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Apapaatai: rituais de
máscaras no Alto Xingu
São Paulo
2004
2
SUMÁRIO
Resumo 6
Abstract 7
Agradecimentos 8
Convenção ortográfica das palavras wauja 11
Lista de ilustrações 12
Mapa do Parque Indígena do Xingu e adjacências 14
1. Introdução 15
1.1 Dos museus ao campo e vice-versa 29
3. Doença e feitiçaria 84
3.1 Witsixu, a doença como estado da alma 84
3.2 O rapto como multiplicação e subtração da alma 93
3.3 Destinos da alma 96
3.4 Propriedades sensoriais da alma 99
3.5 Feitiçaria e morte 108
3.6 A anti-arte dos objetos patogênicos 123
RESUMO
Esta tese é uma etnografia das relações sociais que os índios Wauja do Alto
Xingu estabelecem com os seres prototípicos da alteridade — os apapaatai—via
adoecimentos e rituais de máscaras e aerofones. A descrição e análise dessas
relações estão centradas numa estrutura sequencial de três ações que os Wauja
caracterizam por passear (com), trazer e fazer apapaatai. O passear implica em
estar sofrendo de um adoecimento grave que resulta no total ou parcial
deslocamento da alma (i.e. da consciência e da substância vital) do doente para
o mundo dos apapaatai. A alma wauja é divisível, sendo passível de ser
distribuída entre uma diversidade considerável de apapaatai, cada qual ligado a
rituais específicos e inter-relacionantes. Ao xamã visionário-divinatório cabe
descobrir com quais apapaatai estão a(s) alma(s) do doente, prosseguindo-se,
então, com uma terapia para o resgate da(s) alma(s) — o ritual de trazer
apapaatai, no qual certos parentes do doente são convocados a incorporar os
apapaatai em posse da(s) alma(s) e a devolvê-la(s) ao doente. Tal incorporação
confere a esses parentes o status de kawoká-mona, o qual se caracteriza por
“apresentar” ritualmente os apapaatai para o doente. A terapêutica se completa
quando os kawoká-mona fazem os apapaatai na forma de máscaras e/ou
aerofones rituais, sobre os quais o doente (ou ex-doente, caso seu estado de
saúde tenha se normalizado) assume o status de nakai wekeho (“dono” ritual, i.e.
aquele que cuida/alimenta os apapaatai). Contudo, o ritual de apapaatai é muito
mais do que um meio de curar: suas implicações sociológicas mais relevantes só
podem ser entendidas por meio dos eventos subsequentes à festa em si, cujo
desenvolvimento completo pode durar quase uma vida inteira. A manutenção
desses rituais consolida duas categorias sociais permanentes e fundamentais
entre os Wauja — kawoká-mona e nakai wekeho —, de cujas articulações
resultam numa série de serviços e produtos diretamente em favor do “dono ritual”
e da própria continuidade do ritual. Procuro demonstrar que a ritualização da
doença é um dos pivots centrais da socialidade wauja. É a partir desses rituais
que se articulam as trocas entre as diferentes unidades residenciais, o ethos da
generosidade-respeito-vergonha e a cosmopolítica wauja.
7
ABSTRACT
Key words: Wauja Indians; rituais of masks and aerophones; illness and cure;
social agency of art; cosmopolitics.
This thesis is an ethnography of the social relations which the Wauja Indians of
the Upper Xingu establish with the prototypical beings of alterity — the apapaatai
— via both sicknesses and rituais involving masks and aerophones. My
description and analysis of these relations are keyed to a sequential structure of
three actions, which the Wauja characterize as journeying (with), brínging and
making apapaatai. Journeying implies suffering from a serious illness which
results in the total or partial capture of the sick person’s soul (i.e. their
consciousness and vital substance) to the world of the apapaatai. The Wauja soul
is divisible, capable of being distributed between a widely diverse range of
apapaatai, each of which is linked to specific inter-relating rituais. The visionary-
divinatory shaman assumes the task of discovering which apapaatai have
captured the soul(s) of the sick person; this phase is followed by a therapeutic
process involving recovery of the soul(s) — the brínging apapaatai ritual, in which
some of the sick person’s kin are summoned to embody the apapaatai who
kidnapped the soul(s) and return them. This embodiment confers these kin with
the status of kawoká-mona, which determines that they will ritually ‘present’ the
apapaatai for the sick person. The therapy is complete when the kawoká-mona
make the apapaatai in the form of ritual masks and/or aerophones, in relation to
which the sick person (or ex-sick person if his or her health has returned)
assumes the status of nakai wekeho (ritual ‘owner,’ i.e. one who looks after/feeds
the apapaatai). However, the apapaatai ritual is much more than a means of cure:
its wider sociological implications can only be understood through events
unfolding after the festival itself, a process of development which may take almost
an entire lifetime. The long-term maintenance of these rituais consolidates two
permanent and basic social categories among the Wauja — kawoká-mona and
nakai wekeho — whose articulations result in a series of Services and products
directed towards the ‘ritual owner’ and the continuance of the ritual itself. I look to
show that the ritualization of sickness is one of the central pivots of Wauja
sociality. These rituais form the médium for interconnecting the exchanges
between different residential units, the ethos of generosity-respect-shame and
Wauja cosmopolitics.
8
AGRADECIMENTOS
Consoantes
P oclusiva bilabial surda
t oclusiva alveolar surda
k oclusiva velar surda
ts africada alveolar surda
X africada alveo-palatal surda
s fricativa alveolar surda
j fricativa alveo-palatal surda
h fricativa glotal
m nasal bilabial
n nasal alveolar
Semi-vogais
y alta anterior fechada, não-arredondada
w alta posterior fechada, arredondada
Vogais
i alta anterior fechada, não-arredondada
u alta posterior fechada, arredondada
e média anterior fechada, não-arredondada
o alta central fechada, não-arredondada
a baixa central fechada, não-arredondada
1 Esta convenção segue a norma ortográfica utilizada pelos Wauja e nos materiais didáticos
elaborados em sua língua; trata-se de uma escrita de base fonêmica estabelecida a partir do
trabalho linguístico da missionária Joan Richards, membro do Summer Institute of Linguistics
(SIL).
O leitor encontrará na literatura etnológica e nos documentos indigenistas o termo Waurá, que é o
etnônimo difundido desde von den Steinen (1886). Grafo Wauja por este ser o etnônimo auto-
atribuído.
Nota editorial: os grifos em itálico são usados para ênfases e para distinguir as palavras
indígenas, inclusive os nomes dos personagens míticos. Mantêm-se exceções apenas para os
nomes pessoais e os etnônimos.
12
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
2 Todas as fotografias são da autoria de Aristóteles Barcelos Neto, exceto a de número 8, cuja
autoria é de António Rento, e as de número 68 e 69, cuja autoria é de Hukai Wauja.
3 As figuras 32, 33, 34, 35, 36, 37, 40 e 41 foram desenhadas por mim a partir das máscaras do
ritual Apapaatai lyãu de julho-agosto de 2000, hoje pertencentes ao acervo do Museu Nacional de
Etnologia de Portugal.
4 As figuras 38, 39, 42 e 43 foram desenhadas por mim a partir das máscaras do ritual Apapaatai
lyãu de fevereiro-março de 2002, as quais permaneceram na aldeia wauja após o ritual.
13
I
15
1
INTRODUÇÃO
Esta tese é uma etnografia das relações sociais que os índios Wauja do
Alto Xingu estabelecem com os seres prototípicos da alteridade — os apapaatai
— via adoecimentos e rituais de máscaras e aerofones. Embora o escopo desta
tese seja sobretudo descritivo, há uma preocupação teórica central, a saber: o
estatuto ontológico da arte wauja.
O desenvolvimento da etnografia baseia-se em uma estrutura sequencial
de eventos relacionantes — adoecer (passear com apapaatai), curar (trazer
apapaatai) e festejar (fazer apapaatai, ação também orientada para a cura) —
dada pelo modelo nativo, o que resulta em um meta-modelo etnológico. O terreno
analítico-interpretativo em que se produz essa etnografia é aquele que “postula o
caráter social das relações entre as séries humana e não-humana” (Viveiros de
Castro, 2002a: 364)5. Diante de tal proposição, esta etnografia impõe uma
questão que é fulcral para o seu próprio desenvolvimento: a de saber qual é a
posição que a arte ocupa nesse panorama relacional, visto que a mesma se
insere, sobretudo, como personagem integrante da série não-humana? É no
sentido deste questionamento que oriento esta tese e defino seu objetivo como
sendo a descrição e análise, no âmbito da etnografia wauja, dos processos nos
quais que as artes se tornam agentes sociais. Enfim, é por meio da descrição de
um meta-modelo etnológico, depreendido das experiências artísticas e estéticas
nativas, que tentarei fazer uma reflexão sobre a socialidade6 wauja.
5 A origem dessa discussão na Etnologia das terras baixas da América do Sul remonta às
Mitológicas de Lévi-Strauss. Mais recentemente ela tem sido avançada pelas contribuições de
Arhem (1996), Baer (1994), Descola (1992, 1994, 1998), Fausto (2001, 2002a), Gallois (1988),
Lagrou (1998), Lima (1996, 1999), Overing (1982, 1986), Rivière (1995, 2001), Silva (1998)
Velthem (2003), Vidal (no prelo), Viveiros de Castro (1996a, 2002a, 2002b, 2002c), entre muitas
outras.
6 Socialidade não é aqui um conceito teórico propriamente dito, como por exemplo, o de
Sociedade. As bases teórico-metodológicas do conceito de socialidade ainda estão em
construção. Um grande número de trabalhos que fazem uso desse conceito em emergência
“share in common a rejection of aspects of the Durkheimian heritage, such as the idea that all
humans seek to represent the social formations in which they live as in some senses ‘societies’”
(McCalIum, 2002: 4, grifo da autora). Esses trabalhos almejam caminhos alternativos de análise
mais voltados para as ontologias não-ocidentais. O meu uso do conceito de socialidade inspira-se
no modo como McCalIum (2002) o desenvolve em sua etnografia sobre os Cashinahua: o
16
conceito é moldado pela teoria nativa e ao mesmo tempo delineado no abrangente contexto
amazônico (Viveiros de Castro, 2001, 2002a, 2002b).
7 Sob as tônicas qualificativas de “beleza”, “exotismo”, “sabedoria” e “mistério”, a televisão, o
cinema, a publicidade, o mercado editorial e os antiquários de diversas partes do mundo tiveram
uma longa e incisiva atuação na veiculação de imagens e de objetos de arte dos xinguanos,
tornando esses povos amplamente conhecidos, dos quais inclusive se objetificou um padrão
genérico de beleza para o índio brasileiro (Franchetto, 1992). Entre as décadas de 1960 e 1990,
as famosas fotos de Jesco von Putkammer, tornadas cartões postais, e colocadas à venda em
bancas de jornal por todo o país, tiveram um papel importante na difusão de uma imagem-padrão
dos xinguanos.
8 Os Wauja habitam as proximidades da lagoa Piyulaga (traduzida por lugar/acampamento de
pesca, e que também dá o nome à aldeia), que está ligada por um canal à margem direita do
baixo curso do rio Batovi, na região ocidental da bacia dos formadores do rio Xingu. A aldeia
circular de Piyulaga está a 16 km a oeste da aldeia kamayurá de Ipavu e a 22 km do Posto
Indígena Leonardo Villas-Bôas.
17
objetivo é realmente explicitar uma teoria nativa deve-se seguir a máxima de que
os apapaatai são pura intenção, seja ela emanada do corpo ou da mente (alma),
como veremos. Os apapaatai são basicamente intenções-doença, intenções-
beleza, intenções-cura, intenções-opulência, intenções-morte etc. A categoria
apapaatai recorta, portanto, uma série de campos de ação (sobre a “doença”, a
“cura”, o “ritual”, a “política”, a “economia” e a “moralidade”), formando um
mosaico intrincado que permite múltiplas abordagens. No caso desta tese, a arte
é pensada como um ponto de convergência desses campos, que, aliás, implicam
uns nos outros, pois cada um contém e/ou interfere nas relações dos “campos
adjacentes”. Socialmente atribuídos de intenção, os objetos de arte são capazes
de interagir e de causar eventos no meio em que eles se situam. Assim, entre os
Wauja, por exemplo, uma flauta-apapaata/ pode vir a ser o índice de agência de
um estupro coletivo.
O projeto de Gell é extrair de uma série bastante diversa de ontologias
específicas um fundo comum para uma teoria explicativa de fenômenos
agentivos. Para tanto, Gell faz uma descontextualização controlada, inter-
relacionando casos etnográficos e tornando saliente pelo menos uma
semelhança central e comum, seja no Ocidente moderno ou em “tal ou tal ilha do
Pacífico”: a atribuição de intenção e consciência aos objetos não-viventes. O
problema da arte como intenção não é simples e direto como parece, e não será
aqui o lugar da sua discussão e defesa. Deixo a justificativa da minha posição
nas mãos de Gell, de quem tomo de empréstimo as palavras abaixo:
Vários objetos wauja que vamos analisar são categorizados pelos nativos
como “artesanato”: frutos de uma relação metropolitana. Por outro lado, há uma
série de objetos “tradicionais” que os próprios Wauja não reconhecem como
“artesanato”: frutos de uma relação cosmo-politana. Apesar das restrições
conceituais da categoria “artesanato indígena”, não se deve descartá-la, pois é
do conflito/contraste entre as transações metropolitanas e cosmo-politanas que
surge uma aproximação mais precisa do que vem a ser a “arte wauja”.
Ao empregar o conceito arte, procuramos situar os objetos wauja numa
posição comparativa, seja do ponto de vista interno das suas diferenças, seja do
externo, este, porém, surge de maneira mais ou menos implícita, guiando as
análises nas entrelinhas. Seguindo Gell (1998: 6-7), não definirei arte a priori de
22
10 A existência de rituais voltados para a mobilização de trabalhos coletivos já tinha sido referida
por Basso (1973, 1981), Dole (1956-1958), Menezes Bastos (1978), Viveiros de Castro (1977) e
Zarur (1975). Entretanto, é ausente nos trabalhos desses autores uma apreensão sistémica
desses rituais.
28
mencionei antes, esses rituais têm sua origem na doença/cura, todavia, mesmo
depois de curado, o doente (então “dono” ritual) e seus kawoká-mona continuam
a investir na manutenção de alguns desses rituais.
A minha hipótese é que as relações sociais com os apapaatai, na forma da
doença e do ritual, são o pivot central da socialidade wauja. É a partir da doença
que se articulam, como as trocas entre os não co-residentes, a interpretação
xamânica da cosmologia, o ethos da generosidade-respeito-vergonha — questão
bastante cara à etnologia xinguana como bem mostraram Ellen Basso (1973) e
Viveiros de Castro (1977) — e a economia política. Dos adoecimentos graves aos
trabalhos coletivos, passando pelo ritual, temos um fluxo contínuo de
transformações dos apapaatai em estado “bruto”, em estado “crítico” (a doença)
em estado “sociológico” (o ritual). A doença tem um “papel absolutamente
integrador” (Viveiros de Castro, 1977: 230) entre os domínios humano e não-*
humano, mas é a sua ritualização que instaura o seu papel político.
Um dos objetivos da terceira parte da tese é entender a sociológica da
manutenção desses rituais, que, para além dos seus efeitos meramente
terapêuticos, incide diretamente sobre a ênfase wauja na (re)produção política da
ordem social. Se o ritual surge em função de superar uma condição patológica, a
sua continuidade estaria no núcleo de uma cosmopolítica, cuja operação
simbólica básica parece ser a “familiarização” dos apapaatai, ou seja, transformar
uma relação de “predação” (doença) em uma de “produção” (política). Nas
palavras de Fausto (2001: 538), esclareço um pouco essa operação: “O
desenvolvimento das capacidades reprodutivas (em sentido amplo) da pessoa
depende da apropriação de um excedente de agência (de intenção e atividade),
que existe em graus dessemelhantes nos mundos humano e não-humano”. No
caso wauja, tal excedente de agência é a potência patológica dos apapaatai,
sobre a qual o ritual é posto a controlar e transformar.
Rico em história e rico em rituais, o Alto Xingu impõe uma condição básica
para o seu estudo enquanto um sistema regional: a de que muito pouco desse
sistema pode ser compreendido fora do profundo senso de historicidade que os^
nativos têm das suas relações (Franchetto e Heckenberger, org. 2001). O
sistema cerimonial xinguano, forjado ao longo de séculos, expressa uma das
mais claras matrizes do pensamento histórico indígena. Configurado e ao mesmo
tempo configurador de aceitabilidades estéticas e morais, de modalidades de
29
1.1
DOS MUSEUS AO CAMPO E VICE-VERSA
11 Conforme as contribuições de Guss (1989), Ribeiro (org. 1986); Velthem (2003), Vidal (org.
1992); Viveiros de Castro (1979), entre outros.
12 Conforme os trabalhos de Pedro Agostinho’ (1993) e Michael Heckenberger (2001a).
32
13 Como parte desse conjunto, a obra de Karl von den Steinen merece, por si só, uma atenção
especial. O seu impressionante material sobre a arte dos marquesanos só muito recentemente foi
explorado com profundidade (Gell, 1993, 1998), e o seu material sobre a arte xinguana ainda
aguarda novos olhares, algo que reservo para os anos próximos.
14 A formação dessa coleção de artefatos da cultura material wauja foi feita em parceria com
Maria Ignez Mello.
15 Refiro-me às exposições Wauja: índios ceramistas do Xingu e A carta de Caminha e as artes
indígenas (Barcelos Neto & Athayde, 2001), de cujas curadorias participei.
33
16 Na temporada de pesquisa do ano 2000, levei papéis de maiores dimensões e materiais mais
próximos às texturas frequentemente utilizadas pelos Wauja. O resultado foi novamente
excepcional. Os pastéis a óleo proporcionam o brilho e a intensidade pictórica que tanto lhes
agradam esteticamente e também a maciez no manuseio. Uma sequência desses desenhos será
discutida no capítulo 5.
34
pesquisador e/ou de seus colaboradores. Apesar desta tese ser devedora dos
pontos de vista dos seniores wauja, não foi menos importante a colaboração dos
jovens. A política do saber em Piyulaga é a de evitar que os jovens demonstrem
o que sabem e ao mesmo tempo colocar a pesquisa sob a “vigilância-controle”
dos mais velhos. Se o pesquisador resolver tomar suas decisões apoiando-se
nos primeiros, certamente despertará o ciúme dos mais velhos, deixando
abertura para possíveis situações de conflito. Fiz significativos esforços para
corrigir o desequilíbrio que se impõe entre a colaboração de homens jovens e
maduros para a pesquisa, tanto porque me vali muito do conhecimento que
aqueles têm do português. Muito do estudo de roças que realizei deveu-se à
colaboração dos jovens, assim como o de vários aspectos cênicos e económicos
do ritual e de exegeses sobre a noção de doença.
O direcionamento da investigação para os rituais de máscaras não foi
traçado em gabinete; foram os desenhos dos sonhos e transes dos xamãs que
me conduziram aos apapaatai e seus papéis agentivos na vida social wauja. A
partir da segunda semana em campo, em 1998, os apapaatai desenhados
começaram a povoar os sonhos dos xamãs desenhistas, e os desenhos
produzidos a estimular novos sonhos, num processo dialético que tendia a uma
expansão impressionante, a ponto de quase esgotar o volumoso material de
desenho que levei. Quando muitos blocos de papel já estavam repletos de
desenhos, fui advertido por dois xamãs visionários (yakapá) que o excesso de
imagens por eles reveladas estava a desagradar os apapaatai, os quais poderiam
se voltar contra nós (i.e. eu e os desenhistas) em ofensivas inesperadas. Este
acontecimento foi a minha porta de entrada para o sistema moral que envolve as
relações com os seres extra-humanos e o modo como a pesquisa sobre os
desenhos foi lentamente dando lugar a um estudo sociocosmológico dos
apapaatai.
Entre os Wauja, a produção de desenhos figurativos é uma atividade com
implicações extraordinárias exatamente porque a imagem não é uma simples
representação, mas uma réplica, por isso o desenho em si já é o estabelecimento
de um contato. Ora, o contato com os seres extra-humanos é envolto de perigos,
pois eles são, a priori, agentes patológicos. As relações com os apapaatai exigem
as mesmas prerrogativas morais aplicadas às relações com os afins: evitação,
respeito, vergonha e silêncio. Apenas os desenhistas que possuem uma relação
36
18 A minha falta de treino em linguística certamente teve um peso decisivo na orientação do meu
olhar para domínios extralingúisticos da realidade observada. Assim, análises que poderiam ser
inicialmente construídas sobre o cimento das etimologias e da sintaxe, foram unicamente
construídas sobre a observação do espaço cênico, dos regimes temporais dos rituais, das
categorias de relações, da iconografia, da etiqueta, do sistema de objetos, da alimentação etc.
19 Há, contudo, uma exceção que merece registro. Durante alguns anos da década de 1990, os
Wauja, que residiam no Posto Indígena de Vigilância (PIV) do Batovi, tiveram uma professora de
português de origem fulni-ô, esposa do filho de um dos chefes wauja.
5o Depois de Emilienne Ireland, Joan Richards é a pessoa não-indígena que mais tempo
permaneceu entre os Wauja. Desde que deixou Piyulaga, na década de 1990, a Sr3 Richards
fixou residência na cidade mato-grossense de Canarana, de onde coordena, com a colaboração
de jovens wauja, os trabalhos de tradução da Bíblia para o seu idioma.
39
21 O PIX é uma unidade administrativa da FUNAI com quadros técnicos formados por índios e
não-índios; o PIX é assistido pela Associação Terras Indígenas do Xingu (ATIX), pelo Instituto
Socioambiental (ISA) e pelo Distrito Sanitário Especial Indígena Xingu, por meio de convénio
entre Fundação Nacional de Saúde a Escola Paulista de Medicina.
40
22 As peças originais selecionadas para as coleções precisavam ser retiradas de uso para que
não sofressem desgastes, danos ou fossem destruídas. Devido à dimensão da segunda coleção
e às necessidades específicas do Museu Nacional de Etnologia era impossível transportá-la de
uma só vez, exceto se o projeto tivesse recursos suficientes para pagar um avião cargueiro, o que
não era o caso. Foram necessárias três viagens — uma em fevereiro, outra em junho e a última
em setembro — para que toda a coleção fosse documentada, embalada e transportada com
segurança até o seu destino.
41
23 Lembro que as alíneas orçamentarias das agências estatais de fomento à pesquisa (CNPq,
FAPESP, Pró-Reitorias de Pesquisa e de Pós-Graduação) não permitem gastos com presentes
para os índios, mas as instituições com as quais trabalhei, sim.
42
JJ
Essa “confusão” parece já ter sido superada pelos xinguanos, e o
funcionamento do “poder de fato”, bem entendido. Um caso recente pode ilustrar
melhor um pouco das muitas mudanças ocorridas no Alto Xingu nos últimos 25
anos, mas que já eram embrionárias desde a década de 1970. Em outubro de
2003, o governador do Estado de Mato Grosso montou um gabinete itinerante de
governo, e o instalou por alguns dias no PIX, mais precisamente no Posto
Indígena Leonardo Villas-Bôas, a 22 km da aldeia wauja. Meses antes, alguns
chefes xinguanos haviam visitado o governador em Cuiabá e o convidaram a
conhecer o Parque. O contexto em que se realiza, hoje, a pesquisa de campo no
Alto Xingu é fortemente marcado pela explícita abertura dos chefes xinguanos
43
aos altos setores do Governo, tidos por aqueles como os mais capazes de
“ajudar”.
Em meio a tudo isso, sabe-se que os xinguanos (os Wauja pelo menos)
incorporam os antropólogos ao conjunto desses agentes como aqueles com um
médio ou baixo potencial de “ajudar”. A pesquisa antropológica em si não é,
nesse contexto, tida como algo necessário. Motor de barco, rádio amador, placa
solar, sim. Se o antropólogo for capaz de prover os Wauja com esses bens, então
a sua antropologia poderá ganhar terreno. O problema é que a mediação da
pesquisa por meios monetários tem implicações práticas nas relações com os
Wauja, pois para eles quanto menor for a capacidade do antropólogo de “ajudar”,
menores são as suas possibilidades de permanecer em campo. No meu caso,
sem os Museus, essa “ajuda” teria sido impossível.
Enfim, esta etnografia é baseada em um trabalho de campo pouco
ortodoxo sob a perspectiva de muitos acadêmicos — sem proficiência no idioma
nativo, dividido em vários períodos curtos, irrelutante diante de determinadas
censuras dos Wauja, e mesclado com dois grandes projetos museológicos. Este
relato não tem o intuito de servir de justificativa para eventuais falhas na
etnografia ou de fazer julgamentos, e sim de deixar claro ao leitor as condições
em que o seu desenvolvimento foi circunscrito.
Vamos agora ao encontro dos apapaatai.
44
Parte I
ARTE E PATOLOGIA
45
2
FRAGMENTOS DE COSMOLOGIA WAUJA
24 Todas as narrativas foram traduzidas ao português por jovens wauja alfabetizados. Em sua
revisão, as traduções foram submetidas a intervenções editoriais nos níveis fonético, morfológico
e sintático, especialmente no que se refere à concordância de gênero e número. Ademais, termos
correntes como “as irmãozada”, “as genrozada”, “as tiozada” foram substituídos por os irmãos, os
genros e os tios, respectivamente. Portanto, o “português wauja” é muito pouco visível nesta
edição.
46
“Doença de índio”? Esta é uma das principais chaves conceituais para esta
etnografia. Por “doença de índio”, Atamai simplesmente queria dizer que ele
estava com apapaatai, e que a ciência para “livrá-lo” dos mesmos era dominada
por xamãs, e não por médicos. Por trás desse breve diálogo há um esboço da
cosmologia wauja. O princípio fundamental já está posto aí: que a doença é uma
relação e que os apapaatai são um padrão que conecta relações (Gell, 1998).
Vejamos um pouco mais sobre o desenvolvimento desta história.
25 Conforme discute Viveiros de Castro, a categoria Sobrenatureza permite definir uma terceira
categoria de seres da cosmologia xinguana — os espíritos, “que (aliás) não são nem humanos
nem animais”, não cabendo, portanto, segundo a categorização êmica, na díade Natureza/Cultura
— e “designar um contexto relacional específico e uma qualidade fenomenológica própria, distinta
tanto da intersubjetividade característica do mundo social (humano) como das relações
‘interobjetivas’ com os corpos animais” (2002a: 396). É, portanto, nestes sentidos que a categoria
sobrenatureza é empregada neste texto.
48
Figura 1 - Neste desenho, Aulahu faz uma comparação entre um yerupoho Wejeje (Sapo) e um
wauja (humano). Embora o Sapo seja antropomorfo, nota-se claramente que seu corpo guarda
características anfíbias, como a língua e os dedos das mãos e dos pés. Este Sapo raptou a alma de
Aulahu anos atrás, causando-lhe uma grave doença. O desenho retrata o passeio-rapto de Aulahu
com o Sapo. O passeio-rapto corresponde a uma lenta Animalização da pessoa raptada. A reversão
desse processo é garantida pelos yakapá, os xamãs visionário-divinatórios wauja. Graças a
intervenções xamânicas e rituais esse Sapo tornou-se kawoká (“espírito protetor'’) de Aulahu. Autor:
Aulahu, 2000.
Figura 2 - Duas formas do peixe-pato (talapi). À esquerda a forma “roupa” (apapaatai), com
enormes esporões e flechas a evidenciar o seu poder patogênico/letal. À direita a forma peixe,
animal consumível, ser de natureza mona (“ordinária”), sem poderes sobrenaturais. Ambos são
transformações de um mesmo “princípio” Animal (antropomorfo), existente no mundo antes do
surgimento dos humanos. Autor: Kamo, 1998.
49
2.1
O NASCIMENTO DO SOL E DA LUA
26 Os Wauja traduzem yerupoho por “povo antigo” (vide figura 1). Não tenho como fazer uma
etimologia do termo, apenas sei que poho pode ser diretamente traduzido por povo, grupo social.
Assim, Yawalapoho são os Yawalapiti; Kupatopoho, o povo-peixe; Yanumakapoho, o povo-onça.
27 As grafias maiúscula e minúscula empregadas nos nomes dos seres não-humanos dizem
respeito à distinção entre pessoas-animais (doravante Animal) e animais-animais (doravante
animal) e entre pessoas-plantas (doravante Plantas) e plantas-plantas (doravante planta). Assim,
“onça” corresponde ao animal da espécie Panthera onça, enquanto “Onça” a uma pessoa-onça
(Yanumaka). Os nomes dos objetos que estão mais próximos da prototipia são também grafados
50
2.2
A CRIAÇÃO DOS HUMANOS
Quadro 1
Princípios da diferença entre as séries humana e não-humana
Exterior Ungua e
sociocultural Tecnologia
progressão da diferença
2.3
Um princípio patogênico
umbigo. Mas qual a implicação disso? O que os Wauja querem dizer é que um
corpo sem umbigo não foi feito conforme os mesmos processos e/ou substâncias
que são feitos os corpos wauja: prolongada acumulação de esperma, misturado
de alguma quantidade de sangue materno, no interior de uma placenta31. Os
yerupoho, Kwamutõ e os Gêmeos podem fazer corpos sem a necessidade de
cópula e de placenta: eles transformam substâncias em corpos. Mas não é só
nos modos de fabricação que eles diferem dos humanos, a natureza das
substâncias que eles usam também difere. Do que são feitos então os corpos dos
não-humanos? As substâncias que compõem o corpo de Kwamutõ é uma
preocupação ausente das exegeses wauja, mas as que originaram os yerupoho
são objetos de elaborações bastante detalhadas.
Em primeiro lugar, é importante dizer que a categoria yerupoho (figura 1)
abrange seres de atributos muito diversificados, alguns são unicamente
antropomorfos, outros, zooantropomorfos, alguns são inteligentíssimos e
destemidos, outros débeis e medrosos, alguns são grandes chefes, outros,
grandes músicos, dançarinos, pintores etc. O que a maioria dos yerupoho tem em
comum é alguma potência xamânica, manifestada de modo bastante desigual
entre eles. É por meio da sua potência xamânica que os yeruhopo entram em
contato com os humanos, raptam as almas destes e “negociam” a sua devolução
com os xamãs humanos.
Xamanismo e sexo contínuo (leia-se reprodução biológica) são atividades
absolutamente incompatíveis, cuja consequência se nota na aversão que a
maioria yerupoho têm ao sexo e ao seu cheiro. Tal aversão tem implicações nas
formas reprodutivas dos corpos, que, entre os yerupoho, não se dão apenas por
meio da cópula-gravidez-parto. Os yerupoho “mais” xamânicos não se
reproduzem “biologicamente”, em geral eles fazem bonecos que depois de
rezados-soprados32 tornam-se seus filhos.
31 Vide Viveiros de Castro (2002c) para uma discussão sobre a teoria xinguana da concepção.
Segundo os Wauja, a placenta não é uma parte do corpo do bebê, uma visão inversa à dos Piro,
conforme a descrição de Gow (1999). A placenta é o yamukutai onaT, literalmente o recipiente que
contém o bebê.
32 Ejekepei é o verbo que se refere à ação de soprar (tabaco, por exemplo), rezar (soprar
palavras) e tocar um instrumento de sopro (nejekepei tankwara\ estou a tocar clarinete). Como
ação xamânica, o soprar-rezar não somente dá vida aos corpos, como também restaura as almas
que lhe foram raptadas. A sequência terapêutica rezar-soprar é marcada respectivamente pelos
rituais Pukay (de cantos com maracá) e Manapatuwatapai Apapaatai (distribuição de mingau e
tabaco seguida de visitação ao doente). Voltaremos a este assunto no capítulo 4.
55
Há várias substâncias que podem ser usadas para formar um corpo: o das
panelas cantoras que acompanham a grande cobra Kamalu Hai, por exemplo, foi
modelado (criado) com as fezes da própria cobra, sendo assim até hoje; o barro
que os Wauja retiram dos depósitos aluvionais são fezes deixadas por Kamalu
Hai. Mas nós, os humanos, vemos como argila, o que os apapaatai e yerupoho
vêem como fezes.
Os yerupoho também têm sangue e esperma, substâncias elementares
para a formação dos corpos, mas seus fluídos são fétidos (oho) em oposição aos
mesmos fluídos dos humanos, que têm um cheiro característico, marcado pela
categoria aho, que abrange o cheiro do peixe cru, do esperma, do sangue e do
jenipapo (cf. também Viveiros de Castro (1977: 168) a respeito da categoria ahi
entre os Yawalapíti), que por sua vez correspondem metonimicamente ao cheiro
de sexo. Os yerupoho têm enorme aversão ao sangue, a substância aho por
excelência, embora, paradoxalmente, comam peixe cru, um alimento aho. Já oho
diz-se basicamente para as fezes, a carniça e a comida podre. Portanto, o
esperma que faz o corpo de certos yerupoho é podre-fétido. Ainda que este seja
esperma (gaaki), não se trata do mesmo esperma dos humanos, pois este último
é ahopai e o dos yerupoho ohopai. Se as substâncias que produzem os corpos
são de naturezas diferentes, igualmente os produtos que delas resultam também
devem ser diferentes.
O problema que nos interessa é que essa diferença é radicalizada: o corpo
dos yerupoho existe em uma condição patológica para os humanos. O corpo de
um yerupoho é dito ser puro ixana (feitiço), independentemente se ele foi feito de
fluidos sexuais e de sangue ou de outra substância, como argila, madeira, palha
etc. Assim, se um humano estabelece contatos corporais com os yerupoho, ele
corre imenso risco de ficar doente ou, no pior dos casos, de morrer
instantaneamente.
Não disponho de dados para explicar o porquê da natureza patológica do
corpo dos yerupoho. O que realmente importa para avançar a análise são as
consequências dessas diferenças para as relações interseriais. Mas antes,
vejamos as intensificações das diferenças interseriais e como a agência de Kamo
interferiu nesse processo e ordenou o mundo tal como os Wauja o experienciam.
56
2.4
AS FORMAS ALIMENTARES DA TRANSFORMAÇÃO
impossibilidade de viverem sob o sol. Tão logo soube disso, Kamo procurou um
modo de fazer o sol aparecer no céu, indo à procura de uma “máscara” (Kamo
mohãjá opaka, “máscara facial vermelha de Kamo”), que pudesse “virar” o sol.
Kamo arremessou-se com a “máscara vermelha” ao céu e a aurora lentamente
se fez, Kejo o seguiu mais tarde, vindo a se tornar o astro lunar, também por
meio de um mascaramento.
Por fim a longa noite dos yerupoho foi a última grande ação de Kamo, a
qual dividiu o tempo em dois: o antes e o depois do ciclo dia e noite. Já o ciclo
mensal lunar, inaugurado por Kejo, parece não ter consequências geocósmicas
relevantes. Tudo o que aconteceu no tempo das trevas é mito (awnaki-iyajo), a
história (awnaki)34 surge com a transferência da cultura (fogo e agricultura) para a
série dos humanos, ao custo de um afastamento entre a humanidade dos
yerupoho e a humanidade dos humanos. Mas esse afastamento, como o próprio
pensamento wauja expõem, veio a se mostrar bastante imperfeito e descontínuo,
como veremos a seguir.
Todos os yerupoho tinham imenso pavor do sol. A notícia de que Kamo
pretendia “inventar” este astro já havia se espalhado muito antes mesmo dele sair
a procura da sua “máscara”. Logo que souberam a notícia, os yerupoho
começaram a fazer “roupas”35 para se protegerem do sol. A essa altura, há uma
“bifurcação” do mito em duas versões complementares.
Uma delas menciona que uma variedade enorme de “roupas” e máscaras
foram feitas pelos yerupoho, que, em seguida, lançaram-se para o fundo das
águas. Os que não conseguiram confeccionar suas “roupas” protetoras foram
“enrigecidos” pelo sol e se transformaram permanentemente em lagartixas,
cobras, vermes, monstros de diversas formas ou simplesmente permaneceram
Tyãu (“gente”), embora com várias deformações.
A outra versão menciona que os yerupoho machos teriam saído para uma
grande pescaria, ficando tempo demais ausentes da aldeia. As mulheres
preocupadas com a sua demora mandam um rapaz recluso, Kamatapirá, a sua
procura. Kamatapirá descobre os homens fazendo e experimentando “roupas”,
ele volta e avisa às mulheres que os seus maridos e parentes estavam virando
36 Em um trabalho anterior (Barcelos Neto, 2002: 143-147), mostrei que diferentes parcelas de
uma mesma alma podem dar vida tanto a um animal quanto a uma “roupa” sobrenatural. Essas
parcelas sempre emanam de um yerupoho, criando uma relação de compartilhamento da upapitsi
(princípio vital, alma, consciência) que liga os animais aos Animais.
60
fazem. Os Porcos também são mais agressivos e não têm medo. Se um animal
exibe uma agressividade incomum, os Wauja não duvidam em identificá-lo como
um apapaatai, um ser muito mais próximo da polaridade monstro do que da
polaridade animal.
A “roupa” é um dispositivo de atributos instrumentais e anatômicos ,—
asas, no caso dos seres alados, garras e/ou presas, no caso dos predadores etc.
— que enseja capacidades físico-locomotoras específicas: voar, nadar, saltar,
correr velozmente etc. Os humanos são os sem-“roupa” por excelência, com
exceção dos feiticeiros, que podem fazer uso de “roupas” especiais (chamadas
iyeyá) para entrar nas casas de outras pessoas ou viajar a grandes distâncias em
curtíssimo tempo. Uma “roupa” sempre envolve consequências práticas
imediatas, pois ela é uma forma-funcional: dentes e garras afiadas, nadadeiras,
bicos alongados etc., coisas que servem para realizar tarefas específicas, as
quais os humanos fazem com o auxílio de uma série de artefatos, muitos deles
originalmente criados pelos yerupoho (como por exemplo o desenterrador de
mandioca, tunuaT), e posteriormente transferidos para o mundo dos humanos via
doença, xamanismo e ritual37. Como os yerupoho perderam certas tecnologias
para os humanos, eles tiveram que contornar essa carência por meios
anatômicos, como focinhos que revolvem a terra e dentes que perfuram cascas.
Vimos que essa outra “corporalidade” (animal ou monstro) deve-se a um
momento específico da ontogenia wauja e a capacidades artísticas distintas de
cada yerupoho que inventou (inventa) uma diversidade desconcertante de
“roupas”. Todavia, há algo a mais nessa invenção que ultrapasse a mera questão
do disfarce e da adaptação a uma nova situação geocósmica: trata-se da idéia de
distribuição (expansão) da pessoa.
37 Vide em Barcelos Neto (2002: 256-259) a análise de um mito que descreve o processo de
transferência do desenterrador de mandioca do domínio de Kukuho para o domínio wauja.
62
2.5
Breve morfologia das transformações
tempo que ele levou para pegar a lanterna e retornar não era suficiente para uma
pessoa atravessar a aldeia, mesmo andando naquela velocidade). Ulepe retornou
para sua a rede, e então teve um sonho38:
Ulepe conclui que a mulher que ele vira antes do sonho era Yapojeneju, a
filha da sucuri que Yatuná tinha queimado três dias antes. Na manhã seguinte,
Ulepe comunicou que Yapojeneju estava a rondar a aldeia e as roças em busca
do seu pai e que todos tomassem muito cuidado, trancassem bem as portas e
evitassem sair à noite. Obviamente, Yapojeneju e Walamá foram o assunto
daquela semana.
Intrigou-me que cobra poderia ser aquela. E fui perguntar diretamente a
Ulepe:
40 “Os índios não são, com efeito, máquinas de informar, e seria um grande engano crê-los, em
cada instante, prontos a fornecer resposta a toda questão”. A frase é de Clastres (1995: 19).
Possivelmente a minha questão não se firmava como questão para Ulepe, ou ele não estava
interessado em responder.
41 Rivière a desenvolve em consonância com uma outra idéia, sobre a qual já não compartilho, de
que “máscaras, vestes e ornamentos são meios para domesticar um componente ‘animal’
essencial à natureza humana” (1995:191).
65
Quadro 2
Os modos da transformação
mito de origem da humanidade afirma que os paraguaios “só têm coisas-ma/ã” porque eles
fizeram uma má escolha ao pegarem um relógio que estragava com pouco tempo de uso.
67
44 De fato, os Wauja às vezes chamam as “roupas” de “capa invisível”, remetendo-as aos “filmes
de ficção” que assistem na televisão.
70
A alguém que usa uma “roupa-porco” é facultado ver o mundo (ou estar no
mundo) como os porcos o vêem. O uso de “roupas” efetiva o ponto de vista do
outro. Mas não há uma “roupa”-humana que permita aos porcos verem o mundo
como os Wauja o vêem. Os próprios modos da transformação indicam essa
impossibilidade. As “roupas” operam sob um regime limitado. Compare-se, por
exemplo, a teoria wauja das “roupas” com a teoria juruna da distinção natureza e
cultura tal qual explicitada por Lima:
2.6
Multiplicação da alma, distribuição da pessoa
Essa relação entre fundo e forma (figura) reflete a mesma relação entre os
afixos-modificadores -mona e -kumã, que configuram as conceituações wauja e
yawalapíti (Viveiros de Castro, 2002c: 35, nota 8) sobre a natureza da Natureza,
da Sociedade e da Sobrenatureza.
O corpo dos yerupoho não muda, exceto se forem expostos ao sol. O que
muda são suas as aparências, as “roupas” que eles vestem. O que está no
interior da “roupa” só pode ser seguramente identificado por um yakapá. A
“roupa” é a síntese de uma ontologia da ambiguidade, ela tem a capacidade de
instaurar dúvidas.
Em conversas “ordinárias”, os Wauja traduzem apapaatai por “espírito”. Se
se insiste em outras traduções e se estabelece cotejamentos, ver-se-á que a
tradução guarda sutilezas. Assim, os apapaatai, que são monstros canibais
(apapaatai-iyajo), os Wauja não traduzem por “espírito”, mas por apapaatai “de
verdade”, “bicho brabo”; os apapaatai-mona são os “bichos de pêlo”, aqueles que
não se come46, os quais os Wauja podem, em certos contextos, simplesmente
chamar de apapaatai (i.e. sem afixação específica), conforme o seu
»
comportamento e hábitos alimentares suspeitos. São os apapaatai onaT (“roupas'
sobrenaturais, ou melhor, yerupoho vestidos em “roupas”) que os exegetas
confirmam ser aquilo que eles traduzem por “espíritos”. Em muitos casos,
yerupoho é também traduzido por “espírito”. Nalgumas ocasiões de adoecimento
que presenciei, diziam-me os Wauja:
46 As únicas exceções são o macaco-prego (Cebus apela) e a paca (Cuniculus paca). Coelho
(1981) menciona que os Wauja teriam consumido coati em uma ocasião inusitada. Os Wauja
dizem ter imenso nojo desse animal. Aliás, nojo é o imperador dos sentimentos na relação com os
animais de pêlo. A invariável resposta à minha pergunta sobre o motivo dos Wauja não comerem
apapaatai-mona era a simples frase: “temos nojo”. Os Wauja dizem que “antigamente” seus avôs
não comiam paca, nem os grandes peixes de águas profundas, como, por exemplo, o pirarara
(yuma) e o pintado (tulupí). Mas hoje, os Wauja não têm mais nojo desses peixes, mas passaram
a ter nojo da rã (eyusí), que outrora era consumida. Viveiros de Castro (2002c) menciona uma
informação yawalapíti de que os Wauja “comem peixe-elétrico”. Atualmente, esta informação não
procede. De fato, o peixe elétrico (ulako) é abrangido pela categoria dos animais nojentos para o
consumo, assim como o jacaré (yaká) e as cobras (uwi).
74
— Qual apapaatai?
— Mepeje47.
— Qual mepeje?
— Mepeje-kumã, yerupoho, Neto.
49 Talvez por isso fosse tão óbvio para o meu colaborador exegeta que os yerupoho continuassem
a viver “como” corpos. As almas só se multiplicam a partir de uma matriz, o corpo. Já as almas
dos mortos humanos que ascenderam à aldeia celeste existem num estado de total inércia (não
se multiplicam) e estão sujeitas ao desaparecimento, visto que podem ser devoradas, no céu, por
pássaros canibais,,quando há eclipse.
77
50 Os únicos seres sem cabeça existentes no cosmo wauja são alguns tipos de apapaatai,
contudo é importante esclarecer que a ausência de cabeça é uma característica da “roupa”, e não
do corpo que veste a “roupa”.
51 Em meados de 1998, nasceu, em Piyulaga, uma criança com sindrome de Lowie. Os Wauja só
se deram conta de que a criança era “kanãkaki” (categoria que abrange os deformados, os
deficientes físicos e mentais e os gêmeos) alguns meses depois, quando perceberam que ela era
praticamente cega e que ela jamais andaria ou falaria. A criança foi retirada da aldeia em 2000 e
78
alma volta, i.e. quando o doente recobra a consciência. Mas as lembranças dos
sonhos não são tão exatas ou nítidas, permitindo que espaços de incertezas
sejam reconstruídos a posteriori. Se o doente simplesmente vomitar, ele dirá que
foi a alma dele que comeu comida de apapaatai, por isso ele está passando mal,
e então contará um sonho padrão (vide capítulo seguinte) em que reconstitui a
experiência para si e para seus interlocutores. Contar um sonho é muitas vezes
um artifício cognitivo para explicar a doença.
Etimologicamente, corpo, imagem e alma provêm da mesma raiz (pitsi).
Pitsi exclusivamente significa “feixe”, como em kanawlapitsi (“feixe de cana”), ou
“forma”. Em monapitsi, o prefixo mona redunda a condição tátil e concreta de pitsi
em uma forma cilíndrico-alongada (ahamona), o tronco, metonímia do corpo.
Monapisti adquire um valor semântico mais claro quando contrastado com outros
estados de transformação formal da matéria. Assim, monapitsiya significa um
corpo que adquiriu forma líquida ou algo líquido que está contido em uma forma
cilíndrico-alongada, como, por exemplo, a gasolina em um tonel — a gasolina
está em uma condição formal de monapitsiya. Ou ainda monapitsitsari, um corpo
de forma esférica, e monapitsixa, um corpo que adquiriu aspecto plano-chapado,
como, por exemplo, o de um corpo refletido no espelho.
Arrisco-me a endossar uma outra “etimologia especulativa” (assim
considerada pelo seu próprio autor) do termo mona(pitsi). Refiro-me ao trabalho
de Viveiros de Castro (2002c) sobre os afixos-modificadores (-kumã, -rúru, -mina,
-malú) dos conceitos-base entre os Yawalapíti. Em sua revisão recente sobre
esses afixos-modificadores, Viveiros de Castro (2002c: 34-35) defende a idéia do
sufixo -mina (-mona) como um corporificador de substâncias. À luz do que venho
expondo, parece-me bastante acertada a sua análise que contrasta -kumã e -
mina e os aproxima respectivamente aos sentidos dados aos conceitos de alma e
corpo. Assim, seguindo a reflexão de Viveiros de Castro, -kumã seria uma
condição espiritual do corpo e -mina uma condição corporal do espírito.
Upapitsi é a glosa que estou traduzindo por “alma” — possivelmente seja a
mais complicada de todas as traduções desta tese. O prefixo upa (de upawa,
outro), associado à raiz pitsi, nos dá a idéia de que a “alma” é um “outro pitsi" (um
outro corpo/feixe/forma?). Mas pitsi não significa apenas “feixe”, e nem upawa,
sua guarda foi definitivamente entregue a uma procuradoria federal. Longe, ela já não era mais
um “espanto” com o qual os Wauja precisariam conviver.
79
hipótese é que o nexo das relações entre humanos e não-humanos tem como
princípio a aproximação produtiva dos dois pólos, por meio de uma minimização <
das diferenças entre ambos. A possibilidade de aproximar os dois pólos é dada
pelas doenças graves e pelo ritual. São os yerupoho que oferecem aos humanos
os meios de dessa aproximação por meio da introdução de substâncias
xamânicas no corpo dos humanos e do rapto de suas almas.
Osseixos conceituais da diferença qntre humanos e não-humanos passam
pelo corpo (patogênico ou “de carne e osso”) e pela tecnologia (posse ou não do
fogo e da agricultura). As diferenças são minimizadas (1) quando os humanos
estão doentes, ou seja, com seu corpo repleto de “feitiços” e sua alma a passear
com os yerupoho-, (2) quando um Wauja mantém em seu corpo os feitiços
especiais doados pelos yerupoho, fazendo dele um xamã, ou melhor, alguém
próximo de um estado permanente de adoecimento, o que o coloca
constantemente próximo aos yerupoho/apapaatai; e (3) quando os
yerupoho/apapaatai são convidados a comer a comida dos Wauja em ocasiões
de sua distribuição ritual, ou não. O que a ontologia wauja parece postular é a
existência contextuai (não essencial, portanto) de aspectos não-humanos na
humanidade e aspectos humanos na não-humanidade. A apreensão deste
postulado é orientada por lógicas transformacionais que ora aproximam um ser
de um pólo ora de outro.
O paradigma básico das aproximações que minimizam tais diferenças são
os movimentos das almas dos humanos e dos yerupoho. O movimento das almas
humanas é descrito pelo sonho e transe xamânicos e pelo rapto da alma (assunto
do próximo capítulo), enquanto o movimento das almas dos yerupoho é descrito
pelo uso de “roupas”, função da sua capacidade de interferir nos negócios
humanos.
As almas multiplicadas dos yerupoho não vagueiam por aí simplesmente,
o processo de multiplicação guarda valores formais: a multiplicação é também
uma trans-forma-ção. Assim, a multiplicação da alma dos yerupoho revela uma
variação desconcertante de “roupas”, nas quais peixes podem assumir traços
passeriformes e vice-versa, panelas assumirem formas de morcegos, e pessoas
a forma de desenterradores de mandioca. Esse mundo de transformações
múltiplas e talvez aleatórias torna opacos estudos do tipo classificatório-
taxonômico da “natureza”. Qualquer classificação deve levar em conta as
82
E ainda:
3
DOENÇA E FEITIÇARIA
3.1
WÍTSIXUKI, A DOENÇA COMO ESTADO DA ALMA
especifica que a dor é no olho. Kauki é o termo genérico para doença e também
para dor. E o termo genérico para doente é kaukitsupá, “aquele que tem dor”.
A doença é basicamente um sinónimo de dor, e dores são, antes de tudo,
efeitos de substâncias estranhas ao corpo, as quais os Wauja denominam ixana.
Ixana é um termo genérico que traduzo por substância/artefato patogênico e que
abrange as flechinhas de apapaatai (apapaatai onukula), as flechinhas de ixana
wekeho (“dono de feitiço”, i.e. um humano que manipula ixana) e o Tyãu opotalá,
um tipo de feitiço também manipulado por ixana wekeho, mas que atua fora do
corpo das vítimas.
Nenhum Wauja foi capaz de me explicar, em detalhes, a natureza
substantiva dos ixana, sempre respondiam: — “Eu não sei, Neto. Ixana wekeho
sabe. Pergunta pra ele”. Como ninguém jamais assumiria ser um feiticeiro, obter
depoimentos detalhados e prolongados sobre feitiçaria é algo (quase) impossível.
Meus dados sobre o assunto são contingentes e advêm, sobretudo, de casos
específicos de adoecimentos, nos quais são comuns diagnósticos envolvendo
feitiços humanos e não-humanos52. No início da pesquisa, surpreendeu-me o fato
dos Wauja evitarem oferecer maiores informações sobre os feitiços de apapaatai.
Eu sabia que o assunto tabu era a feitiçaria humana, portanto, abordar as
“coisas” de apapaatai, não deveria ser uma dificuldade a enfrentar no campo. Na
verdade, eu tinha a impressão, dada por algumas etnografias xinguanas (e.g.
Basso, 1973; Viveiros de Castro, 1977), de que as feitiçarias humana e não-
humana constituíssem domínios separados. Ao contrário, eles apresentam pelo
menos um nível de aproximação, o qual diz respeito exatamente às substâncias
que produzem os feitiços. O que se sabe é que os feiticeiros manipulam refugos,
exúvias e objetos oferecidos/abandonados por certos yerupoho e vice-versa,
conforme se percebe pelo depoimento recolhido por Fénelon Costa entre os
Mehinako:
por pura e simples intenção dos yerupoho e muito menos dos humanos. Como
disse acima, a feitiçaria não é uma intenção mental do yerupoho, apenas
feiticeiros humanos agem deliberada e premeditadamente, e quando agem, o
sentido da sua ação é sempre maléfico ou, em muitos casos, letal. Os yerupoho e
apapaatai podem até atingir alguém com uma doença grave, mas essa ação não
é vista, por eles próprios, como algo maléfico. Como diz Itsautaku, um dos mais
importantes yakapá do Alto Xingu, “os apapaatai querem ajudar, eles te adoecem
para depois te ajudar”. Quase todas as ações dos apapaatai são revertidas em
conhecimentos socialmente importantes. Deles se aprende música, desenho,
dança, e procedimentos terapêuticos: os apapaatai introduzem doenças, mas
eles ensinam como tirá-las. Eles são mestres de conhecimentos esotéricos.
Contrariamente à feitiçaria humana, sua ação patológica culmina em festas e não
em mortes.
Os Wauja não me pareceram preocupados em refletir sobre a razão pela
qual os yerupoho/apapaatai possuem um corpo/“roupa” potencial e (quase)
inevitavelmente patológico para os humanos. Trata-se simplesmente de uma
verdade ontológica. Para os Wauja, a questão central é como e por quê os
yerupoho se aproximam dos humanos.
Quando se pergunta para um Wauja o por quê dele ter adoecido, jamais se
obterá uma resposta do tipo: “porque assim quis tal apapaatai”. Mesmo que ele
narre uma longa história ele sempre conduzirá sua resposta para algo como:
“porque tive wTtsixu53”, ou, no pior dos casos, responderá secamente: “porque
feiticeiro quis me matar”. Por ora, fiquemos com a resposta mais usual.
Em uma das narrativas sobre adoecimento que coletei, esse tipo de
resposta veio logo na primeira frase: “wTtsixu Tupará, siya ouneke sekuya” (“faz
tempo, Tupará teve wTtsixu, ele queria mamar”), narra uma mãe o exato momento
em que seu filho, um bebê de aproximadamente 10 meses, deflagrou o processo
que o levou a ficar seriamente doente. A mãe de Tupará não atendeu o seu
desejo imediato por leite. Era necessário que Tupará fosse amamentado
precisamente no momento em que ele demonstrou desejo, pois o estado de
wTtsixuki instaura-se tão rápido quanto um piscar de olhos.
O wTtsixuki é a categoria central para o entendimento da noção de
- i ■ ‘
portanto como o calor, a fome, a raiva e o medo que podem ser sentidos de
acordo com variações de intensidade. Também não é o wTtsixuki um sentimento,
um estado perceptivo ou uma sensação que pode ser corporalmente detectada.
Um indivíduo só toma conhecimento do seu próprio wTtsixu a posteriori, ou
melhor, quando ele cai doente. O wTtsixuki não é nem da ordem do sentir nem da
ordem do pensar. Também não pode ser intencionalmente provocado por si ou
por outrem. O wTtsixuki não tem valor moral, como os sentimentos e as ações.
As doenças graves principiam por um estado da alma e se elas se tornam
um estado corporal é porque alma e corpo implicam-se mutuamente, mas nem
sempre de modo simétrico, como veremos a seguir. Quando a pessoa está
wTtsixu a sua alma adquire uma espécie de “saliência visual”54 em relação ao
corpo, fazendo com que ela se revele aos apapaatai. Embora estes sejam
capazes de saber sobre tudo o que se passa com os humanos, — seus desejos,
pensamentos e sentimentos —, a sua percepção sobre o wTtsixuki não se
processa apenas por uma “leitura” da mente humana, é necessário que o
apapaatai veja essa “saliência” da alma. O wTtsixuki é percebido pelos apapaatai
como uma manifestação física da alma dos humanos, é quando ela se revela na
perspectiva dos apapaatai, tornando-se visível e tátil para eles. É nesse momento
que a intenção-corpo dos apapaatai entra em ação, de um modo tão repentino
quanto quando se entra em estado de wTtsixuki, aproveitando a “saliência”
adquirida pela alma para raptá-la55. Enfim, os Wauja entendem o desejo como
algo sem rédeas, incontrolável por natureza. E a coisa desejante é a alma, ou
melhor, é o desejo (insatisfeito) que funda a alma e, consequentemente, a
relação patogênica entre humanos e apapaatai.
Simultaneamente ao rapto, vários “feitiços” de apapaatai adentram o corpo
humano devido à proximidade que estes mantiveram entre si durante o rapto.
Para penetrarem no corpo humano, esses “feitiços” possuem a forma de
flechinhas (uku), na verdade minúsculas partes destacáveis da roupa ou do corpo
dos yerupoho responsáveis pelas sensações de dor: elas são a manifestação
concreta de uma doença, i.e. de uma relação com um apapaatai. As flechinhas
dos apapaatai {apapaatai onukula) acabam tornando o corpo do doente “fraco” e
3.2
O RAPTO COMO MULTIPLICAÇÃO E SUBTRAÇÃO DA ALMA
de Atamai começava a mostrar sinais de que entraria em colapso (“só mais tarde
eu percebi que eu estava com uma doença grave”).
Caso os cuidados xamânicos contribuam para a melhora do doente, ele
rapidamente retorna às suas atividades básicas pessoais, como ir ao banheiro
sozinho e tomar banho na lagoa. Todavia, sair do espaço da aldeia sem estar
plenamente recuperado sempre implica riscos, pois nunca se sabe quando se
está witsixu. Assim, ainda fraca, a pessoa poderá sofrer novas abordagens
patogênicas dos apapaatai. Esse processo de melhora e piora, i.e. de sucessivos
raptos e de extração de flechinhas, pode se estender por vários dias, semanas ou
até meses a depender do caso. A segurança de que a alma do recém doente não
será seguidamente raptada após breves melhoras depende diretamente da-
realização dos rifuais de máscaras e/ou aerofones.
Quando uma unidade anímica (i.e. uma pessoa) é fracionada (raptada) por
distintos apapaatai ao longo de um processo singular de adoecimento, tem-se
uma ampliação das suas possibilidades de contato com as subjetividades não-
humanas, e ainda uma ampla distribuição da pessoa raptada sobre o espaço
cósmico, pois os habitats dos apapaatai não são necessariamente coincidentes.
Contudo, quanto maior for a distribuição da pessoa e mais espalhadas e
distantes estiverem suas frações-cópias umas das outras, mais adverso será o
adoecimento e maiores também deverão ser os festejos, pois uma maior
distribuição da alma implica um maior número de apapaatai envolvidos, portanto
um maior número de personagens rituais a alimentar56.
3.3
Destinos da alma
56 Compare-se, por exemplo, tal modelo de fragmentação múltipla com o material ikpeng de
Rodgers: “o agente afetante é invariavelmente múltiplo. O sujeito ikpeng afetado começa a entrar
em uma mescla populacional, se somando a esta, suplementando um povoamento heterogéneo
97
(Rodgers, 2002: 102). E daí com a discussão sobre a pessoa fractal na melanésia (Strathern,
1988 e Gell, 1998).
57Ogamawato refere-se a algo que reflete sobre o líquido ou sobre algo dotado de profundidade, é
igualmente dito para reflexos na água, mas não para reflexos no espelho.
98
corpo do morto, é buscada pelo principal apapaatai que lhe causou, no passado
remoto (ou recente, embora de modo mais raro), uma doença grave. Esse
apapaatai foi seu companheiro-protetor (kawoká) ao longo da vida. Os dois
principais destinos da alma são, portanto, as aldeias celestes de humanos e os
variados habitats dos apapaatai.
Quadro 3
Transformações e distribuições espaciais dasfrações-alma no post-mortem
Qjutai ogamawato
em qualquer
espaço do cosmo
upapitsi que ficam nas proximidades dos vivos, apenas sei que elas não ficam
por muito tempo e que podem ir para o céu mais tarde. Quando os Wauja se
referem às almas dos feiticeiros que “andam por aí”, eles se referem àqueles que
foram executados e que não receberam tratamento funerário adequado, daí a
permanência dessas almas no plano terreno: um perigo sempre iminente.
3.4
Propriedades sensoriais da alma
The perfect resemblance of the individual and his eye soul raises the
fascinating question of whether the soul is merely an extension of
the individual or separate being in its own right, albeit closely
connected to its possessor. I raised this question with one of the
villagers who had given the matter some thought. He recalled a
dream in which he saw himself (that is, his soul) sleeping and having
a dream. Following the logic of soul belief, he concluded that his soul
must have its own soul, suggesting that the eye soul is a separate
entity from the dreamer.
Does the soul’s soul in turn have its own soul, as in infinite
regression of Chinese boxes? (Gregor, 1981: 710).
enquanto viventes. Como não existe uma oposição entre corpo e alma e sim uma
composição, ou melhor, uma multiplicação fractal, há, muitas vezes, a
possibilidade do corpo recuperar o conhecimento apreendido pela alma.
Façamos um parêntese sobre o mapitsai, um outro tipo de interação com os
apapaatai via alma.
Na minha última temporada em campo, quando eu estava preocupado em
entender formas de contato com os apapaatai distintas das doenças graves, um
dos meus colaboradores, contou-me o caso de uma velha doente que tinha sido
tratada em Piyulaga algumas décadas atrás, pelo grande yakapá daquele tempo,
Malakuyawá.
Mesmo tendo sua alma recuperada pelos xamãs, Malakuyawá aventava
que a mesma não teria voltado por inteiro, deixando a consciência da mulher
mais ou menos livre para ver coisas que apenas se vê em momentos que
antecedem a morte ou durante eclipses. Por esta razão, a ex-doente via coisas
desagradáveis, como imagens que eram interpretadas como o prenúncio da
morte de certas pessoas e imagens de pessoas estranhas manipulando feitiços
atrás das casas e roças. Eram os apapaatai que mostravam isso para ela, porque
eles ainda não haviam-na abandonado completamente.
Essa experiência, conhecida por mapitsai, é uma revelação imediata dos
sentidos da alma para os sentidos do corpo, todavia ela é diferente do sonho, que
também revela as experiências da alma; o sonho é uma memória, é passado,
enquanto o mapitsai é uma visão presente. O mapitsai é imediato porque, neste
contexto, alma e corpo não estão “separados” por estados oníricos ou por
patologia crónica, portanto, ele acontece apenas quando a pessoa está acordada
e plenamente consciente. Há mais de uma forma de mapitsai, mas o princípio
que regula a experiência é esse imediatismo na transmissão dos sentidos da
alma para o corpo.
Ao saírem para fora da aldeia, os Wauja têm sua alma vulnerável à
abordagem dos apapaatai, que lhes oferecem comida e fazem gracejos. Se a
pessoa estiver wTtsixu, seguramente sua alma aceitará a comida oferecida pelo
apapaatai e logo ficará doente. Os Wauja acreditam que o hábito de se
alimentarem adequadamente antes de saírem para o mato ou roças os protege
contra esse tipo de abordagem. Mas nem sempre tudo sai como planejado, o
105
60 Lembro mais uma vez a homologia entre soprar e rezar, cunhadas pelo mesmo termo, ejekepei.
i
107
3.5
Feitiçaria e morte
61 O yutsi yawalapíti corresponde ao yalawo wauja, uma substância que os apapaatai auxiliares
do xamã lhe oferecem para que ele ministre curas (vide capítulo 4 para maiores detalhes).
111
apapaatai e como uma vida na aldeia celeste dos mortos. Já para os viventes, a
morte de alguém atualiza uma potência letal que o sistema deseja expurgar. Para
os consanguíneos do morto, a sua morte funde os horizontes privado e público,
levando a uma empreita divinatória e a uma perseguição do “assassino”, ou
melhor, do feiticeiro (obviamente não se persegue os apapaatai, pois eles não
adoecem ninguém com intenções verdadeiramente letais). A rigor, uma
perseguição arriscada que, em alguns casos, precisa ser abortada, pois a
exposição excessiva do acusado de feitiçaria corrói os princípios estéticos da
etiqueta xinguana, gerando uma abertura para um novo assassinato, neste caso,
traduzido como vingança.
Inseridas no esquema contínuo-gradativo, a doença e a feitiçaria
mobilizam coisas muito distintas entre si, embora com um sentido de progressão,
conforme o pensamento nativo. Os Wauja dizem que a feitiçaria “aproveita” a
condição de “morto” do doente (kamãi) para matá-lo de vez. A feitiçaria é
oportunista. O sentido progressivo da doença à morte revela-se nos rituais de
cura, na “contra-feitiçaria” (divinação), nos exílios e nas execuções dos acusados
de feitiçaria. Vejamos por partes.
Na primeira seção deste capítulo, mencionei o trânsito de substâncias
patogênicas entre feitiçeiros e yerupoho, implicando em uma proximidade entre
ambos. Retomo aqui o tema a partir de outra base. Se a causa primeira da morte
é de ordem interior, ela, então, existiria como uma prática entre “iguais”. Mas
seria o feitiçeiro um “igual”? Qual o seu nível de “interioridade”? Seria ele
propriamente humano? Ou melhor, qual a sua posição de identidade/alteridade
no sistema? Por manipular feitiços, livremente e sem qualquer sequela, o
feiticeiro não pode ser, conforme os pressupostos ontológicos que distribuem os
predicados da humanidade, essencialmente humano62. Grande parte desses
predicados está centrada no corpo, ou melhor, nos seus processos de fabricação
(cf. Viveiros de Castro, 1977; 2002c).
Apenas um feiticeiro é capaz de fazer outro feiticeiro. Não se trata apenas
de um saber transmitido, mas sobretudo de uma incorporação, que é devida a um
tipo especial de reclusão, na qual o tempo do jovem feiticeiro é investido em
atividades como suportar doloridíssimas picadas de formigas tocandira — mêT,
62 Lembro aqui do risco de vida que humanos “normais” correm ao manipularem feitiços. Há um
mito, o de Atujuwá, o qual teve lugar entre os extintos Kustenau, que aborda precisamente esse
tipo de risco (Barcelos Neto, 2002: 214).
112
63 Um dos meus colaboradores trouxe para uma de nossas conversas sobre feitiçaria uma
reflexão interessante sobre o calor. Conta um mito que um apapaatai Atujuwá caiu do céu em
Meixulu, antiga aldeia dos Kustenau (Barcelos Neto, 2002: 214), queimando tudo que havia em
volta. Os Kustenau foram até o local, pegaram os feitiços, mas não se queimaram, eles já
estavam preparados, pois eram todos feiticeiros, mas acabaram lançando os feitiços do Atujuwá
113
I
de neutralizar o efeito do kuretsi sobre sua mente. Seu pai, que lhe ministrava
diariamente os eméticos (contra-feitiços), tinha convicção de que sua filha havia
manipulado desastradamente o kuretsi—“kuretsi mudou a cabeça dela, por isso
a cabeça dela ficou ruim”, disse-me ele em privado, com vergonha do
comportamento da filha. O kuretsi não é, pois, apenas love magic, ele age sobre
a consciência e o comportamento de um modo geral, podendo inclusive apagar a
memória de alguém sobre algum fato recém ocorrido. Quando as crianças ficam
repentina e/ou prolongadamente agressivas e inquietas, o kuretsi é também uma
hipótese aventada. No entanto, o kuretsi não mata.
Os métodos de fabricação do corpo de um feiticeiro resultam em um ser
feio, fraco, mal lutador, pouco hábil em várias artes e ofícios, de personalidade
imprevisível e socialmente retraída. Além disso, ele tem pequena estatura,
abdome saliente, joelhos e cotovelos inchados e pernas e braços finos (cf.
também Carneiro, 1977: 225). Mas esta é apenas uma imagem ideal, que, na
verdade, afina a identidade corporal dos feiticeiros com certos yerupoho,
conforme pode se constatar pela iconografia (Barcelos Neto, 2002). Assim, a
condição “humana” de um feiticeiro pode ser diretamente contestada pelas
características do seu corpo, que, como categoria idealizada, é a mais perfeita
antítese do chefe e, em um certo sentido, do xamã também. A construção dessa
antítese é inclusive formalizada nos discursos públicos dos chefes, como se pode
perceber na fala de Akusa, um antigo chefe mehinako, a respeito dos Ikpeng:
Be like me. I am not a witch. At the Post there are many Txicão.
They have said, ‘We will kill Akusa; we have already shot him with
an arrowl’ I know they want to kill me. If I were a witch I would have
killed them long ago, every one of them, but look: their women are
pregnant and their babies are fat. I could not be a witch! (Gregor,
1977: 82).
uns sobre os outros e em consequência disso extinguindo-se. Meu colaborador disse que se um
Atujuwá desses caísse em Piyulaga, todos morreriam imediatamente, à exceção dos feiticeiros.
114
64 Essa potência é atualizável, como se pode historicamente comprovar. Menget (185: 134) cita o
caso de um convite dos Kalapalo aos Yaruma (grupo carib linguisticamente próximo dos Ikpeng)
para participarem de um ritual, o qual, na verdade, era um plano de extermínio dos homens
Yaruma e de rapto de mulheres e crianças. A chacina dos Yaruma consumou-se, porém os Suyá,
vigilantes de toda a movimentação, foram mais rápidos que os Kalapalo e lograram o rapto.
115
66 Compare-se, por exemplo, a produtividade política das noções wauja de musixapai e ukitsapai
com os dados Ikpeng de Rodgers: “O fluxo negativo e oculto de inveja, ressentimento e raiva dos
outros tem uma dimensão sociopolítica altamente positiva, embora não explicitada pelos Ikpeng
[por sua vez explicitada pelos Wauja]: sua constante ameaça inibe a acumulação e mantém o
fluxo e a redistribuição de recursos mais ou menos equilibrados em uma população que evita
tanto a coerção quanto o conflito interno, que seriam ipso facto já externos: cisões” (2002: 93).
Embora inveja e raiva façam parte das moralidades políticas ikpeng e wauja, seus sentidos
operatórios são diferentes. Entre os Wauja, inveja e raiva não são inibidores, ao contrário: são os
eixos moventes da sociabilidade, propiciam conflitos, geram cisões.
67 A noção wauja de inveja-ciúme talvez evidencie uma percepção da distribuição desequilibrada
de bens materiais e imateriais. Sempre que eu realizava um pagamento mais substancial a algum
colaborador, este me pedia para não divulgar: queria evitar a inveja-ciúme dos feiticeiros, dos
fofoqueiros e dos que não gostam dele. Os Wauja dizem que os feiticeiros pensam que se estes
não podem usufruir o que é dos outros, que os outros também sejam privados de usufruir seus
bens, sejam estes artefatos ou o bem-querer de alguém.
68 Para efeitos práticos de acusação ou execução, um feiticeiro é definido contextualmente ao
longo de uma série intrincada de fatos que beiram a impossibilidade de ser levantada e de vários
processos biográficos, que incluem seus ascendentes, sobre os quais não disponho de um
número suficiente de casos para aprofundar a análise. De qualquer modo, quem é hoje acusado,
pode amanhã estar em uma posição privilegiada, sendo capaz de anular todo o peso negativo de
uma acusação e ocupar uma posição de acusador. Tornar-se um grande xamã visionário-
118
feiticeiro existe, na maior parte das vezes, em uma condição de virtualidade, que
apenas se atualiza com a perseguição ou a execução do acusado. Mas uma
acusação nua e crua não torna o acusado um feiticeiro, apenas a interpretação
do tupaki, a forma mais poderosa de contra-feitiço, pode dar o veredicto final.
Assim, o feiticeiro só é socialmente revelado por uma condição de violência
legalmente perpetrada conta ele. A contra-feitiçaria {tupaki) justifica todos os atos
de perseguição, em sua condição sempre pública é socialmente validada.
O tupaki é um modo de conhecimento abdutivo operante em uma cadeia
temporal na qual o feiticeiro passa da condição de agente para a de paciente.
Não observei a feitura de um tupaki69. Os dados que obtive foram gerados das
conversas sobre um tupaki que estava em funcionamento na aldeia kamayurá de
Ipavu ao longo de 2002. Vejamos o processo.
dinivatório, por exemplo, é o melhor caminho para evitar acusações, como foi o caso do yakapá
Itsautaku. Não tenho dados suficientes para passar da morte para o sistema de acusações e
execuções de feiticeiros, pois como disse isso só é possível em recorte sincrônico muito mais
extenso do que trabalhei, além disso, nenhuma acusação formal foi feita durante os períodos em
que estive em Piyulaga.
“ Os Wauja afirmam que apenas os Aweti conhecem toda a cadeia operatória do tupaki (a
principal modalidade de contra-fetiçaria que demanda o conhecimento de uma variada série de
técnicas), sendo por isso considerados exímios contra-feiticeiros. Tal reconhecimento parece ter
ressonância entre os Kuikuro, que, segundo Heckenberger (1999: 138 e informação pessoal),
recorreram aos Aweti para colocar em funcionamento a cadeia operatória do tupaki (kune em
kuikuro) por ocasião de uma importante divinação que envolveu a morte de um Kuikuro “nobre”
(amunaw).
119
Quadro 4
As condições agente [A] e paciente [P] do feiticeiro através do tempo
• Em produção única —
redução da condição
J múltipla dofeiticeiro
O feiticeiro produz um vetor letal, o Tyãu opotalá, por meio de uma magia
simpatética, gerando uma vítima fatal, da qual serão retirados um dedo mínimo e
mechas de cabelo que serão juntadas à matérias orgânicas secretas para formar
um Tyãu opotalapitsi (“boneco”, imagem de gente) do feiticeiro, em um processo
semelhante à magia simpatética que gerou o Tyãu opotalá. O detalhe fundamental
é que a relação simpatética entre o “boneco” e o feiticeiro só é possível em
função das palavras (cantos?) secretas entoadas durante o processo de
feitura/amarração da “imagem” do feiticeiro70. Uma vez pronto o Tyãu opotalapitsi,
ele será alvo dos mais altos cuidados. Seu destino será uma panela kamalupo,
tipo kurisepu, de paredes altas e bordas extrovertidas e arredondadas, onde o
“boneco” passará por um longo processo de cozimento que se espera resultar na
morte do feiticeiro.
A panela do contra-feitiço deve ser vigiada dia e noite —: pois os feiticeiros
farão de tudo para inutilizá-la — e seu fogo e água constantemente mantidos. A
panela é colocada no interior da casa onde a vítima morreu, próxima ao local
onde dormem as pessoas da casa. É dito pelos Wauja que a panela “trabalha
sozinha”. É ela que mata o feiticeiro de calor/febre. O feiticeiro entra em
“combustão” interna e morre seco, com a pele colada nos ossos. Durante a
“combustão”, o feiticeiro e panela são um só, pois foram colocados em uma
relação de magia contagiosa (contagious magic, cf. Frazer apud Gell, 1998: cap.
7). Se o feiticeiro for muito forte ou se ainda receber a ajuda de outros feiticeiros,
a panela poderá “explodir” (rachar). Se isso acontecer, significa que o feiticeiro
conseguiu “vencer” o tupaki, o que coloca os familiares da vítima em especial
risco de vida, pois o feiticeiro, livre do tupaki, poderá se voltar contra todos eles.
Daí uma atitude mais radical deve ser tomada em segurança dessas potenciais
vítimas.
Em virtude do risco de “explosão” da panela, o tupaki mostra-se muito
mais como um dispositivo de intimidação dos suspeitos de feitiçaria, do que como
uma arma letal em si mesma. O desejo do(s) acusador(es) é que o tupaki mate o
feiticeiro para que ninguém tenha que se “sujar” com o sangue dele. O tupaki é a
forma sancionada pela etiqueta e pelo resguardo da pureza. Quem se “suja”
dessa forma deve passar por uma limpeza, cujos resultados nem sempre são os
mais satisfatórios.
Assim como o iyau opotalá, o tupaki, também funciona segundo um regime
de atuação espacialmente limitado. Portanto, quando um tupaki “trabalha”, é
comum, dizem os Wauja, o feiticeiro fugir (exilar-se) da aldeia a fim de evitar a
sua “combustão”. À distância ele poderá ensaiar uma neutralização do tupaki. Os
parentes da vítima que estão a cuidar da panela ficam vigilantes, pois mesmo em
seu exílio o suposto feiticeiro pode agir com o auxílio de “roupas”, que lhe
permitiram viajar até a sua aldeia natal, “disfarçado” de algum pássaro. O artifício
do “disfarce” é muito antigo, remontando ao tempo de Kamo (Sol) e Kejo (Lua),
que usaram “roupas” para roubar a mandioca e as flautas Kawoká dos Porcos.
Segundo os Wauja nem todos os yakapá conseguem revelar a identidade
dos feiticeiros, e mesmo que o façam é necessário o tupaki para que a mesma
seja confirmada. O tupaki de Ipavu teria revelado a identidade do suposto
feiticeiro. Anteriormente acusado e ameaçado de morte, o suposto feiticeiro por
evitar, a todo custo, saídas da casa, passou a defecar em seu interior. Seu medo,
efeito psicológico do tupaki, entre outras coisas, foi interpretado com uma
“confissão”. O acusado foi assassinado no interior de sua casa, a tiros de
revólver.
Os Wauja dizem que esse Kamayurá de Ipavu “não era feiticeiro”, nem
seus parentes anteriormente executados nessa mesma aldeia. Os parentes
wauja do suposto feiticeiro defendem que ele foi morto por pura maldade dos
121
3.6
A ANTI-ARTE DOS OBJETOS PATOGÊNICOS
corpo, sendo, portanto, difíceis de serem extraídos por sucção. Eles se alojam
em partes vitais, como o coração, o pulmão e o cérebro. São feitos para matar.
O feiticeiro wauja é um artífice de artefatos letais. É um especialista de
uma “prática” da qual apenas se vê os seus efeitos e nunca a ação propriamente
dita. A ação do feiticeiro só existe como efeito, sendo passível de ser revelada
unicamente pelos xamãs que ou extraem os feitiços do, corpo da vítima- ou os
localizam escondidos nos locais de trânsito (roças, margens de lagoas e rios,
caminhos e banheiros). Disse-me um colaborador que “o feitiço pode estar bem
na sua frente, no caminho que você toma todo dia para a roça, para o rio, mas'
você não consegue ver, só pajé consegue”. O feitiço ê, portanto, uma
“descoberta” do xamã. Aquele, na sua qualidade artefatual, como é apresentado
aos espectadores de uma sessão de divinação, é o único índice explicativo para
o estado moribundo de um doente grave. Nenhum xamã sai à procura de feitiços
a menos que todas as possibilidades de extração de flechinhas de apapaatai e
outras práticas terapêuticas relacionadas a estes tenham se esgotado. A
divinação do(s) local(is) onde feitiços são escondidos é a última das alternativas
em um processo terapêutico. Como “invenção” etiológica, o feitiço é um domínio
exclusivo do xamã, o qual oferece aos não-xamãs o acesso visual aos objetos
patológicos. Estes surgem muitas vezes configurados em bonequinhas (ou na
variante de pequeninas trouxas) de folhas amarradas a pedaços de beiju, fios de
cabelo, linhas de buriti ou de algodão e excrementos, chamadas de Tyãu opotalá
— Tyãu traduz-se por “gente” e opotalá por “vil”. Segundo os Wauja, o Tyãu
opotalá dá forma antropomorfa e agentiva aos mais baixos valores morais.
O Tyãu opotalá é o mais poderoso tipo de feitiço. Além de matar, ele pode
ser feito para atrair nuvens de gafanhoto, contaminação generalizada de
alimentos, raquitismo dos tubérculos, ataques de formigas tocandira à aldeia,
epidemias de diarréia etc. O feiticeiro tem a capacidade de trabalhar contra a
sociedade como um todo.
Os feitiços do tipo Tyãu opotalá são figuras antropomorfas ou zoomorfas
em miniatura. Uma vez desfiguradas, sua eficácia fica comprometida, mas esta
só é completamente eliminada se os materiais que constituem o Tyãu opotalá
forem mergulhados em recipientes com água fria. As figuras não representam a
pessoa a quem se deseja fazer o mal. Portanto, não é uma relação de
semelhança com a vítima o que caracteriza o Tyãu opotalá como um tipo de
126
72 As formas como os Tyãu opotalá interferem nos negócios humanos é mais complexa do que a
descrição esquemática que realizo. Desconheço todas as variáveis de sua atuação, visto que é
muito difícil abordar o assunto isoladamente entre os wauja. Quem demonstra muito
conhecimento de feitiço é obviamente um feiticeiro, portanto ninguém se sente à vontade para dar
informações detalhadas sobre como são feitos os feitiços e como eles agem. Por isso, uma boa
parte das informações que possuo sobre feitiçaria foi coletada em Canarana e em visitas que os
Wauja me fizeram na cidade.
127
estava dentro do seu corpo. Várias sessões de xamanismo foram feitas em seu
benefício, contudo elas aliviaram-lhe muito pouco as suas dores, fazendo sua
morte parecer iminente. Um de seus filhos, desesperado, fez acusações em
praça pública, ameaçando de morte os acusados caso eles não suspendessem o
efeito do feitiço. No prazo de poucos dias, a velha amuluneju começou a sentir-se
melhor e sua morte que era iminente veio ocorrer apenas alguns anos mais tarde.
Um suposto e incógnito feiticeiro não somente gera um processo de morte, como
também pode interrompê-lo, caso sinta-se intimidado pelos xamãs visionário-
divinatórios e/ou pelos familiares da vítima. É apenas o feiticeiro que tem domínio
sobre todo o processo, não o xamã, este só desembrulha os feitiços, já o
feiticeiro os pode tanto embrulhar (amarrar) quanto desembrulhar.
Menezes Bastos (1990 e 1995) sugere que, no Alto Xingu, os conflitos, em
suas diferentes variações, são mediados poppadrões de aceitabilidades estético-
morais ,e que o xamanismo e a feitiçaria configuram, juntamente com expressões
Standard como a música e o grafismo, um “sistema artístico”. Mencionei
ligeiramente acima algumas concepções estéticas que envolvem a figura dos
feiticeiros (baixa estatura, “fala feia”, ou seja, propensão a fofocar, musculatura
pouco desenvolvida, abdome saliente). Mas é talvez a sua arte de produzir
objetos patológicos, letais e anti-sociais, mais do que as suas características
físicas, que colocam os feiticeiros no pólo da fealdade. Não será possível analisar
aqui os diferentes modos que arte wauja lida com a sua própria noção de
fealdade73. Todavia, no caso da presente discussão, é plausível supor que um
desses modos pode ser lido pela chave do colapso da pessoa, a morte. O ethos
da feitiçaria e seus produtos (e.g. kuretsi, ixana, Tyãu opotalá) teriam, portanto,
i
feitiçaria. Enfim, a idéia defendida aqui é que grande parte daquilo que denomino
arte wauja reveste-se de puro valor terapêutico, sendo sua ação caracterizada
como cosmética na medida em que ela é capaz de reordenar/equilibrar as
relações entre diferentes domínios do cosmo. O próximo capítulo é dedicado a
descrever os aspectos centrais da terapia estética e como ela opera a
transferência dos apapaatai de um domínio patológico para um domínio ritual.
74 Sobre “terapias estéticas” em outros povos amazônicos, vide, por exemplo, o caso Shipibo-
Conibo descrito por Gebhart-Sayer (1985, 1986).
131
Parte II
A CONSTRUÇÃO RITUAL
DOS APAPAATAI
132
4
A TERAPÊUTICA RITUAL
1 Yatamá é o termo genérico para xamã, e yatamaki, para xamanismo. Há três tipos de
especialistas xamânicos entre os wauja: o yakapá (especialista em recuperar almas humanas e
localizar e neutralizar feitiços letais, é o principal deles), o pukaiyekeho (especialista nas músicas
secretas do ritual xamânico de extrair flechinhas e de resgatar almas chamado Pukay) e o yatamá
(que apenas sabe aliviar dores com o uso da fumaça do tabaco, técnica também conhecida pelos
dois anteriores). Há outros dois especialistas terapêuticos, embora seus conhecimentos não lhes
conferem, segundo os Wauja, o status pleno de xamãs. Tratam-se do ajatapeiyekeho
(especialista em plantas medicinais, traduzido por “raizeiro”) e do ejekekiyekeho (especialista em
rezas, traduzido por “rezador”). Contudo, os seus “campos de especialização” não lhes são
exclusivos, muito dos seus conhecimentos sobre rezas e plantas são igualmente dominados pelos
yatamá.
Não abordarei aqui o sistema médico wauja, que obviamente envolve variados graus
patológicos e intervenções terapêuticas. Interessam-me apenas os estados graves de
adoecimento, aqueles em que é dito estar “morto” o doente, i.e. com a(s) sua(s) alma(s) a
vagar(em) com os apapaatai. É apenas a cura do “morto” que implica a realização de rituais de
apapaatai.
133
4.1
Yalawo, substância terapêutica
4 Há yakapá referidos na literatura (Mattos e Silva et alli, 1988: apêndice 1) que foram iniciados
pelos seus próprios Tyakanãu. Segundo meus colaboradores wauja, essa iniciação dá-se em
sonho. Desconheço detalhes sobre a mesma, pois o último yakapá wauja iniciado por Tyakãnau
135
4.2
A VISITA DO YAKAPÁ
foi o antigo chefe Malakuyawá, falecido por volta de 1985. Segundo as fontes que possuo,
Takumã, antigo chefe da aldeia kamayurá de Ipavu, é o único yakapá (“xamã de ver e ouvir”, na
expressão de Menezes Bastos, 1985-84) iniciado por.mamaé {apapaatai) ainda vivo no Alto
Xingu.
5 Há um caso registrado por Joan Richards de um yakapá morto em pleno transe (informação
pessoal).
136
4.3
O RITUAL DE TRAZER APAPAATAI
Logo que são revelados os apapaatai que estão a “matar” o doente, uma
das mulheres da casa providencia a distribuição de mingau frio de beiju, em um
número de calderõezinhos igualmente correspondente ao número de apapaatai
que raptaram a(s) alma(s) do doente. Esses calderõezinhos são levados até o
enekutaku (pátio frontal à casa das flautas) pelo akatupaitsapai que então
anuncia, em voz alta, para que toda a aldeia possa escutar, os nomes das
pessoas que deverão consumir o mingau. A frase padrão e invariável nestas
ocasiões de convocação é: fulano “manapatuwata apapaatai” (“vem trazer
apapaatai’). A pessoa convocada dirige-se ao enekutaku e pergunta ao
akatupaitsapai: “katsá apapaatai natuwiu?” (que apapaatai sou eu?), recebe dele
a resposta e logo em seguida um caldeirãozinho de mingau, levando-o a boca e
bebendo seu conteúdo, mesmo que não esteja com fome. Mais pessoas são
chamadas até que todos os calderõezinhos lhes sejam entregues em sua
simultânea identificação aos apapaatai raptores.
O akatupaitsapai pode escolher como kawoká-mona os afins e/ou os
consanguíneos “próximos” e/ou “distantes” das gerações igual e/ou abaixo do
doente, excluindo, invariavelmente, os seus co-residentes. Um chamado jamais
deve ser recusado, mas se a(s) pessoa(s) convocada(s) não estiver(em) na
aldeia naquele exato momento, outra(s) deve(m) ser escolhida(s), pois a situação
não pode ser adiada.
Consumido todo o mingau, os convocados assumem a identidade dos
apapaatai que eles deverão levar/apresentar ao doente, portando
enfeites/objetos-insígnia improvisados e entoando o canto próprio de cada
apapaatai. Esses objetos podem ser um pedaço de palha colocada na cabeça,
um cordão amarrado na cintura, um bastão de maniva. A única exceção a tal
singela improvisação ocorre quando o apapaatai que está “matando” o doente
139
respectivas casas. Afinal, o que estão a mobilizar e a fundar essas curtas visitas
que em geral não duram mais do que dez minutos?
O ritual de trazer apapaatai (Manapatuwata Apapaatai) é uma medida
extrema e urgente que atua em três frentes.
A primeira é a “familiarização” dos apapaatai, cujo passo primordial é o
consumo do mingau de beiju ou pequi levado ao enekutaku pelo akatupaitsapai.
Na fase crítica do adoecimento, eram os apapaatai que estavam a “familiarizar” o
doente com a oferta de carne crua e sangue; por sua vez, no ritual de trazer
apapaatai, são os parentes do doente que “familiarizam” os apapaatai com a
oferta de mingau. A operação lógica é fazer uma oposição entre alimentação
carnívora e crua (caça + hematofagia) e alimentação vegetariana e cozida
(agricultura + fogo), cujo efeito sociocósmico corresponde à produção do
parentesco. Conforme Fausto:
4.4
A POTÊNCIA TERAPÊUTICA DOS KAWOKÁ-MONA
kawoká-mona), em torno de si, que permite que aquilo que outrora foi uma
subtração de sua alma venha a ser uma soma de novos sujeitos, os apapaatai. O
ritual, como oferta de alimentos, é a maneira de positivar a doença.
Quadro 5
Da doença ao ritual de trazer apapaatai
cura. É claro que no âmbito da produção ritual dos apapaatai, como máscaras e
aerofones, alguns rearranjos são necessários, fazendo com que as
responsabilidades produtivas e performáticas concentrem-se sobre aqueles
kawoká-mona que têm conhecimentos rituais específicos. A atuação terapêutica
dos kawoká-mona não é mediada/guiada por Tyakanãu, como no caso dos
yakapá, mas simplesmente por sua habilidade artística como músicos,
dançarinos, pintores, ceramistas etc. Os kawoká-mona têm poder de cura
especialmente porque eles podem atualizar, em estado “corporal”, aquilo que
está em estado “espiritual”. E esta atualização só é possível por meio da
performance musical-coreográfica somada às insígnias/ornamentos específicos.
Os kawoká-mona são “xamãs por expediente”, ou melhor, sua “potência
xamânica” é função do seu conhecimento das performances rituais. Os yakapá,
por sua vez, são xamãs permanentes: eles têm potência xamânica inefável
(yalawo) e se comunicam com os apapaatai. Os últimos são os que vêem e
ouvem apapaatai, eles realizam uma etapa da cura, preparam o terreno para a
emergência dos kawoká-mona. Estes prosseguem com a cura, cuja pujança de
sentido é ritual. Trata-se de um tipo de cura que implica em especializar-se nas
performances que identificam cada apapaatai singularmente.
Vejamos agora uma outra possibilidade de desenvolvimento dessa questão a
partir da contribuição de Rodgers sobre os Ikpeng:
5
O FAZIMENTO DOS APAPAATAI EM
GRANDES RITUAIS DE MÁSCARAS
5.1
Motivações e antecedentes
Os apapaatai podem assumir sete formas rituais básicas: (1) máscaras, (2)
aerofones11, (3) Yamurikumã12, (4) Kukuho13, (5) Matapu/Mapulawá14, (6) Huluki15
10 Vide Barcelos Neto (2002) para uma pormenorização da geografia cósmica dos apapaatai.
11 A watana, flauta usada no ritual funerário Kaumai (Kwarip), é o único aerofone que não está
ligado, pelo menos de modo direto e inequívoco, aos apapaatai.
Ritual realizado unicamente por mulheres que “encenam” o mito da transformação dos antigos
humanos em apapaatai. O ritual focaliza as relações de gênero a partir da antiga decepção das
mulheres míticas (as Yamurikumã) por terem sido esquecidas por seus maridos, em decorrência
de uma prolongada pescaria coletiva. Nesse ritual as mulheres xinguanas usam objetos
característicos do gênero masculino, como flechas e cocares, e lutam entre elas como lutam os
homens entre si.
13 Ritual em que são feitos as pás de beiju (kutejo) e os desenterradores de mandioca (tunuaT).
14 Referente ao ciclo das Festas do Pequi, o qual não presenciei. Nesse ritual são feitos os
zunidores (Coelho, 1991-92a) e ícones dos órgãos genitais masculinos e femininos.
15 Embora parcialmente descrito (Basso, 1973), o Huluki é um dos rituais menos conhecidos do
Alto Xingu. Entre os wauja, os “donos” do ritual Huluki são sempre pessoas que foram adoecidas
por Huluki (Andorinha). A sua forma ritual não é personificada por nenhum objeto específico (e.g.
máscara, flauta, zunidor etc.). São as pessoas engajadas nas trocas rituais que são as
Andorinhas. E são os próprios objetos trocados que adquirem o sentido de “objetos rituais”. O
agrupamento das pessoas para as trocas corresponde a um hulukialu, ou seja, à reunião das
A(a)ndorinhas em bandos no céu. Nos fins de tarde, as A(a)ndorinhas se reúnem para fazer
Huluki, ritual há muito inventado por elas.
151
e (7) Pulu-Pulu (trocano)16. A forma ritual que os apapaatai irão assumir depende,
direta e exclusivamente, da forma como eles se apresentaram aos yakapá
durante os transes que envolveram a cura de um determinado doente. Como foi
dito acima, o doente apenas vê os apapaatai despidos, ou seja, enquanto Tyãu
(“gente”, yerupoho), já os yakapá, por sua vez, podem ver os yerupoho vestidos
ou portando objetos rituais, como flautas, clarinetes, pás de beiju,
desenterradores de mandioca, zunidores etc. É no curso da divinação xamânica
que estas formas são identificadas e informadas.
Esta breve fala do yakapá Ulepe, dirigida a esposa de Atamai quando este
estava “morto” (kamãi), é a articulação conceituai de dois momentos
fundamentais da sociocosmologia wauja. De um lado, ela alivia a ansiedade da
família do doente na medida em que identifica nominalmente os agentes da
doença, de outro, permite que a terapêutica seja avançada, pois ela
simultaneamente define a forma ritual que os apapaatai deverão assumir,
colocando-os então a protagonizar o início de uma sequência propriamente
estética da terapia. No caso de Atamai, as formas rituais de Yanumaka (Onça)
aparecem como Tankwara, um quinteto de clarinetes, e como Atujuwá, um tipo
de máscara circular que alcança até dois metros de diâmetro. Atujuwá, aliás, é a
maior e mais elaborada dentre as máscaras fabricadas no Alto Xingu. Sua
descrição será contemplada nas seções seguintes.
A forma ritual “máscara” é, de longe, a mais frequente e a que gera um
maior número de pequenos rituais. Em seguida, vêm os clarinetes, os coros
femininos de Yamurikumã e as flautas. As formas rituais dos apapaatai são
hierarquicamente organizadas em torno da posição central que os aerofones e o
trocano ocupam nesse sistema .
Os rituais de apapaatai são denominados de acordo com o nome do
apapaatai responsável pela doença. Portanto, se a pessoa foi adoecida por
16 O ritual do Pulu-Pulu é muito raro. O último realizado entre os Wauja data de 1947 (Lima,
1950). No Alto Xingu, o mais recente ritual do trocano teve lugar na aldeia kamayurá de Ipavu, na
estação seca de 1998. Contudo, desconheço se entre esses tupi-guarani a performance ritual do
trocano tenha, como entre os Wauja, uma ligação direta com estados graves de adoecimento.
17 Este assunto será analisado no próximo capítulo.
152
19 Krause afirma “que com a crinolina de dança (de Atujuwá, Yakui e Kuwahãhalu) podem ser
executados ‘movimentos giratórios e ondulantes’ e que durante a dança toca-se tambor numa
árvore ôca deitada diante da cabana de festas” (Krause, 1960: 102). Essa dança das máscaras
com o “tambor” foi demonstrada para Karl von den Steinen, em 1887, e para Herrmann Meyer, em
1898.
20 Mas que outrora teria tido uma fase inter-aldeã, segundo as anotações dos etnólogos alemães
do século XIX (Krause, 1960:103).
21 A performance do Apapaatai lyãu tem um “palco” muito bem definido: o enekato (a grande
praça da aldeia), cuja área, em Piyulaga, é de 3,84 acres (15.540 m2). Uma pequena parte dessa
área é constituída pelo enekutaku, pátio central situado em frente à porta frontal da kuwakuho. O
enekutaku é correntemente traduzido pelos Wauja como “o meio”. Na verdade, grande parte da
atividade ritual acontece no enekutaku, é também aí que os homens se reúnem diariamente, logo
155
mencionados. Kukuho foi festejado enquanto Atamai estava “morto” num hospital
de Brasília e Ewejo logo que ele retornou a Piyulaga. Um par de anos mais tarde,
foi a vez de Tankwara e Kagaapa. Os outros dezenove apapaatai ficaram
“guardados”, a espera da ocasião mais oportuna para serem festejados. Para
Atamai, essa oportunidade chegou inesperadamente por uma via bastante
incomum: uma solicitação da Artíndia22 de Brasília para que os Wauja fizessem
uma “demonstração” do seu praticamente desconhecido grande ritual de
máscaras. Reproduzo a seguir um trecho de uma narrativa de Atamai, datada do
ano 2000, que enquadra esse evento na perspectiva temporal do seu
adoecimento.
23 “Original” é uma categoria “nativizada” pelos Wauja e diz respeito basicamente aos objetos e
performances produzidas em contextos rituais ou solenes, cujo rigor estético está diretamente
ligado a vegonha/respeito pelas pessoas que receberão esses objetos como pagamento ritual e
pelas pessoas que assistirão às performances.
157
versão wauja do seu ritual foram realizados apenas pela Artíndia e por mim. No meu caso,
somam-se ainda registros em áudio.
25 No capítulo 7, analisaremos outros aspectos da encomenda de rituais de máscaras em
comparação com os grandes rituais intertribais xinguanos, o Kaumai, o Pohoká (“furação de
orelha”) e o Yawarí, que, ao contrário do Apapaatai lyãu, funcionam sob outro regime de
contratação por não terem sua origem na estrutura xamânica de produção ritual.
160
Quadro 6
A aldeia Piyulaga
Nascente
Estrada para a
aldeia kamayurá
Poente
Estrada para a lagoa Piyulaga
80 100 m
_J
5.2
Cuidar de apapaatai ou como acionar
UMA REDE DE PRODUÇÃO RITUAL
Itsautaku tinha 18 apapaatai que ele ainda não tinha festejado, os quais o
adoeceram nos últimos 25 anos. Dentre esse conjunto de apapaatai, dois casais
do apapaatai Atujuwá figuravam-se como os principais. Os kawoká-mona
Atujuwá de Itsautaku eram quatro homens de grande prestígio ritual: Mayaya, o
chefe putakanaku wekeho (literalmente “dono” da aldeia), Yatuná e Atakaho,
seus irmãos juniores e o tio deles, Kaomo, o principal flautista de Piyulaga.
Mayaya teve um papel decisivo em assegurar que os 18 apapaatai fossem
feitos/festejados. Para ele, toda a aldeia deveria se envolver para que a festa
fosse grandiosa. Segundo os adultos mais jovens, Mayaya entusiasma-se com as
grandes festas. A rigor, espera-se que ele contagie o pessoal com seu
entusiasmo, pois um verdadeiro chefe (amunaw-iyajo) é um homem que gosta de
festas. Ele não só deve cuidar para que o conhecimento sobre elas seja
transmitido, mas também manter alto o moral do seu grupo quanto à participação
em rituais, sejam estes intra ou intertribais.
“Meus apapaatai são de antigamente”, como disse o próprio Itsautaku, o
que implicava que seus kawoká-mona também “eram de antigamente”. E de fato,
o eram, visto que vários deles já tinham falecido. Ou seja, Itsautaku tinha os
apapaatai, mas não podia mais contar com as pessoas que originalmente os
tinham “levado” para ele nos momentos em que ele adoeceu. Porém, o
falecimento de um kawoká-mona não impede que o ritual do apapaatai que ele
“representava” seja realizado. O sistema ritual wauja tem eficientes dispositivos
para contornar situações como essa. Todo esforço é em nome do ritual, ou
melhor, de assegurar que suas capacidades produtivas sejam mantidas.
Para que os 18 apapaatai de Itsautaku fossem produzidos era necessário
envolver pelo menos 36 pessoas. Dentre estas, seis já eram kawoká-mona
antigos, os outros 30, portanto, precisavam ser “escolhidos”. Tal duplicação deve-
se ao fato de que os apapaatai agem, em sua maioria, em dupla. Ou seja, cada
apapaatai age enquanto casal (macho e fêmea) ou família (pai, mãe e filhos).
Quando um indivíduo sofre sucessivos ataques de apapaatai, como foi o caso de
162
Itsautaku, torna-se bastante alta a possibilidade dele ter uma mesma pessoa
assumindo o papel de kawoká-mona de mais de um apapaatai. Isso significa que
na realização de um ritual como Apapaatai lyãu tal pessoa teria uma inegável
sobrecarga de trabalho. Mais dramática, porém, pode ser a situação do “dono”
dos apapaatai, pois patrocinar a feitura de 36 máscaras apenas com a ajuda de
sua família é algo que exigiria um trabalho colossal, visto que o “dono” das
máscaras deverá fornecer as matérias-primas e ainda alimentar os kawoká-mona
fabricantes das máscaras durante todo o período de trabalho. A quantidade de
comida deve ser sempre suficiente para o kawoká-mona e os membros de sua
família nuclear, e isso faz imenso sentido, pois tal kawoká-mona está deixando
de pescar para si e para sua mulher e filhos a fim de se dedicar ao ritual. De todo
modo, ninguém aceita um trabalho colossal como esse, mesmo porque é
praticamente impossível a uma família sustentar um número tão elevado de
pessoas durante os nove ou dez dias que dura o ritual. Vejamos como os Wauja
se organizam de modo a não gerar sobrecargas de trabalho para o “dono” dos
apapaatai e nem para os kawoká-mona.
A organização do trabalho ritual é sempre gerida pelo “conselho dos
amunav\/’, que é composto pelo chefe putakanaku wekeho, os “donos” de rituais
permanentes de apapaatai e os grandes especialistas rituais do sexo masculino.
Entre os Wauja, este grupo é composto por um número que varia de cinco a dez
homens, conforme o prestígio de cada um deles em intervir em questões rituais.
A dinâmica de interação dos nobres será analisada nos próximos dois capítulos.
Para o Apapaatai lyãu, foi decidido por esse “conselho” que cada unidade
residencial assumiria o patrocínio de pelo menos um casal de máscaras.
A transferência do cuidado sobre os apapaatai foi feita ritualmente pelo
u
'dono” original, Itsautaku. O ritual consiste em uma visita vespertina de Itsautaku
a todas as casas, nas quais ele entra solenemente e, com a voz impostada,
pergunta “quem vai cuidar de meu kawoká?”. A pessoa interessada em cuidar
pergunta: “qual kawoká?”. Itsautaku diz o nome do apapaatai, agradece à pessoa
e dirige-se à casa seguinte até perfazer, em sentido anti-horário, o círculo de
casas da aldeia. Essa visitação que Itsautaku fez às casas dá a base para a
estruturação espacial do ritual. Para atingirmos um sentido etnográfico mais
preciso, podemos dizer que o ritual Apapaatai lyãu começou nesse dia, com
“dono” oferecendo os seus apapaatai, que são, para os que os recebem, um
163
Quadro 7
Quadro 8
urgência em oferecer uma festa aos apapaatai que estão a lhes fazer mal. A
própria flexibilidade em transferir os apapaatai de um doente (ou ex-doente) para
que outras pessoas cuidem deles, talvez evidencie um aspecto irrefutável desse
pragmatismo no ritual.
5.3
O Apapaatai Íyãu
28 Kapojai constitui um gênero de canções cujos temas envolvem disputas políticas, ciúmes,
provocações pessoais e protestos. As letras das canções são carregadas de sarcasmo, ironia,
lascívia e comicidade, cujo objetivo é provocar, acusar, criticar e/ou criar divertimento. Para o
Apapaatai lyãu de julho de 2000, um cantor sénior compôs uma canção pornográfica sobre uma
jovem wauja que recentemente tinha se casado com um rapaz ikpeng. A canção, que protestava
e ironizava esse casamento, foi cantada, ininterruptamente, no interior de todas as 17 casas da
aldeia durante toda a metade de uma tarde. Segundo Ireland, Kapojai é “the only legitimate forum
for public criticism of the chief and challenge ofhis political authority (1985:13, grifos meus).
171
Quadro 9
Sequência de eventos que antecederam o Apapaatai Tyãu dejulho de 2000
Dias Eventos____________________________________________________
Io dia Coleta matutina das primeiras matérias-primas (cipós para a confecção
das máscaras circulares).
Trabalhos vespertinos de confecção das máscaras.
Início dos cantos vespertinos de Kapojai.__________________________
2o dia Coleta matutina de talos de buriti.
Entrega dos talos de buriti às esposas dos kawokâ-mona.
Cantos vespertinos de Kapojai.___________________________________
3o dia Processamento do buriti pelas mulheres.
Coleta matutina de madeira e cabaça para a confecção das máscaras.
Trabalhos matutinos e vespertinos de confecção das máscaras.
Cantos vespertinos de Kapojai.___________________________________
4o dia Processamento do buriti pelas mulheres.
Trabalhos matutinos e vespertinos de confecção das máscaras.
Fim dos cantos vespertinos de Kapojai.
Brincadeira noturna de Kaapi (Coati) no interior de cada casa.________
5o dia Processamento do buriti pelas mulheres.
Pescaria coletiva matutina coordenada pelos kawoká-mona de Itsautaku.
Trabalhos vespertinos de confecção das máscaras.__________________
6o dia Processamento do buriti pelas mulheres.
Trabalhos matutinos e vespertinos de confecção das máscaras.
Brincadeira matutina e vespertina de Yalatu-kumã (Caranguejo) com o
objetivo de pedir do peixe pescado no dia anterior._________________
7o dia Os kawoká-mona recebem o buriti fiado pelas esposas de seus
respectivos “donos”.
Trabalhos matutinos e vespertinos de confecção das máscaras.
Brincadeira vespertina de Awalawalá (pxnyerupohd).
Yukalu, filha do “dono” do ritual, é atacada por 7 apapaatai.__________
8o dia Trabalhos matutinos e vespertinos de confecção das máscaras.
Brincadeira vespertina de Maiwá (Lagartixa)._______________________
9o dia Trabalhos matutinos e vespertinos de confecção das máscaras.
Brincadeira vespertina de Kuau (Peixe Pacurau).
Conclusão da confecção das máscaras.
Fim das brincadeiras.
mulheres entrarem na kuwakuho. Mas isso foi possível porque todos sabiam que
não havia nenhuma flauta ou outro artefato proibido em seu interior. No ano de
2000, por motivo de luto, todas as flautas foram recolhidas para o interior das
casas de seus respectivos donos rituais.
Awalawalá é uma “brincadeira” marcada por violências física e verbal.
Tudo isso é feito com muitos xingamentos de conotação erótico-sexual,
envolvendo namoros, ciúmes, assédios mal sucedidos, acusação de ter alguma
doença venérea contraída na cidade etc.
Aqui, volto ao ciúme. Na tarde quente de Awalawalá, enquanto as
mulheres revidavam as provocações dos homens, sete apapaatai resolveram
manifestar seu descontentamento com os preparativos do Apapaatai íyãu.
Yukalu, segunda filha mais velha de Itsautaku, sofreu um “ataque” (epiléptico?),
caiu no chão, debateu-se por uns segundos, empalideceu e desmaiou. Às
pressas, recebeu cuidados de um yakapá, que revelou serem Yukuku (uma
Árvore), Kapulu (Macaco-Preto) e Paho (Macaco-Prego) os agentes de sua
doença. Itsautaku, sua esposa e o marido de Yukalu rapidamente chegaram ao
consenso de que esses apapaatai estavam enciumados, e para aplacar sua
agressividade e o risco de Yukalu piorar, o melhor era incluir imediatamente os
grupos de Yukuku, Paho e Kapulu no Apapaatai Tyãu. Os apapaatai, assim como
os humanos, têm muitos desejos, cujas manifestações frequentemente causam
espanto, sofrimento ou ansiedade nos humanos.
Sete calderõezinhos de mingau fresco e sete cigarros de tabaco nativo
foram levados para o enekutaku. Aulahu, filho sénior de Itsautaku, assumiu o
papel de akatupaitsapai de Yulaku e convocou sete homens para serem os
kawoká-mona de Yukalu. Um casal do apapaatai Yukuku, outro de Kapulu e uma
família de Paho com um filho. No transe do Yakapá, apareciam todos juntos
dançando ao seu modo, como se estivessem em uma festa. Assim,
inesperadamente, o Apapaatai íyãu, que tinha 36 máscaras, passou a ter 43.
PRANCHA 3
Figura 4 - Performance do
Apotalatuapai (“Ensaio”) no
entardecer do dia 26 de
julho de 2000. Kaomo toca
Kawoká Otãi enquanto dois
Atujuwá fazem sua dança
giratório-circular em frente à
casa das flautas.
Figura 5 - Performance
do Apotalatuapai
(“Ensaio”) no entardecer
do dia 26 de julho de
2000. Ainda sem suas
pinturas, os 43
apapaatai do ritual
Apapaatai lyãu dançam
em fila, tendo o flautista
Kaomo a sua frente.
Figura 6 - Perfor
mance da grande
dança na manhã do
dia 28 de julho de
2000. Já com suas
pinturas específicas,
os apapaatai dançam
no trajeto entre a
casa de um “dono"
ritual e a casa das
flautas.
173
Quadro 10
ele estava “treinando” para tocar dentro de algumas horas. No Apapaatai Tyãu, as
máscaras idealmente dançam com pelo menos um trio de flautas Kawoká.
Porém, como a “dona” de um dos cinco trios de Kawoká existentes em Piyulaga
tinha ficado viúva poucos meses antes, decidiu-se, em respeito ao seu luto, não
tocar as flautas grandes, que foram substituídas por Kawoká Otãi. A Kawoká Otãi
é um
n
“cerco” dos Atujuwá e segue em direção à casa de Itsautaku. O círculo de
Atujuwá é desfeito e todos os apapaatai seguem em fila, tendo sempre Kawoká
Otãi à frente, que toca ininterruptamente. A enorme fila segue em direção à casa
seguinte, dando início a uma volta da aldeia em sentido anti-horário. Nesse dia,
as máscaras não cantam, elas apenas seguem a música de Kawoká Otãi. Diante
da porta frontal das casas, os Sapukuyawá ensaiam uma provocação às
mulheres: sapateiam, levantando imensa poeira, e às vezes dizem estar com
fome. As mulheres respondem que a comida que têm é pouca e ruim. Essa
provocação é repetida na porta frontal de todas as casas.
Quando todos os apapaatai já estavam na quinta casa, Kawoká Otãi, deu
meia volta e retornou para o enekutaku, onde fez um movimento circular que foi
seguido por todos os seus 43 acompanhantes. Daí tomaram, em linha reta e em
fila, a direção da sexta casa. Os apapaatai alcançaram a 17a e última casa
poucos minutos antes do pôr do sol, retornando em seguida para a kuwakuho,
onde foram despidas as “roupas”. A flauta foi guardada aí mesmo, entre as
palhas do telhado. As portas das casas puderam, enfim, serem abertas.
Por volta de sete horas da manhã do dia 27 de julho, portanto no dia
seguinte ao Apotalatuapai, Itsautaku levou duas bolas de urucum para a
kuwakuho, eram para o uso dos kawoká-mona, que a partir daquela hora
começavam a se reunir para pintar, em um só dia, todas as 43 máscaras do
Apapaatai íyãu. Os Wauja utilizam ainda a raiz do urucum (para as pinturas em
amarelo), a tabatinga (um mineral de cor branca) e fuligem misturada com
resinas e óleos vegetais (para as pinturas em preto). Itsautaku e Kamo, grandes
yakapá, orientaram a pintura de muitas máscaras. Os irmãos Mayaya, Yatuná e
Atakaho e Kaomo, seu tio, igualmente grandes conhecedores do universo ritual,
pintaram os quatro Atujuwá. Foi dessas quatro pessoas que a realização do
Apapaatai lyãu demandou maior dedicação. De um lado, porque a confecção das
Atujuwá é muito trabalhosa, de outro porque elas são pesadas, o que demanda
um grande esforço físico durante suas performances. A Atujuwá é sustentada por
um cone de rodilhas, de 35 cm de altura, colocado sobre a cabeça do
“dançarino”, neste cone é encaixado um cilindro de madeira, cuja posição central
na máscara (entre os olhos) permite que esta seja sustentada com equilíbrio.
Com as duas mãos o “dançarino” segura uma trave inferior horizontal (figura 4) e
projeta a máscara em posição vertical. Esta trave permite que o “dançarino” alivie
PRANCHA 4
Figura 7 - Família
do apapaatai
Apasa. Da es
querda para a
direita, a filha, a
mãe e o pai.
Coleção Aristó-
teles Barcelos e
Maria Ignez Mello,
MAE/UFBA, 1998.
i
176
o peso sobre a sua cabeça, então encaixada sob o cone de rodilhas, e o distribua
para os membros superiores, possibilitando-o a andar, correr e fazer os
movimentos giratórios e circulares próprios da coreografia de Atujuwá. Atujuwátãi
(ou Atujuwá “pequeno”, figuras 9, 52 e 53) segue uma estrutura semelhante,
porém, por ser mais leve que Atujuwá, não possui o cone de rodilhas. As demais
máscaras são de uso menos complicado, exceto Yuma (figura 9), cujo peso, por
ser de madeira, pressiona os ombros e o pescoço, e para agravar, o equilíbrio é
comprometido pelo empunhamento constante de um longo escarificador de
dentes de peixe cachorra (figura 49).
Nesse dia não há músicas nem danças. A atividade ritual concentra-se no
interior da kuwakuho, onde todo o esforço é unicamente voltado para a atribuição
de identidades específicas às máscaras. Sem as pinturas as máscaras são
apenas formas genéricas.
A confecção e a pintura das máscaras é uma oportunidade para os jovens
exercitarem técnicas específicas de encordoamento e trançado e de aprenderem
a usar o repertório de motivos visuais que confere identidade às máscaras. Como
veremos a seguir, a atribuição de identidade por meio da pintura funciona sob um
regime de alternância mais ou menos aleatória dos motivos e marcas. A
ornamentação que cada máscara vai receber é decidida no momento mesmo de
sua pintura. A única coisa que se tem a priori é a máscara como “tipo”
(Sapukuyawá, Atujuwá, Yuma etc.), cujas estruturas formal e fabril estão
intrinsecamente ligadas. Desde o século XIX, conforme se pode observar pelos
exemplares coletados e desenhados, essas estruturas permanecem invariáveis.
Cada kawoká-mona pintou sua própria máscara, embora alguns tiveram a
ajuda dos mais experientes. Por volta de 15 horas o trabalho de pintura estava
encerrado, em seguida as máscaras foram cuidadosamente dependuradas, nos
caibros do telhado da casa da flautas, para secagem.
Antes de continuar a descrição do Apapaatai lyãu, analisemos
detalhadamente como as personagens rituais, que até agora foram referidas
apenas pelos seus nomes, assumem formas e identidades específicas na cultura
material wauja.
177
5.4
ASPECTOS MORFOLÓGICOS E PLÁSTICOS DAS MÁSCARAS
A análise formal que procederei nas páginas a seguir não é feita a partir da
terminologia indígena, aliás, alguns motivos sequer têm nomes. Como veremos,
há questões próprias da etnografia wauja que podem ser seguramente
formuladas a partir da forma e de uma controlada vinculação aos mitos e
exegeses.
Nos capítulos anteriores, acompanhamos os processos de aproximação
entre os humanos e os não-humanos, nos quais os últimos assumiam formaè
sobretudo antropomorfas. Como vimos acima, é na divinação xamânica que a
aparência da agressão dos yerupoho — sob “roupas”, tocando aerofones, de
mulheres “travestidas” etc. — é revelada. A questão que se impõe agora é
precisamente a das formas visuais que os Wauja ritualmente conferem aos
apapaatai. Como não poderei abordar a questão de múltiplas frentes,
aprofundarei um aspecto no qual a análise formal mostrou ser central: a
178
Quadro 11
Tipologia das máscaras
31 Exemplares dos tipos 1, 2, 6, 9, 10, 12, 14, 15, 16, 17, 19 e 20 podem ser encontradas na
coleção que formei para o Museu Nacional de Etnologia no ano 2000, e exemplares dos tipos 2,
3, 5, 7, 8, 9, 10, 13, 15, 17, 18, 19, 20 e 22 na coleção Aristóteles Barcelos Neto e Maria Ignez
Mello do Museu de Arqueologia e Etnologia da UFBA. Quanto às máscaras Tuapi e Yakui,
desconheço qualquer museu que as possua. O Museu Nacional da UFRJ possui máscaras
Yakuikatu de origem Kamayurá. Um informante disse-me que a Yakuikatu é parente de geração
descendente de Yakui. Voltaremos a falar sobre a Yakui no próximo capítulo.
32 Matérias-primas complementares como conchas, dentes de piranha e cera de abelha são
usados para fazer os olhos, o nariz e a boca das máscaras.
33 Atujuwátãi é uma “roupa” vestida por Aves, sobretudo a Pomba (Tukujê), e por Peixes, como o
Acará-Bandeira (Apaja).
34 Yakui é uma “roupa” vestida por várias espécies de Aves e Peixes, em especial os carnívoros,
como a Traíra, a Piranha e o Tucunaré.
35 Vide Mello (1999) para uma classificação e descrição dos instrumentos musicais wauja.
180
Quadro 12
Motivos gráficos criados pelo personagem mítico Arakuni
4
5
9 10
:4
♦
I
"1
12 13
Figura 11 - Manhã do
dia 28 de julho de
2000. Casal de
Sapukuyawá
Yanumaka nãu
(Onça). Em primeiro
plano, o macho, com
cinto de couro de
onça-pintada. De
costa, a fêmea, iden
tificada pela listra
vermelha no dorso da
máscara e pelo cinto
vermelho de algodão.
Figura 12 - Manhã do
dia 28 de julho de
2000. Os apapaatai
Sapukuyawá Arikamu
(Jacaré), em primeiro
plano, e Sapukuyawá
Muluta (Peixe Cascu-
do), em segundo
plano, posam para
uma fotografia. Os
adornos plumários são
componentes
indispensáveis da
ornamentação da
maioria das máscaras
e devem ser providos
pelos seus performers
e/ou “donos”.
182
36 O ideal realista na arte wauja é mais bem elaborado nos desenhos de sonhos e transes
xamânicos (Barcelos Neto, 2001, 2002), um terreno onde a figuração, condição fundamental das
expressões realistas, viceja com certa liberdade criativa.
37 Segundo a descrição de Ferreira (1975: 1092) trata-se de um peixe amazônico com o “dorso
escuro, uma faixa amarela ao longo da linha lateral, com duas séries de pigmentos amarelo-ouro;
cabeça e parte anterior do dorso revestidas de uma couraça amarela, e comprimento de até
1,25m. A gordura costuma(va) ser dada (pelos Tupinambá) aos papagaios a fim de provocar a
mudança do verde das penas em amarelo”. É curioso esse interesse em tornar uma ave verde em
amarelo oferecendo como alimento um peixe de cor predominantemente amarela. Embora esta
183
boca muito larga e “bigodes” longos, que são meticulosamente feitos de cordão
(figura 8). Sua semelhança com o peixe pirarara é inequívoca. A pintura desse
exemplar também evidencia um interesse realista: preto no dorso e amarelo nas
regiões ventral e laterais. Porém, o que faz essa máscara ser invariavelmente
reconhecida como Yuma é a sua morfologia e não a sua pintura. Sustento essa
afirmação a partir do estudo de mais seis exemplares38 dessa máscara, cujas
pinturas foram feitas com os motivos geométricos kulupienê (vide quadro 12) e
ogana paakai. A pintura pode variar, mas a forma de Yuma é sempre fixa.
As máscaras de tipo Atujuwá, Atujuwátãi, Yakui, Kuwahãhalu e
Sapukuyawá também têm formas fixas, o que variam são as pinturas e algumas
pequenas marcas e adornos (vide exemplos nas figuras 11 e 12). Contudo, no
caso destas, na medida em que as pinturas variam as identidades das máscaras
também variam, o que já não é o caso de Yuma, Kapulu e demais máscaras,
cujas identidades são definidas pela morfologia.
A respeito das máscaras wauja, Ireland observa que
prática fosse tupinambá e não wauja, não é ela em si que nos interessa, mas a idéia de variação
cromática como um dispositivo para as transformações.
PRANCHA 6
r 1
&
5)
r ♦ 1
J
£3
5.5
Esquemas de antropomorfia e monstruosidade
38 Dois da coleção wauja de Harald Schultz do MAE/USP, dois da coleção que formei para o
MAE/UFBA em 1998 e mais dois da coleção do Museu Nacional de Etnologia formada em 2000.
39 As máscaras só cantam no dia seguinte ao recebimento das pinturas, quando elas saem
individualmente da kuwakuho para dançar e receber alimentos. Vide descrição das canções e
danças na seção 5.6.
40 Segundo Clegg (1977) um esquema é um modelo mental que opera uma redução de uma idéia
complexa em um simples motivo, em geral abstrato-geométrico. Os esquemas podem ter
naturezas “conceituais” e/ou “representativas”.
185
(1942 [1894]) e Krause (1960) foram muito importantes para a síntese estilística
que procuro desenvolver. Esses autores fizeram compilações cuidadosas e
únicas em sua riqueza de detalhes. Karl von den Steinen42 não fez trabalho de
campo sistemático no Alto Xingu — como posteriormente ele chegou a realizar
entre os marquesanos (Steinen, 1925)—, todavia ele formou uma excepcional
coleção xinguana (Hartmann, 1986a, 1986b, 1993), e a documentou com o
máximo possível de informações, o que lhe permitiu mais tarde consolidar
questões em gabinete.
Ao longo da década de 1930 e início da década de 1940, Fritz Krause
(1960) empreendeu um estudo sobre o material oitocentista xinguano com vistas
a sintetizar problemas etnológicos específicos, dentre eles a relação entre as
máscaras e o grafismo. Krause desenvolve o seu artigo a partir de três tipos de
máscaras encontradas nas coleções e nas referências de campo de Karl e
Wilhelm von den Steinen, Herrmann Meyer e Max Schmidt, são elas: kualóhe
(Kuwahãhalu, em wauja), nuturua (Atujuwá, em wauja) e monotsi (Yutisipiku, em
wauja).
Avancemos o assunto a partir das Atujuwá — grandes máscaras
circulares, protagonistas do ritual Apapaatai lyãu de julho de 2000, cuja dimensão
média em diâmetro alcança 2 metros. Eis a primeira referência feita a Atujuwá na
literatura xinguana:
41 O jogo da bola era um ritual inter-aldeão, provavelmente extinto no final do século XIX. O
desenho do campo no solo era precisamente configurado por esse motivo, assim como é hoje a
sepultura feita durante o ciclo ritual do Kaumai (Kwarip).
42 Este etnólogo alemão não foi apenas um dos pioneiros da etnologia indígena, mas também um
dos pioneiros do estudo antropológico da arte. Arte e cultura material eram temas fundamentais
para as discussões de sua época. Franz Boas (1955 [1927]) abre a sua análise sobre o
simbolismo na arte primitiva a partir dos desenhos geométricos xinguanos descritos por Steinen
(1894). A grande preocupação teórica desses dois etnólogos alemães concernia à relação entre
forma e significado e ao problema da representação.
188
É curioso que um outro nome para o motivo yetulaga naku, Atujuwá opaka
(rosto de Atujuwá), seja exatamente essa parte central da máscara Atujuwá
(nuturua) à qual Krause faz referência. Krause percebeu que o problema não
estava em reduzir o motivo a este ou àquele suporte. A grande dificuldade de
Krause era encontrar um princípio conceituai que explicasse a distribuição do
mesmo motivo sobre suportes aparentemente tão diferentes e que relacionasse
coerentemente todos esses objetos e o corpo humano. Herrmann Meyer parece
ter chegado mais perto de entender o problema:
43 Ainda assim resta a pergunta: por que o antropomorfismo é “natural”? Segundo Boyer (1996),
essa questão pode ser resolvida “by means of a cognitive theory of cultural representations, in
which representations are likely to become stable and widespread if they have both salience and
inferential potential. Anthropomorphic projections have inferencial potencial because they activate
a powerful modular capacity for mentalistic accounts of behaviour. They are salient because they
are counter-intuitive, and therefore attention-grabbing” (1996: 83).
191
identificada), uma Raposa, uma Harpia, uma Cobra Tsepu (espécie não
identificada) e um Tamanduá, são alguns desses desenhos.
5.6
A PINTURA DAS MÁSCARAS: IDENTIDADES E TRANSFORMAÇÕES
Figura 32 - Sapukuyawá Arikamu eneja (Jacaré Figura 33 - Sapukuyawá Kuwa eneja (Peixe
macho). Desenho da máscara usada no Curimatá macho). Desenho da máscara usada
ritual Apapaatai lyãu de julho de 2000. no ritual Apapaatai lyãu de julho de 2000.
Figura 34 - Sapukuyawá Yusitsêtsi eneja (Peixe Figura 35 - Sapukuyawá Ukixá eneja (Peixe
Voador macho). Desenho da máscara usada Pacu Grande macho). Desenho da máscara
no ritual Apapaatai lyãu de fevereiro de 2002. usada no ritual Apapaatai lyãu de fevereiro de
2002.
PRANCHA 10
A
r
' - II
5-
Figura 36 - Sapukuyawá Yutapá eneja (Peixe Figura 37 - Sapukuyawá Muluta eneja (Peixe
Pacu macho). Desenho da máscara usada Cascudo macho). Desenho da máscara usada
no ritual Apapaatai lyãu de julho de 2000. no ritual Apapaatai lyãu de julho de 2000.
1
Figura 38 - Sapukuyawá Yuma eneja (Peixe
r
Figura 39 - Sapukuyawá Isejo eneja (Peixe
Pirarara macho). Desenho da máscara usada Cascudo Liso macho). Desenho da máscara
no ritual Apapaatai lyãu de fevereiro de 2002. usada no ritual Apapaatai lyãu de fevereiro de
2002.
PRANCHA 11
Figura 40 - Sapukuyawá Wajai eneja (Peixe Figura 41 - Sapukuyawá Puixa eneja (Peixe
Tambaqui macho). Desenho da máscara usada Matrinchã macho). Desenho da máscara
no ritual Apapaatai lyãu de julho de 2000. usada no ritual Apapaatai lyãu de julho de
2000.
Figura 42 - Sapukuyawá Ejekalu eneja (“Peixe Figura 43 - Sapukuyawá Ejekalu eneja (“Peixe
Preto” macho). Desenho da máscara usada Preto” macho). Desenho da máscara usada
no ritual Apapaatai lyãu de fevereiro de 2002. no ritual Apapaatai lyãu de fevereiro de 2002.
195
44 Em uma análise de um desenho apotropaico celta, Gell (1998: 83-84) procura demonstrar como
padrões complexos de desenho são capazes de excercer agência: “Apotropaic art, which protects
an agent (whom we will take to be the artist, for the present) against the recipient (usually the
enemy in demonic rather than human form), is a prime instance of artistic agency, and hence a
topic of central concern in anthropology of art” (idem, 1998: 83). No sétimo capítulo analiso como
197
vegetais misturadas com fuligem, que dão a cor preta; urucum, que dá a cor
vermelha; e raiz de urucum, que dá a cor amarela. Sapukuyawá tem duas faces
laterais planas que são igualmente pintadas. Na verdade, trata-se de um único
motivo que se estende de uma face à outra, entretanto ele é melhor percebido
quando a máscara está vestida.
A pintura das Sapukuyawá é um excelente exemplo para se analisar o
sistema de transformações que relaciona forma gráfica e identidade. A sua
pintura segue dois padrões básicos que consistem em seccionar ou não o campo
plástico. São três os tipos de seccionamento: transversal, vertical e horizontal,
sendo o primeiro o mais recorrente. As Sapukuyawá Arikamu (figura 32), Kuwa
(figura 33), Yusitsétsi (figura 34) e Ukixá (figura 35) têm como motivo gráfico uma
faixa preta que secciona transversalmente o espaço plástico em duas partes. As
Sapukuyawá Yutapá (figura 36) e Muluta (figura 37) têm o mesmo motivo de
secção transversal, porém bicolor (preto e amarelo).
Listar as características morfológicas das espécies animais, verificar como
elas se manifestam nas máscaras e depois deduzir uma identidade Animal é ir
em direção contrária ao pensamento e a prática artísticas wauja, é supor, de
partida, que os animais são o modelo para a criação arte gráfica e das
personagens rituais. Se seguirmos a trilha dos mitos, veremos que os animais
são tanto arte quanto as máscaras, pois ambos são coisas fabricadas a partir de
elementos formais que os Wauja reconhecem como ogana (desenho) e
opotalapitsi (imagem). Máscaras (“roupas”) e animais podem ser vistos como
transformações/variações uns dos outros, e, neste caso, dizer o que precede,
como modelo, é analiticamente pouco útil. O impulso de transformações ocorrido
com o surgimento do astro solar explica a criação da maioria dos animais pelos
yerupoho, mas há animais que Kamo e Kejo criaram, e outros que ninguém sabe
exatamente como apareceram. Portanto não há o jacaré, o tucunaré, o urubu etc.
O que há são múltiplas origens de muitos dos animais conhecidos pelos Wauja e
isso implica igualmente nas múltiplas identidades dos animais. Se um
determinado macaco-prego for o filho de Alawiru46, ele será a caça ideal, pois não
adoecerá os humanos, mas se a presa macaco-prego for uma “roupa” de
yerupoho ou um yerupoho transformado em macaco-prego, os filhos pequenos
46 Lembro o leitor do mito em que uma mãe humana abandona, no alto rio Batovi, o seu filho que
estava se transformando em macaco. A mãe, Alawiru, pede que ele seja um macaco bonzinho,
que não faça mal aos humanos.
201
47 Os motivos monocromáticos não têm, tal como os motivos de Arakuni (quadro 9), nomes
específicos. Eles são apenas chamados de ejetaku (“campo preto”), mohãjataku (“campo
vermelho”), kisuátaku (“campo branco”), weruiyátaku (“campo amarelo”).
202
48 Embora o conceito de template tenha sido originalmente empregado por Morphy na década de
1980, seu desenvolvimento parece mais bem resolvido nos trabalhos de Kuchler (1987, 1992)
sobre as máscaras malangan da Melanésia. Se no caso malangan os templates estão ligados à
morte e à consequente mudança de aldeia, no caso dos apapaatai eles estão ligados a novos
adoecimentos, ou melhor, às interpretações xamânicas advindas dos mesmos. Os casos
malangan e apapaatai geram respectivamente fragmentações do grupo e da alma, que apenas as
máscaras podem recompor. Esta é talvez a sua disposição agentiva de maior importância.
204
5.7
Uma máscara total
o O F.F.-
íill ®o '
tem apenas 13 (ou 14 a depender da versão), o que a primeira vista pode parecer
uma contradição, pois essa cifra está longe da “totalidade”. A totalidade que
Arakuni encerra não é um efeito de “retórica” exegética, ela pode ser verificada
quando analisamos algumas propriedades formais das apresentações que os
wauja fazem de Arakuni em papel.
O kulupienê foi o primeiro motivo feito por Arakuni — inicialmente pintado
em seu próprio corpo e depois impresso na pele da sua irmã como consequência
de sua união incestuosa —, os demais motivos foram feitos enquanto ele cantava
(ou encantava?) e trançava a sua “roupa” no sentido da cabeça para a cauda.
Observe o leitor, que no desenho feito por Aulahu (figura 44) o primeiro motivo da
“roupa”-Cobra de Arakuni é o kulupienê, que, localizado próximo à cabeça, se
desenrola clara e fluentemente em uma diversificada sequência de motivos até a
cauda. O mesmo vale para a versão de Aruta (figura 45).
Não é necessária uma observação muito demorada da “representação” de
Arakuni para perceber que os motivos passam de um ao outro seguindo
mudanças no curso das linhas e dos losangos, a partir da matriz original, o
kulupienê. Esse modelo de continuidade e transformação, tão bem expresso por
Aulahu e Aruta — mas também por outros desenhistas wauja — nos leva a
pensar que a cauda de Arakuni não é o fim da linha. Lembro-me que ao indagar
Aruta sobre a sua versão do desenho de Arakuni, ele, o principal xamã-cantor
wauja e profundo conhecedor da mitologia, disse: “desenho não acaba nunca”. A
totalidade que Arakuni anuncia é a infinitude do desenho. Dentre todas as
“roupas” existentes no cosmo wauja, a de Arakuni é simplesmente paradigmática.
Além de carregar todos os motivos gráficos existentes e possíveis, ela veicula a
idéia de que os motivos se transformam uns nos outros na medida em que eles
vão sendo executados49; é como se a linha tivesse autonomia expressiva.
Nas conversações posteriores com os meus informantes-desenhistas,
ficou claro que tão importante quanto a invenção dos desenhos por Arakuni, foi a
posterior cópia, manutenção e reinvenção desses desenhos pelos apapaatai,
que, a partir de então, passaram a ser também “donos” dos desenhos
originalmente inventados por Arakuni. Na verdade, ele não criou todos os
desenhos geométricos conhecidos pelos Wauja, muitos foram e continuam sendo
inventados por outros apapaatai. Há, portanto, no mundo (quase) invisível das
207
5.8
A GRANDE DANÇA DOS APAPAATAI
Figura 49 - Manhã do
dia 28 de julho de 2000.
No interior da casa das
flautas, o apapaatai
Kuwahãhalu Yakuwa-
kumã toneju (“Piranhão”
fêmea) prepara-se para
sair, fazendo movi
mentos leves com o seu
temível escarificador de
dentes de peixe-
cachorra, objeto que
fascina e amedronta as
crianças. Vê-se, em
segundo plano, Itsau-
taku a orientar a
Assistência infantil para
que se afaste e dê
pássagem para
Kuwahãhalu.
Figura 51 - Manhã do
dia 28 de julho de 2000.
Os apapaatai Yukuku
(Árvore) cantam e
dançam com seus
chocalhos. Yukuku é o
único apapaatai que usa
esses instrumentos no
ritual Apapaatai lyãu.
PRANCHA 15
Yukuku, Yukuku
Yukuku, Yukuku
Yukukukukukukuku
Yukukukukukuku
Yukuku, Yukuku
Yukuku ehiké iyé ha
55 Esse “gênero” musical foi também observado por Goldman (1968: 288) no grande ritual de
máscaras Cubeo. O autor afirma que as canções são dificilmente traduzíveis e que muitas delas
mencionam os nomes das máscaras.
56 Sobre a performance musical de Kuwahãhalu, Ireland faz as seguintes observações:
“Kwãhãhãlu is less often performed than sapukuyawá, and consequently is less familiar to
younger Waura. Neither does it seem to possess a rich traditional ritual behavior and ceremonial
license asoociated with certain other Waura spirits. Althrough several hours of singing preceded
the ceremony [canções Kapojai, vide seção 5.3], the actual kwãhãhãlu performance I winessed
was quite simple. The spirit merely danced and sang briefly in the plaza, then outside the house of
the recovered patient in recognition of her [neste caso a própria Emilienne Ireland] sponsorship of
the ceremony, and finally retired to the men’s house [kuwakuho] to enjoy the feast that marked the
end of the ceremony” (1985: 9). O que presenciei no Apapaatai Tyãu a respeito de Kuwahãhalu
não difere desta descrição. Na festa patrocinada para curar Ireland dançaram apenas um casal de
Sapukuyawá e um casal de Kuwahãhalu, cujos nomes específicos não foram mencionados pela
autora. As canções Kapojai que precederam a dança das máscaras propriamente ditas fazem
parte do complexo ritual de Sapukuyawá e não de Kuwahãhalu, como supôs Ireland. Segundo os
Wauja, “é Sapukuyawá que puxa Kapojai” (vide Mello, 1999, para outros dados a respeito da
relação entre Sapukuyawá e Kapojai).
57 Todas as canções foram traduzidas por Yanahin, que disse desconhecer várias palavras, pois
estas estavam na “língua dos apapaatai’-. “só pajé sabe”, “só quem escuta apapaatai'. Entre os
Wauja, há um yatamá que perdeu muito de sua audição em função de uma doença causada pelo
apapaatai Aluwa-kumã (Morcego). Na verdade, o que ocorreu foi uma mudança na sua audição:
esse yatamá não ouve bem os humanos, mas ouve os apapaatai, pois os Aluwa-kumã nãu
“fizeram” o seu ouvido com susbtâncias patogênicas. Esse yatamá passou então ser chamado de
Aluwakumã e tornou-se notório por escutar não apenas os apapaatai, mas também Deusu
(Deus), ou melhor, Kwamutõ e seus netos Kamo (Sol) e Kejo (Lua). Tentei “decifrar” essas
canções com Aluwakumã, porém ele pouco acrescentou à tradução que já tinha sido feita por
Yanahin. O sentido geral dessas palavras tem a ver com a alegria dos apapaatai pela comida que
eles recebem nos rituais.
215
Pahoyanani, Pahoyanani
Ehai, ehai, ehai
Pahoyanani, Pahoyanani
Ehai, ehai, ehai
Pahoyanani, Pahoyanani
Yunuyunupani,yunuyunupari
Ehai, ebe
Pahoyanani, Pahoyanani
Ehe, eheyunuyunupani
Ehai, ehai, ehai
Pahoyanani, Pahoyanani
Ehai, ehai, ehai
Pahoyanani, Pahoyanani
Ehai, ehai, ehai
Hohoho hooooo
5.9
O RECOLHIMENTO DAS MÁSCARAS
Figura 56 - Cercada
pelos quatro Atujuwá,
Wataho abandona o
caldeirão de água no
chão e vai para sua
casa.
58 Na visita à segunda aldeia kamayurá, em outubro de 1887, Karl von den Steinen notou “muitas
máscaras guardadas em casas de moradia” (Krause, 1960: 115). Krause supõe, todavia
219
qualidade de “dona” ritual das flautas, essa mulher é responsável pela sua
alimentação, porém ela jamais poderá ter um contato visual com esses objetos
que lhe pertencem.
O recolhimento implica o estabelecimento de um universo moral entre os
Wauja e os apapaatai, que, presentes na aldeia tanto na forma de objetos rituais
quanto na pessoa de certos parentes do doente, transformados em kawoká-
mona, colocará em curso sentimentos de respeito e vergonha, inveja e ciúme,
motores da manutenção e da suspensão dos próprios rituais, assuntos que
abordaremos nos próximos capítulos.
A relação entre o ex-doente (“dono” ritual) e seus apapaatai passa
diretamente pela relação de seus kawoká-mona com os artefatos rituais. Como
veremos a seguir, não é possível pensar os artefatos desligados das pessoas
que os produziram e das pessoas que eles “incorporam”. Uma vez recolhidos ao
interior da casa de seu “dono” ritual, os apapaatai, “incorporados” na forma de
máscaras e/ou aerofones, passam a saber sobre tudo o que se passa ali; eles
ficam especialmente atentos à comida produzida na casa do seu “dono”, e se
este não a oferece esporadicamente aos seus kawoká-mona, os apapaatai ficam
insatisfeitos. Ao lado dos artefatos rituais, os kawoká-mona são a outra condição
“incorporada” dos apapaatai. Os artefatos e os kawoká-mona, ocupam posições
associativas no esquema de distribuição e permanência da persona dos
apapaatai entre os humanos. Essa associação, contudo, extrapola o plano da
performance ritual — no qual a máscara e o performer configuram uma unidade
indissociada — e faz com que o estatuto desses artefatos assuma foros de
complexidade que escapam às análises centradas apenas em seus contextos
performáticos. Posto isto, deixemos para trás as questões iconográficas e
cênicas e partamos para uma outra sequência de atribuições de personitude aos
artefatos e para os seus desdobramentos na cosmopolítica wauja.
Parte III
OS RITUAIS DE APAPAATAIE A
COSMOPOLÍTICA WAUJA
221
6
SOBRE A PERMANÊNCIA DOS APAPAATAI
6.1
A HIERARQUIA DAS FORMAS RITUAIS
netos, os irmãos gêmeos Kamo (Sol) e Kejo (Lua). Um dado oriundo de uma
exegese mítica recolhida por Pedro Agostinho (informação pessoal) entre os
Kamayurá conta que no início dos tempos o mundo era coberto por uma vasta
floresta de jatobá. De acordo com um mito kuikuro, todos os peixes comestíveis e
as águas que deram origem ao maior lago do Xingu, o Tahununu, estavam
contidos no interior de uma árvore (Carneiro, 2001).
Segundo a ordem de dureza das matérias, após a flauta segue o trocano
(Pulu-Pulu), feito do tronco inteiro de uma árvore homónima3. Em seguida
encontram-se as máscaras Yakui, feitas também de madeira dura. Também
fazem parte desse sistema os coros femininos (Yamurikumã). A primeira vista
parece estranho que esses coros integrem um sistema cuja lógica do sensível
baseia-se numa gradação entre matérias duras e macias. Todavia, não me
parece ser a voz o objeto de interesse classificatório neste contexto, mas um
objeto feito no ritual das Yamurikumã, o pilão. No ciclo biográfico de um ritual de
Yamuhkumã, os pilões são alternadamente produzidos e destruídos (pelas
chamas de uma fogueira), neste caso quando eles já atingiram um nível de
desgaste avançado.
As relações entre flautas, coros femininos e máscaras podem ser tomadas
por diferentes aspectos, mas nem todos resultam num mesmo efeito se tivermos
em vista os sentidos pragmáticos do ritual. Embora não usem máscaras durante
a sua performance ritual, as Yamurikumã não deixam de estar mascaradas. São
os seus cantos que dão o sentido transformativo próprio do mascaramento: as
Yamurikumã são “máscaras verbais” (Pollock, 1995). O mito das Yamurikumã é
homólogo ao mito do surgimento dos apapaatai, i.e. da fabricação das “roupas”
animais/monstros pelos yerupoho machos. Enquanto os homens, num remoto
acampamento de pesca, estavam a fabricar “roupas” e flautas para virar “bichos”,
as mulheres permaneciam famintas na aldeia a espera de que seus maridos,
pais, irmãos e filhos voltassem da pescaria. As mulheres sentiram-se
desprezadas com a demora dos seus maridos e com a notícia de que eles
estavam virando “bichos”. Revoltadas, elas resolvem fazer o mesmo e fogem em
represália aos homens. O entrelaçamento entre essas três formas rituais (música
6 Termo para o companheiro com quem se “fura a orelha” no ritual Pohoká de iniciação masculina
à chefia. Todos os adolescentes que furam as orelhas num mesmo ritual tornam-se sãtsa uns dos
outros, constituindo assim um grupo discreto de “amigos formais”.
227
While we cannot presume to know all the factors in the chiefs7 mind
determining which spirits he names in a given case, there are
nevertheless certain predictable patterns in his diagnosis as afflicted
by spirits requiring expensive and elaborate ceremonies that provide
much food and entertainment for the community and prestige for the
sponsor. In contrast, it seems to be primarily children and adults with
few assets who are found to be troubled by spirits associated with
less elaborate ceremonies (Ireland, 1985:13).
7 Ireland faz referência aqui a Malakuyawá, antigo chefe (putakanaku wekeho, “dono” da aldeia) e
grande yapaká. A autora não está dizendo que é a categoria chefe que identifica os “espíritos”,
mas um chefe em particular devido ao fato dele ser também yakapá. Na época da pesquisa de
Ireland entre os Wauja (1981-1983), Malakuyawá era, aliás, o único yakapá de Piyulaga.
8 A fabricação de um trio de flautas Kawoká custa ao doente ou ex-doente, ou seja, ao “dono” dos
apapaatai, pelos menos três cintos ou colares de conchas de caramujo. Porém, a depender da
espessura dos colares, o fabricante das flautas deverá receber ainda um adorno plumário
completo com penas de harpia, arara, recongo e tucano. Enfim, a fabricação das flautas Kawoká
só pode ser paga com adornos de luxo (awojopaixê).
228
mais alimentar os seus apapaatai, ele deve destruir seus objetos rituais,
sobretudo se estes forem flautas. Muitas vezes, quando alguém herda do pai ou
da mãe um trio de Kawoká, preocupa-se imediatamente em consolidar as
condições de alimentar os seus kawoká-mona. Caso o herdeiro pressinta que
não terá sucesso em satisfazer as demandas alimentares de Kawoká, ele
decidirá pela queima das flautas, oferecendo um último ritual, no qual receberá o
último pagamento de seus kawoká-mona, sinal da dissolução completa da sua
relação produtiva com esses mesmos kawoká-mona.
Os Wauja dizem que “antigamente” havia pessoas que, por pura maldade,
abandonavam seus objetos rituais nas lagoas, deixando os apapaatai agressivos
e consequentemente infestando-as de perigos. As histórias dos memulu e dos
abandonos mostram que os objetos rituais podem passar diretamente à condição
de protótipo, tornado eles próprios um tipo particular de protótipo. Uma flauta de
madeira é um corpo hiper-resistente que, uma vez lançado no memulu, tende a
ficar cada vez mais duro. Dureza de monstro, “bicho” que não morre, a não ser
pela ação física e violenta de outrem.
Embora as flautas Kawoká ocupem, na organização hierárquica do ritual, a
posição mais elevada, seus grupos rituais raramente existem e atuam de maneira
isolada: há uma nítida cooperação entre os apapaatai produzidos como flautas e
aqueles produzidos como máscaras. Assim, se um “dono” de ritual de aerofones
também possuir kawoká-mona de apapaatai mascarados (Ariranhas, por
exemplo), estes devem ajudar os kawoká-mona de aerofones em seus trabalhos
rituais, mas não o inverso, o que confirma a posição central e superior dos
aerofones nesse sistema. Kawoká ocupa, portanto, o centro do sistema
cerimonial wauja, em torno do qual gravitam as máscaras.
As flautas de madeira são um dos pouquíssimos objetos rituais passíveis
de transmissão para as gerações seguintes. O(a) herdeiro(a) recebe não apenas
as flautas, mas também os kawoká-mona responsáveis pela sua performance
ritual. Essa transmissão é um dos melhores indícios do caráter permanente que
as flautas assumem entre os Wauja. Aliás, não há uma única aldeia em todo Alto
Xingu que não possua pelo menos um trio delas. Há, na aldeia wauja, cinco trios
rituais de Kawoká constituídos, porém apenas três estão operantes, ou seja,
executam tarefas rituais, como o plantio de roças, fabricação de canoas, casas
etc. (figuras 58, 59 e 60).
231
6.2
OS KAWOKÁ-MONA E A MANUTENÇÃO
“Como você virou kawoká-mona de Atamai?” Esta foi a pergunta que dirigi
a Kuratu e que inesperadamente resultou num longo depoimento. Neste trecho
em especial, Kuratu constrói a narrativa de modo a indicar que os kawoká-mona
possuem um poder terapêutico e um dever moral de utilizá-lo. Na sequência
dessa reflexão, Kuratu demonstra claramente a sua responsabilidade em relação
à saúde de Atamai e convence seus companheiros sobre a legitimidade da sua
preocupação com seu tio e os compele a instituir o ritual de Tankwara para ele.
O fato mais inusitado da narrativa é que partiu unicamente de Kuratu a
iniciativa de fazer os clarinetes. Via de regra, o pagamento da fabricação dos
artefatos rituais que personificam os apapaatai é devido ao “dono” do ritual e não
aos seus kawoká-mona. A decisão de Kuratu foi movida pela “dó” que ele sentia
do seu tio. Por outro lado, ele também tinha admiração por ele (em função do
sucesso na redemarcação de um território limítrofe ao PIX em favor dos Wauja).
Para Kuratu, Atamai era merecedor de objetos rituais (o quinteto de clarinetes)
que permitissem a instauração de um ritual permanente, pois era adequado, ao
seu status de chefe iminente, a oferta da possibilidade de cuidar de apapaatai.
Todavia, há mais do que isto. Há sentimentos qualificados por traz dessa atitude
de Kuratu: há carinho e respeito por Atamai.
Rituais de cura com esse caráter são uma oportunidade do doente receber
afeto do grupo. Por mais que procuremos uma “linguagem” política nos rituais de
apapaatai, não se pode deixar de lado a moralidade privada que eles evocam, a
qual nem sempre está relacionada à política e ao plano propriamente humano da
existência, pois, como diz um sábio yakapá wauja, os apapaatai se apiedam dos
humanos, desejam cuidar destes e serem cuidados por eles. A “mistura”
ontológica é de tal forma que redimensiona, nos rituais de apapaatai, as posições
235
mesmo modo aos Wauja. Esse modelo, que no Alto Xingu é regulado por noções
morais como o ifutisu kalapalo (Basso: 1973), por exemplo, encontra ecos
também em outros povos do Brasil Central:
dessa natureza que foi dada a Atamai, a partir de 1993, quando os seus kawoká-
mona de Tankwara resolveram fazer uma roça de mandioca para ele, desde a
primeira etapa, constituída pela derrubada da floresta, até a última, consistida
pelo plantio. Atamai destinou os produtos dessa roça para os seus kawoká-mona
Tankwara e secundariamente para os seus co-residentes. A decisão de um grupo
de kawoká-mona de tornar um “dono” de apapaatai um “dono” de rituais
permanentes tem motivações políticas implícitas, que muitas vezes só podem ser
identificadas quando inseridas em vários quadros referenciais biográficos. A
escolha sempre incide sobre alguém que demonstra empenho no bem-estar do
grupo como um todo. Vejamos como isso se processou no caso de Atamai.
6.3
O STATUS DE AMUNAWE O
PATROCÍNIO DE RITUAIS
E ainda:
9 Viveiros de Castro (2002c: 35) traduziu a categoria amunaw (amulaw em yawalapíti) por
aristocrata.
10 A awojogatakoja não é a amunaw ogatakoja (“fala dos chefes”, Franchetto, 1993). Ela é,
sobretudo, uma fala edificadora de relações sociais de qualidade, que anima o grupo para os
trabalhos coletivos e que oferece boas soluções aos problemas cotidianos.
241
11 Nos últimos 40 anos, as alianças exogâmicas wauja mais evidentes deram-se com os
Kamayurá, os Mehinako e os Yawalapíti. O casamento do primogénito de um grande chefe wauja
das décadas de 1960 e 1970 com uma amuluneju yawalapíti foi uma das alianças
estrategicamente idealizadas entre esses dois grupos.
242
sempre aquele que “cuida”, razão pela qual o putakanaku wekeho chama seu
pessoal de “crianças” nos discursos cerimoniais.
De um certo modo, todo o amunaw nasce mais próximo do grau -mona
desse status. É apenas uma trajetória pessoal que lhe permita exibir, com
coerência, os atributos que constituem a persona ideal do chefe xinguano, e,
portanto, conquistar o respeito e a confiança do grupo, que lhe permitirão, um dia,
tornar-se amunaw-iyajo. O mais “nobre” dos wauja, por sua perfeita dupla
descendência de importantes amunaw, não demonstrou, em sua juventude, pleno
domínio da etiqueta, uma performance oral minimamente aceitável, nem um
desenvolvimento corporal satisfatório aos olhos dos Wauja: sua estatura ficou
abaixo da média e sua performance nas lutas era realmente péssima. Embora
amunaw, esse homem não tem nenhuma voz nos assuntos da aldeia, e sua
“chefia” se restringe apenas ao seu pequeno grupo doméstico. Juntam-se a ele,
na mesma condição de “nobre” de baixíssimo status, mais três ou quatro homens
de idades que variam entre 30 e 50 anos.
Aproximadamente vinte por cento dos homens e mulheres adultos em
Piyulaga são amunaw, alguns “mais” outros “menos”, dentre estes apenas três
homens e três mulheres são amunaw-iyajo/amuluneju-iyajo, e outros três ou
quatro homens caminham para a posição de amunaw-iyajo em um futuro não
muito distante. O que se dará quando os amunaw-iyajo atuais falecerem ou
decidirem, ainda em vida, transferir para outrem, a sua posição de chefe. Embora
haja uma forte diferenciação qualitativa (que não deixa de ser também
quantitativa) entre as categorias amunaw-mona e amunaw-iyajo no plano ideal,
no plano empírico a estrutura de representação política permite com que certos
indivíduos, conforme sua inserção na economia simbólica de prestígio e suas
conquistas pessoais, ascendam da posição amunaw-mona à de amunaw-iyajo.
llm grande chefe wauja não é exata e necessariamente alguém que nasceu com
uma excepcional quantidade de substância “nobre”, mas aquele que conseguiu
potencializar a substância “nobre” que herdou, mesmo que esta não seja muita.
Este foi precisamente o caso de Atamai.
Quando Atamai saiu da reclusão pubertária, Orlando Villas-Bôas14 pediu
permissão ao seu pai, o grande chefe (putakanaku wekeho) Malakuyawá, para
que seu filho fosse viver no posto administrativo, onde ele aprenderia português e
algo sobre os modos do trato com os brancos. Informalmente, os irmãos Villas-
Bôas foram os mentores da formação de uma elite política indígena no Parque do
Xingu, mas essa elite não era constituída de filhos primogénitos dos grandes
chefes, mas dos segundo, terceiro e/ou quarto filhos15, como é o caso de Atamai.
Diante da resolução Standard de que a chefia tradicional é idealmente reservada
aos primogénitos e que por isso seus pais dificilmente permitiriam que seus
primogénitos se desviassem do curso do aprendizado da arte de ser putakanaku
wekeho (a mais difícil e importante das artes xinguanas), os Villas-Bôas tinham
pouca escolha além dos filhos juniores dos amunaw.
Anos mais tarde, Atamai retorna a Piyulaga, então casado com uma jovem
trumai, descendente de uma alta linha de chefes desse grupo. A escolha da sua
esposa teve especial influência de Orlando Villas-Bôas, mas não teve o
consentimento de Malakuyawá. O matrimónio de Atamai só veio se mostrar
estratégico, anos mais tarde, quando Orlando Villas-Bôas mediou a formação de
uma aliança trumai-mekragnoti, por meio do matrimónio entre uma sobrinha da
esposa de Atamai e um sobrinho de um importante chefe mekragnoti.
Desde a década de 1960, Malakuyawá treinava, juntamente com seu
primogénito Kasuelê, um FBSS, Yawalá, o qual Malakuyawá adotou quando pais
deste morreram na grande epidemia de sarampo da década de 1950 (Ireland,
1988b). Por ser Yawalá mais velho, por ter ele passado pelo ritual de “iniciação” à
chefia antes de Kasuelê e por ele demonstrar ter a personalidade ideal para
ocupar a posição de putakanaku wekeho, Malakuyawá, anos antes de morrer, o
havia escolhido para sucedê-lo. Fato que definitivamente ocorreu em meados da
década de 1980. Yawalá muito certamente foi um dos últimos xinguanos a
encarnar com certa perfeição o ethos da chefia maior. Em 1978 e 1980, Vera
Coelho se referia a ele como o “príncipe herdeiro”, e mencionava, em nossas
conversas, a especial dedicação que Malakuyawá conferiu à formação de
Yawalá.
Yawalá morreu subitamente poucos anos depois que assumiu a posição
de putakanaku wekeho. Conforme os treinamentos realizados por Malakuyawá e
15 O caso de Aritana, atual chefe yawalapíti, é uma exceção. Devido à enorme proximidade que a
aldeia yawalapíti tinha do posto indígena Leonardo Villas-Bôas (1,5 km), Aritana pôde ser
preparado para a chefia política tanto por Kanatu, seu pai, quando por Orlando Villas-Bôas
(Viveiros de Castro, 1977: 69).
246
16 Os Wauja ainda são o grupo mais conservador de todo o Alto Xingu. Por vários anos eles
mantiveram uma evitação dos brancos, a qual era tão saliente que os xamãs em iniciação eram
proibidos de falar qualquer palavra em português, sob o risco de comprometer seu processo
iniciático (Vera Coelho, informação pessoal). Até meados da década de 1990 os Kamayurá e os
Yawalapíti faziam piadas sobre a ignorância que os Wauja tinham sobre o mundo dos brancos,
muito dela em função do seu conhecimento relativamente pequeno da língua portuguesa. A aldeia
wauja foi oficialmente visitada em 1947 (Lima, 1950). Contudo, os Wauja dizem ter recebido a
visita de um homem chamado “Tsariwa” (corruptela wauja do seu verdadeiro nome) antes de
1947, mas desconheço registros que a comprovem.
17 Conforme Coelho (1980), nas décadas de 1960 e 1970, os Wauja consideravam Atamai “só
pouquinho amunaw”, razão pela qual não se esperava que ele se tornasse um amunaw-iyajo. Na
cerimónia de “furação de orelha” (Pohoká) que Atamai tomou parte, ele ficou colocado entre os
“peões”, ou seja, entre aqueles que apenas “acompanham” o principal “iniciando”. Vera Coelho,
que esteve entre os Wauja pela última vez em 1980, ficou bastante surpresa quando lhe disse,
em meados de 2000, que Atamai ascendera ao status de amunaw.
247
18 Lembro o leitor que 1988 foi um ano excepcionalmente importante no cenário indigenista
nacional em virtude da aprovação da nova Constituição Federal.
19 Conhecida como tajife entre os Kuikuro (Heckenberger, 1999:138)
20 Informação pessoal de Sebastian Drude (agosto de 2002).
249
7
RITUAIS DE PRODUÇÃO: UMA POLÍTICA DE OPULÊNCIA
7.1
A NOÇÃO WAUJA DE BELEZA E O PROJETO
22 Vide em Barcelos Neto (2002) uma abordagem iconográfica da relação entre canoas e cobras.
251
23 É importante lembrar que nos rituais de Kawoká não há apenas beleza, mas também temor
(que pode acidentalmente virar terror), o qual não deixa de ser esteticamente apreciado enquanto
beleza. O fato das mulheres não verem os rituais de flautas não significa que elas não participem
deles e nem que um plano de percepções e emoções não seja compartilhado. O temor é
secundário em relação à beleza. É realmente tão secundário, que alguns Wauja questionam a
interdição visual imposta às mulheres.
252
For the Piaroa, ‘art’ is not something that stands alone, outside the
context of life. Second, most of these modes of artistic production,
the exceptions being ceremonial masks and music, belong to the
domain of everyday, and thus to daily productive activities.
Beautification plays a part, first and foremost, in a process of
everyday empowerment that enables both a person and an object to
act productively. When it comes to beautification, people and objects
are not so different (Overing, 1996: 263, grifos da autora).
255
Ainda neste debate, Peter Gow (1996), citando Bourdieu, mostra que a
estética no Ocidente veicula claramente propósitos de discriminação e de
distinção. Porém, uma coisa é tomar um discurso hegemónico e legitimizador do
belo e aceitar suas características como transculturais, outra bem diferente é
dizer que apenas no Ocidente moderno os julgamentos estéticos estão
associados à distinção social e moral. Enfim, resta a pergunta de Gow: o que a
antropologia pode fazer com a estética? A resposta, parece-me, já foi dada
décadas antes por Edmund Leach: “se quisermos entender as regras éticas de
uma sociedade, é a estética que devemos estudar” (apud Lagrou, 2002: 36). Gell
defende que a antropologia da arte não pode ser o estudo de princípios estéticos
dessa ou daquela cultura, mas da mobilização de princípios estéticos no curso da
interação social (1998: 4) No caso wauja, os objetos têm um papel absolutamente
fundamental para a análise dessa mobilização.
Descreverei a estética gráfica wauja em dois movimentos: isolando
determinados objetos cerâmicos considerados “belos” pelos Wauja e observando
esses mesmos objetos e outros semelhantes no âmbito dos pagamentos rituais
aos “donos”.
Em qualquer expressão artística, o domínio dos processos técnicos é a
condição essencial para a produção de uma obra. Mais do que isso: o domínio
das técnicas influi diretamente na percepção da qualidade da obra e na sua
consequente apreciação ou depreciação estética. Para uma composição gráfica
ser considerada “bonita” pelos Wauja é necessário que ela expresse absoluta
qualidade técnica e que seja preferencialmente de difícil execução (ehejuapai).
A qualidade técnica corresponde à nitidez, homogeneidade e firmeza do
traço. A dificuldade de execução é uma característica que não só confirma a
destreza técnica, mas também a capacidade interpretativa do desenhista. Um
desenho difícil é definido por quatro características, pelo menos. Entretanto,
somente em alguns casos todas surgem simultaneamente numa mesma
composição. Uma característica fundamental é a perfeita correspondência entre
simetria e ritmo (figuras 61, 62 e 63). Outra característica do desenho difícil é a
composição com, no mínimo, três motivos gráficos diferentes ocupando todo o
espaço plástico (figura 63) e respeitando a distribuição hierárquica dos motivos
do centro para a periferia do objeto. E a mais, nesse tipo de desenho não pode
haver espaços vazios entre os motivos e suas seções.
PRANCHA 19
Figura 64 - Composição gráfica para fundo de Figura 65 - Composição gráfica para fundo de panela
panela com os motivos kulupienê e mitsewenê. com os motivos kunye kunye jutogana e walamá
Grafite sobre canson, 23x33 cm, 1998 oneputaku. Grafite sobre canson, 23x33 cm, 1998.
Ainda que o desenhista tenha optado por elaborar seu desenho com um
único motivo, ele pode estar diante de um desafio maior do que aquele que optou
por uma composição repleta de motivos diferentes. Embora as simetrias e ritmos
sejam simples, alguns motivos são complexos, sobretudo o kulupiene e o kupato
onabe (espinha de peixe, figura 61), que são motivos repletos de linhas retas
paralelas e/ou perpendiculares. A grande dificuldade reside exatamente em fazer
coincidir simétrica e ritmicamente todas as linhas retas em uma superfície circular
ou cilíndrica respeitando uma distribuição hierárquica dos motivos. A dificuldade
de execução do desenho funciona como um grau superlativo de beleza: quanto
mais difícil for a execução, “mais bonito” será considerado o desenho ornamental.
Um desenho vale o conhecimento e o tempo investidos para torná-lo “bonito”.
As características formais próprias do desenho considerado “feio” (aitsa-
awojotopapai, literalmente “não-bonito”) pelos Wauja são exatamente opostas ao
desenho awojotopapai (“bonito”), com o detalhe de que podem ser feitos com os
mesmos motivos gráficos em ambos os casos. A característica mais visível do
desenho “feio” é a ausência de simetria e ritmo, o que demonstra que o
desenhista não sabia (ou não quis) vencer o desafio do dimensionamento
proporcional dos motivos no espaço plástico. Às vezes o desenho é simétrico,
mas o motivo escolhido é simples demais para ele ser considerado um desenho
realmente bonito. Portanto, um desenho aitsa-awojotopapai (“feio”) é quase
sempre considerado aitsa-ehejuapai (“não-difícil”).
Estudar o grafismo na cerâmica wauja tendo apenas a ornamentação dos
artefatos em circulação como material de investigação impõe uma séria limitação
devido à rapidez com que as pinturas desaparecem quando as panelas e os
torradores de beiju são levados ao fogo. Outro detalhe importante é que as
panelas novas são zelosamente guardadas (escondidas, talvez), encobertas por
panos velhos para protegerem as suas pinturas da poeira. Ademais, algumas
panelas permanecem sem pintura (biscoito) até poucos dias antes de serem
oferecidas como pagamento ou destinadas ao uso da casa. Um estudioso de
antropologia da arte logo perceberá que, entre os Wauja, muito do que ele
gostaria de ver desapareceu com o uso ou está encoberto, seja pela fuligem, pela
escuridão ou por panos sujos ou está na memória dos sonhos e transes. Tais
indícios sugerem o processo de produção dos desenhos a ocupar um lugar mais
central do que a sua apreciação: trata-se, muito provavelmente, de uma arte
257
menos para ser vista do que para ser feita, ou melhor, para ser vista por um
tempo muito curto e/ou em situações apoteóticos.
A fim de obter uma documentação mais extensa e precisa sobre as
categorias estéticas wauja, solicitei a um grupo de quatro ceramistas do sexo
feminino24 que desenhassem em papel as composições gráficas consideradas
awojotopapai e aitsa-awojotopapai. Elas iniciaram, com muito interesse, pelas
composições “bonitas” (figuras 64 e 65). Quando eu solicitei que fizessem
desenhos “feios”, disseram-me de imediato que não sabiam fazer desenhos
‘feios”, quer dizer: não sabiam criá-los. Mudei o sentido do meu pedido sugerindo
“d
que elas tentassem se lembrar de desenhos “feios” alguma vez vistos e que
usassem suas memórias visuais para reproduzi-los nos papéis que eu lhes
oferecia. Então, com menor relutância, mostraram-me, ao longo de sessões de
desenhos que duraram algumas semanas, aquilo que os Wauja consideram fora
dos limites de aceitabilidade e agradabilidade estética. As figuras 66 e 67 são
exemplos resultantes desse meu pedido. Terminados os desenhos, elas não
contiveram seus risos: aquilo parecia realmente ridículo aos olhos de um Wauja.
Esses dois desenhos, de simetria incipiente e feitos com motivos gráficos
bastante incomuns (pojojeká e ahonapu, respectivamente “rabiscos” e
“caminho”), diferenciam-se expressivamente dos outros desenhos considerados
“bonitos”, feitos por essas mesmas ceramistas. Ao comparar os quatro desenhos
(64, 65, 66 e 67), é notável como tal reduzido número de exemplos consegue
descrever as bases estéticas sob as quais o sistema gráfico wauja está
assentado. Mais exemplos apenas confirmariam que, entre os desenhos “bonitos”
e os “feios”, há uma sensível escala de valores que vai da simetria à assimetria.
Volto às minhas informantes-desenhistas que disseram não saber fazer
(i.e. criar) desenhos “feios”. Isso talvez seja a indicação de que a fealdade é algo
fora do espaço imaginativo que se concebe para a criação artística, a fealdade
existiria por si, seria da ordem do dado, posicionando-se inversamente à beleza,
que seria da ordem do construído — do controle e do contato com o mundo
extra-humano a partir da doença, do longo aprendizado e do labor meticuloso,
24 Entre os Wauja, tanto homens quanto mulheres dominam as técnicas de fabricação e pintura
da cerâmica. As mulheres iniciam seu aprendizado na reclusão pubertária apenas produzindo
pequeninas panelas. Os homens aprendem modelagem depois dos 30 ou 40 anos de idade,
quando geralmente já participam de um circuito de prestações rituais que os obriga a produzir
panelas-pagamento, ou, mais raramente, quando se interessam espontaneamente pela arte da
258
cerâmica. Mesmo não dominando as técnicas de modelagem, a maioria dos homens é capaz de
fazer os desenhos geométricos que decoram as panelas, mas segundo competências variadas.
25 Há, como veremos a seguir, uma exceção, que é a venda de objetos esteticamente ineficazes
para as lojas de artesanato.
259
Figura 68 - Verão de
1999, uma cena do último
dia do ritual Yeju, quando
foram feitos os
pagamentos aos cinco
“donos” do ritual dos
clarinetes Tankwara. Ao
todo foram oferecidas 25
panelas. O ideal é que
todas sejam de cerâmica,
mas nem sempre a
produção oleira consegue
suprir a demanda ritual.
Assim, foi inevitável que
quatro panelas de
alumínio viessem contras
tar com a beleza da
cerâmica wauja. No lado
direito da foto vê-se, em
primeiro plano, Mayaya,
um dos “donos” rituais de
Tankwara.
servir de pagamento aos “donos” de rituais ou aos yakapá (neste último caso, a
alta qualidade do pagamento tem uma relação direta com a efetiva recuperação
do doente). Aliás, os lugares acima mencionados podem naturalmente receber
peças “feias”, pois, como me dizia Atamai, os brancos “não entendem nada
mesmo do nosso desenho”29.
As estratégias de restringir e de demarcar a circulação das coisas belas
(pinturas e objetos, sobretudo) são amplamente empregadas entre os Wauja para
gerar distinções sociais e rituais muito específicas. O caso da pintura corporal
das reclusas púberes é um excelente exemplo.
As jovens reclusas passam até dois anos preparando-se para o dia em
que sairão para dançar num ritual inter-aldeão e, logo em seguida, para o
casamento. A pintura e os adornos são as últimas coisas que elas recebem no
dia da festa. Nenhuma outra mulher além das adolescentes ostentará o motivo
kulupiene, o “mais belo” (awojo-iyajo) que pode ser empregado em situações
rituais como o Kaumai e o Yawari. Aliás, nas festas do Yawari Yawalapiti (junho
de 2000) e Wauja (junho de 2000), que servem de objeto para esta análise, todas
as jovens recém saídas da reclusão possuíam perfeitas pinturas do kulupiene. As
mulheres que já passaram por essa experiência devem ficar “menos bonitas” —
noto enfaticamente que os Wauja dificilmente diriam isso —, pois a beleza das
reclusas deve ser exclusiva. Tal como entre os Piro (Gow, 1999), a reclusa wauja
incorpora as dimensões maiores da beleza.
Voltemos mais uma vez aos Kayapó, a fim de melhor enfocar a questão da
distinção estética. Terence Turner menciona que
Tal tipo de “desempenho" dos objetos kajaopa (i.e. dos brancos) inexiste
entre os Wauja. Em primeiro, porque os únicos estrangeiros que lhes interessam,
do ponto de vista da produção ritual, são os apapaatai (enquanto que os Kayapó
se interessam por exterioridades várias). Em segundo, porque muito poucos
objetos kajaopa têm a eficácia estética necessária para o âmbito ritual. Em geral,
eles são considerados inapropriados, com a exceção das miçangas, das linhas
de algodão industrial e dos guizos metálicos — a beleza/eficácia desses objetos
está ligada ao seu brilho e durabilidade. A “inclusão” de outros objetos kajaopa,
quando há, é relativamente discreta, e, em alguns casos, como o da oferta de
panelas de alumínio ocorrida no ritual Yeju de 1999, a mesma não deixa de
causar algum desconforto. Por isso os Wauja fazem questão de explicar como
uma determinada “inclusão anómala” mostrou-se inevitável. Aliás, como Ireland
(1991, 2001) demonstrou, o mundo dos brancos é o que mais se aproxima da
anomalia moral, e estética, portanto.
Os Wauja vivem praticamente sob uma ortodoxia estética30. Qualquer
coisa, quanto mais bela for, mais próxima ela estará dos apapaatai31. Se belos,
os objetos geram uma eficácia estética que permite uma permanência
“domesticada” dos apapaatai. Portanto, no plano ritual, os Wauja visam
incorporar a cultura dos apapaatai e não a dos kajapoa. Essa entrada modesta
dos objetos kajaopa no universo da produção ritual contrasta frontalmente com o
desses objetos são peças de “arte turísticai’” que chegaram a um nível de refinamento
insistentemente exigido pelas próprias lojas.
30 Não penso que os demais povos do Alto Xingu expressam essa mesma ortodoxia. Em 1965,
Agostinho viu um Kamayurá usando cerimonialmente um capacete de bombeiro como adomo.
Excetuando o Yawari, que permite jocosidades e alguma liberdade no uso dos adornos e pinturas,
nenhum Wauja se sentiria à vontade ao usar um capacete de bombeiro num ritual como o Kaumai
(Kwarip) ou Pohoká, na verdade, ele ficaria muito envergonhado. De acordo com Agostinho, “dos
grupos aruak sobreviventes, os Waurá são os mais numerosos e, segundo tudo indica, os mais
conservadores e imunes a influências civilizadas” (1974: 30).
267
31 Compare-se esse ideal com a etnografia wayana de Velthem (2003), por exemplo.
32 Menezes Bastos (1990, 1995) afirma que muito das disputas políticas entre os Kamayurá tem
como lugar privilegiado a arena das (in)aceitabilidades estéticas, sobretudo no âmbito da
performance musical nos grandes rituais.
268
33 Tomo de empréstimo aqui a idéia de atrator adaptada por Andrade: “Em cosmologia física, o
‘grande atrator’ é um corpo oculto de altíssima densidade e força gravitacional responsável pelo
deslocamento convergente de galáxias em sua direção e que pode ser o resultado de uma
gigantesca concentração de energia cristalizada na forma de super cordas após a explosão
primordial que deu origem ao universo. Utilizo a imagem do atrator para o toré por este apresentar
— dentro do universo tumbalalá — grande densidade simbólica, alto poder de atração e de
concentração de signos de identidade e estar referenciado às origens do grupo” (2002: 79).
270
7.2
A DINÂMICA DOS GRUPOS DE PRODUÇÃO
Quadro 13
Os rituais permanentes de apapaatai e seus "donos”
Entre 1998 e 2002, período em que visitei Piyulaga, havia treze grupos
permanentes de trabalhos rituais entre os Wauja: três de flautas Kawoká37, cinco
de clarinetes Tankwara, e cinco de cantoras Yamurikumã (vide quadro 13). A dois
dos grupos de Kawoká e a três dos grupos de Tankwara são somados, em
caráter consorciado, cinco duplas de cantor/percussionista, conhecidos por
Kagaapa (uma espécie de Peixe). Isoladamente, Kagaapa não é capaz de
mobilizar trabalhos rituais coletivos, sendo apenas “ajudantes” nos mesmos.
34 Por ambos terem sido adoecidos pelo mesmo apapaatai, Ulepe e Maná (marido e esposa) são
donos consorciados do mesmo conjunto de flautas. Muito recentemente recebi a notícia de que
Ulepe havia acabado de se tornar “dono” de Arraias (Yapu) sob forma ritual de Yamurikumã
(Yamurikumã Yapuneju nãu) e que um ritual estava sendo feito enquanto ele se encontrava
internado em Canarana.
35 Os clarinetes Tankwara são de Yanahin, filho de Itsautaku. Durante algum tempo, quando
Yanahin esteve fora de Piyulaga, seu pai alimentou as Onças. Como Yanahin ainda não dispõe
dos meios para sustentar as Onças, ele resolveu suspender o patrocínio desse ritual para retomá-
lo em um momento oportuno.
36 Makaojo é como os Wauja chamam os índios Bakairi, que outrora fizeram parte do “sistema
xinguano”, ou seja, no tempo em que esses Carib ainda eram reconhecidos como putaka nãu.
Makaojoneju nãu é um apapaatai, cuja característica distintiva assenta-se na música. As canções
de Makaojoneju nãu são chamadas de Kawoká-kumã, e têm uma relação direta com as músicas
das flautas Kawoká (Mello, 2003). Os Wauja dizem que as canções de Makaojoneju nãu são uma
“invenção antiga” dos Bakairi.
37 Há mais dois trios de Kawoká fabricados e constituídos, todavia eles estão “parados” por motivo
de viuvez. Como disse acima, a manutenção de um ritual depende de uma unidade de produção
doméstica plena: marido, esposa e filho(a)s casado(a)s. Possivelmente, essas flautas só voltarão
a ser ativas quando seus “donos” morrerem e elas forem herdadas por seus filhos.
274
The massive scale on which the Kuikuru plant, harvest, and store
manioc is most impressive. One gets the feeling of bountiful, almost
lavish accumulation. But yet, not of ostentation. There is no invidióus
display of one’s stored flour, no competition as to who can produce
the most. And certainly no tubers are ever left to rot as a show of
affluence. What we find is a controlled supply of manioc reflecting a
comfortable abundance (Carneiro, 1983:105).
E ainda:
Manioc cultivation, then, provides the Kuikuru with a broad and solid
subsistence base. On this base they have developed a culture that is
276
39 A metodologia para o estudo do cultivo da mandioca entre os Wauja foi emprestada de Robert
Carneiro (1983), cujos dados apontam que 80% da dieta kuikuro (e xinguana, por extensão) é
baseada no consumo desse tubérculo.
278
menor relevo político, o que sugere ser o xamanismo uma via de poder político
de segunda instância em contraste com o tradicional poder da chefia hereditária.
O poder político dos chefes wauja não se nutre diretamente do
xamanismo, mas da “posse” de rituais, de uma parentela extensa de
consanguíneos disposta a engajar-se na produção desses rituais e do apoio de
genros e/ou noras co-residentes.
Em geral, um grande especialista ritual é também amunaw. Assim, de um
ponto de vista funcional, ele é um chefe de “segunda linha” (i.e. chefe de seu
grupo doméstico) que auxilia um “chefe maior”, um amunaw-iyajo, o qual, muitas
vezes, é o putakanaku wekeho (o “dono” da aldeia).
Os grandes especialistas rituais wauja (flautistas, cantoras de Yamurikumã
e clarinetistas) normalmente possuem mais de um “dono”. Yatuná, irmão de
Atamai, deve, por exemplo, obrigações rituais a este e a seu FFBSS, Itsautaku —
ao primeiro, como clarinetista de Tankwara, e ao segundo, como flautista de
Kawoká. Como os grandes especialistas rituais wauja (kawoká-mona kitsimãi)
são em pequeno número e os membros da comunidade às vezes estão
sobrecarregados com seus próprios afazeres, aqueles precisam decidir se
concentrarão os trabalhos a favor de um ou de dois “donos” rituais ou se
distribuirão equilibradamente os trabalhos entre todos os “donos”. Afirmo que,
nessa matéria, equilíbrio é a última coisa que constatei entre os Wauja, basta
comparar a diferença nos tamanhos das três únicas roças — 3.8 acres (para
Atamai), 2.47 acres (para Ulepe) e 1.69 acres (para Itsakumã) — que os grupos
de kawoká-mona Tankwara e kawoká-mona Kawoká fizeram para os seus
“donos” em 2002, obviamente com o engajamento de toda a comunidade
masculina. Além dessas diferenças há ainda aqueles “donos” para os quais seus
kawoká-mona não plantaram um acre sequer. Mencionei acima que os “donos”
de rituais permanentes de apapaatai são em número de sete, portanto quatro
deles não receberam roça. São em situações como essas que se visualiza com
melhor clareza qual “dono” ritual de apapaatai possui maior prestígio, e quais
grupos kawoká-mona conseguem' convergir e agregar os demais homens e
mulheres da aldeia em torno dos seus projetos específicos de produção.
Nas últimas três décadas, alguns grupos de kawoká-mona Tankwara,
Kawoká e Yamurikumã foram dissolvidos e se reorganizaram a favor de outros
“donos”. Uma dissolução ideal é devida à morte do “dono” do ritual, mas há
282
40 Essa mesma distribuição desigual pode ser observada no âmbito do poder xamânico. A maioria
dos homens wauja de idade madura dominam a técnica xamânica de soprar tabaco, contudo os
wauja só reconhecem como poderosos apenas os xamãs que recuperam almas raptadas pelos
apapaatai e que igualmente praticam divinação e neutralização de feitiços letais. O xamanismo
wauja é mais potente nas suas dimensões comunicacionais, de trânsito de almas e de trocas de
284
perspectivas do que como uma técnica de cura; a rigor, esta é apenas uma forma subsidiária das
dimensões supra referidas.
41 A questão da descendência foi analisada sete anos mais tarde, no seu texto sobre os líderes
político-religiosos amuesha (Santos Granero, 1993).
285
7.3
OS RITUAIS DE APAPAATAIE O CONTINUUM
CERIMONIAL XINGUANO
“último” ritual de sua vida42, e entre ambos estão os rituais de apapaatai que ele
patrocinou/“cuidou”. Penso, em função dessa natureza temporal, que a idéia de
“sistema ritual” seria válida se analisada em termos de continuum, tomado, no
caso xinguano, como um plano consciente de produção ritual contínua de
homens e mulheres amunaw. Recorro mais uma vez aos Xikrin para impulsionar
um eixo de argumentação. Segundo Gordon:
43 Meus dados sobre nominação são ainda muito incipientes. Algumas vezes, ouvi, no interior de
um grupo de primos paralelos, comentários do tipo: “faltou nome para mim”, “meus primos já
pegaram os nomes dos meus avôs”. As pessoas se referiam aos nomes “importantes”, aqueles
que permitiriam gerar alguma distinção. A importância e extensão desse tema escapam às
limitações desta etnografia. Num trabalho de campo futuro, pretendo explorar a atribuição de
valores aos nomes wauja e os mecanismos de sua transmissão.
288
44 Este nome é uma corruptela de Kayapó, tendo, para este bebê, um sentido apenas provisório.
45 Atualmente Itsautaku continua trazendo objetos, porém, não mais coisas ordinárias como
carrinhos de mão. Em 2002, ele e três de seus filhos construíram uma pequena aldeia turística de
estilo xinguano, na área de uma fazenda fronteiriça ao parque, onde eles fazem apresentações de
dança e vendem artesanato para turistas. Como pagamento, Itsautaku e seus filhos receberam
um barco com motor diesel. Sua decisão de construir essa “aldeiazinha” para obter um barco
“particular” foi muito criticada pelos amunaw wauja, do mesmo modo que anos atrás o criticavam
por trazer carrinhos de mão e outros objetos do posto.
289
47 O filho de Aritana II, pai do atual Aritana, esperou dezenove anos para realizar o Kaumai de seu
pai (Ferreira apud Carneiro, 1993: 410). A realização desse Kaumai — tardio em função da
fragilização sofrida após o assassinato e da subsequente dissolução da aldeia yawalapíti, no final
da década de 1930 — coincidiu com a época do re-aldeamento dos Yawalapíti, em 1948, e
contribuiu para recolocar a “linhagem Aritana” na alta posição que ela ocupava anteriormente.
291
48 Há um certo consenso de que o Kaumai é um ritual cuja matriz oriunda dos arawak (Franchetto,
1992; Dole, 1993). Esse ritual, além de imprimir um forte sentido de regionalidade à “sociedade
xinguana” (Heckenberger, 2001a), é o delimitador mais claro da abrangência regional dessa
“sociedade”. Conforme uma antiga proposição de Galvão (1953, 1960), o uluri (“cinto” perineal
feminino) seria o “objeto” emblemático dessa Região. Entretanto, ao que se pode depreender da
293
etnografia de Agostinho (1974: introdução) e de outras contribuições (Carneiro, 1993; Dole, 1993),
esse estatuto cabe, sem dúvida alguma, ao Kaumai.
49 A Festa do Pequi acontece entre meados de outubro e o fim de novembro e o Kaumai entre a
última semana de julho e a primeira semana de setembro.
294
Yeju inter-aldeão na aldeia Wauja deu-se em 1998 e foi realizado em nome dos
cinco “donos” de Yamurikumã, tendo sido seus convidados os Kamayurá.
Num primeiro momento, vimos que os rituais de apapaatai são
internamente hierarquizados, agora vemos um outro nível de hierarquização, tão
crucial quanto aquele, cujo sentido repousa no próprio “funcionamento” da
“sociedade regional xinguana”. O Yeju inter-aldeão é o degrau máximo de
reconhecimento que um importante “dono” ritual — que no caso wauja é
invariavelmente um amunaw, como também o é entre os yawalapíti (Viveiros de
Castro, 1977: 221) — pode receber em vida. Depois disso, só o Kaumai, mas aí
ele já está morto. Portanto, o reconhecimento aumenta, e consequentemente a
substância “nobre” que ele transmitirá aos seus descendentes, na medida em
que ele fizer circular um maior número de objetos de prestígio, sobretudo os seus
aerofones e/ou coros de mulheres. Como mencionei na introdução desta tese, os
apapaatai estão para além de seus próprios rituais. Espero ter deixado pistas
suficientes para avançar a idéia de que a “familiarização” dos apapaatai gera um
input sobre a progressão/transmissão do status de amunaw. Enfim, os rituais de
apapaatai não são apenas de amunaw, mas sobretudo para os amunaw.
Ao chegar a esta conclusão, após tentar enquadrar os rituais de apapaatai
no continuum cerimonial xinguano, penso que o Alto Xingu é o lugar para uma
possível resposta a uma questão formulada por Fausto (2001) sobre os regimes
sociocosmológicos das terras baixas sul-americanas. Fausto sintetiza dois
modelos:
mundo “inteiro”. Há nele desde Larvas e Onças até aldeias estrangeiras inteiras.
E, com a realização dos Kaumai para os irmãos Cláudio (1998) e Orlando Villas-
Bôas (2003), podemos dizer que esse “sistema” conseguiu ampliar seu esquema
de inclusão ao incorporar ritualmente o kajaopa (branco).
É importante relembrar que Kamo e Kejo fizeram, num mesmo impulso
criador, os índios e os kajaopa. Os últimos, por terem escolhido a espingarda,
foram mandados embora do lugar da criação, o Mojená, “o centro do mundo”,
ponto de confluência dos principais formadores do rio Xingu (Agostinho, 1974:
19). Ao escolher a espingarda, o kajaopa mostrou a sua disposição à violência,
da qual esse objeto é o símbolo maior: instrumento de genocídio. Porém, muito
tempo depois, os kajaopa voltaram, e os xinguanos perceberam que alguns deles
tinham renunciado à espingarda.
A renúncia reaproximava aqueles que as escolhas do passado tinham
separado. Os xinguanos, entretanto, administraram essa proximidade da maneira
que eles sabem fazer melhor: com o ritual inter-aldeão. Assim, os Kaumai feitos
em nome dos irmãos Villas-Bôas são uma reordenação do trabalho de criação
dos Gêmeos e de seu avô. Capturados pela lógica do mito de criação dos
humanos, os Irmãos Villas-Bôas viraram “objeto” ritual, viraram “troncos” de
umejo (kwarip), efígies dos falecidos, única maneira de passarem para o nível
mais elevado da inclusão: o reconhecimento pleno de seu status de amunaw.
Mais uma vez, “objetos” belos surgem como agentes de um processo de
“domesticação” política. Nas palavras de Agostinho (1974: 154-155), o Kaumai é
a “expressão viva” do restabelecimento de um equilíbrio ameaçado pela morte de
um morerekwat (amunaw). Portanto, comemorar os irmãos Villas-Bôas era um
imperativo dessa ordem, visto que eles foram, por muitos anos, grandes chefes
naquele lugar.
O regime sociocosmológico xinguano de expansão e inclusão é ainda uma
abrangente questão a explorar. Deixo, para tanto, um caminho a percorrer.
Entretanto, nesse caminho, a “domesticação” dos apapaatai não deve ser
separada da “domesticação” dos kajaopa eminentes.
Muitos dos rituais permanentes de apapaatai entre os Wauja têm Onças
como personagens, conforme se pode constatar para os casos de Kawoká e
Tankwara. Assim como esses grandes felinos, os irmãos Villas-Bôas tiveram a
sua inclusão via ritual, porque eles foram amunaw. As Onças são o arquétipo da
298
chefia no outro mundo, seguidos da Sucuri e da Harpia, dos quais peles e penas
são extraídos para compor, em âmbito ritual, um mundo de distinções sociais
entre amunaw e r\ão-amunaw. Esse parece ser um dos fundamentos principais
do mundo xinguano: os rituais são o lugar dos chefes, cada qual situado aí
conforme suas origens específicas: o tempo antes dos homens e o tempo depois
dos homens, o “tempo patológico” e o “tempo político”, respectivamente. E o
controle de ambos50 implicando numa “domesticação” cosmopolítica.
Encerro com uma fala de Hukai Wauja, ela própria uma síntese dessa
vontade de inclusão/“domesticação”:
Se meu pai ou minha mãe passar Kawoká para mim, eu vou aceitar,
vou continuar com Kawoká. Porque não pode perder Kawoká. É
para ficar aí, comendo a comida da gente. Porque Kawoká fica com
a alma da gente, a gente não está vendo, mas Kawoká sempre está
lá, na casa, comendo.
50 O uso, aqui, da idéia de controle do tempo via ritual é inspirado em Gell (1992a), da qual faço
um aproveitamento apenas parcial. Seu aprofundamento implica em desdobramentos que
escapam à finalização desta etnografia. Em suma, Gell defende, a partir de um complexo diálogo
interdisciplinar, que a representação do tempo é uma variável da acumulação de poder.
299
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