Você está na página 1de 31

O Ramayana

e a moral de um líder
Lúcia Helena Galvão
Maya, Lúcia
O Ramayana e a Moral de um Líder / Lúcia Helena
Galvão Maya. - Brasília: Edição Ad Astra, 2022

2
JAYA !

Saúdo a Rama, Senhor dos Mundos,


Renovador que és da Sagrada Chama,
Inspirador de nobreza e esperança,
por tua lembrança e a de tua saga,
Eterna saga da espécie humana.
Todos os seres, tuas ferramentas,
Todos lugares, teu Reino Eterno,
Tua própria vida nos alimenta,
Ser Radiante, implacável e terno.
Ainda é possível encontrar teus passos,
Nessa floresta indomada e escura.
Ainda é possível vencer o espaço
e resgatar, da sombria Lanka,
a nossa Sita, incansável e pura.

Eu me inclino a Rama, Senhor dos Mundos,


Tu nos renovas, Guardião do Dharma,
Voltamos a polir as nossas armas,
E retomamos nossas armaduras.
Por trás do aço, por trás das lâminas,
O nosso coração desperta e arde e clama,
Quem sofre e vibra em teu nome, Rama,
Jamais irá trilhar a terra em vão.
Ainda que trema o mundo ou a noite caia,
O tempo cessa ante teu Nome, Jaya!
E cessa a dúvida em meu coração.

3
ÍNDICE:

Introdução pg. 05
Nietzsche e a moral do nobre pg. 06
Apresentando nossa história pg. 09
Primeira parte: o Príncipe de Ayodhya pg. 10
Segunda parte: o Livro de Ayodhya pg. 13
Terceira parte: na floresta pg. 16
Quarta parte: o rapto de Sita e a viagem a Lanka pg. 19
Quinta parte: a última grande prova pg. 26
Conclusão pg. 29
Bibliografia pg. 31

Obs: a divisão em partes deste


trabalho não corresponde aos títulos
dos capítulos da obra “O Ramayana”.

4
INTRODUÇÃO

Neste pequeno livro, gostaria de demonstrar, através de exemplos retirados das páginas de um
clássico, alguns dos momentos mais difíceis que vive aquele ser humano a quem coube conduzir
outros homens. As duras decisões a serem tomadas por um dirigente ao confrontar as suas
limitações, as limitações daqueles a quem dirige, a necessidade de compaixão, abnegação,
paciência e entrega que são exigidas em níveis cada vez mais elevados, enfim, todas as
circunstâncias que pontuam a vida desse ser eminentemente solitário, que tem constantemente que
mergulhar em si mesmo e encontrar as bases para a fortaleza necessária à sua tarefa.

Ninguém melhor que um rei, um grande rei, talvez o maior de todos dentre os que houve na
história, para nos dar essa imagem inspiradora de que tanto necessitamos: Rama, Avatar de
Vishnu, glorioso e eterno rei de Ayodhya, a jóia resplandecente sobre a terra, pedra brilhante da
coroa do Grande Imperador.

Tomo por empréstimo, de início, algumas palavras do filósofo Friedrich Nietzsche, em sua
Genealogia da Moral, para nos ajudar a entender melhor essa moral praticada por Rama, a moral
dos nobres, tão clara e radiante, mas por vezes tão dura e exigente, como é característica própria de
qualquer coisa de valor. Como diz a famosa expressão francesa: “Noblesse oblige” (nobreza
obriga).

Enfim, como diria outro grande filósofo, o estóico Epíteto, pelas palavras de sua tradutora
contemporânea, Sharon Lebell (A Arte de Viver), “As sementes de grandeza no homem
necessitam de uma imagem para germinar e florescer”. O objetivo desse trabalho é apenas delinear
essa imagem, como um horizonte de possibilidades que possa nos elevar o ânimo e renovar as
esperanças no momento em que os limites ilusórios que criamos nos pareçam intransponíveis.

5
NIETZSCHE E A MORAL DO NOBRE

Qualquer admirador deste filósofo conhece a contundência com que ele costuma defender seus
argumentos; particularmente no que diz respeito à sua definição da moral, essa regra não encontra
nenhuma exceção. Nietzsche é demolidor na forma através da qual define como hipócrita, ilusória
e mesmo indesejável a moral defendida por seus colegas pensadores que se dedicaram ao assunto.
Já em “Além do Bem e do Mal”, podemos encontrar a seguinte colocação:

O que os filósofos denominavam “fundamentação da moral”, exigindo-a de si, era apenas, vista à
luz adequada, uma forma erudita da ingênua fé na moral dominante, um novo modo de expressá-
la (...) Ouçam, por exemplo, com que inocência quase venerável Schopenhauer apresenta a sua
tarefa, e tirem suas conclusões sobre a cientificidade de uma “ciência” cujos mestres mais
recentes ainda falam como as crianças e as velhinhas (...); o princípio, diz ele, a tese fundamental
em torno de cujo teor os éticos se acham verdadeiramente de acordo seria: neminem laede, immo
omnes, quantum potes, juve [não fere a ninguém, antes ajuda a todos no que possas]. (...) Quem
alguma vez não sentiu radicalmente a insipidez, a falsidade e o sentimentalismo dessa tese, num
mundo cuja essência é vontade de poder (...)?

Famosa é, a esse respeito, aquela expressão atribuída a Nietzsche, onde ele diz: “Onde encontro
um ser racional, encontro vontade de poder.”
E prossegue com seu raciocínio, de forma mais extensa, em outra obra, intitulada “Genealogia
da Moral”, onde encontra aquilo que acredita ser a verdadeira fundamentação da moral, a
nobreza:

A indicação do caminho certo me foi dada pela seguinte questão: que significam exatamente, do
ponto de vista etimológico, as designações para “bom” cunhadas em diversas línguas? Descobri
então que todas elas remetem à mesma transformação conceitual; que, em toda parte, “nobre”,
“aristocrático” é o conceito básico a partir do qual necessariamente se desenvolveu “bom”, no
sentido de “espiritualmente nobre”, um desenvolvimento que sempre corre paralelo àquele outro,
que faz “plebeu, comum e baixo” finalmente converter-se em ruim (...). Essa me parece uma
percepção essencial no que toca a uma genealogia da moral; que tenha surgido tão tarde deve-se
ao efeito inibidor que, no mundo moderno, exerce o preconceito democrático, no tocante a
qualquer questão relativa às origens (...)
A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera
valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que
apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação. Enquanto toda moral nobre nasce de um
triunfante “sim” a si mesma, já de início, a moral escrava diz não ao “outro”, ao “não-eu”, e
este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores, este necessário dirigir-

6
este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores, este necessário dirigir-
se para fora ao invés de voltar-se para si é algo próprio do ressentimento: a moral escrava
sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior para poder agir em absoluto; sua ação
é, no fundo, reação. O contrário sucede no modo de valoração nobre: ele age e cresce
espontaneamente, e busca seu oposto apenas para dizer “sim” a si mesmo com ainda maior júbilo
e gratidão. Seu conceito negativo, o”baixo, comum, ruim” é apenas uma imagem de contraste,
pálida e posterior em relação ao conceito básico, positivo, inteiramente perpassado de vida e
paixão: “nós, os nobres, os bons, os belos, os felizes!”. (...) considere-se que o afeto do desprezo,
do olhar de cima para baixo, do olhar superiormente, a supor que falseie a imagem do
desprezado, em todo caso, estará muito longe do falseamento com que o ódio entranhado, a
vingança do impotente, atacará, - in effigie, de maneira indireta, naturalmente – o seu adversário.
De fato, no desprezo se acham mescladas demasiada negligência, ligeireza, desatenção e
impaciência, mesmo demasiada alegria consigo mesmo para que ele seja capaz de transformar
seu objeto em monstro e caricatura. (...) Os “bem formados” se sentiam mesmo como “os
felizes”; eles não tinham que construir artificialmente a sua felicidade, de persuadir-se dela, de
menti-la para si, por meio de um olhar aos seus inimigos (como costumam fazer os homens do
ressentimento); do mesmo modo, sendo homens plenos, repletos de força e, portanto,
necessariamente ativos, não sabiam separar a felicidade da ação. Para eles, ser ativo é parte
necessária da felicidade (fazer bem = estar bem); tudo isso, o oposto da felicidade no nível dos
impotentes, opressos, achacados por sentimentos hostis e venenosos, nos quais ela aparece
essencialmente como narcose, entorpecimento, sossego, paz, “sabbat”, distensão dos ânimos e
relaxamento dos membros ou, numa palavra, passividade.

Enquanto o homem nobre vive com confiança e franqueza diante de si mesmo, o homem do
ressentimento não é franco, nem ingênuo, nem honesto e reto consigo. Sua alma olha de revés; ele
ama os refúgios, os subterfúgios, os caminhos ocultos. Todo o escondido lhe agrada como o seu
mundo, sua segurança, seu bálsamo.(...) Mesmo o ressentimento do homem nobre, quando nele
aparece, se consome numa reação imediata; por isso, não o envenena. Não conseguir levar a
sério por muito tempo seus inimigos, suas desventuras, seus malfeitos inclusive, eis o indício de
naturezas fortes e plenas, em que há um excesso de força plástica, modeladora, regeneradora,
propiciadora do esquecimento. (...). Um homem tal sacode de si, com um movimento, muitos
vermes que, em outros, se enterrariam; apenas neste caso é possível, se for possível em absoluto,
o autêntico “amor aos inimigos”. Quanta reverência aos inimigos não tem um homem nobre! E
tal reverência já é uma ponte para o amor... ele reclama para si o seu inimigo como uma
distinção; ele não suporta inimigo que não aquele no qual não existe nada a desprezar, senão
muito a venerar! Em contrapartida, imaginemos “o inimigo” tal como o concebe o homem do
ressentimento, e precisamente nisso está seu feito, sua criação: ele concebeu o “inimigo mau”, “o
mau”, e isto como conceito básico, a partir do qual também elabora, como imagem equivalente,
um “bom”: ele mesmo!

7
(...) Mas coloquemo-nos no fim do imenso processo, ali onde a árvore finalmente sazona seus
frutos, onde a sociedade e a sua moralidade do costume finalmente trazem à luz aquilo para o
qual eram apenas o meio; encontramos, então, como o fruto mais maduro desta árvore, o
indivíduo soberano, igual apenas a si mesmo, novamente liberado da moralidade do costume,
indivíduo autônomo supra-moral (pois “autônomo” e “moral” se excluem), em suma, o homem
da vontade própria, duradoura e independente, o que pode fazer promessas, e nele encontramos,
vibrante em cada músculo, uma orgulhosa consciência do que foi finalmente alcançado e está nele
encarnado, uma verdadeira consciência de poder e liberdade, um sentimento de realização. Este
liberto ao qual é permitido prometer, esse senhor do livre arbítrio, esse soberano, como não
saberia ele da superioridade que assim possui sobre todos os que não podem prometer e
responder por si, quanta confiança, quanto temor, quanta reverência desperta – ele merece as três
coisas – e como, com esse domínio sobre si, lhe é dado também o domínio sobre as circunstâncias,
sobre a natureza e todas as criaturas menos seguras e mais pobres de vontade? O homem “livre”,
o possuidor de uma duradoura e inquebrantável vontade, tem nessa posse a sua medida de valor:
olhando para os outros, a partir de si, ele os honra ou despreza; e tão necessariamente quanto
honra os seus iguais, os fortes e confiáveis (os que podem prometer), ou seja, todo aquele que
promete como um soberano, de modo raro, com peso e lentidão, e que é avaro com a sua
confiança, que distingue quando confia, que dá sua palavra como algo seguro, porque sabe que é
forte o bastante para mantê-la contra o que for adverso, mesmo “contra o destino”, do mesmo
modo, ele reservará seu pontapé para os débeis doidivanas que prometem quando não podiam
fazê-lo, e o seu chicote para o mentiroso que quebra a palavra já no instante em que a pronuncia.
O orgulhoso conhecimento do privilégio extraordinário da responsabilidade, a consciência dessa
rara liberdade, desse poder sobre si mesmo e o destino, desceu nele até sua mais íntima
profundidade e tornou-se instinto, instinto dominante; como chamará ele a esse instinto
dominante, supondo que necessite de uma palavra para ele? Mas não há dúvida: este homem
soberano o chamará de “sua consciência”.

O fechamento deste último trecho não pode deixar de nos trazer à memória a definição de
consciência como “posse de si mesmo”, ou seja, privilégio dos homens livres e nobres, ou que
caminham para isso.

Essa longa transcrição se justifica, logo na abertura deste trabalho, para ressaltar bem algumas
características que veremos muito presentes na figura de Rama como um rei, um nobre altivo,
inclinado ao esquecimento das ofensas recebidas, livre, soberano em sua vontade, capaz de se
comprometer e se impor às circunstâncias, fiel à sua consciência, onde residem os traços
fundamentais dessa moral atemporal, expressão da lei entre os homens, que parece ser também a
sua mais espontânea expressão, que emana dele como um “instinto”.

8
APRESENTANDO NOSSA HISTÓRIA

Junto ao Mahabharata, o Ramayana é considerado o maior clássico da literatura épica sânscrita. O


Ramayana consiste de 24.000 versos em sete cantos, datado pelos historiadores como tendo sido
composto entre 500 a.C. a 100 a.C., ou quase contemporâneo às versões mais antigas do
Mahabharata. Sua autoria é atribuída a Valmiki, salteador de estradas convertido em sábio ao ser
despertado por um mestre, que se converte em grande asceta. Trata-se da história de Rama,
príncipe de Ayodhya, que nada mais era do que uma encarnação do Deus Vishnu, o Senhor
Narayana, descido à terra com a finalidade de derrotar o demônio Ravana, que, indestrutível pelos
deuses, desafiava e ameaçava todo o Universo com seu terror e destruição.

Banido por sua madrasta, tomada por ciúmes, às vésperas de sua coroação como rei, Rama vai
para o exílio na floresta por 14 anos, onde tem sua bela esposa Sita raptada por Ravana, o rei dos
demônios, e acaba por comandar um exército de animais leais a ele na invasão da cidade de Lanka
e na derrota do temível demônio. Retorna a Ayodhya, então, e reina com justiça e sabedoria por
11.000 anos. Algumas das adversidades enfrentadas por ele durante o desenrolar desta trama e a
sabedoria e moral impecável com que as enfrenta, é o que nos propomos a mostrar a seguir,
através da seleção comentada de alguns trechos desta obra, uma pequena amostragem para que
possamos nos aproximar um pouco mais e entender melhor como se processa a moral de um líder,
de um dirigente, de um rei.

9
PRIMEIRA PARTE: O PRÍNCIPE DE AYODHYA

Essa primeira parte, que narra desde a infância de Rama até o momento em que desposa a bela
Sita, é quando, pela primeira vez, Valmiki nos apresenta uma descrição mais completa da figura de
Rama: sua conduta, seus hábitos e virtudes, que nos permitem prenunciar as qualidades que farão
dele um grande rei. Segue a transcrição desta imagem transmitida por Valmiki:

A natureza de Rama era tranqüila e livre. Ele não dava bons conselhos, não dizia aos outros o que
julgava ser melhor nem lhes apontava os erros. Sabia quando devia poupar e quando devia
gastar. Sabia julgar com muita justeza os homens, mas conservava o juízo para si. Sabia ler os
corações. Conhecia suas falhas melhor do que as dos outros. Sabia falar bem, e argumentar numa
cadeia de palavras eloqüentes. Meio benefício valia mais para ele do que cem ferimentos.
Acidentes maus nunca sucediam perto dele. Falava todas as línguas e era arqueiro perito, que
disparava setas de ouro; também não acreditava que o que preferia para si fosse sempre o melhor
para os outros.

Bondoso e cortês, Rama nunca ficava doente. Não censurava quem lhe falasse com desabrimento.
Afetuoso e generoso, mostrava-se amigo verdadeiro de todos. Tentava viver corretamente, e
descobriu que isso era mais fácil do que imaginara. Coletava os impostos do rei de tal maneira
que mais da metade das pessoas não se incomodava em pagá-los. Príncipe notável, todos os
kosalas o amavam, se excetuarmos uns cinco ou seis bobos. Era hospitaleiro e o primeiro a dirigir
a cada convidado palavras de boas vindas. Sossegado e forte, com as mãos, dobrava um ferro,
mas também consertava a asa quebrada de um pássaro. Não se dava ares de palmatória do
mundo e também não exigia demais do Universo, de tal sorte que o seu prazer e a sua cólera
nunca deixavam de ter sentido.

Rama não trabalhava por muito tempo sem um feriado; não saía a caminhar até muito longe sem
parar para cumprimentar um amigo, nem falava muito sem sorrir. Os seus entretenimentos e
danças eram os melhores do mundo. Amava Sita; vivia a vida porque a esposa fazia parte dela.
Descobria, freqüentemente, um novo presente para os amigos. Não tinha medo de passar um dia
inteiro sem trabalho. O que quer que fizesse, enobrecia-o pela maneira como o fazia. Os hábitos
de Rama eram nobres.

E ainda, pela voz do auriga do rei, o chatrya Sumantra:

Quando Rama olha para nós, nossas dúvidas se dissipam, nossas dívidas se pagam. Tenho visto
Rama

10
Rama cavalgando pelos campos e, como pai que indaga dos filhos bem-amados, pergunta aos
professores: “Teus alunos te obedecem? E pergunta aos preceptores de armas: “Teus alunos
nunca caminham sem as suas armas?”(...) Ele conhece todos os nossos nomes. Dar-nos-ia todo o
seu tempo alegremente, se quiséssemos tomá-lo. Pergunta pelas nossas lojas, deseja o bem de
nossos filhos, de nossos lares, de nossas esposas e mais. Eu, Sumantra, o auriga, tenho-o visto
chorar nossas mágoas; eu o vi rir-se conosco em nossos festivais. (...) Se Rama me diz alguma
coisa, posso acreditar nela.

Essa descrição reúne, em poucas linhas, algumas das virtudes mais valiosas que todas as tradições
sempre atribuíram a um líder:

- Serenidade: como um ser humano cuja identidade está solidamente definida, Rama é “tranqüilo
e livre”, não determinado pelas circunstâncias, “ataráxico” na visão estóica, ou seja, incapaz de
deixar que os fatos alterem sua conduta.
- Afabilidade: é uma espécie de sóbria alegria que emana dos nobres, uma íntima satisfação que
provém de sua própria identidade, ou seja, de ser aquilo que se é: “...Rama não falava muito
tempo sem sorrir”. Além disso, sua generosidade natural os torna abertos e interessados nos
demais, inclinados a compartilhar, compreender, envolver a todos como seus filhos, o que lhes traz
um carisma próprio que só o amor desinteressado e generoso pode conceder.
- Ausência de crítica: exatamente por “conhecer a suas falhas melhor do que as dos outros”,
Rama é compassivo e discreto, não expondo as falhas alheias nem para os próprios que as
cometem se para isso não for solicitado (não dava conselhos, não dizia aos outros o que julgava
ser melhor).
- Bom uso da palavra: ao ter as idéias claras, essa lucidez de identidade e de destino se expressa
“numa cadeia de palavras eloqüentes”. Não é à toa que a concha que Arjuna usava como
instrumento musical para dar início à batalha, no Bhagavad Gita, a Devadatta, em sânscrito,
significa “Dom de Deus”. Ou seja, a palavra dos nobres é um dom de Deus para com seus
emissários, a fim de que levem a bom termo suas missões e trabalhem para o plano da natureza.
- Harmonia: Na música, a harmonia é a combinação entre silêncio e sons, que se refletiria em nós
como equilíbrio entre ações e pausas. “Rama não trabalhava muito tempo sem um feriado...”,
“Não tinha medo de passar um dia inteiro sem trabalho”, ou ainda “...eu o vi rir-se conosco em
nossos festivais”. É próprio de um líder saber harmonizar suas ações e marcar um ritmo saudável e
vital que será seguido como exemplo por todos os seus liderados. Essa harmonia, a que a medicina
chinesa diz ser fundamental para o equilíbrio do próprio corpo, dá a Rama a saúde e a resistência
que também é apropriada a um rei: “Bondoso e cortês, Rama nunca fica doente.” Ou seja, sua
bondade e cortesia, que também são uma forma de harmonia no plano emocional, expressam-se
em sua saúde física, pois é um presente para seus súditos contemplar e desfrutar da bondade,
beleza e justiça desse Rei.
- Diplomacia: é definida como uma forma de introduzir nossa vontade no mundo com o mínimo
dano possível. Rama faz cumprir as leis reais, cobra seus impostos e tributos, mas sabe fazê-lo de
maneira tal que “...mais da metade das pessoas não se importa em pagá-los”. Essa habilidade em
dosar a m

11
dosar a medida da força necessária a cada situação o faz capaz de expressar-se com intensidade ou
delicadeza, dependendo daquilo que o Dharma espera dele a cada momento: “...com as mãos
dobrava o ferro, mas também consertava a asa quebrada de um pássaro."
- Hábitos nobres: “Os seus entretenimentos e danças eram os melhores do mundo”. Ao escolher
para si “o melhor do mundo”, o rei, como referencial da conduta de todos aqueles que o estimam e
nele se espelham, trabalha na formação de caráter de seus comandados, de forma sutil e sem
pressão. Assim, ele educa seu povo pelo exemplo.

12
SEGUNDA PARTE: O LIVRO DE AYODHYA – UM NOBRE DIANTE DA
INJUSTIÇA E DA ADVERSIDADE

Essa parte da obra tem início quando, às vésperas da coroação de Rama como Rei, a esposa mais
jovem de seu pai, Kaikeyi, influenciada por uma escrava invejosa, solicita que o rei atenda a dois
pedidos que lhe concedera no passado, quando ela lhe salvara a vida. Pede que seu filho Bharata
seja Rei e que Rama seja banido para a floresta num exílio de 14 anos. Trata-se da oportunidade
para que Rama vá ao encontro do demônio Ravana e o derrote, missão para a qual veio ao mundo,
e o Dharma siga seu curso; mas os homens, ignorantes acerca dos mistérios que se ocultam por
trás da fachada dos acontecimentos, não o aceitam, e todos se revoltam. Todos, menos Rama, que
permanece sereno, seguro e inabalável, protegendo, inclusive, a madrasta que o deserdara de ser
amaldiçoada pelo próprio pai. Vejamos a seguir alguns trechos desta passagem, logo após o
anúncio de seu exílio por Kaikeyi:

Rama afastou-se. Parecia o mesmo de sempre, mas Lakshamana, assombrado, seguiu-o como num
atordoamento. Atravessaram o palácio, e Rama cumprimentou os amigos como sempre, não olhou
para o trono como se o cobiçasse, nem desviou dele os olhos. A Lua é clara e formosa e,
deslizando para trás de uma nuvem ou minguando, a sua visão continua sendo bela.

(...) Até o rei espera que Rama se recuse! - interveio Lakshamana – mas uma injustiça feita a
Rama parece não despertar nele cólera alguma; é como a semente atirada numa pedra...

E, em outra ocasião, junto à sua mãe, Kausalya, ele justifica a instabilidade do


comportamento da madrasta Kaikey:

Espero com paciência que abrais vossos olhos e vejais. Nenhum homem é sempre o mesmo. As
preocupações e os cuidados nos salteiam a todos. Reis governam mal um dia e trazem justiça a
todos no dia seguinte. (...) Homens podem encolerizar-se contra tudo no mundo e, mercê da sua
cólera, praticar grande bondade e praticar maravilhas de beleza. Pessoas que cuidam não se
preocupar com nada já salvaram mais vidas do que imaginam e, não obstante, se julgam sós e
desamadas.

Interessante retratar também as palavras de Vasishta, sábio brâmane do reino, ao se


encontrar com o revoltado auriga Sumantra:

Deixa ir a cólera, abandona a violência. (...) o meu ofício é acalmar, evitar, suavizar, olhar antes
de andar e pensar antes de falar. Os homens precisam ter leis, às vezes difíceis de cumprir, porém
mais difíceis de achar depois de perdidas. (...) Deixa de julgar os homens pelas exterioridades.(...)
O que está além do entendimento... é o Destino.

13
E ainda depois, diante do pai, Dasaratha, que, em desespero, pede a Rama que o desobedeça
e permaneça em Ayodhya

- Se eu te desobedecer, nenhuma outra boa ação, nenhuma riqueza, nenhuma força restaurará
meu bom nome. Cumpre a tua palavra e preserva os três mundos, mantém-nos seguros. A cada
promessa rompida, quebra-se um pouco do Dharma, e cada ruptura do Dharma torna mais
próximo o dia em que os mundos também terão que ruir. Quando o Dharma se tiver partido de
todo, os três mundos acabarão; serão destruídos mais uma vez. Se o homem faltar à sua palavra,
por que haverão as estrelas, lá em cima, de cumprir suas promessas de não cair? Por que o Fogo
não nos queimará a todos ou o Oceano não saltará sobre as praias e nos afogará?

Essa última passagem lembra um episódio que se conta acerca dos celtas, quando, chefiados por
Brennos, acampam às margens de um rio, próximo à Macedônia, no período em que reina
Alexandre, e ali permanecem, prudentes, à espera. Alexandre, então, escoltado por alguns
guerreiros, aproxima-se para certificar-se de suas intenções, e é recebido por uma comitiva de
Druidas, que lhe garantem não terem a intenção de invadir suas terras. Aproveitando a ocasião,
sabedor da fama dos guerreiros celtas, de não conhecerem qualquer espécie de medo, Alexandre
questiona os druidas:

- O que o seu povo teme?


- Apenas uma coisa: que o céu caia sobre a terra ou que o mar se levante de seu leito em direção
ao céu. Se nada disso acontece, é sinal de que a lei não foi rompida, e basta ao homem encontrar
seu lugar dentro dela e cumpri-la. Não há o que temer.

Essa mesma absoluta confiança no Dharma, essa certeza de pisar em um universo que é Cosmos, e
não Caos, podemos sentir no passo seguro e sereno de Rama para fora de Ayodhya. O Dharma
rege, e o ser humano tange seu instrumento com a maior maestria que lhe é possível para seguir
essa regência e compor com o conjunto; a melodia doce e mística da sabedoria pode ser ouvida
quando quem tange seu instrumento é alguém como Rama.

Sua firmeza é tanta que acaba por serenar e dobrar o ânimo revoltado do auriga Sumantra, que
concorda em levá-lo para fora da cidade. Vale a pena ver, nessa passagem, a saudação que faz ao
auriga o velho Brâmane Vasishta, feliz com a sua mudança de posição:

- Com que, então, ainda existe um bom coração no reino de Kosala! Vejo honra, vejo de novo o
Dharma de orgulhosos guerreiros, o Dharma da bondade e da bravura, que alegremente se desfaz
do corpo no campo de batalha. Vejo lealdade, habilidade e coragem mais uma vez! Este é o
Dharma Xátria de que me lembro. É bom de se ver, velho, é bom de se ver!

Mais uma vez, podemos relacionar o ânimo de Rama com uma antiga lenda celta, que fala acerca
do Rei Sabugueiro, que, na verdade, é um signo do zodíaco celta, erepresenta, para esse povo, o
caráter do rei perfeito

14
caráter do rei perfeito. Diz-se que havia um reino, à beira do mar, onde uma rainha muito vaidosa
afirma que sua filha seria mais bela que a Deusa dos Mares, Icoranda. O Deus do Mar, Lyr,
colérico com esta afirmação, lança enchentes, inundações e todo tipo de destruições sobre as terras
do reino como resposta a tamanho desrespeito. O rei daquelas terras, muito sábio, consternado
com o andamento dos acontecimentos e a falta de sabedoria de sua rainha, procura um oráculo
para saber o que fazer para aplacar a cólera dos Deuses. Este, então, lhe recomenda levar sua filha
até o cume de um rochedo, atá-la e abandoná-la ali, onde um monstro marinho viria ao encontro
dela. Apesar da revolta e da dor dos habitantes do reino, que não concordam ser a princesa
inocente a pagar pelos erros da mãe, o rei permanece sereno e, assim serenamente, cumpre cada
etapa do que lhe foi pedido, confiante de que, embora sua visão limitada de homem não pudesse
entender ou ver claramente, nada ocorreria que não estivesse dentro da lei e não obedecesse a um
propósito final: a justiça e a harmonia do universo. Por fim, a princesa é salva do rochedo por um
herói solar que surge, diante dos olhos de um pai sereno, que jamais duvidou.

Essa capacidade de confiar absolutamente no Dharma, por mais adversas que as circunstâncias se
mostrem, esse não hesitar em crer que não há solução ou caminho fora da lei do universo e não há
missão de vida maior que servi-la, isso é próprio do caráter dos reis, segundo os celtas. É uma
força moral que os faz inabaláveis diante das circunstâncias. Isso é Rama; isso é a nobreza de um
líder.

15
TERCEIRA PARTE: NA FLORESTA

Curiosamente, ao entrar na densa floresta, o foco volta-se mais para Lakshamana, seu irmão que
lhe acompanha no exílio, o qual é a sombra de Rama, seu duplo, vigilante ativo e defensor de seu
Senhor e de sua doce Sita, a velha trindade, mergulhada em seu exílio em uma floresta cheia de
sombras e perigos.

Logo no início da caminhada, encontram Guha, ser selvagem, rei daquelas terras, que os alimenta
e acolhe em uma clareira. Mas uma vez, enquanto dormem Rama e Sita, Lakshamana vela por
ambos. E lamenta-se com Guha por tudo o que lhes aconteceu:

- A culpa foi daquelas promessas.

- Não, diz Guha, os tais desejos foram apenas o instrumento cego do destino.(...)

- E por que Rama leva tudo isso adiante?

- Aprendi sozinho a linguagem dos pássaros e dos animais – disse Guha – e, prestando atenção ao
que eles falavam, ouvi-os dizer que o Oceano, de uma feita, conversou com os seus amados rios,
que lhe descreveram a terra e o que nela crescia. O Oceano já vira grandes árvores robustas,
carregadas até ele pelas águas das enchentes. Nunca avistara, porém, um caniço inclinado nem
uma haste de relva. Nenhum rio lhe trouxera uma planta submissa desse tipo, desde que o mundo
era mundo.

Ou seja, nunca o Oceano verá as águas dos rios trazerem até ele um ser humano como Rama. Toda
sua força moral vem da dócil submissão à Lei; de curvar-se ao Dharma, ele obtém sua retidão
moral e fortaleza ante a voracidade das águas do tempo que arrastam todo o rígido, todo aquele
que confia em seu própria fibra para se manter de pé, e que não mergulha suas raízes
profundamente nas terras do Dharma.

Também é curioso comentar acerca de como Lakshamana montava guarda, de como compreendia
perfeitamente seu papel de servir a Rama, e o espírito com que o fazia:

Rama e Sita adormeceram como um casal de leões numa enfesta desolada. Lakshamana
permaneceu de guarda naquele local solitário, na vasta floresta. Seus olhos azuis prescrutavam a
noite negra. Na verdade, ele montava guarda naturalmente; não tinha medo nem violência no
coração; não tinha inveja e, certa vez, jurara pelo Dharma obedecer a Rama. Nunca duvidara de
que Rama estivesse certo, nem de que fosse certo para ele obedecer a Rama.

16
Sem dúvidas ou hesitações, sem ódio ou medo; simplesmente dever, inspirado no amor ao seu
irmão celeste, rei banido em meio à floresta. Lakshamana é a melhor expressão do Dharma Xátria,
da moral guerreira. Vela na noite por seu Eu espiritual, e não concebe outra possibilidade de vida,
nem abriga dúvidas sobre a quem deve servir ou sobre a razão de fazê-lo.

Seguindo, podemos encontrar um outro belo momento quando Bharata, o irmão que
involuntariamente foi levado ao trono, que desconhecia toda a história, pois se encontrava ausente
de Ayodhya quando tudo aconteceu, ao retornar, deplora a atitude da sua mãe e, inconformado,
parte para a floresta em busca de Rama, tentando convencê-lo a voltar atrás. O diálogo entre
ambos dá-nos a oportunidade de ouvir um belo discurso de Rama em favor da fidelidade às
promessas e à palavra empenhada, aplacando os lamentos de Bharata:

Nosso pai, Dasaratha, era um muro de Dharma, como uma montanha. Descobriu-se, afinal, que a
Morte faz parte de toda a vida, e nunca poderemos escapar-lhe, e a morte não muda uma
promessa feita. No fim da vida, quando se queima esse corpo, o homem segue o caminho de
Brahma, se tiver vivido bem; toma um bom caminho, bem trilhado pelos homens do passado e,
olhando para trás, para a família que deixou, não merece ver filhos insensatos desprezando suas
últimas vontades. (...) a primeira traição pode ser fácil ou difícil, mas, à primeira traição, as
outras logo se seguirão. O coração, Bharata... atenta para o teu coração, e não o sufoques. Lá
vive a alma, clara, nunca manchada, vendo tudo o que fazemos ou tencionamos fazer. Assim,
deixa que o homem fique em silêncio e encontre seu coração. Esta é a única salvação segura. (...)
A vida é brilhante e colorida por um momento fugaz, como o pôr de sol. Depois, se vai, e quem
pode impedi-la de ir-se? Por conseguinte, Bharata, já que estás neste corpo perigoso, deplora tua
própria condição. Pranteia o teu eu, e não lamentes mais nada.

Mais uma vez, o simbolismo do centro, a busca desse Coração sutil que é o único capaz de situar o
ser humano acima da ação corrosiva do tempo: a alma prisioneira, a única grande questão digna de
se prantear. Todos os demais acontecimentos trabalham silenciosamente para a sua libertação, se
bem encarados e conduzidos. Faz-nos lembrar a velha máxima atribuída ao budismo Vajrayana:
“O bom piloto, que sabe onde está o seu porto, maneja as velas de tal forma que qualquer vento
lhe seja favorável”.

Mais adiante, ainda na floresta, Rama e seus companheiros encontram o sábio brâmane Agastya,
que lhe aconselha a ter cuidado com os demônios rakshasas, e lhe presenteia um arco e duas
flechas para defender-se dos mesmos, acompanhados da seguinte advertência:

Rama, os demônios não amam os homens; por isso, os homens precisam amar-se uns aos outros.

Inconformada com o presente recebido, Sita tenta convencer Rama a se livrar do arco e das setas, o
que introduz um outro belíssimo diálogo:

17
- Livra-te das setas de Agastya. Depois de todos esses anos, não precisamos delas para caçar
nossa comida, e elas se destinam apenas a matar demônios. Não carregues a guerra contigo, ou,
aos poucos, tua mente se alterará.

- Princesa – disse Rama – a guerra está dentro de nós. Não é nada que vem de fora. Nenhum
guerreiro descura das suas armas. Nunca abre mão delas. (...) Sita, enquanto pode, o guerreiro,
como os outros homens, desfruta a paz, mas o infortúnio e o perigo levam-no a inflamar-se de
cólera e a resistir.

- Como podes dizer o que é certo? Volveu Sita. Só fazes o que te apraz...

- O Dharma conduz à felicidade – disse Rama – mas a felicidade não pode conduzir ao Dharma.

Aqui podemos ver mais uma bela representação da guerra interior, a tensão vigilante que mantém
e garante a vida, própria de todo guerreiro, princípio essencial do Dharma Xátria. Por fim, essa
pérola de pensamento acerca da felicidade, que nos lembra o ensinamento de Immanuel Kant, em
sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes, quando afirma que a ação humana deve buscar
como objetivo o Dever, e não a felicidade, pois, caso contrário, a felicidade a ser encontrada não
será a humana, perderá a sua dignidade (“felicidade a qualquer preço”). A felicidade humana é
subproduto da busca e prática do Dever, e não pode ser buscada como fim em si, segundo esse
pensador; pois correria o risco de perder sua dignidade e desumanizar-se.

18
QUARTA PARTE: O RAPTO DE SITA E A VIAGEM A LANKA

Raptada Sita, na floresta, pelo rei-demônio Ravana, este a leva a Lanka, reino dos rakshasas, onde
a mantém prisioneira. Rama reúne a sua volta um exército leal de macacos e ursos e trama o
resgate. Para ter certeza de onde está Sita, o macaco Hanuman, dotado de poderes especiais, como
o de jamais morrer, mudar de tamanho à vontade e também voar, vai até Lanka antecipadamente,
para ver se Sita realmente está lá. Não é difícil localizar a fortaleza do rei Ravana:

- Encontra os prazeres dos sentidos, e ali encontrarás o Rei dos Demônios.

Depois de encontrar Sita e prometer-lhe a libertação, anunciando a vinda de Rama e de seu


exército, Hanuman vai à presença de Ravana e lhe diz:

- Senhor de Lanka, sou filho do Vento, rápido ou lento, irresistível em minha corrida. Sou um
animal; o que chamais de beleza não me faz girar a cabeça. Atravessei o oceano, como a pessoa
sem apego a desejos mundanos atravessa o oceano da existência. Retirai vosso coração de Sita,
ou este será um roubo custoso, pois foi graças à sua energia que saltei por cima do mar.

Sem sucesso, ele retorna para o lado de Rama:

- Lá vinha Hanuman, voando para a montanha de Rama; seja qual for o obstáculo, Hanuman,
como o amor forte, salta sobre ele e prossegue.

Essa capacidade do amor forte de transpor obstáculos, vem a raiz da coragem (core, coração) e o
heroísmo (de Eros, Deus do amor). Diante de Rama, com a resposta negativa de Ravana, os
animais imploram que ele dê início à batalha, liberte seus instintos submetidos a ele e deixe-os ir à
guerra:

- Convoca a nossa raiva animal, Rama; liberta a nossa violência! Somos animais selvagens,
insensatos...

Abatido pela tristeza e desânimo, Rama se retira e mergulha em tristes pensamentos. Subitamente,
ao perceber que essas formas mentais roubavam sua energia e lhe retardavam na tomada da
decisão justa, ele se levanta e diz, com toda a autoridade moral de quem pretende e pode realmente
cumpri-lo, pois começa por aplicar a justiça em si mesmo:

- Nunca mais sentirei desalento nem terei tristes pensamentos. Eu vos rejeito, eu vos desterro!

19
Mais adiante, já construindo a ponte de pedras que bóiam sobre o mar, prodígio de Nala, um
macaco filho de Vishvakarman, o grande arquiteto celeste, o exército de Rama recebe a adesão
inesperada de Vibhishana, príncipe rakshasa, irmão de Ravana, com seus guardiões. Justo e
íntegro, depois de alertar o irmão sobre seu erro, sem sucesso, Vibhishana resolve abandonar
Lanka e lutar ao lado de Rama. Sua presença, porém, causa desconfiança e temor nos animais, que
desejam matá-lo, no que são impedidos por Hanuman e pelo próprio Rama:

- Combaterei Ravana, mas não combaterei os inocentes. (...) Devemos censurar os que merecem
censura e favorecer os bons, onde quer que se encontrem.
Nunca mates alguém que não está lutando,
Nem um guerreiro que se esconde ou foge desnorteado,
Nem alguém que esteja ferido.
Embora ele tenha acabado de sustar a guerra,
Embora suas mãos astutas toquem um coração altivo,
A sua traição bloqueia o teu Dharma como uma barreira de fronteira,
Um muro de pedras.

Aqui temos uma bela demonstração da ética de guerra de nosso rei. Ainda que em batalha, não
reina o caos, e o Dharma deve ser preservado. Podemos lembrar da façanha de um imperador
histórico, César, que, em inferioridade numérica em relação aos inimigos, nas guerras gálicas,
convoca uma corte marcial para julgar um oficial que saqueara um cadáver, pois “...o corpo já não
é nosso inimigo, e pertence aos familiares”. A retidão dos argumentos de Rama consegue
abrandar e submeter o ímpeto dos animais, e Sugriva, o rei dos Macacos, afirma:

- Sem o Dharma, não há força nem poder. Isso não é prodígio para ti, Rama. Jaya, vitória para ti!

Ingressando em Lanka, o primeiro grande combate se dá com o carro de guerra do poderoso


general Prahasta, encarnação da cólera e dos impulsos negativos do plano astral, armado de
“...bombas e foguetes, venenos e invejas apavorantes, ilusões e sonhos maus, moléstias e
ambições, muitas crises e confusões.”, que é derrotado pelo macaco Nala, que o vence e mata
praticamente sozinho. O pequeno macaco, filho do Arquiteto Celeste, Vishvakarman, que foi
capaz de erguer a ponte entre os dois mundos, desmonta sozinho essa construção diabólica e
ilusória que protegia os portões de Lanka.

Em seguida, Ravana convoca para a batalha o seu irmão, o gigantesco rakshasa Kumbakarna, que
jazia profundamente adormecido, a própria imagem da inércia, que já havia devorado centenas de
homens. Uma vez desperto, ele alerta Ravana sobre o erro praticado e o destino inexorável desta
luta:

- Estes são os animais do Senhor Narayana, e esta é a morte dos Rakshasas.


- Não acredito nisto – disse Ravana. Não ouço as coisas de que não gosto!

20
- (...) Rama e Lakshamana são a chama e o vento que se encontram. Ninguém te dirá isso senão
eu? (....) O Dharma é a raiz de toda a boa sorte, e tu desarraigaste o Dharma; a felicidade alheia
é leve para o espírito, mas tu obscureceste os mundos.

Kumbakarna marcha sobre o exército dos animais, mas é abatido pelas flechas de Rama.

A seguir, chega o momento mais crítico da batalha. Como última alternativa e arma mais
poderosa, Ravana invoca seu filho, Indrajit, senhor das ilusões, capaz de ficar invisível e de mudar
de forma à vontade, aquele que aprisionou até o próprio Deus Indra em suas malhas, e que assim
se apresenta:

Oh! Homem, sou o demônio guerreio Indrajit, difícil de se ver. Luto invisivelmente, escondido da
tua vista por encantamento. Ataco por trás dos ventos selvagens do mau pensamento; apago
muitas luzes desguardadas. Eu te conheço, e as boas obras realizadas em tua vida serão o teu
único escudo quando precisares morrer e passar sozinho por mim, a caminho do outro mundo.
Podes esconder-te à noite, do Sol, mas nunca do teu próprio coração, onde vive o Senhor
Narayana. Todos os mundos observam a tua ação e, portanto, o perdão é Dharma.

Ravana o chama e ordena:

- Mata Rama e Lakshamana, mais nada.


- Sim! – conveio Indrajit. Conquanto seja uma ilusão, o meu fogo queimará, e a água afogará,
pois não é mais falsa do que a própria Morte.

Numa batalha terrível, usando de todas as suas artimanhas, Indrajit mata Rama, Lakshamana e
todos os demais, com exceção de Vibishana, Jambavan, o rei dos ursos, e Hanuman. O urso
Jambavan se dirige ao macaco e pede que ele salte sobre os mares e as terras e vá sem demora até
o Himalaia, à Montanha da Vida, onde brota uma erva capaz de trazer os mortos de volta. Sem
pensar, Hanuman, o filho do vento, voa rapidamente e traz consigo toda a montanha, trazendo todo
o exército de Rama de volta à vida. Apenas os rakshasas mortos, cujos corpos haviam sido
lançados dentro do mar, não ressuscitaram. Submersos nas águas, na matéria, não são alcançados
pela renovação da vida.

Assim que desperta, Rama estreita Hanuman em apertado e agradecido abraço. Este lhe diz as
seguintes palavras:

- Querido Rama – respondeu Hanuman – somos, com efeito, vossos bons amigos desde há muito, e
vossos companheiros de outros tempos vêm hoje aqui ajudar-vos. Somos os vossos avoengos.
Somos vossos antepassados, os animais, e vós sois o nosso filho, o Homem. Quanto à nossa
amizade, a verdade é que nos conhecemos há muito, muito tempo, Rama, e o número desses dias
perdeu-se no Silêncio...

21
Quando Sita fica sabendo do ocorrido, a velha Rakshasi que a acompanha, de nome Trijata, lhe
indaga:

- Querida Sita, como pode Hanuman realizar tantas proezas impossíveis com tamanha facilidade?
- Deve ser pelo poder do seu amor sincero a Rama – responde Sita.

Ao saber do que ocorrera, Ravana, furioso, invoca seu filho a voltar à batalha e eliminar, agora de
forma definitiva, Rama, Lakshamana e todo o seu exército. Porém, Indrajit lhe alerta que a derrota
dos rakshasas é iminente:

- Quando éreis jovem, vós vos fortalecestes seguindo o Dharma e fazendo sacrifícios, e por isso
governastes os mundos. Entretanto, depois que vos sentastes no trono do poder, negligenciastes o
Dharma, não tivestes cortesia para com a vida. Expulsastes a bondade, negastes liberdade ao
Universo e fizestes sofrer a Criação. Os mundos são vastos, mas vosso egoísmo os superou em
vastidão. Agora, vossos erros nos devoram. Nas florestas remotas, as vítimas que projetais
drenam nossa força, as fumaças das oferendas se espalham pelas dez direções da Terra, e homens
santos e inocentes prometeram que haveríamos de morrer. (...) O medo e a cólera dos indefesos
assumiram a forma de um exército de animais. A Morte vos conduziu. (...) O Dharma agora está
do lado de Rama. O seu exército e as suas armas são apenas os instrumentos materiais do tempo.
Agora Rama governa a Terra com todas as suas criaturas. Tudo é Dharma, Majestade; nada
existe além disso; só há Dharma no mundo.

Mais uma vez no campo de batalha, impedido de manter-se invisível graças à interferência de
Vibhishana, Indrajit trava um combate singular com Lakshamana:

Tão rápidas eram as mãos dos dois guerreiros, que ninguém podia vê-los fazer entalhes numa
flecha nem retesar os arcos, exatamente como ninguém pode ver a própria alma através dos
sentidos...

Lançando mão da flecha presenteada pelo sábio Agastya, Lakshamana corta a cabeça de Indrajit,
que tomba morto; uma seta de relva com lâmina de prata, união de terra e céu, liga que só poderia
ter sido forjada por um sábio, faz com que caia por terra o senhor das ilusões.

Inconsolável, Ravana enterra seu filho, ouvindo as palavras do general Suka:

- Majestade, a morte não é o fim da vida, e quando o curso do tempo precisa fazer que alguma
coisa aconteça, nem a riqueza, nem o desejo, nem a força podem operar a menor mudança.
Ravana, meu rei, este ainda é o caminho dos guerreiros: Quem morre pelo seu rei, conquista o
céu.

22
Ravana despede seu general Suka em direção à praia, com uma carta para Rama, a ser entregue
apenas pela manhã do dia seguinte. Então, sobe ao topo de uma torre de vigia de seu palácio e
dança. Dança, invocando os ventos; seus pés, batendo no chão, fazem tremer os mundos, e “...seus
vinte braços escuros se abriam e fechavam como as pétalas de graciosa flor que se erguesse e
caísse.” Ao descer as escadas de volta ao palácio, encontra-se com Kala, o Deus do Tempo, que o
esperava. Kala lhe diz que ele seria destruído por todas suas iniqüidades; que o tempo o devoraria.
Ravana nega, insulta e desafia o tempo, dizendo-lhe o seguinte:

- O Amor é eterno, e nós estamos fora do teu alcance.(...) Desta feita, foste tu quem cometeu o
engano...enfrentaste erradamente Ravana, aquele que jogou a vida por amor...e sempre jogará,
creio eu. (...) Toda perda de amor ou de vida é uma mentira, a velhice é uma ilusão, e apenas as
coisas más perecem. (...) Sê cuidadoso, vira-te e vai, recua diante de Ravana, que morrerá por
amor...pois o Bom Amor nunca morre. Oh Kala, afasta-te para um lado. Finge governar os estilos
e as modas, se quiseres, mas não fales em ficar sobre mim. Não passas de um pobre escravo.
Nada significas para mim. Ordeno-te que vás.

Valmiki, o poeta, ao ver essa cena, riu-se com gosto:

- Oh, Ravana, delicioso, belo...Bravo, Rei dos Demônios!

A bravura e, ao mesmo tempo, a argúcia de Ravana em encontrar algo de eterno em si e subjugar e


banir o tempo é admirada mesmo pelo sábio Valmiki, narrador a quem coube redigir o poema.
Ravana ama Sita, a bela, a alma humana, e a mantém afastada de Rama até ser derrotado pela
batalha final. Isso se repete, pois Ravana subjugou o tempo, e colocou-se acima dele. Sua
interferência é e será sempre necessária para elevar definitivamente Rama (e todos aqueles que
nele se inspiram) à condição de soberano. Isso fica claro na carta-testamento que ele envia a Rama
através do general Suka, e que é recebida e lida depois de sua morte.

Ao atravessar os portões de Lanka e postar-se, imponente, para a batalha, Ravana consegue


provocar uma expressão de admiração até mesmo de Lakshamana:

- Ele é um rei glorioso e magnífico – admitiu Lakshamana.

Trata-se da admiração aos inimigos de que tratava o filósofo Nietzsche no início deste trabalho,
que só é alcançável pelos espíritos nobres, destituídos do peso de emoções baixas e mesquinhas.

A batalha é terrível, mas a vitória é de Rama. Diante do corpo de Ravana, o general Suka entrega
ao vencedor a famosa e bela carta-testamento do rei morto:

Senhor Narayana, és a testemunha, fazes a Lua caminhar em resplendor e as estrelas se


desvanecerem à luz do dia.

23
Querido Rama, Senhor dos Mundos...pensa e recorda que prometeste a Indra matar-me para
sempre... nada é para sempre, senão tu mesmo. Se não morresse por tua mão, de que outra
maneira poderia eu fazer para me aceitares em teu próprio Eu?

Eu era apenas um rakshasa, e tu eras muito difícil de abordar. Entretanto, buscando a sabedoria,
aprendi muita coisa. Não sabes de novo quem és. Eu o soube durante todo o tempo, mas mesmo
assim não o sabes. Nada que fazes se malogra, basta um olhar dos teus olhos para que o povo
torne a cantar as boas e velhas canções.

Não pedi proteção contra os homens. Vais a toda a parte e conheces todas as coisas que já foram
feitas ou que o serão um dia. Por que fui tão descuidado? Eu não era descuidado em parte
alguma! Óh Narayana, olha, eu olhei, maravilhei-me...Os Homens são minas, os homens são
minas preciosas. Ó Rama, julgaste que o escuro era mau?

Vês tudo o que acontece e amparas todas as criaturas. Vi que o céu era impermanente, e que o
próprio Inferno não perdurava. Descobri que o tempo de cada existência é apenas um dia cheio, e
vi que todas as criaturas, separadas de ti, de quando em quando, renascem, sempre mudando.
Não gosto das coisas que vêm e vão, e passam com o Tempo, e odeio o próprio Tempo. Adverti-o,
quando nos encontramos pela primeira vez, que eu o tomava por inimigo, eu mesmo lhe disse isso.

Oh tu, que és o melhor dos homens, existem muitas espécies de Amor, e nunca as feri. Vali-me de
Lakshmi a fim de atrair-te para cá. Ofereci-te minha vida, e tu a aceitaste.

És Narayana que se move sobre as águas. Fluis através de todos nós. És Rama e Sita nascida da
Terra, e Ravana, o Rei dos Demônios; és Hanuman como o Vento, és Lakshamana como o
espelho, és Indrajit e Indra, és o Poeta e os Atores e a Peça. E, nascido como homem, tu te
esqueces disso, perdes a memória e enfrentas de novo a ignorância do homem, como a
enfrentarás sempre.

Portanto, acolhe de volta, com amor, a tua Sita. A guerra acabou, e assim, fechamos a nossa
carta.

Embora a carta como um todo seja de uma beleza que dispensa qualquer comentário, lembrar de
alguns detalhes da obra ajuda a entendê-la. Ravana obteve de Brahma, como pedido, após 10.000
anos de ascetismo, não poder ser morto por Deuses ou Demônios, mas “se esqueceu” dos homens,
o que foi considerado “um descuido”. Aqui, ele mostra claramente que não se esqueceu de nada.
Deslumbrou-se com os homens, “minas preciosas”, e deu a eles a oportunidade da batalha, para
que pudessem domar esse lado “diabólico”, destruidor, incorporando-o em seu próprio Eu. Reitera
que não poderia ser morto para sempre, pois “nada é para sempre, senão tu mesmo.” Ou seja, a
batalha jamais cessa, e se renova em cada ser humano.

24
Ravana relembra o aspecto divino de Vishnu como totalidade e como ser manifestado em um
corpo humano, esquecido de sua origem divina, como os irmãos Apolo, espírito da Luz Solar,
Una, sem pólos, Absoluta, e sua gêmea Ártemis, essa mesma luz presa à noite dos tempos, como a
Lua; Nessa forma, preso, Rama se esquece de quem é. O próprio Deus Agni, mais adiante, ao
devolver Sita a Rama, ao lado de Indra, afirma: “Repetidas vezes esqueceste o teu segredo.” E
Indra completa: “Para favorecer os homens, nasceste como Rama, para que ninguém pensasse
que os homens são fracos e solitários.”

Antes de retornarem, o rakshasa Vibishana mostra a Hanuman os tesouros escondidos de Lanka, e


lhe diz:

“És fiel e muito sábio quando páras para pensar. Pões todo o teu coração no que fazes, e não
pensas duas vezes depois de te haveres decidido, nem procuras lucro; por isso, te chamo meu
amigo.”

Embora ainda seja, em sua aparência e grande parte de seus atos, um simples animal, um macaco
de pêlos claros, o reconhecimento de Rama como um Mestre e o serviço incondicional a Ele faz
Hanuman capaz de virtudes e proezas dignas dos Deuses. Esse Hanuman, que subjuga sua
natureza animal com o poder da Devoção, surge como um dos mais dignos e admiráveis
personagens deste épico, recheado de Deuses e seres humanos grandiosos.

Ao retornar, Rama encontra Bharata guardando sua memória, ansioso por sua chegada. Ele assume
o reino, e estabelece o bem estar e a felicidade nas terras de Ayodhya por onze mil anos:

Rama pôde descobrir a verdade das coisas, e assim como todos os rios do mundo correm para o
mar, assim vinham homens de todos os cantos da Terra a fim de consultá-lo. Rama era muito
respeitado e amado. Sua presença enchia o coração.

Rama era tão forte que sustentava todos os homens, e tão gentil quanto os novos raios da lua. A
fama e a riqueza nunca o deixaram. No tempo em que foi rei, os homens viviam mais, cercados de
filhos, netos e toda a família. Os velhos nunca precisavam enterrar os moços. Havia chuva e terra
fértil; para falar a verdade, a terra se tornou farta.

A Paz e Rama reinavam juntos, como amigos, e coisas más não aconteciam. Os homens se
tornaram bondosos e sem medo. Toda a gente tinha um certo ar e uma certa aparência de boa
fortuna.

25
QUINTA PARTE: A ÚLTIMA GRANDE PROVA

Ao final de dez mil anos de reinado, Rama percebeu, um dia, que Sita estava grávida. Ela lhe pede
para visitar a morada dos eremitas no Rio Ganga, no que ele consente.

Naquela mesma noite, Rama encontra com alguns dos seus ministros e lhes pergunta o que o seu
povo fala dele:

- O rei é refúgio dos que não têm onde abrigar-se; por isso, é mister que eu seja virtuoso. As
pessoas pisam nas pegadas do seu rei e, por isso, sou forçado a evitar até o relato de algum
agravo. (...) A nenhum rei é dado não fazer caso do que a sua gente diz dele...não vos recuseis a
contar-me.

- Rama, precisamos obedecer-vos – Disse Bhadra, o ministro. Alguns dentre o povo dizem: O rei
deseja Sita, embora Ravana a tenha tocado. Como pode ele esquecer que ela viveu com outro? E
a rainha, com certeza, há de lembrar-se do rei dos demônios. Assim falam os homens mais
inferiores.

Em silêncio, Rama se retira e manda chamar Lakshamana e, lívido de dor e de tristeza, ordena a
ele que vá com Sumantra, o auriga, acompanhar Sita em seu passeio ao Ganga, e a abandone lá.
Lakshamana fica perplexo com isso, e se estabelece o seguinte diálogo:

- Um rei tem que ser irrepreensível. (...) Os reis não podem permitir-se uma censura sequer. A má
fama é ruim para eles; mais do que todos os homens, devem estar acima de qualquer censura...Vê
em que abismos de sofrimento pode cair um rei...

- Aos poucos, disse Lakshamana, tudo parece mudar outra vez, e até um imperador precisa pagar
pelo seu caminho na vida.

- Tem de ser! É tudo o mesmo, não vês? Onde há crescimento, há decadência; onde há
prosperidade, há ruína; e onde há nascimento, há morte. (...) Eu te ordeno! Nem uma palavra a
quem quer que seja.

- Sem dúvida, o rei é distante e solitário, e muito longe da razão. Não podemos falar-te...

- A cada pessoa, se deve dizer o que ela é capaz de compreender sobre a natureza do mundo –
retorquiu Rama, e nada mais do que isso.

26
- (...) Ainda agora continuarei a servir-te. Pois o certo e o errado são muito sutis e difíceis de
discernir, e a Lei do Dharma é difícil de conhecer...além disso, é inconcebível para mim que eu
venha, algum dia, de caso pensado, a desobedecer-te.

Mais uma vez, nos vem a memória o Egito Antigo, dos grandes faraós que se inspiravam em reis
divinos, como Rama, e que abriam mão de toda e qualquer consideração de tipo pessoal em prol
da investidura de seu cargo, o sacrifício da responsabilidade em que ela implica. Rama coloca ao
seu lado uma estátua de ouro de Sita, para deixar claro o seu amor, que jamais cessa, mas faz o que
deve ser feito como Rei. O Rei supera largamente qualquer consideração que venha do Homem.
Além disso, com sua visão mítica da vida, percebe as redes do Dharma tecendo a dissolução de
todas as coisas manifestadas, quando chega seu tempo, agindo por trás desses fatos. Sofre, mas
permanece digno e sereno.

Quando Sita, ao ser deixada às margens do rio, se surpreende e sofre, Sumantra, o auriga, lhe diz:

Esta é a obra do Destino, que não pode ser superada. Fiquei zangado quando o rei Dasaratha
baniu Rama, mas, desta vez, não protestei, pois é o destino. Estava tudo previsto, e eu já o sabia
há muito tempo. (...) Senhora, todo o Universo é apenas um sinal para ser lido corretamente: as
cores e as formas são postas aqui só para falar-nos, e tudo é Espírito, nada mais existe. Guerra e
paz, amor e separação são portas escondidas para outros mundos e outros tempos. Não
envelheçamos acreditando ainda que a verdade é o que a maioria das pessoas vê à sua volta...

Sumantra, então, começou a contar a história, ocorrida em sua juventude, de como a rainha
Kaikeyi adquirira os dois desejos que utilizara para banir Rama. Havia uma guerra entre os
demônios, Asuras da seca, e os Deuses, e os reis da terra lutavam ao lado destes últimos. Kaikeyi
era a jovem condutora do carro de guerra de Dasaratha, e salvou-o de ser morto, conduzindo
sozinha para a terra o carro do rei desacordado e ferido. Diante da dificuldade da batalha, Indra foi
até o Senhor Narayana e pediu o seu auxílio ao lado dos deuses. Ao entrar na batalha, Narayana
dizimou os demônios, e os últimos dentre eles fugiram para a terra, tentando se esconder e salvar-
se, apavorados. Dois deles pediram refúgio contra a morte na casa de um velho brâmane de
Ayodhya, e foram recebidos por sua misericordiosa esposa, penalizada pelo terror dos mesmos.
Indo ao encalço deles, Narayana foi detido pela senhora, que se interpôs no caminho, tentando
proteger seus refugiados. Colérico, o Deus matou a esposa do brâmane e dizimou os demônios.

Irado, o brâmane Vasishta jogou por terra o seu bastão e amaldiçoou o Deus Narayana,
condenando-o a nascer na terra, de uma família real, rica e bondosa, e ser separado de sua bem-
amada esposa por uma injustiça, assim como fizera com a esposa do Brâmane.

É impressionante a força dos seres quando investidos do poder do Dharma; um simples e humilde
brâmane amaldiçoa o Senhor Narayana, criador dos mundos, e a maldição se faz realidade. O mais
simples dos seres adquire um poder absoluto ao resguardar-se no Dharma; nada pode contra ele.

27
Deixada a sós, Sita é recolhida pelo eremita Valmiki , que foi despertado pelo sábio Narada de sua
meditação de milênios para salvá-la, e foi levada para seu eremitério, onde passa a viver e dá a luz
a dois meninos, Kusa e Lava. Valmiki faz-se poeta e redige a história do Ramayana a pedido do
próprio Brahma. Ensina-a aos dois meninos, filhos de Rama, que a memorizam e vão cantá-la
durante um festival em Ayodhya, diante do próprio Rei Rama, que ignora que aqueles sejam seus
filhos. Revelada a verdade, Valmiki surge,e traz consigo Sita. Diante de todos os habitantes da
região e de reinos de todo o mundo, Sita invoca sua mãe, a Deusa Terra, e pede que, se ela for pura
e inocente, a mãe a leve consigo. A Deusa surge, então, das entranhas da terra, toma sua filha nos
braços e a leva embora para as profundezas do seu mundo.

Morto também Lakshamana, desaparecida Sita nas entranhas da terra de onde veio, é chegado o
momento de que Rama, sozinho e liberto dos laços que o uniam à terra, sua alma e seu corpo, volte
ao seu lugar de origem. Ele parte, levando consigo aqueles que quiseram acompanhá-lo,
mergulhando no rio Sarayu e atravessando o portal, indo sempre à frente e mergulhando em
primeiro lugar, como cabe a um líder:

Creio que a bela Ayodhya que Rama conheceu precisa ser procurada alhures, e não mais nesta
Terra. Aqueles eram outros dias. Mas ainda que me seja preciso sonhar ou morrer para fazê-lo,
estive na bela Ayodhya, e tornarei a voltar lá.

A despedida de Rama e Hanuman, às margens do rio, constitui uma das partes mais belas e
tocantes deste épico. Rama presenteia a Hanuman um valiosíssimo bracelete de ouro com pedras
preciosas, e o macaco o destrói, partindo e mastigando, à procura de algo:

- Senhor, embora o bracelete parecesse muito caro, na realidade não valia nada, pois em parte
alguma trazia o vosso nome. Não preciso dele, Rama. Por que hei de querer algo comum?
Vibishana torceu o nariz a isso:

- Então, não vejo que valor tem a vida para ti; por que não destróis teu corpo, também?

Com as unhas afiadas, Hanuman rasgou o próprio peito e repuxou a carne para os lados. E todos
viram que estava escrito, repetidamente, em todos os ossos, com lindas letras: Rama Rama Rama
Rama Rama Rama...

Rama fechou e fez desaparecer a ferida, e presenteou a Hanuman um anel largo e brilhante que
trazia seu nome.

28
CONCLUSÃO

Rama se vai, deixando uma marca profunda na terra e na história: houve um Rei. Essa história
pertence ao mesmo tempo a toda a humanidade e a cada ser humano, individualmente falando.

Muitos, ao longo da história, têm sido chamados a desempenhar esse ofício de conduzir a si
próprios e, como conseqüência, conduzir a outros homens, ser líderes, com todos os riscos e
sacrifícios que essa posição exige, mas também com uma pequena gota da glória de que só os
verdadeiros reis conseguiram provar, sacralizando suas vidas, cada um à sua medida, vivendo
também o mito, cada um segundo suas possibilidades. A história guarda a memória de reis de
todos os tamanhos e dimensões, e todos devemos muito a eles.

Porém, quando cabe a nós viver também esse mito, assumir nosso lugar em nossa Ayodhya,
Ravana nos parece, muitas vezes, impossível, de vencer, e nossa Sita, impossível de ser libertada.
Envolvidos pela inércia colossal de Kumbakarna, pelas emoções grosseiras e violentas de Prahasta
ou pelas mortais ilusões de Indrajit, imaginamos que a batalha está perdida, e que Ravana reinará
para sempre.

Recolhemo-nos do mundo como Valmiki, não guiados pela busca da verdade, como fazia o grande
eremita, mas por medo e desânimo, descrentes da nossa própria natureza, e da natureza dos
homens como um todo. Para esses momentos, pouca coisa poderia ser tão eficaz quanto esse
Ramayana. Ele nos soará aos nossos ouvidos como a chamada do sábio Narada, que retira Valmiki
de seu longo e quase interminável recolhimento. Incomodado por alguém que vinha perturbá-lo,
Valmiki desafia Narada:

- Sai daí!

- Diz-me apenas o nome de um homem honesto, que sairei daqui.

- Rama! - respondeu Narada.

Assim, nesse ofício de dirigir homens, sempre um tanto solitário e sobressaltado, algumas vezes,
por dúvidas, desânimo e até algo de tristeza e desesperança, é de extrema valia aguçar a memória e
os ouvidos e perceber a voz de Narada, que ainda ecoa nesse momento pelo ar, e sempre ecoará,
pois nunca se perde, em resposta às nossas hesitações: Rama, Rama, Rama!

29
Encerramos com essa bela recomendação final do Ramayana:

Ouvindo ou lendo o Ramayana, obtereis de Rama o que desejardes, mas precatai-vos! Não peçais
muito pouco! Boa sorte para todos. Este é o primeiro melhor poema do mundo. (...) O futuro lerá
isto. Por conseguinte, eu lhes direi: quando tudo estiver soçobrando em torno de vós, dizei apenas
“Rama”. Passamos do espiritual para o apaixonado. Depois, virá a ignorância. Guerra universal.
Dizei “Rama” e vencereis! O vosso tempo não pode tocar-vos!

30
BIBLIOGRAFIA:

MARCONDES, Danilo: Textos Básicos de Ética. Ed. Zahar, RJ, 2007.


_________: O Ramayana, tradução de Willian Buck, Ed. Cultrix, SP, 1995.
BLAVATSKY, H.P: A Voz do Silêncio; Ed. Pensamento, SP, 1994.
LIVRAGA, J.A: Psicologia – Curso Introdutório. Ed. Nova Acrópole, BH, 1998.
NIETZSCHE, F: A Genealogia da Moral. E. Companhia das Letras, SP, 2004.
RUTHERFORD, W: Os Druidas. Ed. Mercuryo, SP, 1992.

31

Você também pode gostar