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cancaonova.com: O senhor publicou recentemente, no seu blog, uma entrevista de mais ou menos 40
anos, do padre Joseph Ratinger – hoje o Papa Bento XVI –, sobre como seria a Igreja no terceiro
milênio. O que diz esta entrevista e o que ela tem de profética para estes tempos?
Padre Demétrio: Nesta entrevista que o padre Ratzinger deu, ainda como professor universitário e sacerdote,
percebe-se toda atualidade do que ele fala hoje; sobretudo em relação às perseguições à Igreja. Ratzinger fala que
a Igreja será interiorizada, perderá o vigor social e político que possuía até alguns anos, justamente por esta
perseguição religiosa velada ou desvelada que recai sobre a Santa Igreja nos dias de hoje. Para ele, a Igreja do
segundo milênio deve ser a Igreja dos santos, e, é claro, a Igreja de sempre. Quem fará a Igreja do novo milênio
serão os santos, testemunhas vivas do Evangelho. Portanto, a Igreja interiorizada será novamente a grande luz
para este homem que quer construir a civilização à margem de Deus. Mas, inevitavelmente, vai perceber que o
homem construtor deste humanismo sem Deus vai acabar se voltando contra o próprio homem que experimentará
toda a angústia proveniente disto como a solidão, o desespero. Como exemplo disto, nós vemos jovens com menos
de 20 anos de idade já entrando em depressão, fazendo terapias profundíssimas justamente por perda do sentido
da vida.
O homem moderno quer construir uma civilização sem Deus, mas acaba sofrendo com isto, justamente porque
Deus é o único que pode dar sentido à vida. O Papa via isso, ainda como padre, com muita esperança, porque –
segundo ele – a Igreja seria novamente a luz, capaz de guiar estes homens que perceberiam que não podem
construir uma civilização sem Deus; e veriam, na Igreja, a salvação para a crise de sentido que o homem
experimenta.
cancaonova.com: Neste depoimento, o Papa fala de tempos muito difíceis, tempos de crise, quando a
Igreja vai passar com fortes "sacudidas". Isto já está acontecendo?
Padre Demétrio: Aconteceu logo após este discurso e ainda está acontecendo. Uma grande crise veio depois do
Concílio Vaticano II; não por causa dele, mas por uma falsa interpretação deste. Falava-se muito do “espírito do
Concílio”, dizendo alguns autores de dentro da Igreja que, mais do que documentos, deveriam ser vistos sob a luz
do verdadeiro concílio que queria mudar a Igreja, adaptá-la aos novos tempos. Fundamentando-se neste falso
“espírito conciliar”, os homens fizeram de tudo dentro da Igreja. Um exemplo é o número de sacerdotes que, nos
anos 60 e 70, abandonaram o ministério. Muitos largaram o sacerdócio, religiosas abandonaram os conventos, e
outros sacerdotes que não abandonaram a Igreja, mas fizeram as piores coisas dentro dela, sobretudo naquilo que
a Igreja tem de mais sagrado: a Sagrada Liturgia. Tudo respaldando neste falso “espírito conciliar”.
E o Papa Bento XVI vem lembrando que não existe um “espírito do concilio”, o Concilio Vaticano II é aquilo que está
nos documentos, é aquilo que a Igreja aprovou e que o Papa ratificou. Portanto, quando se lê os documentos da
Igreja, percebe-se que aquilo é uma busca de fidelidade ao Evangelho, é o que o Papa João XXII chamava de
“aggiornamento” [atualização], uma leitura do Evangelho para os novos tempos, não uma alteração substancial
evangélica. A Igreja não tem este poder, nós somos servos do Evangelho.
A primeira crise prevista por Joseph Ratinger era justamente a crise no interior da Igreja, que, de algum modo,
reflete no exterior dela. Alguém chegou a dizer que o reflexo da sociedade civil é o reflexo da sociedade eclesiástica.
Se os padres estão mal, se eles não rezam, não se confessam nem buscam viver a santidade, como que o povo vai
ser "alimentado" por ele? Como o povo vai ser "alimentado" por um padre que não prega mais a doutrina da Igreja,
mas sim o seu subjetivismo? Quanto a isso, o Papa disse, na abertura do Ano Sacerdotal, que “nada causa mais
dano à Igreja do que os pastores que se convertem em ladrões de ovelhas”, ou seja, pastores que enganam o povo,
anunciando não mais a doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas a sua própria doutrina. Ensinam uma teologia
moral e dogmática equivocada; e se o povo ouve isto e confia no seu sacerdote, vai para o mal caminho, porque o
padre está se convertendo em “ladrão” de ovelhas, levando à perdição aqueles a quem deveria salvar. Portanto,
esta é a primeira grande crise prevista por Ratzinger, a crise no interior da Igreja. A partir daí, você vê de tudo na
sociedade civil. Quais as consequências disto? Um laxismo moral, ou seja, vale tudo pelo prazer e o que importa é
se sentir bem, ainda que se tenha de prostituir o corpo ou romper a unidade familiar, tudo às custas do sentir-se
bem. No entanto, se esquecem de que o “sentir-se bem” não dá sentido à vida, porque a realização da vida é mais
do que esse sentimento.
cancaonova.com: A sociedade tem criado novos conceitos de família, aceitando o aborto e uma ditadura
laicista. Muitos dizem que a Igreja está perdendo os seus fiéis, porque não se adapta aos novos
conceitos da sociedade. A Igreja deve adaptar-se a essas novas mudanças?
Padre Demétrio: É verdade que a Igreja está perdendo seus "fiéis", porque quer ser fiel à verdade. Eu penso que
para isto nós devemos olhar para o capítulo 6 do Evangelho de São João, no discurso do pão da vida, quando Jesus,
pregando na sinagoga de Cafarnaum, diz que o Seu corpo é verdadeira comida e o Seu sangue verdadeira bebida; e
quem não comer o Seu corpo e não beber o Seu sangue, não terá vida. Nós sabemos que naquele momento houve
uma grande murmuração, pois alguns diziam "esta palavra é dura demais" e foram embora. A pergunta de Jesus é:
"E vós, quereis ir também?". Pedro, em nome dos apóstolos, responde: “Senhor, a quem iríamos nós, só Tu tens
palavras de vida eterna”. É interessante ver que Jesus não muda o Seu discurso, porque muitos O abandonaram.
Subintende-se que por trás das palavras do Evangelho, mesmo à custa de perder seguidores, Jesus não volta atrás.
A Igreja, que quer ser fiel a Seu Mestre, faz a mesma coisa. Por mais que os homens não queiram pertencer à
Igreja por causa desta palavra dura demais, a Igreja não pode prostituir a sua doutrina, que na verdade não é dela,
mas é recebida do Senhor.
A Igreja tem de ser fiel à sua doutrina, tem que ser coerente com o Evangelho que recebeu de seu Divino Esposo
até o fim, até às últimas consequências. O Papa fala, inclusive, do martírio, dizendo que somos chamados a
derramar o nosso sangue como tantos santos derramaram para defender a Eucaristia, para defender a Divindade de
Jesus Cristo. A Igreja continuará, até o fim, até a volta do Senhor, a ser fiel ao que recebeu do seu Senhor, porque
ela não é detentora do Evangelho, mas é defensora, guardiã dele.
Para nós, não importam os números; gostaríamos que todos os homens estivessem, visivelmente, no seio da
Igreja. Como pastores, desejamos que todos os homens estejam no seio da Igreja, conheçam a verdade e se
salvem. Nós não podemos falar o que os homens gostariam de ouvir, mas o que eles precisam ouvir, que é a
verdade para a sua salvação. Portanto, não podemos corromper o Evangelho de Jesus Cristo para sermos mais
queridos pelos outros. Quem quer agradar muito aos homens, acabará desagradando a Deus.