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O absoluto

Absoluto:
Estudo sobre a
Personalidade
Intelectual de Oiliam
Lanna
Sumário

Introdução

Arte e Personalidade

1. A personalidade não é a reguladora da liberdade, mas a liberdade mesma

2. Toponimização e estética

Análise da personalidade intelectual de Oiliam Lanna

1. Análise da primeira peça das duas melodias para flauta e piano por
toponimização com uma meditação

2. Análise da segunda peça das três miniaturas por toponimização com uma
collage machadiana

3. Análise estética e da personalidade intelectual do compositor


Introdução

A personalidade é um milagre. Ela condensa em si todos os mistérios da encarnação, pois


sua existência tem como berço o seu passado, sua memória. Talvez pudéssemos dizer que a
diferença entre a nossa encarnação e a d'Ele é que o homem tem um princípio - tanto no sentido
temporal quanto no sentido ontológico -, e seus princípios, suas raízes, marcam o seu ponto de
partida - a partida desta jornada que nunca terminará. Já Deus abarca todos os princípios, ele é,
como dizia Pascal, a esfera infinita que tem, em todos os seus pontos, o seu centro. Seu único
fundamento é a identidade. A eterna coerência que foi declarada a Moisés como "Eu sou Aquele
que É". Sua divina Encarnação, portanto, é o mais belo mistério da criação, pois como pode a
Força que gerou tudo que foi criado - e capaz de gerar tudo o que poderia haver - se concentrar no
corpo frágil de uma criança?
A personalidade humana não goza da eternidade da divina - e ainda bem! Caso
possuíssemos a Sua pluralidade infinita de princípios ontológicos e a Sua ausência completa de
princípios temporais, o homem seria condenado a viver no limite entre a liberdade e a
determinação. Sem os objetos e sujeitos que nos determinam, esse limite, primeiro nos
aparecendo como a conquista de uma tão sonhada utopia, logo se revelaria para nós, seres
vaporosos, como a mais acérrima condenação. O mundo dos deuses é cruel demais para nós. Seu
ar é tão rarefeito que Wagner, na despedida de Wotan a Brunilda, não se conteve em advertir pela
boca do deus: "Que em mais abençoado mortal possam eles (seus olhos) brilhar: a mim, infeliz
imortal, a partir de agora fecharão para sempre". A existência de Deus é demasiada rígida para
nós, que fomos criados para o perdão.
Assim, se o berço da personalidade é a memória, sua forma é o perdão, sua matéria é a
liberdade e seu fim, a verdade, ou Deus. O sopro divino relatado em Gênesis é o signo de nossa
vocação para a liberdade. Seu gênio, ao qual o nosso se assemelha, é o horizonte infinito que
podemos descortinar, nos afastando da reificação. Contrariando essa tendência, um dos primeiros
caminhos no qual segue a consciência vulgar é o de analisar os limites da personalidade, de
verificar constantemente como e por quais meios o conteúdo do nosso eu se encerra em si
mesmo. A esta forma de filosofia, que tanto se impregnou em nossa sociedade, levanta-se algo
parecido com o questionamento que Hegel levantou contra o propósito da filosofia kantiana:
como pode alguém querer buscar os limites do conhecimento sem antes buscar conhecer algo?
Em nosso contexto: não seria a infinidade de formas de negar uma tácita evidência da nossa
liberdade e, consequentemente, vestígio de nossa ligação inquebrantável com o Ser? Esta ironia,
presente em ambas perguntas, desmascara a ambição do esquecimento, este análogo mental da
covardia: a de que podemos esquecer as origens mais evidentes de nossas intuições em ordem de
absolutiza-las, criando uma contenda entre deuses, um eternamente julgador e outro
eternamente condenado.
Se a consciência, por outro lado, busca se aprofundar, ganhar gravidade, e começa a se
descolar das realidades mais imediatas, o segundo problema que ela irá enfrentar é o aparente
abismo entre as suas limitações e a vastidão infinita de elementos que as formam. Entretanto,
esta dualidade, realmente existente, não é a manifestação de um dos vales sombrios da alma, mas
a de uma grande senda de esperança; pois, enquanto os elementos desta borda sejam infinitos – e
eles serão para sempre – haverá algo para além de nós, algo que possamos amar e descobrir além
das fronteiras do eu solitário – que, se sucedesse em sua empreitada de Narciso, cessaria
imediatamente sua atividade e se aquietaria, morrendo como um fóssil de si mesmo.
A personalidade, portanto, não possui limites em direção ao seu futuro, desde que a
consciência se disponha a procurar pelos recursos necessários às suas empreitadas; e o Ser,
enquanto essa perpétua identidade incontradita, não pode negar absolutamente aos seus filhos
aquilo que Ele mesmo os incentivou a procurar. O fundamento dessa procura é, portanto, a
coragem. A famosa história da linhagem de Jápeto, representando a potência da vida terrena, e
Prometeu, o pré-aprendizado, se traduz em uma máxima audaciosa: a revelação do fogo
espiritual, essa substância que contamina todos os nossos atos interiores e exteriores, é o fruto da
luta em vida, a conquista de seu caminho só pode ser alcançada nesta terra e através do que há
nesta terra – na mitologia grega, até o raio da verdade divina está sob a hereditariedade do titã do
tempo – e fora dela, sem este fogo inapagável, tudo está perdido.
A partir desses princípios, e do fato de que as pessoas partem de pontos diferentes
conforme as designações do Ser para elas, podemos entender as peculiaridades de certas vidas
que alcançam opostos extremos que, para alguns, faz crer num desvanecimento completo da
personalidade – mas que, justamente aí, criam a hierarquia entre os elementos profundos e
superficiais de seu caráter. Mas como poderíamos definir o caráter? Ele não pode, pelo que
dissemos antes, ser a medida da limitação da ação humana, ela é, pelo contrário, a interação –
subentendendo coesões e tensões – entre os sedimentos que conectam nossos atos. Há várias
formas de haver estes sedimentos e há, também, vários ângulos para analisarmos as conexões que
eles encabeçam. A forma aqui elegida privilegia a ordem das manifestações e não a da existência -
a qual tentarei, na medida das minhas possibilidades, comparar com aquela.
Tudo começa, na ordem da percepção, com um vago esboço de destinação, uma
consciência superficial de que certas coisas – sejam comportamentos próprios ou alheios, objetos
abstratos ou concretos - chamam nossa atenção e outras a dispersam, essa consciência é tão
superficial que se expressa na disponibilidade absolutamente sincera dos recém-nascidos de negar
ou aceitar o que lhe convém de acordo com esta aura misteriosa. Há bebês belicosos, meditativos,
atentos, aventureiros, levemente rancorosos, levemente orgulhosos, e mil outros tipos que são
todos sutilmente diferentes – mas quem não sente esta marcante identidade, ainda que tão
suave, ao conviver com estas criancinhas? São Joaquim, segundo Maria Valtorta, certamente o
sentiu, quando a Santíssima Virgem, poucos minutos depois de nascer, defendendo o seu pudor,
se remexeu contra os movimentos curiosos de seu pai, preludiando, com este sutil gestinho, que
seria a mais bela alma humana que passou pela terra, a mais casta, e mais divina.
Num segundo momento, há uma limitação dessa forma pura da personalidade através da
consciência das realidades mais imediatas. Essas necessidades fisiológicas, longe de não existirem
antes de sua conscientização, começam a se refinar progressivamente com o aumento da idade.
Esse aumento da sensibilidade acompanha o desenvolvimento dos sentidos do bebê, o aumento
da variedade de alimentos, de situações materiais no geral, o permite conceber seu caráter sob o
ponto de vista de sua fisiologia – que é uma reorganização dos genes de seus pais.
Após isso, a consciência, mesmo que buscando por esses mesmos elementos da fisiologia,
começa, paulatinamente, a se focar, e depois, se seduzir, pelo poder da cognição. Neste momento,
começa a alegria pelo jogo, pela ironia, pelas sutis competições pelo poder e por toda atividade
análoga ao uso da razão. Nasce nesta fase o fenômeno que Louis Lavelle descrevera como volúpia
de raciocinar: o uso imoderado da faculdade do raciocínio, não inibindo as abstrações nem mesmo
quando estas se revoltam contra os fatos mais evidentes. De acordo com a hereditariedade, o
ambiente e outros fatores mais, essa característica se incorpora de uma forma ou de outra no
caráter: algumas raras criancinhas desenvolvem isso numa genialidade matemática ou musical
ímpar, outras em uma verborragia ou teimosia difíceis de tolerar.
Depois disso, o jovem já possui um histórico afetivo suficiente para fazer disso a baliza de
seus atos. É aqui onde nós entendemos mais perfeitamente o conceito de vontade, de identidade,
de privacidade, e sentimos mais fundamente as tristezas da impossibilidade da consumação de
nossos desejos. Há aqui, por toda parte, o miasma do egotismo dos pré-adolescentes. Neste
momento, surge uma tendência ao vício, num sentido profundo do termo: a ambição de remediar
certos estados afetivos por certos meios específicos. O vício, entretanto, pode se prolongar
indefinidamente, não mais como um subterfúgio consciente contra um perigo visto como real,
mas como um método – um hábito – que permite o seguir do desenvolvimento individual no
contexto em que ele se encontra. Por exemplo, um indivíduo pode, durante o desenvolvimento
dessa fase afetiva, se ver em face de um objeto que lhe cause péssimas sensações e, diante disto,
usar de algum outro objeto para incender em sua consciência bons sentimentos. Esse uso de um
objeto como fetiche – e uso o termo objeto num sentido filosófico: como tudo que pode ser
apresentado à consciência humana, ou melhor, sob ela – é muito característico nessa fase como
uma forma de tentar perpetuar o júbilo por tempo indeterminado. Depois de abandonada essa
fase, este objeto adquire paternidade sobre os estados seguintes, criando um liame que mais se
estreita na medida em que ambiciona ser cortado, e fazendo com que sempre que uma faculdade
mais profunda, mais superior, é evocada, como que por um sortilégio, o elemento inferior que
detém a sua paternidade também o é – não é surpresa, daí, que as técnicas de Milton Erickson
faziam surtir um efeito quase mágico sobre os pacientes, porque, agindo sob o véu da linguagem,
ele conseguia rapidamente estruturar essas ordens de paternidade mal desenvolvidas.
Enquanto o jovem se aventura na conquista de seu gozo, surge, cada vez mais gritante,
uma certa frustração contínua, uma acentuação na tristeza que havia falado antes. Esta tristeza
surge, diante do novo eu recém-descoberto, como um afronte ao nosso orgulho que, apesar de
sempre haver existido, neste momento, que normalmente acontece na adolescência, recebe
especial atenção de nossa consciência e, de acordo com nossas habilidades e exigências, é
satisfeito ou cada vez mais questionado. Esse enfoque da consciência no orgulho, para muitos,
pode parecer uma retroação. Entretanto, ele serve para aumentar a densidade de nosso olhar. Ele
aprofunda a nossa consciência de si mesmo para além da forma abstrata que busca uma satisfação
qualquer. Aqui, nosso eu define desejos concretos, mesmo que ludicamente, que estão além do
princípio do prazer.
Esses desejos concretos, porém lúdicos, geram um momentum na consciência que nos faz
buscar estes objetos além da sensação que eles nos geram e além do orgulho que nos traria
possuí-los. É o objeto por aquilo que nós queremos dele, mas este algo não está mais em nós, mas
puramente nele. É o começo da alteridade – mesmo que uma alteridade reificante.
Segue, desta alteridade reificante e da diversidade de objetos e objetivos com os quais
interagimos neste processo, que fazemos florescer uma constelação de “sub-eus” fundados na
diversidade de nossos propósitos. Essa divisão, um amadurecimento patente da alteridade, sugere
um estilhaçamento, mas é só na aparência – talvez seja melhor falar em proliferação; pois ela, de
certa forma, oculta o espectro que antes chamávamos de personalidade em vista de objetivos
concretos - muitas vezes progredindo algo cinicamente em uma epopéia dos papéis sociais. Falo
em papéis sociais pois este é o momento em que interagimos com a sociedade de maneira mais
clara - não mais como um fetiche que presume responsabilidades abstratas e punições sem
consequência alguma. Agora, a consciência concebe a iniciação social como um contrato; como
uma oportunidade de consumar os nossos próprios desejos unicamente pela obrigação percebida
de convencer os outros a se dobrar a eles – daí surge, evidentemente, todo um conhecimento dos
lugares sociais. Entretanto, não há aqui o aparente egoísmo que descrevo. Esse paulatino
deslindar do homem através dos espaços sociais é antes a apreensão de vontades alheias, a
mimetização de outros hábitos que tomam a personalidade. Neste momento, estamos sensíveis
aos códigos e meneios da tribo. Diferentemente do que ocorre num adolescente, essa
sensibilidade não aparece como uma vontade de submeter um grupo aos seus desejos – havendo
aí todas as sutilezas que pode haver na dominação -, mas como uma submissão voluntária a um
papel no grande teatro do mundo por amor a algo.
Em face desses papéis, pode-se agora escolher quais papéis se articulam melhor com
aquela sensação sutil e profunda que descrevi como um primeiro estágio da nossa percepção. Há
aqui uma cisão, cisão essa que não é uma cisão da personalidade, mas o reencontro desta na
forma pura do caráter. O aspecto que, na mais tenra infância, designava um elemento fugidio
absorvido por nós somente entremeado por névoas, agora começa a penetrar mais fundamente
em nossas ações, rompendo a bruma e reforçando, cada vez mais, as constelações do caráter. Esse
retorno para o que é mais profundamente nosso gera uma vontade de avaliar a vida, as escolhas
por um motivo além do profissional, um motivo existencial. Essa questão de existência, entretanto,
põe um problema ímpar: a aparente limitação concernente a escolha. Esta limitação, entretanto,
ignora a fecundidade de toda ação pessoal – no sentido da ação que se toma com uma finalidade
existencial. A fecundidade do ato existencial é o ponto de partida para todas as reflexões futuras
que se dobram sobre a personalidade, pois esta nova e pujante substância é o núcleo de nossa
participação na ação do Ser; com ela nos tornamos representantes de ideais – mas só
secundariamente, por infelicidade dos ideólogos -, nossos atos reverberam por cima das
diferenças individuais, eles ganham uma significação humana, mesmo que, a partir daqui, nos
voltássemos às esferas mais baixas de nossa humanidade.
Esta forma de ser enseja uma nova forma de interação, delimitada e fundada
principalmente pela afirmação atribuída a Sócrates: só sei que nada sei. Esta frase, que aparece
nos trabalhos de Cícero e Nicolau de Cusa, é melhor representada, entretanto, no diálogo Eutífron.
Neste diálogo, que etimologicamente é uma discussão entre o coração reto e o pode seguro sobre
os fundamentos da retidão deste coração-teólogo, a aporia final, antes de ser lançar um problema
nas mãos do leitor, é a resposta mesma da personalidade intelectual: no mundo há vários deuses,
que advogam cada um o que é ser a piedade, afastai a pretensão de, em um deles, encontrar a
verdade. Estes deuses são analogias das diversas personalidades. A verdade está além destas
emanações do Uno, pois elas mesmas são verdadeiras em suas formas particulares – mas, no fim,
só não são deuses... A aporia no fim deste diálogo é uma convocação para a abstenção temporária
do juízo para buscar algo além das meras aparências. Esta bela jornada, que chamamos de filosofia
em seu sentido etimológico, deixa um rastro por onde passa, que é o local espiritual atiçado pela
obra do filósofo em nós: uma pedra incandescente que revela seus mistérios quando exposta
novamente ao espírito humano. É sob esta égide pela qual pretendo analisar a continuidade nas
obras do compositor Oiliam Lanna, fundamento que não pode ser devidamente entendido sem a
conexão com todos os elementos anteriores.
Este ponto pelo qual desejo analisar sua obra se desenvolve em dois. Tendo em vista a
disponibilidade do filósofo a uma realidade que o transcende, meu propósito é inquirir: a partir de
que ponto de vista estas obras refletem um locus absoluto? De que forma este discurso musical,
nas duas séries de peças para flauta, reflete uma existência moral? Uma existência que se afirma
universalmente em face de um fenômeno? Evoco aqui, portanto, o tema da moral não como a
série de lemas sociais que se encarnam com o tempo através das pressões sociais, das religiões ou
das práticas comunitárias em geral. Chamo de moral a ideia de uma condução humana universal
numa situação particular, ou aquilo que Kant dizia ser a lei moral que está em mim. Esta
percepção, entretanto, pode ser entendida de duas formas: primeiro, abstratamente, onde se
concebe a natureza do ato – ou, neste caso, do discurso artístico, analogia do ato – como uma
resolução de um problema que ainda se apresenta com certo grau de abstração: ele não considera
a circunstância histórica e, por isso, esta forma só é capaz de entender os atos esquematicamente
– chamo o equivalente analítico desta estrutura de percepção de toponimização, recurso que irei
explicar melhor num momento oportuno. A segunda forma do entendimento moral é levando em
consideração o desenrolar histórico dos problemas, o que, no âmbito da análise artística,
pressupõe uma estética, uma seleção de ideais e uma transmutação destes em algo que está além
deles mesmos. Esta estética não deve se confundir com uma escola, mas sim a transformação de
certos conteúdos já cristalizados pela tradição em coisas novas, uma transformação do presente
em semente do futuro. Depois de comentar cada uma das formas específicas, vale um
apontamento: todas estas formas de perceber a realidade humana que aqui encadeei não são
uma espécie de gradus ad parnassum, mas uma descrição de um processo de sístole-diástole que
liga o eu, a circunstância e a indiferenciação, sempre num fluxo constante que liga estes
fragmentos dispersos de nossa espécie. Portanto, não desprezarei em minha análise algumas
conveniências dos outros pontos que citei ao longo deste texto, mas estes dois são,
definitivamente, o centro.
Portanto, a partir destes dois elementos de análise: a toponimização e a investigação
estética, meu propósito é reconstruir, na medida do possível, os conteúdos morais que estão nas
duas séries de peças de flauta de Oiliam Lanna – o autor das peças talvez identifique esse intuito
melhor pelo termo de discurso musical, apesar das diferenças de abordagem. Uma, escrita em
1978 em sua juventude, num estilo algo neoclássico e a outra, num impactante estilo
contemporâneo, escrita 16 anos depois. Tive o imenso privilégio de conhecer não só
auditivamente, mas também pela partitura – por graça do compositor -, uma quantidade
significativa de suas obras, o que me forçou a colocar, ao longo das análises, referências de
trabalhos anteriores e posteriores a estes que irei analisar. Além disso, fiz questão de pesquisar
palestras e rememorar as notas e recomendações literárias que tive ao longo de meu curto
contato com ele. Assim, o leitor atento verá, atrás destas análises, meditações sobre as relações
de Oiliam com a obra de Koellreuter, com o ambiente brasileiro no geral e do mineiro em
particular, com a poesia de Tagore, com a linguística de Roland Barthes e outros temas – tudo isso
só até onde minhas limitadas pesquisas conseguiram alcançar sobre esses temas. Esta intersecção
entre passado, presente e futuro de uma obra já escrita ajudará imensamente a clarear o seu
propósito e contexto, sem que, por graças de Deus, por muito tempo ainda não tenhamos que
dizer, com Mallarmé: Tel qu'en Lui-même enfin l'éternité le change...
Arte e
Personalidade
A personalidade não é a reguladora da liberdade, mas a liberdade mesma

Quando o homem do vulgo – principalmente o brasileiro - usa da palavra “personalidade”, ele


geralmente se refere a uma posição que se ocupa dentro da sociedade, em comparação a ela.
Aqui, há uma função social da personalidade – noção que de tal maneira se desenvolve que o
mundo adquire usucapionem sobre ela. Essa visão, quanto mais em nós esculpida, nos faz
raciocinar a partir de uma teoria dos campos sociais. Enquanto assim pensamos, pensamos
retoricamente. Houve um causo, relatado por Stanislaw Ponte Preta, que representa isso muito
bem: numa redação de um jornal em que trabalhava na década de 50, pediram para que um
colega escrevesse um artigo sobre Jesus Cristo, onde ele, prontamente e muitíssimo interessado,
prosseguiu com o trabalho perguntando... ‘mas a favor ou contra?’ . Essa forma de existência
também é muito bem representada nos diários do jovem Árkadi, de Dostoievski. Em algum
momento do livro, o adolescente se enfurece com seu pai, o replicando e, num átimo, se pergunta
se esta réplica não fora, na verdade, uma forma de secretamente chamar sua atenção, e protestar
contra sua indiferença - transformando sua raiva em desejo e seu ódio em amor. Ora, há, em sua
experiência, ambos os elementos; e a diferença entre estes é a d e dois pontos de vista. O primeiro
entendimento se dá pelo furor que acompanha o rompimento da névoa no terreno da
indiferenciação: tudo que passa do indiferente ao diferenciado é raiva - essa raiva, entretanto,
sempre contém um coeficiente de desejo que lhe é estruturante e, portanto, posterior, pois mais
profundo. A ambiguidade aí presente, que é a realidade na qual a personagem vive durante a
maior parte da narrativa, é, portanto, um falso dilema, e sua substância se encontra, além dos
limites da retórica, em alguma dependência que, em seu ponto de vista, é inaceitável. Não é
surpresa que o objetivo da personagem seja tornar-se o homem mais rico que o mundo já viu – há
na retórica, mesmo no lugar mais recôndito do espírito, um patente elemento comercial -, e não é
surpresa que toda essa temática apareça justamente enquanto ele deve se submeter a
autoridades cuja moral ele desconfia: toda a sua personalidade se encontra em ebulição na
medida em que ele não consegue estabelecer sua independência da fonte de sua angústia. Essa
independência, entretanto, é só simbolizada pela filiação monetária, sua essência mesma é a
busca pela aprovação do filiado ao filiador: ele não quer apartar-se do odiado, mas convencê-lo da
procedência do seu rancor. Nesta camada subterrânea da alma, mesmo que, exteriormente, o
indivíduo consiga tratar tudo dialeticamente, mesmo a dialética será posta em prova e analisada
como uma possibilidade retórica. Ele habita no mundo das sombras, que só existem em função da
reflexão de seus objetos originais. Aqui, a personalidade não possui substância alguma.
A personalidade que nós falamos aqui, portanto, deve estar acima das opiniões. Ela se
inicia quando, entre as fronteiras das opiniões disponíveis, surgem pontes, que não buscam senão
conciliar reinos briguentos. Esta conciliação fora, por muito tempo, chamada pela alquimia de
resfriamento. Saturno é o seu representante e seu espírito é uma água abrandando os corpos
rígidos das diversas formas de experiência. Ele, encarnando o modo negativo de ver o mundo – a
dúvida é sua habitação -, na medida em que se aproxima do conhecimento, o transforma numa
massa indiscernível dele mesmo, um grande vulto morto que é o seu próprio busto, tão somente
mortificado às circunstâncias; e, prosseguindo como magnus maleficus, reserva a si o dever de
velar por todos os outros planetas, de vigiá-los, enquanto permaneçam ativos. O metal que com
ele se identifica é o chumbo e isso está relacionado com a hierarquia alquímica dos estados
espirituais. O chumbo é a mente que se fecha em si mesma que, entremeada de abstrusas
conexões, se assemelha a esse metal pelas suas ligações e pelo seu peso: tudo que resta aqui é o
pesar. O segundo metal na hierarquia, de baixo para cima, é o estanho, cujo planeta é Júpiter. É
interessante notar que este metal está relacionado com as ligas metálicas e é especialmente
usado para solda. Seu símbolo é a ciência. A ciência, aqui, é compreendida como Platão e
Aristóteles a entendiam – mas não sem elementos que nos são familiares: um oposto da técnica,
um arremedo lógico feito a partir de princípios sólidos. Esses princípios, entretanto, são fundados
numa vontade. Isso fica evidente quando, no Fedro, Sócrates diz ao seu interlocutor: “Por este
motivo, façamos votos para que nem tu, nem eu, venhamos a incorrer no defeito que ora
apontamos aos outros; mas, bem pelo contrário (e uma vez que ambos nos encontramos em face
do problema de saber se é melhor conceder a amizade a um homem apaixonado ou a um não
apaixonado, e o problema que nesse caso se põe é o Amor, da sua essência e da sua existência),
procuremos uma definição de comum acordo, tentando tê-la sempre em mente, enquanto
discutimos se o Amor traz vantagens ou desvantagens.” Se é mesmo assim que devemos
prosseguir, é mister que toda ciência seja posterior a um interesse genuíno da personalidade por
algo. Por exemplo, na vereda do amor, no Banquete, Platão oferece uma miríade de definições
sobre o amor, que Sócrates utiliza para fabricar um conceito que o transcende, sempre
relacionando as empreitadas com sua própria experiência, através da memória – esse resquício
saturniano no estanho. Assim, a personalidade se estrutura primeiro como uma ciência e sua
fundação é num desejo, num descortinar das brumas da indiferenciação pela atividade da
vontade.
A personalidade, entretanto, não se desenvolve em uma linha reta, e qualquer pessoa é
capaz de admitir que muitíssimos são os estímulos e diversíssimas as vontades. Entretanto, quem
quer que se aventure nas tramas da memória perceberá uma regularidade e, ainda mais, uma
hereditariedade entre as percepções e os pensamentos. Esta hierarquia, na medida em que nos
nivelamos aos seus profundos princípios, nos revelam os leitmotive da estrutura essencial que nos
antecede como possibilidade de nossa própria existência temporal e que continuará inalterada
mesmo após a morte. Restituí-la, incessantemente, diante das adversidades é nosso dever. Não
sejamos inocentes em acreditar que essas adversidades existam só no campo do mundo físico e no
mundo social, esses caráteres exógenos estão presentes até mesmo no que hoje chamamos de
mundo interior. Este falso mundo interior é a identificação errônea do ambiente interno com a
interioridade espiritual. O espírito, numa apologia católica, não é a administração racional das
paixões da alma, é algo além: sabemos, por experiência, que a repetição da paixão a enfraquece,
mas que o vício é uma perpetuação dessa passividade, evocando, por um sortilégio, uma atividade
obscura que implora pela impressão de objetos exteriores. Esta tentação, da qual só por sorte se
escapa, elucida a presença de uma inteligência própria, que sempre se repete sem perder sua
intensidade, pela afinidade que a inteligência preserva com a ação, e é escondida por um hábito,
um limite infinitesimal entre a vontade individual e a natureza. Este olvido de um fragmento de
inteligência é muito bem expresso no célebre poema de Goethe, Am Flusse: nele, o poeta canta
sobre canções que se perderam no mar do esquecimento e que hoje já não são mais cantadas
pelos jovens na primavera. Depois, ele se dirige para esta canção, dizendo que a ela só coube
cantar de quem ele amava e que hoje ela zomba das suas pretensões de constância e, por último,
se refere a ela como inscrita sobre as águas e pede para que, com elas, se vá para longe. A canção
aqui, é o símbolo da forma, e a forma da inteligência pura, seu esquecimento e sua ausência na
primavera e na boca dos jovens é símbolo da sua posição obscura na consciência. Quando é dito
que só dos meus amores ela cantava, quer dizer que este hábito surgiu no seio da personalidade e
é um fragmento dela, mesmo que um fragmento perdido que atravanca o seu progresso, como
sugere o verso seguinte; e quando surge o tema das águas, o poeta está afirmando que o vício, em
particular, ou qualquer costume da personalidade, em geral, são inscritos na circunstância e com a
circunstância devem passar. Essa pequena canção reflete um amor cristão pelos próprios vícios e
defeitos, esses escolhos de atividade que emergem do mar do esquecimento: é triste perceber
que o homem, mesmo com genuíno esforço, consegue se ver preso sob condições interiores que o
limitam, só sendo capaz de relembrar e se reconectar com os aspectos fossilizados de sua
inteligência pela misericórdia divina. Nós, como escravos da graça, somos convocados a pelejar
por ela, por esperança dos bens celestes – lembremos sempre da frase por Cristo dita a Santo
Antão que, atormentado mortalmente por demônios e clamando por apoio d’ Ele, não obteve o
auxílio desejado: “meu filho, eu queria ver você lutar”.
Todos estes problemas que encontramos nos prolegómenos da definição de vida interior
estão emoldurados no célebre capítulo 10 do evangelho de São Lucas. Antes de começarmos a
analisar o capítulo, é conveniente falarmos sobre a metodologia do símbolo. Desde o início da era
cristã, este método é utilizado para encontrar significados mais profundos, de cunho psicológico,
filosófico ou moral, nas escrituras sagradas. Entretanto, essa forma de ler os textos é encontrada
até mesmo antes, em Platão – como mostram os trabalhos de Proclo -, na antiguidade
greco-romano em geral – como provam as investigações de Schelling – e na grande maioria das
civilizações antigas no mundo inteiro. Essa significação de caráter civilizatório na poesia, em
particular, e na arte, no geral, parece deixar sua marca indelével em tudo que é humano, até
mesmo em civilizações antiquíssimas, como mostra o famoso The Age of Gods, de Christopher
Dawson. Estabelecida sua essência fundamentalmente histórica, falta investigar sua significação
propriamente humana, ou, em outras palavras, explicar como esta forma específica de analisar se
relaciona com nossa psicologia. Nós, seres humanos, temos o hábito insistente de procurar algo
além daquilo que vemos. Não nos bastam os fatos passados, temos que criar uma história; e nem
mesmo nos basta ver bonecos se mexendo num espaço, se esbarrando uns nos outros – não é isso
que chamamos de literatura. Os doutos se rebelam contra este chamado incessante e, se neles
aparece, se envergonham e logo se enfurnam num largo divã para procurar como a sociedade lhes
inculcou uma ideia que lhes parece estranha – é que creem firmemente que podem crer no que
quiserem, e que a única coisa que os pode constranger é o conjunto geral de crenças, ou melhor,
um conjunto de cabeças. Entretanto, o fato é que a razão sempre supera a blasfêmia. Sobre o
hábito que estamos analisando, seu fato prova a disposição infinitamente vária no homem, que só
pode ser chamada de espírito. Este espírito, entretanto, não pode vir do próprio espírito
individual, pois ele é superior a todo o resto, pois há nele a pluripotência que gerou todo o mundo
material. Assim, as atividades psicológicas que os doutos afirmam ser a causa superior da crença
são, na verdade, só uma das infinitas formas de afirmá-la. É com mentalidade, onde todas as
coisas são meros vestígios da soberania do Deus infindo, que se investiga as escrituras
simbolicamente: se Deus é infinito e a razão é sua filha a quem foi dada reinar sobre este mundo,
onde tudo é feito sob sua supervisão, então a identidade, o melhor sinônimo para razão, e, num
segundo momento, a analogia, que é a identidade no diferente, estão presentes em todas as
coisas e Deus conhece todas as implicações dessas relações – e nenhuma implicação que nossa
mente, eminentemente racional e guiada pela identidade, pense pode superar a consciência
divina, que possui o domínio completo tanto da razão quanto do não-idêntico. Portanto,
principalmente nas escrituras sagradas e no mundo físico, não há interpretação simbólica guiada
pelo princípio da identidade que Deus não tenha antes pensado e, também, intendido como parte
do destino de seu objeto. Com isso exposto e seguindo o estilo de análise que Mário Ferreira dos
Santos fez em seu Apocalipse de São João, podemos começar a interpretação do texto, que
ensejará que entendamos como é possível que a liberdade seja o fundamento da personalidade.
Há uma unidade fundamental em cada capítulo dos evangelhos. Cada um versa sobre algo
– ou várias coisas diferentes, dependendo do ponto de vista - do viver em Cristo. Este, em
especial, responde à pergunta: quid faciendo vitam aeternam possidebo? O que devo fazer que me
garantirá a vida eterna? Há quatro partes no evangelho: a exortação aos 72 discípulos – entre 1-16
-, a volta dos 72 discípulos – entre 17-24 -, a pergunta do mestre da lei - entre 25-37 – e o caso das
irmãs Marta e Maria – entre 38 e 42. A exortação é a continuidade do comando de Cristo do
capítulo anterior. Nela, o 72 é o símbolo da multiplicidade do espírito na terra. No contexto que se
segue, Ele está aqui falando, a princípio, das 72 formas de negar o Espírito. Ao mesmo tempo,
entretanto, como havia citado, cada forma de negar o Espírito é, precisamente, uma forma de
aceitar seu chamado. É interessante perceber que Cristo mandou-os dois a dois, ou seja, pelo
ponto de vista do que há de divino na terra. Podemos imaginar várias formas de que Ele as
agruparia, principalmente levando em conta que 72 é a multiplicação de 9 com 4 com 2 – ou seja,
há, no mínimo, 10 formas de dividi-lo, se pensarmos numa divisão regular. Minha hipótese é que
Cristo dividiu em dois para tornar claro a tensão constitutiva da salvação: o divino e o terreno,
simbolizados pelo 9 e pelo 4, respectivamente – isso será muito simbólico na interpretação que se
seguirá ao longo. Em visto disso, é dito: esse padrão foi espalhado por todos os lugares do mundo.
No segundo versículo, θερισμὸs, ou messe, indica a imensidão de trabalhos – e de frutos! – que
estão dispersos nesta jornada. Estes são os infindáveis caminhos do espírito, simbolizados pelos
infindáveis tipos de santos. O símbolo da oração pelos operários, que aparece no mesmo
versículo, representa o mesmo topos do azeite, que logo veremos com mais profundidade.
Basicamente, ele reflete o que Santo Afonso de Ligório ensinava, em seu livro sobre a Oração, de
rezar para que Deus nos dê a força para agir em todas as situações. O terceiro versículo deve ser
entendido como o intermédio entre promessa e maldição: por um lado, o Deus mesmo garante
que faremos parte de sua linhagem, da dos cordeiros, e, por outro, revela que a proposta dele
para nós não é vencer a qualquer custo, mas se oferecer – como um operário! -, nos oferecermos
em defesa de algo maior. Em seguida, Ele reafirma o caráter tenebroso de sua promessa a partir
de três formas de afeição: a do passado, pela mochila, das vaidades do corpo, pelo calçado, e do
mundo, com a saudação. Isso não quer dizer, como alguns pensam, que devemos ser impiedosos
conosco mesmos – até porque isso é outra forma de vaidade, não tratada aqui, pois será tratada
na segunda parte -, mas que devemos nos esforçar para ver que Deus como fonte da maior alegria
e da maior satisfação e, acima de tudo, do maior bem, e da maior verdade: aceita esses bens
terrenos quando estes se lhe apresentarem, mas não se ressinta de quando eles forem embora.
Aqui, começa o discurso sobre as casas. As casas, segundo Gaston Bachelard, representam o eu
interior e seus cômodos, partes diversas do espírito. Há aqui, portanto, uma cisão no eu: o eu
existe como a empreitada dos 72, ou seja, da consciência terrena que se esforça em direção à
Deus e o eu como parte insondada do ser, que, antes em trevas, só agora se vê à luz da
consciência. Essa é aquela muito presente impressão que temos quando não nos reconhecemos
em nós mesmos, quando fazemos coisas das quais não nos identificamos mais, vendo uma parte
morta num corpo vivo. Ele pede, então, que sempre que entremos num cômodo, falemos: paz a
esta casa. A paz, aqui, é a compreensão, não precipitar em provocar contenda consigo mesmo.
Julgar, do latim jus (lei) + dico (dizer), é indicar a lei contra algo e é, por isso mesmo, pelejar contra
este algo. O homem pacífico, no versículo seguinte, representando o reflexo de Cristo e o trecho
enigmático autem ad vos revertetur divide em duas as espécies de reações ante estes defuntos do
espírito: ou há nele algo de pacífico, algo racional – que possui uma inteligência nele ocultada -, ou
não há e é por isso algo que não merece real atenção – como as blasfêmias que lhe apareciam na
mente, relatadas por Santo Padre Pio. Não andeis de casa em casa significa não se apressar em ver
tudo por todos os ângulos possíveis, deve-se aprofundar num problema, num ponto de vista,
entender suas raízes e tomar, no gáudio da consciência, seu beber e seu comer. Para explicar este
trecho, é importante ter em mente a experiência de indecisão mortal que tenho na minha
enquanto escrevo: há homens que observam as coisas de uma forma, tem todas as certezas que
lhe são necessárias e ainda sim continuam numa perpétua hesitação, como bem descrevera Dante
no início do Inferno. Buscam, sem cessar, pelo não-idêntico. Continua-se a linha de raciocínio com
manducate quae adponuntur vobis , comei o que é posto para vós: significa não lutar contra as
circunstâncias, interiores e exteriores, e o que elas de ti revelam – se esforçando muito para não
diminuir, mas, principalmente, não aumentar o que é revelado. Daí, a cura dos enfermos quer
dizer tratar, com muito amor e respeito, nossos vícios e dificuldades e dizer, ledamente,
adpropinquavit in vos regnum Dei - foi tornado perto para vós o reino de Deus, o que muitas vezes
se traduz por o Reino de Deus está próximo, trazendo um caráter apocalíptico inapropriado, dado
o original grego ἤγγικεν, que tem a ver com levar ao alcance de nossas mãos. A citação e
elaboração em cima de Corazim, Betsaida e Cafarnaum é extremamente importante. Esses três
lugares, o triângulo evangélico como era conhecido, significam, respectivamente, aqui jaz o
segredo, vila da caçada e vila da compaixão, e são imediatamente amaldiçoados por Cristo. Isso
porque há um defeito central em cada uma destas aparentes virtudes e Ele nos indica que nem o
seu pó devamos reter, pois não há comércio entre as luzes e as trevas. Todas estas três formas,
que num vocabulário filosófico são a idolatria, o ceticismo e o humanismo, são deformações da
faculdade do intelecto. Na primeira, a ambição da verdade trabalha para destruí-la, apressando o
que não está definitivamente consolidado e negando o que poderia servir para esta consolidação.
Na segunda, a faculdade do abstrair – uma dupla ação, uma de negar e outra de aceitar, como
dizia Lavelle -, ao invés de ser utilizada para buscar a verdade sobre algo é usada para negar, negar
sem cessar, caindo nas contradições já indicadas anteriormente. Na terceira, talvez a mais difusa
hoje, cremos que os sentimentos e as sensações humanas sejam o centro do universo; criamos um
universo eminentemente estético, temendo a morte por sua feiura e amando as coisas por sua
beleza: se perde o senso da caridade – no sentido latino da palavra, saber quanto vale cada coisa
–, enquanto justamente se o crê ganhar com a caridade dos homens, substituindo por uma
estética que só considera a superfície dos sentimentos humanos. Como diz o Cristo, não devemos
nos confundir com essas tendências de dispersão que existem tão fundamente no espírito
humano – ele ressalta que nem os pecados carnais de Sodoma são tão graves! Termina-se a
primeira parte com uma esperançosa exortação: qui vos audit me audit et qui vos spernit me
spernit, para quem luta para segui-Lo e é ciente de seus perigos, há coisa mais bela?
Na segunda parte do capítulo, voltam os 72 para dar satisfação a Nosso Senhor. Ele lhes
explica Sua superioridade absoluta sobre todo revés abaixo dos céus e explica também que todo o
poder que lhes foi dado – ou que nos seja dado, no tratar dos vícios – não deve ser motivo de
orgulho, mas deve ser motivo de orgulho tão somente agradar a Deus. Esta é uma nova forma de
expor a diferença entre a esperança terrena e esperança celeste, que ficou eternamente
emoldurada na metáfora de Santa Teresa, de que somos larvas, comendo folhas, e devemos nos
tornar mariposas, que só sugam o néctar. Depois, segue-se um novo tema importantíssimo: A
apologia aos pequeninos, do versículo 21, não deve ser entendida como uma apologia do
irracionalismo, mas como uma apologia à racionalidade inocente, livre dos vícios de Corazim,
Betsaida e Cafarnaum – as crianças, como sabemos, revelam os defeitos mais profundos no
espírito dos pais, pois tem uma atenção e uma racionalidade tão pura, que, mesmo sem
aprendizado algum, emulam os movimentos de espírito de seus progenitores de forma perfeita. O
tema que segue, de Cristo como redentor será explorado junto com o tema da oração, pois Cristo
é a Eucaristia e a Eucaristia é sinônimo simbólico do azeite e do vinho. Por último, é reexposto o
tema do tesouro nos céus e sua infinita superioridade – além de ressaltar a fulcral importância do
discurso anterior, que mostra que devemos nos debruçar com igual ou maior atenção em cada
palavra como fora feito aqui.
Segue a terceira parte do capítulo, que é uma reelaboração das ideias anteriores. O doutor
da Lei, que comicamente pergunta o que o Cristo acabou de responder com a intenção de vexá-lo,
é respondido rispidamente, com uma outra pergunta, cuja a resposta é importante para nós:
amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de
todo o teu pensamento; e a teu próximo como a ti mesmo - essa citação do velho testamento é
interessantíssima pelo conteúdo que lhe segue. Um homem fora de Jerusalém a Jericó, cidades
símbolo das duas eternidades: a eternidade do incriado e a do infindável. No caminho, durante a
encarnação, o homem é assaltado e deixado quase morto, esse é o vício, o morto no mundo dos
vivos. O sacerdote passa, pois quer a pureza, mas não estamos aqui para não sujarmos nossas
mãos. O levita, auxiliador do sacerdote, também não quer lidar com seu lado vicioso e sujo, não
quer reabilitá-lo, não vê nele nada que se possa amar. O samaritano, símbolo do renegado pela
pureza, ou seja, a união entre terra e céu, que é o símbolo do 72, é o único que deseja ajudar o
homem. Como ele o ajuda? É esse o principal: ele utiliza vinho e azeite, os símbolos da Eucaristia.
O azeite, segundo Jean Chevalier, é o símbolo da unção e do ungido – que é a tradução tanto de
Messias quanto de Cristo. Antigamente, os rituais dos judeus se utilizavam muito do azeite em
suas oferendas e, por isso, é seguro relaciona-lo com a oração, principalmente se pensar na oração
como o encontro com o ungido, que é a exalação do azeite, o encontro com o Cristo – não penso,
entretanto, que devemos pensar tão somente na oração, mas em todos os sacramentos e formas
de se ligar diretamente a Ele, seja a comunhão ou até mesmo atos de contrição e entrega, tão
encontrados em São Francisco de Sales, no misterioso livro atribuído a Cassaude ou as nobres
recitações dos místicos islâmicos. Essa é a primeira obrigação do cristão: o ato devocional, mais
frequente quanto possível. Isso elucida, espero, os temas antes postergados. Já o vinho possui um
simbolismo muito particular: ao longo de toda narrativa do novo testamento, ele é relacionado
com o sangue – portanto, com o sofrimento. O vinho é o sangue de Cristo. Seu sangue, que por
tantos santos fora venerado, é o sacrifício dentro da esperança de ter o céu. É esta a beleza de seu
sangue: a visão do divina, o abandono à divina providência, o esforço, na graça, pela graça. O
jumento que aparece neste mesmo versículo é símbolo da jornada, colocá-lo em sua própria
montaria é levar o defeito ao longo de sua própria vida, suportá-lo, como cruz, e a hospedaria é a
providência divina, com Deus sendo o hospedeiro. Os dois denários, o salário do dia da época, é o
símbolo desses dois sacrifícios que devemos fazer a Deus, que, de certa forma, é prefigurado no
agrupamento do primeiro verso – nota-se o símbolo da caridade, de se estar disposto a dar mais
se for pedido, o quanto for necessário, no trecho: quodcumque supererogaveris ego cum rediero
reddam tibi. Tudo se resume à palavra do último verso: misericórdia – penetrar no coração do eu
mais miserável.
Na última parte do capítulo, duas personagens se apresentam: Marta e Maria. Marta vem
do hebraico e significa algo como senhora ou dona de casa, e Maria, segundo Maria Valtorta,
significa tanto estrela quanto amargura. Ambas eram irmãs, ou seja, podem representar
manifestações opostas de um mesmo fenômeno. Neste caso, é o seguir a Deus. Marta,
sentindo-se injustiçada por servir e arrumar a casa sozinha enquanto Maria ouve atentamente a
Ele, logo é censurada pelo Cristo. Maria escolheu a melhor parte. Esta frase deveria estar inscrita
na porta de todas as casas e recitada por todas as famílias todos os dias, para lembrar que as
virtudes sociais, operacionais, etc são meios para conhecer Deus e é isso a única coisa que
importa. Quanta vaidade não seria expulsa do coração com essas palavras? Que os homens parem
de tentar organizar seu espírito, a razão vence tudo naturalmente no seu tempo, que se
apequenem - e ouçam!
Com tudo isso considerado, a personalidade deve ser entendida não no resquício
calcificado da atividade do eu que expusemos na análise do evangelho, mas precisamente no
espírito que o revela: é primeiro muito mais um andarilho observador, que uma senhora de sua
própria casa. Entretanto, na participação moral, isto é, a condição mesma da personalidade,
possui essencialmente um caráter ativo, que não pode, apesar disso, ser dissociado da
contemplação do Bem. Na verdade, é na contemplação do Bem que encontra ela mesma sua
origem, numa tmese que sempre tende amorosamente ao seu desejo. Neste enlevo, o Bem
sempre contamina o ato com seus miasmas, residindo tanto na própria atividade quanto no objeto
que ela procura atingir – neste, entretanto, só como imagem. A partir deste exercício, pode-se
alcançar uma emantação de razão sobre o ato, propondo, mesmo inconscientemente, um sistema
moral, ou seja, uma separação entre o ser e a razão de ser. Essa divisão, própria do
intelectualismo, inibe a inteligibilidade que é criada pelo próprio querer, pois superpõe no ato
uma razão que a ele é artificial. Este é o erro do levita e do sacerdote e, além deles, todo erro de
sistemas morais que consideram a faculdade do julgar sem a faculdade da interpretação - há,
portanto, em toda boa correção, uma busca do inteligível – relacionável com o homem da paz – no
ato corrompido. É, portanto, necessário traçar uma distinção entre a moral pura e os diversos
sistemas morais. De maneira geral, a visão da moral pura é dada quando somos colocados perante
nosso próprio ser e, daí então, maquinamos sobre a conversão da possibilidade para a atualidade.
O conhecimento das possibilidades atuais, sem nenhum preconceito, é o conhecimento de si; é
aquele conhecimento que Maomé disse ser o que nos leva a Deus, justamente por nos conectar
com a moralidade pura – por isso há uma ligação imarcescível entre moral e metafísica. Assim, a
moral pura depende da sinceridade, profundidade, e urgência com que nos permitimos avaliar as
diversas situações. É aqui que há duas veredas dos sistemas morais: um enquanto personalidade,
o outro enquanto neurose. Aqui, a neurose é o tentar dissolver o liame imperecível entre a moral
pura e a metafísica, regredindo o exame de consciência ao julgamento de si mesmo frente um
conjunto de abstrações metafísicas ocas. Só os mortos deveriam possuir uma personalidade morta
e, portanto, completa. Tanto uma nação, uma personalidade viva, como um indivíduo consciente
não deve se guiar numa visão plana das regras morais, mas no contexto de seu desenvolvimento
histórico pessoal. Aproximando-se mais da experiência cotidiana, dir-se-ia que há impulsos morais
que vêm do indivíduo mesmo e há impulsos morais que vêm da verdade manifesta das coisas, o
primeiro caso é a forma moralizada de nossas ambições pessoais e, por ser parte de nossa
humanidade, deve ser submetida à razão dialética, podendo existir plenamente numa situação
que lhe oposta. Já o segundo caso, a consciência moral diante de uma verdade metafísica, é a
manifestação da moral pura e absoluta, revelando-se como as pedras basilares da conduta
humana. A personalidade estruturada segundo este caso é a personalidade estruturada como
liberdade.
Toponimização e Estética

Viktor Zuckerkandl, em seu revolucionário Sound and Symbol, começa por dizer que
associamos tradicionalmente a altura – num sentido melódico – com a vida animal. Mesmo que
uma grande lufada, em circunstâncias específicas, possa gerar alguma altura, imediatamente
confundimos isso com um sussurro ou mesmo um grito. Também no início do livro, ele expõe uma
teoria de que, na pré-história, a fala era normalmente associada com uma melodia, que reforçava
grandemente seu significado. Não é possível negar os órgãos vestigiais que confirmam esta
hipótese. Cada afirmação nossa, cada frase que sai da nossa boca dança numa melodia esboçada
que a acompanha. Paul Ekman, em seus estudos sobre linguagem corporal, demonstrou que
universalmente, mesmo em tribos primitivas da África à Nova Zelândia, a mudança brusca do pitch
vocal está associada com alguma surpresa ou medo – isso justifica porque a renascença, em seu
afã de equilíbrio e sobriedade, rejeitava as melodias que considerava angulosas, e porque certas
técnicas de composição pós-século XX, fundadas a partir de uma estética de guerra e
desequilíbrio, são tão afeitas a esse processo non cantabile. Essas descobertas revelam que a
música se funda na tentativa de dizer com esses símbolos, de absolutizá-los e utilizá-los como
forma de expressão além da palavra. Ela é, por excelência, a linguagem do espírito. Esse
absolutizar do símbolo, entretanto, não é ressequi-lo – pelo contrário! Sua elevação se consiste
exatamente em propiciar que ele revele todas as suas facetas, pois é uma matriz de intelecções.
Assim, os saltos dos quais falamos antes podem ser arranjados de forma que talvez expressem até
mesmo a calma, unicamente dependendo da sinceridade e da habilidade do artista – e o problema
de falar sobre música começa aí.
Para falar sobre arte a sinceridade e humildade são as virtudes mais importantes -
tornar-se pequenino, como diz o evangelho. Pois a arte é a estruturação de um ludus moralis; é
usar o mundo das aparições para transmitir uma significação espiritual. Há nela, por isso, algo de
frívolo. Essa característica, que parece um problema para os ideólogos da arte, é, na verdade, a
sua salvação. Por causa dela, tudo que é arte nunca mente e o artista, como dizia Pound, é a
antena da sociedade, sendo um expositor de visões de mundo e não um defensor delas. A arte,
portanto, só é ruim quando é falsa, quando é progressista ou atávica, pois só existe arte na
verdade – não se pode censurá-la por dizer uma inconveniente. Nós, enquanto receptores do
objeto artístico, devemos sempre ter em mente o suspension of disbelief e se deixar influenciar
por ela. E o artista, com sua personalidade, deve utilizá-la como um filtro, que traz claridade para
o tema tratado, pois ela é a história que vivifica o espírito da moldura. Essa moldura – na música, o
som, na poesia, a palavra, na pintura, as linhas e cores – faz o objeto transcender o artista, pois
estabelece na realidade, a coesão que homem nenhum é capaz de dar a um pensamento – isso
soluciona o famoso problema da intenção na arte: ela não importa. É esse fato que faz com que
tenhamos sempre a sensação de que o artista exerça algum poder sobre o desconhecido. Mas isso
é uma noção errada, é o desconhecido que o domina. Essa relação com o mistério da simbologia
natural é mais ou menos consciente, dependendo da pessoa. Manuel Bandeira, por exemplo, sabia
de cor todo um dicionário de termos poéticos e conseguia fazer de tudo na língua portuguesa, já
Orides Fontela não demonstrava possuir conhecimento tão profundo. Na pintura, Van Gogh e Da
Vinci tiveram formações completamente diferentes e seus resultados são fruto, em parte, desta
diferença de ambiente. Esta diferença de conhecimento não é, necessariamente, uma diferença
de valor, mas tem tudo para ser, caso seja fruto de displicência e superficialidade. Assim, se tem
entendido que, enquanto a substância da personalidade é a moral pura, a substância da
personalidade na arte é a disponibilidade, ou em melhores palavras, a sinceridade.
Levando isso em conta, desenvolvi o método que chamo de toponimização. Este processo
busca aproximar quais locais do espírito a música atinge, através de uma série de comparações e
referencias. Há neste método algo de transformar a música numa narrativa que seja clara, para
que, enquanto a ouçamos, não esqueçamos os conteúdos anteriores, cuja a relação é
precisamente a revelação do conteúdo musical. A toponimização começa com a escolha de um
tema que será, em contrapartida, elucidado pelo discurso musical. Essa técnica de elucidação vem
da música vocal, onde o conteúdo sonoro dá luz ao conteúdo fático. Até o barroco, acreditava-se
que a música vocal era infinitamente superior à música instrumental. Por isso, é interessante
utilizar exemplos vocais desta época, onde essa intenção de levar o ouvinte a entender algo
melhor era expressa.
Manuel Cardoso, um compositor e frade português que morreu no meio do século XVII,
tem um moteto chamado Nemo te condemnavit, cujo a primeira exposição da primeira frase
analisarei. Antes disso, algumas considerações estéticas são necessárias de se precipitar: o estilo
de contraponto da renascença, diferente do bachiano, não é tão focado na harmonia, mas na
independência das vozes. Há regras de eufonia, mas o bloco não é pensado com tanta clareza
como uma unidade viva, como é o caso de Bach. Portanto, devemos analisar a peça como uma
soma de melodias, uma exposição da polifonia natural da mente humana. Outro fato que é muito
importante para analisarmos esta obra é sua metrificação e sua forma modal. Em 2007, uma tese
de doutorado na USP, de Heloísa Maria Moraes, chamou especial atenção ao ethos de cada um
dos metros na poesia horaciana e, como indicam fontes medievais e renascentistas, há uma forte
influência do conceito de métrica da poesia na música. Já os modos, variações do espectro da
escala maior, serão analisados de acordo com os lúcidos comentários de Aristóteles e Platão sobre
seu ethos, e a tábua das escalas gregas extraído dos escritos de Palisca e baseada nos estudos de
Cleónides, musicólogo grego do século II.
Para começar a análise, enveredando pela estrutura métrica, me permiti desenvolver uma
abstração do metro em que a música desenvolve a frase nemo te condemnavit, mulier. A métrica
em música possui certas diferenças da poética, mas a força de suas formas é a mesma –
estabelecendo a dificuldade na interpretação dos ritmos. Neste trecho, a regularidade básica é a
de um dímetro iâmbico – que será recomposta na maioria das reexposições desta frase -, mas, no
primeiro compasso, sua exposição é a de um espondeu, cujo caráter é nobre e viril – que se
relaciona com a fala do Cristo, de cima para baixo, anunciando o perdão - com uma nota curta no
fim que estimula a continuação do discurso, dando à música o caráter dialogal que é típico do
iâmbo – que, se caso seguisse a regularidade natural do compasso, seria troqueu. É um segundo
compasso se torna, portanto, caracteristicamente iambo, denotando um fluxo conversacional -
como, entretanto, os dois compassos seguintes versam sobre a mesma palavra, há uma
acumulação de perspectivas, denotando o acúmulo de tensão sobre a palavra condemnavit. O
terceiro compasso dá continuidade à ideia da palavra de forma bem interessante. Viktor
Zuckerkandl discute uma peculiaridade muito importante na análise de um compasso: as notas
longas, no meio do compasso, puxam a força do tempo para elas, gerando uma sutil distorção.
Neste caso, eu avaliaria o compasso não como um báquico, mas como um anfíbraco, que se
encaixa muito melhor em sua sonoridade. Este metro sugere um desequilíbrio e, curiosamente, já
fora relacionado com a feminilidade. O quarto compasso é um troqueu, mas que, pelo anterior
anfíbraco soa como uma correção iâmbica da sonoridade, criando com os outros compassos o
seguinte discurso: a música começa imitando o modo de falar, gera o desequilíbrio, resultado do
impacto da palavra, e segue com a imitação da fala, produzindo uma sensação de coerência sem
ser tedioso ou sem sentido. O quinto compasso se estrutura de forma análoga ao primeiro, sendo
um báquico. Isso é muito interessante de se notar, pois assim como há o milagre da oitava, eu
diria haver também o milagre da divisão rítmica, onde um ritmo se estrutura metricamente igual
ao outro, apesar de valores diferentes. Aqui, o ritmo retoma a nobreza para que Nosso Senhor
termine de lhe conceder o seu perdão – o que é confirmado pela célula longa e tética que termina
a frase. Aqui, a toponimização se confunde com a interpretação, pois o conteúdo mental ao qual
devemos relacionar a música é o seu conteúdo fático.
Analisando agora o movimento melódico desta frase, devemos ver a tensão entre os
modos, seguindo o guia assinalado por Palisca onde a recorrência da tônica é o melhor indício do
modo. O primeiro compasso gira em torno da nossa frígia, conhecida como hipolídia na antiga
Grécia. Platão, na República, dá indícios de que esse modo, mesmo naquela época, já era indicado
como sinônimo de melancolia e do lamento. Isso reflete com o que ouvimos na música e, elevando
esse indício ao nível do discurso, é a sensação que a mulher sentia logo quando Jesus começara a
falar. A partir do segundo compasso, a composição vai caindo para o frígio, nosso dórico, e depois
para a região do nosso jônico, que logo se contrapõe com dois toques na tônica do lócrio – o modo
mais instável. Essa movimentação é fruto de uma sutilíssima psicologia. Algo como uma sensação
atrasada – que é uma representação fiel da cena -, Manuel trança pela região do nosso dórico –
que indica resignação – e pelo jônico – que simboliza o alívio. Esse alívio, entretanto, não se
consuma, pois os toques no lócrio transformam rapidamente o vestígio de alívio em apreensão –
quanta psicologia não está inscrita nestes rápidos movimentos? que, apesar de rápidos, são
plenamente audíveis? O terceiro compasso, com o distintivo anfíbraco, gera um deslocamento
radical em direção ao dórico, simbolizando o movimento da alma indecisa em direção a um
ímpeto vago. Esse ímpeto vago logo se desfaz em um lá que nos leva para o jônio, uma
estabilização dos sentimentos da mulher. Manuel, então, usa o sétimo grau da jônia para reavivar
a tensão da sua alma, seguindo, no quinto compasso, para um salto de quarta, um intervalo que é
muito relacionado com a elocução e com a chamada de atenção no geral, que retorna o
relaxamento levemente conturbado à tensão da frígia – que é o modo principal desta melodia.
Esta pequena frase, portanto, contém uma quantidade enorme de sutilezas psicológicas, uma
descrição tão clara da paisagem interior, ainda que eivada de complexidades, que se assemelha
com os quadros de Botticelli e Leonardo – onde a simplicidade camufla infinitos mistérios. Assumir
que a melodia trata das sensações da mulher, e não de qualquer outra coisa possível, é
toponimizar.
Já o que aqui chamo de estética é o conjunto de escolhas que estruturadas por uma
dialética concreta do estilo. A estética é uma escolha temporal. Na arte do som, essa dialética se
manifesta através do hábito tonal, da rítmica e de outros elementos que, apesar de todos serem
facilmente perceptíveis são dificilmente explicáveis, sendo mais efetivo utilizar-se de traços
esboçáveis da obra, que de uma abordagem sistemática. Como escrevi antes da análise, uma
característica importante da renascença é o seu contraponto modal de vozes independentes.
Socialmente, o significado dessa escolha é uma transposição da estrutura catedrática das igrejas e
das sumas teológicas: elas são uma antítese do estilo musical passado que, sem preocupações de
se estruturar como uma filosofia independente, dada a garantia desses fundamentos humanos
pelos outros meios já citados, se estruturavam na homofonia. Também é importante notar a
influência de um intelectismo, já patente desde os escritos de Nicolau de Cusa, na música desse
tempo. Muito dela era mais para ser lida do que ouvida, pois as significações mais profundas eram
escurecidas pela polifonia densa – coisa que acontece nesta música em específico, quando tocada
na velocidade acelerada que é apresentada hoje. Também é importante, apesar de óbvio, notar o
caráter eminentemente religioso dos escritos de Manuel Cardoso e como, no seio de seu trabalho,
está presente uma discussão sobre a religião não enquanto artífice moralista como
compreendemos hoje, mas como uma realidade que deve ser levada em conta em todos os
momentos. Em cada um dos discursos, como visto anteriormente, vemos uma metafísica da
esperança e do perdão, além de uma funda compreensão dos finos estados da psicologia, o que
afasta o preconceito tão difundido hoje de que a religião, quando vivida plenamente, é só mais
uma neurose. Tendo tudo isso em vista, pode-se concluir que o ponto de vista estético é o ponto
de vista do desenvolvimento histórico da arte em si e da personalidade – de onde fica evidente a
necessidade destes dois capítulos.
Para dar um bom exemplo da análise estética e como ela relaciona com a personalidade,
aproveitando para elucidar o tema da personalidade intelectual, e com a história, além de mostrar
que ambas as técnicas podem ser feitas com todas as artes, vale a pena estudar a personalidade
intelectual de Bruno Tolentino, tendo em vista seus livros e palestras em geral e dois poemas
contrastantes em particular: A Xeroxona, um poema cômico dos sapos de ontem sobre a confusão
engendrada pelo plágio de Marilena Chauí de um trabalho de seu amante francês, Claude Lefort, e
um dos poemas da imitação da música, do mundo como ideia.

A Xeroxona

A bela Espinozona é mesmo um ás!


Filha da Maria Antônia, e sumidadede
que a USP garante a idoneidade,
se bem me lembra há pouco tempo atrás

era ainda uma vulva tão voraz


que deglutia os mestres à vontade,
chegou a fazer seu mais da metade
de um livro do Lefort - o que aliás

assustou o Merquior... Essa araruta,


que a fim de ter seu dia de mingau,
chupa o trabalho alheio pelo pau,

pode até ser o que ninguém disputa


- a Vênus que dá tudo pela luta -
mas xerox em xereca é genial!

A imitação da música

Canto o que amo e amo o que é mortal.


A luz que se debate ao horizonte,
a frágil mariposa cor de fonte
que é todo o nosso bem e imita um mal,

nossa doce enfermeira terminal empalidece,


cai por trás de um monte,
e a mente sem demora baixa a ponte
e faz entrar a luz conceitual.

Canto para contar daquele instante


quando o que mais amamos chega ao fim
e um belo simulacro delirante

usurpa-lhe o lugar; quando é assim


que a arte desfaz da luz agonizante,
convence a muitos, não comove a mim.
Esses dois poemas, aparentemente tão díspares, foram escritos por Bruno Tolentino por
volta da década de 90. É poesia contemporânea. Mas, como toda obra contemporânea,
extemporânea. Esta dialética intrínseca da arte é fundamental para compreendê-la de um ponto
de vista estético: a personalidade intelectual é uma resposta a uma questão que, de alguma
forma, está inserida no mundo atual. Para entendermos melhor esses conceitos, analisemos três
exemplos bem diversos.
Keats, no epicentro da primeira revolução industrial e sendo carcomido pelas moléstias da
tuberculose, buscava, num misto de primitivismo homérico com um de gustibus tipicamente
inglês, por detrás do busy common sense a resposta à como a beleza pode emergir sentido em
uma vida cheia de desesperos terrenos? Suas odes e sonetos, e principalmente a ode ao outono e
à Santa Cecília, são o ápice de uma vida que lutou pela resignação, pelo otimismo e por uma graça
ática que refresca toda sua poesia. Um trabalhador de galpão qualquer, que é uma tradução de
John Keats, é um bom epítome para o jovem médico que sonhava curar o mundo – não através
dele, mas pela arte! - de sua alcova pequeniníssima, só com suas publicações. Homem sem
pretensão alguma, que exclamava que beauty is true, true beauty e logo depois que that is all you
know and all you need to know.
Píndaro, seguindo um outro caminho ao qual o verme de sua cabeça lhe ordenava, se
considerava um poeta do deus Apolo. Esse deus grego, deus da música, da luz e do sol, parece
haver se apoderado da alma do poeta desde os seus 19 anos. Suas odes, sempre direcionadas aos
vencedores dos sagrados jogos gregos, são sempre imperativas – e há nisso um grave motivo: o
modo verbal imperativo, como explora Rosenstock em sua magnum opus sobre a linguagem, é o
modo definitivo da ação espiritual – e o espírito é luz. Em todas as suas composições, Píndaro
busca, através de uma linhagem e história um tanto mitologizada, esboçar como um grande
homem se torna como é – e esta é a sua pergunta essencial. É interessante notar que a própria
Tebas, cidade de nascença do poeta, tem a sua história mitologizada. Também é importante notar
que, tendo passado a juventude em Atenas, pode lhe ter influenciado o fato de que, nesta mesma
época, as duas classes sem direitos civis, os metecos e escravos, tomavam parte crescente na vida
social, fazendo com que o sincretismo cultural, que sempre fazem emergir novas tensões sociais,
eminentemente provocasse uma tendência de reafirmar os valores próprios do mundo grego – e
Píndaro faz isso, não num reacionarismo patológico, mas num verdadeiro afã de revelar a nobreza
de valores humanos universais: há em seus poemas algo daqueles frisos, que esculpem imagens
concisas e precisas de deuses e homens e depois desaparecem, em seus detalhes, num branco
indiferenciado. Há uma etimologia pré-grega, ligando seu nome com Πῐ́νδος, que o relaciona com
brilhante e com montanha. A impressão que fica, das histórias que dele temos, é de um respeitado
ermitão que, no alto de um monte, revela os segredos da virtude.
Rimbaud, que significa ousado conselheiro e que viveu em pleno apodrecimento da
intelectualidade do século XVIII, sofreu na pele com o cínico tratamento que recebia de seus
parentes e a violência hipócrita dos ditos revolucionários da comuna de Paris. Sua poesia, por
haver sofrido principalmente com a ambiguidade e com a mentira em que este século estava
exposto, é voltada para o despertar da sensibilidade. Há três fases de sua produção. A primeira,
voltada à exploração da sensibilidade pura, é logo entremeada por uma associação do êxtase da
beleza com o êxtase sexual – confusão muito influenciada pela leitura de Baudelaire e
Swedenborg. Poemas característicos desta fase jovem são sensation e Romanza - da sua transição,
vénus anadyomène. Sua segunda fase, influenciada pelas experiências revolucionárias e marcada
por L’Orgie parisienne e Les Assis, revela uma retórica assustadora e focada na crítica e na
destruição. Ela acompanha a fase mais triste de sua vida. Sua intenção de despertar a sensibilidade
não cessa, mas, pelo contrário, se utiliza do caminho que ele ambicionava seguir para se
manifestar de uma nova forma – mais uma prova da liberdade na personalidade. Na terceira fase,
fase dos famosos poemas em prosa e das canções de inspiração medieval, denotam a elaboração
dialética e a digestão das correntes revolucionárias em um espiritualismo algo católico – não
podemos desprezar um poeta da estatura de Paul Claudel assinalando isso. Há nela uma ironia
cansada, desistindo de existir: ironia que beira à esperança, a desistência derradeira da mentira
ante a verdade. Rimbaud conseguira elaborar o problema intrínseco da encarnação na saison en
enfer e traçar, nas Iluminuras, uma antevisão de sua própria personalidade intelectual. Em sua
carta do vidente, onde ele expressa toda a sua ambição poética como a revelação de um outro, é o
ápice de sua teoria: sua pergunta é como despertar a sensibilidade ao real ante um mundo de
hipocrisias? O outro, da carta do vidente, pode ser exprimido como o Deus de Santo Agostinho – o
Outro, totalmente Outro, que será elaborado, dada as circunstâncias históricas de Rimbaud, como
a negação metafórica da sensibilidade tremeluzente da carne. Infelizmente, este grande poeta não
continuou a sua jornada, e, desistindo do fetiche adolescente da carne, aderiu ao silêncio
perpétuo, a poesia inefável de Deus.
Considerando estas análises e os estudos anteriores sobre arte e personalidade, podemos
afirmar que ambos os poemas fazem parte de uma mesma questão – e essa questão, sendo
reflexo de seu tempo, o estende para além dele mesmo. Em várias entrevistas, Bruno Tolentino
reafirma que sua pergunta essencial era sobre a tensão entre ideia e realidade, talvez podendo se
expressar pela fórmula como vencer a mentira contumaz que nos cega para o real? Há presente
em sua obra, dada a sua circunstância temporal, o problema da irredutibilidade do objeto
estudado – e, consequentemente, uma negação de qualquer sistema filosófico como uma
saturação do gosto -, o problema da forma – a qual ele trata de uma maneira muito peculiar, onde
o ritmo é uma manifestação espontânea da estrutura da língua, alcançando um cultíssimo
neoclassicismo – e uma perpétua tensão entre conteúdo complexo e um vasto vocabulário, que
alcança desde palavras dialetais de Portugal até gírias brasileiras. Essa ebulição muitas vezes se
pacifica numa sublime identificação entre vocabulário e tema, mas muitas se perde numa
distorção tremenda. Há raízes psicológicas e nacionais profundas neste hábito, o poeta sempre se
queixava de uma constante tristeza, e havia nele um elã de ser aceito pelo mundo – inclusive o
acadêmico brasileiro, que ele repudiava – que o incitava a falar para eles, enquanto seu discurso
havia de ser, pelo imenso peso, universal: há uma máscara em seus poemas.
Sobre estes em específico, começando do maior para o menor, devemos notar que o
conteúdo, que é a crua exposição do tema ideia versus mundo, é exposto por meio de estruturas
pouco convencionais: a enfermeira que cai por trás de um monte, a locução adverbial “sem
demora” também parece pouco apropriada e a descrição cor de fonte parece mal feita. Essa
metáfora esquisita, que quebra as leis da simbologia através de uma relação desnecessária, é um
topos constante na poesia do autor – mais do que eu gostaria de admitir. Há aqui um desejo de
inovação movido pela ânsia de pertencer ao cenário cultural – não o verdadeiro, porque tácito,
mas o comunitário - que o havia degredado pelo suposto classicismo. Esse poema, entretanto, é o
que mais consegue se livrar deste vício – apesar da infeliz coincidência entre monte e ponte.
Retirando estes defeitos, que ante a beleza do poema são pequenos, há uma exploração simbólica
extremamente refinada: a luz aparece representando a salvação, a perdição e a unidade dialética
das duas, respectivamente; a enfermeira terminal que empalidece é um sutil oximoro simbólico,
condensando duas ideias aparentemente opostas numa só; o primeiro e o último verso se
interligam pela afirmação da individualidade e da ligação concreta do eu com a vida; a relação
entre mariposa e fonte, preludiando a relação entre a manifestação fluida do real com a distância
e fugacidade das borboletas; a extração de uma moralidade a partir das suas observações, cujo o
foco é na conservação perene do real, mantendo-o como soberano da arte. Este poema é uma
ótima entrada para a sua obra. Vale a pena falar também que há todo um sistema que o poeta
criou no mundo como ideia, com as suas experiências – de como o homem começa modelando
arabescos mentais, depois passa pela lição das trevas, e termina na imitação da música, onde a
arte é feita, ela mesma, do substrato do real. Bruno Tolentino expressa, aqui e em toda sua obra,
um sentimento constante do nosso mundo de hoje: temos medo de buscar a verdade e por isso
ser apartado dos nossos – esses nossos que nos repudiam na medida em que nos tornamos nós –
e a verdade, quando vista, deve ser o mais longe possível de um sistema, constituindo-se de
fugazes apontamentos. Quem sabe a enfermeira terminal que Tolentino falava não se tratava do
mundo como tribo? Que é esse subterfúgio definitivo dos homens que já não veem nada além do
mundo – interpretação que, se não convence a muitos, ao menos comove a mim.
O segundo poema, menos importante decerto, é muito representante da sua veia mais
popularesca – a quantidade de expressões populares reinventadas, metonímias que imitam a voz
cotidiana -, e contém, em profusão, as ligações inesperadas, que no humor são pérolas – mas que
antes eram defeitos. Esse livro, que para mim é o mais mordaz da literatura brasileira, lembra
bastante a poesia latina de xingamento – profusamente desenvolvida por Horácio, Propércio,
Catulo e tantos outros. Essa mordacidade e a veia popularesca, que ele reconhecia como
características importantes de seu trabalho, se relacionam com sua parte superior através de um
interessante raciocínio, onde devo buscar a realidade, não importa como ela apareça e há em mim
esta parte galhofeira e descolada são as premissas. A conclusão parece inevitável. Como já vimos,
entretanto, a personalidade não oferece limites para quem está disposto a transforma-la.
Tolentino poderia ter buscado o significado profundo destes traços em sua alma, e
consequentemente na alma do brasileiro, e haver apresentado um resultado muito mais coeso e
homogêneo. Se não o fez, é devido a suas escolhas pessoas e a algumas disposições meio
inconscientes – e isso eu chamo de estilo. O estilo, como filho da liberdade, não pode ser uma
limitação e, portanto, suas escolhas reciclam as possibilidades ignoradas. Neste poema, na terceira
estrofe, o problema em face da diferenciação entre o poeta e os ditados populares – no caso, em
face à expressão toda araruta tem seu dia de mingau – aparece novamente, e há uma eminente
união entre a liberdade criadora e a decisão de se basear na fala do povo – o que denota o seu
nítido caráter de livre escolha.
Análise da
personalidade
intelectual de
Oiliam Lanna
Análise da primeira peça das duas melodias para flauta e piano por toponimização com uma
meditação

A peça, que se inicia em si menor e dialoga com essa tonalidade em todos os momentos, é
uma forma ternária simples (A - B - A') e sua textura é de uma melodia acompanhada, salvo
algumas formas de contraponto livre. Encontrada a superestrutura da peça, agora podemos
prosseguir para a extrusão do seu significado.
O primeiro tema é constituído de três frases - Do compasso 1 ao terceiro tempo do 4, do
último tempo do 4 e se superpondo aos três primeiros tempos do 7, e do compasso 7 ao 10. Aqui
é interessante notar que essa pequena estrutura imita a grande estrutura do ternário simples. A
primeira frase, com um acompanhamento ostinando, evoca a imagem de uma meditação
profunda, mas sem malícia, percorrendo nostalgicamente as memórias - ou pensamento. Esse
efeito é dado pelo acompanhamento que, pelo caráter piano e sempre legato, evoca um doce
palmilhar, um caminhar leve que, aqui mesmo, já começa a esboçar um caráter de "mineiridade"
no autor - ou talvez pudéssemos chamar de um drummondismo? A progressão harmônica
também leva a entender nesse sentido. Há um certo arcadismo - bem mineiro, aliás - na
progressão de terças que se prolonga quase que indefinidamente - recurso que fora
expressamente evitado já em Fux. As harmonias também, como passam por grau conjunto,
refletem uma espécie de "meditação meticulosa sobre todos os pontos": pois sabemos que os
graus mais próximos geram os efeitos mais distantes - o que a assinatura de "lento", ressalta
muito. Voltando à melodia, não é dificultoso perceber que, seguindo nossa comparação, as
colcheias são os gestos do pensamento, enquanto as longas notas são a substância mesma da
contemplação. Esses gestos do pensamento, se dividindo em ascendentes e descendentes, no
início precipitam rapidamente para a subdominante - o símbolo, por excelência, do recuo - que,
majestosamente, caminha para o acorde de lá maior. Quanta filosofia se poderia esconder neste
pequeno gesto? Ora, se estamos toponimizando com o ato da meditação, o recuo, seguido de uma
cor levemente brilhante, é o ato do esclarecimento pela memória - tema que voltará, mais de 30
anos depois, nos Rituas do Tempo. Este movimento de esclarecimento, entretanto, é obscurecido
e esse obscurecimento é logo rebatido com o movimento ascendente da flauta para fá - e esse
rebater-se no pensamento enseja o primeiro salto da flauta - uma "queda" do pensamento. Seu
obscurecimento - que, não por coincidência cai na dominante menor - é o aprofundamento da
melancolia, indo a diante no oceano da tonalidade menor. Segue a subdominante antirelativa,
perpetuando o enredamento na melancolia da meditação. O próximo acorde, continuando a
palmilhação arcaica de terças, reflete uma característica muito interessante do pensamento, que é
a antecipação do movimento interior à sua manifestação exterior, O movimento do espírito
antecedendo seu conteúdo emocional. Esse movimento nesta parte do diálogo, onde a flauta
encarna o discurso da emoção e o piano o movimento do pensamento, representa a suave
exaltação após o encontro de uma pequena verdade, que, incrivelmente, segue com uma união
dos dois instrumentos, evocando suavemente tonalidades maiores. Essa sutil união, que
desemboca na tônica paralela - declinando -, e, curiosamente, não segue com a tonalidade
paralela, mas só a usa para criar um compasso quase todo maior, é o encontro da gravidade do
espírito. Esse movimento descendente do fim da primeira frase ecoa a primeira descida, criando
um caráter sutilmente cíclico na frase - movimento cíclico que também é característico do
pensamento. Essa repetição não-literal que, no primeiro momento, leva à subdominante e a tudo
que isso simboliza, agora vai em direção ao tonus maior da tônica, representando uma
reelaboração do primeiro topos - ou seja, a tomada de alguma consciência na meditação. Esse
apoderamento, entretanto, por questões harmônicas, não evoca uma serenidade, mas, pelo
contrário, traz um ar marcial para o fim da melodia: essa consciência é a analogia da atenção e do
enfrentamento. É interessante notar, por último, que o salto da voz superior do piano também é
significativo, porque reflete o lastro da emoção nos movimentos do espírito que antes discutimos.
A segunda frase, denotando uma elevação potente que culmina no sexto compasso, se
utiliza do mesmo artifício rítmico que notamos em Manuel Cardoso. Sua potência está na nota
forte que dá espaço à nota longa, criando um problema rítmico que só será resolvido nos longos fá
e lá do seu fim. O problema e a solução rítmica são construídos pela sequência de
iambo-anapesto-iambo-iambo-troqueu. É muito interessante notar que essa sucessão reflete o
primeiro verso da estrofe alcaica tradicional, pois, sendo ele constituído de iambo, anapesto e
espondeu, podemos interpretar a dupla iambo-troqueu do final como um espondeu com uma
adição métrica finalizante – procedimento muito comum na poesia antiga. Isso implica em denotar
a esta passagem um caráter de alerta, produtor de sensações opostas e arrebatadoras. Acontece,
entretanto, que é assim só pelo lado do ritmo, pois as alturas e a condução suavizam esta
sensação. No fim, a harmonia, favorecendo o caráter enérgico presente no ritmo – como no
primeiro acorde – bem menos que a melancolia branca dos acordes menores, exceto rara exceção
– como no oitavo acorde, que engendra uma poderosa transformação de cor -, guia a melodia
para um outro caminho: a acidez trágica do alcaico se transforma naquele tipo doce de
recordações que nos enchem de altivez e gravidade. É a essas recordações que o símbolo da
atenção preludiava. Num processo de superposição, a repetição da primeira frase se inicia e a
harmonia paulatinamente vai para os mesmos lugares que começou. Há nisso o tema da
meditação, cessando para dar espaço aos furores da memória, recomeçando, e então cessando
novamente, como um homem que vai dormir e que verá agora seus pensamentos e emoções
diárias esculpidos nos seus sonhos – mas podemos dizer que este é o sonho do coração.
A transição entre as duas sessões, que por se constituir de uma oitava e graus conjuntos
se torna suave, é, levando em conta também o registro do instrumento, um agravamento. Agora,
o pensamento não está sendo digerido só pela razão, também há uma substância etérea, mas
profunda, que raciocina para nós. Essa sensação de intangibilidade é dada pela harmonia, pois os
acordes de sétima perfeitos sobrepõem as direções que cada nota assume no sistema tonal – isso
é ainda amplificado pela posição aberta -, fazendo com que a sua divergência intrínseca não nos
permita concebê-lo unificadamente senão como uma evasão. Isso também é verdade para a
apoiadura do quarto tempo do primeiro compasso. Essa paisagem interior, forjada por um
contraponto a três vozes que, não fosse a presença de um acorde com quarta e a harmonia em
tríades, seria um contraponto arcaico, tem bastante afinidade com o modo eólio e lembra um
pouco as músicas de Debussy ou do Les Six; por isso mesmo, parece haver nela um conteúdo de
emoções difusas, pronta para se elaborar mais para frente – sensação que é passada pela mistura
algo sem rumo, que é uma ótima opção para simbolizar como tudo que é emoção nos aparece. Em
seguida, a indicação do mezzo piano adiciona a essa frase a impressão de ser um reavivamento do
pensamento – a flauta e a cesura também o indicam – e esse retorno se utiliza da escala dórica
para imprimir entusiasmo, como Aristóteles dizia ser a função dessa escala; entretanto, como o
compositor se vale justamente dos graus que compõe a tríade de ré maior, esse entusiasmo é
alegre – veja que, se se houvesse utilizado o sol ao invés do lá, a melodia encontraria uma
agitação, porém seria lúgubre. É importante notar que, desde antes, havia uma preferência cada
vez maior por acordes abertos, dando essa sensação de ressonância que, curiosamente, se
aproxima da dissolução. Agora, no fim da sessão B, entretanto, o piano vai lentamente se
aproximando das terças arcaicas – e as vozes até produzem quintas paralelas para reforçar este
arcaísmo. Esta última frase da sessão B se relaciona, portanto, com a manifestação organizada do
sentimento, agora exposto através da fala – representada pela fala, representada pela flauta.
Escolho esse movimento porque esta parte se dirige cada vez mais ao tonus maior, que contrasta
com o ambiente interior do menor. Há aqui, dado o entusiasmo do dórico e as escolhas de acordes
maiores que ganham forma definida na medida em que a música progride – dado o caminho de
acordes abertos para fechados -, um discurso de afirmação à vida, amoroso – tema que também
será tratado com maior profundidade nos Rituais do Tempo, tendo em vista a escolha de cortejo
para a contemplação do momento presente. É interessante notar que esse discurso de afirmação
à vida e a oposição entre exterior e interior foram ressuscitar no fim do século XIX, com trabalhos
como os de Nietzsche e Dostoiesvski, e tratamento plácido e neoclássico se assemelha bastante
com a Georgian Poetry que, se acabara três décadas antes da publicação destas duas peças, ainda
permanecia moderadamente presente nos trabalhos de João Cabral de Melo Neto, Adélia Prado e
Drummond - há, aqui, algo bucólico e alegre que me inspira a dizer isso.
A música segue com uma repetição de A, o retorno para o mundo interior, mas, agora, ela
termina a primeira frase com um acorde sem terça – mais um arcadismo -, e logo depois segue
para um acorde de sétima que está na escala de si menor, fazendo com que o espectro de atenção
que havia na primeira vez, dê espaço aos sentimentos vaporosos da segunda sessão –
inaugurando uma frase que é a síntese dialética de toda a música. Aqui, o pensamento que havia
começado com movimentos calmos e medidos já passou pela ruminação da emoção, e o homem
que pensava, já saudou a situação com um canto entusiasmado e voltou, mesmo assim, à mesma
reflexão, que engendrou emoções ainda mais difusas que, agora, o pensamento – representado
por motivos semelhantes, se bem que com notas mais longas – tenta remediar, mas cessa num fim
que nos chama para a atenção – simbolizada por um locus harmônico. Esta narrativa termina com
este locus por dois motivos, a meu ver: o primeiro, de natureza acidental, é que ele relaciona as
duas peças, a segunda, de natureza simbólica e necessária, é que ela se identifica com um cessar
paciente, porém altivo. Acabada a peça com a derrota do pensamento pelo acúmulo de sensações
e emoções, ele não cessa sem dizer: nossa guerra ainda não acabou.
Análise da segunda peça das três miniaturas por toponimização com uma
collage machadiana

O espírito destas peças é bem diferente daquelas que Oiliam escrevera mais de 10 anos
antes. Assim, achei necessário escolher um topos mental que fizesse jus a essa mudança de
ambiente. Me explico: algumas décadas antes desta peça, um hábito modernista havia se
instalado na poesia, tendo como participantes temporários Ezra Pound e TS Eliot. Esta aventura,
encontrada em profusão na canção de Alfred Prufrock e no The Waste Land, além de ser a
premissa mesma dos canti, era a de retratar a realidade nua e crua e contrastar isso com os
recônditos segredos do espírito. O equivalente disso na pintura é o cubismo e creio que a ambição
destas três peças é a mesma. Creio, ainda, que a estrutura de todo o conjunto seja a seguinte: a
primeira peça versa sobre o ato da descrença e da suspeita, que é o princípio da queda, a segunda
peça sobre as atribulações banais do dia, e a terceira é a meditação paciente que busca retornar
ao Absoluto. Infelizmente, não poderei me aprofundar neste tema, mas, analisando somente a
segunda, se terá maior noção de como esse tema se encaixa dentro da personalidade do
compositor.
Continuando a explicação, que fora cessada por comentários de maior importância, é
nesse espírito que chamo esta obra de uma collage machadiana. Ela é um conjunto das cenas
banais recortadas - exceto que sem a cena, só com a paisagem musical - e é machadiana porque é
toda uma psicologia do mal da banalidade, expondo como o coração banal contém em si amargas
ironias, raivas e ressentimentos. A peça, tendo esta abordagem em vista, é dividida em oito
imagens, que se articulam numa unidade, sendo a primeira imagem o primeiro compasso ao
segunda o segundo e metade do terceiro, a terceira a metade do terceiro e metade do quarto, a
quarta a outra metade do quarto até o sétimo, a quinta o oitavo e nono, a sexta o décimo, a
sétima o décimo primeiro e a oitava os últimos compassos – este processo lembra muito a
estrutura das Tramas da Memória, estreada vinte anos depois. Estas imagens, os motivos da peça,
se articulam em frases, mas que se assemelham mais a cenas. Digo isso porque há algo de espacial
em toda música que pretende ser atonal, cuja origem e consequências serão exploradas mais
profundamente no capítulo seguinte. No momento, basta dizer que este fenômeno surge da
tentativa de destruição da tonalidade, pois, destruindo a tonalidade, destrói-se também a direção
do espírito. Uso o termo, entretanto, com sabido descompasso entre o que digo e o que já foi dito
sobre o tema. O leitor atento perceberá que há muito que utilizo o termo latino tonus , para
expressar o estado de espírito que certa passagem nos evoca – ideia representada genericamente
pelo vocábulo ἁρμονίᾱ na Grécia antiga e que corresponde vagamente aos nossos modos. Essa
identificação da tonalidade com os modos, entretanto, não é minha, mas de Alexandre-Étienne
Choron, quem usou a palavra pela primeira vez. Para ser mais específico, ela seria uma
organização dos modos, contendo-os e iluminando-os. Se é a tonalidade é assim entendida,
devemos tratar o modo maior como a união de todos os nossos modos gregos, a estrutura de suas
possibilidades. O modo menor, quando se utiliza das formas harmônicas e melódicas,
evidentemente transcende o escopo da hierarquia proposta pelo maior, propondo assim novas
tonalidades, ou, em outras palavras, novas estruturas tonais que produzem novos modos. É nesse
espírito que, como dizia Adorno em sua filosofia da nova música, o atonalismo é uma
consequência dialética na história do tonalismo. O lugar comum de que o cromatismo romântico
deu lugar à música atonal deve ser entendido de uma forma mais profunda: a exploração cada vez
mais ampla de novas tonalidades – seja nas rapsódias húngaras de Liszt e em suas escalas exóticas,
seja na escala de tons inteiros em Debussy, ou em vários outros exemplos que nos aproximaram
ao longo dos séculos com turcos, hindus, muçulmanos, povos tribais e chineses -, fez o homem
ocidental se convencer de que a ordem da tonalidade sequer existia no mundo como uma
substância, mas só na mente como uma abstração – não sendo justo dizer, entretanto, que tenha
conseguido aboli-la, mas que, pelo atonalismo, conseguira só expandir e progredir em direção a
uma teoria geral da tonalidade que leva em conta todas as estruturas tonais possíveis num
sistema temperado de doze tons e desenvolve nelas um senso hierárquico, teoria essa que, se
ainda não promulgada, é expressamente prenunciada em trabalhos tão diversos quanto de
Messiaen, Prokofiev, Guarnieri e Ginastera. Este psicologismo, com a licença de dar ao termo a
frouxidão que necessita, é o caminho ao qual estivemos expostos no momento em que
escolhemos buscar a salvação da alma individual em face a entende-la como uma mera emanação
do Ser – caminho prefigurado na discussão entre Averrois e Santo Tomás de Aquino. Pode-se
perscrutar neste destino até que cheguemos, como prenunciava Maine de Biran, numa descoberta
colombesca do mundo interior, encontrando nas meras possibilidades das abstrações do
pensamento, a razão infalível de Deus; outro modo de caminhar, do qual a segunda escola de
Viena e seus teóricos são os continuadores, é, cito Adorno, o do movimento subversivo como a
própria mudança de função da expressão musical. Já não se fingindo paixões. Pois no meio da
música se registram somente emoções indissimuladamente corpóreas do inconsciente, shocks,
traumas – vale lembrar que o autor estudou e manteve contato com Berg, sendo um grande
proponente da nova música. Os espasmos que caminham para o nada e, no nada, prenunciam
uma igualdade de mecanismos inúteis, uma comunhão no absurdo, é o materialismo de Epicuro, é
como a matéria nos espasmos de energia que não cessam de criar o mundo ao nosso entorno, é
até mesmo como a democracia moderna, o sonho dos soldados, onde o supremo valor é escolher
nossos destinos sem ter em vista valor algum. Há, por isso, uma relação íntima da música atonal
com todos estes movimentos, e principalmente com a matéria como a percebemos num primeiro
relance – isto é, num relance epicurista -, sendo ela o símbolo natural mais imediato de todas
essas manifestações. Em termos musicais, é a emancipação da dissonância, cansada de se
subordinar à consonância e exigindo dela a igualdade, fraternidade e liberdade que todo cidadão
moderno tem como garantida – c’est pour la dignité! Eles gritavam.
Deixando o aprofundamento deste tema para o capítulo que segue este, é importante
salientar que a estética não pressupõe valor à música, mas antes ao tempo. Portanto, a raiz da
qual esta peça emerge não a impede de conter elementos importantes como há em inúmeros
exemplos da literatura – e, até talvez por isso mesmo, seja ainda mais importante. Continuando a
nossa análise, se a razão da música atonal é o shock e o trauma e se por isso ela se apresenta a
nossos ouvidos numa organização cenográfica – e não dramática, como mesmo dizia Adorno - ,
então a narrativa musical deve ser apreciada como um empilhado de cenas esparsas que se ligam
somente no ato da razão, formando o que antes já havíamos chamado de cubismo em música, ou,
como diz o título: uma collage. Encontra-se um perfeito sinônimo poético disso numa das poesias
de T. S. Eliot chamada Sweeney Agonistes, fragments of an Aristophanic Melodrama:
Fragment of a prologue

Dusty. Doris.

Dusty: How about Pereira?

Doris: What about Pereira?

I don’t care.

Dusty: You don't care!

Who pays the rent?

DORIS: Yes he pays the rent

D US T Y : Well some men don’t and some men do

Some men don't and you know who

DO R IS: You can have Pereira

D U STY: What about Pereira?

DORIS: He's no gentleman, Pereira:

You can't trust him!

DUSTY: Well that's true.

He's no gentleman if you can't trust him

And if you can't trust him-

Then you never know what he's going to do.

DORIS: No it wouldn't do to be too nice to Pereira.

D U STY: Now Sam’s a gentleman through and through.

DORIS: I like Sam

DUSTY: I like Sam

Yes and Sam's a nice boy too.

He's a funny fellow


DORIS: He is a funny fellow

He's like a fellow once I knew.

He could make you laugh.

DUSTY: Sam can make you laugh:

Sam's all right

DORIS: But Pereira won't do.

We can't have Pereira

DUSTY: Well what you going to do?

[...]

Este é um ótimo exemplo de cenografia sem dramaturgia – e de como é vedada a


comunhão dos homens no cotidiano, sendo-lhes somente acessível nas camadas superiores ao
banal, isto é, na cultura. O drama se encontra no leitor e na sua consciência das possibilidades
humanas que são solapadas na medida em que o cotidiano se converte em neurose – simbolizado
no poema pelas estruturas repetitivas que nada dizem -, onde não se passa por ele para poder
participar das coisas mais sublimes, mas o vive como se ele fosse a plenitude mesma de nossa
existência. É como diz a epígrafe de Ésquilo: Você não os vê (seus espíritos), você não – mas eu os
vejo. Eles estão me caçando, e devo seguir em frente. Ou quando, citando São João da Cruz, se diz:
a alma não pode ser possuída pela divina união, até que tenha devastado de si o amor aos seres
criados. Só há, neste tipo de arte, a criatura como lobo da criatura.
Retornando ao tema das oito imagens citadas, tentei analisa-las de acordo com a teoria de
Allen Forte, mas, como o próprio autor em Structures of the atonal music diz, ele não leva em
conta o significado dos movimentos musicais, renegando até mesmo o termo acorde de quartas,
por ser mais qualitativo que quantitativo – apesar disso, notar-se-á sua influência nesta análise,
que seguirá das imagens em particular aos desdobramentos concretos de sua unidade. A primeira
imagem, que ocupa o primeiro compasso, é composta de sétimas maiores, quartas aumentadas,
sextas maiores, quintas justas e uma sexta menor. A sétima maior é mais proeminente, seguida da
quarta aumentada, das sextas e seus inversos e da quinta: 7, 6, 5 e 2, respectivamente. O acorde
do piano é um prelúdio dos principais intervalos, isto é, a sétima maior, a terça menor – que
aparecerá como sexta maior – e a quarta justa. A quinta só aparece como material complementar,
sendo utilizada para gerar uma quarta aumentada onde seria uma sétima maior e para voltar para
o mi natural e recomeçar o pitch-class set. A imagem é o desenvolvimento de uma ideia que
aparece condensada no acorde, ele, pela acústica e forma de escrita do piano, é uma invocação
inicial de uma atmosfera tensa, que a flauta, pelo timbre, pela técnica utilizada e pela inscrição
fuggevole, desenvolve como uma sombra, revelando no tempo o que antes era contido nos
acordes, como a diferença entre razão e intuição, respectivamente. Esta primeira parte pode ser
toponimizada com uma cena cotidiana como a retratada por Eliot: algo, de súbito, nos aparece de
errado e nosso raciocínio começa a maquinar - pois é o agir como máquina que une o mundo
banal e o mundo do medo. Entretanto, a atenção é logo puxada para longe do raciocínio para um
outro lugar ainda não conhecido – o que nos possibilita relacionar o piano com o mundo interior e
a flauta como o percurso da vida do espírito.
A segunda imagem utiliza-se de um contorno parecido com o da flauta na primeira e não
deixa de, de certa forma, continuar o seu escopo. Aqui, o panorama intervalar é muito mais amplo
e a quarta aumentada já raramente aparece. A sétima maior e seu oposto, a segunda menor, é
ainda muito proeminente. Podemos, portanto, entender o piano como uma suavização das
tensões do pitch-class set da flauta. Além disso, o primeiro acorde entre a flauta e o piano desta
imagem se estrutura como um acorde de quartas, conhecido por ser o evocador de diferentes
tonalidades, gerando ambiguidade e um caráter vago. Essa imagem, daí, finalmente desvela para
onde o ambiente levou a nossa atenção: para o terreno arenoso e vago dos sentimentos. Logo
depois, o próprio espírito, imitando o chamado do ambiente na primeira imagem, busca a
concentração para um algo – esse algo que é o negativo do sentimento. É interessante notar aqui
uma característica peculiar da obra de Oiliam que é a transformação de intervalos dissonantes em
consonâncias através do espaçamento delas, fazendo com que o baixo do piano se torne muito
mais sensível do que é comum nas músicas atonais, continuando o ar etéreo da música – o topos
espiritual é do homem confrontando seus sentimentos confusos e retomando sua atenção.
A terceira imagem, que vai da metade do terceiro compasso até o meio do terceiro tempo
do quarto, se inicia com uma síntese dos dois elementos anteriormente expostos: a tensão, pelas
quartas aumentadas e sétimas maiores, com o intervalo de quarta no baixo e as dissonâncias
transformadas em consonâncias que criam o ar etéreo antes falado. Esta mistura cria uma espécie
de bile negra, paradoxalmente formando um claro cristal. Depois disso, o grande movimento de
sétimas maiores é bem afirmativo, forte e, de certa forma, evoca uma força tribal – que o piano
sabiamente acompanha - que descansa em todo espírito humano. Essa repetição, prosseguindo
em attacca para a próxima imagem, podemos toponimizar como uma cólera renitente – bem
ressaltada no contraste poco forte e piu forte - ante o movimento de contra-ataque do seu próprio
mundo interior: o mundo interior das emoções quer dominar o espírito, transformá-lo numa parte
inerte da natureza, como diz Ravaisson, e o fim da terceira imagem é um urro violento contra esta
tendência. A quarta imagem, repetindo este trinado que é como a lama do sentimento no espírito,
se expressa nesta nota longa de pura ironia e malícia, que se esvai como num cansaço. As
harmonias de sétima maior e o movimento atípico do baixo trazem a tensão e o etéreo que já
citamos. Isso termina a primeira frase, compondo toda uma cena que foi exposta aqui – que é bem
potente em espírito, mesmo se inspirando nas raízes já citadas; exploremos no próximo capítulo
esta tensão – há, nas imagens que vemos até aqui, um espiritualismo tribal, reminiscente dos
antigos ritos órficos.
A quinta imagem, o oitavo e nono compasso, retoma a exclamação tribal na flauta e os
acompanhamentos de sétima. Já a contra-melodia no piano, que é uma reexposição do primeiro
pitch-class set da flauta, é a soma entre o elemento do raciocínio desesperado com os espasmos
da consciência que quer fugir do sentimento que cobre a razão – e isso é importante para começar
a compreender a personalidade intelectual do compositor. A segunda parte evoca o espaço do
etéreo, e o movimento inverso da flauta, que é imitado do piano, cria a sensação de anti-colérico,
algo que se relaciona com a perspicácia, um movimento de salvaguarda da consciência. Este é o
conteúdo de toda a segunda frase.
A penúltima frase, que é composta pela sexta e sétima imagem. A sexta, no décimo
compasso, começa com este fá grave e perene que logo responderá com o dó mais alto: esse
movimento está relacionado com os passos longos e irônicos que falamos anteriormente que,
aqui, tomam um caráter de aprofundamento no desconhecido, cuja a primeira manifestação
também possui, para deixa claro. A flauta, seguindo o mesmo movimento que é comum à toda a
música, ao alternar entre uma quarta aumentada e uma quarta justa seguida de dissonância cria
essa sensação de se estar apalpando um mistério: a perspicácia da cena anterior, na medida em
que supera os limites atuais da consciência, a coloca na posição de duvidar de si mesma, eis o
conteúdo esboçado nesta imagem. A sétima imagem é senão a sexta intensificada. Uma
característica interessante é que o tremolo da flauta, dada a estrutura anterior da peça, já se
caracteriza como sinônimo da razão discursiva, perpetuando dela o caráter vaporoso das palavras,
mas sempre de imenso valor. As notas longuíssimas também continuam, se intensificando, como
que abraçando o ouvinte em uma escuridão. Enfim, o último compasso, que contém a oitava
imagem, ecoa aquele mesmo passo irônico e misterioso, com um acompanhamento grave que
esconde as dissonâncias fundamentais da peça numa leveza característica, logo depois do ataque
que representa o espasmo da consciência. É a ironia que perde o gosto e revela o seu conteúdo de
solidão e desespero. A peça, portanto, é uma profunda análise dos movimentos da consciência
através de cenografias ante o banal – ou, como dizemos antes, ante tudo o que nos aterroriza e
nos faz agir como bichos de terra tão pequenos quanto nós realmente somos. Ela alcança o
espírito pelo negativo.
Análise estética e da personalidade intelectual do compositor

É em alcançar o espírito pela via negativa que poderíamos descrever grande parte da
música de Oiliam Lanna. Há aí um orfismo, um paganismo crente que sempre saltou aos meus
olhos em toda música atonal que eu ouvia. Não que esta música expresse diretamente uma
descrença em Deus, mas é, como já demonstramos, música materialista em sua origem. Ora, o
ateísmo não existe. Há ateus judeus que, através do judaísmo, religião da ordem por excelência,
desejam arduamente a destruição dela – como Adorno – e ateus cristãos que, através da religião
da castidade por excelência, amam o que é impúdico e torto: quem quer que venha a ser ateu é só
um crente de farrapos a mendigar farelos. Crê-se nas leis da ciência que o tempo logo chega para
devorar. Crê-se nos princípios da honra e da dignidade humana, cuja a natureza cruel logo nos faz
amaldiçoar deuses que nem mesmo tínhamos por credo. Crê-se num mundo melhor, onde a
impotência humana logo nos faz passar pela insanidade. E, se por muito tempo perscrutarmos o
caminho da descrença, cremos fiel e profundamente na insanidade e na irracionalidade.
Acreditamos, além de todas as provas possíveis, que o princípio da identidade é falso – e com isso
sem saber o afirmamos. A capacidade de provar e a razão analítica, faculdades criadoras de nosso
espírito, tornam-se meros fetiches, meros átomos perdidos num caos ainda maior cujo o divino
demiurgo é a aleatoriedade. A insanidade, entretanto, pode se apresentar como estado de espírito
mesmo para as almas mais piedosas – e é neste problema, problema de mortal importância a dizer
de passagem, que localizo a personalidade intelectual do compositor.
Finalmente posso me explicar quanto ao título do ensaio: a busca pelo absoluto Absoluto
é o fundamento intelectual de Oiliam Lanna. Me explico, confrontando esta com a intenção
fundamental de outros compositores. Brahms, como revela o brilhante ensaio de Franklin de
Oliveira, é o compositor da intimidade por excelência. Sua música revela os cumes de um religioso
individualismo do qual Rilke poder-se-ia dizer ser o representante na poesia. Na personalidade
intelectual, isto é, na personalidade estruturada como liberdade, conceitos opostos se confundem
numa perpétua dialética. Onde ouviríamos música mais potente que em seus quartetos de
cordas? Ou mesmo em seu concerto duplo para violino e cello, onde a dupla se assemelha muitas
vezes a um quarteto inteiro? Se há exemplos maiores, só confirmam a grandiosidade destes.
Brahms, começando pela solidão e pelo interior, várias vezes alcança aquela pura potência do
mundo físico, potência que une todo o ato, divino e humano. Talvez poderíamos sua pergunta
essencial da seguinte forma: de que maneiras a solidão pode penetrar além de sua própria
opressão? Lembrando que, como toda ciência, esta não busca resultados apodíticos, mas a melhor
aproximação possível ao fenômeno real. Outro exemplo especialmente importante para
entendermos o compositor em questão é o de César Franck. O francês, também estudado no livro
A Fantasia Exata, é, junto de Bruckner, a epítome do que Franklin chama de música sacra - mesmo
que pura. Em Hommage à César Franck, Oiliam constrói a mesma ambientação que ouvimos em
quase todas as músicas do compositor francês: uma placidez de espírito – seja ela para a alegria
ou para a tragédia - que, paulatinamente, é tomada por um elã furioso, estabelecendo uma
perpétua tensão entre estes dois elementos - essa divisão é demarcada logo no início da peça de
Oiliam, com as notas longas nos oboés e clarinetas e o motivo do fagote. Este pequeno motivo do
fagote, de caráter anelante – um anelo que, na medida em que se identifica com o grave, toma o
caráter de uma força da natureza - vai se espalhar por toda a partitura. Este é um dos temas que,
não importando a obra que se pegue para analisar de Oiliam, não faltará: a consciência da
matéria. A matéria que falo aqui pode assumir duas formas: como potência viva da natureza, que
é expressa nas obras de juventude – como a partita para clarinete e fagote e as melodias para
flauta e piano -, e da coisa, elemento que obscurece a iluminação do espírito – esse
desenvolvimento é típico do reencontro com o mundo espiritual e a sua sucessiva incapacidade de
abranger toda a vida, incluindo a material, transformando o espírito também em uma coisa(tema
que desenvolveremos mais para frente) e vulgarizando a força que antes havia sido divinizada:
para confirmar isso, entretanto, nos faltam dados biográficos mais profundos - , como em Reflexos
de Bruma e Luzes, no Poema de la Luna Nueva, no prelúdio ao Anoitecer, na peça para piano Na
noite e na terceira miniatura. Essa forma de perceber a matéria é, definitivamente, influência de
Tagore, poeta muito estimado pelo compositor, que dividia a música entre a da noite, do Oriente,
e do dia, do Ocidente, a dos mistérios do espírito, do Oriente, e das atribulações do mundo, do
Ocidente. Esta divisão, que exalta o dualismo espírito-matéria, revela uma tendência profunda da
música de Oiliam através da poesia do bengalês: o poeta era, ou poderia ser, gnóstico. Para tal
afirmação, preciso me explicar melhor, sendo mister postergar aquilo que ambicionava obter
primeiro. Deixemos para mais adiante a explicação do título.
O gnosticismo é um tema complexo. Ao rigor do termo, não há gnósticos. Pois a essência
de sua natureza é a negação – e, por isso mesmo, não há nele natureza alguma. O gnosticismo
surge de uma experiência: da experiência de que Deus nos abandonou. Baseado nela, por pura
revolta nossa curiosidade se atiça numa força que busca unicamente corromper. Nenhum gnóstico
diz propriamente alguma coisa. São, todos eles, teólogos do negativo. Propriamente, eles não
dizem: o não dizer e o casquinar são suas aparências eternas. Depois destas vestes, podem se dar
ao luxo de falar sério, de teorizar com livros volumosos e, até mesmo negar veementemente a
inação e o riso, proclamando, seja em qual for a guerra em que estejam engajados para se
esquecer da vida, que eles são expressões de um outro lado – ah, este lado inimigo, que
amorosamente os define e que, num ato final, é o conteúdo de seu julgamento. Nietzsche,
enquanto parte para o gnosticismo com o seu irracionalismo, bem define grande parte deste
movimento pela vontade ascética, estabelecendo que ela se constitui da negação da potência
fundadora da vida – claro que não podemos considerar a ascese tradicional assim. Tagore, no seu
Gitanjali e em outros poemas esparsos, dá sinais de compactuar com esta negação. Ora, a primeira
objeção natural é que todos os poemas do bengalês parecem surgir daquele lugar onde o contato
do homem com o Todo incessantemente se renova, isso, apesar de ser verdade, revela a
necessidade de uma diferenciação dos tipos de gnose – a qual Santo Irineu de Lyon, eu seu
Adversus Haereses, aprofundou bem mais detalhadamente do que poderia se aprofundar aqui.
Os tipos que me vem à mente em ordem não linear são os seguintes: o ódio a Deus, a
crença em deuses intermediários com substâncias irredutíveis – a negação da onipotência -, a
identificação do irracional e da contradição como substância, a crença na onipotência da matéria,
o angelismo – desprezo dos sentidos - e o quietismo. Há vários outros, sem dúvida, e a arte não
pode cair em nenhum deles, pois a arte nunca mente. Ora, estamos falando de dois artistas,
poderia argumentar um leitor imprecavido, mas a arte nunca mente, o artista, sempre. Os artistas
que analisamos se aproximam do quietismo. Tagore diz, em seu Gitanjali: My heart longs to join in
thy song, but vainly struggles for a voice e I shall ever try to keep my body pure. Tendo consciência
de que constatar verdadeiro quietismo seria tarefa muito mais abrangente e trabalhosa, me limito
a apontar os seus inegáveis vestígios. Esta heterodoxia de séculos se baseia na crença de que Deus
nos põe no mundo para nos apagarmos, evitando toda forma de contágio com este mundo -
curiosamente, os hindus e os brasileiros possuem este traço em comum. A Máquina do Mundo, de
Drummond, é a trágica elegia-epopéia que narra o ocaso da presença do Ser frente a covardia
brasileira. Nos hindus, muito provavelmente isso se deu origem através do sistema de castas, que
incentivava uma certa impossibilidade de direção do próprio destino, favorecendo a quietação da
voz interior. No Brasil, há nisso uma raiz sociológica: Paulo Mercadante, em seu a coerência das
incertezas, explora o símbolo da atitude oficial – ou seja, a ideia de que as responsabilidades
sociais, longe de serem compostas por virtudes como nas grandes sociedades (Cícero, em De
Oficiis, fala de sabedoria, justiça, magnanimidade e propriedade), são compostas por
responsabilidades práticas que, por serem materiais ou psicológicas, separam a sociedade em
diferentes fragmentos incomunicáveis: alguns são mais psicológicos e valorizam a concórdia e o
respeito sem a se importar com a verdade e com o bem, fazendo imitar na psicologia o ócio
natural da matéria, outros, homens mais práticos, valorizam a pontualidade, a capacidade de
servidão, até mesmo chegando a dizer que o auge da capacidade humana é conseguir lavar a louça
obsessivamente, não permitir que nenhuma roupa se deixe suja ou comer bem. Eles creem que o
homem foi feito para a lei e não a lei para o homem – a nossa ditadura positivista encarna isso
muito bem. Essa imensa mesquinharia e ganância que guia todas as ambições para o material, faz
com que a desordem se instaure em todos os espíritos. Surge um apelo secreto pelo roubo e sua
justificativa mais natural: uns tem mais e outros tem menos, renegando a realidade espiritual
onde todos são iguais. Este materialismo cultural que incentiva a desordem faz com que o
brasileiro se sinta sempre impotente diante das situações, fazendo com que precisemos sempre
de um auxílio psicológico – fonte primordial da lei absoluta do respeito e da concórdia vaidosa – e,
quando encontra consciências profundas, faz com que se abandone a voz própria, preferindo
sugerir a afirmar, revelando na negação – nos momentos musicais, a duplicidade de sistemas
harmônico do primeiro momento, criando duas músicas em uma, é um ótimo momento
representante desta tendência. Essa, creio eu, corresponde a outra das características mais
importantes do trabalho de Oiliam Lanna, uma longa lição das trevas que o assemelha muito ao
poeta analisado, Bruno Tolentino.
Agora, seguindo em direção à explicação do título, devemos lidar com o orfismo e com a
coisificação do espírito. Que o compositor me perdoe pelo segundo termo, que não é, de forma
alguma, para ser ofensivo como pode soar. Na verdade, significa o costume dos antigos gregos de
pensar o espírito como uma das coisas possíveis do mundo – costume que foi renovado no
renascimento -, que possibilitou o surgimento dos cultos órficos. Na mitologia grega, tudo se
refere à terra. Urano significa céu, mas seu significado etimológico é aquele que cobre (a terra).
Seu filho, o Tempo, gera Zeus, que é o símbolo da presença do Ser, que é instantânea como um
raio. Zeus, entretanto, acaba sempre filiado aos seus antecessores, limitando-o como uma das
meras manifestações que traz o tempo. Nas miniaturas de Oiliam, essa forma de se manifestar o
espírito é semelhante. Por motivos que não conseguirei explicar de todo – sendo alguns já
explicados -, identifico as três peças da série com a atividade da suspeita, com o padecer da
atribulação e uma meditação filosófica sobre os temas anteriores, respectivamente, e, por isso,
considero haver uma narrativa que é o fio condutor das três miniaturas – basta citar, na primeira
peça, o andar cauteloso da flauta e o trinado do piano, que lembra o sibilar de uma cobra, animal
característico do ardil e da suspeita, e, na segunda, todo o ambiente que parece continuar a
primeira peça, em alguns gestos pianísticos e nas técnicas estendidas da flauta, que parecem, por
sua vez, continuar o tema da suspeita, também vale citar as notas longas, ensejando a elaboração
da terceira peça, e, além disso, no que concerne à atribulação, a segunda peça parece toda um
conjunto de elocuções diárias, algumas biliosas, outras irônicas, outras ainda dúbias e fugazes,
como que o reflexo musical do espírito quando exposto à banalidade. Há, como dissemos antes,
nessas obras um quê de machadiano, ocultando nelas uma filosofia sobre a banalidade e fazendo
dela música brasileira por excelência. A terceira, com o timbre profundo da flauta em Sol, se
assemelha à recuperação da transcendência da verdade pelo conceito de Aletheia pelo orfismo e
por Platão. Aletheia significa não entrar no Lethes, o rio do esquecimento, enxergar tudo não a
partir do seu fenômeno estático, mas no seu nascimento que pressupõe, consequentemente, uma
estrutura de nascimento – estrutura essa que chamamos de causalidade, e que nos permite nos
fazer a associação. É como se, das experiências agudas da consciência que Adorno havia
estabelecido como fundamento da música atonal, ressurgisse mais uma vez o espírito, numa
profunda meditação. Essa intermediação entre espírito como coisa e sua conquista como centro
da realidade mesma, o repouso da atenção sobre este processo que está entre o nada e o Todo,
que tanto caracteriza a música de Webern, algumas de Schoenberg, Dallapiccola e do próprio
Oiliam, pela seu próprio propósito acaba sonoramente lembrando algumas peças de música grega
antiga – o poema de la luna nueva lembra alguns fragmentos das composições de Ésquilo para
suas peças, até mesmo na liberdade de apresentação do texto! – e as miniaturas para flauta
relembram vagamente alguns raags indianos – é música noturna, ou melhor, lunaire.
Aproveitando a oportunidade de compreender esta música como representante de uma
paisagem lunar, há uma discussão que revela uma das partes que menos me apraz na música do
compositor: não é música feita para os sentidos, mas música para o espírito. Rossellini, em um de
seus belos diálogos no filme Santo Agostinho, diz que o sentido é a porta do espírito, e que toda
arte que busca o absoluto do espírito é decadente. Se bem que colocando esta frase na boca de
um pagão contra um cristão, esta característica intelectualista de algumas obras de Oiliam, que
lembra de alguns renascentistas, faz com que elas percam força de expressão para sustentar o
desejo de novidade. Esta característica provavelmente surgiu dos estudos com Koellreuter, o
homem que importou o atonalismo para o Brasil, e com a música acadêmica do Quebèc, em seu
doutorado. Outras influências que moldaram mais a sua personalidade que sua música, são o
pessimismo em relação ao mundo, de Baudelaire, e a gula intelectual de Rolando Barthes. O poeta
francês, em À une Mendiante rousse, estabelece a estética de uma arte que busca ser
absolutamente espiritual: Pour moi, poète chétif, / Ton jeune corps maladif, / Plein de taches de
rousseur, / À sa douceur / Tu portes plus galamment / Qu’un reine de roman / ... . Barthes, em seu
discurso para a Academia Francesa, diz que há um fascismo implícito na estrutura da linguagem,
que toda escritura subentende um poder e uma opressão e que a guerra do intelectual é contra tal
poder. Talvez possa haver aqui, como já pensava Adorno e Schoenberg, a ideia de que a expressão
convoluta da música atonal represente um passo para a libertação de uma ordem que nos é
imposta, baseada nas constatações mais recentes da linguística, que o compositor estudara tão
profundamente, mas o fato é que não podemos nos libertar daquilo que nos é imposto por nós
mesmos. A música atonal, enquanto uma negação, não existe. Só existe enquanto uma expressão
específica de seu topos específico, como demonstramos na análise da peça. Longe disso se
manifestar como uma prisão, é esta a estrutura mesma da liberdade. A vontade, a verdadeira
vontade do espírito, é uma necessidade diferente da exterior que nos constrange ou da
puramente lógica é, na verdade, uma manifestação anterior a estas duas, onde estas se conciliam
com muitas outras, no seio da cumplicidade entre o eu e o Ser. Por isso, a imposição inevitável da
tonalidade – é necessário que o leitor se lembre que uso tonalidade como um termo muito
específico -, assim como a projeção inevitável do passado sobre a personalidade como estudamos
anteriormente, é anterior ao ponto em que determinismo e liberdade se diferenciam, não
significando a perda da liberdade, mas, pelo contrário, a sua conquista – muito oposto à ideia de
que devemos sempre procurar novos sabores, que nos aprisiona através da nosso próprio instinto
de novidade. A manifestação desta antinomia é exposta pelo pensamento de Dante Grela, que ele
reexpôs em recente palestra na UNILA: descolonizar, conseguir uma nacionalidade independente
da europeia, não pode ser negar o anterior sempre como eurocêntrico e ir progressivamente até
negar toda a música. É, pelo contrário, permitir que todas as influências anteriores sejam
utilizadas, pois o passado não é o inimigo do futuro, mas o seu pressuposto.
Não posso dizer, entretanto, que este elemento, a princípio fortuito, não tenha se
revelado o apanágio de uma arte com profunda seriedade. Os Rituais do Tempo, uma das últimas
obras de grande escala publicadas pelo compositor, são, como ele mesmo diz, uma meditação
sobre a memória e o cortejo, termo usado para designar o fascínio amoroso que nos exerce a
presença do presente – prefiro aqui a clareza à evitação do pleonasmo. É impressionante como
todos os caráteres analisados da obra do compositor, suas qualidades e seus defeitos, convergem
maravilhosamente para esta obra: é como se, antes dele haver tê-la feito, ela fora feita para ele. A
consecução desta peça é, em si, um momento de cortejo: na primeira parte, o tom continuamente
misterioso seguido por espasmos da memória que são como dores de um demorado parto
representam a memória na sua capacidade de nos recuperar a realidade, sem reter a vazão de um
tema que toma a maior parte da obra de Oiliam: a névoa e a noite. A memória é a névoa do
cortejo, e o cortejo é a união espiritual e carnal, representada pela imitação dos sinos pelos
pianos, pela percussão viva, com o real. Essa peça magnífica supera o materialismo e o quietismo,
na medida em que encontra o Absoluto em sua essência e em sua totalidade – totalidade que
alcança a percepção humana, claro: a presença do Ser, a base de todas as experiências. O
compasso multiforme, mas sempre em base múltipla de dois sustenta aquela sensação de
inconformidade com a matéria que, se antes era expressada de forma ora negando o espírito ora a
matéria, agora se apresenta em toda sua forma com o espírito sobre a matéria. Há várias outras
partes que gostaria de analisar, mas o leitor, que a este momento pode pensar que já esqueci de
minha promessa, ficaria enfastiado se eu terminasse este ensaio sem justificar a escolha do título.
Ora, se as suas obras de juventude se assemelham a um estudo sobre as forças naturais, se sua
segunda fase se fundamenta na tensão entre a matéria e o espírito, e sua maturidade se funda
justamente na mediação entre estes dois elementos, tendo como base a força criadora tanto da
matéria – em tramas da memória -, quanto do espírito individual – nos Rituais do Tempo -, como
eu, um ouvinte distante, que pouco conhece sobre as razões mais profundas da consciência do
compositor, não poderia concluir que o esforço que move suas ambições intelectuais é justamente
transparecer a força do Absoluto? Revelar dele sua capacidade de impressionar, de criar, de se
recriar e de destruir? É irônico, devo admitir, que tal personalidade venha de um sujeito que
pessoalmente não é imperativo e, pelo contrário, tenha a simplicidade e humildade de um pardal,
mas, como ele mesmo me dissera uma vez: a mansidão não é sinônimo de falta de efeito, muito
menos de fraqueza - ora, se Elias, o profeta, encontrara Deus não no vento forte que destruía
montanhas, não no terremoto de fogo, mas no vento manso e suave, quem sou eu para duvidar
de tal afirmação? Quem sou eu para acreditar haver aí alguma contradição? Esta busca pela
manifestação da força do Absoluto, esta busca pelo absoluto Absoluto – primeiro absolutamente
material, depois absolutamente espírito, e depois absolutamente Absoluto, ou seja,
absolutamente potência criadora – é o que define o percurso artístico de Oiliam Lanna. Isto, é
claro, quem diz sou eu que, como fala Yeats em seu prefácio ao Gitanjali de Tagore: shall not know
anything of his life, and of the movements of thought that have made them possible, if some
Indian traveller will not tell me – e espero que Deus venha a fazer deste meu legítimo esforço um
justo acerto.

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