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Desidério Murcho
Conversamos sobre afectos, realidades, crenças, pensamentos, medos, desejos,
memórias, futuros e tudo o mais. Sem a verdade, toda a conversa seria uma mera
manifestação de subjectividades solipsistas e imunes ao erro, discursos paralelos sem
triangulação possível entre si e a realidade. Numa conversa, não é indiferente afirmar
que Sócrates era grego, o que é verdadeiro, ou afirmar que era egípcio, o que é falso;
não é indiferente afirmar que o racismo é imoral, o que é verdadeiro, ou afirmar que as
mulheres devem ser discriminadas, o que é falso.
A verdade não se submete à força bruta nem à crença forte. Contudo, uma superstição
comum é que crer com muita firmeza em algo torna verdadeiro o objecto da crença.
Esta superstição baseia-se numa confusão entre as noções de crença e de conhecimento.
Quando se sabe realmente algo, o que se sabe é verdadeiro: não é possível saber que
Kant morreu em 1803 porque ele não morreu em 1803, apesar de ser possível estar
enganado e pensar que se sabe que Kant morreu em 1803. Em contraste, quando se tem
uma certa crença, por mais forte que seja, o que se crê pode não ser verdadeiro: é
perfeitamente possível crer que Kant morreu em 1803, apesar de na verdade ele ter
morrido em 1804. Pensar que a crença forte produz verdades é uma maneira
intelectualmente imatura e vã de tentar garantir que os nossos desejos serão realizados,
se desejarmos com muita firmeza.
Se a verdade não existisse, não faria sentido exigir responsabilidade pelas nossas
crenças, convicções ou opiniões. Exige-se responsabilidade, porque podemos estar
enganados; e podemos estar enganados, porque a verdade pode não estar do nosso lado:
podemos pensar que sabemos quando não sabemos. No famoso artigo “A Ética da
Crença”, o filósofo e matemático britânico W. K. Clifford defendeu que “é sempre
incorrecto, em todo o lado, para qualquer pessoa, acreditar seja no que for com base em
indícios insuficientes” (p. 108). Clifford apresenta o exemplo de um armador que envia
o seu velho navio para mais uma longa viagem sem tomar precauções suficientes no que
respeita à sua manutenção. Contra todas as evidências, o armador convence-se a si
mesmo de que o navio está em condições de fazer uma última viagem, antes de sofrer
reparações profundas. E envia o navio para o alto-mar, colocando a sua confiança na
Providência. Quando o navio naufraga e morre toda a gente a bordo, o armador recolhe
o dinheiro do seguro, com toda a paz de espírito. Clifford considera que o armador está
em falta: a ética da crença obriga a ter o cuidado de não aceitar uma proposição sem ter
suficientes provas a seu favor. O armador continuaria em falta mesmo que o navio não
tivesse naufragado — porque tinha razões para acreditar que o navio corria um sério
risco de naufragar, e bloqueou activamente essa crença só porque lhe era incómoda.
A lucidez consiste em saber distinguir os casos em que a crença pode criar “a sua
própria verificação”, dos casos em que não pode fazê-lo. O optimismo é motivador e
sem ele seria emocionalmente muito difícil enfrentar as arbitrariedades infelizes da vida.
Contudo, para que o optimismo não se transforme em crendice irresponsável é
necessário determinar, em cada caso, se existe uma relação causal entre a crença e o seu
objecto.
A verdade pode fazer-nos infelizes, mas nem por isso desprezar a verdade é o caminho
para a felicidade. Quem desprezar a verdade na sua vida emocional e afectiva fica
reduzido a viver uma mentira. Se António amar verdadeiramente Cleópatra, não poderá
considerar irrelevante a questão de saber se Cleópatra também o ama ou se está apenas a
manipulá-lo para obter os seus fins políticos. Desprezar a verdade é perder a conexão
com a realidade: é conceber a felicidade como um estado meramente subjectivo e
solipsista. Deste ponto de vista, é irrelevante para António que Cleópatra o atraiçoe,
desde que ele nunca venha a descobri-lo. Esta noção solipsista de felicidade é ilusória. A
felicidade não é um estado mental autónomo e meramente subjectivo, indiferente à
realidade, porque é um produto da própria actividade que nos conecta com realidade: o
pensamento apurado e complexo. Perder a conexão da felicidade com a realidade é fazer
da felicidade uma ilusão.
Desidério Murcho
Todos os Sonhos do Mundo (Lisboa: Edições 70, 2016), pp. 85–91.
Referências
Clifford, W. K. (1877) “A Ética da Crença”, in A Ética da Crença, org. Desidério
Murcho. Trad. Vítor Guerreiro. Lisboa: Bizâncio, 2010. (Também em edição Kindle.)
James, William (1879) “The Sentiment of Rationality”, in Writings: 1878–1899, org.
Gerald E. Myers. Nova Iorque, NY: The Library of America, 1992, segunda impressão.