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https://blogdaboitempo.com.

br/2019/09/13/poliamor--desvio-liberal-ou-resistencia-a-
familia-burguesa/. Acesso em 19 de janeiro de 2022.

“Vocês que vão de orgia em orgia, vocês


Que têm mornos bidês e W.C.s,
Não se envergonham ao ler os noticiários
Sobre a Cruz de São Jorge nos diários?

Sabem, vocês, inúteis, diletantes


Que só pensam encher a pança e o cofre,
Que talvez uma bomba neste instante
Arranque as pernas ao Tenente Pietrov?…

E se ele, conduzido ao matadouro,


Pudesse vislumbrar, banhado em sangue,
Como vocês, lábios untados de gordura,
Lúbricos trauteiam Sievierânin!

Vocês, gozadores de fêmeas e de pratos,


Dar a vida por suas bacanais?
Mil vezes antes no bar às putas
Ficar servindo suco de ananás.”

Vladimir Maiakovski,
traduzido por Haroldo, Augusto e Boris
em Poemas (ed. Perspectiva)

Por Marília Moschkovich.

Qual é o limite – se há – entre a promiscuidade burguesa e a sexualidade libertária


contra-hegemônica que reivindica o amor-camarada, como disse Kollontai, e seus
derivados mais recentes, como (será?) o poliamor, as relações livres etc.? Como
encaixar as práticas sexuais e afetivas ou, ainda, o amor (o que quer que seja isso) no
debate político anticapitalista com uma perspectiva revolucionária? Que sínteses são
possíveis a partir desses universos de debate e estudo? Qual a relação entre o que
fazemos na cama e o que defendemos nos megafones, nas ruas, nos projetos políticos?
Afinal, isso importa?
Essas questões bastante perturbadoras aparecem como um quebra-cabeça diante do
poema de Maiakovski. Ora, o poeta viveu enroscado com Lilia Brik (quando não com
sua irmã Elsa Triolet) que, por sua vez, era casada com Osip Brik, não apenas próximo,
mas parceiro intelectual e editor de Maiakovski. Não é segredo que a visão do poeta, e
de ambos Lilia e Osip Brik sobre amor, sexo e casamento estava longe de ser
conservadora (e a entrevista feita por Boris Schneiderman com Lilia, publicada ao final
do livro Poemas de Maiakovski, é uma das muitas evidências disso). Qual seria então o
sentido da crítica às orgias no poema? Por que a orgia e a liberdade sexual parecem ser
retratadas como uma forma de alienação ou decadência moral e política da burguesia?
(E, neste ponto, se você pulou a leitura do poema, role a página para cima de novo e leia
com atenção; mais ainda, para não perder a beleza e a força de Maiakovski e
especialmente, a beleza e a força da tradução do querido Augusto de Campos, de seu
irmão Haroldo e de Boris, sugiro que leia em voz alta).

É verdade que o debate e a crítica sobre papéis de gênero, casamento, sexualidade,


família, e temas correlatos sempre acompanhou a esquerda, em especial socialistas e
comunistas. Os próprios trabalhos de Marx e Engels, já no século XIX, não deixaram de
propor reflexões sobre tais aspectos da vida social, embora com os consideráveis limites
da época (algo que procurei explicar um pouco no posfácio à nova edição de A origem
da família, da propriedade privada e do Estado, publicada pela Boitempo no início deste
ano). É verdade também, por outro lado, que esses jamais foram pontos pacíficos nesse
debate: ao mesmo tempo em que socialistas e comunistas como Rosa Luxemburgo,
Clara Zetkin e Alexandra Kollontai apresentaram visões bastante críticas sobre esse
universo, o próprio Lênin e outros camaradas com certa frequência relegavam esses
assuntos a um lugar secundário na luta de classes. Essa tensão se repetiu ao longo de
todo o século XX, sendo frequente a denúncia de feministas marxistas em relação às
dificuldades dos embates internos em suas organizações, em todo o mundo.

No que diz respeito mais especificamente à sexualidade, após o final da Guerra Fria o
assunto ficou um tanto marginalizado entre marxistas, ao passo em que foi fortemente
reivindicado e financiado em outros espaços de produção intelectual. É recente o
reencontro dos estudos marxistas com o tema, ao menos no Brasil. Mais
especificamente, dentro disso, o debate sobre formas de relacionamento afetivo-sexual,
embora tenha historicamente perpassado a política crítica ao capitalismo, também foi
tomado e empurrado para abordagens mais liberais. Parece ser especialmente fácil
relegar o sexo e os relacionamentos a uma lógica individualista e burguesa, já que no
senso-comum tratamos essas práticas como individuais, singulares, privadas. Enquanto
socialistas, comunistas, marxistas, porém, nos cabe a tarefa de duvidar desse senso-
comum. O sexo – e os relacionamentos como forma de regular socialmente as práticas
sexuais – é, afinal, o que produz corpos, o material necessário à existência da força de
trabalho, a mais básica mercadoria do sistema capitalista. Não à toa o capitalismo regula
os corpos de tantas maneiras, que vão do genocídio negro e indígena à ausência de
direitos para trabalhadoras sexuais, passando por violência obstétrica, políticas sobre
aborto, transfobia e outras muitas coisas mais (e a edição da revista Margem Esquerda
que está prestes a sair conta com um artigo precioso em que Amanda Palha explica e se
aprofunda nesse assunto para discutir o transfeminismo por um ponto de vista marxista
ou, melhor dizendo, o marxismo por um ponto de vista transfeminista).

Uma das formas de controle da produção e reprodução de corpos é, sem dúvida alguma,
o que podemos chamar de estrutura monogâmica ou Monogamia, com M maiúsculo. No
senso-comum utiliza-se o termo “monogamia” para descrever a prática de se relacionar
afetiva/sexualmente com uma pessoa de cada vez, apenas. Esse entendimento é bastante
problemático e causa ruídos importantes de comunicação – daí a estratégia de usar o M
maiúsculo para que não sejam confundidas as coisas. A Monogamia, como estrutura,
não está ligada à quantidade de pessoas com quem cada um está de fato ou não
transando ou se relacionando, mas sim às normas que regulam esses afetos e, mais do
que os afetos, a sexualidade. Dito de forma um tanto simplificada, porém não menos
rigorosa, a Monogamia é o conjunto de normas sociais e práticas que regulam e
determinam como podemos ou não transar e ter relações afetivas, a partir da premissa
de cláusulas de exclusividade sexual/afetiva. Monogamia não diz sobre quantos
parceiros sexuais cada pessoa mantém, mas sobre o tipo de exclusividade afetiva/sexual
esperada e imposta nas relações. Uma pessoa em uma relação monogâmica, por
exemplo, pode ter vários parceiros sexuais na prática (daí a figura da traição, que só é
possível dentro da Monogamia), enquanto uma pessoa que vive relações não-
monogâmicas sem exclusividade afetiva/sexual pode estar transando apenas com uma
pessoa ou mesmo com nenhuma (por falta de vontade, falta de tempo, incompatibilidade
sexual, e por aí vamos).

É proveitoso analisar esse quadro tendo a questão da exclusividade sexual enquanto


norma. Essa abordagem nos permite entender, por exemplo, de que maneira, no
capitalismo, a Monogamia opera (e arrisco aqui apresentar de maneira ainda superficial
uma das minhas teses sobre a Monogamia, que será melhor desenvolvida e apresentada
em futuras colunas, podcast, livro: a de que ela é a forma particular do sistema de
parentesco no modo de produção capitalista). A norma da exclusividade sexual/afetiva
sustenta a instituição Família nesse sistema, junto à ideia de que o Casal, enquanto
instituição simbólica, deve prevalecer sobre todas as demais relações de afeto e/ou
parceria sexual dos envolvidos (ou seja, uma hierarquia de relacionamentos que
privilegia aquela relação em que há exclusividade afetiva/sexual em detrimento das
demais, inclusive relações familiares previamente existentes). Não é incomum que
pessoas que consideram suas relações monogâmicas saudáveis e são efetivamente
felizes com elas vivam situações em que o Casal se protege de maneira quase
corporativa – é dito comumente que não se deve discutir os problemas da relação fora
da relação, por exemplo (e quando não é dito, é esperado que assim seja, visto o
tamanho das frustrações e dramas e sentimento de exposição quando essa expectativa é
rompida, na maioria dos casos).

Indo além da questão evidente de controle da propriedade privada e da herança, também


base do sistema capitalista e da reprodução das classes, essa dupla norma de
exclusividade e hierarquia é parte igualmente importante do que permite darmos, hoje,
no senso-comum, caráter de unidade à Família. Essa forma de operar também faz com
que se mantenha, em última instância, a primazia do Indivíduo sobre o coletivo, a
separação entre público e privado e outras criações simbólicas fundantes da ideologia
burguesa e do modo de produção capitalista. A Família, como instituição, aliena o
trabalhador da afetividade coletiva enquanto classe, ao contrapor “nós” (da mesma
família) e “eles” (da mesma classe, mas de outras famílias), acirrando inclusive formas
competitivas disso entre a burguesia que são ideologicamente exportadas e impostas
também à classe trabalhadora. O mesmo conjunto de ideias, normas e práticas sociais
também está na base da não-remuneração do trabalho doméstico, e da não-coletivização
do trabalho de cuidados – dois fenômenos que, aliados ao Gênero como sistema,
produzem efeitos como a tripla jornada de trabalho das mulheres.

Volto a Maiakovski e vejo que está aí a diferença entre a orgia burguesa e o exercício da
liberdade sexual revolucionária ou, ainda, o amor-camarada de Kollontai. O exercício
de uma sexualidade polisexual ou de uma poliafetividade não implicam necessariamente
nem numa ruptura com esse sistema, nem em seu reforço. Um praticante de grandes
orgias pode performar uma sexualidade limitante, opressora, violenta em termos do
gênero, e estar perfeitamente dentro do quadro esperado e aceito da Monogamia.
Quando os praticantes de poliamor mantêm, também, as mesmas estruturas da
Monogamia, da Família e do Casal, inclusive com cláusulas de exclusividade
sexual/afetiva em suas relações, apenas multiplicando-as em número (o famoso “trisal
fechado”), é limitado o quanto se pode avançar em termos de contra-hegemonia dos
afetos e da sexualidade, se é que se avança algo. Na perspectiva das Relações Livres
(RLi) e/ou Anarquia Relacional (há um longo debate sobre ambos os termos e a quais
conceitos correspondem no qual não entrarei agora), por isso, é impossível pensar não-
monogamia, ou seja, a negação da Monogamia, sem pensar uma ruptura com a estrutura
de classes e o modo de produção capitalista – justamente porque são distintos aspectos
de um mesmo modo de vida e servem um ao outro em sua manutenção, reprodução e
perpetuação.

Para encerrar esta já extensa reflexão, é importante lembrar que se trata de uma via de
mão dupla. Quer dizer, ao mesmo tempo em que é impossível operar uma subversão
e/ou ruptura ao sistema monogâmico sem uma subversão/ruptura e crítica ao modo de
produção capitalista, nestes termos, também é urgente que, para operar uma
subversão/ruptura e uma crítica efetivas ao modo de produção capitalista, não se deixe
de fazer o mesmo em relação a sua forma particular de sistema de parentesco. Ao
manter no horizonte revolucionário instituições que só podem, em nosso tempo,
corresponder a estruturas da dominação e exploração de classe (como Família, Casal
etc.), naturalizamos a própria fundação do modo de produção que desejamos eliminar.
Talvez seja possível afirmar aqui que foi por uma falha nessa compreensão, inclusive (e
lembro aqui das reflexões de Goldman em Mulher, Estado e revolução), que muitos
avanços da revolução de 1917 foram posteriormente revogados, havendo um retrocesso
significativo em dado momento quanto às normas e práticas sociais soviéticas em
relação a esse complexo e disputado universo da sexualidade, do amor, da casa.
Construir condições para o poder popular e uma revolução socialista passa então,
necessariamente, por operar uma crítica estrutural ao universo simbólico que regula
tudo o que nos parece mais íntimo, individual e instintivo – como o sexo – e, como bons
marxistas, não apenas pensar mas efetivamente atuar de uma maneira nova e crítica em
nossas próprias relações.

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