Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
DOI: 10.1590/1234.56781806-947900540203
Abstract: The structure of farms is associated with family characteristics and to sale
strategy, for a given expectation of income generation and risk exposure. To understand
this association, seven cases of settled families were studied in a land reform settlement in
Key-words: Family farming; Economic viability; Monte Alegre land reform settlement; Production systems,
Integration.
RESR, Piracicaba-SP, Vol. 54, Nº 02, p. 243-260, Abr/Jun 2016 – Impressa em Junho de 2016
Luciane Cristina De Gaspari e Carlos Armênio Khatounian 245
DOS ANJOS, 2003). Os estudos de Chayanov produção. Tal juízo tem como referência a manu-
procuraram explorar os aspectos organizacio- tenção do balanço entre trabalho e consumo
nais da exploração camponesa a partir de seus (SCHNEIDER, 2003). Hoje este balanço não é
elementos morfológicos, como o ciclo demográ- balizado apenas pela satisfação de necessida-
fico familiar. A ideia é que haja um balanço sub- des de consumo essenciais mas, sim, pelo desejo
jetivo da família entre trabalho e consumo tendo de desfrutar de um mercado de bens e serviços
em vista a manutenção da exploração camponesa expandidos, além de acumular capital.
(CHAYANOV, 1974). A abordagem passa pela Ao analisar a família é importante compreen-
natureza da motivação da atividade econômica der o conceito de estratégia, que funciona como
familiar (SCNHEIDER, 2003). um conjunto de ações conscientes e planejadas
A proposta de Chayanov coloca a família pela família para alcançar seus objetivos, que é
camponesa como o principal elemento explica- baseada na relação ótima dos fatores de produção
tivo do processo de tomada de decisão por parte (CHAYANOV, 1974). A estratégia não é derivada
dos indivíduos no tocante à organização produ- apenas de um cálculo aritmético, mas orientada
tiva, alocação da força de trabalho, uso dos equi- pelas necessidades que variam ao longo do ciclo
pamentos, investimentos e ligações com o meio demográfico familiar (SCNHEIDER, 2003).
externo. Não obstante, segundo Sacco dos Anjos
(2003), a teoria de Chayanov reduz os campone-
[...] El tamaño y la composición de la família
ses ao status de “consumidores-produtores”, que
trabajadora, el número de sus miembros capaces de
controlam empresas formalmente autônomas.
trabajar y, además la productividad de la unidad
Ademais, é um modelo estático que não garante
de trabajo y – esto es especialmete importante – el
grado de esfuerzo de los trabajadores, el grado de
condições de expandir os complexos mecanismos
autoexplotación, mediante el cual lós miembros de ligações com o contexto econômico, que per-
laborantes efectuan cierta cantidad de unidades de meiam as formas familiares de produção em dife-
trabajo em curso del ano (CHAYANOV, 1974, p. 44). rentes locais e formações históricas (SACCO DOS
ANJOS, 2003).
O entendimento do funcionamento das Por outro lado, a estratégia produtiva rege
explorações agrícolas familiares pressupõe a com- a rentabilidade econômica do estabelecimento
preensão do modo pelo qual as famílias solucio- familiar e a combinação dos fatores de produ-
nam seus problemas cotidianos mantendo uma ção, conforme critérios estabelecidos pela família
situação de equilíbrio e reprodução social. As (SCHNEIDER, 2003), que são fundados na satis-
explorações são moldadas por condições exter- fação de suas necessidades (CHAYANOV, 1974),
nas e de acordo com suas necessidades e ten- considerando o contexto sociocultural na qual se
sões internas. Em outras palavras, ao longo de insere.
seu ciclo demográfico familiar, o grupo domés- A estratégia de produção é expressa na com-
tico passa por alterações significativas na relação binação dos fatores produtivos com os socio-
entre o número de consumidores e trabalhado- econômicos e demográficos e é observada na
res, e tal feito reflete em um determinado nível de organização das principais atividades e na forma
autoexploração correspondente à necessidade de de comercialização (ANTUNIASI, 1997). Na ótica
compensar as alterações demográficas (SACCO da família agrícola, a rentabilidade econômica do
DOS ANJOS, 2003). estabelecimento, que é resultado da combinação
O nível de alteração depende do juízo abs- das atividades produtivas e dos fatores de pro-
trato da família, que é o fator decisivo para defi- dução, deve manter-se vantajosa ao longo do
nir o grau de autoexploração do estabelecimento tempo. Com isto, a combinação das atividades
familiar no que tange ao volume da atividade agropecuárias tende a se manter e satisfazer as
agrícola, intensidade do trabalho e destino da necessidades familiares.
RESR, Piracicaba-SP, Vol. 54, Nº 02, p. 243-260, Abr/Jun 2016 – Impressa em Junho de 2016
246 Características das Famílias, Estruturação da Produção e Estratégias de Comercialização em um Assentamento de Reforma Agrária
RESR, Piracicaba-SP, Vol. 54, Nº 02, p. 243-260, Abr/Jun 2016 – Impressa em Junho de 2016
Luciane Cristina De Gaspari e Carlos Armênio Khatounian 247
RESR, Piracicaba-SP, Vol. 54, Nº 02, p. 243-260, Abr/Jun 2016 – Impressa em Junho de 2016
248 Características das Famílias, Estruturação da Produção e Estratégias de Comercialização em um Assentamento de Reforma Agrária
rizadas pela alta dependência de insumos externos, 48 anos, o filho (21 anos), nora (20) e duas netas
grandes perdas de subprodutos das atividades que com 5 anos, que se instalou no assentamento com
poderiam tornar-se produtos em outras existen- capital para investir na produção. A combinação
tes no lote e altos investimentos em infraestrutura produtiva tem pouca dependência de insumos
produtiva. Logo após a aplicação do questioná- externos, requer grande quantidade de trabalho
rio, as indústrias integradoras quebraram devido e as atividades são amparadas por diversas ben-
à crise econômica internacional, deixando dívidas feitorias; entre elas, trator e caminhonete.
junto aos agricultores, de modo que a produção em Sem atividade agrícola comercial, o lote com
ambos os estabelecimentos foi paralisada. gado de corte extensivo (6) é mais um local de mora-
No estabelecimento com produção de horta- dia do que de produção. O pai da família e o filho
liças comercializadas com atacadista intermediá- passaram a maior parte da vida como boias-frias
rio (3), a família é formada por pai e filho com 56 nas periferias das cidades da região, até se aposen-
e 18 anos, tendo passado toda a vida pré-assenta- tarem por invalidez e serem assentados em Monte
mento no campo como trabalhadores volantes. A Alegre. O gado serve como reserva de valor.
dimensão da área de plantio é definida pela mão Por fim, no último lote analisado a produ-
de obra disponível e pela exigência em trabalho ção é voltada ao consumo doméstico (7) com
das culturas. Normalmente são cultivadas pou- venda muito esporádica de excedente. A combi-
cas espécies em monocultura, sendo a escolha da nação produtiva é de gado semiextensivo e poli-
espécie definida em acordo com o intermediário. cultivo. O lote é cultivado por família extensa
A produção está alicerçada e é dependente de que é formada por 12 membros de idades que
insumos industriais, mas não depende de finan- variam entre 3 e 70 anos, mas com pouca dispo-
ciamento externo, uma vez que os custos produ- nibilidade de mão de obra familiar devido à dinâ-
tivos estão dentro da capacidade financeira da mica familiar, pluriatividade de alguns membros
família e há baixo investimento em benfeitorias ou idade e problemas de saúde de outros mem-
produtivas. O intermediário revende a produção bros. A família é formada pelo casal, filhos, gen-
em varejões de Araraquara. ros, noras, netos e agregados. O casal e parte dos
No caso de venda para varejões (4), a explora- filhos passaram a vida como colonos e trabalha-
ção é dirigida por uma família que sempre cultivou dores volantes. As atividades são caracterizadas
hortaliças no município de Araraquara, de modo por fraca dependência em relação ao exterior
que tem experiência acumulada tanto nas técnicas (insumos e mercado), baixo nível técnico, tradi-
de cultivo, quanto no mercado local. A família é cional e poucas compras, vendas e investimentos.
formada pelo casal, com 59 e 39 anos de idade e A renda monetária é garantida pelo programa
três filhos de 25, 23 e 20 anos que são pluriativos. O “Bolsa Família” e pela aposentadoria. A lógica
marido tem capacidade de trabalho parcial devido exposta pelo patriarca da família é que tudo o que
à saúde debilitada. A área produtiva é limitada compram como insumo é caro, e tudo o que ven-
pela restrição de mão de obra e há mais demanda dem é muito barato, o que explica sua orientação
pelos produtos do que volume ofertado pelo agri- para o consumo doméstico.
cultor. As atividades são planejadas em favor de
maior autonomia de insumos externos, o que
requer mais trabalho. Há pouco investimento em 5. Resultados e discussão
benfeitorias produtivas e há um automóvel para
transportar os produtos para os varejões. O eixo da discussão parte do resultado finan-
No caso da venda direta (5) em feira livre, no ceiro obtido pela combinação das atividades pro-
mesmo município de Araraquara, o lote pertence dutivas do estabelecimento e sua interação com
à família de ex-colonos de usinas de cana-de- o contexto por meio da via de comercialização,
-açúcar da região formada pelo casal com 60 e tendo em vista a dinâmica familiar.
RESR, Piracicaba-SP, Vol. 54, Nº 02, p. 243-260, Abr/Jun 2016 – Impressa em Junho de 2016
Luciane Cristina De Gaspari e Carlos Armênio Khatounian 249
5.1. Renda agrícola, organização produtiva é menor (38 S.M./ano – atacadista intermediário
e comercialização (3) e 48 S.M./ano – varejão (4) Tabela 1). Os esta-
belecimentos diferem pelo número de agentes na
Na perspectiva do agricultor ligado ao mer- comercialização entre o produtor e o consumidor
cado, é a partir da renda monetária agrícola que final. Quanto maior o número de agentes, menor
ele alcançará suas expectativas futuras e a manu- o valor bruto das vendas (SOUZA et al., 1998).
tenção da combinação das atividades produtivas Em relação aos gastos na produção, eles
do estabelecimento rural. Tendo isso em vista, o dependem da estrutura produtiva5 dos estabele-
agricultor toma as decisões e traça suas estraté- cimentos e dos sistemas de manejo, que possibi-
gias. A construção da renda agrícola vem a partir litam fluxos6 (conectividade) entre as atividades.
dos valores das vendas e dos gastos produtivos Os fluxos refletem nos custos de produção, uma
(Tabela 1). vez que os fluxos de saída de uma atividade são
utilizados como entradas em outras, evitando a
Tabela 1. Valor bruto das receitas e despesas anuais aquisição de insumos (FAZENDA MALUNGA,
em cinco lotes no assentamento Monte Alegre, 2009). Por exemplo, o uso do esterco bovino do
Araraquara, SP, em 2008 (R$ mil)
próprio estabelecimento em outra atividade,
Valor das Valor dos como é realizado na a produção de hortaliças
Caso
vendas gastos
Frango e cana, agroindústria (1) 34,5 7,0 para o varejão (4).
Frango e leite, agroindústria (2) 44,0 7,0 Os estabelecimentos ligados à agroindús-
Hortaliças, atacadista (3) 16,0 2,3 tria são os que mais têm despesas. No estabeleci-
Hortaliças, semiatacado varejão (4) 20,1 1,8 mento com cana-de-açúcar e frango (1), os gastos
Hortaliças, venda direta feira (5) 28,2 3,4
de custeio representam 20% do valor das vendas.
Fonte: Dados de campo coletados pelos autores.
Na exploração com leite e frango (2), a proporção
vai para 16% (Tabela 1). Isto se deve ao sistema de
O valor bruto das receitas depende da via de manejo convencional adotado pela agroindústria.
comercialização e do volume de produção. Para Os gastos representaram a mesma ordem de
poder avaliar o potencial de remuneração da valor, 14% do valor bruto das vendas no estabe-
mão de obra, optou-se por discutir esses valores lecimento que comercializa com atacadista inter-
em termos de salários mínimos (SM), que corres- mediário (3), e é o maior valor dos custos dentre
pondia a R$ 415,00 em 2008. Os estabelecimen- as explorações ligadas ao mercado local (Tabela 1).
tos ligados à agroindústria são os de maior receita O sistema é formado principalmente por 0,7 ha de
bruta e líquida, 83,13 SM/ano – cana-de-açúcar e hortaliças e outras atividades complementares. A
frango (1) e 106,03 S.M. /ano – leite e frango (2), dependência externa do sistema em relação a insu-
sendo que no último há maior volume de produ- mos químicos é em razão da restrição de mão de
ção, conforme Tabela 1. No estudo de caso pau- obra, ausência do componente animal e nenhum
lista realizado por Lopes (2007), os produtores de fluxo entre as atividades.
goiaba integrados recebiam valor bruto de ven- Na exploração de venda para varejão (4), as
das menor do que dos não integrados. despesas representam 9% do valor das ven-
Já dentre os estabelecimentos voltados ao das é o sistema de produção que gera o menor
mercado local, o escoamento por feira (5) é o valor de despesas e a mais eficiente em termos
que gera a maior receita (67 S.M./ano). A venda de retorno do capital dentre os sete casos estu-
direta possibilita que o agricultor obtenha preços dados (Tabela 1). O baixo valor das despesas com
maiores por unidade de produto comercializada
5. A estrutura produtiva é formada pelo número de ativida-
(GONÇALVES e CEZARRINI, 2008).
des, interação entre elas e tipos de atividades.
Em estabelecimentos que comercializam 6. Os fluxos são as interações que ocorrem na estrutura pro-
com o setor atacadista, o valor bruto das vendas dutiva e no estabelecimento rural.
RESR, Piracicaba-SP, Vol. 54, Nº 02, p. 243-260, Abr/Jun 2016 – Impressa em Junho de 2016
250 Características das Famílias, Estruturação da Produção e Estratégias de Comercialização em um Assentamento de Reforma Agrária
insumos é resultado da organização produtiva salários por mês. Os casos com hortaliças geraram
com atividades que se conectam entre si gerando de 1,5 a 1,8 salário mínimo por trabalhador, por
fluxos e ao uso de técnicas agroecológicas, seme- mês. Por sua vez, o caso de frango e leite integra-
lhante ao caso da produção de tomates descrita dos gerou cerca de 2,25 salários mínimos por tra-
por Luz et al. (2007). No caso deste estudo, o fluxo balhador, por mês, o que é relativamente pouco,
de esterco do gado para a horta. considerando-se o vultoso investimento compa-
Já no estabelecimento de venda direta em feira rado ao da produção de hortaliças.
(5), as despesas representam 12% da receita bruta Considerando-se os casos que trabalham
(Tabela 1), principalmente com mão de obra con- com hortaliças, o potencial de remuneração do
tratada. Dentre os casos estudados, esse é o de trabalho dos sistemas de venda em atacado ou
maior demanda por trabalho. Porém, mais impor- semiatacado foram semelhantes (Tabela 2), a
tante do que a renda bruta ou a líquida, é a renda despeito de a lógica agronômica ser sensivel-
gerada por trabalhador envolvido no sistema de mente diferente, No caso do atacado, trata-se
produção, porque essa renda por trabalhador de um sistema monocultor baseado em insumos
define a capacidade de remuneração do sistema industriais e produtos tóxicos, enquanto no de
(Tabela 2). semiatacado (varejões) o sistema é baseado na
A grosso modo, o valor agregado segue a produção diversificada de hortaliças integrada
mesma tendência dos valores brutos das vendas com pequeno plantel bovino mantido especial-
e dos gastos (Tabela 2). Os estabelecimentos vol- mente para a produção de esterco e com rarís-
tados à agroindústria (1) e (2) apresentaram os simo uso de agrotóxicos. Isso torna o sistema que
maiores valores agregados. Contudo, o caso com vende em semiatacado mais robusto frente a osci-
produção de hortaliças em venda direta (5) apre- lações no mercado e mais salubre. Nessa perspec-
sentou valor agregado da mesma ordem de gran- tiva, emerge a questão de porque os produtores
deza que o caso de integração com frango e cana do caso de atacado não se convertem a um modo
(1) (Tabela 2), apesar de o investimento ser mui- de produção mais salubre e integrado. As maiores
tíssimo mais elevado na integração. Neste estudo, dificuldades para essa conversão parecem estar
as despesas se referem apenas ao custeio, não na menor disponibilidade de mão de obra – famí-
sendo incluída a depreciação de benfeitorias. Se a lia menor – e de não ter veículo próprio para o
depreciação fosse quantificada, é muito provável transporte da produção.
que o caso hortaliças em venda direta (5) apresen- Como em outros casos estudados na litera-
tasse maior valor agregado que o da integração tura, no caso de venda em semiatacado (varejão),
com frango e cana (1). a organização do lote e seu manejo efetiva-
Em termos de capacidade de remuneração da mente tornam a produção menos dependente
mão de obra, o caso cana-de-açúcar e frango (1) de insumos externos, mas requerem mais traba-
apresentou o melhor desempenho, gerando 38,98 lho (DULLEY et al., 2003; FAZENDA MALUNGA,
salários mínimos por trabalhador por ano, 3,25 2009).
Tabela 2. Valor agregado, número de trabalhadores-equivalentes e valor agregado por trabalhador em cinco lotes
no Assentamento Monte Alegre, Araraquara, SP, 2008. Valores expressos em salários mínimos
Caso Valor Agregado Trabalhador- equivalente Valor agregado / Trabalhador
Frango e cana, agroindústria (1) 66,26 1,7 38,98
Frango e leite, agroindústria (2) 89,15 3,3 27,02
Hortaliças, atacadista (3) 33,01 1,5 22,00
Hortaliças, semiatacado varejão (4) 44,10 2,2 20,04
Hortaliças, venda direta feira (5) 59,76 3,2 18,68
Fonte: Dados de campo coletados pelos autores.
RESR, Piracicaba-SP, Vol. 54, Nº 02, p. 243-260, Abr/Jun 2016 – Impressa em Junho de 2016
Luciane Cristina De Gaspari e Carlos Armênio Khatounian 251
RESR, Piracicaba-SP, Vol. 54, Nº 02, p. 243-260, Abr/Jun 2016 – Impressa em Junho de 2016
252 Características das Famílias, Estruturação da Produção e Estratégias de Comercialização em um Assentamento de Reforma Agrária
de renda. Este fenômeno é generalizado no meio escoamento via feiras exige diversificação da
rural brasileiro, conforme estudos do projeto produção, preparação de cada unidade e maior
Rururbano7. tempo gasto na venda em si, atrás da barraca.
Quanto à organização do trabalho, nota-se Os picos de serviços são nos dias que antecedem
que as estratégias familiares são pautadas pelas a feira e é quando se contrata a mão de obra de
características e expectativas da família e sua rela- dois trabalhadores (10,5% do total anual), sendo
ção com o contexto geral, como observado por a exploração que mais emprega.
Schneider (2003). Assim sendo, discute-se a seguir Nos fornecedores do setor atacadista, os sis-
de que forma as estratégias de uso do trabalho temas de produção são dimensionados para a
construídas pela dinâmica familiar resultam no mão de obra disponível, de modo que não há
valor agregado dos produtos comercializados contratação temporária; afinal, a capacidade de
durante o ano. remuneração do sistema não gera valor monetá-
A família com a exploração ligada à agroin- rio suficiente para a contratação de trabalhadores
dústria com cana-de-açúcar e frango (1) buscou externos. No atacadista intermediário (3), a mão
atividades com menor frequência de picos de de obra familiar é usada em 432 jornadas de tra-
trabalho (bimestral). O estabelecimento gera o balho anuais e tem 1,5 trabalhador-equivalentes
segundo valor agregado mais alto (66,26 SM/ano) disponível no estabelecimento. A exploração que
e requer 484 jornadas de trabalho com 8 horas, atende ao varejão (4) requer 624 jornadas de tra-
contratando 4,5% da mão de obra total. As estra- balho e tem disponível 2,16 trabalhadores-equi-
tégias adotadas pela família visam à redução de valente; deste modo, pode praticar um manejo
mão de obra devido à baixa disponibilidade de produtivo que requer mais trabalho que o esta-
trabalho familiar (1,7 trabalhador-equivalente) e belecimento (3).
a falta de experiência com serviços rurais. O esta- A baixa disponibilidade de mão de obra (1,5
belecimento ligado à agroindústria com frango e trabalhador-equivalente) e a pequena capaci-
leite (2) tem o maior valor agregado (89,15 S.M./ dade em desempenhar o trabalho que requer
ano) e também é o mais exigente em trabalho (960 432 jornadas de trabalho anual é um dos fatores
jornadas de trabalho anuais). Apesar de a dispo- que explica a lógica produtiva do lote focado no
nibilidade de mão de obra familiar ser a mais alta consumo doméstico (7).
dentre os casos, 3,3 trabalhadores-equivalentes, De modo geral, a distribuição do trabalho e
isso não é o suficiente, de modo que 7,5% da mão a inserção produtiva e laboral de cada membro
de obra total utilizada no sistema é contratada. são definidas na dinâmica interna das famílias e
Nos sistemas de produção voltados ao mer- nas relações com o meio em que elas estão inseri-
cado local (3), (4) e (5), a frequência de picos de tra- das (SCHNEIDER, 2003) e são decisivas nas estra-
balho é semanal, e em todos os estabelecimentos tégias adotadas. Para os agricultores de Monte
há baixa disponibilidade de mão de obra familiar, Alegre, a capacidade em desempenhar o serviço
segundo os agricultores. Dentre os estabeleci- é o fator determinante na distribuição do traba-
mentos voltados ao mercado local, o que pratica lho, que está relacionada com a idade e com as
a venda direta ao consumidor (5) é o que mais faz condições de saúde.
uso do trabalho (912 jornadas de trabalho anuais) Em relação à divisão em função do gênero do
e também é o segundo que mais dispõe de mão de trabalho, o trabalho das mulheres estava presente
obra familiar (3,08 trabalhadores-equivalentes), tanto nos espaços de produção como nos domés-
permitindo ao agricultor optar por uma atividade ticos (FERRANTE e DUVAL, 2012). Quanto à
que requer mais trabalho e frequência diária. O valorização do trabalho, sua importância reflete a
posição que homens e mulheres ocupam na hie-
7. Ver: Unicamp, Instituto de Economia Agrícola, <www.
eco.unicamp.br>: entrar em economia agrícola; projetos
rarquia familiar e não conforme a natureza do
de pesquisa: Projeto Rurbano. trabalho.
RESR, Piracicaba-SP, Vol. 54, Nº 02, p. 243-260, Abr/Jun 2016 – Impressa em Junho de 2016
Luciane Cristina De Gaspari e Carlos Armênio Khatounian 253
RESR, Piracicaba-SP, Vol. 54, Nº 02, p. 243-260, Abr/Jun 2016 – Impressa em Junho de 2016
254 Características das Famílias, Estruturação da Produção e Estratégias de Comercialização em um Assentamento de Reforma Agrária
nessa atividade e nessa mesma cidade por toda mos, tanto no caso do leite quanto dos frangos.
a vida. Assim, a organização da propriedade, as Essas agroindústrias exigem infraestrutura pro-
principais culturas, sua condução e comercializa- dutiva em bom estado de conservação como con-
ção se alicerçaram essencialmente no seu próprio dição para a integração, sendo que os custos dessa
conhecimento da produção e do mercado local. infraestrutura ficam a cargo do agricultor. Por
O agricultor, chefe da família que produz hor- essas razões, esses estabelecimentos ficam fragi-
taliças para venda direta em feira (5) explica sua lizados e dependentes frente ao setor financeiro,
opção pela convergência de dois fatores. Por um com risco de insucesso no caso de oscilações no
lado, é muito consciente do risco de insucesso mercado (FIGUEIREDO et al., 2006). Assim, o ele-
com as monoculturas, especialmente do risco de vado valor agregado (Tabela 2), é um forte atra-
mercado. Por outro lado, tinha experiência com tivo para a entrada na integração, mas não revela
várias espécies de hortaliças, tanto no acervo das o risco associado ao endividamento.
olerícolas de inverno (couves, alface, cenoura Nos estabelecimentos voltados ao mercado
etc), como em espécies do verão tropical, da cul- local, os investimentos em infraestrutura produ-
tura cabocla (abóboras, caxi, mandioca, feijão de tiva são sensivelmente menores. Como exemplo,
corda etc.). A venda direta veio através da inser- os investimentos realizados pelo agricultor que
ção em política municipal de abastecimento8. comercializa na feira (5), que aproveitou as con-
Em seu conjunto, a análise desses casos revela dições favoráveis de financiamento da década de
que a trajetória de vida dos assentados e sua expe- 1980 para adquirir um trator e implementos e hoje
riência anterior ao assentamento foi um fator compra equipamentos com recursos próprios. O
importante na escolha das atividades comerciais, produtor que vende para varejões (4) possui um
tanto no caso de o agricultor ter experiência agrí- automóvel para o transporte dos produtos, o que
cola, quanto no caso de não ter. Em outras pala- aumenta a fração do valor final do produto de que
vras, como constatou Alentejano (1997) no estado ele consegue se apropriar (SOUZA et al., 1998).
do Rio de Janeiro, a experiência anterior (ou a A visão conjunta dos casos estudados permite
ausência dela) é um fator muito relevante na defi- algumas conclusões. Os agricultores que se insta-
nição da ocupação econômica do lote, mas não laram no assentamento mais capitalizados pude-
é necessariamente condicionante nem limitante. ram investir mais em infraestrutura produtiva, na
Tendo em vista a dinâmica de trabalho dos estabe- expectativa de maiores rendimentos. Todavia, a
lecimentos, serão discutidos os investimentos em obtenção e manutenção da infraestrutura via cré-
infraestrutura produtiva construídos nos lotes. dito agrícola pode causar dependência e riscos.
Nos estabelecimentos que se orientaram para o
mercado local (3), (4) e (5), produzindo hortaliças,
5.5. Investimentos em infraestrutura
a necessidade de investimentos em infraestrutu-
nos estabelecimentos rurais
ras produtivas foi sensivelmente menor, e meno-
De sete casos estudados, os dois estabeleci- res seus riscos financeiros, embora com maior
mentos com benfeitorias produtivas de valores exigência em termos de trabalho para manter a
mais altos são os das famílias que já se instalaram produção em funcionamento.
no assentamento mais capitalizadas, a saber, as
duas integradas à indústria.
5.6. Os riscos das organizações produtivas
Os custos das benfeitorias produtivas dos
estabelecimentos ligados à agroindústria (1) e (2) Os riscos de desagregação dos sistemas pro-
obrigaram os agricultores a recorrer a emprésti- dutivos estão associados à dependência externa
(LAMARCHE, 1998), e se relacionam com a habili-
8. Lei n. 6.570, de 23 de maio de 2007. Trata das atividades
do Programa de Comercialização Direta da Produção da
dade que o estabelecimento rural tem de adaptar-
Agricultura Familiar “Direto do Campo”. -se a imprevistos. Neste estudo, os riscos podem
RESR, Piracicaba-SP, Vol. 54, Nº 02, p. 243-260, Abr/Jun 2016 – Impressa em Junho de 2016
Luciane Cristina De Gaspari e Carlos Armênio Khatounian 255
RESR, Piracicaba-SP, Vol. 54, Nº 02, p. 243-260, Abr/Jun 2016 – Impressa em Junho de 2016
256 Características das Famílias, Estruturação da Produção e Estratégias de Comercialização em um Assentamento de Reforma Agrária
Tabela 3. Investimentos produtivos necessários, na visão do agricultor, com vistas a manter o patrimônio agrícola e
a permanência dos estabelecimentos e fatores limitantes a sua continuidade
Segmento de mercado Investiria em Fatores limitantes
Frango e cana, agroindústria (1) Diversificação de atividades produtivas Baixa fertilidade do solo
Frango e leite, agroindústria (2) Equipamento p/ atividades já existentes Espaço produtivo
Hortaliças, atacadista (3) Trator / Diversificação de atividades produtivas Baixa fertilidade do solo, mão de obra
Hortaliças, semiatacado (4) Trator / Poço Água e mão de obra
Hortaliças, venda direta (5) Trator Baixa fertilidade do solo
Gado extensivo, sem comercialização (6) Trator / Diversificação de atividades produtivas Capital de investimento
Autoconsumo (7) Diversificação Sabedoria
Fonte: Dados de campo coletados pelos autores.
RESR, Piracicaba-SP, Vol. 54, Nº 02, p. 243-260, Abr/Jun 2016 – Impressa em Junho de 2016
Luciane Cristina De Gaspari e Carlos Armênio Khatounian 257
ao mercado local (3), (4) e (5), o associativismo é não há relação com os consumidores e o prazo de
visto como algo que: “não dá certo, cada um quer recebimento é de normalmente 15 dias.
fazer de um jeito”, “eles não sabem trabalhar”. Na venda direta, é praticamente nulo o risco de
De certa forma, é paradoxal constatar que os não pagamento, já que o produtor recebe à vista.
agricultores integrados declaram que sua estraté- Ademais, proporciona uma relação próxima com
gia para garantir a comercialização foi justamente o consumidor, possibilitando que o produtor seja
a integração, por exigir pequeno investimento de o primeiro a processar informações de tendências
tempo e de preocupação. E mencionam o anseio e alterações no hábito de consumo (CONSTANTY
de processar e comercializar de forma associa- e DAROLT, 2008). Além disso, o contato permite
tiva, forma essa que demanda elevado investi- que, em certa medida, o cliente possa também
mento em tempo e preocupação. Por outro lado, aprender sobre a diversidade e a sazonalidade dos
os agricultores orientados para o mercado local, produtos em sua região, de modo que, em longo
ainda que dedicando mais tempo para vender prazo, sintonize seus hábitos de consumo com
sua produção, não afirmam ter dificuldade na as possibilidades de produção do agricultor. Esse
comercialização e não declaram interesse em se contato direto e pessoal e mútuo aprendizado con-
associar. tribuem para a manutenção e o aprimoramento do
negócio (CONSTANTY e DAROLT, 2008).
5.8. Características dos processos
de comercialização
6. Conclusões
Nos estabelecimentos ligados à agroindústria
(1) e (2) os produtos são vendidos por contratos No processo de tomada de decisões, os fato-
de integração ou compra antecipada. O contrato res que levaram os agricultores a optarem por
é formalizado, mas isso não garante completa- diferentes vias de comercialização estiveram
mente o pagamento pela produção como efe- relacionados fortemente com características
tivamente ocorreu na crise de capitais de 2008, familiares. De particular importância foram a dis-
em que os estabelecimentos estudados integra- ponibilidade de mão de obra e a experiência tec-
dos à agroindústria não receberam o pagamento nológica e mercadológica presentes na família,
da produção comercializada. Nesta via de venda especialmente no chefe da família. A disponibi-
não há relação com os consumidores, e o prazo lidade de renda externa à propriedade e a pos-
de recebimento é de 30, 60 e 90 dias. sibilidade de financiamento externo, além do
Todas as explorações voltadas ao mercado potencial de geração de renda também foram
local comercializam em no mínimo dois canais muito relevantes.
de venda, diversificando seus compradores e Contudo, a importância de cada fator isolada-
segmentos de mercado e, assim, diminuindo os mente variou de família a família. A escolha das
riscos de não pagamento. Os atacadistas normal- vias de comercialização prioritárias resultou de
mente conhecem os agricultores há anos e man- uma ponderação desses fatores, incluindo uma
têm uma relação de amizade (BOAS e PIMENTA, avaliação nem sempre verbalizada do risco impli-
2011). Em certa medida, esses laços limitam o cado na escolha.
risco de não pagamento, mesmo não havendo As propriedades integradas à agroindús-
qualquer contrato formal. Para os atacadistas, as tria apresentaram os valores agregados brutos e
principais exigências são a qualidade do produto, valores agregados por trabalhador equivalente
pontualidade na entrega e preço. Já os varejões, e exigiram maiores investimentos e risco. Na
sacolões e quitandas, por serem numerosos em crise financeira mundial de 2008, essas proprie-
Araraquara, são de mais fácil acesso ao produtor dades entraram em colapso, junto às indústrias
(MACHADO e SILVA, 2004). Em ambos os casos, integradoras.
RESR, Piracicaba-SP, Vol. 54, Nº 02, p. 243-260, Abr/Jun 2016 – Impressa em Junho de 2016
258 Características das Famílias, Estruturação da Produção e Estratégias de Comercialização em um Assentamento de Reforma Agrária
RESR, Piracicaba-SP, Vol. 54, Nº 02, p. 243-260, Abr/Jun 2016 – Impressa em Junho de 2016
Luciane Cristina De Gaspari e Carlos Armênio Khatounian 259
FAZENDA MALUNGA FAZENDA MALUNGA Frédéric Bazin. Campinas: UNICAMP, 1998. 348 p.
Reportagem exibida no dia 18 de out. 2009 Globo Rural. (Coleção Repertórios)
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=
LOPES, L. A. B. Efeitos da integração vertical na
39hJnzbWuDM> e <https://www.youtube.com/watch?v
sustentabilidade dos empreendimentos rurais: o caso da
=cSYVsdYPN8Y>. Acesso em: 28 dez. 2014.
goiaba no estado de São Paulo. Dissertação (Mestrado).
FEIDEN, A. Metodologia para análise econômica em São Carlos Curso de Pós-graduação em Ciências
sistemas agroecológicos – 1ª Aproximação: Análise de Ambientais, UFSCar, 2006. 156 p.
culturas individuais. Embrapa Agrobiologia. Documento
LUZ, J. M. Q., SHINZATO, A. V. e SILVA, M. A. D. C.
141, Rio de Janeiro: Seropédica: Embrapa Agrobiologia,
Comparação dos sistemas de produção de tomate
dez 2001 30 p.
convencional e orgânico em cultivo protegido. Biocence
FERRANTE, L. S. B. Dinâmicas familiar, produtiva e Journal, v. 23, n. 2, p. 7-15, 2007. Disponível em: <ww.
cultural nos assentamentos rurais de São Paulo. Araraquara: seer.ufu.br/index.php/biosciencejournal/article/
UNIARA, Campinas: FEAGRI/UNICAMP, São Paulo: download/.../4531>. Acesso em: 28 dez. 2014.
INCRA, p. 65-78, 2003.
MACHADO, M. D. e SILVA, A. L. Distribuição dos
FERRANTE, V. L. B. e DUVAL, H. C. Mulheres assentadas produtos provenientes da agricultura familiar: um
na região central do estado de São Paulo: apresentado estudo de Caso. Revista de Administração da UFLA,
dados de pesquisas. João Pessoa, 2012. Disponível Lavras, MG, v. 6, n. 1, jan./jun. 2004.
em: <http://www.ufpb.br/evento/lti/ocs/index.
php/17redor/17redor/paper/viewFile/254/112>. Acesso MARTINS, J. S. O sujeito Oculto. Porto Alegre: Ed.
em: 28 dez. 2014. UFRGS, 2003, 238 p.
RESR, Piracicaba-SP, Vol. 54, Nº 02, p. 243-260, Abr/Jun 2016 – Impressa em Junho de 2016