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br/2019/09/13/poliamor--desvio-liberal-ou-resistencia-a-
familia-burguesa/. Acesso em 19 de janeiro de 2022.
Vladimir Maiakovski,
traduzido por Haroldo, Augusto e Boris
em Poemas (ed. Perspectiva)
No que diz respeito mais especificamente à sexualidade, após o final da Guerra Fria o
assunto ficou um tanto marginalizado entre marxistas, ao passo em que foi fortemente
reivindicado e financiado em outros espaços de produção intelectual. É recente o
reencontro dos estudos marxistas com o tema, ao menos no Brasil. Mais
especificamente, dentro disso, o debate sobre formas de relacionamento afetivo-sexual,
embora tenha historicamente perpassado a política crítica ao capitalismo, também foi
tomado e empurrado para abordagens mais liberais. Parece ser especialmente fácil
relegar o sexo e os relacionamentos a uma lógica individualista e burguesa, já que no
senso-comum tratamos essas práticas como individuais, singulares, privadas. Enquanto
socialistas, comunistas, marxistas, porém, nos cabe a tarefa de duvidar desse senso-
comum. O sexo – e os relacionamentos como forma de regular socialmente as práticas
sexuais – é, afinal, o que produz corpos, o material necessário à existência da força de
trabalho, a mais básica mercadoria do sistema capitalista. Não à toa o capitalismo regula
os corpos de tantas maneiras, que vão do genocídio negro e indígena à ausência de
direitos para trabalhadoras sexuais, passando por violência obstétrica, políticas sobre
aborto, transfobia e outras muitas coisas mais (e a edição da revista Margem Esquerda
que está prestes a sair conta com um artigo precioso em que Amanda Palha explica e se
aprofunda nesse assunto para discutir o transfeminismo por um ponto de vista marxista
ou, melhor dizendo, o marxismo por um ponto de vista transfeminista).
Uma das formas de controle da produção e reprodução de corpos é, sem dúvida alguma,
o que podemos chamar de estrutura monogâmica ou Monogamia, com M maiúsculo. No
senso-comum utiliza-se o termo “monogamia” para descrever a prática de se relacionar
afetiva/sexualmente com uma pessoa de cada vez, apenas. Esse entendimento é bastante
problemático e causa ruídos importantes de comunicação – daí a estratégia de usar o M
maiúsculo para que não sejam confundidas as coisas. A Monogamia, como estrutura,
não está ligada à quantidade de pessoas com quem cada um está de fato ou não
transando ou se relacionando, mas sim às normas que regulam esses afetos e, mais do
que os afetos, a sexualidade. Dito de forma um tanto simplificada, porém não menos
rigorosa, a Monogamia é o conjunto de normas sociais e práticas que regulam e
determinam como podemos ou não transar e ter relações afetivas, a partir da premissa
de cláusulas de exclusividade sexual/afetiva. Monogamia não diz sobre quantos
parceiros sexuais cada pessoa mantém, mas sobre o tipo de exclusividade afetiva/sexual
esperada e imposta nas relações. Uma pessoa em uma relação monogâmica, por
exemplo, pode ter vários parceiros sexuais na prática (daí a figura da traição, que só é
possível dentro da Monogamia), enquanto uma pessoa que vive relações não-
monogâmicas sem exclusividade afetiva/sexual pode estar transando apenas com uma
pessoa ou mesmo com nenhuma (por falta de vontade, falta de tempo, incompatibilidade
sexual, e por aí vamos).
Volto a Maiakovski e vejo que está aí a diferença entre a orgia burguesa e o exercício da
liberdade sexual revolucionária ou, ainda, o amor-camarada de Kollontai. O exercício
de uma sexualidade polisexual ou de uma poliafetividade não implicam necessariamente
nem numa ruptura com esse sistema, nem em seu reforço. Um praticante de grandes
orgias pode performar uma sexualidade limitante, opressora, violenta em termos do
gênero, e estar perfeitamente dentro do quadro esperado e aceito da Monogamia.
Quando os praticantes de poliamor mantêm, também, as mesmas estruturas da
Monogamia, da Família e do Casal, inclusive com cláusulas de exclusividade
sexual/afetiva em suas relações, apenas multiplicando-as em número (o famoso “trisal
fechado”), é limitado o quanto se pode avançar em termos de contra-hegemonia dos
afetos e da sexualidade, se é que se avança algo. Na perspectiva das Relações Livres
(RLi) e/ou Anarquia Relacional (há um longo debate sobre ambos os termos e a quais
conceitos correspondem no qual não entrarei agora), por isso, é impossível pensar não-
monogamia, ou seja, a negação da Monogamia, sem pensar uma ruptura com a estrutura
de classes e o modo de produção capitalista – justamente porque são distintos aspectos
de um mesmo modo de vida e servem um ao outro em sua manutenção, reprodução e
perpetuação.
Para encerrar esta já extensa reflexão, é importante lembrar que se trata de uma via de
mão dupla. Quer dizer, ao mesmo tempo em que é impossível operar uma subversão
e/ou ruptura ao sistema monogâmico sem uma subversão/ruptura e crítica ao modo de
produção capitalista, nestes termos, também é urgente que, para operar uma
subversão/ruptura e uma crítica efetivas ao modo de produção capitalista, não se deixe
de fazer o mesmo em relação a sua forma particular de sistema de parentesco. Ao
manter no horizonte revolucionário instituições que só podem, em nosso tempo,
corresponder a estruturas da dominação e exploração de classe (como Família, Casal
etc.), naturalizamos a própria fundação do modo de produção que desejamos eliminar.
Talvez seja possível afirmar aqui que foi por uma falha nessa compreensão, inclusive (e
lembro aqui das reflexões de Goldman em Mulher, Estado e revolução), que muitos
avanços da revolução de 1917 foram posteriormente revogados, havendo um retrocesso
significativo em dado momento quanto às normas e práticas sociais soviéticas em
relação a esse complexo e disputado universo da sexualidade, do amor, da casa.
Construir condições para o poder popular e uma revolução socialista passa então,
necessariamente, por operar uma crítica estrutural ao universo simbólico que regula
tudo o que nos parece mais íntimo, individual e instintivo – como o sexo – e, como bons
marxistas, não apenas pensar mas efetivamente atuar de uma maneira nova e crítica em
nossas próprias relações.