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A FORTALEZA NA FILOSOFIA DE TOMÁS DE AQUINO1.

Bernardo Veiga de Oliveira Alves2

Resumo: Neste artigo investiga-se a natureza da fortaleza no pensamento filosófico de


Tomás de Aquino e as outras virtudes que lhe são potenciais.

Palavras-chave: Aquinate; Fortaleza; Virtude.

Abstract: This paper investigates the nature of the Courage in philosophical thought of
Aquinas and other virtues to it potential.

Keywords: Aquinas; Courage; Virtue.

1. INTRODUÇÃO.

No pensamento de Tomás, a fortaleza possui uma dimensão dupla. Por


um lado pode ser tomada diretamente no âmbito sobrenatural, como uma
virtude infusa ou um dom especial divino, como se encontra nos mártires. Por
outro lado, é possível também compreender o seu aspecto natural, como uma
virtude tanto para fins imanentes, quanto instrumento de fins sobrenaturais.
Nas páginas seguintes faremos um recorte desse aspecto propriamente
filosófico da virtude da fortaleza. Tomaremos principalmente a sistematização
feita por Tomás na Suma Teológica e, na medida do conveniente à nossa
proposta, também utilizaremos outros textos de base, tanto do próprio
Aquinate, quanto de comentadores.

2. A VIRTUDE CARDEAL DA FORTALEZA.

1
Sobre as referências das obras de Tomás de Aquino: se a obra for citada no original latino,
ela será extraída do site: http://www.corpusthomisticum.org. Se já houver uma tradução
para o português, será utilizada a bibliografia indicada ao final, caso contrário, será nossa.
As datas das obras são, em muitos casos, conjeturais e controversas. Utilizaremos
principalmente as indicações de Torrel (2004). Eth. Sententia libri ethicorum (Comentário à
Ética a Nicômaco), 1271-2. STh. Summa Theologiae (Suma Teológica), 1265-73. Vir.
Quaestiones disputatae de Virtutibus (Questões disputadas sobre a virtude), 1271-2.
2
Doutorando em filosofia pela UFRJ – bolsista Capes. E-mail: bvoa@hotmail.com.

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A fortaleza é uma virtude3 especial4 que tem por objeto o medo,


principalmente das coisas mais difíceis que podem impedir a vontade de
seguir a razão, e também se refere à audácia, na medida em que afasta o terror
e garante persistir diante das maiores dificuldades5. Cabe a ela, de fato, manter
a vontade firme de modo que não ceda ao medo de um mal físico. E como o
maior dos males físicos é a morte, seu objeto mais específico é ser firme
diante do medo da morte6, que pode ser entendida usualmente dentro de uma
guerra7 ou numa certa conveniência particular, quando se expõe a certo perigo
mortal para se realizar uma boa ação8. Seu principal ato é resistir, de maneira
que se consiga se firmar imóvel diante de tais perigos e consiga reprimir o
medo que ocasionaria a fuga9. E para tal resistência, o forte emprega a ira no
seu ato, enquanto paixão moderada segundo a razão10, como instrumento da
sua ação11.
Repare também que a fortaleza é um exemplo claro de virtude que se
manifesta propriamente nos atos repentinos. Aquele que consegue, diante de
um perigo mortal que surgiu rapidamente, não fugir, este é o forte, porque
possui perfeitamente a fortaleza e está pronto para resistir aos males
prontamente. Os que resistem depois de alguma deliberação não são
propriamente fortes, mas começam a se inclinar melhor à virtude12.
Seus vícios opostos em excesso é a intrepidez (intimiditatis) e a audácia
(audacia). Elas são semelhantes enquanto se opõe à fortaleza, mas divergem
em relação ao modo do excesso13. A primeira consiste na falta de medo
necessário diante dos perigos de morte14; a segunda, no excesso da paixão da
audácia15.
Seu vício oposto em escassez é o temor (timor), que consiste no medo
excessivo de perder a própria vida diante dos perigos mortais. Repare que esse
mesmo termo também é empregado em uma paixão, seu objeto é o “mal

3
STh., II-II, q.123, a.1, rep.
4
STh., II-II, q.123, a.2, rep.
5
STh., II-II, q.123, a.3, rep.
6
STh., II-II, q.123, a.4, rep.
7
“A virtude da fortaleza concerne propriamente ao perigo de morte que nos expõe a
guerra; mas os fortes se comportam igualmente bem na presença de qualquer outro perigo
de morte.” (GILSON, 1974, p. 318, tradução nossa)
8
STh., II-II, q.123, a.5, rep.
9
STh., II-II, q.123, a.6, rep.
10
STh., II-II, q.123, a.10, sol.1.
11
STh., II-II, q.123, a.10, sol.2.
12
STh., II-II, q.123, a.9, rep.
13
STh., II-II, q.127, a.2, sol.3.
14
STh., II-II, q.127, a.2, rep.
15
STh., II-II, q.127, a.2, rep.

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futuro difícil ao qual não se pode resistir”16. Só haverá um vício quando tal
paixão se der de modo desordenado contrário à razão. Quando, por exemplo,
se foge de um medo que a razão ordenada fugir, não há vício17. Porém o vício
do temor consiste em uma inclinação desordenada de um amor muito forte a
si mesmo. Em certo sentido, pode-se dizer que todo vício possui parcialmente
temor, enquanto procede de uma concupiscência desordenada, enquanto teme
perder algum bem, como o avarento teme perder o dinheiro e o intemperante
o seu prazer, mas como o temor máximo é o medo da morte, o temor
propriamente, enquanto vício, consiste no medo de perder a vida diante de
uma possibilidade real18.
A intrepidez se dá de três modos. De um, quando o indivíduo ama
menos do que o devido a sua própria vida e possui certo desprendimento dos
bens temporais, por isso se joga diante de um perigo grave sem temer a
própria morte. Ela pode ocorrer também pela pouca consideração das
circunstâncias, sem que se acredite que aquele perigo seja real, ou que possa
efetivamente acontecer com ele, o que implica certa soberba, pois presume a
si e desdenha os outros e a realidade. Ou mesmo por falta de inteligência,
quando não se é capaz de considerar os perigos. Em resumo, a intrepidez é
decorrência da falta de amor próprio, ou por soberba, ou por estupidez19.
O vício da audácia possui raízes na paixão que leva o mesmo nome. Tal
paixão, contrária ao temor, consiste em enfrentar o perigo iminente, porque se
acredita na vitória20. De modo semelhante à ira e ao temor, enquanto paixão, a
audácia não é um vício, ela só toma o nome de vício quando tal
enfrentamento se dá por um excesso contrário à razão21.

3. AS PARTES DA FORTALEZA.

Quanto às partes da fortaleza22, em relação ao ato de atacar, ou


enfrentar, há a magnanimidade (magnanimitas), disposição segura para realizar
ações grandiosas, e a magnificência (magnificentia), que consiste, de um modo
geral na invenção e administração de um projeto grandioso. Em relação à ação
de resistir há, a paciência (patientia), que consiste em suportar voluntariamente

16
STh., I-II, q.41, a.2, rep.
17
STh., II-II, q.125, a.1, rep.
18
STh., II-II, q.125, a.2, rep.
19
STh., II-II, a.126, a.1, rep.
20
STh., I-II, q.45, a.1, rep.
21
STh., II-II, q.127, a.1, rep.
22
“Ser bravo ‘em certo aspecto’ é um tipo de verdadeira fortaleza encontrada nas suas
partes potenciais.” (HOUSER, 2002, p.308, tradução nossa)

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os bens árduos em função de um meio maior, e a perseverança (perseverantia),


que consiste numa permanência estável em manter uma decisão23.
A virtude da magnanimidade24 implica uma grandeza da alma, como se
o magnânimo tivesse orientado a algo grandioso conforme a razão25. Seu
objeto principal é a honra26, por ser considerada o maior bem exterior
absolutamente e porque está bem próxima da virtude27. Mas não qualquer
honra e sim as maiores, pois as virtudes que se referem a honras médias são
chamadas pelo nome do excesso: amor da honra (philotimia) ou ausência de
amor de honras (philotimia), porque são louvados os que amam as honras com
moderação, ora pelo excesso do amor, ora pela ausência. Mas ao magnânimo
cabe o amor às honras maiores, própria do que é mais difícil em relação às
honras e à virtude28. Ele tende a realizar grandes obras em todas as virtudes,
na medida em que todas elas merecem suas respectivas honras29.
Ela é parte da fortaleza enquanto precisa manter firmeza diante das
dificuldades para a realização dos grandes atos30. Por isso é necessário ter certa
confiança moderada em si mesmo para buscar e atingir os grandes bens31.
Além disso, é necessária uma segurança, que implica a liberdade na alma,
afugentando o medo, de maneira que mantenha a esperança de atingir tais
bens32.
E também é conveniente que haja riquezas para que se possa realizar
grandes bens, sendo elas seus instrumentos. Mas tais riquezas não são
essências e aqui Tomás se aproxima mais de Sêneca do que de Aristóteles (na
solução do argumento, concorda com Sêneca), dizendo, “que a virtude se
basta a si própria porque ela pode existir até mesmo sem estes bens
exteriores”, porém complementa, “precisa deles para operar de maneira mais
expedita.”33 O magnânimo possui uma posição intermediária entre o apreço e

23
STh., II-II, q.128, a.único, rep.
24
STh., II-II, q.129, a.3, rep.
25
Tomás esclarece, recorrendo a Aristóteles que a magnanimidade é um meio-termo,
mesmo que esteja voltada à grandeza, como seu extremo: “deve-se dizer que Aristóteles diz
o seguinte: ‘O magnânimo está no extremo da grandeza’, porquanto tende ao máximo; ‘mas
está no meio-termo, porque tende para o máximo obedecendo sempre a regra da razão.
‘Ele se estima exatamente à medida de seu próprio valor’, porque não tem nenhuma
pretensão de ser maior do que é.” (STh., II-II, q.129, sol.1)
26
“A honra é prestada a alguém devido a alguma excelência sua: e assim, é um sinal e
testemunho daquela excelência que está no honrado.” (STh., I-II, q.2, a.2, rep.)
27
STh., II-II, q.129, a.1, rep.
28
STh., II-II, q.129, a.2, rep.
29
STh., II-II, q.129, a.4, sol.1.
30
STh., II-II, q.129, a.5, rep.
31
STh., II-II, q.129, a.6, rep.
32
STh., II-II, q.129, a.7, rep.
33
STh., II-II, q.129, a.8, sol.1.

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o desprezo aos bens exteriores. Ele os considera enquanto úteis à prática das
obras das virtudes, mas não se preocupa com a sua perda, caso haja, porque
não os julga algo suficientemente grandioso34, nem se alegra demais quando a
conquista, nem se entristece demais quando os perde. E neste aspecto, quanto
às disposição em relação aos bens – não tanto quanto à autossuficiência da
virtude –, o Aquinate se assemelha a Aristóteles35.
Ele também retoma certa descrição aristotélica do magnânimo em
relação a algumas disposições práticas. Citaremos todo o argumento de
Tomás que visa justificar algumas posições de Aristóteles em relação ao
comportamento magnânimo:

deve-se dizer que estas propriedades36 ligadas à magnanimidade não são


censuráveis, mas altamente louváveis. Que o magnânimo não se lembre
daqueles de quem recebeu benefícios, isto se deve entender no sentido de que ele
não sente o menor prazer em receber benefícios quando não pode oferecer
benefícios maiores em retribuição aos que recebeu. Isto pertence ao
reconhecimento perfeito, que ele quer exercer por um ato supereminente,
como desejo de exercer os atos de todas as virtudes. – Está dito a seguir que
ele é indolente e lento, não que ele não cumpra seu dever, mas porque não
se ocupa de todas as espécies de assuntos, reservando-se apenas para os
maiores, que lhe convém. – Está dito ainda que ele recorre à ironia37. Mas não
por falta de sinceridade, como se ele atribuísse a si próprio, com falsidade,
atos mais baixos, ou negasse ações nobres praticadas. É porque não quer
mostrar toda a sua grandeza, especialmente à multidão de inferiores a ele.
Aristóteles diz na mesma passagem que cabe ao magnânimo “ser grande
para com aqueles que possuem as honras e os bens da fortuna, mas
moderado com as pessoas de condição média". – Está dito ainda que ele não
pode viver como os outros, num convívio familiar, “se não forem amigos”,
porque evita a adulação e a hipocrisia que são marcas de almas pequenas.
Mas vive com todo mundo, grandes e pequenos, de maneira conveniente. –
Está dito finalmente que ele prefere as coisas inúteis: mas não quaisquer, mas
somente as boas, isto é, as honestas. Pois em tudo antepõe a honestidade à

34
STh., II-II, q.129, a.8, sol.2.
35
Tomás concorda plenamente com essa passagem de Aristóteles: “O homem de grandeza
de alma [magnânimo], como foi dito, diz respeito especialmente à honra. Entretanto,
observará a devida medida com relação à riqueza, o poder e a sorte (boa ou má) em geral, já
que estas o podem atingir; não se regozijará excessivamente na prosperidade e nem se
entristecerá demasiado na adversidade; pois ele não se importa muito mesmo com a honra,
que é o maior dos bens externos (uma vez que o poder e a riqueza só são desejáveis em
função da honra que trazem, pois, ao menos, seus possuidores desejam ser honrados por
causa deles) e assim, para quem até mesmo a honra é uma coisa pequena, também serão
indiferentes as demais coisas.” (1124a13-19)
36
Referentes ao texto de Aristóteles ao longo do livro IV, cap.3 da Ética a Nicômaco.
37
A ironia em Tomás consiste em dizer menos do que se é, mas neste caso, haveria uma
ação próxima à ironia, não propriamente ela, que não seria condenável, como uma boa
maneira de se depreciar. (STh., II-II, q.113, a.1. rep.)

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utilidade, como algo maior. O útil serve para remediar uma insuficiência, o
que é contrário à magnanimidade.38

Assim o Aquinate visa esclarecer algumas passagens da descrição do


magnânimo em Aristóteles, buscando ao máximo se aproximar da Ética a
Nicômaco. Mostra que o magnânimo sabe lidar com o grande e o pequeno sem
perder a sua disposição de se voltar às coisas mais nobres e grandiosas.
Contudo, Tomás busca um meio-termo entre a grandiosidade da alma e
a reta consideração de si mesmo na humildade39, virtude não propriamente
aristotélica. Há no homem uma grandeza e uma fraqueza, de modo que cabe
ao virtuoso desejar coisas grandes, pela magnanimidade40, sem descurar do seu
estado de natureza frágil, suscetível a perdas e ganhos41. Ser grandioso implica
também reconhecer seus próprios limites e contingência naturais.
Seus vícios opostos do excesso são três: a presunção42 (praesumptio), a
ambição43 (ambitione) e a vanglória44 (inani). A presunção consiste em alguém
procurar fazer algo que está além da própria capacidade. Ela visa uma
desordem do plano divino, por ir contra a ordem habitual que se descobre na
natureza45. Isso pode ocorrer de três maneiras: em relação ao aspecto
quantitativo, “quando alguém se atribui um saber ou virtude que de fato não
tem”46; em relação ao gênero da coisa, quando alguém se estima melhor pelos
bens que possui; e pode ocorrer também quando se deseja alcançar algo que
está acima das nossas possibilidades47.
E quando o excesso contrário à magnanimidade se dá mais pelo desejo
desordenado de honra do que procurar fazer algo além do que se pode, tal
disposição é o vício da ambição. Repare que para Tomás a honra é algo
positivo, ao ter a sua excelência reconhecida, ela serve para ser útil aos outros.
Mas o problema é desejá-la desordenadamente e isso ocorre de três maneiras:
de uma, porque alguém deseja ser reconhecido por algo que não tem; de

38
STh., II-II, q.129, a.3, sol.5.
39
STh., II-II, q.161, a.1, rep.
40
“Magnanimidade e humildade não são realmente opostas, uma vez que elas se encaixam
em duas áreas diferentes do esquema das virtudes. Magnanimidade é um tipo de coragem,
enquanto humildade cai na temperança. Humildade dá aquele autocontrole sobre querer
bens difíceis de obter (boni ardui), mas quando eles são apropriados para nós possuí-los, a
magnanimidade nos dá a coragem para ir atrás deles (IIa IIae, q.161, a.1).” (HOUSER,
2002, p. 311, tradução nossa)
41
STh., II-II, q.129, a.3, sol.4.
42
STh., II-II, q.130, a.2, rep.
43
STh., II-II, q.131, a.1, rep.
44
STh., II-II, q.132, a.2, rep.
45
STh., II-II, q.130, a.1, rep.
46
STh., II-II, q.130, a.2, sol.3.
47
STh., II-II, q.130, a.2, sol.3.

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outra, porque deseja ser honrado sem se referir a Deus; e a terceira, sem ter o
desejo de colocar o seu reconhecimento a serviço dos outros. Assim ter
ambição é se inclinar de modo excessivo à honra.48
O terceiro vício da vanglória se opõe à magnanimidade49 pelo apetite
desordenado da própria glória. Deve-se considerar que Tomás usa o termo
glória para indicar a manifestação de alguma coisa bela que agrada os homens,
tanto um bem corporal quanto espiritual, de maneira que indique que o bem
de alguém se torne conhecido de muitos e receba a aprovação geral. Mas tal
termo pode ser tido num sentido mais vasto, não é importante a quantidade
de pessoas que reconhecem, mas pelo menos um pequeno grupo ou mesmo a
própria pessoa que possui determinado bem. E esse desejo de glória de si
mesmo não é vicioso quando moderado. O vício consiste numa glória vazia,
vã, quando esse reconhecimento não tem sentido. E isso se dá de três
maneiras: primeira, em relação à realidade a qual se refere para se gloriar,
quando julga que uma coisa é gloriosa, mas não é; segunda, quando busca a
glória, ser reconhecido, por alguém que não poderia julgar com segurança
aquele aspecto; e terceira, quando não se deseja glória em relação a um fim
devido.50
Tomás, seguindo o raciocínio de Gregório, diz que a vanglória é um
vício capital e não a soberba51. Pois, entre os bens, a glória confere maior
excelência ao homem, enquanto explicita a manifestação de algum bem que
por natureza deve ser amado e honrado por todos. Tal excelência é máxima
em relação aos bens, tanto pelo que tem em si mesma, quanto pelo
reconhecimento e aceitação dos outros, de maneira que o seu desregramento
pode gerar muitos vícios52.
São sete as filhas da vanglória: a jactância (iactantia), a ânsia de
novidades (novitatum praesumptio) a hipocrisia (hypocrisis), a teimosia (pertinacia), a
discórdia (discordia), a disputa (contentio) e a desobediência (inobedientia). Como o
fim da vanglória é a manifestação da própria excelência, a pessoa pode fazer

48
STh., II-II, q.131, a.2, rep.
49
“Porque quando alguém é louvado, ou recebe alguma demonstração de reverência e
admiração, se torna brilhante e conhecido dos outros. E como a magnanimidade concerne
às honras, como também já foi dito, por via de consequência concerne também à glória.”
(STh., II-II, q.132, a.2, rep.)
50
STh., II-II, q.132, a.1, rep.
51
“Gregório faz da soberba, ‘a rainha de todos os vícios’ e apresenta a vanglória, que nasce
diretamente da soberba, como um vício capital. E isto parece razoável. A soberba, como
veremos mais adiante, implica um apetite desordenado de excelência. Todo bem apetecível
é causa de alguma perfeição e excelência. É a razão pela qual os fins de todos os vícios se
ordenam para o fim da soberba. Por este motivo se vê que a soberba exerce uma espécie de
causalidade geral sobre outros vícios, e não deve ser incluída entre os princípios específicos
dos vícios, que são os vícios capitais.” (STh., II-II, q.132, a.4, rep.)
52
STh., II-II, q.132, a.4, rep.

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isso de dois modos, diretamente ou indiretamente. De modo direto, por


palavras, o que se chama de jactância; por atos, se eles forem verdadeiros e
fundamentados a ponto de causar admiração, há a ânsia de novidades para
sempre gerar essa admiração e reconhecimento. Se esses atos não forem
verdadeiros, ocorre a hipocrisia. De modo indireto, quando alguém quer
mostrar-se superior aos outros, o que se dá de quatro maneiras: pela
inteligência, a teimosia, quando ficamos obstinados com a nossa opinião e não
conseguimos aceitar qualquer outra opinião mesmo que ela pareça melhor;
quanto à vontade, a discórdia, quando há certa obstinação em manter a sua
vontade sem concordar com os outros, mesmo quando a concordância pareça
ser o melhor; pela linguagem, a disputa, quando alguém briga com gestos e
gritos; e quanto à ação, a desobediência, quando não se deseja executar de
forma alguma a ordem de algum superior53. No modo direto, predomina um
desejo excessivo de mostrar-se, enquanto no indireto parece haver mais uma
obstinação da própria posição em relação aos outros.
O vício relativo à escassez ou deficiência se chama pusilanimidade
(pusillanimitate), quando a pessoa se recusa a visar o que é proporcionado a ela,
de modo que permanece abaixo da sua capacidade54. Ela se opõe à
magnanimidade como a diferença entre a pequenez e a grandeza que cada
uma gera na alma55. Porém ela pode ser considerada de três maneiras. Na
primeira, enquanto se opõe propriamente à magnanimidade, como o
magnânimo deseja as coisas grandes conforme a razão, enquanto o pusilânime
se retrai ou nem as considera. Na segunda, enquanto a causa da
pusilanimidade, que consiste em ignorar a si mesmo, a sua condição, pelo
medo de falhar no que se considera indevidamente incapaz. Na terceira,
quanto a seu efeito, quando se recusa a atingir determinadas coisas grandiosas,
mesmo quando se é digno. Assim, a pusilanimidade se opõe propriamente à
magnanimidade, pela distinção de razão conforme o modo grandioso ou
apequenado de inclinação aos grandes bens56.
Há outra virtude ligada à fortaleza, como secundária em relação à
principal, que também está no irascível e tende a algo árduo e difícil57, mas não
53
STh., II-II, q.132, a.5, rep.
54
STh., II-II, q.133, a.1, rep.
55
STh., II-II, q.133, a.2, s.c.
56
STh., II-II, q.133, a.2, rep.
57
“As duas virtudes [fortaleza e magnificência] ‘coincidem’ em ‘lutar pelo que é árduo e
difícil’ em face dos obstáculos a serem superados, uma coincidência que situam ambas as
virtudes na parte ‘emocional’ da alma. Elas diferem no tipo e quantidade de dificuldade a
ser enfrentada. As dificuldades da magnificência enfrentam – tem a coragem para gastar
dinheiro em projetos caros, por exemplo – é ‘muito menos do que o perigo para a pessoa’.
Fortaleza [courage] e magnificência, então, são formalmente similares enquanto
materialmente diferentes, o que coloca a magnificência sob a virtude cardeal da fortaleza,
como uma de suas partes potenciais.” (HOUSER, 2002, p.314, tradução nossa)

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enquanto os perigos de morte e sim coisas menores relativas às dificuldades


que provêm de grandes gastos materiais, conforme a razão58, que se chama
magnificência59. Ela, tomada no sentido próprio, dá-se ao produzir uma
grande obra que visa as coisas religiosas60 e públicas61, que pode ter diferentes
razões de bondade, tanto em grande quantidade, em valor e em dignidade62.
Ela se diferencia da magnanimidade, porque esta é mais geral e visa algo de
grande em qualquer matéria, enquanto a magnificência visa a grandeza da obra
a ser feita63.
Mas, para tender a executar uma grande obra, é necessário ter certas
despesas proporcionadas à obra e ter um amor moderado aos recursos, para
se desprender deles e realizar tal obra64. E até aqui tanto Aristóteles quanto
Tomás concordam – o que é razoável – na necessidade dos gastos para se
gerar a obra magnificente65. E a magnificência pareceria uma virtude exclusiva
para os aristocratas que conseguiriam fazer grandes obras. Aristóteles, pois,
toma uma posição afirmativa e é bem claro em relação a esse ponto:

Mas em todas essas matérias, como foi antecipado, a grandeza do gasto


deve ser julgada com referência à pessoa que desembolsa o dinheiro, isto é,
à sua posição e recursos, pois o gasto é algo que deve ser proporcional aos
recursos adequados e não apenas à ocasião como também ao doador.
Consequentemente, um homem pobre é incapaz de ser magnificente, uma
vez que não dispõe dos recursos para efetuar uma grande despesa

58
“A magnificência se situa de fato em um extremo, considerada a quantidade do que é
feito. Mas consiste em um meio-termo, se considerada a regra da razão, da qual ela não se
desvia nem por excesso nem por defeito.” (STh., II-II, q.134, a.1, sol.2)
59
STh., II-II, q.134, a.4, rep.
60
Tomás se utiliza da noção de serviço aos deuses que Aristóteles atribui entre as obras do
magnificente (1122b19s) para justificar a construção das grandes obras de honra a Deus,
como as catedrais do seu tempo: “Ora, as obras produzidas pelo homem são ordenadas
para um fim. Mas nenhum dos fins das obras humanas será tão grande quanto a honra que
se deve a Deus. Dessa forma, a magnificência faz principalmente obras grandes dirigidas
para a honra de Deus. E é por isso que Aristóteles acrescenta: ‘os gastos mais louváveis são
aqueles que acompanham os sacrifícios oferecidos a Deus e são, aliás, os que o
magnificente mais pratica.’” (STh., II-II, q.134, a.2, sol.3)
61
“O segundo gênero das despesas honráveis são aqueles feitos magnificamente, com
relação ao bem público, por exemplo, quando alguém dá generosamente à comunidade
algo útil e necessário com magnificência e distinção.” (Eth., IV, 7, 2)
62
STh., II-II, q.134, a.2, rep.
63
STh., II-II, q.134, a.2, sol.2.
64
STh., II-II, q.134, a.3, rep.
65
Aristóteles diz: “a marca do homem magnificente, no gasto de qualquer tipo, [é] produzir
um resultado magnífico (pois este é um padrão dificilmente superado), e um resultado
proporcional ao custo.” (1123a17-19.) E Tomás concorda: “O uso do dinheiro como meio
para realizar uma grande obra é da alçada do magnificente. E tal uso não é possível sem
grandes despesas.” (STh., II-II, q.134, a.3, sol.2)

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adequadamente; o homem pobre que tenta ser magnificente é tolo porque


gasta desproporcionalmente em relação aos seus recursos e, além do que
deve, ao passo que um ato exibe virtude somente quando é executado da
maneira certa. Grandes benefícios públicos se ajustam àqueles que possuem
recursos convenientes originários de suas próprias atividades, ou de seus
ancestrais ou parentes, e àqueles que são muito bem nascidos, que têm
prestígio e outros semelhantes, posto que nascimento, prestígio, etc.
possuem um elemento de grandeza e distinção.66

Repare que Aristóteles é enfático no aspecto aristocrático e seletivo


dessa virtude. Apenas alguns, bem nascidos, providos de grandes bens,
poderiam ser tidos como magnânimos, porque poderiam dispor de grandes
riquezas para executar as grandes obras. Nesta virtude, Aristóteles deixa mais
claro a não universalidade das virtudes, cabendo apenas a sua possibilidade
aos que tem uma grande quantidade de recursos.
Tomás, porém, enfatiza mais o elemento da interioridade da virtude e
menos a execução da obra grandiosa e considera uma possibilidade em que o
pobre poderia ser magnânimo, mesmo sem poder fazer uma obra
absolutamente grandiosa, mas dentro de uma bondade relativa, na sua
disposição:

Deve-se dizer que o ato principal da virtude é aquela escolha interior que a
virtude pode comportar sem que se tenha fortuna exterior. E desta maneira
até um pobre pode ser magnificente. Mas para os atos exteriores da virtude
os bens da fortuna são necessários, como instrumentos. Desta forma, o
pobre não pode exercer o ato exterior da magnificência naquilo que é
absolutamente grande. Mas pode exercê-lo talvez naquilo que é grande
relativamente a uma determinada obra que, embora pequena em si mesma,
pode ser feita magnificamente, de acordo com a medida que comporta.67

Neste aspecto encontramos a influência de Sêneca, pois ele está


respondendo a uma objeção de que as virtudes bastam por si, considerada por
Sêneca68. Ou mesmo, poderia ser considerada a influência do cristianismo69,
traduzida para um elemento universalista da virtude, de modo que a fé cristã
teria influenciado o conteúdo do aspecto humano e filosófico de Tomás,
mantendo certa distinção, por ser uma virtude moral humana. Assim, é
possível dizer que o pobre pode ser magnificente não por ter executado atos
absolutamente de magnificência, mas por ter tal disposição adquirida tanto

66
EN., 1122b23-33.
67
STh., II-II, q.134, a.3, sol.4.
68
STh., II-II, q.134, a.3, obj.4.
69
Um exemplo seria a passagem bíblica da doação da viúva que teria doado o pouco que
tinha ao templo, e teria sido elogiada por ter doado mais do que os outros (Lc 21, 1-14; Mc
12, 41-44).

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67
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por ações relativamente magnificentes, quanto também pela virtude da


liberalidade, pelo desprendimento moderado no gasto do dinheiro70, mesmo
no limite que o pobre possui. Neste sentido o pobre se aproximaria tanto da
virtude da magnificência que poderia ser tido como magnificente:

Pode-se dizer que quem adquiriu o hábito da liberalidade no uso de um ato


modesto, não adquiriu ainda o hábito da magnificência, mas possuindo o
hábito da liberalidade, está em disposição próxima para adquirir o hábito da
magnificência, por um ato modesto. Portanto, por estar próximo, parece o
mesmo que se a tivesse, porque o pouco que falta parece como se nada
faltasse, como se diz no livro II da Física.71

Deste modo, pelo desprendimento adquirido na liberalidade, o pobre


poderia ser magnificente, mesmo sem executar tais atos propriamente
magnificentes. Mas caso ele ficasse rico, ele ainda poderia ter a disposição e
teria certa facilidade em ser magnificente se fosse realmente liberal. Tomás diz
que possuiria a magnificência como em uma potência próxima, tão próxima
que teria pouca dificuldade em efetivá-la, se tivesse o dinheiro necessário e
fosse conveniente, mas essa potência próxima é tão inclinada à virtude, que na
prática parece que ele já a tem72. Ele faz uma distinção entre o ato da virtude e
o seu hábito, de modo que alguém poderia ter o hábito sem exercer o ato73.
De modo semelhante isso também pode ser aplicado à magnanimidade74, não
em relação aos gastos, mas a certa preparação e disposição para uma virtude

70
STh., II-II, q.117, a.2, rep.
71
Vir., q.5, a.2, sol.5.
72
“Há outras virtudes morais que aperfeiçoam o homem num grau eminente, como a
magnificência e a magnanimidade. E como o exercício nas matérias dessas virtudes não é
comum a todos, pode alguém ter outras virtudes morais, sem possuir em ato os hábitos
dessas virtudes, falando das virtudes adquiridas. No entanto, uma vez adquiridas as outras
virtudes, ele as possui em potência próxima. Quando, na verdade, alguém alcançou, pelo
exercício, a liberalidade em pequenos gastos e donativos, adquirirá com pequeno sacrifício,
o hábito da magnificência, se lhe sobrevier a abundância de dinheiro, assim como um
geômetra adquire, com pouco estudo, a ciência de um conclusão na qual nunca pensara.
Ora, é comum dizer-se que possuímos aquilo que facilmente podemos conseguir, segundo
a palavra do Filósofo: “o que falta por pouco, parece não faltar nada.” (STh., I-II, q.65,
sol.1, rep.)
73
“Pode também ocorrer que alguém tenha o hábito da virtude sem a exercer em ato. Um
pobre, por exemplo, pode ter o hábito da magnificência sem no entanto exercê-la.” (STh.,
II-II, q.137, a.1, sol.2)
74
“Desta forma, o ato da magnanimidade não convém a todos os homens virtuosos, mas
apenas aos maiores. Mas, as virtudes são conexas entre si de acordo com princípios da
prudência, e da graça, ou seja, pela coexistência de seus hábitos na alma, seja em ato seja
em disposição próxima. E assim, alguém, a quem não convém o ato da magnanimidade,
pode ter o hábito da magnanimidade que o dispõe a cumprir tal ato quando for o caso.”
(STh., II-II, q.129, sol.2.)

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68
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mais grandiosa, porém a magnificência deixa mais claro essa disposição de


união de uma virtude por potência próxima pela impossibilidade de exercê-la
sem grandes riquezas. Essa conexão se dá, como vimos, pelo vínculo entre as
virtudes morais produzido pela prudência, que já predispõe a pessoa a agir de
tal forma corretamente, que qualquer outra virtude moral estará unida a ela
pela prudência que ela mesma auxiliou – e foi auxiliada por ela – para se
realizar75.
Seu vício oposto do excesso, que consiste em gastar excessivamente nas
grandes obras, pode ser chamado de dilapidação ou desperdício (consumptio)76.
E o vício oposto da escassez se chama parcimônia (parvificentia)77. O primeiro
se dá por ultrapassar a proporção da regra dos grandes gastos, pelo
desperdício de dinheiro, sem um cálculo preciso. O parcimonioso, porém,
tende a agir de modo pequeno, gastar pouco e de má vontade78. Ele visa
sempre a uma obra pequena, e tem um medo excessivo de gastos de dinheiro
especialmente nas coisas grandiosas, e também nas pequenas coisas79.
Há outra virtude que é parte da fortaleza, como virtude secundária em
relação à principal. Seu nome é paciência, que consiste em suportar qualquer
tipo de mal, enquanto a fortaleza visa propriamente os perigos mortais80.
Aquela visa proteger o bem da razão contra a tristeza, de maneira que não
abata a razão e nos faça suportar os males com ânimo81. Mas acerca dela,
Tomás defende uma posição fortemente teológica, e diz que só é próprio da
noção de paciência82 quando possui o auxílio da graça pela caridade83, negando

75
“As virtudes adquiridas são causadas pelo propósito; e é necessário que sejam causadas
simultaneamente no homem que se propõe adquirir uma virtude; e não adquirirá, se não
adquirir, ao mesmo tempo a prudência, com a qual se tem todas as virtudes.” (Vir., q.5, a.2,
sol.10)
76
STh., II-II, q.135, a.2, rep.
77
STh., II-II, q.135, a.1, rep.
78
STh., II-II, q.135, a.1, sol.3.
79
STh., II-II, q.135, a.1, sol.2.
80
STh., II-II, q.136, a.4, sol.1.
81
STh., II-II, q.136, a.1, rep.
82
“O Aquinate defende que a verdadeira paciência deve ser capaz de se deparar com esse
teste final, uma vez que ele definiu a virtude como o ‘limite’ ou ‘perfeição’ (ultimum) de uma
capacidade. Dessa forma, sua definição de paciência é como sua caracterização de fortaleza,
que é definida pela sua habilidade de permanecer firme contra o maior perigo – o perigo de
morte.” (DEYOUG; MCCLUSKEY; DYKE, 2009, pp. 222-3, tradução nossa)
83
“Se a paciência é a virtude que nos faz suportar por Deus se voltando para a felicidade do
céu, a virtude especial da paciência, na concepção do Aquinate sobre ela, deve ser infusa,
uma virtude cristã. À luz disso, ele imediatamente conclui que, ‘Paciência, na medida em
que é virtude, é causada pela caridade... a partir disso é claro que a paciência não pode ser
obtida sem a ajuda da graça.’ (IIa IIae, q.136, a.3). O Aquinate não intenta negar a
existência de um tipo de paciência secular – o tipo conhecido por Cícero; mas no fim, tal

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69
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certo peso da realidade natural84. Noções como as provações por amor à


pátria, pelas dores em uma cama de hospital, de uma paciência estritamente
humana e adquirida, levariam a uma imperfeição tal da noção de paciência que
só valeria suportar por causa do fim que a graça pode trazer85. A paciência,
assim, explicita a tensão que há na construção de uma ética filosófica em
Tomás, pois lida diretamente com a noção do sofrimento e da capacidade de
suportá-lo. Há, pois, um valor adquirido por suportar e não cometer ações
desonestas86, cuidar da saúde do corpo e da alma87, e tal resistência seria uma
parte da fortaleza, não a paciência (patientia) perfeita defendida pelo Aquinate,
mas uma imperfeição, de modo que ela estaria aguardando, enquanto certa
predisposição humana, o auxílio da graça, na liberdade de Deus, para se tornar
efetivamente uma virtude conforme a sua noção própria. De um modo geral
todas as virtudes adquiridas possuem uma perfeição relativa88, o que não está
na noção de paciência, pois ela seria uma virtude moral plena e infusa,
enquanto tem sua causa direta na caridade89.
Outra virtude parte da fortaleza, como virtude secundária à principal, é
a perseverança, que consiste em permanecer com firmeza diante de algo
difícil, resistir firmemente à dificuldade advinda de uma longa duração de uma
ação boa, exceto em relação aos perigos mortais, que é próprio da fortaleza90.
Compete-lhe, pois, uma continuidade mesmo longa para se manter na ação
boa91.
Do ponto de vista de uma virtude adquirida, ela pode ser imperfeita ou
perfeita. Ela é imperfeita quando, por exemplo, é necessário permanecer em
moderação pela virtude da temperança, mas as paixões ainda estão muito
acesas, como no continente, então há uma luta para se perseverar na
moderação, pois a própria virtude da temperança, quando não desenvolvida,
prejudica a da perseverança, pois a faz mais dificultosa, porque há maior luta e
sofrimento para se perseverar no sofrimento causado pela moderação que está
em luta e sofrimento contra as paixões. Mas, neste sentido, a perseverança é
perfeita, quando é menos difícil resistir, pois já há uma profunda harmonia
entre as paixões e a indicação da razão. Já não há luta entre paixão e vontade,
ou quando há, ela é pequena o suficiente de modo que cause uma dificuldade

paciência, como a tristeza perdura, é mundana e inadequada.” (HOUSER, 2002, p.314,


tradução nossa)
84
STh., II-II, q.136, a.3, rep.
85
STh., II-II, q.136, a.3, rep.
86
STh., II-II, q.136, a.3, obj.2.
87
STh., II-II, q.136, a.3, obj.3.
88
Vir., q.1, a.9, sol.7.
89
STh., II-II, q.136, a.3, rep.
90
STh., II-II, q.137. a.2, rep.
91
STh., II-II, q.137, a.1, rep.

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70
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moderada, pois não está na noção de perseverança o grau de dificuldade e sim


a razão da bondade da ação92. Repare que Tomás enfatiza mais a razão de
bondade da virtude do que a sua dificuldade, porque a sua ética é voltada para
a disposição do indivíduo a realizar fácil e prontamente o bem segundo a
razão. Sempre haverá dificuldades, mas o virtuoso, lidará bem com elas de
modo que pareçam menores para ele93 e nisso consiste a educação ética, em
facilitar a inclinação ao bem segundo a razão, de modo que haja prontidão e
harmonia entre as potências da alma. Isso ficará mais claro quando formos ver
mais pra frente a noção de continência e a sua relação com a temperança.
O Aquinate também faz uma distinção sutil entre a perseverança, a
virtude da constância (constantia), todas contidas na fortaleza. Tanto a
perseverança quanto a constância consistem em persistir firmemente num
bem, mas se distinguem quanto à causa de tal continuidade. Na perseverança,
há a ênfase de vencer a dificuldade pela longa duração do ato, enquanto na
constância a dificuldade provém de algum obstáculo externo. E para ele, a
perseverança é mais essencial à razão de fortaleza, porque a duração do ato
está mais ligada ao ato da virtude do que a um obstáculo externo94, e de
alguma forma a própria constância pertenceria à perseverança95, como a
perseverança em relação à fortaleza. Desta forma, é possível resumir a
distinção destas duas virtudes e da paciência, tomada do ponto de vista
imperfeito e mais geral. Todas consistem em resistir e se manter firmes numa
ação boa – que não seja um perigo de morte – diante das adversidades. A
paciência não se deixa abater pela tristeza, a perseverança resiste apesar da
duração da dificuldade e a constância suporta os obstáculos exteriores.
Tomás também indica certas características da perseverança
semelhantes a da paciência, como vimos. Porque ela é uma virtude moral
infusa96 com a qual Deus inclina o homem a permanecer no bem para seu fim
último97. Ele a distingue de três modos, mas todos dependentes da graça
divina. De um, semelhante ao dito por Aristóteles, de modo que esteja voltada
a resistir durante as dificuldades de longa duração. De outro, em um hábito
pelo qual o homem se coloca o firme propósito de perseverar no bem até o
fim da vida. E de outro, certa continuação, que não é propriamente um
hábito, em que se persevera de fato até a fim da vida. Todos precisam do
auxílio divino para perseverar nesses três aspectos, inclusive o primeiro, mais
próximo da ética aristotélica.98

92
STh., II-II, q.137, a.1, sol.1
93
Vir., q.2, a.2, sol.1.
94
STh., II-II, q.137, a.3, rep.
95
STh., II-II, q.137, a.3, s.c.
96
STh., II-II, q.137, a.4, rep.
97
STh., I-II, q.114, a.9, rep.
98
STh., I-II, q.109, a.10, rep.

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71
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Mas porque a perseverança é uma virtude moral infusa99, não é possível


dizer que possui a mesma equivalência que a de Aristóteles. Pode-se, no
máximo, estabelecer-se a comparação pelos seus aspectos externos, assim
como a paciência, neste sentido, todo aquele que persevera no bem teria em
parte essa disposição, mas não propriamente a virtude, segundo Tomás, pois
dependeria do auxílio divino para concedê-la e motivá-lo à felicidade última.
Porém o elemento de resistir às dificuldades seria comum, apesar das
motivações serem distintas o suficiente para o Aquinate dizer que ela necessita
da graça para atuar, na continuidade de não fazer um mal grave. Pois ele toma
a inclinação ao estado de perfeição, sem nenhum erro, de modo que nenhuma
pessoa poderia, nesta vida, estar confirmada naturalmente e totalmente no
bem pela fraqueza humana, que pode ocasionalmente falhar e não perseverar
no bem.100 Tomás está atacando o pensamento pelagiano101 de uma natureza
tão forte que perseveraria no bem pelas próprias forças, e faz isso, dizendo
que a ética de Aristóteles precisa de certo auxílio divino, porque a natureza do
homem é tal que precisa da perseverança divina, por sua natureza decaída102.
Aqui a noção de natureza decaída advinda da fé cristã influencia a sua visão
geral de homem, tanto que certos aspectos humanos não podem ser realizados
sem a ajuda divina, de modo que numa natureza humana melhor, como
Tomás supõe, na anterioridade de um primeiro ato desordenado, poderia
perseverar pelas próprias forças, o que já não é possível no estado
desordenado da vida presente103. Paciência e perseverança andam juntas para
manter a integridade de um ideal de vida que só pode se esquivar de atos ruins
graves e se ater ao bem da virtude pelo auxílio divino. Não que não possam

99
“O fim da vida humana requer um tipo especial de perseverança, que acompanha ‘as
virtudes cujos atos permanecem ao longo da vida,’ as virtude teologais da ‘fé, esperança, e
caridade’ (IIa IIae, q.137, a.1, ad1). Porque essas virtudes são infusas, a perseverança que as
acompanha deve ser derivada da graça (IIa IIae, q.137, a.4).” (HOUSER, 2002, p. 316)
100
Ver., q.24, a.7, rep.
101
Ver., q.24, a.7, s.c.4.
102
Segundo Rolduc, Maritain defende que a ética aristotélica considera o homem em um
estado de natureza incorrupta, ao passo que possui uma natureza decaída, por isso que aos
princípios de tal ética é conveniente que se acrescentem certas inspirações teológicas, que
tratam o homem conforme o seu estado atual. (ROLDUC, 2008, p. 49)
103
Tomás se utiliza da visão de Agostinho para esclarecer essa distinção de uma natureza
atual que precisa de um maior auxílio para perseverar no bem: “deve-se dizer que como diz
Agostinho, ‘o que foi dado ao primeiro homem, não foi o perseverar, mas o poder de
perseverar pelo livre-arbítrio’; pois não havia então na natureza humana nenhuma
corrupção que tornasse a perseverança difícil. ‘Mas agora, o que é dado pela graça de Cristo
aos homens predestinados não é apenas o poder de perseverar, mas perseverar. Assim, o
primeiro homem, sem sofrer nenhuma ameaça, usou de seu livre arbítrio para desobedecer
a Deus, apesar das ameaças d’Ele, e não se manteve naquela felicidade quando era tão fácil
não pecar. Ao passo que os predestinados, cuja firmeza o mundo atacava, permaneceram
firmes na fé.” (STh., II-II, q.137, a.4, sol.2)

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absolutamente errar, porque sempre podem pela liberdade atual, mas teriam
certa dificuldade de fazer o erro, pela inclinação ao bem concedida pela
virtude infusa104.
Os vícios opostos à perseverança são a teimosia (pertinacia), pelo
excesso, e a moleza (mollitie), pela deficiência. A teimosia se opõe à
perseverança enquanto certa obstinação além da medida, em que se obstina
em sua vitória, pois os teimosos são apegados às próprias opiniões mais do
que o conveniente105. Sua obstinação consiste em querer mostrar
superioridade e por isso é considerada uma filha da vanglória, como um vício
derivado106.
Por outro lado, a pessoa que tem o vício da moleza se opõe à
perseverança na medida em que tende a renunciar facilmente ao bem pelas
dificuldades encontradas. O mole tende a ceder à pressão, mesmo as não tão
intensas. Quem cede às pressões muito violentas e fortes não é tido como
mole, mas o que cede às pressões fracas, que se afasta do bem pelas tristezas
que surgem da falta de prazer107. Muitos moles tendem a se refugiar no jogo,
pelo alívio e descanso que a diversão pode proporcionar, não tanto pelo
prazer relativo à virtude da eutrapélia, como se verá, mas pelo alívio e repouso
vindo do jogo108.

4. CONCLUSÃO.

Assim terminamos a investigação sobre a fortaleza. Portanto, vimos que


ela visa os males dos perigos mortais, e que as suas virtudes secundárias, visam
resistir ou enfrentar outros males menores. Investigamos também que Tomás
faz uma distinção importante entre ter a disposição próxima da virtude e
praticar o seu ato, de modo que o pobre poderia ser magnificente. E também
encontramos certa tensão da defesa de uma estrita filosofia moral no
Aquinate, ao considerar a paciência e a perseverança, pois só são virtudes na
sua noção enquanto são virtudes infusas. A fortaleza perfeita só se encontra
no âmbito sobrenatural, quando dirigida pelas virtudes infusas, de modo que o
âmbito filosófico se dá como instrumento, segundo Tomás, para a realização
última da felicidade perfeita.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

104
Ver., q.24, a.9, rep.
105
STh., II-II, q.138, a.2, rep.
106
STh., II-II, q.138, a.2, rep.
107
STh., II-II, q.138, a.1, rep.
108
STh., II-II, q.138, a.1, sol.3.

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Edson Bini. Bauru: Edipro, 3ªed. 2009a.
DEYOUNG, Rebecca Konyndyk; MCCLUSKEY, Collen; DYLE, Christina
Van. Aquinas’s Ethics: Metaphysical foundations, Moral theory, and
Theological context. Notre Dame: University of Notre Dame Press.
2009.
GILSON, Étienne. Saint Thomas Moraliste. Paris: Place de la Sorbonne. 2ªed.
1974.
HOUSER, R. E. The Virtue of Courage (IIa IIae, qq. 123-140). In POPE,
Stephen J. (org) The Ethics of Aquinas. Washington: Georgetown
University Press. 2002.
ROLDUC, Grootseminarie. A Ética de Santo Tomás de Aquino. In ALARCON,
Enrique (org). Atualidade do tomismo. Rio de Janeiro: Sétimo Selo.
2008.
TOMÁS DE AQUINO. A caridade, a Correção fraterna e a esperança. Tradução e
edição Paulo Faitanin e Bernardo Veiga. Campinas: Ecclesiae.
2013.
______. As virtudes morais. Tradução e edição Paulo Faitanin e Bernardo Veiga.
Campinas: Ecclesiae. 2012.
______. Suma Teológica – Volume VII. Edição bilíngue coordenada por Carlos-
Josaphat Pinto de Oliveira. São Paulo: Loyola. 2005a.
______. Suma Teológica – Volume IV. Edição bilíngue coordenada por Carlos-Josaphat
Pinto de Oliveira. São Paulo: Loyola. 2005b.
TORREL, Jean-Pierre OP. Iniciação a Santo Tomás de Aquino: Sua pessoa e obra.
São Paulo: Loyola. 2ª ed. 2004.

Site
http://www.corpusthomisticum.org, acessado entre os dias 18 de abril de
2014 e 7 de junho de 2014.

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