
contrá-la e conduzi-la ao seu dono. Se a desordem
é efeito de magia maligna, a contra-magia deve ser
invocada para encontrar o feiticeiro responsável e
obrigá-lo a cessar suas operações sobre a alma do
sujeito (Clementes, 1932). Essa passagem, em que
um feiticeiro mantém controle por meio de deter-
minadas operações sobre a alma de um sujeito, se
aproxima do conceito de assassinato de alma.
Proponho agora que possamos derivar uma li-
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

ção da denúncia de Schreber. Se acrescentarmos


o adverbio de negação e um verbo na frente do
enunciado podemos transformar o crime do qual
Schreber foi vítima em um princípio ético: “Não
cometerás assassinato de almas”. Magno (1981)
em sua interpretação do relato de gêneses, afirma
que a origem da lei humana advém da relação fra-
ticida entre Caim e Abel. A proibição de matar sur-
ge na sequência da primeira quebra, do primeiro
assassinato. Caim11, não poderia ter matado Abel,
pois se ele o matasse, ele ia assassinar um único
diferente e então ele mataria a diferença enquan-

11 Segundo Gênesis, a descendência de Caim termina em La-


mec, cinco gerações depois que como Caim, se torna um assas-
sino. Adão conhece de novo Eva e tem outro filho chamado Set,
a descendência dele acaba desembocando em outro Lamec, que
é o pai do Noé, que atravessou o fim de mundo do dilúvio. Uma
interpretação possível dessa duplicidade do nome de Lamec
134 nos relatos é que somos ao final, todos descendentes de Caim.
to tal e portanto, se destruir como sujeito ético e
acabar com sua posição de sujeito falante. O autor
propõe que toda a lei se funda na proibição de ma-
tar, na proibição de eliminar a diferença enquanto
tal. Segundo Magno (1980, p. 70) “Não tem outra
Lei no Velho Testamento”, e talvez não exista ou-
tra. A lei é fundada no real da diferença, e seguir
a lei é respeitar o próximo como diferença pura.
Desse modo, podemos entender o “não comete-
rás o assassinato de alma” como uma rearticula-
ção simplificadora da lei do pentateuco. Podemos
tomar o matar no sentido amplo de não respeitar
alteridade em sua diferença radical, e como diria
Levinas (1980), abolir a diferença ao se render ao

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


gozo da totalidade. Schreber parece apresentar
uma fórmula simples: Não invadirás o território
existencial do teu próximo e o respeitarás em sua
diferença.
Ao infringir qualquer desdobramento dessa
única lei, não matarás, em alguma medida, um
tanto de morte é imposto ao próximo. Um tanto de
vida é extinta, roubada, desrespeitada ou ludibria-
da. Do crime bárbaro à negação do direito a pala-
vra, uma invasão do terreno de ser do nosso pró-
ximo produz algum nível de assassinato: a perda
total da alma por seu aniquilamento pela morte do
corpo, a perda da alma pelo extravio de seu cami-
nho mais próprio pela privação de liberdade social
ou econômica - ambas experiências produzindo
135
fins do mundo particulares - a perda de uma parte
da alma (que não é aquela parte que já falta a cada
um, por questões ontológicas, mas uma extração
produzida por roubo deliberado), um arranhão na
alma pela ofensa grave, sua contaminação pela in-
trusão de matéria forçada. Várias sequelas produ-
zidas pelos diferentes tipos de assassinato de alma.
Pelo poder de conexão trazido pelo desenvol-
vimento tecnológico, o homem possui os meios e
a ocasião de praticar assassinato de alma em larga
escala. Fez assim, com o estrangeiro ao torná-lo
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

escravo, fez assim com o louco ao torna-lo despos-


suído de seu direito de palavra. Faz assim com o
trabalhador quando o considera outro tipo de car-
vão a se queimar. A imposição da lógica sedentá-
ria do espaço quadriculado da cerca sobre espaço
nômade do cerrado ou da floresta. A imposição
da monocultura sobre a diversidade biológica. O
agrupamento ontológico de uma diversidade ain-
da não completamente conhecida sob uma única
rubrica. Assassinato de alma pelo corte forçado
que arranca o homem originário à sua terra ances-
tral. Quando se transforma um sítio sagrado em
um parque, como afirma Airton Krenak (2020). A
perda da alma dos valores quando todos valores
são achatados e reduzidos ao valor monetário pelo
plano de equivalência generalizado do capital. E o
que dizer do uso abusivo desta nova conexão cria-
da com esse outro mundo que é o plano subatô-
136
mico para produzir armas de destruição total? A
humanidade abusa cada vez mais de seu poder co-
nexão e vai imponto uma relação predatória com
a vida, com a terra e com a subjetividade dos vi-
zinhos, exatamente do modo como Schreber des-
creve a assassinato de alma.
Airton Krenak (2020) nos lembra do assassina-
to do Rio Doce, que para as famílias Krenak, era o
Watu, o seu avô ancestral, não um recurso natural
qualquer, como dizem os economistas. É possível
medir o efeito de um assassinato destes na alma de
um povo? Estancar a mineração que é sempre pre-
datória é um ponto muito sensível para a sobrevi-
vência do mundo Yanomami. Kopenawa (Kopena-

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


wa e Albert, 2006) denuncia os efeitos nefastos da
conexão mecânica com o interior da terra, que ao
ser esburacada irá atrair a queda do céu. O modelo
da mineração é um exemplo claro do assassinato
de almas e sua relação com o fim do mundo. Em
nome de quê se esburaca a terra, se derruba mon-
tanhas que outrora eram seres viventes e se matam
os rios? Tudo isso para extrair o gozo mortífero do
lucro sem levar em conta as consequências para a
vítima dessa extração. O exemplo de Brumadinho
é especialmente claro. Assim como as notícias e
suspeitas que nos rondam aqui no pantanal, como
em outros lugares, de que o poderio econômico
tem ocultado o risco de desmoronamento de inú-
meras outras barragens. Elas podem cair sobre
137
nossas cabeças a qualquer instante.
É interessante perceber que todo esse poderio
de conexão do qual o povo da mercadoria abusa é
o corolário de um desacoplamento fundamental.
É como se fosse preciso se apegar à concretude
dessas conexões no momento em que perde a di-
mensão simbólica e afetiva da relação com a terra.
De acordo com Krenak (2020), estamos totalmente
alienados desse organismo de que fazemos parte,
nosso planeta, e passamos a pensar que a terra é
uma coisa e nós somos outra. O autor afirma “a
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

humanidade vai sendo descolada de uma maneira


tão absoluta desse organismo que é a terra” (p. 21)
e vai criando uma ideia absurda de uma “abstra-
ção civilizatória” (p.22) e vai compondo um tipo
de “humanidade zumbi” que não tolera alegria e
fruição de vida. Zumbis são seres que perderam a
alma. Como afirma o autor: “Quando despersona-
lizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles
os seus sentidos, considerando que isso é atribu-
to exclusivo dos humanos, nós liberamos esses
lugares para que se tornem resíduos da atividade
industrial e extrativista. Do nosso divórcio das in-
tegrações e interações com a nossa mãe, a Terra,
resulta que ela está nos deixando órfãos” (Krenak,
2020. P. 49). O desacoplamento é algo que nos faz
perder a alma, por estarmos perdendo um modo
de relação significativa com o mundo, com “a na-
tureza mítica das coisas”, como afirmou Viveiros
138
de Castro (2015, p. 14).
Freud (1911), em sua interpretação do sistema
de Schreber, afirma que o costumamos chamar
de delírio, é na verdade uma produção desejante
de reconstrução das conexões significativas com
o mundo12. Essa produção seria precedida por um
evento catastrófico que é um fim de mundo sub-
jetivo. Na linguagem freudiana, o sujeito perde
os vínculos libidinais, as cordas significativas que
amarram o amor do sujeito com o mundo:
O paciente retirou das pessoas de seu
ambiente, e do mundo externo em ge-
ral, a catexia libidinal que até então ha-
via dirigido para elas. Assim, tudo tor-

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


nou-se indiferente e irrelevante [...]. O
fim do mundo é a projeção dessa ca-
tástrofe interna; seu mundo subjetivo
chegou ao fim, desde o retraimento de
seu amor por ele” (Freud, 1911, p. 77).

Esse entendimento freudiano da paranoia, pa-


rece descrever o modo de desacoplamento funda-
mental que o povo da mercadoria tem com o mun-
do. No caso de Schreber, a cópula cósmica parece
ser o retorno do foracluído13 do acoplamento sig-
nificativo com a terra perdido.

12 Segundo Freud (1911, p. 78): “A formação delirante, que pre-


sumimos ser o produto patológico, é na realidade, uma tentativa
de restabelecimento, um processo de reconstrução”.
13 No sentido proposto por Lacan (1998, 1999), onde aquilo
que é abolido no registro Simbólico retorna no Real. 139
Diante deste rompimento das relações libidi-
nais com o mundo, ao perder as cordas de amar-
ração ao mundo pelo modo do Eros, o peso gra-
vitacional dessa falta de amarração cai sobre a
superfície do eu, produzindo o crescimento anô-
malo de narcisismo e de um tipo de eu mônada
fechado sobre si mesmo. No sistema de Schreber,
almas e homúnculos despencavam aos milhares
em sua cabeça inadvertidos da desmedida força
de atração de seus nervos, que colocavam em risco
os fundamentos da estrutura dos reinos dos céus.
De acordo com o autor das memórias, os seres que
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

habitam o universo, consideravam totalmente ina-


creditável uma força de atração tão ameaçadora.
Relata: “logo começou a ocorrer, em primeiro pla-
no, nas visões que eu tinha toda noite, a represen-
tação de um fim do mundo como consequência da
ligação já indissolúvel entre mim e Deus” (p. 77). É
como se o poder de atração de Schreber produzis-
se a precipitação do reino dos céus sobre o mundo
humano. Em um momento dramático do fim do
mundo, quando há notícias de que Vênus havia
sido inundada e de que o sistema solar fora desa-
trelado, Schreber tem a visão de que dois túneis no
centro da terra desabam14.
Agora qual a relação do assassinato de alma

14 Outra visão que tem em seu fim de mundo é habitar um cas-


telo em um lago no Brasil, onde havia um muro para se proteger
140 de uma “maré amarela” e de uma pandemia sifilítica.
com o fim do mundo? Schreber alega compreen-
der apenas em parte, pois são processos bastan-
te obscuros e existem conexões profundas des-
conhecidas. As memórias parecem indicar que o
problema é que o assassinato de almas é uma es-
pécie de truque sujo que os homens aprenderam
e que rapidamente se espalhou em um clima de
“l’appetit vient em mangeant”, como afirmou Schre-
ber (2005, p.44). Essa prática, primeiro perpetrada
pelo professor Flechsig, talvez por seus antepas-
sados, acabou contaminando outros homens, le-
vados por seu desejo de poder e dominação. Por
fim, esse uso ostensivo do estabelecimento de
conexões nervosas chamou atenção de Deus para

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


Schreber. É preciso entender, que o Deus de Schre-
ber não sabe lidar com os vivos, e fica totalmente
cativado pelo incrível poder de atração dos nervos
de Schreber. Atração de tal magnitude que carrega
o risco de destruir a Ordem do Mundo. Schreber
delira o devir do mundo da era industrial e o nar-
cisismo vampiresco do homem da mercadoria. No
fim, a lição de Schreber parece ser bem simples:
assassinatos de alma produzem fins de mundo!

Considerações finais

Em um episódio chamado Three Robots: Exit


Strategies, da série televisa Love, Death + Robots15,

15 Com roteiro de John Scalzi. 141


três robôs descem de uma nave e passeiam sobre
a terra pós apocalíptica com a esperança de en-
contrar algum conhecimento que pudesse ajudar
as máquinas a evitarem sua própria extinção no
futuro. Não encontram nada além de surpresa e
motivo de risos para as saídas pensadas pela hu-
manidade para o fim de seu mundo, saídas marca-
das pela estupidez de um desacoplamento com a
terra e de um narcisismo insustentável. Nos tem-
pos em que os bilionários constroem naves, são
admirados e chamados de novos Noés, a primei-
ra conclusão lógica é de que as saídas construídas
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

pelo poderio econômico do capital sofrem de um


desacoplamento fundamental com o chão da ter-
ra. A segunda conclusão lógica é de que não es-
tamos todos no mesmo barco. Não haverá espaço
para todos em uma arca e já sabemos de antemão
quem ficará de fora. Lembro aqui do inesquecível
diálogo final do Dr. Fantástico de Stanley Kubrick
(1964), em que o cientista explica os critérios de
seleção do público feminino para os abrigos atô-
micos, público que teria a missão de repovoar a
terra, sobre a cuidadosa ajuda e orientação dos ve-
lhos políticos e militares.
Uma lição que não podemos aprender com
Schreber é a de relegar a solução para a eternida-
de. Não podemos esperar que a humanidade car-
regue dentro de si, seja numa possível evolução
natural de seu pensamento, seja na esperança de
142
algo mágico surja da programação de nosso DNA e
crie a nova mentalidade esperada por todos, aque-
la que todos esperam como necessária depois da
fusão do átomo. Como reatar as relações libidinais
com o mundo e sair do círculo infernal da deman-
da de novos produtos de consumo? Como criar
uma nova subjetividade que prescinda dos assas-
sinatos de alma de toda ordem, mesmo em sua
mais sutil forma? Como trabalharmos naquilo de
que nos ocupamos mantendo um sólido “compro-
metimento não desacoplável com o mundo”, como
propõe Viveiros de Castro (2015, p.14).
Krenak (2020) propõe que possamos contar
mais uma história para adiar o fim do mundo.

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


Contar uma nova história de um modo diferente,
poderíamos dizer. Será que com Schreber podería-
mos dizer construir um novo amor? E construir,
nas palavras de Krenak (2020, p.25) uma “expe-
riência de viver em uma terra cheia de sentidos,
numa plataforma para diferentes cosmovisões”. E
perder “um pouco da vaidade dessa humanidade
que pensamos ser, além de diminuir um pouco a
falta de reverência que temos o tempo todo com
outras companhias que fazem essa viagem cósmi-
ca com a gente” (p. 31).

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143
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O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


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145
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mata (prefácio) In: KOPENAWA, Davi; ALBERT,
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nomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés.
São Paulo: Companhia das Letras, 2015

146
Ecologia e espiritualidade católica:
anotações de uma “campanha da
fraternidade”
MARCIO BOGAZ TREVIZAN

Introdução

Em busca de solução para os problemas am-

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


bientais, nas últimas décadas emergiu uma cons-
ciência ecológica que permeou vários âmbitos da
sociedade mundial. No Brasil, alguns setores da
Igreja Católica sensibilizaram-se para a necessi-
dade de preservar a criação, e então propuseram
ações e reflexões que abarcaram os diversos níveis
da ação da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB).
A primeira grande reflexão católica, no Brasil,
em favor da preservação do meio ambiente se deu
no ano de 1979 por meio da Campanha da Frater-
nidade. Com o tema ‘Preservar o que é de todos’
a CNBB propiciou uma abordagem teológica e so-
cial que marcou de forma indelével a ação da Igre-
ja brasileira. Tal abordagem, deve ser compreen- 147
dida dentro dos marcos postulados pelo Concílio
Vaticano II que propôs, na Constituição Apostóli-
ca Gaudium et Spes (1964), um ‘olhar de acolhida’1
para com as realidades do mundo contemporâneo.
Seguindo tal princípio hermenêutico e as
orientações da Doutrina Social da Igreja, a CNBB
intensificou seu olhar para a relação entre ‘fé cató-
lica’ e ‘problemas sociais’, de tal modo que encora-
jou seus fiéis a articularem ‘penitência quaresmal’
e ‘comportamento’. Neste contexto de mudança da
abordagem pastoral da Igreja é que se deve com-
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

preender a Campanha da Fraternidade de 1979 e


as reflexões propostas no presente texto.

As Campanhas da Fraternidade

As Campanhas da Fraternidade foram uma


conquista alcançada pelos setores da Igreja Cató-
lica que mostraram uma maior capilaridade e arti-
culação contextual. Na sua gênese está a ação das
Comunidades Eclesiais de Base2 (CEBs) e a ação

1 No seu preâmbulo, a Gaudium et Spes afirma que “as alegrias


e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje,
(...) são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as
angústias dos discípulos de Cristo” (Gaudium et Spes, n.1), de
modo que, “não há realidade alguma verdadeiramente humana
que não encontre eco” no coração dos discípulos de Cristo (Gau-
dium et Spes, n.1).
2 De acordo com a Digital Catholic Encyclopedia, as Comunidades
Eclesiais de Bases (CEBs) tiveram sua origem no final dos anos
148 1950 e início dos anos 1960. Tais grupos surgiram em vários locais
direta da Caritas brasileira3.
A primeira Campanha da Fraternidade foi rea-
lizada em 1961, por iniciativa dos responsáveis
pela Cáritas brasileira. O objetivo era promover
uma ação para arrecadar fundos para as ativida-
des assistenciais da referida instituição a fim de
alcançar sua autonomia financeira. O Evento re-
cebeu o título de “Campanha da Fraternidade” e
foi realizado pela primeira vez durante a Quares-
ma de 1961, na Diocese de Natal, no Rio Grande
do Norte. A iniciativa foi apoiada por outras três
Dioceses e financiada por alguns bispos norte-a-
mericanos.

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


Em 1962, dezesseis dioceses do nordeste do
Brasil realizaram a Campanha e, embora não te-
nham obtido sucesso financeiro, criaram um pro-
jeto de solidariedade que em 1963 foi transfor-
mado em ‘campanha nacional’, com o objetivo de
sensibilizar os fiéis durante o período quaresmal.

do Brasil e em muitos países da América Latina e Caribe, no campo


e na cidade. O seu nascimento foi precedido de vários elementos,
entre os quais destacamos: a experiência da catequese popular
(movimento catequético) e a Ação Católica brasileira que assumiu
o modelo belga, francês e canadense de ‘Ação Católica especializa-
da’. Ver: Disponível em: <http://bit.ly/3ThOgJt>. Acesso em: 21 jul.
2022.
3 A Caritas Brasileira é um organismo da CNBB e foi fundada em
12 de novembro de 1956. Sua origem está vinculada a ação pastoral
de Dom Helder Câmara (1909-1999), a época Secretário Geral da
CNBB. Atualmente “possui uma rede com 187 entidades-membro,
12 regionais e 5 articulações” (CARITAS, 2023). Ver: Disponível em:
<http://bit.ly/403r4ky>. Acesso em: 21 jul. 2022. 149
A primeira Campanha Nacional da Fraternida-
de foi realizada em 1964, com o tema “Igreja em
Renovação” e o lema “Lembre-se: você também é
Igreja”. Durante os primeiros quinze anos de exis-
tência da Campanha, a questão ecológica ambien-
tal não foi mencionada diretamente; os temas esta-
vam relacionados com a ‘participação dos fiéis na
vida da Igreja’, a ‘caridade’, o ‘valor da vida huma-
na’, dentre outros. Foi somente em 1979 que os pro-
blemas ambientais foram abordados pela primeira
vez em uma perspectiva católica. Tal perspectiva,
provavelmente, se deu a partir das influências do
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

movimento ambientalista mundial, da Conferên-


cia de Estocolmo4, bem como dos pronunciamen-
tos do Papa Paulo VI sobre o assunto5.

4 Em 1972, durante os dias 5 e 16 de junho, aconteceu a Confe-


rência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano em Es-
tocolmo, Suécia. Esse foi o primeiro evento global, organizado pela
ONU, com o objetivo de discutir a problemática ambiental. Dentre
as resoluções tomadas, foi destacado a necessidade da cooperação
internacional no cuidado do ecossistema de toda a terra bem como
a responsabilização daqueles que contaminam o ambiente.
5 Foi na década de 1970 que o Vaticano começou a mostrar maior
preocupação com as questões ambientais. De modo concreto a
preocupação emergiu no discurso proferido pelo Papa Paulo VI
(1963-1978) na sede da Food and Agriculture Organization (FAO)
em Roma. Em seu discurso, mencionou a necessidade de “uma uti-
lização mais racional dos recursos físicos básicos, uma exploração
melhor concebida da terra e da água, das florestas e dos oceanos”
(Paulo VI, 1970). Para Costa (2015) “neste documento, são verifi-
cadas variáveis (...) que não aparecem em documentos anteriores,
como florestas, oceanos e águas” (COSTA, 2015, p. 50). Além disso,
o discurso aponta que o “conjunto de inovações mal aplicadas po-
150 deria causar riscos à natureza” (COSTA, 2015 p. 50).
Evangelização e Ecologia

A Campanha da Fraternidade de 1979 foi apre-


sentada oficialmente à sociedade brasileira em 20
de julho de 19786, por Dom Ivo Lorscheiter então
bispo de Santa Maria e Secretário Geral da CNBB.
O tema escolhido foi ‘Por um mundo mais frater-
no’ e o lema ‘Preservar o que pertence a todos’.
No Manual destinado a apresentar a proble-
mática ecológica em ótica católica, a CNBB aponta
que o objetivo da Campanha consiste em discutir
questões ecológicas a fim de provocar em “todos
[...] uma nova mentalidade” (CNBB, 1979). Tal
perspectiva faz eco a noção cristã de conversão7.

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


O motivo que levou a Igreja do Brasil a abor-
dar um tema considerado ‘social’ e ‘polêmico’ é
justificado no início do texto base. Para a CNBB,

6 É interessante notar que o tema da Campanha de 1979 está


inserido no período em que a Igreja está empenhada na solução
dos problemas sociais que afligem os mais pobres. De acordo
com o manual da Campanha de 1979, a Campanha em questão
“continua vigorosamente o da CF 78 (trabalho e Justiça para To-
dos)” (CNBB, 1979, p. 10).
7 De acordo com Hadot (2014), o termo ‘conversão’ significa
‘virada’, ‘mudança de direção’. Em sua etimologia latina conver-
sio, corresponde à palavra grega epistrophè (mudança de orien-
tação) e traz consigo a ideia de retornar às origens. Também
pode ser entendido como metanoia (mudança de pensamento),
arrependimento, e evoca a perspectiva de ‘mutação’ e ‘renasci-
mento’. Em conclusão, a ‘mudança de mentalidade’, a ‘conver-
são’, é ao mesmo tempo mudança radical de orientação, muta-
ção e renascimento (HADOT, 2014, p. 203). 151
a resposta deve ser clara, simples, e não deixar
dúvidas: a Igreja passou a abordar o tema “por-
que o mundo entrou num processo acelerado de
desumanização que torna cada vez mais difícil a
missão cristã de evangelizar” (CNBB, 1979, p. 10).
Como é evidente, para os bispos brasileiros da
década de 1970, a questão da ‘evangelização’ toca
diretamente a problemática ecológica e faz refe-
rência direta ao objetivo primeiro das Campanhas
da Fraternidade. Para a referida entidade, as Cam-
panhas devem promover “uma vasta ação evange-
lizadora, mostrando a beleza da solidariedade hu-
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

mana, sugerindo gestos concretos, educando para


um novo espírito derivado da Caridade do próprio
Cristo” (CNBB, 1979, p. 3).
Quanto a relação entre ‘evangelização’ e ‘ecolo-
gia’ a Igreja destaca que “a Ecologia (ambiental)8
é um problema profundamente fraterno. Trata-se
do bem-estar e da sobrevivência da humanidade”

8 Na década de 1970 a referência aos ‘problemas ecológicos’


significava alusão aos problemas ambientais. Contudo, depois
da publicação da Encíclica Laudato Si (2015), o cristianismo
católico passou a entender o termo ‘ecológico’ de uma manei-
ra ampla e propôs a noção de ‘Ecologia Integral’ que abarca as
quatro ecologias: ecologia ambiental, que diz respeito a análise
do ecossistema natural; ecologia econômica, que cuida da ana-
lise do sistema de produção e distribuição; a ecologia sociocul-
tural, que regula as relações humanas baseadas nos princípios
de subsidiariedade e solidariedade; ecologia humana, que tem
como centro a dignidade humana (GRUPO DE TRABAJO INTER-
DICASTERIAL DE LA SANTA SEDE SOBRE LA ECOLOGÍA INTE-
152 GRAL, 2020, p. 10).
(CNBB, 1979, p. 10). Vale ressaltar que para a Cam-
panha de 1979, o conceito de evangelização pas-
sou a abarcar a totalidade da vida do ser humano e
se afastou da visão dualista que punha o acento no
mote ‘salve a tua alma’. Esta perspectiva sinalizou
uma ruptura para com o antagonismo tradicional
entre ‘alma’ e ‘corpo’, ‘céu’ e ‘terra’. Na sua aborda-
gem, a CNBB propôs a questão em uma perspecti-
va unitária, na qual ‘evangelizar’ significa ‘cuidar
do ser humano como um todo’ e da ‘criação na sua
totalidade’.
Ademais, para a reflexão teológica daquele pe-
ríodo, a ‘natureza’ é entendida como “criada por
Deus [e] destinada a todos os homens. Destruí-la

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


ou prejudicá-la é, portanto, um ato nocivo ao próxi-
mo”9 (CNBB, 1979, p. 10). É por isso que a postura
9 Na década de 1970 ainda não estava claro, para a doutrina
católica, a noção de que a ‘destruição do ambiente’ configura-
va um pecado. Esta perspectiva foi intuída na teologia ortodoxa
e lentamente adentrou ao mundo católico romano. A clareza a
respeito do tema, parece surgir pela primeira vez na Carta Encí-
clica Laudato Si (2015) quando, citando o Patriarca Bartolomeu,
o Papa Francisco afirma: “todos na medida em que causamos
pequenos danos ecológicos, somos chamados a reconhecer a
nossa contribuição pequena ou grande, para a desfiguração e
destruição do ambiente” (FRANCISCO, 2015, n. 8). Na sequên-
cia, menciona a Bartolomeu e pontua: “Sobre esse ponto (danos
ecológicos), pronunciou-se repetidamente (o Patriarca Barto-
lomeu), de maneira firme e corajosa, convidando-nos a reco-
nhecer os pecados contra a criação” (FRANCISCO, 2015, n. 8).
Para fazer a afirmação sobre o ato pecaminoso, o Papa se utiliza
das palavras do Patriarca de Constantinopla: “porque um crime
contra a natureza é um crime contra nós mesmos e um pecado
contra Deus” (BARTOLOMEU. Discurso em Santa Bárbara, Ca- 153
de “contribuir para a construção de um mundo mais
humano assume (...) um valor pastoral, um sentido
evangelizador” (CNBB, 1979, p. 10). É com este es-
pírito que se deve observar a ação católica em prol
da preservação do ambiente no final da década de
1970. Em outras palavras, cuidar da natureza é con-
siderado pela CNBB, um ato de ‘evangelizar’.

Preservar o que pertence a todos

A Campanha da Fraternidade de 1979 viabi-


lizou a publicação do primeiro texto técnico da
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

Igreja brasileira a respeito da problemática ecoló-


gica. Para os organizadores, a formação ecológica
das consciências envolvia a superação do egoís-
mo, “a ganância de possuir mais a qualquer preço”
(CNBB, 1979). Além disso, propunha a reaquisição
do “respeito e admiração contemplativa pelas be-
lezas da natureza” (CNBB, 1979). No entanto, a
‘nova mentalidade’ desejada pela Igreja só seria
factível mediante a sensibilização do povo católi-
co. Para atingir a tão desejada ‘consciência ecoló-
gica católica’, a Campanha propalou a adoção de
uma postura “escrupulosamente preocupada em
preservar e conservar o ar, a água, a flora e a fau-
na” (CNBB, 1979, p. 5).
Em apoio a ação dos bispos brasileiros, na qua-
resma de 1979, o Papa João Paulo II enviou uma
154 lifórnia [8 de novembro de 1997] in.: FRANCISCO, 2015, n. 8).
carta destinada ao povo brasileiro. Nela, enfatizou
que a preservação do ambiente natural e humano
é fundamental para a vida e para o progresso inte-
gral do homem. Sublinhou que a preservação do
“ambiente natural e humano, património comum
(...) é condição de vida, fator de progresso inte-
gral e manifestação do sentido de família entre os
homens, e daquele amor que cria solidariedade,
fraternidade e paz “ (JOÃO PAULO II, 1979). Para
atingir tal fim, reconhece que é necessário “for-
tificar ou implantar uma mentalidade; educar-se
e educar constantemente para o amor cristão à
natureza, para louvar a Deus Criador, como São
Francisco de Assis” (JOÃO PAULO II, 1979).

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


Ao final da carta, o Papa adotou um tom apo-
calíptico ao afirmar: “irmãos e irmãs, respondam
ao chamado antes que seja tarde demais” (João
Paulo II, 1979). Dado que foi recebida no contexto
da quaresma, é provável que a intenção do Papa
fazia eco a expressão bíblica “convertei-vos e cre-
de no evangelho” (Mc 1, 15) usada nas missas de
quarta-feira de cinzas. Entretanto, é plausível in-
terpretá-la como um chamado a evitar situações
catastróficas do ponto de vista da devastação da
natureza.

Eu quero ver o verde

No que diz respeito diretamente ao conteúdo


155
da Campanha de 1979, destacamos alguns apelos
veiculados no hino composto para ser cantando
em todas as comunidades católicas do Brasil. De
autoria de Lúcio Floro o hino intitulado ‘Eu quero
ver o verde’, por meio de uma linguagem popular,
veiculava conteúdos teológicos e ecológicos desti-
nados a provocar transformações nos cantantes e
ouvintes.
Um dos elementos importantes apontados
pela letra, diz respeito a relação ‘ser humano e na-
tureza’. Partindo da ideia de preservação dos bens
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

naturais, o hino propõe uma nova interpretação,


discreta e firme, ao texto de Gênesis 1,28.10 A her-
menêutica do referido versículo consiste em con-
testar a ideia de que o ser humano deve dominar
e submeter. Para o hino oficial da Campanha, as-
sumido pela CNBB, a postura cristã que advoga a
‘dominação do mundo’ é insuportável: “Não posso
ouvir Deus me dizer: Domina o mundo” (CNBB,
1979, p. 21).
A nova face cristã contrária a ‘dominação’ do
mundo é fundamentalmente uma pauta aliada a
preservação do meio ambiente. Nela o ser huma-
no não é apresentado como o senhor absoluto de

10 “Deus os abençoou: Frutificai, disse ele, e multiplicai-vos, en-


chei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre
as aves dos céus e sobre todos os animais que se arrastam sobre
156 a terra” (Gênesis 1,28).
tudo11. É descoberto como um ser no mundo em
meio aos demais seres. O hino propõe explicita-
mente às comunidades católicas uma transforma-
ção de perspectiva e inculca a necessidade de uma
conversão: “o azul, o verde, as ondas vão ter ou-
tra sorte, se o nosso coração se converter e amar”
(CNBB, 1979, p. 21). Em outras palavras, é preciso
converter-se para entender que o ser humano é o
‘cuidador’ não o senhor absoluto de tudo.
Dado que a letra foi composta com ‘espírito
quaresmal’, a teologia ecológica do texto, em lin-
guagem poética, pede perdão a Deus pela destrui-
ção causada pelo homem e grita: “Perdoa, Senhor,
é idolatria amar a morte; nosso egoísmo mancha

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


o céu, a terra, o mar; o azul, o verde, as ondas
terão outro destino, se nosso coração se conver-
ter e amar” (CNBB, 1979, p. 21). A referência ao
‘egoísmo’ que mancha o planeta, denuncia o não
reconhecimento da parte do ser humano de sua
relação intrínseca com o meio no qual vive. Cha-
mando a atenção para tal discrepância existencial,
o texto de forma enfática e profética denuncia que
é ‘idolatria amar a morte’. Em outras palavras, é

11 A esse respeito, o Setor Pastoral Social da CNBB destaca: “As


Igrejas, suas leituras das Bíblia e suas teologias, de fato, não estão
isentas de culpa pela crise ecológica que experimentamos (...).
Podemos falar de cumplicidade, consciente ou não, da fé judai-
co-cristã, das Igrejas, da teologia no processo de devastação do
meio ambiente. Pois, no curso da história, foi comum recorrer-se
aos textos sagrados da Bíblia para legitimar uma apropriação e
exploração utilitarista da natureza” (CNBB, 1992, p. 36). 157
insano poluir tudo e esperar vida em plenitude!
O ‘outro destino’ mencionado no hino, expres-
sa a possibilidade de renovação da natureza que,
protegida pelo homem’ é capaz de se renovar a si
mesma e oferecer vida a todos os viventes. Tam-
bém pode ser interpretado como uma referência a
utopia de um novo mundo onde reina a fraternida-
de e a perfeita harmonia entre os seres.
Neste contexto, cabe ressaltar que a ‘ideia teo-
lógica’ subjacente ao hino consiste em despertar
os fiéis para uma transformação radical no ‘aqui e
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

no agora’ da história. A dimensão escatológica da


espera de ‘novos céus e nova terra’ é trazida para
o agora da existência e é apresentada como uma
realidade na qual o homem participa direta e ati-
vamente mediante a tomada de decisões que pro-
piciem um ambiente saudável para todas as cria-
turas. O hino manifesta esta perspectiva no desejo
de “água sem veneno ou detergente”, na busca por
“preservamos a água pura”, no sonho de um “céu
sem esse fumo triste, imundo” (CNBB, 1979, p. 21).

Considerações finais

O papel do cristianismo católico na constru-


ção de uma mentalidade ‘eco sensível’, se destacou
ao longo do tempo em que se estabeleceu a agen-
da global de discussões sobre questões ecológicas
158 e ambientais. Dado seu grande impacto na cons-
ciência das pessoas, o cristianismo representa, de
fato, um ‘parceiro’ dos ambientalistas na constru-
ção de mentalidades e estratégias de educação,
pensamento e intervenção voltadas para a preser-
vação da natureza.
Assim, dada a postura de se aproximar das rea-
lidades do mundo, motivada pelo Concílio Vatica-
no II (1962-1965), pelas Assembleias Episcopais de
Medellín (1968) e Puebla (1976) e sensibilizada pe-
las tragédias sociais vividas por seu povo, a Igreja
Católica no Brasil no ano de 1979, abraçou a ideia
de “cuidar da natureza”, a fim de cuidar melhor do
homem. Ela o fez, identificando-se inteiramente
com uma perspectiva humanista que atribui aos

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


pobres e necessitados uma atenção particular,
dado que são os mais frágeis e naturalmente pre-
cisam de maior atenção. Tal perspectiva foi desen-
volvida em nível nacional através da “Campanha
da Fraternidade”, propostas pela Conferência Na-
cional dos Bispos do Brasil e serviu como o primei-
ro grande evento católico brasileiro para despertar
as consciências para o problema ambiental.
Dada a sua capacidade de penetração na
realidade nacional, já em 1979 a CNBB antevia a
necessidade de um protagonismo cristão no pro-
cesso de sensibilização da consciência dos fiéis e
compreendia que todas as realidades da vida estão
interconectadas e que existe uma ‘teia da vida’ na
qual todos estão inexoravelmente envolvidos. 159
Referências

BIBLIA SAGRADA. Tradução dos originais gre-


gos, hebraico e aramaico mediante a versão dos
Monges Beneditinos e Maredsous. São Paulo: Edi-
tora Ave Maria, 2014.
CARITAS. Disponível em: <https://bit.ly/403r-
4ky/>. Acesso em: 21 jul. 2022.
CELAN. III Conferencia del Episcopado Lati-
noamericano. Puebla: México, 1979.
CNBB SETOR PASTORAL SOCIAL. A Igreja e a
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

questão ecológica: leitura ético-teológica a partir


da análise crítica do desenvolvimento. São Paulo:
Paulinas, 1992;
CNBB. Campanha da Fraternidade: Preservar
o que é de Todos. Itaici, CNBB, 1979.
COSTA, Elton Laurindo Da. Igreja e Ecologia:
um diálogo entre as Dioceses de Rio Branco/SC e
Tubarão/SC (1970-1990), Florianópolis, Universida-
de Federal de Santa Catarina, 2015. Disponível em:
<https://bit.ly/3l8woUS>. Acesso em: 16 nov. 2018.
FRANCISCO. Carta Encíclica Laudato Sí. São
Paulo: Paulus, 2015.
GAUDIUM ET SPES. In: DOCUMENTOS DO
CONCÍLIO ECUMENICO VATICANO II. São Paulo:
Paulus, 2011.

160
GRUPO DE TRABAJO INTERDICASTERIAL DE
LA SANTA SEDE SOBRE LA ECOLOGÍA INTEGRAL.
En camino para el cuidado de la casa común: a
cinco años de la ‘Laudato si. Ciudad del Vaticano:
Libreria Editrice Vaticana, 2020.
HADOT, Pierre. Exercícios Espirituais e
Filosofia Antiga. São Paulo: É Realizações Editora,
2014.
JOÃO PAULO II. Mensagem do Papa João Paulo
II por ocasião da abertura da campanha da fraterni-
dade do Brasil, 12 de fevereiro de 1986. Disponível
em: <http://bit.ly/3yycK7N> Acesso em: 28 mai. 2022.
PAULO VI. Visita do Santo Padre à sede da
F.A.O. por ocasião do XXV aniversário da institui-

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


ção: discurso do Papa Paulo VI à assembleia geral.
Disponível em: <http://bit.ly/3Jy938h>. Acesso em:
21 jul. 2022.

161
Envolvimento e hospitalidade:
uma prototopia para atravessar o
antropoceno
YAN LEITE CHAPARRO
JOSEMAR DE CAMPOS MACIEL
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

O que segue é uma exploração de alguns in-


sights sobre soluções indígenas, para fazer frente
ao maior desastre que já atravessou o planeta, a
civilização tecnocientífica. Opomos ao dogma do
desenvolvimento como marcha inexorável para a
entropia, a prototopia do envolvimento entre hu-
manos e não-humanos.
Há muitas leituras sobre o que está acontecen-
do com as comunidades indígenas, mas poucas lei-
turas a partir das comunidades indígenas, ou com
elas. Sobretudo diante da tarefa ingente de pensar
o que fazer diante dos desafios climáticos, e ao que
a literatura recente vem chamando pelo nome de
“Antropoceno” – entendendo uma era na qual a
ação da espécie humana passa a ser a mais impor-
tante para dar forma ao planeta terra, como um
162
todo (TSING, 2017). Pois aqui queremos dar conta
de algumas dessas leituras, brevemente, para ten-
tar organizar um pouco algum material. De parti-
da devemos notar que existe sempre uma tensão
entre pensar com e pensar sobre. E de antemão a
nossa hipótese analítica é a de que a gestão climá-
tica não é uma utopia entre as populações tradi-
cionais, mas uma – com a vênia para o neologismo
– uma prototopia. Ou seja, antes que a revolução
dos metais e dos combustíveis fósseis começasse
a rasgar o ventre do planeta, e antes que a guer-
ra se transformasse na principal indústria para o
desenvolvimento – sobretudo, antes que o sucesso
do desenvolvimento prenunciasse o possível fim

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


deste mundo, como o conhecemos (DANOWSKI;
CASTRO, 2017, p. 12) as populações indígenas já
possuíam um modo de gerir a sua relação com o
ambiente de forma eficaz, criativa e cheia de senti-
do cosmológico. A tal ponto que, como demonstra
o clássico de Afonso Arinos, a imaginação social
européia precisou de um contato com as formas
de viver do continente de Abya Yala e de Pindora-
ma, para imaginar utopias – e Tomás More, para
cunhar a palavra (FRANCO, 1976). Mas começa-
mos nossa exploração com um exemplo de como a
escrita não-indígena, mesmo quando faz um bom
trabalho, pode ser capaz de desconsiderar a inicia-
tiva dos povos originários.

163
Vítimas do milagre

Shelton Davis (1977) escreve um importan-


te documento, no calor dos anos repressivos da
ditadura militar no Brasil. No pequeno livro ele
documenta a relação entre a narrativa do desen-
volvimento, que é considerado uma marcha inexo-
rável, ligada à doutrina geopolítica segundo a qual
é preciso ocupar todo o território com populações
identificadas com o ideário nacionalista e milita-
rista. As populações indígenas, com seu modo de
vida peculiar, com seus outros tempos e com suas
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

tecnologias diferentes, vão sendo assimiladas, ou


afastadas para longe do desenvolvimento, pois sua
presença é considerada incômoda. No final das
contas, as populações indígenas brasileiras são
apresentadas como vítimas.
O texto é importante e rico de dados. Mas no
fundo paira uma concepção negativa, em relação
a populações inteiras, que são apresentadas como
se não tivessem protagonismo.
Além disso, aparece uma marca importante
na consideração das populações. Mesmo sabendo
que as comunidades indígenas são sofisticadas o
suficiente para ter seus próprios sistemas de vida,
a visão evolucionista mal resolvida de muitos oci-
dentais tende a ver essas populações como de al-
guma forma dignas de tutela, como infantis ou
164 como incapazes de pensamento racional.
A seguir apresentamos alguns modelos de re-
flexão que as consideram a partir de seu protago-
nismo, e não a partir de projeções civilizacionais.

Outra coisa, entre antropofagia e


enfeitiçamento

Wilhelm Taussig é um antropólogo incomum.


Na sua escrita mescla arte, etnografia e herme-
nêutica filosófica. Sua leitura das populações in-
dígenas depende muito de walter Benjamin, Niet-
zsche e autores ditos pós-modernos. Mas possui
ainda algo de genial, a escuta dos discursos e das
perspectivas de protagonistas indígenas em seus

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


próprios méritos, e em suas próprias condições de
enquadramento teórico.
Assim, na leitura de Taussig (1993), as popu-
lações indígenas – sobretudo as amazônicas, seus
sujeitos mais dedicados, mas também as mora-
doras de franjas urbanas no México e Colômbia,
são apresentadas como mestras da improvisação
de alta escala. Ou seja, além de possuírem um
modo de vida, as populações indígenas possuem
uma capacidade de grande escala para adaptar-se
e recriar modos de vida, a partir de práticas que
espantam os povos que se aproximam deles com
violência. Semelhante ao que as populações afro
realizaram no Brasil, eles tomam posse de parte
dos movimentos demonizatórios que lhes são di-
165
rigidos, para criar formas de aproximação com
limmites bem demarcados, em relação aos não-
-indígenas.
Taussig, em um livro – manifesto (TAUSSIG,
2020), ainda vai além da caracterização algo irôni-
ca, ou próxima da antropofagia cultural, dessas po-
pulações. Ele desenvolve o conceito de “maestria da
não-maestria”. Populações indígenas, em sua lida
com o ambiente e com populações mais tecnifica-
das e agressivas, são mestras em não ser mestras,
ou seja, sabem não – saber, saboreiam a sua parcial
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

ignorância em relação a diversos problemas e, as-


sim, conseguem aprender e posicionar-se.
Isso é algo parecido, guardadas as devidas pro-
porções, com o que realiza Eduardo Viveiros de
Castro, em sua recuperação da sofisticada trama
de conceitos subjacente ao por ele denominado
perspectivismo ameríndio. O ambiente, o mundo,
precisa de espíritos, forças e energias, para se ma-
nifestar e integrar em toda a sua pujança. Se os in-
dígenas possuem seus Jara, os espíritos ancestrais
nos animais não-humanos, nós, os iluminados
capitalistas possuímos o nosso Mercado, algo tão
indefinido quanto. Mas com uma transparência
muito menos e menos interessante.

Envolvimento

166 Nada aconteceu, apenas estamos mortos, ob-


servam Viveiros de Castro e Danowsky (2017), so-
bre a poética cinematográfica do filme Cavalo de
Turim de Bella Tar. As coisas da vida simplesmente
prosseguem, escapam as mãos e exigem reorien-
tações. E, como poder atravessar os escombros já
vividos pela era do Antropoceno?
É a partir desta pergunta que nosso ensaio
busca tecer uma conversa em relação a dois caros
conceitos/ações para nossas pesquisas com as so-
ciedades indígenas, as populações tradicionais e
os coletivos urbanos, que são os conceitos/ações
do envolvimento (CHAPARRO e MACIEL, 2019) e
da hospitalidade (MACIEL, 2021), articulado com
a perspectiva em movimento de Taussig (1993) so-

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


bre a condição de atravessar o terror. Os povos su-
balternizados não se deixam subalternizar. Resis-
tem, criam e ressignificam, fazem arte, enfeitiçam
e encantam-se. Há que sentar-se para ouvir esta
forma não oficial, mas muito eficiente, de sobrevi-
ver, para descortinar as formas como povos origi-
nários convivem com o ambiente sem violentá-lo.
O caminho que se faz, segue os traços de plu-
ralismo que sujam o Antropoceno com suas man-
chas (TSING, 2019), produzindo territórios de al-
teridades. Com isso podemos ensaiar o tecimento
de relações e vínculos, redes de relações entre
humanos, e entre humanos e não-humanos, que
podem resistir e formar caminhos por entre as ca-
tástrofes vividas, ou melhor, produzir realidades 167
coletivamente, com a máxima consciência do que
é produzido pelos corpos de quem produz.
Como um ato de levantar territórios de alteri-
dades, a conversa entre o envolvimento e a hospita-
lidade, é uma ação para se espalhar por entre práti-
cas cotidianas, e substanciar contextos e coletivos,
pois é no cotidiano que acontece o real. Apreen-
dendo principalmente com os territórios onde o
envolvimento e a hospitalidade já são velhos co-
nhecidos, as sociedades indígenas, as populações
tradicionais e os coletivos urbanos muitas vezes
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

marginalizados, para poder desmembrar a inven-


ção branca de desenvolvimento (CHAPARRO e MA-
CIEL, 2019) que historicamente destrói humanos e
não-humanos, e alimenta a era do Antropoceno.
O conceito/ação de envolvimento é uma cons-
trução coletiva e de deriva totalmente indígena.
Diante do fascínio de não-indígenas com os ar-
cos de narrativas aceleradoras, lideranças como
o professor/pesquisador Kaiowá Eliel Benites1
constróem a noção de envolvimento, contrapon-
do a linearidade da história ocidental com as cos-
mologias cíclicas das populações indígenas. Além
disso, a ideia de que tudo se desenvolve num palco
de dança cósmica, embebido em óleo de urucum
e fumaça de cachimbos sagrados, ao redor de uma

1 Eliel Benites é doutor em Geografia pela Universidade Fede-


ral da Grande Dourados – UFGD, professor e diretor da Faculda-
168 de Intercultural Indígena – FAIND/UFGD.
fogueira, é uma contraposição ferozmente criativa
à noção da invenção branca de desenvolvimento.
Envolvimento é o movimento radical de envolver
o desenvolver, ponto fundamental que descobre
a ruptura entre natureza e cultura dos modernos,
acontecimento histórico que substancia um proje-
to de sociedade que desencadeia basicamente toda
história de terror vivida hoje pelas populações que
tiveram que suportar as narrativas de expansão, e
agora preparam-se para disputar espaço com as
novas violências que as narrativas do Antropoce-
no vêm a sugerir.
Então, é necessário envolver o desenvolver.
Enquadrar as ações evangelizadas pela tecnocracia

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


em contextos mais amplos de consideração pelo
bem comum, pela voz do ambiente e de seus se-
res vivos e ativos. Ações como esta relacionam-se
desde o seu princípio com a conquista de algo bási-
co, distribuído e conquistado para e entre todas as
populações, para que qualquer pessoa possa viver
uma vida com dignidade. Envolver aparece, assim,
como a potencialidade de conduzir caminhos ca-
pazes de resolver as desigualdades sociais, politi-
cas, econômicas e ambientais compreendidas hoje
como realidades construídas historicamente, a
partir da iniciativa ancestral, da escuta dos espíri-
tos da comunidade, das florestas, dos rios e mesmo
das rochas, em sua paciência milenar. É urgente
incorporarmos estas novas formas de racionalida-
169
de, para produzir realidades que resistam às vio-
lências sobre humanos e não-humanos.
Surge aqui uma demanda por ação inclusiva
e sensível, que conecta, em uma mesma rede de
alteridades, coletivos que propõem modelos e mo-
dos de vida que contrapõem, ao mesmo tempo que
retomam o direito de não posicionar-se mais como
subalternos. Nesse momento, podemos com-
preender que o envolvimento, nossa prototopia
inspirada à racionalidade indígena, é um processo
que aglutina e aperfeiçoa os vetores e dimensões
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

subjetivas e materiais do tecimento do real.


São muitas as pesquisas hoje na América do
Sul que buscam saídas entre os escombros do An-
tropoceno, e muitas dessas pesquisas apontam
como conclusão final, o manejo tecnológico (en-
volvimento) entre natureza e cultura das popula-
ções tradicionais e das sociedades indígenas como
experiências materiais para atravessar o Antropo-
ceno. Essas populações apresentam-se, e são de
fato acolhidas e compreendidas como guardiãs
das palavras sagradas, palavras pronunciadas pe-
las hierarquias complexas de povos que se respei-
tam. Como guardiãs das florestas e dos rios, e de-
tentoras de um vasto arcabouço de conhecimentos
sobre a permanência dos mundos, ou melhor, saí-
das para que o céu não caia. Antes, é o esforço ti-
tânico das costas de xamãs, que segura o céu, para
170
que ele não desabe, mais uma vez (KOPENAWA;
ALBERT, 2015). Trata-se de adiar o fim do mundo,
mas não o fim de um mundo esclerosado, este que
criamos a partir da violência (KRENAK, 2019)
É preciso ouvir as populações que historica-
mente administram a realidade pautadas em cir-
cuitos interativos de alteridades entre humanos e
não-humanos, e resistem e persistem sendo quem
são, mesmo com o histórico processo de coloniza-
ção que abriu as portas para a era do Antropoceno
– que nada mais é senão um desgaste do modelo
grotesco do extrativismo total. De bens, de almas,
de paz e de sonhos. Por isso, é necessário sempre
pensar o Antropoceno a partir do território da
América do Sul, e como produzir reorientações

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


dentro da era do Antropoceno em um território di-
verso habitado hoje também pelos modernos?
Neste momento entra uma parte do conceito/
ação de hospitalidade com a potencialidade de in-
cluir e refazer alteridades que a invenção branca de
desenvolvimento usurpou. Inclusão para que o en-
volvimento possa percorrer entre diversos contex-
tos do cotidiano, e para isso três perspectivas teóri-
cas e metodológicas tomam a frente, o Psicodrama
(MORENO, 1975), a pesquisa Heurística (MOUSTA-
KAS, 1990) e a Psicologia da Libertação (MARTIN-
-BARÓ, 2006). Trata-se de processos de ação com o
teor dialético e fenomenológico, que abrem o cam-
po para a produção individual e em grupo de afeti-
vidades, sensibilidades e racionalidades. 171
É uma emergência envolver o desenvolver,
para um caminho de produção de territórios e cor-
pos que atravessem o Antropoceno, fomentando
movimentos que atingem todas as dimensões do
mundo vivido: social, politico, econômico e am-
biental, que acontecem intimamente no campo
subjetivo e material. Quem sabe, a superação do
antropoceno, com todas as suas tristes nuanças,
seja a redescoberta de uma nova base para um ou-
tro holoceno.
Latour (2020) propõe um novo diagrama para
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

a era do antropoceno, e explícita uma imagem


marcante, a diferença entre os Terranos e os Hu-
manos. Terranos são aqueles que querem a Terra
como lugar para habitar, e se esforçam subjetiva-
mente e materialmente para isso. Os Humanos,
por sua parte, são aqueles que já se esqueceram
da Terra há muito tempo, substituindo-a pela sua
imaginação tecnocientífica baseada no dualis-
mo entre natureza e cultura, típico do projeto da
modernidade. Aqui também há uma ressonância
com a proposta deste breve ensaio. Não se trata do
retorno a um passado, mas da superação de um
presente que já nasceu fadado a dissolver-se em
sua própria matriz de contradição. Mais que de-
senvolver, há que criar condições de escuta, para
que o envolvimento de todos os povos se articule
com uma acolhida possível dos pluralismos de sis-
temas de vida, sem que o planeta precise soçobrar.
172
Referências

CHAPARRO, Y e MACIEL, J. Este é o nosso cor-


po, a terra: caminhos e palavras Avá Guarani/Ñan-
déva para além do fim do mundo. Editora Monstro
dos Mares: Ponta Grossa, 2019.
DANOWSKI, D e VIVEIROS DE CASTRO, E. Há
um mundo por vir?: ensaio sobre os medos e os
fins. Cultura e Barbarie: Instituto Socioambiental:
Florianópolis, 2017.
DAVIS, S. H. Vítimas do milagre. O desenvolvi-
mento e os índios no Brasil.
Tradução de Jorge Alexandre Fauré Pontual.

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
FRANCO, A. A. M. O índio brasileiro e a revo-
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KOPENAWA, D. e ALBERT, B. A queda do céu:
palavras de uma xamã Yanomami. São Paulo:
Companhia das Letras, 2015.
KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo.
São Paulo: Editora Schwarcz, 2019.
LATOUR, B. Onde aterrar?: como se orientar
politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro.
Editora Bazar do Tempo, 2020.
MACIEL, J. Hospitalidade e desenvolvimento:
173
por uma pequena conversação. Porto Alegre: Edi-
tora fi, 2021.
MARTÍN-BARÓ, I. Hacia uma psicología de la
liberación. Revista Electrônica de Intervención
Psicosocial y Psicología Comunitária. Vol. 1, Nu-
mero 2, p 7-15, 2006.
MORENO, J. Psicodrama. Cultrix: São Paulo, 1975.
MOUSTAKAS, C. Heuristic Research: Design,
Methodology, and Applications.
Thousand Oaks, CA: Sage Publications, 1990.
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

TAUSSIG, M. Mastery of non-mastery in the


age of meltdown. Chicago and
London: The University of Chicago Press, 2020.
TAUSSIG, M. Xamanismo, colonialismo e o ho-
mem selvagem: um estudo sobre o terror e a cura.
São Paulo: Paz e Terra, 1993.
TSING, A. Viver nas ruínas: paisagens multiespé-
cies no Antropoceno. Brasília: IEB/Mil Folhas, 2019.

174
Yan Leite Chaparro, 2022
Sobre as pessoas autoras

Anita Guazzelli Bernardes é doutora em


Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul. É também professora e pes-
quisadora do Programa de Mestrado e Doutorado
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

em Psicologia da Universidade Católica Dom Bos-


co. Bolsista Produtividade CNPq.

Adriana Garritano Dourado é graduada


em psicologia, especialista em psicopedagogia e
Gestalt-terapia, mestre em psicologia da saúde,
atua como psicóloga clínica em consultório e no
Centro Especializado de Assistência Social no mu-
nicípio de Dourados

Avá Tendo Tá - Eliezer Martins Rodrigues


é Guarani Nhandeva, mestre em Educação pela
Universidade Católica Dom Bosco - UCDB. Profes-
so/pesquisador no campo da educação indígena e
da etnologia indígena.

Avá Vera Rendy Ju - Antônio Carlos Benites


176
é Kaiowá, mestre em Antropologia Social pela Uni-
versidade Federal da Grande Dourados – UFGD.
Professor/ pesquisador no campo da teoria antro-
pológica, cosmologia Kaiowá, epistemologia Kaio-
wá e educação indígena.

José Francisco Sarmento Nogueira é


doutor em Educação. Professor da Universidade
Católica Dom Bosco – UCDB. Pesquisador do Nú-
cleo de Estudos e Pesquisas das Populações Indí-
genas - NEPPI/UCDB.

Josemar de Campos Maciel é doutor em


Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


de Campinas. Professor e pesquisador do mes-
trado e doutorado em Desenvolvimento Local da
Universidade Católica Dom Bosco. Coordenador
do Grupo de Pesquisas Estudos Críticos do Desen-
volvimento/Cnpq e do Laboratório de Humanida-
des – LabuH. Pesquisador do Núcleo de Estudos
e Pesquisas das Populações Indígenas - NEPPI/
UCDB.

Leandro Skowronski é doutor em Ciên-


cias Ambientais e Sustentabilidade Agropecuária.
Professor da Universidade Católica Dom Bosco –
UCDB. Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pes-
quisas das Populações Indígenas – NEPPI/UCDB.

177
Leonardo Borges Reis é mestre em Filo-
sofia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filhao – UNESP, doutorando em Desen-
volvimento Local pela Universidade Católica Dom
Bosco – UCDB. Professor/pesquisador do Institu-
to Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de
Mato Grosso do Sul.

Levi Marques Pereira é doutor em Ciência


Social (Antropologia Social) pela Universidade de
São Paulo -USP (2004). Pós-doutor em Antropolo-
gia - UNICAMP (2009), e pós-doutor em Antropo-
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

logia USP (2015). Atualmente é professor associa-


do na Universidade Federal da Grande Dourados
- UFGD, onde leciona na Faculdade Intercultural
Indígena (Licenciatura Intercultural Indígena -
Teko Arandu) e participa dos programas de pós-
-graduação em Antropologia e História. Bolsista
de Produtividade em Pesquisa 2 - CNPq.

Lucas Luis é doutorando em Psicologia Social


no Programa de Pós-graduação em Psicologia da
Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em
Psicologia, na linha de Processos Psicossociais,
pela Universidade Federal da Grande Dourados
(2021). Integrante do Grupo de Estudos e Pesqui-
sas sobre Poder, Cultura e Práticas Coletivas (Gep-
col/UFPE) e do Núcleo de Ensino, Pesquisa e Ex-
tensão Conexão de Saberes (UFMG). Desenvolve
178 estudos na área de Psicologia Social e Comunitá-
ria, Psicologia da Libertação; Movimentos Sociais
e Movimentos Indígenas; Povos Indígenas, Saúde
Indígena e Indigenista e Estudos Decoloniais.

Marcio Bogaz Trevizan é bacharel em Fi-


losofia pela Universidade do Sul de Santa Catarina
(UNISUL); Bacharel em Teologia pela Faculdade
Dehonina (Taubaté - SP). Doutor em Filosofia pela
Universidad Catolica Argentina (UCA). É membro
do Laboratório de Humanidades (LabuH), vincu-
lado ao Programa de Pós-Graduação Mestrado e
Doutorado em Desenvolvimento Local da Univer-
sidade Católica Dom Bosco. Atualmente é profes-
sor de Filosofia e Teologia na Universidade Católi-

O Antropoceno e os contextos de emergências e desastres


ca Dom Bosco (UCDB).

Naziane Alcantra de Almeida é gradua-


da em Fonoaudiologia pelo Centro Universitário
São Lucas, e mestranda em Desenvolvimento local
pela Universidade Católica Dom Bosco.

Ruben Artur Lemke é doutor em Psicologia


pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB).
Atualmente é Coordenador Pedagógico, membro
do Núcleo Docente Estruturante e Tutor de Psico-
logia do Programa de Residência Multiprofissio-
nal em Saúde Mental da Secretaria Municipal de
Saúde de Campo Grande e atua como psicólogo
clínico. Membro do Fórum do Campo Lacaniano
de Mato Grosso do Sul 179
Yan Leite Chaparro é psicólogo e psicodra-
matista, doutor em Desenvolvimento Local pela
Universidade Católica Dom Bosco – UCDB, pós-
-doutor em Antropologia Social pela Universidade
Federal da Grande Dourados – UFGD, e pós-douto-
rando em Desenvolvimento Local - UCDB.
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

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Yan Leite Chaparro, 2022
Yan Leite Chaparro & Josemar de Campos Maciel (organizadores)

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