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Introdução ao Estudo do Direito II

Ano Lectivo 2019/2020


Subturmas 2 e 7

CESSAÇÃO DE VIGÊNCIA
Caso n.º 4

Caim é sócio de uma sociedade comercial — Afecto Animal, Lda. — e pretende instalar
um centro de atendimento médico-veterinário (CAMV) para tartarugas. O regime dos
CAMV para tartarugas consta Decreto-Lei n.º 70/20071, de 11 de Agosto e contém, entre
outras disposições, as seguintes:

1. Os gabinetes dos CAMV para tartarugas devem ter uma área máxima de 40 m2.
2. O funcionamento dos CAMV para tartarugas depende de autorização a emitir pela
Direcção Geral de Veterinária (“DGV”).
3. O pedido da autorização referida no número anterior é efectuado através de
requerimento apresentado electronicamente, em plataforma constante do site da DGV.
4. A entrada na plataforma referida no número anterior depende de uma password
fornecida pela DGV.

Em 9 de Agosto de 2009, o Governo aprovou o Decreto-Lei n.º 184/2009 que, tendo sido
publicado e disponibilizado em Diário da República a 11 de Agosto, entrou em vigor a
12 de Outubro de 2009. Este diploma regula os CAMV e contém, entre outras, as
seguintes disposições:

Artigo 3.º

1. Os gabinetes dos CAMV devem ter uma área máxima de 25 m2.


2. O disposto no número anterior aplica-se aos CAMV regulados por legislação
especial.
3. O licenciamento dos CAMV depende de autorização da DGV, devendo o requerimento
para emissão da mesma ser apresentado presencialmente.

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Diploma Fictício.
a) Caim foi consultar a legislação, mas está confuso sobre qual a área que devem ter
os gabinetes do seu CAMV para tartarugas. Se Caim lhe pedisse um parecer jurídico
sobre a questão, o que lhe diria?

R: O problema colocado reside em saber se a norma relativa à área máxima do DL foi


revogada pela norma da Lei que dispõe sobre a área máxima para CAMV
Em primeiro lugar, deve observar-se que se detecta logo à priori uma
incompatibilidade as normas dos diplomas: enquanto nos termos do DL, a área máxima
dos CAMV para tartarugas é de 40 m2, na Lei essa área máxima já é de 25 m2. Neste
sentido, poderia estar em causa uma situação de revogação por incompatibilidade (cfr.
artigo 7.º, n.º 1, do CC)
Em segundo lugar, é necessário verificar se os pressupostos necessários para que
ocorra a revogação de normas — posteridade e hierarquia — estão verificados. E tal
parece ocorrer: a norma da Lei relativa à área máxima é posterior à do Decreto-Lei; existe
paridade hierárquica entre a Lei e o Decreto-Lei (112.º, n.º 2, da CRP), podendo as normas
de ambos revogar-se mutuamente. A título adicional, não se verificam aqui impedimentos
ao funcionamento da paridade hierárquica em termos totais, particularmente reservas de
competência normativa ou existência de leis de valor reforçado.
Em terceiro lugar, e verificados os pressupostos da revogação, haveria de definir os
âmbitos aplicativos de ambas as normas. E neste aspecto era detectável uma relação de
especialidade normativa entre a norma do DL e a norma da Lei: a norma do DL tem uma
previsão mais específica (CAMV para tartarugas versus todos os CAMV), igual operador
deôntico (deve) e uma estatuição incompatível (área máxima de 40 m2 versus área
máxima de 25 m2). A norma do DL é, pois, especial face à norma da Lei.
Em quarto lugar, a verificação de que uma norma é especial em relação a uma norma
geral posterior e da mesma hierarquia impõe a aplicação da norma do artigo 7.º, n.º 3, do
CC que prescreve que, em regra, uma norma geral posterior não revoga uma norma
especial anterior. Porém, há que atender ao entendimento do legislador na situação
concreta: como decorre da parte final do artigo 7.º, n.º 3, do CC, a regra da não afectação
da norma especial anterior por norma geral posterior pode ser expressamente afastada.
Foi justamente o que aqui ocorreu: no n.º 2 da Lei, é prescrito que a regra relativa à área
máxima de todos os CAMV prevalece, ou seja, se aplica a todos os CAMV regulados por
legislação especial, como eram neste caso os CAMV para Tartarugas.
Nesta situação, houve uma revogação expressa da norma do DL relativamente à área
máxima pela norma da Lei relativa ao mesmo domínio. Nestes termos, a área máxima dos
CAMV para tartarugas deveria ser de 25 m2.

b) A sua resposta seria igual se o Decreto-Lei 184/2009, de 11 de Agosto, não


contivesse a disposição do n.º 2 do artigo 3.º ?

R: O problema colocado é similar ao do caso anterior. Verificam-se as condições da


revogação, a relação de especialidade entre a norma do DL e uma norma posterior da Lei. Só
que o modo de resolução é diferente: como nesta situação, não houve qualquer manifestação
do legislador no sentido de afastar a norma especial, o início de vigência da norma geral em
nada interfere nesta, nos termos do artigo 7.º, n.º 3, do CC, não prevalecendo sobre ela. Neste
sentido, não se verificou uma revogação, continuando ambas as normas a vigorar. Verifica-
se tão só que têm âmbitos aplicativos distintos: a norma relativa à área máxima de 40 m2 só
se aplica perante CAMV de tartarugas; a norma relativa à área máxima de 25 m2 metros
aplica-se a todos os CAMV, exceptuando os de tartarugas. A resposta deveria, pois, ser
diferente.

c) Imagine agora que Caim pretende solicitar uma autorização para abrir o seu
CAMV de tartarugas. Pode fazê-lo electronicamente, neste caso através de
plataforma electrónica do site da DGV?

R:Nesta hipótese, temos igualmente um caso de potencial revogação por


incompatibilidade entre duas normas: a norma do DL que prescreve que os requerimentos
para a emissão de autorização dos CAMV para tartarugas devem ser apresentados
electronicamente e a norma da Lei que prescreve que os requerimentos para a emissão da
autorização de CAMV devem ser apresentados presencialmente.
Verificadas a posteridade e a hierarquia como condições da revogação nos termos da
alínea a), teria de se definir a relação entre as duas normas potencialmente incompatíveis.
Neste caso, a norma do DL é especial relativamente à norma geral posterior da Lei: tem
uma previsão mais específica (CAMV para tartarugas é mais específico do que CAMV),
o mesmo operador deôntico (deve) e uma estatuição incompatível (num caso um
requerimento apresentado electronicamente; noutro presencialmente).
Definida a especialidade entre as duas normas, estamos em condições de aplicar a
norma do artigo 7.º, n.º 3, do CC: como não há intenção expressa do legislador, a norma
especial não é afectada pela norma geral e, nesse sentido, não é revogada por esta. Ambas
as normas continuam a aplicar-se, mas cada uma no seu domínio material: a da do DL
para a CAMV de tartarugas; a da lei para os todos os demais CAMV.

d) Se o legislador tivesse adicionado um número 4 ao artigo 3.º do Decreto-Lei


184/2009, de 11 de Agosto, dispondo que a norma do n.º 3 do artigo 3.º se aplicava
igualmente a todos os CAMV regulados por legislação especial, faria sentido Caim
solicitar uma password à DGV para entrar na plataforma electrónica?

R: O problema aqui colocado é distinto dos anteriores. Já sabemos que, por força da
intenção do legislador, foi revogada a norma do DL que permitia a apresentação de
requerimentos para autorização de CAMV para tartarugas electronicamente, passando
todos os requerimentos a ser apresentados presencialmente. Só que não houve qualquer
manifestação expressa do legislador relativa à norma da password contida no DL.
Nesta hipótese, e sem mais dados, há uma pressuposição lógica entre a apresentação
de requerimentos electronicamente e a password, ou seja, esta só é necessária
precisamente pela necessidade de fazer esses requerimentos através de plataforma
electrónica. Neste sentido, a partir do momento em que cessa a norma que impõe a
apresentação de requerimentos eletronicamente, cessa também o pressuposto necessário
para a aplicação da norma relativa à password. Deste modo, a revogação expressa da
norma relativamente aos requerimentos apresentados electrónica implica a revogação
tácita (cfr. artigo 7.º, n.º 2, do CC) da norma relativa à password.

e) Perante o protesto de inúmeras associações protectoras de animais com o regime


dos CAMV recentemente aprovado, o Governo decide, através do Decreto-Lei n.º
186/2009, de 11 de Setembro de 2009, aprovado em 9 de Setembro de 2009, positivar
um novo regime dos CAMV, nos termos do qual todos os gabinetes destes devem ter
mais de 50 m2, o que vale também para os CAMV regulados por legislação especial.
Assumindo que o Decreto-Lei n.º 186/2009, de 11 de Setembro, entrou em vigor a 12
de Outubro de 2009, Caim pode, no dia 30 de Outubro de 2009, fazer um pedido de
licenciamento do qual conste que os gabinetes do seu CAMV para tartarugas vão
ter uma área de apenas 40 m2?
R: Nesta hipótese, e em ambas as leis não havia dúvidas sobre o afastamento das
normas do DL dos CAMV para tartarugas. Ambas prevaleciam sobre a norma da área
máxima do DL. A questão concreta era saber qual das normas relativas à área máxima
devia aplicar-se, tendo em conta que são ambas normas gerais e que situam no mesmo
patamar hierárquico, podendo por isso revogar-se mutuamente.
Só que se verificava que ambas, aprovadas com um mês de diferença, entraram
em vigor exactamente no mesmo dia: 12 de Outubro. Para estas situações, deve
conjugar-se o critério do artigo 7.º, n.º 1, do Código Civil, apurando se se verifica um
fundamento de revogação e os critérios avançados pela doutrina.
Assim, e em primeiro lugar, existe claro uma incompatibilidade entre a norma do
DL de Agosto e do DL de Setembro: na de Agosto, a área máxima é 40 m2; noutra
50 m2. Perante esta potencial incompatibilidade, o critério de preferência deve ser,
quando a entrada em vigor se dá no mesmo dia, o da aprovação do acto normativo.
Neste caso, deve prevalecer aquela que foi a última vontade dos órgãos de soberania
competentes; no caso vertente, a última vontade foi manifestada no dia 9 de Setembro,
portanto um mês depois da aprovação do DL de Agosto.
Em síntese: à luz do exposto, no dia 30 de Outubro a regra aplicável implicava
que todos os CAMV tivessem mais de 50 m2. Se Caim quisesse montar um CAMV
para tartarugas com área inferior a essa, o seu pedido seria indeferido.

Caso n.º5

Caim tem um amigo, Ezequiel, que também é amante de animais e adora fazer a
respectiva observação, sendo fascinado por Lobos-Ibéricos. Uma vez que é um cidadão
cumpridor, Ezequiel consultou a Lei n.º 35/912, de 20 de Novembro, que regula o
procedimento necessário para a obtenção de autorização para observação de Lobos
Ibéricos. Depois de apurar quais os documentos necessários, dirige-se ao Instituto da
Conservação da Natureza e Florestas, onde é informado que essas licenças já não são
emitidas porque, estando confirmado que não existem Lobos-Ibéricos em Portugal, a lei
deixou de estar em vigor.

Pergunta-se:

2
Lei fictícia.
a) A informação dada a Ezequiel foi correcta, ou seja, a Lei n.º 35/91, de 20 de
Novembro, já deixou de vigorar?
a) Referências às modalidades de cessação de vigência dos actos normativos;
b) Identificação da modalidade potencialmente em causa: caducidade;
c) Ponderação da verificação da caducidade:
a. Não está em causa uma lei que se destina a vigorar temporariamente;
b. Os pressupostos da aplicação do acto normativo cessaram: Discussão sobre se
pode ser fundamento de caducidade;
c. Referência às situações móveis, isto é, as situações dinâmicas, as quais podem
desaparecer e reaparecer;

b) Imagine agora que Ezequiel, passeando tranquilamente na Serra do Gerês, avista


um Lobo-Ibérico. Nessa circunstância, e comprovando-se que efectivamente há um
Lobo Ibérico em Portugal, a resposta dada pelo Instituto deveria ser a mesma?

a) O percurso interpretativo da resposta anterior;


b) Caso se entendesse que nunca houve caducidade naturalmente a Lei estaria em
vigor e Ezequiel poderia pedir a licença;
c) Caso se entendesse que se verificou a caducidade, ponderação de uma
revivescência da norma (passam novamente a estar reunidos os seus pressupostos).

c) Admitindo que existem Lobos-Ibéricos em Portugal, se a sua observação for feita


sem qualquer tipo de autorização — o que é punível com coima nos termos da Lei
n.º 35/91, de 20 de Novembro — e não houver qualquer fiscalização das forças de
segurança — que, sabendo da situação, inclusive cumprimentam serenamente quem
observa os Lobos-Ibéricos — , será que a referida Lei ainda está em vigor?

a) A identificação dos fenómenos em causa: desuso ou costume contra legem;


b) Definição de ambos;
c) Sua aplicação ao caso concreto, admitindo-se outras vias argumentativas :
a. Ausência de convicção de obrigatoriedade;
b. Erosão normativa da lei: esta perda eficácia, deixando de conformar a
realidade;
c. Não surgiu uma nova norma contrária àquela que estava em vigor;
d. Identificação do desuso como o fenómeno em causa e conclusão de que a lei
ainda estava em vigor.

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