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Verdade

Desidério Murcho
Conversamos sobre afectos, realidades, crenças, pensamentos, medos, desejos,
memórias, futuros e tudo o mais. Sem a verdade, toda a conversa seria uma mera
manifestação de subjectividades solipsistas e imunes ao erro, discursos paralelos sem
triangulação possível entre si e a realidade. Numa conversa, não é indiferente afirmar
que Sócrates era grego, o que é verdadeiro, ou afirmar que era egípcio, o que é falso;
não é indiferente afirmar que o racismo é imoral, o que é verdadeiro, ou afirmar que as
mulheres devem ser discriminadas, o que é falso.

A noção de verdade não é uma fantasia mitológica, como os deuses da Antiguidade


clássica, pois pode-se abandonar sem incoerência as noções mitológicas, mas não a
noção de verdade. Pode-se abandonar sem incoerência a noção de Zeus, porque se pode
afirmar coerentemente que é verdadeiro que Zeus não existe; mas não se pode
abandonar sem incoerência a noção de verdade, porque não se pode afirmar
coerentemente que é verdadeiro que a verdade não existe.

Sem verdade não há validade. A validade, no sentido lógico definitivamente


estabelecido por Aristóteles, é uma relação entre valores de verdade. Um argumento é
válido quando é impossível, ou improvável, que as suas premissas sejam verdadeiras e a
sua conclusão falsa. Se não existisse validade, qualquer mau argumento a favor da ideia
de que há verdades seria tão bom quanto o melhor argumento contra tal ideia. Isto
mostra que a noção de que não há verdades é arbitrária, pois quem a aceita tem de
aceitar que há tão boas razões para a aceitar como para a rejeitar.

Sem validade não há argumentação e quando não há argumentação resta a manipulação


e a força bruta de quem tem mais força: força física, força económica, força política.
Contudo, por mais força política, económica ou física que tenha quem defende que a
discriminação das mulheres é um bem, não poderá apresentar bons argumentos, porque
a verdade não está do seu lado. A força bruta compra muita coisa, mas não pode
comprar a verdade.

A verdade não se submete à força bruta nem à crença forte. Contudo, uma superstição
comum é que crer com muita firmeza em algo torna verdadeiro o objecto da crença.
Esta superstição baseia-se numa confusão entre as noções de crença e de conhecimento.
Quando se sabe realmente algo, o que se sabe é verdadeiro: não é possível saber que
Kant morreu em 1803 porque ele não morreu em 1803, apesar de ser possível estar
enganado e pensar que se sabe que Kant morreu em 1803. Em contraste, quando se tem
uma certa crença, por mais forte que seja, o que se crê pode não ser verdadeiro: é
perfeitamente possível crer que Kant morreu em 1803, apesar de na verdade ele ter
morrido em 1804. Pensar que a crença forte produz verdades é uma maneira
intelectualmente imatura e vã de tentar garantir que os nossos desejos serão realizados,
se desejarmos com muita firmeza.

Se a verdade não existisse, não faria sentido exigir responsabilidade pelas nossas
crenças, convicções ou opiniões. Exige-se responsabilidade, porque podemos estar
enganados; e podemos estar enganados, porque a verdade pode não estar do nosso lado:
podemos pensar que sabemos quando não sabemos. No famoso artigo “A Ética da
Crença”, o filósofo e matemático britânico W. K. Clifford defendeu que “é sempre
incorrecto, em todo o lado, para qualquer pessoa, acreditar seja no que for com base em
indícios insuficientes” (p. 108). Clifford apresenta o exemplo de um armador que envia
o seu velho navio para mais uma longa viagem sem tomar precauções suficientes no que
respeita à sua manutenção. Contra todas as evidências, o armador convence-se a si
mesmo de que o navio está em condições de fazer uma última viagem, antes de sofrer
reparações profundas. E envia o navio para o alto-mar, colocando a sua confiança na
Providência. Quando o navio naufraga e morre toda a gente a bordo, o armador recolhe
o dinheiro do seguro, com toda a paz de espírito. Clifford considera que o armador está
em falta: a ética da crença obriga a ter o cuidado de não aceitar uma proposição sem ter
suficientes provas a seu favor. O armador continuaria em falta mesmo que o navio não
tivesse naufragado — porque tinha razões para acreditar que o navio corria um sério
risco de naufragar, e bloqueou activamente essa crença só porque lhe era incómoda.

Em oposição parcial a Clifford, o filósofo e psicólogo americano William James


defendeu no artigo “O Sentimento da Racionalidade” que “a fé cria a sua própria
verificação” (p. 529). James tem em mente situações como a de um alpinista cuja única
possibilidade para sobreviver à morte certa pelo frio é saltar sobre um abismo para
tentar chegar à salvação que o aguarda do outro lado. Se o alpinista se limitar a fazer os
seus cálculos e concluir que o salto tem poucas probabilidades de sucesso, é quase certo
que irá falhar. Mas se acreditar firmemente que será capaz de alcançar o outro lado, terá
maiores probabilidades de se salvar: a crença optimista é motivadora.

É possível conciliar a perspectiva de Clifford com a de James. Caso existam provas


conclusivas a favor de algo, “é sempre incorrecto, em todo o lado, para qualquer
pessoa”, não acreditar nisso. Se a distância que o alpinista tem de conseguir vencer em
salto livre para se salvar for de cem metros, então o alpinista tem provas conclusivas de
que não conseguirá alcançar o outro lado — e é inútil tentar saltar. Contudo, caso não
existam provas conclusivas a favor nem contra algo, abre-se a possibilidade de a crença
poder desempenhar um papel motivador. Se a distância que o alpinista tem de vencer for
difícil mas exequível, a forte convicção de que terá sucesso contribui para o sucesso.
Para que a crença possa criar “a sua própria verificação”, contudo, é necessário que o
objecto da crença esteja causalmente relacionado com a crença. No caso do armador,
não há tal relação causal: por mais firmemente que o armador acredite que o navio não
se afundará, tal crença em nada influencia o comportamento do navio no alto mar.

A lucidez consiste em saber distinguir os casos em que a crença pode criar “a sua
própria verificação”, dos casos em que não pode fazê-lo. O optimismo é motivador e
sem ele seria emocionalmente muito difícil enfrentar as arbitrariedades infelizes da vida.
Contudo, para que o optimismo não se transforme em crendice irresponsável é
necessário determinar, em cada caso, se existe uma relação causal entre a crença e o seu
objecto.

Desvalorizar a verdade a favor da sinceridade e da força das convicções é uma ilusão


perigosa mas comum. Dada a dificuldade em averiguar cuidadosamente se o que os
políticos afirmam é realmente verdadeiro, os eleitores guiam-se unicamente pelo grau
de convicção demonstrado. Inevitavelmente, esta tendência produz políticos com o dom
de acreditar precisamente no que lhes dá jeito acreditar, contra todas as provas e avisos
da razão. O resultado são políticos que distorcem sinceramente a verdade, porque é para
eles mais importante ter uma convicção forte do que dar-se ao incómodo de ter uma
convicção verdadeira. As maiores atrocidades são cometidas em nome de fortes
convicções sinceras, excelentes em todos os aspectos mas que falham num pormenor:
são falsas. Ser um mau líder é ter a capacidade para fazer as pessoas seguir
acriticamente as suas convicções cegas, só porque são convicções muito fortes — e que
dão muito jeito, a curto prazo e para alguns. Mas não atender à justiça é uma das muitas
formas de não atender à verdade. Se for verdadeiro que um dado curso de acção é
injusto, nenhum grau de forte convicção pode mudar a sua injustiça — podemos
reivindicar jurisprudência sobre a força das nossas convicções, mas só a realidade
decreta a sua verdade ou falsidade.

A verdade pode fazer-nos infelizes, mas nem por isso desprezar a verdade é o caminho
para a felicidade. Quem desprezar a verdade na sua vida emocional e afectiva fica
reduzido a viver uma mentira. Se António amar verdadeiramente Cleópatra, não poderá
considerar irrelevante a questão de saber se Cleópatra também o ama ou se está apenas a
manipulá-lo para obter os seus fins políticos. Desprezar a verdade é perder a conexão
com a realidade: é conceber a felicidade como um estado meramente subjectivo e
solipsista. Deste ponto de vista, é irrelevante para António que Cleópatra o atraiçoe,
desde que ele nunca venha a descobri-lo. Esta noção solipsista de felicidade é ilusória. A
felicidade não é um estado mental autónomo e meramente subjectivo, indiferente à
realidade, porque é um produto da própria actividade que nos conecta com realidade: o
pensamento apurado e complexo. Perder a conexão da felicidade com a realidade é fazer
da felicidade uma ilusão.

O egocentrismo é talvez a mentira mais comum da humanidade, e seguramente a mais


tentadora. O egocentrismo é a prática — mais do que a ideia — de encarar o eu como o
ponto centrípeto em torno do qual todo o Universo revolve. A incapacidade para nos
vermos exactamente como somos — um entre outros — é uma incapacidade para ver a
verdade. Ironicamente, a felicidade torna-se impossível quando o egocentrismo se
instala. Porque é realmente falso que cada um de nós é o ponto centrípeto em torno do
qual todo o Universo revolve — este pensamento é uma contradição lógica — o
egocentrismo implica uma luta perdida à partida contra a realidade e a verdade. É assim
que a figura do génio romântico, atormentado e egocêntrico, é a figura de alguém que é
infeliz, porque se recusa a ver-se como verdadeiramente é e simultaneamente se recusa
a querer-se como verdadeiramente pode ser.

Uma concepção deficiente da racionalidade entende-a como o mero uso de meios


adequados para a satisfação dos desejos, estando estes para lá de qualquer consideração
racional. Esta concepção é deficiente, porque encara os desejos como se fossem
impulsos independentes da realidade e insusceptíveis de avaliação racional. Porém, os
desejos são susceptíveis de avaliação racional precisamente porque dependem
fortemente da realidade: quem tiver o desejo de dar um salto até à Lua estará a albergar
um desejo irracional, porque é impossível dar um salto até à Lua. Faz parte da vida
racional a capacidade para modificar os nossos desejos em função da realidade
conhecida: quem descobre que alberga desejos impossíveis de concretizar e nada faz
para os abandonar, é irracional. A racionalidade não é uma via de sentido único em que
se procura apenas adaptar o mundo e a verdade aos desejos; sem adaptar também os
desejos ao mundo e à verdade não é possível ser racional.

A motivação pós-modernista para abandonar a noção de verdade é a ideia de que esta


seria opressora, colonialista e eurocêntrica: em nome da verdade, diz-se, exploraram-se
os povos indígenas de África e das Américas, impôs-se a religião europeia e sustentou-
se o racismo e o colonialismo. Esta acusação resulta de uma confusão pré-moderna
entre a verdade e o que se pensa que é verdadeiro, mas é de facto falso. O racismo e o
colonialismo baseiam-se em falsidades: que os negros ou os índios são inferiores, que
por terem sociedades diferentes das nossas não têm direito à autodeterminação, à
integridade territorial e à autonomia económica, política e religiosa. Quando se
abandona a noção de verdade, não se pode protestar perante as falsidades em que se
apoia o racismo ou o colonialismo. Só o respeito pela verdade justifica que não se aceite
como absolutas as nossas crenças, costumes e ideologias: porque podemos estar
enganados.
Podemos estar enganados, porque a verdade, excepto no que respeita ao nosso próprio
pensamento, é independente do que pensamos. Uma defesa genuína da importância da
verdade implica assim a abertura à possibilidade do engano. A consciência de que
podemos estar enganados implica a recusa da imposição ditatorial de qualquer
perspectiva. Defender que a verdade é uma “construção” humana implica aceitar a ideia
absurda de que o engano é impossível: seja o que for que pensamos, é verdadeiro,
porque pensamos que é verdadeiro. Porém, pensar que é verdadeiro que Kant visitou
Paris é muito diferente de ser verdadeiro que Kant visitou Paris; os seres humanos não
têm o toque de Midas de transformar as suas crenças em verdades. A verdade não é uma
“construção” humana. Pelo contrário, é a procura falível da verdade que constrói o ser
humano em toda a sua plenitude.

Desidério Murcho
Todos os Sonhos do Mundo (Lisboa: Edições 70, 2016), pp. 85–91.
Referências
Clifford, W. K. (1877) “A Ética da Crença”, in A Ética da Crença, org. Desidério
Murcho. Trad. Vítor Guerreiro. Lisboa: Bizâncio, 2010. (Também em edição Kindle.)
James, William (1879) “The Sentiment of Rationality”, in Writings: 1878–1899, org.
Gerald E. Myers. Nova Iorque, NY: The Library of America, 1992, segunda impressão.

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