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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas


Departamento de Antropologia
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

Apapaatai: rituais de
máscaras no Alto Xingu

Aristóteles Barcelos Neto

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Antropologia Social do Departamento de
Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo,
para obtenção do título de Doutor em
Antropologia Social.

Orientadora: ProF Dra Lux Boelitz Vidal

São Paulo
2004
2

Para Pux e Posário


3

Você, senhora, pode vir


Seja bem vinda a buscar o restante da mandioca
Eu sou o "dono” da mandioca
Fui eu que planejei esse nosso encontro, essa festa
Fui eu quefi% as mandiocas nascerem
Por isso elas existem para vocês, os Wauja
Bem vinda, senhora, a buscar o restante da mandioca.

Canto festivo do apapaatai Kukuho para uma mulher wauja que


foi à roça buscar mandioca. Cantado por Aruta.

— Cuidado, meu filho, agora você vai virar cobra.


Você não pode matar ninguém, nem colocar "feitiços” nas
pessoas. Eembre-se, você é gente, portanto não pode fa^er o
mal.

Fala de Itsautaku em um sonho narrado por Aulahu, seu filho.


4

SUMÁRIO

Resumo 6
Abstract 7
Agradecimentos 8
Convenção ortográfica das palavras wauja 11
Lista de ilustrações 12
Mapa do Parque Indígena do Xingu e adjacências 14

1. Introdução 15
1.1 Dos museus ao campo e vice-versa 29

PARTE I: ARTE E PATOLOGIA

2. Fragmentos de cosmologia wauja 45


2.1 O nascimento do Sol e da Lua 49
2.2 A criação dos humanos 51
2.3 Um princípio patogênico 53
2.4 As formas alimentares da transformação 56
2.5 Breve morfologia das transformações 62
2.6 Multiplicidade da alma, distribuição da pessoa 70

3. Doença e feitiçaria 84
3.1 Witsixu, a doença como estado da alma 84
3.2 O rapto como multiplicação e subtração da alma 93
3.3 Destinos da alma 96
3.4 Propriedades sensoriais da alma 99
3.5 Feitiçaria e morte 108
3.6 A anti-arte dos objetos patogênicos 123

PARTE II: A CONSTRUÇÃO RITUAL DOS APAPAATAI

4. A terapêutica ritual 132


4.1 Yalawo, substância terapêutica 133
4.2 A visita do yakapá 135
4.3 O ritual de trazer apapaatai 138
4.4 A potência terapêutica dos kawoká-mona 142

5. O fazimento dos apapaatai em grandes rituais de máscaras 149


5.1 Motivações e antecedentes 150
5.2 Cuidar de apapaatai ou como formar
uma rede de produção ritual 161
5.3 O Apapaatai lyãu 169
5.4 Aspectos morfológicos e plásticos das máscaras 177
5

5.5 Esquemas de antropomorfia e monstruosidade 184


5.6 A pintura das máscaras: identidades e transformações 194
5.7 Uma máscara total 205
5.8 A grande dança dos apapaatai 211
5.9 O recolhimento das máscaras 216

PARTE III: OS RITUAIS DE APAPAATAIE A COSMOPOLÍTICA WAUJA

6. Sobre a permanência dos apapaatai 221


6.1 A hierarquia das formas rituais 221
6.2 Os kawoká-mona e a manutenção dos rituais de apapaatai 231
6.3 O status de amunaw e o patrocínio de rituais 238

7. Rituais de produção: uma política de opulência 250


7.1 A noção wauja de beleza e o projeto social dos objetos 250
7.2 A dinâmica dos grupos de produção 272
7.3 Os rituais de apapaatai no continuam cerimonial xinguano 285

Referências bibliográficas 299


6

RESUMO

Palavras-chave: índios Wauja; rituais de máscaras e aerofones; doença e cura;


agência social da arte; cosmopolítica.

Esta tese é uma etnografia das relações sociais que os índios Wauja do Alto
Xingu estabelecem com os seres prototípicos da alteridade — os apapaatai—via
adoecimentos e rituais de máscaras e aerofones. A descrição e análise dessas
relações estão centradas numa estrutura sequencial de três ações que os Wauja
caracterizam por passear (com), trazer e fazer apapaatai. O passear implica em
estar sofrendo de um adoecimento grave que resulta no total ou parcial
deslocamento da alma (i.e. da consciência e da substância vital) do doente para
o mundo dos apapaatai. A alma wauja é divisível, sendo passível de ser
distribuída entre uma diversidade considerável de apapaatai, cada qual ligado a
rituais específicos e inter-relacionantes. Ao xamã visionário-divinatório cabe
descobrir com quais apapaatai estão a(s) alma(s) do doente, prosseguindo-se,
então, com uma terapia para o resgate da(s) alma(s) — o ritual de trazer
apapaatai, no qual certos parentes do doente são convocados a incorporar os
apapaatai em posse da(s) alma(s) e a devolvê-la(s) ao doente. Tal incorporação
confere a esses parentes o status de kawoká-mona, o qual se caracteriza por
“apresentar” ritualmente os apapaatai para o doente. A terapêutica se completa
quando os kawoká-mona fazem os apapaatai na forma de máscaras e/ou
aerofones rituais, sobre os quais o doente (ou ex-doente, caso seu estado de
saúde tenha se normalizado) assume o status de nakai wekeho (“dono” ritual, i.e.
aquele que cuida/alimenta os apapaatai). Contudo, o ritual de apapaatai é muito
mais do que um meio de curar: suas implicações sociológicas mais relevantes só
podem ser entendidas por meio dos eventos subsequentes à festa em si, cujo
desenvolvimento completo pode durar quase uma vida inteira. A manutenção
desses rituais consolida duas categorias sociais permanentes e fundamentais
entre os Wauja — kawoká-mona e nakai wekeho —, de cujas articulações
resultam numa série de serviços e produtos diretamente em favor do “dono ritual”
e da própria continuidade do ritual. Procuro demonstrar que a ritualização da
doença é um dos pivots centrais da socialidade wauja. É a partir desses rituais
que se articulam as trocas entre as diferentes unidades residenciais, o ethos da
generosidade-respeito-vergonha e a cosmopolítica wauja.
7

ABSTRACT

Key words: Wauja Indians; rituais of masks and aerophones; illness and cure;
social agency of art; cosmopolitics.

This thesis is an ethnography of the social relations which the Wauja Indians of
the Upper Xingu establish with the prototypical beings of alterity — the apapaatai
— via both sicknesses and rituais involving masks and aerophones. My
description and analysis of these relations are keyed to a sequential structure of
three actions, which the Wauja characterize as journeying (with), brínging and
making apapaatai. Journeying implies suffering from a serious illness which
results in the total or partial capture of the sick person’s soul (i.e. their
consciousness and vital substance) to the world of the apapaatai. The Wauja soul
is divisible, capable of being distributed between a widely diverse range of
apapaatai, each of which is linked to specific inter-relating rituais. The visionary-
divinatory shaman assumes the task of discovering which apapaatai have
captured the soul(s) of the sick person; this phase is followed by a therapeutic
process involving recovery of the soul(s) — the brínging apapaatai ritual, in which
some of the sick person’s kin are summoned to embody the apapaatai who
kidnapped the soul(s) and return them. This embodiment confers these kin with
the status of kawoká-mona, which determines that they will ritually ‘present’ the
apapaatai for the sick person. The therapy is complete when the kawoká-mona
make the apapaatai in the form of ritual masks and/or aerophones, in relation to
which the sick person (or ex-sick person if his or her health has returned)
assumes the status of nakai wekeho (ritual ‘owner,’ i.e. one who looks after/feeds
the apapaatai). However, the apapaatai ritual is much more than a means of cure:
its wider sociological implications can only be understood through events
unfolding after the festival itself, a process of development which may take almost
an entire lifetime. The long-term maintenance of these rituais consolidates two
permanent and basic social categories among the Wauja — kawoká-mona and
nakai wekeho — whose articulations result in a series of Services and products
directed towards the ‘ritual owner’ and the continuance of the ritual itself. I look to
show that the ritualization of sickness is one of the central pivots of Wauja
sociality. These rituais form the médium for interconnecting the exchanges
between different residential units, the ethos of generosity-respect-shame and
Wauja cosmopolitics.
8

AGRADECIMENTOS

Diferentes instituições conferiram inestimáveis apoios às minhas pesquisas


no Alto Xingu. Na primeira etapa de trabalho de campo (1998), recebi do Centro
de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Estado da Bahia
(CADCT, atual FAPESB) financiamento para o meu projeto de formação de
coleção etnográfica entre os Wauja. Nesse mesmo ano, o Fundo de Apoio à
Pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina (FUNPESQUISA)
concedeu-me recursos para a coleta dos desenhos. Na segunda etapa de
trabalho de campo (2000), obtive do Museu Nacional de Etnologia de Portugal
(MNE) financiamento para constituir uma segunda coleção etnográfica wauja. A
terceira e quarta etapas de trabalho de campo (2001 e 2002) foram financiadas
pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Em
2003, beneficiei-me de recursos desta Fundação para o estudo da coleção
etnográfica que formei para o Museu Nacional de Etnologia de Portugal. Da
FAPESP recebi ainda uma bolsa de doutorado, sem a qual este trabalho não
teria sido possível.
A Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo proporcionou-me um ambiente acadêmico estimulante, no qual minha
pesquisa sobre os Wauja pode se consolidar. O Laboratório de Imagem e Som
do Departamento de Antropologia (LISA) ofereceu-me a infra-estrutura adequada
para a edição das imagens. Agradeço à Equipe de Recherche en Ethnologie
Amérindienne (EREA/CNRS) o convite para apresentar e discutir a minha
pesquisa de doutorado em sua etapa final.
Registro minha imensa gratidão aos Wauja por sua gentileza e dedicação,
em especial ao chefe Atamai. A ele devo as maiores inspirações para esta tese,
assim como a Aulahu, Kuratu e Yanahin. Kamo, Itsaukatu, Ulepe e Ajoukumã,
grandes xamãs, acolheram carinhosamente minha pesquisa. Com eles, aprendi a
dar os primeiros passos em direção ao mundo dos apapaatai. A magnificência
dos seus desenhos e pinturas é a prova de que o caminho que percorri ainda é
muito curto. Yanahin e Tupanumaká traduziram mitos, narrativas, depoimentos e
entrevistas. Hukai, Apayiupi e Autulu estiveram frequentemente ao meu lado,
contagiando-me com sua alegria e amabilidade.
9

Kokoti Aweti, chefe do Posto Indígena Leonardo Villas/FUNAI, é uma das


pessoas mais generosas e bem-humoradas que encontrei em minha vida, sua
atenção e cuidados foram fundamentais. A Afukaká Kuikuro e a Aritana
Yawalapíti agradeço a hospitalidade com que me receberam em suas respectivas
aldeias.
Lux Vidal orientou magistralmente esta tese. Seu genuíno interesse e
confiança no meu trabalho foram essenciais para a sua concretização. Minha
gratidão, contudo, não se restringe ao âmbito acadêmico. Com Lux, aprendi
lições sábias que estão além do trabalho intelectual que envolve a redação de
uma tese.
Maria Rosário Borges acompanhou a pesquisa desde o início e auxiliou-
me em tudo o que foi necessário, sua assistência em campo permitiu renovar
horizontes para a pesquisa e para a vida. Sem a sua ajuda, os dados analisados
nos capítulos 6 e 7 desta tese certamente não teriam a consistência necessária
para sustentar os argumentos apresentados. A sua aguda sensibilidade para as
etiquetas sociais wauja permitiu fazer da nossa permanência em campo uma rica
experiência antropológica e pessoal.
Vera Penteado Coelho foi uma das poucas pessoas que acompanhou, por
anos a fio, a minha pesquisa wauja. Vera deu-me dicas preciosas, recomendou
leituras, franqueou-me generosamente seus materiais inéditos e suas coleções,
leu manuscritos meus e comentou-os detalhadamente. Meu gosto pessoal de
pesquisa foi bastante marcado por nossa amizade.
Aristóteles Barcelos Júnior, Pedro Agostinho da Silva, Maria Rosário
Carvalho, Cacilda Barbosa, Ana Maria Gantois, Rafael de Menezes Bastos, Dário
Almeida e Heloísa Barcelos contribuíram em diferentes ocasiões e maneiras para
que eu conduzisse minhas pesquisas no Alto Xingu. Pedro tem sido, desde o
início da minha graduação, um interlocutor imprescindível e brilhante. Seus
comentários impulsionaram muito do que escrevi.
Eduardo Viveiros de Castro e Dominique Gallois, membros da Banca de
Exame de Qualificação, clarearam caminhos para esta etnografia e ajudaram-me
a ordenar idéias ainda embrionárias, que espero terem frutificado.
O convite de Joaquim Pais de Brito para a colaboração científica com o
Museu Nacional de Etnologia, por ele conduzida com entusiasmo e originalidade,
imprimiu importante marca neste trabalho. A Joaquim, meu estimado
10

reconhecimento. Agradeço à equipe do Museu Nacional de Etnologia que assistiu


à minha fase de pesquisa em Lisboa, em especial a Carla Morais, Carmem Rosa
e Paulo Maximino.
Durante a minha estadia em Lisboa, Gustavo Barbosa, Judite Primo, Teco
Ribeiro, Antje Kuhlebert, Rogério Abreu, Antônia Helvécia e Ana Albuquerque
tiveram uma presença luminosa, tão inesquecível quanto a luz dessa cidade.
Gustavo acompanhou a fase final da pesquisa, leu alguns trechos de uma versão
preliminar desta tese e sobre eles teceu comentários preciosos. As nossas
conversas sobre a antropologia e a vida inspiraram alguns momentos deste
trabalho. Agradeço a Judite e a Mário Moutinho o convite para apresentar
seminários no Mestrado em Museologia da Universidade Lusófona, os quais
mostraram ser uma oportunidade ímpar para refletir sobre a minha experiência de
colecionionamento entre os Wauja.
Em Berlim, contei com o inestimável apoio de Sebastian Drude, que
possibilitou a minha pesquisa das coleções do Museum fur Võlkerkunde. Anos
mais tarde, na aldeia wauja, tive o prazer de retribuir a sua hospitalidade e de
aprender com a sua pesquisa sobre os Aweti.
Aos professores Marta Amoroso, Michael Heckenberger, Carlos Fausto,
Bruna Franchetto, Sylvia Caiuby Novaes, Cario Severi, Elsje Lagrou, Stephen
Hugh-Jones, Márcio Ferreira da Silva, Anne-Christine Taylor, Beatriz Perrone-
Moisés, Tiago de Oliveira Pinto e Peter Gow agradeço os comentários feitos ao
meu trabalho.
São Paulo deu-me queridos amigos com quem pude compartilhar o
processo de pesquisa e outras alegrias: Fabíola Silva, Renato Sztutman,
Francisco Paes, Ugo Maia, Uirá Fellipe, Clarice Cohn e Roberta Mélega. A eles,
meu estimado reconhecimento.
11

CONVENÇÃO ORTOGRÁFICA DAS PALAVRAS WAUJA1

Consoantes
P oclusiva bilabial surda
t oclusiva alveolar surda
k oclusiva velar surda
ts africada alveolar surda
X africada alveo-palatal surda
s fricativa alveolar surda
j fricativa alveo-palatal surda
h fricativa glotal
m nasal bilabial
n nasal alveolar

Semi-vogais
y alta anterior fechada, não-arredondada
w alta posterior fechada, arredondada

Vogais
i alta anterior fechada, não-arredondada
u alta posterior fechada, arredondada
e média anterior fechada, não-arredondada
o alta central fechada, não-arredondada
a baixa central fechada, não-arredondada

1 Esta convenção segue a norma ortográfica utilizada pelos Wauja e nos materiais didáticos
elaborados em sua língua; trata-se de uma escrita de base fonêmica estabelecida a partir do
trabalho linguístico da missionária Joan Richards, membro do Summer Institute of Linguistics
(SIL).
O leitor encontrará na literatura etnológica e nos documentos indigenistas o termo Waurá, que é o
etnônimo difundido desde von den Steinen (1886). Grafo Wauja por este ser o etnônimo auto-
atribuído.
Nota editorial: os grifos em itálico são usados para ênfases e para distinguir as palavras
indígenas, inclusive os nomes dos personagens míticos. Mantêm-se exceções apenas para os
nomes pessoais e os etnônimos.
12

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Desenho do yerupoho Wejeje e de Aulahu prancha 1


Figura 2 - Desenho do apapaatai Talapi e do peixe talapi prancha 1
Figura 3 - Desenho do apapaatai Weu prancha 2
Figura 4-0 flautista Kaomo e a máscara Atujuwá AnapP prancha 3
Figura 5 - Máscaras dançando em fila prancha 3
Figura 6 - Máscaras dançando em fila prancha 3
Figura 7 - Família de apapaatai Apasa prancha 4
Figura 8 - Casal do apapaatai Yuma prancha 4
Figura 9 - Apapaatai Yuma e Atujuwátãi Tukuje prancha 4
Figura 10 - Apapaatai Kapulu prancha 5
Figura 11 - Pormenores das máscaras Sapukuyawá Yanumaka prancha 5
Figura 12 - Pormenores das máscaras Sapukuyawá Arikamu e Muluta prancha 5
Figura 13 - Desenho do apapaatai Sapukuyawá Yanapá prancha 6
Figura 14 - Desenho do apapaatai Sapukuyawá Yanapá prancha 6
Figura 15 - Desenho do apapaatai Sapukuyawá Atojo prancha 6
Figura 16 - Desenho do apapaatai Sapukuyawá Yuluma prancha 6
Figura 17 - Desenho do apapaatai Sapukuyawá Kulapagato prancha 7
Figura 18 - Desenho do apapaatai Sapukuyawá Ului prancha 7
Figura 19 - Desenho do apapaatai Kajutukalu macho prancha 7
Figura 20 - Desenho do apapaatai Kajutukalu fêmea prancha 7
Figura 21 - Duas versões do motivo gráfico yetulaga naku página 186
Figura 22 - Desenho mehinako de um ser antropomorfo página 186
Figura 23 - Desenho de aturuá na areia página 188
Figura 24 - Desenho de uma pá de beiju wauja página 191
Figura 25 - Desenho do apapaatai-iyajo Kaapi prancha 8
Figura 26 - Desenho do apapaata-iyajo Kulukulusi prancha 8
Figura 27 - Desenho do apapaatai-iyajo Awaulu prancha 8
Figura 28 - Desenho do apapaatai-iyajo Kuhupoja-kumã prancha 8
Figura 29 - Desenho do apapaatai-iyajo Tsepu prancha 8
Figura 30 - Desenho do apapaatai-iyajo Yupe prancha 8
Figura 31 - Linha sinuosa página 193
Figura 32 - Desenho da máscara ritual de Sapukuyaw Arikamu3 prancha 9
Figura 33 - Desenho da máscara ritual de Sapukuyaw Kuwa prancha 9
Figura 34 - Desenho da máscara ritual de Sapukuyaw Yusitsêtsi prancha 9
Figura 35 - Desenho da máscara ritual de Sapukuyaw Ukixá prancha 9
Figura 36 - Desenho da máscara ritual de Sapukuyawá Yutapá prancha 10
Figura 37 - Desenho da máscara ritual de Sapukuyawá Muluta prancha 10
Figura 38 - Desenho da máscara ritual de Sapukuyawá Yuma4 prancha 10
Figura 39 - Desenho da máscara ritual de Sapukuyawá Isejo prancha 10
Figura 40 - Desenho da máscara ritual de Sapukuyawá Wajai prancha 11
Figura 41 - Desenho da máscara ritual de Sapukuyawá Puixa prancha 11
Figura 42 - Desenho da máscara ritual de Sapukuyawá Ejekalu prancha 11
Figura 43 - Desenho da máscara ritual de Sapukuyawá Ejekalu prancha 11

2 Todas as fotografias são da autoria de Aristóteles Barcelos Neto, exceto a de número 8, cuja
autoria é de António Rento, e as de número 68 e 69, cuja autoria é de Hukai Wauja.
3 As figuras 32, 33, 34, 35, 36, 37, 40 e 41 foram desenhadas por mim a partir das máscaras do
ritual Apapaatai lyãu de julho-agosto de 2000, hoje pertencentes ao acervo do Museu Nacional de
Etnologia de Portugal.
4 As figuras 38, 39, 42 e 43 foram desenhadas por mim a partir das máscaras do ritual Apapaatai
lyãu de fevereiro-março de 2002, as quais permaneceram na aldeia wauja após o ritual.
13

Figura 44 - Desenho do apapaatai Arakuni prancha 12


Figura 45 - Desenho do apapaatai Arakuni prancha 12
Figura 46 - Dança das máscaras Atujuwá Ajou prancha 13
Figura 47 - Dança das máscaras Sapukuyawá Puixa prancha 13
Figura 48 - Máscara Sapukuyawá Yanumaka recebe peixe e beiju prancha 13
Figura 49 - A máscara Kuwahãhalu fêmea no interior da kuwakuho prancha 14
Figura 50 - Dança das máscaras Kuwahãhalu prancha 14
Figura 51 - Dança das máscaras Yukuku prancha 14
Figura 52 - Dança das máscaras Atujuwátãi Tukujê prancha 15
Figura 53 - Dança das máscaras Atujuwá Anapi e Atujuwátãi Tukujê prancha 15
Figura 54 - Atujuwá Anapi segue a dança dos clarinetes Tankwara prancha 15
Figura 55 - Atujuwá Ajou perseguem Wataho prancha 16
Figura 56 - Atujuwá Ajou e Anapi cercam Wataho prancha 16
Figura 57 - Atujuwá Ajou e Anapi reúnem-se para assistir televisão prancha 16
Figura 58 - Clarinetistas dançam em frente à casa de Atamai prancha 17
Figura 59 - Vista parcial de Piyulaga com amunaw opona ao fundo prancha 17
Figura 60 - Roça plantada como tarefa ritual de Tankwara prancha 17
Figura 61 - Panela tipo kamalupo feita por Tankwara Yanumaka prancha 18
Figura 62 - Panela tipo kamalupo feita por Tankwara Yanumaka prancha 18
Figura 63 - Panela tipo kamalupo feita por Tankwara Yanumaka prancha 18
Figura 64 - Composição gráfica para fundo de panela prancha 19
Figura 65 - Composição gráfica para fundo de panela prancha 19
Figura 66 - Composição gráfica para fundo de panela prancha 19
Figura 67 - Composição gráfica para fundo de panela prancha 19
Figura 68 - Cena do ritual Yeju prancha 20
Figura 69 - Cena do ritual Yeju prancha 20
Figura 70 - Polvilho produzido como tarefa ritual de Yamurikumã prancha 20
14

Mapa do Parque Indígena do Xingu e adjacências


Fonte: Ricardo (ed.), 2000: 629.

I
15

1
INTRODUÇÃO

Esta tese é uma etnografia das relações sociais que os índios Wauja do
Alto Xingu estabelecem com os seres prototípicos da alteridade — os apapaatai
— via adoecimentos e rituais de máscaras e aerofones. Embora o escopo desta
tese seja sobretudo descritivo, há uma preocupação teórica central, a saber: o
estatuto ontológico da arte wauja.
O desenvolvimento da etnografia baseia-se em uma estrutura sequencial
de eventos relacionantes — adoecer (passear com apapaatai), curar (trazer
apapaatai) e festejar (fazer apapaatai, ação também orientada para a cura) —
dada pelo modelo nativo, o que resulta em um meta-modelo etnológico. O terreno
analítico-interpretativo em que se produz essa etnografia é aquele que “postula o
caráter social das relações entre as séries humana e não-humana” (Viveiros de
Castro, 2002a: 364)5. Diante de tal proposição, esta etnografia impõe uma
questão que é fulcral para o seu próprio desenvolvimento: a de saber qual é a
posição que a arte ocupa nesse panorama relacional, visto que a mesma se
insere, sobretudo, como personagem integrante da série não-humana? É no
sentido deste questionamento que oriento esta tese e defino seu objetivo como
sendo a descrição e análise, no âmbito da etnografia wauja, dos processos nos
quais que as artes se tornam agentes sociais. Enfim, é por meio da descrição de
um meta-modelo etnológico, depreendido das experiências artísticas e estéticas
nativas, que tentarei fazer uma reflexão sobre a socialidade6 wauja.

5 A origem dessa discussão na Etnologia das terras baixas da América do Sul remonta às
Mitológicas de Lévi-Strauss. Mais recentemente ela tem sido avançada pelas contribuições de
Arhem (1996), Baer (1994), Descola (1992, 1994, 1998), Fausto (2001, 2002a), Gallois (1988),
Lagrou (1998), Lima (1996, 1999), Overing (1982, 1986), Rivière (1995, 2001), Silva (1998)
Velthem (2003), Vidal (no prelo), Viveiros de Castro (1996a, 2002a, 2002b, 2002c), entre muitas
outras.
6 Socialidade não é aqui um conceito teórico propriamente dito, como por exemplo, o de
Sociedade. As bases teórico-metodológicas do conceito de socialidade ainda estão em
construção. Um grande número de trabalhos que fazem uso desse conceito em emergência
“share in common a rejection of aspects of the Durkheimian heritage, such as the idea that all
humans seek to represent the social formations in which they live as in some senses ‘societies’”
(McCalIum, 2002: 4, grifo da autora). Esses trabalhos almejam caminhos alternativos de análise
mais voltados para as ontologias não-ocidentais. O meu uso do conceito de socialidade inspira-se
no modo como McCalIum (2002) o desenvolve em sua etnografia sobre os Cashinahua: o
16

Se por um lado mostrarei um Alto Xingu pleno de referências artísticas, as


quais são relativamente bem conhecidas tanto por especialistas em etnologia
quanto por um público difuso7, por outro, mostrarei um Alto Xingu um pouco
estranho às etnografias anteriores sobre a região e em maior medida às
generalizações até agora propostas para a Amazônia. Uma dessas
generalizações modelares, talvez a mais recente delas, forjada na comparação
entre a Melanésia e a Amazônia, nos apresenta a seguinte conclusão sobre a
última região:

Amazonian cultures are cosmocentric rather than sociocentric. They


grant less centrality to the ritual and political reproduction of the
human social order— including the domination of men over women
— than to the continuous efficiency of their relations with the multiple
actors of the universe (Descola, 2001:108).

Os Wauja8 apresentam pelo menos duas particularidades contrárias a


essa afirmação. Em primeiro, eles estão intensamente voltados para a
(re)produção política da ordem social por meio de rituais, exatamente aquilo que
Descola afirma ser menos central na Amazônia. A centralidade do ritual é
inequívoca, como argumentarei na segunda e terceira partes desta tese. A
segunda particularidade diz respeito à (re)produção política, que se faz
exatamente a partir de uma “combinação” dos planos cosmocêntricos e
sociocêntricos, sendo o material fundamental dessa reprodução o próprio sistema
de relações com os “múltiplos atores do universo”. Esta etnografia procura
contemplar de maneira não isolada esses dois planos. Socius e cosmos não são,
aqui, unidades de contraste pertinentes, o que se sugere é uma forte inter-
relação desses planos.

conceito é moldado pela teoria nativa e ao mesmo tempo delineado no abrangente contexto
amazônico (Viveiros de Castro, 2001, 2002a, 2002b).
7 Sob as tônicas qualificativas de “beleza”, “exotismo”, “sabedoria” e “mistério”, a televisão, o
cinema, a publicidade, o mercado editorial e os antiquários de diversas partes do mundo tiveram
uma longa e incisiva atuação na veiculação de imagens e de objetos de arte dos xinguanos,
tornando esses povos amplamente conhecidos, dos quais inclusive se objetificou um padrão
genérico de beleza para o índio brasileiro (Franchetto, 1992). Entre as décadas de 1960 e 1990,
as famosas fotos de Jesco von Putkammer, tornadas cartões postais, e colocadas à venda em
bancas de jornal por todo o país, tiveram um papel importante na difusão de uma imagem-padrão
dos xinguanos.
8 Os Wauja habitam as proximidades da lagoa Piyulaga (traduzida por lugar/acampamento de
pesca, e que também dá o nome à aldeia), que está ligada por um canal à margem direita do
baixo curso do rio Batovi, na região ocidental da bacia dos formadores do rio Xingu. A aldeia
circular de Piyulaga está a 16 km a oeste da aldeia kamayurá de Ipavu e a 22 km do Posto
Indígena Leonardo Villas-Bôas.
17

Abordo a ,noção de apapaatai como um meio heurístico para inter-


relacionar/fundir questões da cosmologia e da socialidade wauja. De um modo
sumário, podemos dizer que os apapaatai estão compreendidos por uma escala
de transformações ontológicas múltiplas e desiguais que os apreende como
animais, monstros, artefatos, “espíritos”, “heróis culturais”, e/ou xamãs; essa
mesma escala, em sua amplitude máxima, inclui, (trans)contextualmente, os
próprios Wauja. “Transformações ontológicas” compreendem, no decurso desta
etnografia, as transformações da natureza dos seres, sejam nos domínios dos
seus corpos, “roupas”, afetos, intenções, capacidades ou perspectivas. As
identidades dos seres estão diretamente ligadas ao modo como esses domínios
se organizam e se apresentam, no curso das (rel)ações que os seres
empreendem no mundo.
O que são esses “múltiplos atores do universo” aos quais se refere
Descola? Nesta etnografia, pelo menos grande parte desses “atores” equivale
analiticamente àquilo que chamo de arte. Os Wauja conferem grande atenção à
transferência desses atores do plano metafísico para o plano das formas
expressivas de modo a lhes conferir uma participação sensível na vida social
wauja, personificando-os como máscaras, aerofones, panelas, desenterradores
de mandioca, cestos, canoas etc. Curiosamente, é por meio desse mesmo
material artístico que mostrarei um Alto Xingu obsessivo pela hierarquia, pelo
prestígio, pela acumulação e pelo refinamento; temas que seduzem as análises
da etnografia para uma discussão sobre a complexidade sociopolítica dos
Arawak no panorama sul-americano. Muito recentemente essa discussão foi
resgatada pela história (Hill e Santos-Granero, ed. 2002) e pela arqueologia
Heckenberger (2001a; 2001b, 2002) visando a um amplo horizonte comparativo.
Sobre esta questão, de complexa abrangência e complicada análise, minha
intenção é apenas fornecer dados para aprofundamentos futuros.
Esta tese propõe pensar como a arte, entre os Wauja, gera “coeficientes”
de (re)produção sociopolítica e vice-versa, apontando para a complexidade
mencionada. A teoria da agência, em sua “versão artística” proposta por Alfred
Gell (1998), é o suporte teórico para a discussão sobre esses coeficientes
gerados pela arte, cujo contorno de definição etnográfica são as experiências
wauja de passear (com), trazer e fazer apapaatai.
18

O que me interessa saber é o que essa arte é capaz de mobilizar em


termos sociais, sendo para isso imprescindível discutir a sua condição de agente
diante dos Wauja e de si própria. Interessa-me a arte wauja menos como produto
(resultado acabado de um processo de produção) do que como um modo de
relação (fundada sobre as ações diretas e indiretas exercidas por agentes e
pacientes), mas isso não esvazia a minha descrição de aspectos como o estilo
das máscaras, sua coreografia e possíveis homologias entre propriedades
formais e conceituais.
A base epistêmica de Gell é inspirada no desconstrucionismo melanésio
de Strathern (1988) e na economia do dom formulada por Mauss (1968 [1923-
1924]), na qual os artefatos são partes destacadas das pessoas nos processos
de transação. Porém, Gell leva essa formulação um tanto mais adiante,
considerando os objetos de arte como pessoas independentemente se eles estão
situados em processos de transação ou não, ou em economias do dom ou da
mercadoria.
Se na Melanésia a idéia de distribuição da pessoa ocorre por meio da
troca de artefatos (e.g. o Kula), aqui é por meio da doença e da sua condição
estendida, o ritual. As experiências de trocas que descreverei são basicamente
de substâncias, almas, “roupas” e corpos, as quais se circunscrevem
imediatamente no mundo dos artefatos. Espero não ter feito uma “contaminação”
excessiva do Alto Xingu com o paradigma oceanista, que ela tenha sido na
“medida certa”, aquela que não transfigura os Wauja em Maori ou marquesanos.
Minha opção por uma teoria da agência deve-se ao fato dela oferecer
maiores possibilidades de explicar a categoria apapaatai do que teorias do
simbolismo. A perspectiva “simbólica” dos estudos antropológicos da arte procura
saber o que a arte pode “dizer” sobre alguma coisa. Não digo que a arte não se
presta a “dizer” isso ou aquilo sobre a “cultura” e a “sociedade”, mas não é essa a
opção teórica que persigo aqui. O problema social e cultural que os apapaatai
impõem é antes o da sua condição de sujeito — é sobre o que eles fazem ou são
capazes de fazer ou sobre o que se é capaz de fazer para e com eles que os
Wauja se colocam a pensar — do que a sua condição de símbolo.
O que podemos extrair das afirmações wauja de que tais e tais “roças e
canoas foram feitas por Tankwara” (um tipo de apapaatai) ou que a “falecida tia
daquele homem foi violentada por Kawoká" (outro tipo de apapaatai)? Se o
19

objetivo é realmente explicitar uma teoria nativa deve-se seguir a máxima de que
os apapaatai são pura intenção, seja ela emanada do corpo ou da mente (alma),
como veremos. Os apapaatai são basicamente intenções-doença, intenções-
beleza, intenções-cura, intenções-opulência, intenções-morte etc. A categoria
apapaatai recorta, portanto, uma série de campos de ação (sobre a “doença”, a
“cura”, o “ritual”, a “política”, a “economia” e a “moralidade”), formando um
mosaico intrincado que permite múltiplas abordagens. No caso desta tese, a arte
é pensada como um ponto de convergência desses campos, que, aliás, implicam
uns nos outros, pois cada um contém e/ou interfere nas relações dos “campos
adjacentes”. Socialmente atribuídos de intenção, os objetos de arte são capazes
de interagir e de causar eventos no meio em que eles se situam. Assim, entre os
Wauja, por exemplo, uma flauta-apapaata/ pode vir a ser o índice de agência de
um estupro coletivo.
O projeto de Gell é extrair de uma série bastante diversa de ontologias
específicas um fundo comum para uma teoria explicativa de fenômenos
agentivos. Para tanto, Gell faz uma descontextualização controlada, inter-
relacionando casos etnográficos e tornando saliente pelo menos uma
semelhança central e comum, seja no Ocidente moderno ou em “tal ou tal ilha do
Pacífico”: a atribuição de intenção e consciência aos objetos não-viventes. O
problema da arte como intenção não é simples e direto como parece, e não será
aqui o lugar da sua discussão e defesa. Deixo a justificativa da minha posição
nas mãos de Gell, de quem tomo de empréstimo as palavras abaixo:

For the anthropologist, the problem of ‘agency’ is not a matter of


prescribing the most rational or defensible notion of agency, in that
the anthropologisfs task is to describe forms of thought which could
not stand up to much philosophical scrutiny but which are none the
less, socially and cognitively practicable. (...) Some philosophers
believe that ‘folk’ notions about agency, intention, mind, etc.
constitute a set of philosophically defensible beliefs, but this is of no
particular concern to us. (...) The idea of agency is a culturally
prescribed framework for thinking about causation, when what
happens is (in some vague sense) supposed to be intended in
advance by some person-agent or thing-agent. Whenever an event
is believed to happen because of an ‘intention’ lodged in the person
or thing which initiates the causal sequence, that is an instance of
‘agency’ (1998: 16-17).
20

O que se obtém ao atribuir intenção e consciência aos artefatos? O que


está por trás da estratégia de animá-los? Qual a razão de uma “continuidade
ontológica entre sistemas físicos, viventes e psíquicos”? Trazendo estas
questões para a Amazônia indígena, Sztutman (2002) contrasta o projeto de Art
and Agency com uma crítica de Overing (1995) à “visão unitária da realidade”,
defendida por Gell em uma obra anterior, The Anthropology of Time (Gell,
1992a). Segundo Overing, Gell considera os sistemas de pensamento indígenas
“contingentes” e seus postulados de realidade “falsos”, pois que para ele apenas
os filósofos das sociedades “tecnológicas” seriam capazes de inferir sobre a
natureza do real. Penso, todavia, que as divergências entre Overing e Gell
podem ser situadas em outro plano. Sztutman (2002: 28-32) observa que Gell faz
uma separação entre ação e acontecimento, situando a primeira no plano das
“intenções prévias, que advêm de uma mente ou alma, e o segundo, de leis
físicas”. Tal separação permite que Gell situe o lugar de cada um no debate,
delimitando o problema da ação9 para a antropologia e o problema do
acontecimento para físicos e filósofos. Seguindo Sztutman (2002: 33), o que está
por trás dessa discussão é o fato de os nativos separarem ou não um “enunciado
físico de outro cognitivo”. Para Gell, os nativos sabem claramente que uma pedra
é um não-vivente e que “inhames não dançam a noite” (Overing, 1995: 113),
todavia os enunciados físicos têm, para os nativos, em muitos contextos, menor
importância que os enunciados cognitivos. Avancemos este ponto a partir de uma
idéia defendida por Viveiros de Castro na esteira das contribuições de Gell (1998)
e Dennett (1978):
)

Estamos diante de um ideal epistemológico que, longe de buscar


reduzir a ‘intencionalidade ambiente’ a zero a fim de atingir uma
representação absolutamente objetiva do mundo, toma a decisão
oposta: o conhecimento verdadeiro visa à revelação de um máximo
de intencionalidade (...) a boa interpretação xamânica é aquela que
consegue ver cada evento como sendo, em verdade, uma ação
(Viveiros de Castro, 2002a: 359).

Embora eu anuncie este debate, não pretendo confrontar nem comparar


as distintas orientações teóricas a respeito da natureza do pensamento indígena.
Reconheço, contudo, que uma ou outra posição no debate será responsável pela

9 As ações são as manifestações próprias das relações sociais — o objeto Standard da


antropologia, segundo Gell (1998: 7-11) e Viveiros de Castro (1999:122).
21

configuração da própria etnografia. Portanto, assumo uma posição em que o que


importa é a eficácia dos enunciados, a sua capacidade de interferir no curso das
relações sociais. Se os Wauja conferem atributos humanos (intenção,
consciência) a uma máscara ou a uma flauta, interessa-me que essa
categorização ontológica não é definida por uma oposição entre “coisas
inanimadas” e “pessoas encarnadas”, mas que máscara e flauta têm uma
posição agentiva em redes de relações sociais, envolvendo-se direta e
precisamente com pessoas encarnadas.
Um dos pressupostos deste trabalho funda-se sobre a idéia de que os
modos de pensar e fazer arte na Amazônia são, a um só tempo, modos
expressivos e reflexivos sobre a socialidade. Mas por que arte? Que estatuto
tem, aqui, esse conceito importado de outras epistemologias? O problema não é
de escolha terminológica, mas de orientação teórica.
Gell identifica um dos pontos mais complicados da questão:

there is no ‘art world’ to speak of in many of the societies which


anthropologists concern themselves with, yet these societies
produce works some of which are recognized as ‘art’ by our ‘art
world’. According to the ‘institutional theory of art’, most indigenous
art is only ‘art’ (in the sense we mean by ‘art’) because we think it is,
not because the people who make it think so. Accepting the art
world’s definition of art obliges the anthropologist to bring to bear on
the art of other cultures a frame of reference of an overtly
metropolitan character. To some extent this is inevitable
(anthropology is a metropolitan activity, just like art criticism) (1998:
5).

Vários objetos wauja que vamos analisar são categorizados pelos nativos
como “artesanato”: frutos de uma relação metropolitana. Por outro lado, há uma
série de objetos “tradicionais” que os próprios Wauja não reconhecem como
“artesanato”: frutos de uma relação cosmo-politana. Apesar das restrições
conceituais da categoria “artesanato indígena”, não se deve descartá-la, pois é
do conflito/contraste entre as transações metropolitanas e cosmo-politanas que
surge uma aproximação mais precisa do que vem a ser a “arte wauja”.
Ao empregar o conceito arte, procuramos situar os objetos wauja numa
posição comparativa, seja do ponto de vista interno das suas diferenças, seja do
externo, este, porém, surge de maneira mais ou menos implícita, guiando as
análises nas entrelinhas. Seguindo Gell (1998: 6-7), não definirei arte a priori de
22

modo a satisfazer anseios filosóficos, ademais, neste caso, isso é absolutamente


desnecessário e improdutivo. (•

Nesta etnografia, estamos diante de fenômenos — doenças, curas, rituais


e relações sociopolíticas — que, a despeito de suas próprias diferenças, lidam
com problemas da manufatura e do uso de objetos. Objetos que por sua vez
possuem formas e estilos próprios, característicos de modos de pensar, criar,
sentir e comunicar. Não é meu objetivo oferecer um novo conceito de arte, mas
posicionar esses fenômenos diante desse antigo e problemático conceito.
A principal inquietação é que os objetos wauja são “mais” do que arte e
í(
menos” do que arte (e.g. “artesanato”), e até outras coisas que não são objetos
(e.g. animais), são também arte. Isso exige ver o conceito ampliado (ou implodido
a depender da discussão) vinculando-o à ontologia wauja. É necessário
“engordar” o conceito de arte, nutri-lo de outros conceitos, sobretudo o de
apapaatai. Como observa Mello (1999), não há música (eu diria não há arte) que
não seja de ou para apapaatai. Mais do que isso até: os seres não-humanos são
arte, a arte wauja.
Um dos aspectos que torna a arte wauja teoricamente interessante é a
fraca distinção entre as categorias animal e arte. A. pele e a plumagem dos
animais são consideradas, pelos Wauja, realizações artísticas e estéticas em
função da natureza da pessoa não-humana. Esse pensamento lança a arte para
fora do mundo do objeto e da representação; inclusive o que nos parece tão
objeto — os artefatos — tem uma potência subjetiva que pode se atualizar
conforme certos eventos.
A todo tempo, as descrições e análises das artes amazônicas, quando
atentam para essa dimensão ontológica, apontam-nas como experiências que
efetivam processos de transformação, metamorfose, manutenção e renovação
cosmológica. Quanto mais comparamos esses processos no panorama
amazônico, mais nos damos conta de como eles se constroem a partir de
categorias visuais e sonoras, revelando que as artes, muito mais do que
produtos, são meios de administrar as relações entre humanos e não-humanos
(i.e. as relações de predação/“domesticação”). Portanto, ao falar de apapaatai,
animais e ou outros seres não-humanos, estarei, implícita ou explicitamente,
falando de arte — obviamente se o leitor concordar com a equação conceituai
que propus há pouco —, por isso não penso ser necessário, do ponto de vista
23

metodológico, definir arte. Minha intenção é evitar que o peso conceituai de


fenômenos como arte, estética, política e poder achatem o esforço da etnografia
em compreender modos de pensar e agir que pouco se ajustam a campos
disciplinares como “antropologia da arte”, “da política”, “da estética”, “da saúde”.
Meu esforço foi fazer com que o lugar dessas antropologias fosse “subordinado”
aos contextos e conceitos wauja.

A sequência argumentativa da tese foi concebida de modo a reconstruir os


processos envolvidos na passagem da doença ao ritual, tendo o xamanismo
como pivot desse movimento, ao qual se somam outros movimentos que
constituem um extenso ciclo de transformações sociocosmológicas,
manipulações das diferenças e modos de relacionamentos com estas. Esse
conjunto de movimentos evoca duas questões centrais: a multiplicação e
distribuição das pessoas humana e não-humana por meio do uso de máscaras
(“roupas”) e da fabricação de objetos patológicos, e a transição da pessoa
humana entre os estados de humanidade e não-humanidade.
Como mencionado acima, a sequência lógica da descrição etnográfica
parte de uma estrutura sequencial de ações que os Wauja caracterizam por
passear (com), trazer e fazer apapaatai.
O passear implica estar sofrendo de um adoecimento grave, resultado do
total ou parcial deslocamento (rapto) da alma (i.e. da consciência, da mente, do
princípio vital) do doente para o mundo dos apapaatai. Segundo os Wauja, a
alma pode ser dividida em várias frações, por isso ela é passível de ser raptada
(distribuída) por uma diversidade considerável de apapaatai, cada qual ligado a
rituais específicos e inter-relacionantes. Ao xamã visionário-divinatório (yakapá),
cabe descobrir com quais apapaatai estão a(s) alma(s) do doente, prosseguindo-
se, então, com uma terapêutica relativamente eficaz na recuperação da(s)
alma(s), o “pequeno” ritual de trazer apapaatai, no qual certos parentes
consanguíneos e/ou afins do doente são convocados a incorporar os apapaatai
em posse da(s) alma(s) e a devolvê-la(s) ao doente. Tal incorporação encaminha
esses parentes para assumirem o status de kawoká-mona, ou seja, de indivíduos
que “apresentarão” ritualmente os apapaatai para o doente.
24

A terapêutica se completa quando os kawoká-mona fazem os apapaatai na


forma de máscaras e/ou aerofones rituais, sobre os quais o doente (ou ex-
doente, caso seu estado de saúde tenha se normalizado) assume a posição de
nakai wekeho (“dono ritual”, i.e. aquele que custeia a fabricação dos apapaatai e
que deles cuida e alimenta). O fazer apapaatai, a mais complexa dentre as três
\
ações, implica efetivar a transformação dos parentes escolhidos em apapaatai
durante os rituais e em situações subsequentes. A cosmética (máscaras, pinturas
corporais, resinas perfumadas, adornos), a música e a dança constituem, de
modo altamente integrado, os meios expressivos dessa transformação, sem os
quais a mesma seria inconcebível. Mas o ritual de apapaatai é muito mais do que
um meio de curar: suas implicações sociológicas mais relevantes só podem ser
entendidas quando se acompanham os eventos subsequentes à festa em si, cujo
desenvolvimento completo pode durar quase uma vida inteira, pois, mesmo
depois de curado, espera-se que o ex-doente sustente o ritual de certos
apapaatai que o adoeceram.
Embora qualquer Wauja que adoeça gravemente tenha o direito de
promover o seu próprio ritual de apapaatai, apenas alguns poucos indivíduos
possuem, de fato, os meios para manter os seus rituais por anos a fio.
A manutenção desses rituais consolida duas categorias sociais
permanentes e fundamentais da sociedade wauja — kawoká-mona e nakai
wekeho —, de cujas articulações resultam uma série de serviços e produtos —
roças, casas, caminhos, canoas, armadilhas de pesca, cestos, panelas, silos de
polvilho, fardos de pequi cozido, bolas de urucum — diretamente em favor do
“dono” do ritual e da própria continuidade do ritual. Tais produtos e serviços,
como veremos, correspondem à extensão da potência agentiva dos apapaatai
para domínios das alianças económicas e políticas entre os nakai wekeho, os
kawoká-mona e o restante da comunidade. De agentes de doenças a
“benfeitores” rituais: esta é a transformação ideal das relações dos Wauja com os
apapaatai. As sinalizações para essa transformação são dadas pela política
cósmica xamânica.
A primeira parte da tese — Arte e patologia — é dedicada à introdução dos
conceitos que envolvem o entendimento da pessoa não-humana e como os
humanos e os apapaatai fundam um sistema relacional baseado em estados
patológicos. Adoecer é criar uma relação tanto para fora (com o mundo
25

sobrenatural) quanto para dentro (com mundo da sociabilidade), e, ao mesmo


tempo, criar uma interseção entre esses dois espaços.
Argumento que a doença é um estado que potencializa a produção
artística e intelectual, pois ela é a condição primeira de transferência de estados
criativos sobrenaturais para o interior da sociedade wauja. Os materiais
intelectuais que a doença permite produzir estão por trás de uma riquíssima
imaginação plástica que, expressa nos desenhos dos xamãs visionário-
divinatórios, mostra a construção de mundos (Overing, 1991).
Em sua posição pivotal, o xamanismo wauja é mais do que uma habilidade
artística e intelectual, ele é também um conhecimento que auxilia a
“domesticação” e a inclusão social dos apapaatai entre os humanos. Seus
recursos mais poderosos são a transformação corporal, a arte da miniaturização,
a iconografia e a música, temas que anunciam a segunda parte da tese. Ainda na
primeira parte, articulo às categorias wauja de patologia à teoria da pessoa
distribuída (Gell, 1998: cap. 7), para então estender essa articulação para a
segunda e terceira partes.
A primeira parte aborda o “fazimento” metafísico dos apapaatai— i.e. do
seu universo de imaginação conceituai e formal — que emicamente equivale aos
passeios dos doentes graves e dos xamãs em “outros” mundos. Para que esse
universo metafísico tenha um sentido sociologicamente produtivo são
necessárias a construção artefatual dos apapaatai e o seu uso ritual. Mas o que
são esses artefatos/seres aos quais denominamos máscaras?
Os elementos formais, configurados pelos olhos, cabeça, cabelos, dentes,
orelhas, nariz, membros, pinturas e fibras vegetais, que constituem peças
indumentárias, causam inquietações por seu caráter ambíguo entre o humano e o
não^humano. Para as crianças pequenas, essa ambiguidade torna as máscaras
muitas vezes apavorantes. Uma visão semelhante também possuem as mulheres
wauja, que, em certas ocasiões, são proibidas de ver as máscaras em movimento
sob o risco de sofrerem, dos homens (ou, sendo fiel ao pensamento wauja, das
próprias máscaras), violências físicas e morais.
Mesmo vistas de seu confinamento em vitrines de museus, imóveis e com
seus olhares fixos na eternidade, as máscaras parecem ainda mais provocantes,
e os questionamentos que emergem dessa relação artefato-espectador
ultrapassam a materialidade física do primeiro. Lux Vidal (2001), referindo-se a
26

uma exposição da coleção de Alexandre Rodrigues Ferreira, em Manaus,


descreve alguns sentimentos que as máscaras jurupixuna são capazes de
evocar: “as máscaras dos espíritos do fundo das águas e da mata nos olhavam,
com extrema doçura nas suas monstruosas deformações, lembrando-nos ainda
com insistente olhar esvaziado a sua antiga ‘humanidade’”. O dizer “nos olhavam”
não é uma simples metáfora: trata-se exatamente da sensação que essas
máscaras transmitem: a de ser também olhado por elas.
Para os Wauja, as máscaras são expressões de vida e “morte”, de uma
relação entre um eu e um outro, de histórias pessoais que reportam à intimidade
da relação de um indivíduo wauja com uma pessoa não-humana. As máscaras
wauja contam também uma história visual, a da transformação de “antigos” seres
antropomorfos em animais, monstros e “espíritos”, os quais se tornaram agentes
(ou co-agentes) de doenças. No entanto, essa história não é contada apenas por
aqueles objetos que usualmente a etnologia chama de máscaras; por isso, elas
não constituem, nesta tese, uma unidade descritiva e analítica encerrada em uma
típica categoria taxonômica da cultura material. As máscaras, segundo os wauja,
não estão sós: flautas e clarinetes as conduzem/acompanham nas performances;
de outro lado, panelas, cestos, redes de dormir e outros artefatos são extenções
de sua inclusão como personagens rituais. De acordo com as relações
sociocosmológicas, máscaras e aerofones configuram uma única categoria: a de
apapaatai, que genericamente corresponde a uma extensa e variada tipologia de
seres não-humanos.
A segunda parte da tese — A construção ritual dos apapaatai— descreve,
a partir de um conjunto de performances rituais, tendo como base o método da
análise estilística em Gell (1998), as propriedades transformativas dos apapaatai.
O foco é a sua “passagem” de uma realidade metafísica para uma realidade
cênico-musical, ou seja, a “passagem” da imaginação plástica dos mitos e
sonhos para as personagens rituais concretas.
Por que estudar o estilo para entender a agência social da arte? Esclareço
desde o princípio que, aqui, estilo não tem nada a ver com gosto estético, nem
com linguagem (“gramática visual” e outras analogias linguísticas), ou com
representação de alguma coisa, mas sim com forma (ou melhor, morfologia), e,
em um sentido mais profundo, com perspectiva.(cf. Viveiros de Castro, 2002a).
27

Segundo Gell, a construção de um modelo estilístico é produtiva se este


for capaz de determinar “eixos de coerência” (ax/s of coherence) nos planos de
realização formal das obras. Tais eixos funcionam como ferramentas conceituais
para se pensar a relação entre o estilo e a cultura (Gell, 1998: 215-220). A
determinação dos eixos de coerência depende de uma análise formal muito
cuidadosa dos grupos de simetria, das regras que governam a variabilidade das
proporções entre os motivos e as transformações e fusões motívicas (cf. também
as contribuições de Stevens, 1981 e em Ucko, ed. 1977). Os eixos de coerência
definem princípios relacionais no interior do estilo, a partir das relações dos
artefatos entre si. É isso o que Gell chama de relations between relations. O que
importa são as relações motívicas relacionadas às relações sociais, e não uma
relação direta entre características formais (motívicas) e características
socioculturais. Para Gell, as relações dos artefatos entre si são relações sociais
(de uma máscara com outra máscara, por exemplo), mediadas por um estilo
comum. Neste caso, o estilo está para as obras de arte assim como a identidade
grupai está para os agentes sociais discretos: o estilo é a identidade das obras de
arte, e toda identidade é, como bem sabem os antropólogos, relacional. Mas há
um pouco mais a ser dito sobre a questão relacional. Nas palavras de Gell, as
“obras de arte não fazem seu trabalho cognitivo isoladamente; elas funcionam
porque cooperam sinergeticamente umas com as outras, sendo o estilo a base
de sua ação cinergética” (Gell, 1998: 163). O estilo é, para esse autor, mais do
que um conceito de identidade: ele permite que relações sejam realmente
colocadas em curso. Nesse sentido, a decoração e as características
morfológicas dos artefatos são componentes da estratégia de relacionamento
social dos próprios artefatos.
A terceira parte — Os rituais de apapaatai e a cosmopolítica wauja —
descreve como os apapaatai tornam-se índices de poderes cosmopolíticos via
rituais de produção10, os quais estão fundados sobre as relações entre duas
categorias sociais que delimitam uma série de níveis de especializações do saber
e da produção, controle e distribuição de recursos: a de “dono” ritual (nakai
wekeho) e a de especialista ritual/apapaata/ corporificado (kawoká-mona). Como

10 A existência de rituais voltados para a mobilização de trabalhos coletivos já tinha sido referida
por Basso (1973, 1981), Dole (1956-1958), Menezes Bastos (1978), Viveiros de Castro (1977) e
Zarur (1975). Entretanto, é ausente nos trabalhos desses autores uma apreensão sistémica
desses rituais.
28

mencionei antes, esses rituais têm sua origem na doença/cura, todavia, mesmo
depois de curado, o doente (então “dono” ritual) e seus kawoká-mona continuam
a investir na manutenção de alguns desses rituais.
A minha hipótese é que as relações sociais com os apapaatai, na forma da
doença e do ritual, são o pivot central da socialidade wauja. É a partir da doença
que se articulam, como as trocas entre os não co-residentes, a interpretação
xamânica da cosmologia, o ethos da generosidade-respeito-vergonha — questão
bastante cara à etnologia xinguana como bem mostraram Ellen Basso (1973) e
Viveiros de Castro (1977) — e a economia política. Dos adoecimentos graves aos
trabalhos coletivos, passando pelo ritual, temos um fluxo contínuo de
transformações dos apapaatai em estado “bruto”, em estado “crítico” (a doença)
em estado “sociológico” (o ritual). A doença tem um “papel absolutamente
integrador” (Viveiros de Castro, 1977: 230) entre os domínios humano e não-*
humano, mas é a sua ritualização que instaura o seu papel político.
Um dos objetivos da terceira parte da tese é entender a sociológica da
manutenção desses rituais, que, para além dos seus efeitos meramente
terapêuticos, incide diretamente sobre a ênfase wauja na (re)produção política da
ordem social. Se o ritual surge em função de superar uma condição patológica, a
sua continuidade estaria no núcleo de uma cosmopolítica, cuja operação
simbólica básica parece ser a “familiarização” dos apapaatai, ou seja, transformar
uma relação de “predação” (doença) em uma de “produção” (política). Nas
palavras de Fausto (2001: 538), esclareço um pouco essa operação: “O
desenvolvimento das capacidades reprodutivas (em sentido amplo) da pessoa
depende da apropriação de um excedente de agência (de intenção e atividade),
que existe em graus dessemelhantes nos mundos humano e não-humano”. No
caso wauja, tal excedente de agência é a potência patológica dos apapaatai,
sobre a qual o ritual é posto a controlar e transformar.
Rico em história e rico em rituais, o Alto Xingu impõe uma condição básica
para o seu estudo enquanto um sistema regional: a de que muito pouco desse
sistema pode ser compreendido fora do profundo senso de historicidade que os^
nativos têm das suas relações (Franchetto e Heckenberger, org. 2001). O
sistema cerimonial xinguano, forjado ao longo de séculos, expressa uma das
mais claras matrizes do pensamento histórico indígena. Configurado e ao mesmo
tempo configurador de aceitabilidades estéticas e morais, de modalidades de
29

trocas de objetos com valores transcontextuais e do reconhecimento de que cada


“membro” da sociedade regional xinguana, seja ele um grupo arawak, carib ou
tupi, é equivalente entre si, independentemente de suas maiores ou menores
diferenças, esse sistema cerimonial é o principal articulador dessas diferenças no
tempo e espaço. Compartilho com Fausto (2002b) a idéia de que esse sistema
não é apenas caracterizado por numerosas performances realizadas inter e intra-
aldeias, mas sobretudo pela produção, mobilização, articulação e manutenção de
redes de relações sociais por meio das próprias performances, cuja variedade e
organização esta tese pretende apresentar.
Isento-me de uma introdução histórica e etnográfica à área do Alto Xingu,
pois já a realizei anteriormente (1999b, 2002). Ademais, as coletâneas de artigos
organizadas por Coelho (org. 1993) e Franchetto & Heckenberger (org. 2001)
oferecem um excelente panorama sobre a área em causa. Tendo em vista a
vastidão e a irregularidade da literatura xinguana, não seria o caso resenhá-la
aqui. Até mesmo porque na atual fase em que se encontra a etnologia do Alto
Xingu, isolar a problemática da sociedade regional e multiétnica xinguana em um
capítulo introdutório de nada contribuiria para o seu diálogo com as questões
levantadas pela etnografia dos rituais de máscaras wauja.

1.1
DOS MUSEUS AO CAMPO E VICE-VERSA

A formação de coleções há muito deixou de ser um método Standard de


trabalho de campo etnográfico (Ribeiro, 1989). Apesar da explícita admiração
pelos feitos colecionistas de Karl von den Steinen, Rivers, Franz Boas ou Curt
Nimuendaju, colecionar é, atualmente, algo envolto de obsolescência. Castro
Faria (2002: 106), em recente entrevista, afirma que o colecionamento
“deformou” o conhecimento antropológico. Às vezes, a obsolescência é coberta
pelo desprezo a um tipo de colecionamento desenfreado. De fato, o mundo das
coleções é repleto de paradoxos como este, de histórias e sentimentos
desencontrados, de dúvidas morais e, mais recentemente, do “culto” a arte (Gell,
30

1992b, 1998). As coleções etnográficas, ou melhor, as peças que as compõem,


convertidas em obras de arte, vêm ocupando lugares especiais na economia
simbólica da visitação dos grandes museus metropolitanos (Price, 1994).
Possivelmente minha trilha até a arte wauja tenha começado aí.
O presente estudo das máscaras wauja tem sua remota origem em um
interesse estético-artístico pelos grafismos indígenas, um reflexo da minha
formação inicial em artes plásticas. Em pouco tempo, contudo, esse interesse
tornou-se genuinamente antropológico e museológico. Em maio de 1993, então
graduando do curso de Museologia da Universidade Federal da Bahia, fui
convidado a realizar um estágio no Museu de Arqueologia e Etnologia da UFBA.
Minha tarefa era fazer a documentação museográfica da coleção xinguana
formada pelo antropólogo Pedro Agostinho, nos anos de 1966 e 1969, entre os
Kamayurá. Em meio a um conjunto de aproximadamente 180 peças xinguanas,
notei pouco mais de duas dezenas de artefatos cerâmicos repletos de desenhos
geométricos em seu exterior: eram panelas wauja. Foi a partir dessa coleção que
tracei um plano de pesquisa sobre o grafismo e a cultura material wauja, que
culminou no meu trabalho de campo no Alto Xingu no outono de 1998.
O caminho para os Wauja foi-me primeiramente apontado, em janeiro de
1994, por Vera Penteado Coelho, uma amiga que esteve entre eles nos anos de
1978 e 1980. Durante os meses que passou em Piyulaga, a aldeia wauja, Vera
Coelho desenvolveu uma aproximação muito amistosa com os índios, tendo
inclusive recebido para um período de estudos em sua casa paulistana o neto do
grande chefe de seu tempo, Malakuyawá. A outros Wauja Vera Coelho ofereceu
ajudas de diferentes sortes. Assim, antes de minha ida para Piyulaga, eu já
conhecia por nome vários Wauja, antigos colaboradores de Vera Coelho. Mas foi
só no princípio de 1996 que comecei a me preocupar com o financiamento para a
minha pesquisa de campo.
Nesse mesmo ano, fui informado sobre a cobrança de uma “taxa de
entrada” que os Wauja estavam a exigir de quem entre eles fosse pesquisar.
Como projetos acadêmicos de pesquisa não cobrem “taxas” desse tipo, apenas
um projeto museológico de coleção etnográfica poderia comportar um orçamento
que contemplasse a exigência dos Wauja e correspondesse aos meus interesses
de pesquisa. Assim, concebi um projeto de coleção para o Museu de Arqueologia
31

e Etnologia da UFBA, que pouco antes do Natal de 1997 recebeu aprovação,


facultando minha viagem a Piyulaga, no ano seguinte.
Não cheguei aos Wauja por indicações pessoais ou por qualquer outro tipo
de contato extra-oficial. Os índios nunca tinham ouvido falar o meu nome até o
dia em que a FUNAI lhes consultou sobre a autorização para o meu ingresso em
sua aldeia.
A decisão de pesquisar entre os Wauja teve originalmente as seguintes
motivações: (1) os avanços teóricos do americanismo tropical que apontam as
artes visuais e corporais como importante campo de investigação11; (2) a origem
wauja da maioria dos artefatos xinguanos recolhidos aos museus brasileiros e a
melhor documentação sobre o grafismo xinguano (Barcelos Neto, 1999a),
representada, sobretudo, pelas coleções de Pedro Lima (Museu Nacional/UFRJ),
Harald Schultz (MAE/USP), Acary Passos de Oliveira (Museu
Antropológico/UFG), Eduardo Galvão (Museu Nacional/UFRJ e Museu do
Índio/FUNAI) e Vera Penteado Coelho (coleção particular); (3) apesar de terem
contribuído para a formação dessas volumosas coleções, os Wauja eram um dos
grupos menos conhecidos na região, o que fortemente justificava uma pesquisa
de campo etnográfica entre eles, sem a qual o universo simbólico daquele
volumoso material depositado em museus jamais seria compreendido; (4)
ademais, sobre os Wauja, já estava formulada a hipótese da preponderância dos
seus antepassados arawak na formação do sistema regional xinguano12, uma
hipótese de grande relevância para o entendimento das relações interétnicas no
Alto Xingu.
Um outro aspecto importante. A etnologia xinguana tem sua origem no
programa de investigação concebido por Adolf Bastian para o Museu de
Etnologia de Berlim. Devido a minha graduação em museologia, tinha uma certa
familiaridade corn os enlaces entre a etnologia e a museologia, tanto nos planos
investigativos quanto nos planos institucionais. Mesmo sendo obsoleto na
atualidade, o plano etnológico-museológico do Dr. Bastian, do qual fazia parte
Karl von den Steinen (Schaden, 1993; Thieme, 1993), despertava-me enorme
interesse. Rica e apaixonante, a bibliografia oitocentista e do início do século
passado sobre o Alto Xingu — resultado das expedições alemãs e dos estudos

11 Conforme as contribuições de Guss (1989), Ribeiro (org. 1986); Velthem (2003), Vidal (org.
1992); Viveiros de Castro (1979), entre outros.
12 Conforme os trabalhos de Pedro Agostinho’ (1993) e Michael Heckenberger (2001a).
32

etnológicos de coleções — fornece uma entrada de honra para os estudos de


arte e cultura material13. No primeiro parágrafo de um artigo sobre as coleções
oitocentistas de máscaras xinguanas, Fritz Krause (1960) chama atenção para
uma questão que apenas recentemente vem sendo enfrentada:

As expedições alemãs às nascentes do Xingu (Karl e Wilhelm von


den Steinen, 1884 e 1887; Herrmann Meyer, 1896 e 1899; Max
Schmidt, 1901) trouxeram notícias de curiosas e gigantescas
máscaras de dança, às quais, até o presente, não se parece ter
dado muita atenção na bibliografia científica, embora durante
decénios uma dessas máscaras estivesse exposta, debaixo de uma
redoma de vidro, na seção americana do Museu Etnológico de
Berlim. Não obstante, merecem estudo científico mais acurado por
causa de sua peculiaridade, de sua exclusividade (não me consta
haver paralelos em qualquer parte da América do Sul) e de sua
ligação com o grande trocano, não menos curioso e por sua vez
limitado ao Alto-Xingu (Krause, 1960: 87).

Krause refere-se precisamente às máscaras Atujuwá (a protagonista do


ritual Apapaatai lyãu que descrevo nesta tese), e sugerindo a existência de um
sistema ritual de objetos, do qual o grande trocano faz parte. A presente
etnografia não apenas confirma a ligação observada pelos pioneiros alemães, e
relembrada por Krause mais de meio século depois, como oferece uma visão do
funcionamento e do sentido desse sistema.
Enquanto museólogo, preocupavam-me também questões propriamente
museológicas. A primeira coleção que pensei em constituir, destinada ao
MAE/UFBA14, deveria ser a base para o início de uma linha de pesquisa em
etnologia e um material para potencializar desdobramentos nas áreas de
exposição e ação cultural e educativa, como realmente ocorreu15. O projeto de
aquisição da coleção wauja propunha, portanto, uma renovação institucional nos
campos da pesquisa, ensino e extensão, os campos de atuação que
fundamentam os museus universitários.

13 Como parte desse conjunto, a obra de Karl von den Steinen merece, por si só, uma atenção
especial. O seu impressionante material sobre a arte dos marquesanos só muito recentemente foi
explorado com profundidade (Gell, 1993, 1998), e o seu material sobre a arte xinguana ainda
aguarda novos olhares, algo que reservo para os anos próximos.
14 A formação dessa coleção de artefatos da cultura material wauja foi feita em parceria com
Maria Ignez Mello.
15 Refiro-me às exposições Wauja: índios ceramistas do Xingu e A carta de Caminha e as artes
indígenas (Barcelos Neto & Athayde, 2001), de cujas curadorias participei.
33

Minha primeira viagem à aldeia wauja, Piyulaga, deu-se em fins de março


de 1998, encerrando-se em fins de maio do mesmo ano. Sobre o material
recolhido nessa etapa de campo, redigi minha dissertação de Mestrado (Barcelos
Neto, 1999b, publicada em 2002). O presente texto incorpora uma parte desse
primeiro material sob um outro enfoque teórico e no interior de uma etnografia
com preocupações sistémicas mais amplas.
A segunda fase de pesquisa de campo entre os Wauja abrangeu os meses
de fevereiro, março, junho, julho e setembro do ano 2000. Novamente, vali-me
dos recursos para a formação de uma coleção etnográfica, dessa vez para o
Museu Nacional de Etnologia de Portugal, em Lisboa. Também dei continuidade
à coleta de desenhos e pinturas sobre papel iniciadas em 1998, método que
revelou resultados valiosos16. Retornei a Piyulaga em julho de 2001 e em julho de
2002, lá permanecendo até setembro do mesmo ano. Nestas duas últimas etapas
todo o trabalho colecionista já estava encerrado. O período total em campo foi de
aproximadamente 10 meses.
Os Wauja demonstravam dedicada colaboração à pesquisa na medida em
que se sentiam bem recompensados. Disciplinados em tudo o que faziam,
raramente faltavam aos compromissos marcados, e não mediam esforços para
evitar equívocos em nossas comunicações. Respondiam com segurança às
minhas perguntas, e quando desconheciam o assunto transferiam a tarefa para
outro. As respostas poderiam, claro, estar incompletas, mas criar as
oportunidades de completá-las competia a mim.
No início da pesquisa, em 1998, trabalhei mais intensamente com o
pequeno grupo de quatro xamãs visionário-divinatórios (yakapá). Nos anos
seguintes, tive uma circulação bem menos restrita, o que permitiu atrair diferentes
colaboradores para a pesquisa. Durante quase toda a duração do trabalho de
campo, hospedei-me na casa do chefe Atamai, nas duas últimas temporadas
preferi ficar na casa onde funciona a Unidade Básica de Saúde (UBS) da aldeia,
a fim de ter uma certa privacidade para realizar minhas entrevistas, as sessões

16 Na temporada de pesquisa do ano 2000, levei papéis de maiores dimensões e materiais mais
próximos às texturas frequentemente utilizadas pelos Wauja. O resultado foi novamente
excepcional. Os pastéis a óleo proporcionam o brilho e a intensidade pictórica que tanto lhes
agradam esteticamente e também a maciez no manuseio. Uma sequência desses desenhos será
discutida no capítulo 5.
34

de desenho, e me sentir mais à vontade para trocar minhas comidas com as


outras casas. A UBS situa-se no próprio perímetro circular da aldeia lado a lado
com as casas residências.
Os Wauja gostam muito de alimentos industrializados: sopas desidratadas,
leite em pó, café solúvel, goiabada, rapadura etc. O tempo que fiquei na casa do
chefe dificultou aprofundar a intimidade com outras casas da aldeia via troca de
alimentos que eu levara da cidade, aliás, um modo muito eficiente de
aproximação. Quando aconteceram rituais Huluki intra-aldeia, tive a oportunidade
de trocar meus objetos pessoais com os Wauja, o que me permitiu estabelecer
trocas distintas da relação colaborador-pesquisador, que marca o cotidiano do
antropólogo.
Em função dos trabalhos de colecionamento, o chefe Atamai pediu que
todos me mostrassem os artefatos que eles podiam ou gostariam de vender para
a coleção. Em poucas semanas, comecei a desfrutar de uma certa liberdade para
circular pelo interior e pelo fundo das casas, onde se desenrola muito do trabalho
artesanal que me interessava. Desse modo foi fácil saber o que cada casa é
capaz de produzir e de acumular.
No Alto Xingu, os artefatos de maior valor, os quais em poucas ocasiões
estão em uso, são cuidadosamente “escondidos” nos espaços de intimidade e
privacidade das casas — cantos escuros que raramente recebem iluminação
natural. Descobrir o que esses recantos de escuridão “escondem” permitiu-me
uma boa constatação dos valores sociais da cultura material. Foi por meio do
mapeamento da “rota” desses artefatos que descobri a existência de redes de
pagamentos rituais entre os Wauja. Cada conjunto de artefatos permite
reconstruir historicamente um fragmento dessa rede.
Os Wauja tendem a direcionar a atuação dos pesquisadores para os
homens de idade madura. Na proximidade de um sénior, os homens abaixo de
30 anos (doravante jovens) evitam responder às perguntas feitas por
estrangeiros, em especial se ó assunto é sobre ritual, política, xamanismo e
decisões comunitárias. A algumas perguntas feitas por mim diziam não saber (ou
saber “só pouquinho”) a resposta ou remetiam-me aos seus ascendentes
masculinos. Quando os seniores percebiam, nas nossas conversações, que meu
conhecimento tinha se ampliado, a primeira pergunta que me dirigiam era: “Quem
te contou isso?” — talvez um modo de verificar posturas excessivas do
35

pesquisador e/ou de seus colaboradores. Apesar desta tese ser devedora dos
pontos de vista dos seniores wauja, não foi menos importante a colaboração dos
jovens. A política do saber em Piyulaga é a de evitar que os jovens demonstrem
o que sabem e ao mesmo tempo colocar a pesquisa sob a “vigilância-controle”
dos mais velhos. Se o pesquisador resolver tomar suas decisões apoiando-se
nos primeiros, certamente despertará o ciúme dos mais velhos, deixando
abertura para possíveis situações de conflito. Fiz significativos esforços para
corrigir o desequilíbrio que se impõe entre a colaboração de homens jovens e
maduros para a pesquisa, tanto porque me vali muito do conhecimento que
aqueles têm do português. Muito do estudo de roças que realizei deveu-se à
colaboração dos jovens, assim como o de vários aspectos cênicos e económicos
do ritual e de exegeses sobre a noção de doença.
O direcionamento da investigação para os rituais de máscaras não foi
traçado em gabinete; foram os desenhos dos sonhos e transes dos xamãs que
me conduziram aos apapaatai e seus papéis agentivos na vida social wauja. A
partir da segunda semana em campo, em 1998, os apapaatai desenhados
começaram a povoar os sonhos dos xamãs desenhistas, e os desenhos
produzidos a estimular novos sonhos, num processo dialético que tendia a uma
expansão impressionante, a ponto de quase esgotar o volumoso material de
desenho que levei. Quando muitos blocos de papel já estavam repletos de
desenhos, fui advertido por dois xamãs visionários (yakapá) que o excesso de
imagens por eles reveladas estava a desagradar os apapaatai, os quais poderiam
se voltar contra nós (i.e. eu e os desenhistas) em ofensivas inesperadas. Este
acontecimento foi a minha porta de entrada para o sistema moral que envolve as
relações com os seres extra-humanos e o modo como a pesquisa sobre os
desenhos foi lentamente dando lugar a um estudo sociocosmológico dos
apapaatai.
Entre os Wauja, a produção de desenhos figurativos é uma atividade com
implicações extraordinárias exatamente porque a imagem não é uma simples
representação, mas uma réplica, por isso o desenho em si já é o estabelecimento
de um contato. Ora, o contato com os seres extra-humanos é envolto de perigos,
pois eles são, a priori, agentes patológicos. As relações com os apapaatai exigem
as mesmas prerrogativas morais aplicadas às relações com os afins: evitação,
respeito, vergonha e silêncio. Apenas os desenhistas que possuem uma relação
36

privilegiada com esses seres, ou seja* os xamãs visionário-divinatórios (yakapá),


podem, sem risco, manipular suas imagens.
As coleções iconográficas que recolhi em 1998 e 2000 não teriam força
compreensiva e interpretativa se elas não se ligassem a moções formalizadas em
outros contextos à parte das sessões de desenho que promovi entre os Wauja.
Todo o conjunto iconográfico produzido pelos Wauja advém de um imenso
investimento simbólico na explicação sobre o adoecimento, este estado da
pessoa que concentra e encadeia, como veremos, as principais noções
cosmológicas.
Ao fim da primeira fase de pesquisa de campo, em maio de 1998, todos os
dados indicavam que as máscaras precedem e .estão muito além das ações
rituais que as envolvem; elas têm uma existência contínua e extensa. Como
veremos, as máscaras povoam os sonhos e transes, “escondem-se” nos cantos
escuros das casas, convertem-se em categorias sociais permanentes e
perambulam pelo fundo das lagoas, dos rios e de outros espaços do cosmo: elas
estão, enfim, por toda a parte, apesar de sua visibilidade muitas vezes restrita.
Contudo, foi apenas dois anos mais tarde, em uma segunda fase de pesquisa de
campo, que pude iniciar a comprovação dessa interpretação. Quando conclui
essa fase de pesquisa, os dados passaram a convergir para a idéia de que os
apapaatai seriam as personagens mais atuantes na economia simbólica da
alteridade wauja. Mas não só isso: é por meio de um sistema ritual, enraizado
nas performances terapêuticas que envolvem os apapaatai na forma de
máscaras e aerofones, que os Wauja (re)produzem importantes laços sociais.
Iniciei o trabalho da segunda coleção etnográfica por um levantamento dos
bens de cada uma das 17 unidades residenciais wauja a fim de reconhecer
peças, preferencialmente com sinais de uso, que pudessem ser vendidas para a
coleção. Ao fim do trabalho, notei uma série de particularidades no equipamento
doméstico ligado à produção e ao processamento da mandioca. Artefatos como
os desenterradores de mandioca, as pás de virar beiju, as panelas de dimensões
superiores a 60 cm de diâmetro — indispensáveis para cozinhar o caldo
venenoso da mandioca —, os grandes pilões para socar farinha e carne de caça
e os grandes cestos cargueiros não eram fabricados pelos moradores de várias
casas onde eram usados, mas vinham, na verdade, de outras casas, sendo
oferecidos, preponderantemente, como pagamento ritual. Esses artefatos
37

formavam um equipamento bastante articulado dos pontos de vista funcional e


organizacional. Foi importante notar que embora muitos artefatos pudessem ser
substituídos por outros feitos de metal ou plástico, os mesmos se mantinham
coesamente como um sistema, com raros lapsos.
Ao longo do levantamento, freqúentemente recebia a informação de que
tais e tais conjuntos de artefatos eram devidos aos apapaatai, ou seja, a um
estado de adoecimento pretérito e a uma performance ritual que gerava
pagamentos muito específicos, em artefatos. Assim, os grandes pilões tinham
sido feitos por Yamurikumã, as pás de beiju e os desenterradores de mandioca
por Kukuho17, os cestos cargueiros por Tankwara etc. Os artefatos formavam,
portanto, um sistema que correspondia a dois outros sistemas mais amplos: (1) o
de atributos culturais dos apapaatai, e (2) o ritual baseado nas interpretações
xamânicas sobre o adoecimento. Os artefatos são, enfim, índices de agências
patológicas que objetificam relações de aliança entre não-humanos e humanos e
destes entre si por meio da produção ritual de bens.
Certos rituais desdobram-se em um ciclo longo, envolvendo a constituição
de redes de serviços responsáveis pela produção dos artefatos. A principal
categoria social que compõe essas redes é kawoká-mona, a qual nos remete aos
processos de transformações ontológicas que se originam no “complexo” do
adoecimento. Como veremos, kawoká-mona é uma inflexão “sociocosmológica”
da categoria apapaatai. É a partir de inflexões dessa ordem que argumentarei
sobre a economia política wauja na terceira parte da tese.
A formação das coleções teve um papel decisivo na configuração desta
etnografia. A começar pela própria consolidação do tema, visto que o maior ritual
de máscaras que documentei, no qual dançaram 44 apapaatai, foi “promovido”
por meio da aquisição desses mesmos artefatos para a coleção que formei para
o Museu Nacional de Etnologia (MNE) ao longo do ano 2000. A “promoção” deste
ritual e seus desdobramentos na etnografia serão analisados nos capítulos 5 e 6.

17 Os nomes dos seres extra-humanos reconhecidos por apapaatai e yerupoho aparecem em


maiúsculo, enquanto o dos animais e plantas em minúsculo. Por exemplo: Kukuho refere-se ao
apapaatai (o “espírito”) e kukuho à larva sphingidade sp. (o “animal”).
38

O apoio que os museus oferecem aos etnólogos de campo exige quase


inevitavelmente contrapartidas como coleções de artefatos, filmes, vídeos,
compilações fonográficas etc., o que nos coloca em situações de negociações
com os índios bastante diferentes daquelas em que os trabalhos de campo não
precisam resultar em patrimónios públicos, ou seja, em materiais que são
destinados às exposições museológicas e/ou peças para o enriquecimento dos
acervos. É esse tipo de inserção em campo que passo a abordar.
Realizei esta etnografia basicamente na língua portuguesa. Considerei
mais prudente valer-me do conhecimento que meus colaboradores wauja tinham
do português, que, de longe, é muito maior do que o meu conhecimento da sua
língua. O meu pouquíssimo conhecimento da língua wauja ajudou-me aqui e ali,
mas ele não foi empregado para solucionar problemas da etnografia. Evitei que a
minha ignorância nessa língua conduzisse as interpretações para caminhos
equivocados. Todas as etimologias e traduções são dos meus colaboradores e
delas pude apenas levantar exegeses. A maior parte das narrativas foi coletada
no vernáculo e traduzida para o português pelos dois únicos Wauja que possuem
formação no Ensino Médio. Em muitas conversas vali-me de intérpretes; noutras,
do meu esforço e dos Wauja em nos entendermos mutuamente18.
A competência linguística dos nativos na língua portuguesa é
extremamente variável. Há desde indivíduos que têm competência insignificante
até aqueles que trabalharam e estudaram por alguns anos em cidades do Brasil
central, o que lhes permitiu uma considerável fluência, além de alguns
autodidatas. Muitos homens entre 20 e 35 anos foram alfabetizados, em
português e wauja, por professores não-índios19. A introdução das primeiras
letras entre os Wauja deve-se à missionária Joan Richards do Summer Institut of
Linguistics, que iniciou sua atuação em Piyulaga em meados da década de
196O20. Atualmente, o trabalho de alfabetização bilíngue segue a cargo de três

18 A minha falta de treino em linguística certamente teve um peso decisivo na orientação do meu
olhar para domínios extralingúisticos da realidade observada. Assim, análises que poderiam ser
inicialmente construídas sobre o cimento das etimologias e da sintaxe, foram unicamente
construídas sobre a observação do espaço cênico, dos regimes temporais dos rituais, das
categorias de relações, da iconografia, da etiqueta, do sistema de objetos, da alimentação etc.
19 Há, contudo, uma exceção que merece registro. Durante alguns anos da década de 1990, os
Wauja, que residiam no Posto Indígena de Vigilância (PIV) do Batovi, tiveram uma professora de
português de origem fulni-ô, esposa do filho de um dos chefes wauja.
5o Depois de Emilienne Ireland, Joan Richards é a pessoa não-indígena que mais tempo
permaneceu entre os Wauja. Desde que deixou Piyulaga, na década de 1990, a Sr3 Richards
fixou residência na cidade mato-grossense de Canarana, de onde coordena, com a colaboração
de jovens wauja, os trabalhos de tradução da Bíblia para o seu idioma.
39

professores wauja, antigos alunos da Sr3 Richards. Os Wauja abaixo de 40 anos


têm contato muito frequente com a língua portuguesa, via rádio amador, músicas
regional e popular brasileiras, televisão, trabalhos no Posto Indígena Leonardo
Villas-Bôas, cursos de formação de professores bilíngues e de agentes de saúde
indígenas, além de viagens às grandes cidades brasileiras para variados
propósitos — venda de artesanato, tratamento médico, compras, reuniões
indigenistas, negociações com a FUNAI e empresários etc. Portanto, o português
coloquial faz totalmente parte do mundo wauja, mas há uma parcela — se grande
ou pequena, não saberia precisar — desse mundo que os Wauja não sabem
explicar claramente em português, o que possivelmente deve corresponder à
sutilezas e minúcias ausentes nesta etnografia. Contudo, não sei se os Wauja
saberiam explicá-las em sua própria língua.
O relato a seguir poderá parecer técnico e administrativo, mas não haveria
como ser diferente, até porque os trabalhos de campo no novo século
expurgaram a imagem romântica e ingénua que foi conferida à pesquisa entre os
índios. Hoje, no Alto Xingu, as condições de se realizar uma etnografia estão
imediatamente circunscritas às preocupações dos índios em torno de questões
político-administrativas que envolvem cada aldeia no âmbito do Parque Indígena
do Xingu (PIX)21, como a obtenção de recursos para fiscalizar fronteiras,
elaboração e desenvolvimento de projetos de auto-sustentabilidade, turismo,
formação de recursos humanos para as áreas de educação e saúde, manutenção
de equipamentos, venda de artesanato etc.
As formas desejadas de envolvimento dos antropólogos com essas
questões, que são basicamente de ordem material, variam de aldeia para aldeia;
os Wauja as deixam muito claras nas negociações que antecedem a permissão
oficial para o trabalho de campo antropológico. O ingresso para pesquisa na
aldeia wauja é vinculado ao pagamento de uma “taxa de entrada” do
pesquisador, que deve ser preferencialmente paga em dinheiro. Exige-se que o
montante em dinheiro seja equivalente ou corresponda a grande parte do valor
de motores, veículos ou equipamentos. Com essas condições para o ingresso em
Piyulaga, são necessários projetos, cujas regras de aplicação de recursos

21 O PIX é uma unidade administrativa da FUNAI com quadros técnicos formados por índios e
não-índios; o PIX é assistido pela Associação Terras Indígenas do Xingu (ATIX), pelo Instituto
Socioambiental (ISA) e pelo Distrito Sanitário Especial Indígena Xingu, por meio de convénio
entre Fundação Nacional de Saúde a Escola Paulista de Medicina.
40

diferenciem-se dos padrões de financiamento de trabalho de campo


antropológico pelas agências estatais de fomento à pesquisa.
O financiamento de projetos de pesquisa por instituições distintas das
agências estatais, como museus, comissões comemorativas, ministérios e
institutos culturais, impõe regras que contrariam os modos “clássicos” e mais
“recomendados” pela academia para se fazer trabalhos de campo. Essas
instituições operam com prazos curtos (usualmente 12 meses), com dotações
que devem ser gastas rapidamente, em parcelas bi ou trimestrais, e esperam
resultados com a mesma rapidez, caso contrário, as parcelas não são
repassadas. Foram nessas condições que consegui financiamentos para realizar
meus trabalhos de campo em 1998 e 2000. Em consequência disso, minhas
estadas em campo foram fragmentadas em vários períodos de dois meses, o que
impossibilitou assegurar a continuidade de longo prazo necessária para o
aprendizado da língua.
Estudar a língua wauja antes de ir ao campo também não foi possível
devido à inexistência de material tutorial para se iniciar o seu aprendizado.
Ademais, eu não estava em campo apenas para me dedicar à pesquisa
etnológica. Os projetos museológicos, que garantiram o pagamento das “taxas de
entrada” cobradas pelos Wauja, demandaram uma dedicação especial. Assim, o
tempo tinha que ser equilibrado entre coletar dados específicos para a pesquisa,
negociar a compra e pagamento de artefatos, fotografá-los, documentá-los, e até
mesmo mediar as oposições pessoais e faccionais em torno do destino dos
pagamentos para a aquisição de bens de uso coletivo.
O trabalho de campo descontínuo foi necessário para garantir a formação
das coleções e o próprio financiamento da pesquisa22. Tal descontinuidade não
se revelou necessariamente desvantajosa. De outro modo, não poderia ter
retornado em anos sucessivos ou alternados, o que me permitiu notar aspectos
dos extensos ciclos rituais que se realizam exatamente de modo descontínuo.
Mas, afinal, o que é completamente contínuo em uma etnografia?

22 As peças originais selecionadas para as coleções precisavam ser retiradas de uso para que
não sofressem desgastes, danos ou fossem destruídas. Devido à dimensão da segunda coleção
e às necessidades específicas do Museu Nacional de Etnologia era impossível transportá-la de
uma só vez, exceto se o projeto tivesse recursos suficientes para pagar um avião cargueiro, o que
não era o caso. Foram necessárias três viagens — uma em fevereiro, outra em junho e a última
em setembro — para que toda a coleção fosse documentada, embalada e transportada com
segurança até o seu destino.
41

Os Wauja têm uma grande expectativa de que os pesquisadores os


M
ajudem”; essas ajudas podem também ser lidas como “pagamentos”. Se a
pesquisa não é capaz de converter-se em nenhuma forma de “promoção”
económica, ela é associada à inutilidade ou à exploração. Para que uma
pesquisa prossiga é fundamental que a mesma alimente de maneira concreta e
continuada tal “promoção”, a começar pela oferta de “presentes” individuais. Em
médio prazo os custos tornam-se altos para o pesquisador23. Sem tais
“presentes”, a pesquisa praticamente se inviabiliza, pois os colaboradores
esperam ser presenteados individualmente no decurso de toda a pesquisa.
Mesmo efetuando os pagamentos à comunidade e aos colaboradores, paira a
idéia mais ou menos difusa de que o pesquisador é um “explorador”, de que ele
“rouba” a cultura para vendê-la alhures. A relação entre o pesquisador e os wauja
passa, então, a objetivar a “cultura” como “mercadoria”, deste modo um conjunto
de mitos e canções pode custar uma certa quantia em Reais; tantos desenhos,
uma bicicleta ou um equipamento completo de mergulho. Assim, cada “item”
informativo para a pesquisa tem seu preço em uma determinada conjuntura.
Recusar a pagar apenas confirma a idéia de exploração e a reputação de
uma moralidade branca marcada pela mesquinharia. Como os Wauja não se
“deixam explorar”, o preço cobrado é a censura, que pode ser velada ou aberta.
Preferível se for aberta, pois pelo menos se pode ter a clareza dos limites da
investigação. Ora, toda pesquisa é, em alguma medida, censurada. A obtenção
de “dados completos” é uma ilusão. Mesmo em um recorte temático preciso,
perdem-se de vista os dados possíveis. A censura dos índios não é algo
exatamente negativo ou positivo para a pesquisa, ela é uma variável fora de
controle, oscila conforme as vicissitudes dos conflitos, da segurança e do bem-
estar do antropólogo entre os índios. O dilema que envolve o pesquisador é não
romper a censura, para evitar ser tomado como persona non grata pelos índios,
ou rompê-la, a fim de (ilusoriamente) enriquecer seus dados. Refutei criar uma
postura de trabalho que tangenciasse o claro conhecimento e a aprovação dos
chefes, tudo o que fiz foi explicitado publicamente e discutido quase que dia-a-dia
com o meu anfitrião, o chefe Atamai. Optei em não forçar a abordagem detalhada
de assuntos que desagradam os Wauja — feitiçaria, execução de feiticeiros,

23 Lembro que as alíneas orçamentarias das agências estatais de fomento à pesquisa (CNPq,
FAPESP, Pró-Reitorias de Pesquisa e de Pós-Graduação) não permitem gastos com presentes
para os índios, mas as instituições com as quais trabalhei, sim.
42

exílios e disputas “faccionais” —, mesmo sabendo que estes assuntos são


importantes para o entendimento do processo de formação das redes de serviços
rituais e da economia política wauja.
Não pretendo comparar os modos de inserção do pesquisador em
diferentes áreas etnográficas do Brasil para explicar o que se passa no Alto
Xingu, nem quero dizer que trabalhei em uma ilha de peculiaridades e posturas
excêntricas. Também não cabe aqui fazer as exegeses da política indigenista
oficial no PIX para precisar em que grau elas interferem nas negociações para a
pesquisa.
A pesquisa etnológica no PIX acontece em meio a um número variado de
agentes — médicos, enfermeiros e auxiliares de enfermagem, professores,
assessores de ONGs, jornalistas, cineastas, turistas, compradores de artesanato,
políticos em campanha eleitoral ou não, empresários etc. — que disputam
posições na hierarquia simbólica das relações com os xinguanos. Sobre os seus
períodos no PIX, em 1976 e 1977, Viveiros de Castro faz um relato interessante
sobre as pessoas que visitam o Parque:

Os jornalistas e cineastas têm posição ambígua: muitas vezes


desprezados por seu enfoque “turístico”, possuem um poder de
barganha, e uma importância indireta, que os coloca “no alto” (de
uma hierarquia simbólica). (...) Há casos mais curiosos, como o dos
embaixadores e senadores que eventualmente desembarcam no
Posto. Unanimemente desprezados — “o que é que eles vêm fazer
aqui?” — possuem um poder de fato que confunde as coisas (1977:
7).

JJ
Essa “confusão” parece já ter sido superada pelos xinguanos, e o
funcionamento do “poder de fato”, bem entendido. Um caso recente pode ilustrar
melhor um pouco das muitas mudanças ocorridas no Alto Xingu nos últimos 25
anos, mas que já eram embrionárias desde a década de 1970. Em outubro de
2003, o governador do Estado de Mato Grosso montou um gabinete itinerante de
governo, e o instalou por alguns dias no PIX, mais precisamente no Posto
Indígena Leonardo Villas-Bôas, a 22 km da aldeia wauja. Meses antes, alguns
chefes xinguanos haviam visitado o governador em Cuiabá e o convidaram a
conhecer o Parque. O contexto em que se realiza, hoje, a pesquisa de campo no
Alto Xingu é fortemente marcado pela explícita abertura dos chefes xinguanos
43

aos altos setores do Governo, tidos por aqueles como os mais capazes de
“ajudar”.
Em meio a tudo isso, sabe-se que os xinguanos (os Wauja pelo menos)
incorporam os antropólogos ao conjunto desses agentes como aqueles com um
médio ou baixo potencial de “ajudar”. A pesquisa antropológica em si não é,
nesse contexto, tida como algo necessário. Motor de barco, rádio amador, placa
solar, sim. Se o antropólogo for capaz de prover os Wauja com esses bens, então
a sua antropologia poderá ganhar terreno. O problema é que a mediação da
pesquisa por meios monetários tem implicações práticas nas relações com os
Wauja, pois para eles quanto menor for a capacidade do antropólogo de “ajudar”,
menores são as suas possibilidades de permanecer em campo. No meu caso,
sem os Museus, essa “ajuda” teria sido impossível.
Enfim, esta etnografia é baseada em um trabalho de campo pouco
ortodoxo sob a perspectiva de muitos acadêmicos — sem proficiência no idioma
nativo, dividido em vários períodos curtos, irrelutante diante de determinadas
censuras dos Wauja, e mesclado com dois grandes projetos museológicos. Este
relato não tem o intuito de servir de justificativa para eventuais falhas na
etnografia ou de fazer julgamentos, e sim de deixar claro ao leitor as condições
em que o seu desenvolvimento foi circunscrito.
Vamos agora ao encontro dos apapaatai.
44

Parte I

ARTE E PATOLOGIA
45

2
FRAGMENTOS DE COSMOLOGIA WAUJA

O fato teve lugar em um hospital de Brasília, há mais ou menos 14 anos.


Depois de acordar de um sono conturbado, Atamai, atual chefe wauja,
convalescido em seu leito, diz a sua filha, Kamihã, que pessoas desconhecidas
estavam a lhe oferecer cuias cheias de sangue para que ele bebesse. Atamai
tinha certeza de que essas pessoas eram apapaatai.
A despeito de todo esforço dos médicos para curá-lo de uma grave
infecção nos olhos, Atamai não mostrava resposta satisfatória. Inesperadamente,
numa noite, Atamai foi acometido por intensa e contínua dor, que, conforme suas
próprias palavras, o “mataram”, ou seja, colocaram-no em um estado
inconsciente ou, talvez, semi-consciente. Na manhã seguinte, sua filha transmitiu,
via rádio, para a aldeia wauja, a notícia de que Atamai estava “morto”. A notícia
foi recebida por sua filha mais velha, Atsule, que imediatamente apressou-se em
contratar um xamã para descobrir quem estava a causar tamanho mal a Atamai.
Assim, desde Piyulaga, a aldeia wauja, várias sessões xamânicas foram feitas a
fim de recuperar a saúde do “morto”. Horas mais tarde, Atamai acorda e diz para
Kamihã que algumas pessoas tinham lhe visitado, porém, dessa vez, não lhe
deram cuias de sangue, apenas chegaram sorridentes e conversaram com ele, e
então complementou: “agora me sinto melhor, mas ainda não enxergo bem”.
Contudo, seu relativo bem-estar não perdurou. Dias mais tarde, Atamai voltou a
“morrer”. Na oportunidade de uma breve recuperação, Atamai comunica sua
urgente decisão a Kamihã:

— filha, os médicos não vão me curar, isso que eu tenho é


“doença de índio”, eu quero voltar para a aldeia, para que teus tios
cuidem de mim. Meu genro (marido de Kamihã) tem que autorizar
uma aeronave para me levar de volta24.

24 Todas as narrativas foram traduzidas ao português por jovens wauja alfabetizados. Em sua
revisão, as traduções foram submetidas a intervenções editoriais nos níveis fonético, morfológico
e sintático, especialmente no que se refere à concordância de gênero e número. Ademais, termos
correntes como “as irmãozada”, “as genrozada”, “as tiozada” foram substituídos por os irmãos, os
genros e os tios, respectivamente. Portanto, o “português wauja” é muito pouco visível nesta
edição.
46

“Doença de índio”? Esta é uma das principais chaves conceituais para esta
etnografia. Por “doença de índio”, Atamai simplesmente queria dizer que ele
estava com apapaatai, e que a ciência para “livrá-lo” dos mesmos era dominada
por xamãs, e não por médicos. Por trás desse breve diálogo há um esboço da
cosmologia wauja. O princípio fundamental já está posto aí: que a doença é uma
relação e que os apapaatai são um padrão que conecta relações (Gell, 1998).
Vejamos um pouco mais sobre o desenvolvimento desta história.

Quando meu tio (Atamai) chegou na aldeia, Pakairu (sua


esposa) levou uma kamalupo (panela grande usada em
pagamentos rituais e xamânicos) e um colar bem grosso de
miçangas para o meu irmão, Ulepe.
— “Primo, você pode ver meu marido? Seus olhos estão
doendo de novo. Ele sonha que está comendo carne de anta, de
tamanduá, de veado. Ele diz que alguém está trazendo comida e
cuia cheia de sangue de animal para ele beber.”
Aí Ulepe fumou muito e começou a ver Tankwara. Ele estava
vendo Atamai junto com Tankwara. Os outros apapaatai que
Itsautaku (um importante xamã wauja) viu, Ulepe também viu.
— “São as Tankwara Yanumaka nãu (i.e. Onças clarinetistas)
que estão fazendo mal para o teu marido. Atujuwá que está com ele
é Onça também. É Onça que está dando sangue para ele beber.”

Muito do meu tempo em campo foi dedicado a entender esse universo de


seres não-humanos com capacidades patogênicas e de interação humana com
os doentes graves. Mas afinal, quem são os apapaatai? Que Onça era essa que
dava sangue para Atamai beber?
Apapaatai é certamente uma das categorias mais complexas e
fundamentais do pensamento wauja. Todos os antropólogos que pesquisaram
entre os Wauja depararam-se com ela, não apenas porque, no campo, a mesma
soe frequentemente aos nossos ouvidos, mas sobretudo porque é por meio da
categoria apapaatai que os Wauja articulam conceitualmente continuidades e
descontinuidades ontológicas entre humanos, animais, monstros, xamãs e
“espíritos”.
Embora vários xinguanistas veteranos tenham feito referências à categoria
apapaatai (Schultz, 1965; Coelho, 1988; Fénelon Costa, 1988; Gregor, 1977;
Ireland, 1985) e a suas “versões” carib-xinguana — itseke (Basso, 1973;
Carneiro, 1977) — e kamayurá — mamaé (Agostinho, 1974; Menezes Bastos,
47

1978; Samain, 1991)—, pouco se explorou de suas potencialidades analíticas.


Foi o boom de novas etnografias a partir da década de 1980, muitas das quais
influenciadas pelo impacto que tiveram as Mitológicas de Lévi-Strauss, que
possibilitou a emergência de um modelo mais ou menos “genérico” de
interpretação das sociocosmologias amazônicas, cujo rótulo de referência foi
cunhado como “economia simbólica da alteridade” (Viveiros de Castro, 1996b).
Esse modelo permitiu a categoria apapaatai sair de seus longos anos de
hibernação.
Viveiros de Castro (1977, 2002c) foi o primeiro etnólogo a lançar uma
visada mais profunda sobre os apapalutápa (como são chamados os apapaatai
entre os Yawalapíti) e a descrevê-los como parte de um sistema de
transformações contínuo-gradativas. O material yawalapíti foi especialmente
relevante para a formulação que mais tarde Viveiros de Castro (1996, 2002a)
veio a fazer sobre o perspectivismo ameríndio. Os apapalutápa tiveram aí um
papel importante, embora este tenha se tornado mais explícito em sua recente
revisão da cosmologia yawalapíti (Viveiros de Castro, 2002c). A categoria
apapalutápa (apapaatai), como permite entrever esse etnólogo, instaura um
problema teórico para além da dualidade entre Natureza e Cultura, remetendo-o
para um terceiro domínio ontológico, a Sobrenatureza25. Assim o autor conclui
seu argumento:

Cada um destes três domínios pode ser entendido como uma


perspectiva que neutraliza a posição entre os dois restantes: do
ponto de vista dos espíritos, humanos e animais se assemelham; do
ponto de vista dos humanos, espíritos e animais comungam
aspectos essenciais; do ponto de vista dos animais, humanos e
espíritos quiçá sejam a mesma coisa. Há portanto, talvez,
dualidade; mas ela seria apenas a redução de uma estrutura mais
rica (Viveiros de Castro, 2002c: 85).

A fim de precisar um pouco mais a Sobrenatureza no contexto xinguano


tomemos uma outra afirmação do mesmo autor:

25 Conforme discute Viveiros de Castro, a categoria Sobrenatureza permite definir uma terceira
categoria de seres da cosmologia xinguana — os espíritos, “que (aliás) não são nem humanos
nem animais”, não cabendo, portanto, segundo a categorização êmica, na díade Natureza/Cultura
— e “designar um contexto relacional específico e uma qualidade fenomenológica própria, distinta
tanto da intersubjetividade característica do mundo social (humano) como das relações
‘interobjetivas’ com os corpos animais” (2002a: 396). É, portanto, nestes sentidos que a categoria
sobrenatureza é empregada neste texto.
48

0 que chamamos de sobrenatural refere-se, para os Yawalapíti, ao


domínio de criação da ordem: os arquétipos dos seres e eventos do
mundo atual. Mas isto que cria a ordem, escapa a ela: a prototipia é
o excesso, o modelo se cria num fluxo, e a perfeição se encontra
com a monstruosidade (Viveiros de Castro, 1978: 164, grifos meus).

Uma das dimensões do excesso é precisamente o extraordinário poder


patogênico/terapêutico dos seres sobrenaturais, o qual é envolvido por um fluxo
de predação/produção que pulsa entre a fealdade/dor e a beleza/prazer. A
fealdade/dor, neste contexto, é muitas vezes expressa nas exegeses como um
efeito da entrada de substâncias patogênicas dos seres sobrenaturais no círculo
de malefícios manipulado por feiticeiros humanos: os artífices supremos do feio e
da morte. Já a beleza é o resultado do uso correto dos meios que os seres
sobrenaturais oferecem aos humanos para superarem a doença e evitarem a
morte. Meus dados wauja apenas divergem da interpretação de Viveiros de
Castro quanto à idéia da perfeição se situar no domínio da monstruosidade. O
que parece haver é um desequilíbrio de poderes entre a humanidade e as outras
formas de vida — Animais, Plantas, Fenômenos Naturais, seres míticos etc. O
esforço wauja é voltado para o controle do perigo que esse desequilíbrio funda, e
não para a sua superação. Os mitos wauja mostram que a perfeição está
distribuída entre todas as séries de seres. Assim, um determinado Animal pode
ter a reza perfeita para curar hemorragias, mas ele pode ser incestuoso, o que,
por contraste, faz dele um ser imperfeito do ponto de vista das relações de
parentesco. Seres como a Onça e o Fogo são grandes flautistas, porém eles são
tão agressivos e egoístas que fogem do ideal xinguano de autocontrole e
altruísmo. É claro que ser um exímio flautista é também um ideal wauja, mas
nesse sentido o que se almeja é apenas a capacidade musical das Onças:
nenhum Wauja almeja ser Onça. Portanto, há traços de perfeição e imperfeição
em todos os domínios ao mesmo tempo. Vale ressaltar que os regimes de
transformações podem deslocar muitas dessas disposições de perfeição e
imperfeição.
Em trabalhos anteriores, expus análises preliminares sobre os apapaatai
(Barcelos Neto, 2000, 2001, 2002), tendo a iconografia como foco fundamental.
Ainda há muito a ser dito sobre os apapaatai. Seus usos conceituais certamente
merecem abordagens distintas da que ofereço aqui. O próprio método de coleta
PRANCHA 1

Figura 1 - Neste desenho, Aulahu faz uma comparação entre um yerupoho Wejeje (Sapo) e um
wauja (humano). Embora o Sapo seja antropomorfo, nota-se claramente que seu corpo guarda
características anfíbias, como a língua e os dedos das mãos e dos pés. Este Sapo raptou a alma de
Aulahu anos atrás, causando-lhe uma grave doença. O desenho retrata o passeio-rapto de Aulahu
com o Sapo. O passeio-rapto corresponde a uma lenta Animalização da pessoa raptada. A reversão
desse processo é garantida pelos yakapá, os xamãs visionário-divinatórios wauja. Graças a
intervenções xamânicas e rituais esse Sapo tornou-se kawoká (“espírito protetor'’) de Aulahu. Autor:
Aulahu, 2000.

Figura 2 - Duas formas do peixe-pato (talapi). À esquerda a forma “roupa” (apapaatai), com
enormes esporões e flechas a evidenciar o seu poder patogênico/letal. À direita a forma peixe,
animal consumível, ser de natureza mona (“ordinária”), sem poderes sobrenaturais. Ambos são
transformações de um mesmo “princípio” Animal (antropomorfo), existente no mundo antes do
surgimento dos humanos. Autor: Kamo, 1998.
49

dos dados, fortemente pautado na formação de coleções etnográficas e


iconográficas e nas exegeses de xamãs visionário-divinatórios (yakapá), molda
uma parte_expressiva das análises. A iconografia permite expor uma face da
ontologia wauja. Caso tivesse trabalhado diretamente com as categorias
linguísticas, certamente outra face nos seria exposta. Contudo, nenhuma delas
poderia nos dar uma suposta totalidade. Esta análise pretende atingir questões
»
específicas e, quando oportuno, aproximá-las às teorias etnológicas atuais sobre
as ontologias amazônicas.
O presente capítulo e os outros quatro que o seguem procuram
demonstrar alguns aspectos da natureza sociocosmológica da pessoa não-
humana. Optei por privilegiar um eixo analítico-descritivo que nos conduzisse ao
ritual, mas ele não seria alcançado sem uma descrição básica da metafísica
wauja. Portanto, neste capítulo, apresenta-se apenas o material necessário que
permitirá entender como o universo de imaginação conceituai assume um foro
ritual e sociológico discreto.

2.1
O NASCIMENTO DO SOL E DA LUA

Antes da humanidade só existiam Kwamutõ e os yerupoho (figura 1). Os


putáka (xinguanos), os kajaopa (brancos) e os muteitsi (índios “bravos” ou “os
outros” índios) surgiram depois: são criação de Kamo (Sol), o neto de Kwamutõ.
Kwamutõ era um velho solitário, filho da união entre o Morcego e a Jatobá.
Um dia, Kwamutõ foi ao mato em busca de corda para seu arco e deparou-se
com Onça (Yanumaka), um yerupoho25, cujo corpo era de “gente” (íyãu), mas
algumas partes menores “eram de onça27 mesmo”, como as orelhas, os dentes, o
nariz, os olhos e as unhas; Onça era zooantropomorfa.

26 Os Wauja traduzem yerupoho por “povo antigo” (vide figura 1). Não tenho como fazer uma
etimologia do termo, apenas sei que poho pode ser diretamente traduzido por povo, grupo social.
Assim, Yawalapoho são os Yawalapiti; Kupatopoho, o povo-peixe; Yanumakapoho, o povo-onça.
27 As grafias maiúscula e minúscula empregadas nos nomes dos seres não-humanos dizem
respeito à distinção entre pessoas-animais (doravante Animal) e animais-animais (doravante
animal) e entre pessoas-plantas (doravante Plantas) e plantas-plantas (doravante planta). Assim,
“onça” corresponde ao animal da espécie Panthera onça, enquanto “Onça” a uma pessoa-onça
(Yanumaka). Os nomes dos objetos que estão mais próximos da prototipia são também grafados
50

Inadvertidamente, Kwamutõ havia adentrado o domínio territorial da Fera,


que lhe ameaçou matar. A fim de se livrar da morte, Kwamutõ ofereceu suas
filhas em casamento a Onça. Neste ponto, há duas versões divergentes: uma
delas diz que Kwamutõ volta para casa e informa a suas filhas “originais” que
elas deveriam partir rumo a aldeia da Onça para contraírem matrimónio com ele.
A outra versão afirma que Kwamutõ, sendo solteiro, não tinha filhas “originais”.
Assim, a pressão da Onça levou-o a conceber suas filhas a partir de troncos de
uma árvore usada para fazer as efígies dos mortos no ritual pós-funerário
Kaumai. Portanto, uma das versões afirma que Kwamutõ teria astutamente
blefado em seu encontro com Onça. De toda sorte, Kwamutõ cumpriu o acordo e
mandou suas filhas ao encontro de seu futuro marido. Das cinco mulheres que
Kwamutõ criou, apenas duas chegaram ao destino, as outras três morreram no
caminho.
As filhas de Kwamutõ foram o protótipo do que veio mais tarde a ser o
corpo humano. Antes mesmo de partirem em sua viagem, elas já eram
consideradas bonitas, famosas e sexualmente desejadas por vários Animais da
floresta. Elas eram uma novidade, uma beleza.
Uma delas, Atanakumalu — de ata (madeira) + kumalu (fem. de kumã'.
extraordinário, sobrenatural) — ficou grávida de Onça, mas foi morta pela sogra-
Onça nos primeiros meses de gravidez. O corpo de Atanakumalu foi jogado no
mato pela sogra. Tempos mais tarde, Kwamutõ soube do ocorrido e mandou
Metsukuto, uma Formiguinha, entrar pela vagina de Atanakumalu para ver se o
feto ainda estava vivo. Ajudada por uma reza de Kwamutõ, Metsukuto retirou dois
meninos do útero de Atanakumalu. Primeiro nasceu Kamo (Sol), depois Kejo
(Lua). Os gêmeos foram levados para o interior da casa de Onça e escondidos
dentro de um cesto, onde passaram sua brevíssima infância, sob os cuidados da
irmã da sua mãe. Kamo e Kejo (doravante Gêmeos) desenvolveram-se muito
rapidamente, e, em poucos dias, já eram capazes de andar e falar; eles
abandonaram o cesto e foram a procura de seu avô, Kwamutõ.
Inconsoláveis com o assassinato de sua mãe, Kamo e Kejo perguntaram
ao seu avô, que é um dos xamãs prototípicos, como eles poderiam trazê-la de

em maiúsculo (e.g. Tankwara, o clarinete; Kawoká, a flauta de madeira; Sapukuyawá, um tipo de


máscara vestida por todas as ordens Animais, por Fenômenos Naturais e por Plantas). Essa
distinção ficará mais clara na medida em que forem discutidas as propriedades transformativas
dos yerupoho e apapaatai.
51

volta. Kwamutõ advertiu-lhes sobre a impossibilidade da ressureição de


Atanakumalu, e que eles apenas poderiam se lembrar dela por meio de uma
festa em sua homenagem. Assim, Kamo, que é o Gêmeo mais inteligente e
astuto, inventou o Kaumai, que é atualmente o ritual inter-aldeão celebrado em
homenagem aos amunaw recém-falecidos.
Para o Kaumai de Atanakumalu, celebrado na aldeia de Onça, foram
convidados vários povos Peixe e os povos Ariranha (Ewejo e Awajakanif8. No
Kaumai, teve lugar uma luta, idéia de Kamo para recepcionar os convidados.
Rapidamente, a festa transformou-se numa chacina, Kamo tentou exterminar
todos os convidados, demonstrando de modo explícito o seu ódio pelos yerupoho
em geral, inclusive pelos Felinos (Onças Pintadas, Pardas e Pretas e
Jaguatiricas, os sobrinhos de seu pai) que muito sofreram nas lutas contra certos
Peixes. A essa altura, os humanos ainda não existiam. Os sentimentos de ciúme
e ódio que Kamo tinha pelos yerupoho ensejaram sua vontade de transformar
profundamente o mundo existente e de criar formas de vida distintas das que
existiam.

2.2
A CRIAÇÃO DOS HUMANOS

No centro do mundo, o Mojená, local mais sagrado da geocósmica


xinguana, ponto de confluência dos rios Kuluene, Ronuro e Batovi, Kamo criou os
humanos a partir de arcos de madeira e de flechas de taquara, que, atualmente,
correspondem aos amunaw, (“nobresVchefes) e aos não-amunaw,
respectivamente. Kamo colocou em pé uma longuíssima fileira de flechas
separadas, em intervalos mais ou menos iguais, por arcos em igual posição.
Cada sequência de flechas, separada por um arco, corresponde a um povo: os
Wauja, os Mehinako, os Terena, os Kuikuro, os Kayapó, os Guarani, os
americanos, os brasileiros etc.

28 Pteronura brasiliensis e Lutra paranaensis, respectivamente.


29 Sobre a noção wauja de amunaw vide a seção 6.3 do sexto capítulo.
52

Hierarquia foi a primeira distinção que Kamo criou no interior de cada


grupo humano. A distinção seguinte foi no campo da linguagem, Kamo atribuiu
uma língua diferente para cada povo, passando finalmente para a oferta de vários
objetos tecnológicos sobre os quais os povos deveriam fazer uma escolha30. Os
yerupoho e apapaatai, por sua vez, entendem e falam todas as línguas
existentes, o que torna a língua um dispositivo muito pouco saliente na percepção
das diferenças interseriais, i.e. entre humanos e não-humanos.
Assim, por meio das ações de Kamo, hierarquia — para diferenciar
indivíduos no interior de um determinado grupo —, língua e tecnologia — para
diferenciar grupos entre si — tornaram-se os traços fundamentais da economia
simbólica da alteridade na série dos humanos.
Dentre os três traços fundamentais, apenas a hierarquia é um valor
igualmente aplicável a todos os grupos de seres, contudo a mesma não é
determinante da percepção mais ampla da alteridade, esta seguramente
reservada para a tecnologia.

Quadro 1
Princípios da diferença entre as séries humana e não-humana

Série humana Domínios Princípios básicos da diferença


Nível “mínimo” Interior Hierarquia (amunaw vs. rãa-amunaw)
de alteridade sociopolítico Ungua e
xinguano Tecnologia

Exterior Ungua e
sociocultural Tecnologia

progressão da diferença

Série não-humana Exterior Corpo,


Nível “máximo” sociológico Tecnologia
de alteridade e Ungua

30 Na década de 1960, a espingarda era a metonímia da escolha tecnológica dos brancos


(Agostinho, 1974: 19-22). Atualmente, com a ampliação do conhecimento indígena sobre a
sociedade tecnológica ocidental e sobre as diferenças entre os brancos, o rol de artefatos
oferecidos no passado mítico ampliou-se. Assim, os americanos teriam escolhido também naves
espaciais e mísseis, e os paraguaios, objetos malu (falsos, imprestáveis, ineficazes, incapazes,
ilegítimos), como relógios e pilhas que funcionam mal ou que estragam logo.
53

Os ethos da agressividade e do pacifismo, por exemplo, estão diretamente


ligados a escolhas tecnológicas ocorridas no passado mítico. Os Wauja se dizem
pacíficos porque escolheram a panela. Os Kamayurá são “meio” agressivos
porque escolheram o arco, os Kayapó, por sua vez, são “mais” agressivos do que
os Kamayurá porque escolheram a borduna, e os brancos são “mais” agressivos
do que todos os índios porque escolheram a espingarda.
Se a visão do interior do socius é moldada pela hierarquia (para a qual
estão incluídas as diferenças de gênero), a do exterior é moldada pela tecnologia,
esta última visão estendendo-se inclusive para a série não-humana. Embora não
possuam fogo e agricultura, os apapaatai e yerupoho são altamente tecnológicos.
Suas “roupas” (na/), frequentemente descritas como aviões supersónicos,
helicópteros, submarinos e outros equipamentos do gênero, fazem parte de um
imaginário de um super poder xamânico. Contudo, do ponto de vista dos
humanos não é a tecnologia o princípio fundamental da diferença entre humanos
e não-humanos, mas o corpo. Assim, se a hierarquia é o princípio básico para
conceitualizar a diferença no interior das séries humana e não-humana, o corpo é
o princípio central da diferenciação entre elas.

2.3
Um princípio patogênico

A raiz da diferença centrada no corpo remonta ao tempo de Kwamutõ, e


está repleta de pequenos detalhes aparentemente sem importância e de rara
menção nos mitos. Um desses detalhes — ao qual tive acesso pela iconografia
— diz respeito à ausência de umbigo (aitsa-katukunatopai) nos yerupoho e em
Kwamutõ. Isso implica que a formação do corpo desses seres não foi (ou é)
submetida aos mesmos processos que correspondem à formação do corpo
humano, pois não são frutos de uma gestação, a qual envolve o fazimento
completo do corpo dentro de uma placenta.
Os sem umbigo são considerados pukaká, ou seja, aqueles para os quais
não se pode remontar a sua origem a genitores de qualquer tipo, ou aquele que
“cresceu” sozinho. Tal inexistência de genitores é semantizada pela ausência de
54

umbigo. Mas qual a implicação disso? O que os Wauja querem dizer é que um
corpo sem umbigo não foi feito conforme os mesmos processos e/ou substâncias
que são feitos os corpos wauja: prolongada acumulação de esperma, misturado
de alguma quantidade de sangue materno, no interior de uma placenta31. Os
yerupoho, Kwamutõ e os Gêmeos podem fazer corpos sem a necessidade de
cópula e de placenta: eles transformam substâncias em corpos. Mas não é só
nos modos de fabricação que eles diferem dos humanos, a natureza das
substâncias que eles usam também difere. Do que são feitos então os corpos dos
não-humanos? As substâncias que compõem o corpo de Kwamutõ é uma
preocupação ausente das exegeses wauja, mas as que originaram os yerupoho
são objetos de elaborações bastante detalhadas.
Em primeiro lugar, é importante dizer que a categoria yerupoho (figura 1)
abrange seres de atributos muito diversificados, alguns são unicamente
antropomorfos, outros, zooantropomorfos, alguns são inteligentíssimos e
destemidos, outros débeis e medrosos, alguns são grandes chefes, outros,
grandes músicos, dançarinos, pintores etc. O que a maioria dos yerupoho tem em
comum é alguma potência xamânica, manifestada de modo bastante desigual
entre eles. É por meio da sua potência xamânica que os yeruhopo entram em
contato com os humanos, raptam as almas destes e “negociam” a sua devolução
com os xamãs humanos.
Xamanismo e sexo contínuo (leia-se reprodução biológica) são atividades
absolutamente incompatíveis, cuja consequência se nota na aversão que a
maioria yerupoho têm ao sexo e ao seu cheiro. Tal aversão tem implicações nas
formas reprodutivas dos corpos, que, entre os yerupoho, não se dão apenas por
meio da cópula-gravidez-parto. Os yerupoho “mais” xamânicos não se
reproduzem “biologicamente”, em geral eles fazem bonecos que depois de
rezados-soprados32 tornam-se seus filhos.

31 Vide Viveiros de Castro (2002c) para uma discussão sobre a teoria xinguana da concepção.
Segundo os Wauja, a placenta não é uma parte do corpo do bebê, uma visão inversa à dos Piro,
conforme a descrição de Gow (1999). A placenta é o yamukutai onaT, literalmente o recipiente que
contém o bebê.
32 Ejekepei é o verbo que se refere à ação de soprar (tabaco, por exemplo), rezar (soprar
palavras) e tocar um instrumento de sopro (nejekepei tankwara\ estou a tocar clarinete). Como
ação xamânica, o soprar-rezar não somente dá vida aos corpos, como também restaura as almas
que lhe foram raptadas. A sequência terapêutica rezar-soprar é marcada respectivamente pelos
rituais Pukay (de cantos com maracá) e Manapatuwatapai Apapaatai (distribuição de mingau e
tabaco seguida de visitação ao doente). Voltaremos a este assunto no capítulo 4.
55

Há várias substâncias que podem ser usadas para formar um corpo: o das
panelas cantoras que acompanham a grande cobra Kamalu Hai, por exemplo, foi
modelado (criado) com as fezes da própria cobra, sendo assim até hoje; o barro
que os Wauja retiram dos depósitos aluvionais são fezes deixadas por Kamalu
Hai. Mas nós, os humanos, vemos como argila, o que os apapaatai e yerupoho
vêem como fezes.
Os yerupoho também têm sangue e esperma, substâncias elementares
para a formação dos corpos, mas seus fluídos são fétidos (oho) em oposição aos
mesmos fluídos dos humanos, que têm um cheiro característico, marcado pela
categoria aho, que abrange o cheiro do peixe cru, do esperma, do sangue e do
jenipapo (cf. também Viveiros de Castro (1977: 168) a respeito da categoria ahi
entre os Yawalapíti), que por sua vez correspondem metonimicamente ao cheiro
de sexo. Os yerupoho têm enorme aversão ao sangue, a substância aho por
excelência, embora, paradoxalmente, comam peixe cru, um alimento aho. Já oho
diz-se basicamente para as fezes, a carniça e a comida podre. Portanto, o
esperma que faz o corpo de certos yerupoho é podre-fétido. Ainda que este seja
esperma (gaaki), não se trata do mesmo esperma dos humanos, pois este último
é ahopai e o dos yerupoho ohopai. Se as substâncias que produzem os corpos
são de naturezas diferentes, igualmente os produtos que delas resultam também
devem ser diferentes.
O problema que nos interessa é que essa diferença é radicalizada: o corpo
dos yerupoho existe em uma condição patológica para os humanos. O corpo de
um yerupoho é dito ser puro ixana (feitiço), independentemente se ele foi feito de
fluidos sexuais e de sangue ou de outra substância, como argila, madeira, palha
etc. Assim, se um humano estabelece contatos corporais com os yerupoho, ele
corre imenso risco de ficar doente ou, no pior dos casos, de morrer
instantaneamente.
Não disponho de dados para explicar o porquê da natureza patológica do
corpo dos yerupoho. O que realmente importa para avançar a análise são as
consequências dessas diferenças para as relações interseriais. Mas antes,
vejamos as intensificações das diferenças interseriais e como a agência de Kamo
interferiu nesse processo e ordenou o mundo tal como os Wauja o experienciam.
56

Em função das diferentes naturezas dos seus corpos, a convivência dos


humanos com os yerupoho, em um mesmo espaço horizontal, era impossível,
restando aos humanos apenas a possibilidade vertical: viver no subterrâneo.

2.4
AS FORMAS ALIMENTARES DA TRANSFORMAÇÃO

As condições de vida dos primeiros humanos no passado mítico eram as


piores possíveis: habitavam o interior mais profundo dos cupinzeiros e não
possuíam os elementos fundamentais da vida civilizada — o fogo e a agricultura
—, cuja posse era dos yerupoho, ou seja, dos Animais. O plano de Kamo era
reverter essa situação, despossuindo os yerupoho do fogo e da agricultura,
banindo-os da superfície da terra, e entregando o seu espólio aos humanos, sua
criação. Para tanto, Kamo e Kejo usariam seus poderes xamânicos
aprendidos/herdados de seu avô, com quem, em vários momentos de suas vidas,
conviveram.
No início dos tempos, o mundo era escuro. Havia apenas a noite. A única
luz que havia não passava de uma leve penumbra, irradiava do fogo doméstico
dos yerupoho. Fora de suas casas, os yerupoho podiam tudo ver, pois seus olhos
são como “lanternas”.
Há três ações de Kamo diretamente responsáveis pelo banimento dos
yerupoho da superfície terrestre, pela sua transformação em animal/monstro e
pela condição mais ou menos “oculta” e “marginal” que eles passaram a viver.
Primeiramente, Kamo roubou a agricultura da mandioca do povo Porco
(Autopoho), juntamente com suas flautas de madeira33. Em outro momento Kamo
roubou o fogo que o Urubu-Rei (Ulupu-kumã) guardava dentro da testa. Autupoho
e Ulupu-kumã guardavam respectivamente o “princípio-agricultura” e o “princípio-
fogo”, equivalentes a toda possibilidade de cultivar e de fazer fogo. Os yerupoho
ainda poderiam recuperar seus bens utilizando as mesmas espertezas de Kamo.
Mas para o desespero dos yerupoho, Kamo descobriu, por meio de uma
informação desastradamente oferecida por seu avô, a sua única fragilidade: a
57

impossibilidade de viverem sob o sol. Tão logo soube disso, Kamo procurou um
modo de fazer o sol aparecer no céu, indo à procura de uma “máscara” (Kamo
mohãjá opaka, “máscara facial vermelha de Kamo”), que pudesse “virar” o sol.
Kamo arremessou-se com a “máscara vermelha” ao céu e a aurora lentamente
se fez, Kejo o seguiu mais tarde, vindo a se tornar o astro lunar, também por
meio de um mascaramento.
Por fim a longa noite dos yerupoho foi a última grande ação de Kamo, a
qual dividiu o tempo em dois: o antes e o depois do ciclo dia e noite. Já o ciclo
mensal lunar, inaugurado por Kejo, parece não ter consequências geocósmicas
relevantes. Tudo o que aconteceu no tempo das trevas é mito (awnaki-iyajo), a
história (awnaki)34 surge com a transferência da cultura (fogo e agricultura) para a
série dos humanos, ao custo de um afastamento entre a humanidade dos
yerupoho e a humanidade dos humanos. Mas esse afastamento, como o próprio
pensamento wauja expõem, veio a se mostrar bastante imperfeito e descontínuo,
como veremos a seguir.
Todos os yerupoho tinham imenso pavor do sol. A notícia de que Kamo
pretendia “inventar” este astro já havia se espalhado muito antes mesmo dele sair
a procura da sua “máscara”. Logo que souberam a notícia, os yerupoho
começaram a fazer “roupas”35 para se protegerem do sol. A essa altura, há uma
“bifurcação” do mito em duas versões complementares.
Uma delas menciona que uma variedade enorme de “roupas” e máscaras
foram feitas pelos yerupoho, que, em seguida, lançaram-se para o fundo das
águas. Os que não conseguiram confeccionar suas “roupas” protetoras foram
“enrigecidos” pelo sol e se transformaram permanentemente em lagartixas,
cobras, vermes, monstros de diversas formas ou simplesmente permaneceram
Tyãu (“gente”), embora com várias deformações.
A outra versão menciona que os yerupoho machos teriam saído para uma
grande pescaria, ficando tempo demais ausentes da aldeia. As mulheres
preocupadas com a sua demora mandam um rapaz recluso, Kamatapirá, a sua
procura. Kamatapirá descobre os homens fazendo e experimentando “roupas”,
ele volta e avisa às mulheres que os seus maridos e parentes estavam virando

33 Uma versão desse mito foi publicada em Barcelos Neto (1999c).


34 A distinção entre essas categorias foi anteriormente verificada por Ireland (1988).
35 Em termos etnográficos, a noção wauja de “roupa” (na7) implica necessariamente a de
máscara. “Vestir” é mascarar-se.
58

“bichos”. Revoltadas, as mulheres “vestem-se” com as insígnias masculinas


(arcos e flechas e diademas de penas de arara, rei-congo e harpia), transformam-
se em Yamurikumã (mulheres-monstro), entram em um buraco cavado pelo Tatu-
Canastra e abandonam a aldeia.
O objetivo desta seção não é a análise da variação mítica, mas seguir as
associações que os narradores fizeram entre mitos quase sempre narrados como
pertencendo a nexos diferentes. Os narradores queriam chamar atenção para o
fato de que o nexo mais amplo do mito de Yamurikumã é o da grande
transformação cósmica que estava em curso: o surgimento do astro solar.
Preocupados apenas em fazer suas próprias “roupas” protetoras, os
homens yerupoho teriam demonstrado imenso egoísmo ao abandonarem as
mulheres yerupoho à sua própria sorte. As yerupoho providenciaram um modo de
se protegerem do sol e ao mesmo tempo de se vingarem dos seus maridos. As
yerupoho, então transformadas em Yamurikumã, foram para o fundo da terra e os
homens, com suas flautas, “roupas” e máscaras, submergiram nas águas
profundas. E assim deu-se a vez da “opção vertical” se impor aos yerupoho.
É importante lembrar que nem todas as mulheres yerupoho tiveram como
destino o mundo subterrâneo e muito menos a “forma” Yamurikumã. Como
advertem os meus exegetas, a aldeia de Kamatapirá era apenas uma dentre as
milhares de aldeias de yerupoho existentes naquele tempo, na superfície do
mundo. Os yerupoho eram(são) muitíssimos e muitas transformações diferentes
abateram-se sobre eles.
No tempo das trevas, muitos dos animais que conhecemos hoje existiam
unicamente em sua forma Tyãu (“gente”). Tyãu é uma categoria que, antes de
tudo, define antropomorfia (figura 1). Embora a noção xinguana de identidade
humana esteja fortemente centrada no corpo (Viveiros de Castro, 1977, 1979,
2002c), antropomorfia, isoladamente, não define o que seja humano (Ireland,
1988b, 2001). Portanto, a condição antropomorfa dos yerupoho não implica em
uma humanização direta destes. Entre os Wauja, o “humano” não é uma
categoria singularizada em um vocábulo. A idéia do “humano” é constituída,
sobretudo, por um feixe de relações morais em concomitância com processos de
fabricação do corpo/pessoa (cf. também entre os Yawalapíti, Viveiros de Castro,
1977, 1979, 2002c). Essa moralidade é marcada por sentimentos de vergonha-
respeito-medo, expressos segundo gradientes hierárquicos — humanos têm
59

vergonha-respeito-medo dos yerupoho/apapaatai, não o inverso; já os animais


têm vergonha-respeito-medo dos humanos. Porém, o que constitui o elo entre os
yerupoho e os humanos são os animais36. E esse elo é moral, pois quando os
humanos utilizam mal os recursos (e.g. pesca, caça e vegetais), seus “donos” (os
Animais e Plantas) voltam-se contra os humanos, daí o respeito-medo que estes
têm por aqueles.
Todos os yerupoho que vestiram “roupas” ou que foram atingidos pelo sol
transformaram-se em apapaatai. A categoria cabe, neste contexto, na seguinte
definição concisa: apapaatai é tudo aquilo que, temporária ou permanentemente,
tenha passado de uma forma antropomorfa para uma forma animal, monstruosa,
fenômeno natural, artefatual ou por uma combinação de duas ou mais destas
formas. A “roupa” é o dispositivo para as transformações temporárias, enquanto
as transformações permanentes originaram-se da exposição dos yerupoho ao sol
e são irreversíveis. Uma “roupa” é uma “aparência” e seu valor ontológico é antes
“artefatual” do que “corporal”. Há duas naturezas de apapaatai: uma corporal e
uma “roupa”. Toda “roupa” pode ser reduzida à categoria apapaatai, mas nem
todo apapaatai é “roupa”. A generalização que se pode fazer é que a categoria
apapaatai subsume a categoria yerupoho, fazendo com que ambas impliquem-se
• mutuamente.
Despossuídos do fogo, os yerupoho foram forçados a comer cru. Sua
alimentação crua é um traço decisivo da sua condição “animal”. Contudo, a
“animalidade” dos yerupoho não é a mesma dos animais, pois aqueles agregam
diferentes poderes xamânicos, já estes são, em sua maioria, pobres presas dos
humanos. A potência xamânica dos yerupoho faculta-lhes, como veremos,
ocupar a posição de “predadores” dos humanos. Assim, a linha descendente do
poder predatório começa com os yerupoho, passa pelos humanos e termina nos
animais. Contudo, os grandes predadores, como a onça, a sucuri e a harpia, têm
uma posição ambígua nesse esquema (conforme também notou Viveiros de
Castro, 2002c), tendendo para o topo da cadeia predatória.
Inúmeros animais do tempo presente “mascaram” a sua condição Tyãu em
íí
roupas”. Esses animais, uma vez despidos de suas “roupas”, em geral exibem

36 Em um trabalho anterior (Barcelos Neto, 2002: 143-147), mostrei que diferentes parcelas de
uma mesma alma podem dar vida tanto a um animal quanto a uma “roupa” sobrenatural. Essas
parcelas sempre emanam de um yerupoho, criando uma relação de compartilhamento da upapitsi
(princípio vital, alma, consciência) que liga os animais aos Animais.
60

uma antropomorfia estranha, pequena estatura, pernas e braços finos,


articulações protuberantes, cabeça grande sobre ombros estreitos. Além disso,
seus olhos, orelhas, genitais, mãos, pés e outros detalhes anatômicos são muitas
vezes semelhantes aos dos animais de hoje. Despidos, eles voltam a ser
yerupoho-. “gente-bicho” (Animal). A categoria que nos interessa, apapaatai, está
amplamente envolvida por esse processo de vestir e despir “roupas”.
A transferência (roubo) dos bens culturais por Kamo está na base da
configuração do mundo atual, que se deve a dois movimentos básicos: um de
expansão — das formas de vida, pelo menos quanto aos seus aspectos
anatômicos exteriores, da água, do fogo, das plantas cultivadas e da
consequente criação de novos espaços no cosmo e a sua ocupação — e outro
de inversão, ambos diretamente relacionados entre si. Ao roubar o fogo, Kamo
inverteu as formas alimentares: os humanos, que comiam apenas cru, passaram
a comer cozido, e os yerupoho, que comiam cozido, passaram a comer cru. A
inversão aplica-se à ocupação dos espaços geocósmicos — humanos passando
a ocupar a superfície terrestre e yerupoho se refugiando no subterrâneo, no
interior de árvores, no fundo das lagoas — e também à agricultura: os Porcos e
outros yerupoho perderam o cultivo da mandioca e o espaço para cultivá-la. No
entanto, hoje, vestidos de porcos, os yerupoho invadem as roças dos Wauja para
devorá-las. A “roupa”-porco é “adaptada” ao veneno e à dureza da mandioca:
dentes muito fortes, unhas duras para cavar e, conforme apontam os Wauja, um
orifício nas costas por onde sai o veneno. A mandioca é o seu alimento perdido.
Dos humanos aproximam-se os Porcos em busca do tempo em que comiam
cozido, do tempo antes dos homens. Todavia, essa busca não é deliberada. O
estatuto da aproximação é variável e muito mais complexo do que o mero desejo
de satisfação alimentar dos Animais.
A relação conceituai entre Porcos e porcos não possui o esquematismo
que se está a apresentar; de fato, ela é bastante ambígua e contextuai. Apenas
evidências muito concretas permitem, por exemplo, um Wauja distinguir se sua
roça foi atacada por porcos (apapaatai-mona, categoria genérica para os animais
de pêlo, com exceção do morcego) ou Porcos (yerupoho) vestidos de porcos
hiper-vorazes (apapaatai). Como estes últimos são capazes de saltar bastante
alto, muito acima das cercas defensivas que os Wauja constroem, o estrago que
podem fazer nas roças é imensamente maior que os porcos eventualmente
61

fazem. Os Porcos também são mais agressivos e não têm medo. Se um animal
exibe uma agressividade incomum, os Wauja não duvidam em identificá-lo como
um apapaatai, um ser muito mais próximo da polaridade monstro do que da
polaridade animal.
A “roupa” é um dispositivo de atributos instrumentais e anatômicos ,—
asas, no caso dos seres alados, garras e/ou presas, no caso dos predadores etc.
— que enseja capacidades físico-locomotoras específicas: voar, nadar, saltar,
correr velozmente etc. Os humanos são os sem-“roupa” por excelência, com
exceção dos feiticeiros, que podem fazer uso de “roupas” especiais (chamadas
iyeyá) para entrar nas casas de outras pessoas ou viajar a grandes distâncias em
curtíssimo tempo. Uma “roupa” sempre envolve consequências práticas
imediatas, pois ela é uma forma-funcional: dentes e garras afiadas, nadadeiras,
bicos alongados etc., coisas que servem para realizar tarefas específicas, as
quais os humanos fazem com o auxílio de uma série de artefatos, muitos deles
originalmente criados pelos yerupoho (como por exemplo o desenterrador de
mandioca, tunuaT), e posteriormente transferidos para o mundo dos humanos via
doença, xamanismo e ritual37. Como os yerupoho perderam certas tecnologias
para os humanos, eles tiveram que contornar essa carência por meios
anatômicos, como focinhos que revolvem a terra e dentes que perfuram cascas.
Vimos que essa outra “corporalidade” (animal ou monstro) deve-se a um
momento específico da ontogenia wauja e a capacidades artísticas distintas de
cada yerupoho que inventou (inventa) uma diversidade desconcertante de
“roupas”. Todavia, há algo a mais nessa invenção que ultrapasse a mera questão
do disfarce e da adaptação a uma nova situação geocósmica: trata-se da idéia de
distribuição (expansão) da pessoa.

37 Vide em Barcelos Neto (2002: 256-259) a análise de um mito que descreve o processo de
transferência do desenterrador de mandioca do domínio de Kukuho para o domínio wauja.
62

2.5
Breve morfologia das transformações

A 16 de agosto de 2002, auge do período de queima dos terrenos para o


plantio das roças de mandioca, quando eu estava a fazer a medição de uma nova
e distante área de plantio, um dos meus colaboradores alertou-me:

— Neto, você precisa tomar cuidado, você não pode mais


sair à noite para fazer xixi. Queimaram o pai da mulher.
— Quem foi queimado?!
— Walamá (sucuri).
— E quem é a filha dele?
— É Yapojeneju. Mas outros parentes do Walamá também
vêm procurar por ele. Não sabemos quem são, até agora só
apareceu a sua filha. Ulepe viu.
— Por que queimaram o pai dela?

Suspendo o diálogo neste trecho e o remeto retrospectivamente a um


conjunto de fatos ocorridos nos quatro dias anteriores, que passo a narrar.
Quando o amunaw Yatuná e seu filho adolescente foram queimar as
árvores do terreno da sua futura roça, ouviram um barulho estranho ecoar do
interior de um grande tronco oco, que já estava caído ali desde maio do mesmo
ano, quando concluíram o desmatamento do terreno. Ignoraram o que poderia ter
lá dentro e atearam fogo. Passados dois dias, voltaram ao mesmo local e
encontraram uma sucuri de dimensões colossais, morta por carbonização.
Jogaram a cobra no meio do mato e retornaram para a aldeia. À tarde contaram o
episódio a Ulepe, um grande xamã visionário-divinatório wauja (yakapá), que na
mesma noite teve uma visão e um sonho revelador do ato inconsequente de
Yatuná.
No meio da madrugada do dia seguinte, Ulepe saiu porta afora para urinar.
Súbito, ouviu alguém caminhando em passos curtos e ligeiros em seu rumo, a
figura desconhecida passou muito rapidamente diante dele, em direção à estrada
que dá acesso ao Posto Leonardo (a roça onde foi queimada a cobra fica
próxima à margem esquerda dessa estrada). Ulepe percebera ser uma mulher,
nua, caiçada com sandálias Havaianas. Assustado, entrou de imediato na casa e
pegou uma lanterna. Ao retornar não havia mais ninguém (segundo Ulepe, o
63

tempo que ele levou para pegar a lanterna e retornar não era suficiente para uma
pessoa atravessar a aldeia, mesmo andando naquela velocidade). Ulepe retornou
para sua a rede, e então teve um sonho38:

Era bem cedo (alvorecer). O pessoal estava colocando coisas


na carroceria da camionete. Só tinham homens. Não sei para onde
eles queriam ir. Eu só estava ajudando.
De repente, veio em nossa direção uma mulher muito branca,
muito loira, calçada com sandálias Havaianas e perguntou pelo seu
pai aos que estavam ali.
— Vocês viram o meu pai?
— Não. Quem é o teu pai?
— Meu pai é Walamá.
— A gente não conhece o teu pai.
A mulher ficou triste e foi embora.

Ulepe conclui que a mulher que ele vira antes do sonho era Yapojeneju, a
filha da sucuri que Yatuná tinha queimado três dias antes. Na manhã seguinte,
Ulepe comunicou que Yapojeneju estava a rondar a aldeia e as roças em busca
do seu pai e que todos tomassem muito cuidado, trancassem bem as portas e
evitassem sair à noite. Obviamente, Yapojeneju e Walamá foram o assunto
daquela semana.
Intrigou-me que cobra poderia ser aquela. E fui perguntar diretamente a
Ulepe:

— Que cobra era aquela que Yatuná queimou?


— Uwi-xumã (cobra “grande”, prototípica).
— Era apapa atai?
— Parece. Eu acho que era.
— Era naT (“roupa”)?
— Não. NaT não. É assim, Neto, aquela cobra era Tyãu
(homem) de antigamente, esse Walamá que queimaram era
yerupoho que virou cobra.

Diante da simplicidade da resposta, não havia mais perguntas a fazer-


lhe39, exceto uma:

— E o que aconteceu com a alma de Walamá?

38 Narrado em Wauja e traduzido por Yanahin.


39 Ulepe sabia do meu conhecimento sobre as antigas transformações que sofreram os yerupoho,
pois ele foi um dos meus professores nesta matéria, o que permitiu uma resposta breve.
PRANCHA 2

Figura 3 - “Roupa” do apapaatai Weu (Bezouro). Apesar de suas asas, múltiplas


patas e os ferrões na cabeça, o aspecto predominante é a antropomorfia,
claramente marcada pela segmentação entre a cabeça, o tronco e os membros.
Autor: Ajoukumã, 1998.
64

— Não sei. Acho que morreu também. Respondeu Ulepe sem


demonstrar interesse pela questão40.

O destino post-mortem da alma dos não-humanos é um tanto incógnito,


exceto o dos xerimbabos, que são enterrados junto à rede de seus donos, que
esperam encontrar as almas de seus xerimbabos nas aldeias celestes dos
mortos.
Walamá existia, portanto, desde os tempos das trevas, possivelmente
vivendo em família ao lado de sua esposa e filhos, Yapojeneju um deles. Sua
esposa e demais filhos poderiam ser diferentes do pai, ou iguais (“ninguém sabe”,
disse-me um dos meus colaboradores). Yapojeneju poderia ser apenas uma filha
que Walamá adotou no tempo das trevas (quem saberá?). Também não sei dizer
se Yapojeneju (plenamente antropomorfa) via seu pai como gente, sendo apenas
os Wauja a vê-lo como cobra. A questão da troca de ponto de vista, como
analisada por Viveiros de Castro (1996, 2002c), raramente aparece nos mitos e
nas exegeses que recolhi. Possivelmente esta questão seja mais evidente nos
processos transformacionais do corpo e da pessoa via o uso de “roupas
sobrenaturais” (figura 3).
Em um texto sobre as noções de transformação nas terras baixas da
América do Sul, Peter Riviève defende a idéia lévi-straussiana41 de que “as
vestes e a decoração do corpo de cada indivíduo fazem a mediação entre o seu
eu interior, a sociedade e o cosmos” (1995: 191), evocando, numa determinada
passagem, as artes de tecer e trançar como metonímias do ordenamento
cósmico. Há muito, Lévi-Strauss (1989: 179-184) nos lembrou que em cosmética
(mascaramento) há cosmo. De fato, o pensamento ameríndio leva muito a sério
estas idéias, cujo foco incide sobre a distinção/indistinção entre Natureza e
Cultura, para qual a noção de transformação é um meio heurístico bastante
evidenciado. Na cosmologia wauja, a “roupa” é o principal dispositivo dessas
transformações.

40 “Os índios não são, com efeito, máquinas de informar, e seria um grande engano crê-los, em
cada instante, prontos a fornecer resposta a toda questão”. A frase é de Clastres (1995: 19).
Possivelmente a minha questão não se firmava como questão para Ulepe, ou ele não estava
interessado em responder.
41 Rivière a desenvolve em consonância com uma outra idéia, sobre a qual já não compartilho, de
que “máscaras, vestes e ornamentos são meios para domesticar um componente ‘animal’
essencial à natureza humana” (1995:191).
65

O regime das transformações é emicamente explicitado por um grupo de


quatro afixos-modificadores dos conceitos-base----- kumã, -iyajo, -mona e -malú.
Verificados tanto nas cosmologias wauja e yawalapíti42, seu papel maior é
marcar/mudar a natureza das coisas e seres. Viveiros de Castro (1977 e 2002c)
realizou uma análise bem sucedida desses afixos em sua versão yawalapíti. Não
vou entrar nos pormenores das poucas diferenças analíticas que os materiais
wauja e yawalapíti suscitam. De um modo geral, a análise yawalapíti de Viveiros
de Castro endossa a minha análise wauja e vice-versa.
Esses afixos distribuem, em uma escala contínuo-gradativa, que parte de
estados de “insuficiência”, “falsidade”, “incapacidade” (-malú), “visibilidade”,
“aparência”, “corporalidade”, “atualização” (-malú e -mona) para estados de
“invisibilidade”, “alteridade”, “espiritualizacão”, “potência xamânica”, “prototipia” (-
kumã), passando por estados de “excesso”, “superioridade”, “ferocidade”,
“veracidade” (-iyajo). Vejamos dois exemplos de como esses afixos são aplicados
a um artefato — a panela (nukãí) — e a um ser — a cobra sucuri (walamá).
As panelas -malú são aquelas que se quebram facilmente, pois são “mal­
feitas”, “nukãi-malú”, diz-se43. O afixo -mona designa as nukai que se usa
normalmente no dia a dia. -Iyajo diz respeito às panelas especiais, de qualidade
superior, geralmente fabricadas para pagamento ritual. Nukai-kumã são panelas
prototípicas. Toda prototipia entre os Wauja remete à antropomorfia: Nukãi-kumã
é uma panela-gente, um yerupoho. -Kumã, invariavelmente, confere um estatuto
de sujeito à panela. Vejamos o segundo exemplo.
Uma walamá-malú é uma cobra que falha na tentativa de matar uma
grande presa por estrangulamento, é uma cobra que não consegue realizar
plemanente a capacidade constrictora da espécie. As cobras sem veneno são
uwi-malú, em contraste com as cobras venenosas, que são uwi-iyajo:
“excessivamente cobras”, conforme também entre os Yawalapíti (Viveiros de
Castro, 2002c). Uma walamá-iyajo é uma sucuri em sua capacidade constrictora
plena, é aquela capaz de matar grandes presas. As Walamá-kumã são as sucuri-

42 Em yawalapíti esses afixos-modificadores são, respectivamente, -kumã, -rúru, -mina e -malú


(Viveiros de Castro, 1977 e 2002c).
43 Os Wauja têm uma visão muito aguda para a qualidade dos artefatos industrializados que eles
consomem. Neste sentido, um outro termo usado para expressar o estado -malu de um objeto é
“paraguai”, pois, conforme considerações dos Wauja, os produtos contrabandeados daquele país
para o Brasil são, em geral, de baixa qualidade. Assim, uma pilha “paraguai” sempre dura pouco
em contraste com uma pilha-/yayo (original), que dura muito tempo. Como mencionei acima, o
66

gente — yerupoho, ou estes vestidos com “roupas”-sucuri —, elas postulam, em


função da sua prototipia, um plano de subjetividade. Emicamente, o afixo -mona
não se aplica aos répteis e demais ordens animais, a exceção dos mamíferos,
que são apapaatai-mona. Em trabalhos anteriores (Barcelos Neto, 2001 e 2002)
empreguei o afixo -mona como um recurso metodológico para analisar a
distinção entre animais (“seres-mona”) e apapaatai (“seres-kumã”). Este mesmo
sentido metodológico é retomado neste trabalho, como se observa nas linhas 1,
2, 5, 6 e 9/coluna 5 do esquema abaixo.

Quadro 2
Os modos da transformação

Disposição Modo trans- Disposição Disposição Natureza Modo


serial formativo serial secundária formal do ser predatório
primária
yerupoho animais corpo -mona ou -malu

yerupoho animais “roupas” -mona ou -malu

yerupoho apapaatai (“espíritos”) “roupas” -kumã doença

yerupoho apapaatai (monstro) corpo -iyajo canibalismo

humanos animais corpo -mona ou -malu

humanos 6. —> animais “roupa” -mona ou -kumã doença

humanos animais alma/corpo -mona

humanos apapaatai (“espíritos”) “roupa” -kumã doença

Humanos apapaatai (monstro) corpo -iyajo canibalismo

Artefatos 10.-> animais corpo -mona ou -malu

Animais 11.-> apapaatai (monstro) corpo -Iyajo canibalismo

Os modos transformativos 1 e 4 são irreversíveis, e ocorreram, sobretudo,


no tempo do surgimento do astro solar. Os modos 5, 9, 10 e 11 também são
irreversíveis, contudo sem qualquer relação direta com o surgimento do astro
solar. São dignas de nota algumas particularidades específicas dos modos 1, 5 e
11.
Em geral, esses modos são definitivos quando se tem como foco a espécie
zoológica. Um exemplo célebre é a transformação do menino-bebê de Alawiru

mito de origem da humanidade afirma que os paraguaios “só têm coisas-ma/ã” porque eles
fizeram uma má escolha ao pegarem um relógio que estragava com pouco tempo de uso.
67

(personagem mítica) em macaco-prego. Neste caso, é a forma corporal macaco-


prego que deve sua origem ao filho de Alawiru, entretanto isso não quer dizer que
cada macaco-prego, individualmente, tenha se originado dessa criança. Outros
macacos-prego podem ser apenas uma “roupa” a imitá-lo, sendo incógnita a sua
identidade interior, mas este é exatamente o objetivo de muitos yerupoho e
feiticeiros: passarem-se por macaco-prego.
A condição ontológica “animal” é sempre ambígua e incerta, na medida em
que ela está sujeita a sofrer uma transformação radical. Observe-se que as
possibilidades transformativas dos animais é reduzida a apenas um modo. Ora,
os animais, em sua maioria, já são uma transformação. O modo 11 diz respeito a
uma transformação de uma transformação. E neste caso não há uma
transformação “de volta”: uma vez que um ser qualquer se torna monstro
(apapaatai-iyajo), ele será para sempre monstro. A transformação de animais em
monstros é devida sobretudo a mudanças repentinas de seus hábitos alimentares
(e.g. um animal de uma espécie tipicamente herbívora alimentar-se de carne ou
de animais mortos), a comportamentos agressivos inesperados, ou a uma
deformação anatômica. A transformação dos humanos em monstros também
tem, em alguns casos, ligação direta com os hábitos alimentares. Um dos casos
mais célebres é o de um grupo “de antigamente” que comeu porcos, resultando
na sua transformação em um grupo de “bicho brabo” (apapaatai-iyajo).
Todos os modos são, em maior ou menor medidas, relacionantes e
relacionados. Assim, animal, monstro, humano e yerupoho são potencialmente
equivalentes em função das possibilidades transformativas que abrangem suas
relações. É neste sentido que um animal que era humano pode se transformar
em monstro (apapaatai-iyajo), o fim da linha das transformações, daí não há mais
nada, apenas pura predação e canibalismo. Este é um caso sequenciado dos
modos 5 e 11. Outra possibilidade seqúenciada é entre os modos 1 e 11.
No modo transformativo 6, vemos seres humanos transformando-se em
animais por meio do uso de “roupas”. Esse modo é intencional e premeditado (e
não acidental como no caso do modo 7, vide análise abaixo), pois, para os
humanos, a “roupa” é sempre uma forma eletiva de transformação. O uso de
“roupas” fora do ritual é visto como uma ação típica de feiticeiros. Essas “roupas”
são conhecidas por iyeyá. Cada feiticeiro possui uma iyeyá específica que ele
usa quando precisa se aproximar de alguém sem ser reconhecido. Muitos deles
68

vestem a iyeyá de pequenos animais de estimação, os quais podem facilmente


se infiltrar na casa de alguém para fazer o mal. Noutros casos, é comum o uso
das iyeyá que são grandes carnívoros, sobretudo a onça e a harpia, animais
egoístas, traiçoeiros e violentos, como os próprios feiticeiros. Seu uso é para
vencer distâncias enormes e alcançar outras aldeias onde os feiticeiros
pretendem fazer vítimas. O conhecimento da fabricação das iyeyá foi perdido, por
isso elas existem em número limitado. As que existem foram feitas há muito
tempo. Atualmente elas são transmitidas de um feiticeiro mestre para o seu
aprendiz.
O modo transformativo 7 pode ocorrer quando há eclipses. Se durante um
eclipse, solar ou lunar, uma pessoa estiver dormindo e não acordar, e se no seu
sono ela tiver um sonho com um animal de pêlo (apapaatai-mona), há
possibilidades dela se transformar nesse animal. A depender do que se passa no
sonho (um grande susto com o animal, por exemplo), a alma do sonhador
começará a acompanhar esse animal em outros sonhos e progressivamente ela
se animalizará. Mais tarde, a pessoa, em corpo, ao sair para o mato, poderá ser
“guiada” por sua alma para um caminho desconhecido e não mais voltar para
aldeia. Perambulando pelo mato ela encontrará seus “amigos” animais e
finalmente se juntará a eles e se transformará definitivamente em um deles.
A reversão da monstruosidade/animalidade só é possível quando o
dispositivo da transformação é intencional e programado, ou seja, quando ele se
dá por meio da confecção e do uso de “roupas” (modos 2, 3, 6 e 8). Esta é uma
transformação “controlada”. Já os modos definitivos de transformação são
acidentais e imprevisíveis. Quando há eclipses, por exemplo panelas zoomorfas,
canoas, cestos com motivos gráficos e outros artefatos podem transformar-se em
animais: uma canoa pode tornar-se uma cobra (modo 10). Contudo, ao fim do
eclipse ela não volta a ser uma canoa. E essa mesma cobra, em outro contexto,
pode transformar-se em uma cobra-monstro (apapatai-iyajo)-. um caso
sequenciado dos modos 10 e 11. Noutros tempos, na época de Kwamutõ e
Kamo, quando os humanos foram criados, artefatos também transformavam-se
em humanos, mas isso já não acontece mais.
Os modos reversíveis de transformação são aqueles que implicam o uso
de “roupas”. Os humanos vestem “roupas” por motivos rituais ou de feitiçaria,
cujas descrições veremos nos próximos capítulos. Por ora, fiquemos com o uso
69

de “roupas” pelos yerupoho (modo 3) que os transforma em apapaatai, um


atributo diretamente ligado à multiplicação de suas almas, função da sua potência
xamânica. Embora o modo 4 também se refira à transformação dos yerupoho em
apapaatai, ele não nos interessa, pois o mesmo não implica em adoecimentos,
trata-se da transformação dos yerupoho em monstros canibais, os apapaatai-
iyajo. Interessa-nos o yerupoho em sua condição de monstro “travestido”, aquela
que o torna um apapaatai agente de doenças, portanto um futuro personagem
ritual. Os apapaatai-iyajo predam o corpo e a alma de suas vítimas a um só
tempo, já os apapaatai-“rowpa" (ou simplesmente apapaatai) são antes raptores
de almas humanas, e não predadores no sentido estrito do termo.
<
Quando um yerupoho multiplica sua alma, cada unidade resultante da
multiplicação poderá vestir uma “roupa” singular, em geral, feita exclusivamente
para cada unidade, por isso as “roupas” possuem um repertório formal
vastíssimo. Dentro dessas “roupas” os yerupoho vagam pelos espaços do cosmo
em busca de contato com os humanos. Essa transformação é entendida como
uma “espiritualização” (“xamanização”) dos yerupoho, dos Animais, portanto. Em
um estado de multiplicidade as almas dos yerupoho são espíritos-Animais-
monstros, apapaatai, portanto. Tal estado de multiplicidade corresponde
igualmente a um estado de multiplicidade das “roupas”. As “roupas” são formas-
padrão de como os yerupoho manifestam-se nos sonhos e transes dos yakapá
(e.g. figuras 2 e 3) e nos rituais. Esta é a condição que os yerupoho querem ser
vistos pelos xamãs, com “roupas” a disfarçar a fealdade de seus rostos e corpos:
“yerupoho é muito feio, Neto”, afirma Itsautaku, um grande yakapá do Alto Xingu.
A “roupa” rende a fealdade do rosto e do corpo e projeta-se para a beleza,
propagando-a. Ela é uma peça de design, um equipamento para voar, mergulhar,
caçar, devorar...: forma, função, ser.
Os yerupoho manifestados enquanto “roupa” (i.e. enquanto apapaatai) são
invisíveis aos sentidos normais dos seres humanos44. Mesmo o doente que tem
sua alma raptada, portanto em uma condição sensorial alterada, raramente os vê.
Como dito acima, a alma do doente interage com os yerupoho em sua forma
antropomorfa (Tyãu). A máscara é uma imagem que predomina como ponto de
vista da relação entre os yakapá e os yerupoho-apapaatai.

44 De fato, os Wauja às vezes chamam as “roupas” de “capa invisível”, remetendo-as aos “filmes
de ficção” que assistem na televisão.
70

A alguém que usa uma “roupa-porco” é facultado ver o mundo (ou estar no
mundo) como os porcos o vêem. O uso de “roupas” efetiva o ponto de vista do
outro. Mas não há uma “roupa”-humana que permita aos porcos verem o mundo
como os Wauja o vêem. Os próprios modos da transformação indicam essa
impossibilidade. As “roupas” operam sob um regime limitado. Compare-se, por
exemplo, a teoria wauja das “roupas” com a teoria juruna da distinção natureza e
cultura tal qual explicitada por Lima:

Tomado em sentido estrito, o ser humano, vivo e desperto,


apresenta uma irredutibilidade que eu não poderia deixar de
ressaltar: sua inimitável “sabedoria”. (...) A sabedoria humana
consiste naquilo que nós mesmos chamamos de reflexividade: os
vivos sabem que os mortos consideram o tucunaré como um
cadáver, mas os mortos não sabem que se sabe isso a seu
respeito, nem que os vivos consideram o tucunaré como tal. Essa
sua relativa insensatez, ou seja, essa incapacidade de perspectivar
a si mesmos caracteriza também a nossa existência onírica e os
animais. O porco se sabe humano, sabe que um Juruna é um
semelhante, mas não sabe que é um porco para os Juruna (1999:
49-50).

2.6
Multiplicação da alma, distribuição da pessoa

A complexidade da categoria apapaatai adquire contornos mais definidos à


luz de quatro afixos-modificadores dos conceitos e coisas----- kumã, -iyajo, -
mona, -malu. O sufixo -kumã indica espiritualização/potência e os sufixos -mona
e -malu indicam corporificação/atualização. Como descrevi alhures (Barcelos
Neto, 2002: 143-146), os seres que estão no pólo da corporificação possuem
uma ligação anímica direta com os seres que estão no pólo da espiritualização. O
que eu não descrevi com profundidade é como essa ligação é pensada pelos
exegetas Wauja.
Uma das noções capitais para esta ligação é a de “dono” (wekeho). Por
exemplo, o Jacaré (Yaká-kumã) e o Beija-Flor (Kumesi-xumã) são “donos” do
pequi, o primeiro em função dessa fruta ter se originado dos seus testículos, o
segundo por ter uma predileção pela fruta, e, em função disso, ter sido um dos
71

primeiros Animais a cultivá-la. O “dono” é sugerido por Viveiros de Castro como


um “mediador”:

O wôkôti [wekeho em wauja] é aquele humano ou espírito que faz a


conexão entre o objeto e o grupo, facultando o acesso (material ou
ideal) do coletivo ao recurso de que é dono. Neste sentido, o wõkõti
é um representante, mas que se define pelo que representa; se ele
objetiva o recurso para a comunidade, é, por seu turno, subjetivado
por ele (2002c: 83, grifos meus).

O “dono” concede e ao mesmo tempo protege os recursos. Assim, o


protetor do malaho (jacutinga)45 é o Malaho-kumã, a “dimensão espiritual” e
patologicamente poderosa do primeiro, capaz de agir contra quem faça “mal” uso
do recurso, a caça, neste caso, o malaho. Nesta etnografia, intessa-nos menos
os animais do que os Animais, pois no âmbito da patologia — e por extensão os
rituais de apapaatai— apenas os Animais são de fato agentes.
É a própria noção de wekeho que conecta um objeto e um grupo e não
apenas um “dono” específico. A noção de “dono” conecta Beija-Flor, beija-flor,
pequi e consumidores de pequi, e, em um sentido mais amplo, conecta estes à
Festa do pequi e ao patrocinador desta, que não por acaso é alguém que sofreu
de uma doença causada por Kumesi-xumã (Beija-Flor). Em um outro caso, a
noção de wekeho conecta um desenho e seu desenhista ao “dono” do desenho,
invariavelmente um apapaatai. Se, em uma situação solene, o desenhista revelar
desleixo com seu trabalho, ele poderá ter seu desrespeito “cobrado” como
doença.
A categoria wekeho define relações de representação e de substância
(Viveiros de Castro, 2002c: 83), as quais são atualizadas por corpos, artefatos,
alimentos ou expressões artísticas. Na investigação anterior (Barcelos Neto,
2002), explorei as relações de representação, mas, por falta de dados, não
avancei sobre as relações de substância que se somam àquela para o
entendimento da categoria apapaatai. Abordei os apapaatai sobretudo como uma
manifestação corporal e indumentária (a noção de “roupa”), contudo, nos dois
últimos trabalhos de campo, obtive dados que permitem demonstrar que as
“roupas” existem em função de uma condição específica da alma dos yerupoho.

45 Ave galiforme, da família dos caracídeos, do gênero Pipile.


72

Certa feita, perguntei a um colaborador, muito atento às questões


cosmológicas, e também capaz de reflexões agudas sobre as mesmas, se os
yerupoho tinham (eram) corpos (materiais) ou apenas almas (“espíritos”,
entidades imateriais). Ele me deu uma resposta curta: “mas é claro que eles têm
[são] corpo. Eles não morreram quando o sol apareceu”. Isso quer dizer que o
pólo da “espiritualização” não é um pólo anti-corporal. Porque nós, os humanos,
não os vemos ordinariamente não significa que os yerupoho não existam
enquanto corpos (lembre-se que a grande maioria deles está no extremo fundo
das lagoas e dos rios); apenas não temos fácil acesso aos seus corpos, e nem
devemos ter, pois eles são mortais ou patogênicos para nós. Desde há muito,
Kamo se encarregou de afastá-los dos humanos. Os corpos animais com os
quais nos deparamos são apenas “réplicas enfraquecidas” (para usar uma
expressão de Viveiros de Castro, 2002c) dos apapaatai: onças, veados, porcos,
ariranhas, antas, coatis e demais animais de pêlo são apapaatai-mona, i.e.
“parecidos” a apapaatai.
Um dado yerupoho é um correspondente antropomorfo de uma dada
espécie animal, e seu corpo é uma unidade formal singular e prototípica para
aquela espécie. Assim, o jacaré tem pele muito áspera, boca alongada, dentes
afiados, os olhos estufados porque o Jacaré também os têm: os yerupoho
guardam as características prístinas e fundamentais das espécies animais, pois a
sua anatomia atual já estava minimamente anunciada nos yerupoho. Um dado
yerupoho também corresponde a uma unidade subjetiva, a uma pessoa “não-
humana”. Todavia, em função das suas potencialidades xamâmicas, os yerupoho
podem expandir essa unidade subjetiva por meio da multiplicação da sua alma,
ou seja, do princípio de subjetividade.
O uso etnográfico do conceito de alma na Amazônia indígena não tem, '
obviamente, nenhuma ressonância com o seu equivalente na filosofia e teologia
ocidentais. O problema amazônico não é de transcendência, e sim de imanência
da alma. As etimologias a seguir mostram, para o caso wauja, que a alma é antes
um “outro corpo”, porém com propriedades ligeiramente distintas “desse corpo”.
Ainda assim, o valor ontológico do corpo é tanto anímico quanto o da alma é
corporal. Segundo Viveiros de Castro:

A leitura tradicionalmente platonizante feita do dualismo indígena do


corpo e da alma, que o toma como opondo aparência e essência,
73

deve assim dar lugar a uma interpretação dessas duas dimensões


como constituindo o fundo e a forma uma para outra: o fundo do
corpo é o espírito, o fundo do espírito é o corpo (2002b: 444).

Essa relação entre fundo e forma (figura) reflete a mesma relação entre os
afixos-modificadores -mona e -kumã, que configuram as conceituações wauja e
yawalapíti (Viveiros de Castro, 2002c: 35, nota 8) sobre a natureza da Natureza,
da Sociedade e da Sobrenatureza.
O corpo dos yerupoho não muda, exceto se forem expostos ao sol. O que
muda são suas as aparências, as “roupas” que eles vestem. O que está no
interior da “roupa” só pode ser seguramente identificado por um yakapá. A
“roupa” é a síntese de uma ontologia da ambiguidade, ela tem a capacidade de
instaurar dúvidas.
Em conversas “ordinárias”, os Wauja traduzem apapaatai por “espírito”. Se
se insiste em outras traduções e se estabelece cotejamentos, ver-se-á que a
tradução guarda sutilezas. Assim, os apapaatai, que são monstros canibais
(apapaatai-iyajo), os Wauja não traduzem por “espírito”, mas por apapaatai “de
verdade”, “bicho brabo”; os apapaatai-mona são os “bichos de pêlo”, aqueles que
não se come46, os quais os Wauja podem, em certos contextos, simplesmente
chamar de apapaatai (i.e. sem afixação específica), conforme o seu
»
comportamento e hábitos alimentares suspeitos. São os apapaatai onaT (“roupas'
sobrenaturais, ou melhor, yerupoho vestidos em “roupas”) que os exegetas
confirmam ser aquilo que eles traduzem por “espíritos”. Em muitos casos,
yerupoho é também traduzido por “espírito”. Nalgumas ocasiões de adoecimento
que presenciei, diziam-me os Wauja:

— você viu aquele menino? “Espírito” pegou ele.


— Qual “espírito”?
— Apapaatai.

46 As únicas exceções são o macaco-prego (Cebus apela) e a paca (Cuniculus paca). Coelho
(1981) menciona que os Wauja teriam consumido coati em uma ocasião inusitada. Os Wauja
dizem ter imenso nojo desse animal. Aliás, nojo é o imperador dos sentimentos na relação com os
animais de pêlo. A invariável resposta à minha pergunta sobre o motivo dos Wauja não comerem
apapaatai-mona era a simples frase: “temos nojo”. Os Wauja dizem que “antigamente” seus avôs
não comiam paca, nem os grandes peixes de águas profundas, como, por exemplo, o pirarara
(yuma) e o pintado (tulupí). Mas hoje, os Wauja não têm mais nojo desses peixes, mas passaram
a ter nojo da rã (eyusí), que outrora era consumida. Viveiros de Castro (2002c) menciona uma
informação yawalapíti de que os Wauja “comem peixe-elétrico”. Atualmente, esta informação não
procede. De fato, o peixe elétrico (ulako) é abrangido pela categoria dos animais nojentos para o
consumo, assim como o jacaré (yaká) e as cobras (uwi).
74

— Qual apapaatai?
— Mepeje47.
— Qual mepeje?
— Mepeje-kumã, yerupoho, Neto.

As conversas sobre adoecimentos/divinações xamânicas progrediam como


se os apapaatai estivessem sendo despindos. De início, ele é identificado a uma
categoria de imediata apreensão para o informado (“espírito”), em seguida ele é
identificado a uma categoria genérica de seres não-humanos (“apapaatai’'), para
então ser identificado a uma espécie animal (um dos elos envolvidos no
adoecimento) que em seguida é remetida a sua dimensão “sobrenatural”, ou
melhor antropomorfa, sujeito da ação patológica, o yerupoho. Este é o caminho
de apreensão exatamente inverso à experiência do doente e ao ritual de
apapaatai.
Em seu estado moribundo, que emicamente equivalera ausência da alma,
em função do rapto da mesma pelos apapaatai, o doente apenas interage com
“gente” (Tyãu), que ele chama pelo nome da espécie Animal. Essa gente são
yerupoho que levam a alma do doente para suas aldeias ou para passeios
indiscriminados, nos quais a alma do doente está sempre muito contente e
satisfeita por receber a boa atenção dos seus anfitriões. Esses passeios são em
geral pescarias e caçadas, ou festas animadas por músicas e danças.
Por meio do que a alma do doente comeu, os xamãs são capazes de
identificar com qual ou quais apapaatai/yerupoho ela está, pois o doente sempre
vomita a comida crua que ele ingeriu — aqui esta questão se entrelaça com a
condição de materialidade do “espírito”. O sonho (passeio) do doente e o transe
do xamã revelam a condição material do mundo dos apapaatai/yerupoho. As
provas são os objetos patogênicos retirados do corpo dos doentes e seus
vómitos. A alma do doente transfere para o seu corpo a materialidade
encontrada. Penso que para os Wauja, o mundo dos “espíritos” não pressupõe
imaterialidade. Supor-se os “espíritos” como uma coisa imaterial, corre-se o risco
de uma falha conceituai. O plano da imaterialidade não parece ser elaborado
pelos exegetas — aliás, eu nunca o atingi —, o plano que se mostra mais
rentável é o da invisibilidade, pelo menos aos sentidos ordinariamente comuns48.

47 Peixe, espécie não identificada.


48 Não pude explorar a terminologia referente às alterações dos sentidos, mas suponho que ela
poderia esclarecer melhor a questão.
75

Enfim, “espírito” é tanto uma categoria sensorial quanto epistemológica, mas


também formal. Compare-se estas questões com o que nos ensina Lima a
respeito dos Juruna:

Em um outro trabalho, eu afirmava que as três categorias básicas


de seres vivos do cosmos juruna (os humanos, os animais e os
espíritos) comunicavam-se de um modo tal que cada uma podia
conter ou estar contida na outra. É que a humanidade também
caracteriza seres que designaríamos como espíritos; a divindade e
animalidade também distinguem certos humanos; dentre os (por nós
chamados) espíritos, alguns são concebidos como vivendo na
condição de alma, mas outras são tão palpáveis quanto nós; além
disso, todos os animais podem se transfigurar em humanos (1999:
47).

De volta ao tema da identificação do agente patológico. Os xamãs


informam aos familiares do doente o nome do Animal que está causando a
doença. Esse mesmo Animal será formalizado ritualmente como máscaras,
aerofones, outros objetos rituais ou coros femininos, todos igualmente chamados
de apapaatai. Em tal nível de formalização, a aproximação grupai dos wauja com
os seres sobrenaturais é estreitíssima.
O mundo sem ambiguidade é o mundo do doente grave, lá onde ele vê os
yerupoho sem “roupas”, na forma de “gente”, interagindo diretamente com ele no
idioma wauja. No ritual, há “roupas”, mas sabe-se quem as estão vestindo.
Doença e ritual são os únicos territórios mais ou menos neutros da ambiguidade
ontológica. Já o cotidiano e os sonhos são repletos de ambiguidades e incertezas
— uma música, uma voz ou um ruído incomum que se escuta no mato: é
apapaatai ou é humano? Descobrir pode ser perigoso. Pode ser um feiticeiro
vestido de anta, de veado ou de urubu.
Desde o início deste capítulo, venho apontando o corpo como elemento
fundamental da diferença entre humanos e não-humanos. Imediatamente colada
ao avanço dessa questão tem-se ainda as noções de alma, imagem e cópia. É
provável que a tradução de yerupoho por “espírito” e não por “bicho” deve-se ao
entendimento que os Wauja têm da alma desses seres.
As noções de corpo (monapitisí), imagem (potalapitisí) e cópia (upeke)
articulam-se mutuamente para um entendimento geral da noção wauja de alma.
Resumidamente, podemos definir a alma humana como um duplo material/visual
do corpo, passível de ser multiplicado enquanto imagem e igualmente de ser
76

subtraído do corpo enquanto substância vital. Já a alma dos yerupoho é também


passível de ser multiplicada, mas a multiplicação não implica em uma subtração
de substância vital de seus corpos49. Esta diferença é tão essencial quanto os
yerupoho terem um corpo feito de substâncias patogênicas e os humanos terem
um corpo “de carne e osso”. O resultado dessa “equação” é simples: humanos
adoecem, os yerupoho raramente adoecem. E mais, em situações específicas, os
segundos são capazes de adoecer os primeiros, porém isso é assunto para o
capítulo seguinte.
A multiplicação da alma corresponde a uma propagação
imagética/substâncial do corpo, semelhante a um fractal. Além de uma
equivalência visual com o corpo, a alma também tem uma equivalência
substantiva. A alma do yerupoho que vagueia por aí tem a mesma potência
patogênica do seu corpo. E a alma raptada aos humanos pelos
yerupoho/apapaatai carrega consigo a substância vital que anima o corpo, só que
esta, ao se multiplicar, subtrai na mesma medida a potência vital do corpo.
Paradoxalmente, contudo, as almas humanas sobrevivem ao contato direto com
os yerupoho/apapaatai, já seus corpos... morrem. Isso indica, mais uma vez, a
incompatibilidade dos corpos dos humanos e dos yerupoho, mas não a
incompatibilidade das suas almas, ou ainda da alma humana com o corpo dos
yerupoho.
O corpo é a matriz visual absoluta da alma. Assim, se alguém teve um
braço amputado ou se ficou paralítico, sua alma terá essas mesmas
características no post-mortem. No céu, as almas são espacialmente agrupadas
em diferentes aldeias, conforme o tipo de morte que os corpos sofreram; os
mortos por atropelamento, tuberculose, acidente, derrame, tiro, facada etc.
agrupam-se cada qual em sua aldeia específica. Já os que morrem devorados
por apapaatai iyajo, por exemplo, não atingem a morada celeste, pois nesse caso
a extinção do corpo equivale a extinção da alma. A continuidade da vida
(enquanto valor metafísico) como alma depende da forma última do corpo logo
após a morte. A destruição total do corpo encerra qualquer possibilidade de
continuidade no post-mortem: o corpo é o estado formal absoluto da alma.

49 Talvez por isso fosse tão óbvio para o meu colaborador exegeta que os yerupoho continuassem
a viver “como” corpos. As almas só se multiplicam a partir de uma matriz, o corpo. Já as almas
dos mortos humanos que ascenderam à aldeia celeste existem num estado de total inércia (não
se multiplicam) e estão sujeitas ao desaparecimento, visto que podem ser devoradas, no céu, por
pássaros canibais,,quando há eclipse.
77

A preservação e os cuidados funerários com o corpo são imbuídos de


especial meticulosidade, como em nenhuma outra ocasião, pois terão um efeito
idêntico sobre a alma. Indaguei aos Wauja sobre a condição post-mortem dos
mortos por esquartejamento. A pergunta é em si desconcertante, pois este tipo
de morte é inconcebível para os Wauja, que evocavam imagens dos Kamayurá
do passado para afirmar que este tipo de morte é uma prática muteitsi apenas,
i.e. de índios canibais e violentos. Segundo os Wauja, a simples separação entre
cabeça e tronco já é suficiente para a “desintegração” metafísica entre alma e
corpo.
Para começar a entender a lógica dessa “desintegração”, basta recorrer à
geografia humana do céu: lá inexistem aldeias de pessoas sem cabeça, ou
aldeias de pessoas só com cabeça50. Há, portanto, uma “unidade formal mínima”
que constitui o corpo wauja — o tronco —, como veremos a seguir conforme as
etimologias. Essa hierarquização das partes do corpo só faz sentido porque o
foco da análise é a alma, é ela que nos permite entender que corpos sem um ou
mais dos quatro membros podem existir no post-mortem, mas na vida cotidiana o
discurso sobre o corpo não é colocado nesses termos, a integridade física é uma
condição moral básica51.
Nesse campo de contrastes semânticos com a alma, o corpo é antes de
tudo uma forma. Penso que assim como os Ashuar, os Wauja também endossam
a idéia de que o “corpo é a melhor imagem que podemos ter da alma e vice
versa” (Taylor, 1994: 206). Contudo, Wauja e Ashuar elaboram de modo distinto
as consequências dessa semelhança.
A relação entre corpo e alma não se limita apenas acf plano da isomorfia.
Há um outro sentido de causalidade que faz com que certas experiências da
alma tenham repercussões no corpo. Elas são mais intensas quando a alma está
em companhia dos apapaatai. Assim, se em seu passeio com os apapaatai, a
alma do doente come carne crua, ao acordar a pessoa sentirá gosto de sangue
na boca e vomitará. Os efeitos não são de todo imediatos, eles ocorrem quando a

50 Os únicos seres sem cabeça existentes no cosmo wauja são alguns tipos de apapaatai,
contudo é importante esclarecer que a ausência de cabeça é uma característica da “roupa”, e não
do corpo que veste a “roupa”.
51 Em meados de 1998, nasceu, em Piyulaga, uma criança com sindrome de Lowie. Os Wauja só
se deram conta de que a criança era “kanãkaki” (categoria que abrange os deformados, os
deficientes físicos e mentais e os gêmeos) alguns meses depois, quando perceberam que ela era
praticamente cega e que ela jamais andaria ou falaria. A criança foi retirada da aldeia em 2000 e
78

alma volta, i.e. quando o doente recobra a consciência. Mas as lembranças dos
sonhos não são tão exatas ou nítidas, permitindo que espaços de incertezas
sejam reconstruídos a posteriori. Se o doente simplesmente vomitar, ele dirá que
foi a alma dele que comeu comida de apapaatai, por isso ele está passando mal,
e então contará um sonho padrão (vide capítulo seguinte) em que reconstitui a
experiência para si e para seus interlocutores. Contar um sonho é muitas vezes
um artifício cognitivo para explicar a doença.
Etimologicamente, corpo, imagem e alma provêm da mesma raiz (pitsi).
Pitsi exclusivamente significa “feixe”, como em kanawlapitsi (“feixe de cana”), ou
“forma”. Em monapitsi, o prefixo mona redunda a condição tátil e concreta de pitsi
em uma forma cilíndrico-alongada (ahamona), o tronco, metonímia do corpo.
Monapisti adquire um valor semântico mais claro quando contrastado com outros
estados de transformação formal da matéria. Assim, monapitsiya significa um
corpo que adquiriu forma líquida ou algo líquido que está contido em uma forma
cilíndrico-alongada, como, por exemplo, a gasolina em um tonel — a gasolina
está em uma condição formal de monapitsiya. Ou ainda monapitsitsari, um corpo
de forma esférica, e monapitsixa, um corpo que adquiriu aspecto plano-chapado,
como, por exemplo, o de um corpo refletido no espelho.
Arrisco-me a endossar uma outra “etimologia especulativa” (assim
considerada pelo seu próprio autor) do termo mona(pitsi). Refiro-me ao trabalho
de Viveiros de Castro (2002c) sobre os afixos-modificadores (-kumã, -rúru, -mina,
-malú) dos conceitos-base entre os Yawalapíti. Em sua revisão recente sobre
esses afixos-modificadores, Viveiros de Castro (2002c: 34-35) defende a idéia do
sufixo -mina (-mona) como um corporificador de substâncias. À luz do que venho
expondo, parece-me bastante acertada a sua análise que contrasta -kumã e -
mina e os aproxima respectivamente aos sentidos dados aos conceitos de alma e
corpo. Assim, seguindo a reflexão de Viveiros de Castro, -kumã seria uma
condição espiritual do corpo e -mina uma condição corporal do espírito.
Upapitsi é a glosa que estou traduzindo por “alma” — possivelmente seja a
mais complicada de todas as traduções desta tese. O prefixo upa (de upawa,
outro), associado à raiz pitsi, nos dá a idéia de que a “alma” é um “outro pitsi" (um
outro corpo/feixe/forma?). Mas pitsi não significa apenas “feixe”, e nem upawa,

sua guarda foi definitivamente entregue a uma procuradoria federal. Longe, ela já não era mais
um “espanto” com o qual os Wauja precisariam conviver.
79

apenas “outro”. Pitsi é também “reflexo” e (n)upawa, “meu irmão”, mais


especificamente filho do mesmo pai, aquele cujo corpo foi feito do mesmo sêmen.
Upawa parece estabelecer uma relação de igualdade substancial e pitsi
uma relação de projeção e deslocamento (cf. the flying simulacra de Epicuro,
Gell, 1998: cap. 7). Vejamos o que essa polissemia nos diz à luz de mais dois
termos: potalapisti e upeke.
As exegeses que recolhi apontam para um tipo de sinonímia entre
potalapitsi e upapitisi. Nem toda potalapitsi é uma upapitsi, mas toda alma e uma
imagem/parte substancial de algum corpo. Gregor, explica a noção mehinako de
potalapitsi da seguinte maneira:

patalapiti is a representation of something that is real, but the


representation has a reality of its own. The picture of a spirit can be
dangerous because, like all pictures, it includes at least some of the
features that define real, substantial things, such as form or shape
(1977:41).

Mais do que conterem realidades em si mesmas, as imagens têm o poder


de serem potencialmente vivas: uma reza correta ou um eclipse podem animá-
las, e, em estados alterados de consciência, elas podem se mostrar vivas para
quem as vê. O que difere upapitsi de potalapitsi são os modos em que suas
agências se realizam. A intencionalidade da alma está associada à mente (os
Wauja não têm uma glosa para “mente”, talvez porque a mente seja a própria
alma), enquanto a imagem é uma intencionalidade de uma intencionalidade, e
sempre dependente de uma intenção exterior e anterior a ela.
Upeke é a outra noção chave para o entendimento da alma wauja, seja em
contextos gerais ou no contexto do seu “rapto”. Traduzo upeke por cópia, i.e. por
algo que está em uma relação de “igualdade” com um outro. A cópia tem um
valor imagético, é claro, mas ela é mais do que imagem, mesmo que tal relação
. de “igualdade” esteja ancorada na visualidade é necessário pensar a cópia como
^dotada de atributos outros que não apenas aqueles circunscritos à percepção de
imagens. No campo semântico da relação corpo-alma, upeke pode ser melhor
entendido como “duplo” — aqui nos deparamos novamente com o pensamento
de Taylor (1994): tanto a alma é uma “cópia” do corpo quanto este daquela. Os
Wauja não elaboraram, pelo menos para mim, nenhuma anterioridade de um ou
de outro elemento desta relação, não lhes preocupa saber se a alma é uma
80

“cópia” do corpo e vice-versa: essa “duplicidade” parece ser ontologicamente


dada.
Seguindo esse campo de problemas, a noção upeke mostra-se um pouco
mais complexa que a de potalapitsi, e também mais central para o entendimento
do rapto da alma. De um modo sumário, o rapto consiste em “copiar” a alma a
partir de um contato direto do raptor (o apapaataP) com ò corpo da vítima.
Voltemos mais uma vez ao problema conceituai da relação imagem-cópia.
Uma cópia da alma instaura-se de imediato como agente (em relação a um
apapaatai), diferentemente da imagem, que se instaura a partir de uma relação
agente-paciente. A imagem é algo fabricado — modelado, pintado, desenhado,
esculpido, fotografado etc. —, portanto, sempre dependente de agências
anteriores (dos artistas). As imagens só são dotadas de agência a posteriori. Se
comparadas às cópias-almas, elas são agentes em “segunda instância”. A cópia
é tão essencial e atual quanto o “original” (ou “matriz”) — daí a razão dela ser
mais do que mera “imagem”.
A condição deymultiplicação da alma,de um yerupoho é “xamânica” e
voluntária. Para os humanos, essa mesma condição é patológica e involuntária.
Os efeitos dessas diferenças veremos nos capítulos seguintes. Por ora, fiquemos
com a primeira condição, a dos yerupoho.
Os exegetas wauja explicaram-me que um yerupoho multiplica sua alma
(consciência) porque ele deseja passear por aí, saber o que se passa em todos
os lugares: os yerupoho são curiosos. Eles também vêm em busca de contado
com os Wauja. Eles vêm em busca de pessoas para as adoecerem.
Conforme os dados provenientes das exegeses míticas, é possível dizer
que a ontologia wauja concorda que “a condição original aos humanos e animais
não é a animalidade, mas a humanidade” (Viveiros de Castro, 1996: 119, grifos
do autor). No tempo antes do Sol, os Animais tinham a posse do que fazem, hoje,
os humanos serem humanos — o fogo e a agricultura — e, portanto, do que
faziam os yerupoho serem plenamente humanos. De alguma forma, todos os o
Animais têm algum traço que lembra a sua “humanidade” pristina: o seu corpo
antropomorfo e a sua consciência. Mas isso não é suficiente. Que sejam os
animais “gente”, contudo eles não são “gente” como a “gente”, dizem os Wauja. A
estes, parece interessar menos um provável “fundo comum” entre humanos e
não-humanos do que como lidar com as diferenças atuais entre eles. Minha
81

hipótese é que o nexo das relações entre humanos e não-humanos tem como
princípio a aproximação produtiva dos dois pólos, por meio de uma minimização <
das diferenças entre ambos. A possibilidade de aproximar os dois pólos é dada
pelas doenças graves e pelo ritual. São os yerupoho que oferecem aos humanos
os meios de dessa aproximação por meio da introdução de substâncias
xamânicas no corpo dos humanos e do rapto de suas almas.
Osseixos conceituais da diferença qntre humanos e não-humanos passam
pelo corpo (patogênico ou “de carne e osso”) e pela tecnologia (posse ou não do
fogo e da agricultura). As diferenças são minimizadas (1) quando os humanos
estão doentes, ou seja, com seu corpo repleto de “feitiços” e sua alma a passear
com os yerupoho-, (2) quando um Wauja mantém em seu corpo os feitiços
especiais doados pelos yerupoho, fazendo dele um xamã, ou melhor, alguém
próximo de um estado permanente de adoecimento, o que o coloca
constantemente próximo aos yerupoho/apapaatai; e (3) quando os
yerupoho/apapaatai são convidados a comer a comida dos Wauja em ocasiões
de sua distribuição ritual, ou não. O que a ontologia wauja parece postular é a
existência contextuai (não essencial, portanto) de aspectos não-humanos na
humanidade e aspectos humanos na não-humanidade. A apreensão deste
postulado é orientada por lógicas transformacionais que ora aproximam um ser
de um pólo ora de outro.
O paradigma básico das aproximações que minimizam tais diferenças são
os movimentos das almas dos humanos e dos yerupoho. O movimento das almas
humanas é descrito pelo sonho e transe xamânicos e pelo rapto da alma (assunto
do próximo capítulo), enquanto o movimento das almas dos yerupoho é descrito
pelo uso de “roupas”, função da sua capacidade de interferir nos negócios
humanos.
As almas multiplicadas dos yerupoho não vagueiam por aí simplesmente,
o processo de multiplicação guarda valores formais: a multiplicação é também
uma trans-forma-ção. Assim, a multiplicação da alma dos yerupoho revela uma
variação desconcertante de “roupas”, nas quais peixes podem assumir traços
passeriformes e vice-versa, panelas assumirem formas de morcegos, e pessoas
a forma de desenterradores de mandioca. Esse mundo de transformações
múltiplas e talvez aleatórias torna opacos estudos do tipo classificatório-
taxonômico da “natureza”. Qualquer classificação deve levar em conta as
82

propriedades das transformações. Assim, uma cobra pode ser um apapaatai


(monstro), um “espírito” ou um homem “vestido” nela, ou “simplesmente” uma
cobra. Para todos os efeitos, as múltiplas possibilidades de se ser nos empurram
para uma lógica do isto e aquilo e não do isto ou aquilo. Portanto, cobras não são
apenas cobras, mas todos os entes do leque potencial de transformações que lhe
cabe. Isto é o que também nos ensina Lima a respeito dos Juruna:

Parecia-me que enquanto nós pretendemos dar conta da totalidade


do universo distinguindo de um golpe as três ordens do Homem, da
Natureza e da Sobrenatureza, os Juruna procediam de outro modo.
Utilizando noções análogas, seu pensamento parece proceder por
partes, inventariando cada caso e distinguindo o que é humano,
divino e animal na classe dos humanos, na classe dos animais e na
dos espíritos (1999: 47).

E ainda:

A tríade de oposições [humano/não-humano, animal/não-animal,


espírito/não-espírito] pode se aplicar a cada ente ou tipo de ser, de
modo que, então, cada ente consiste em “um feixe de oposições”;
por exemplo, um caititu pode não ser um caititu, não ser um animal,
mas espírito (1999: 47).

O pensamento wauja opera pelo mesmo princípio juruna de aproximação


máxima entre a séries humana e não-humana e de manutenção de diferenças
interseriais num plano de instabilidade. Contudo, o pensamento wauja parece
não colocar igual ênfase na questão dos “pontos de vista” (Lima, 1996, 1999),
optando antes por uma idéia radical de transformação dos corpos e das almas
que coloca “tudo” em movimento. A questão central da ontologia wauja parece
ser menos a forma como os não-humanos vêem os humanos e vice-versa, do
que os modos como aqueles agem sobre estes. E as ações são, em primeira
instância, patogênicas, anunciando, por sua vez, que uma transformação está em
curso ou que ocorreu há bem pouco ou há muito tempo. O idioma primordial da
relação com os seres não-humanos dá-se, portanto, no domínio das diferentes
capacidades de manipular as potências xamânica e feiticeira e,
consequentemente, as transformações, as quais só se manipula quando se
conhece os seus meios e processos. Esse conhecimento é xamânico em toda a
sua extensão, seja na série humana ou na não-humana. Assim, se um humano
83

se Animaliza em função do seu adoecimento, a reversão da transformação


compete unicamente a um saber e a uma prática xamânicas. Talvez sejam estas
as condições fundamentais para a troca dos pontos de vista: Animalizar-
se/xamanizar-se. “O que a teoria juruna enfatiza é a luta entre os pontos de vista
e que a realidade é o que o ponto de vista afirma” (Lima, 1999: 48, grifos da
autora). Se há uma “luta entre pontos de vista” no pensamento wauja, o ponto de
vista que procura se afirmar é o da patologia, aquele que é capaz de propor, a
um só tempo, a diferença e a continuidade entre humanos e não-humanos.
84

3
DOENÇA E FEITIÇARIA

3.1
WÍTSIXUKI, A DOENÇA COMO ESTADO DA ALMA

A partir deste capítulo começo a detalhar algumas das(relações físicas,que


os Wauja e os apapaatai estabelecem entre si. Todos os modos relacionais têm
como suporte a alma e o corpo, os quais apresentam uma enorme complexidade
conceituai quando vistos a partir da atuação de múltiplos agentes patogênicos.
Essas relações são inicialmente mediadas pela capacidade de agência
patológica dos apapaatai, e estão fundadas em três princípios básicos de
diferenças entre os humanos e os não-humanos, conforme apresentei no capítulo
anterior. O primeiro princípio repousa sobre as distintas propriedades
substantivas dos corpos de' ambos; o segundo nas possibilidades de
multiplicação involuntária da alma dos humanos, e voluntária, no caso dos
yerupoho-, e o último princípio nos modos de consumo alimentar: cru entre os
não-humanos e cozido entre os humanos. Este tema, introduzido no capítulo
anterior, será retomado a partir do próximo capítulo.
Esta tese não aborda o sistema médico wauja, que obviamente envolve
variadas formas e graus patológicos. Interessam-nos apenas os estados graves
de adoecimento, aqueles em que é dito estar “morto” (kamãT) o doente, ou seja,
enquanto seu corpo permanece “morto” na rede, sua alma é dita estar passeando
com os apapaatai. De alguém convalescido, em coma ou paralisado pela dor
extrema, diz-se que os apapaatai o estão “matando”. A doença grave é vista
como um processo lento de falecimento. Quanto mais tempo o doente
permanece inconsciente — em função dos prolongados passeios e da sucessiva
distribuição de frações da sua alma entre diversos apapaatai — maior é a
percepção da doença como “morte”. Quando o doente recobra a consciência, ele
descreve seu passeio (tuneke) como uma experiência onírica. Enquanto se
passeia, morre-se “pouquinho”. Mas a morte definitiva, i.e. quando o corpo já não
85

apresenta mais nenhuma resposta vital, é resultado de uma multiplicidade de


causas que serão analisadas oportunamente em outra seção.
Prossigamos com um depoimento de Atamai:

Minha doença pegou-me de surpresa. Eu estava trabalhando


na limpeza da minha roça. Eu acho que tive wTtsixu, talvez por ter
esquecido de tomar mingau. Eu acho que fui para a roça com
vontade de comer alguma coisa. Quando eu saí de casa eu me
sentia muito bem.
Na roça fazia muito calor, e eu fiquei muito suado. De
repente, apareceu uma coisa nos meus olhos, eles pareciam cheios
de fumaça. Eu pensei que fosse conjuntivite, mas eu não sabia o
que era. Voltei para casa e contei para a minha mulher:
— Eu não estou conseguindo enxergar bem. Parece que tem
fumaça nos meus olhos, como uma cegueira.
Eu não sabia o que fazer. Resolvi esperar um pouco, pois eu
pensei que fosse apenas uma sujeira que tinha caído nos meus
olhos. E assim eu fui trabalhar na roça de novo, sem me preocupar
com nada. Só mais tarde eu percebi que eu estava com uma
doença grave.

Esse fato se deu alguns meses antes da internação de Atamai em Brasília,


no início da década de 1990. Mas como o que ele achava ser “apenas uma
sujeira” evolui para uma doença tão grave?

Eu tentava tirá-la (a sujeira) dos meus olhos, mas eu não


conseguia. Passaram-se uns dias e veio uma dor forte. Quando
começou uma festa aqui na aldeia, eu tive muita dor, sofri muito.
Logo que terminou a festa, meu sofrimento aumentou muito mais.
Eram os apapaatai que estavam entrando no meu corpo, cada vez
mais e mais.

Para os Wauja, toda doença grave principia de um estado muito específico


da alma, o wTtsixuki. Embora, as doenças sejam deflagradas por um “estado
interno”, elas são invariavelmente consideradas um agregado de substâncias
externo ao corpo do doente. Toda doença existe pela introdução de artefatos
patogênicos no interior do corpo ou pela distribuição destes nas proximidades
geográficas onde vive o doente. O doente grave é sempre uma vítima de alguém
que fez algo fisicamente concreto para adoecê-lo.
Os Wauja não possuem termos específicos para “cada” doença. Se eles
têm uma conjuntivite, apenas dizem ojutai kaupai— ojutai traduz-se por “olho” e
kaupai é o verbo que indica um estado indiferenciado de dor, assim ojutai kaupai
86

especifica que a dor é no olho. Kauki é o termo genérico para doença e também
para dor. E o termo genérico para doente é kaukitsupá, “aquele que tem dor”.
A doença é basicamente um sinónimo de dor, e dores são, antes de tudo,
efeitos de substâncias estranhas ao corpo, as quais os Wauja denominam ixana.
Ixana é um termo genérico que traduzo por substância/artefato patogênico e que
abrange as flechinhas de apapaatai (apapaatai onukula), as flechinhas de ixana
wekeho (“dono de feitiço”, i.e. um humano que manipula ixana) e o Tyãu opotalá,
um tipo de feitiço também manipulado por ixana wekeho, mas que atua fora do
corpo das vítimas.
Nenhum Wauja foi capaz de me explicar, em detalhes, a natureza
substantiva dos ixana, sempre respondiam: — “Eu não sei, Neto. Ixana wekeho
sabe. Pergunta pra ele”. Como ninguém jamais assumiria ser um feiticeiro, obter
depoimentos detalhados e prolongados sobre feitiçaria é algo (quase) impossível.
Meus dados sobre o assunto são contingentes e advêm, sobretudo, de casos
específicos de adoecimentos, nos quais são comuns diagnósticos envolvendo
feitiços humanos e não-humanos52. No início da pesquisa, surpreendeu-me o fato
dos Wauja evitarem oferecer maiores informações sobre os feitiços de apapaatai.
Eu sabia que o assunto tabu era a feitiçaria humana, portanto, abordar as
“coisas” de apapaatai, não deveria ser uma dificuldade a enfrentar no campo. Na
verdade, eu tinha a impressão, dada por algumas etnografias xinguanas (e.g.
Basso, 1973; Viveiros de Castro, 1977), de que as feitiçarias humana e não-
humana constituíssem domínios separados. Ao contrário, eles apresentam pelo
menos um nível de aproximação, o qual diz respeito exatamente às substâncias
que produzem os feitiços. O que se sabe é que os feiticeiros manipulam refugos,
exúvias e objetos oferecidos/abandonados por certos yerupoho e vice-versa,
conforme se percebe pelo depoimento recolhido por Fénelon Costa entre os
Mehinako:

Kamínkia é feiticeiro. É preto. É pequeno (mostrou o tamanho de


uma criança de 5 anos). Morrem cedo, até a idade de Kumatí (isto
é, atingem cerca de 30 anos). Tem cabacinhas com todo [tipo de]
feitiço, óleo de pequi, outros. Flechinha, arquinho com feitiço. Têm
brincos com feitiço. Quando morre Kamínkia, se um feiticeiro
[humano] o encontrou, dos seus ossos faz feitiço ainda mais forte.
Se um feiticeiro o encontra no mato, troca com ele feitiços: um dá ao

52 Vide a sistemática dos diagnósticos xamânicos no capítulo 4.


87

outro os feitiços que tem. Às vezes alguém morre, e é Kamínkia que


matou, e os parentes pensam que é feiticeiro (Fénelon Costa, 1988:
149, grifos meus).

É sobre esse universo estreito da troca de substâncias que os Wauja


evitaram, a todo custo, expor seus conhecimentos. Os Mehinako, conforme se
pode depreender das etnografias de Gregor (1977) e Fénelon Costa (1988),
sentem-se mais à vontade em torno desse assunto do que os Wauja. O Kamínkia
mehinako me foi identificado como sendo o yerupoho Kawixá, com a diferença de
que este vive no céu. Na verdade, ele passa a maior parte do seu tempo
pairando sobre a terra, para onde desce a fim de adoecer os humanos.
Entretanto, para os Wauja, os yerupoho não morrem de velhice e muito menos
aos 30 'anos, exceto, talvez, quando são mortos por um outro yerupoho.
Vendetas entre yerupoho podem ocorrer em função da disputa por almas
humanas.
Com a ressalva de algumas exceções, os corpos dos yerupoho são
constituídos de ixana (feitiço). Assim, certos yerupoho podem ser considerados
um grande feitiço ambulante. Mas o problema vai além disso, qualquer mínima
parte de seus corpos são feitiços, em especial, fios de cabelo, pele, unha, dentes,
ossos, fezes, urina, sangue e esperma, mesmo objetos que os yerupoho
manipulam, como as “roupas”, são dotados de capacidade patogênica. O
problema está nessa relação de sinédoque entre partes destacáveis do corpo e o
corpo.
Um feitiço de yerupoho/apapaatai é algo material/substancial, possui
formas visuais definidas e odores próprios, mantém uma relação direta com o
corpo/“roupa” do “agressor”. Mas um feitiço é também uma intenção, cuja
principal particularidade é não se formar na consciência (mente) do yerupoho. A
intenção, neste caso, está na matéria, a qual foi (é) ontologicamente constituída
como doença para os humanos^ Intenção, aqui, não é uma questão mental e sim
corporal. Em geral, os yerupoho/apapaatai não são conscientemente maus, são
seus corpos/“roupas” que não são substantivamente compatíveis com os corpos .
humanos. O corpo/“roupa” de um yerupoho/apapaatai é “naturalmente” uma
intenção-doença que eles não controlam plenamente, contudo há exceções
importantes, como veremos adiante. As substâncias corporais/indumentárias
desses seres possuem propriedades patológicas per se. Digo per se, pois não se
88

trata de um “feitiço alquímico”, como no caso do ixana wekeho, que domina a


tecnologia da combinação dos elementos para produzir feitiço. Um yerupoho não
é, tomando de empréstimo o termo de Viveiros de Castro (1977: 231), um
“tecnólogo do feitiço”, ou melhor, um “tecnólogo do mal”. Os yerupoho/apapaatai
não são, como os feiticeiros humanos, fazedores de “feitiços”, suas flechinhas,
vetores de sua agência patológica, são partes do seu próprio corpo/“roupa”, são
emanações destes.
Os Wauja deram-me poucas explicações sobre a razão dos corpos dos
yerupoho serem assim, eles simplesmente surgiram com essa natureza, do
mesmo modo que Kamo conferiu aos humanos um corpo particularmente “não-
agressivo” (sem garras, presas e venenos), “fraco” diante dos yerupoho. Quanto
aos humanos, sabe-se, apenas por oposição, que Kamo escolheu para eles uma
natureza de corpo diferente daquele que tinha seu pai, o yerupoho Yanumaka
(Onça). Todo o esforço de Kamo e Kejo foi se diferenciarem do seu pai,
conduzindo os humanos para essa diferenciação. Ainda que criados por Kamo,
os humanos não herdaram seus poderes. Contudo, ao custo de grandes
dificuldades e provações, os humanos podem manipular certos poderes que
Kamo manipulava ao se tornarem xamãs ou feiticeiros.
Os mitos do capítulo anterior mostram uma constante disputa de
habilidades e inteligências entre Kamo e os yerupoho. Ao colocar o astro solar no
céu, a intenção de Kamo era exterminar os yerupoho, queimá-los vivos ou, na
melhor das hipóteses, apenas bani-los da superfície terrestre. Mas para estes foi
mais uma prova de suas capacidades: os yerupoho mais inteligentes criaram as
“roupas”. Poucos dentre eles ficaram expostos ao Sol. Estes se tornaram grandes
monstros canibais, na verdade, uma das raras exceções à regra-“roupa”. São as
“roupas” que permitem os yerupoho trafegarem entre grandes distâncias e por
quaisquer lugares, e assim, consequentemente, a se aproximarem dos humanos.
Os yerupoho que não usam “roupas” são geralmente confinados a lugares
específicos.
As aproximações entre humanos e yerupoho/apapaatai podem resultar em
doença grave ou perturbação psicológica que os Wauja traduzem por “ataques”.
Há uma série de variáveis que determinam se a aproximação causará desde uma
simples diarréia até uma doença “gravíssima”, envolvendo a “perda” da alma. Por
que e como essas patologias ocorrem? De imediato, digo que elas não ocorrem
89

por pura e simples intenção dos yerupoho e muito menos dos humanos. Como
disse acima, a feitiçaria não é uma intenção mental do yerupoho, apenas
feiticeiros humanos agem deliberada e premeditadamente, e quando agem, o
sentido da sua ação é sempre maléfico ou, em muitos casos, letal. Os yerupoho e
apapaatai podem até atingir alguém com uma doença grave, mas essa ação não
é vista, por eles próprios, como algo maléfico. Como diz Itsautaku, um dos mais
importantes yakapá do Alto Xingu, “os apapaatai querem ajudar, eles te adoecem
para depois te ajudar”. Quase todas as ações dos apapaatai são revertidas em
conhecimentos socialmente importantes. Deles se aprende música, desenho,
dança, e procedimentos terapêuticos: os apapaatai introduzem doenças, mas
eles ensinam como tirá-las. Eles são mestres de conhecimentos esotéricos.
Contrariamente à feitiçaria humana, sua ação patológica culmina em festas e não
em mortes.
Os Wauja não me pareceram preocupados em refletir sobre a razão pela
qual os yerupoho/apapaatai possuem um corpo/“roupa” potencial e (quase)
inevitavelmente patológico para os humanos. Trata-se simplesmente de uma
verdade ontológica. Para os Wauja, a questão central é como e por quê os
yerupoho se aproximam dos humanos.
Quando se pergunta para um Wauja o por quê dele ter adoecido, jamais se
obterá uma resposta do tipo: “porque assim quis tal apapaatai”. Mesmo que ele
narre uma longa história ele sempre conduzirá sua resposta para algo como:
“porque tive wTtsixu53”, ou, no pior dos casos, responderá secamente: “porque
feiticeiro quis me matar”. Por ora, fiquemos com a resposta mais usual.
Em uma das narrativas sobre adoecimento que coletei, esse tipo de
resposta veio logo na primeira frase: “wTtsixu Tupará, siya ouneke sekuya” (“faz
tempo, Tupará teve wTtsixu, ele queria mamar”), narra uma mãe o exato momento
em que seu filho, um bebê de aproximadamente 10 meses, deflagrou o processo
que o levou a ficar seriamente doente. A mãe de Tupará não atendeu o seu
desejo imediato por leite. Era necessário que Tupará fosse amamentado
precisamente no momento em que ele demonstrou desejo, pois o estado de
wTtsixuki instaura-se tão rápido quanto um piscar de olhos.
O wTtsixuki é a categoria central para o entendimento da noção de
- i ■ ‘

patogênese entre os Wauja. Trata-se de um estado decorrente de um desejo


90

alimentar não satisfeito de imediato. Embora de modo muito raro, o desejo


ardente e insatisfeito de ter relações sexuais também pode causar witsixuki, pois
o sexo é uma forma alimentar de relação.
O witsixuki não é um estado corporal, e nem tem uma ligação direta com a
fome (yumanakuki), este sim um estado corporal. O witsixuki é um estado da
alma que nos fala primordialmente sobre o descontrole dos desejos alimentares.
Usarei alguns dos exemplos construídos por um dos meus informantes:

Eu posso ter acabado de comer, não tenho mais fome, mas a


comida que eu realmente quero foi guardada para mais tarde,
pronto, já estou wltsixu; eu posso estar com fome, mas mesmo
assim não tenho vontade de comer nada em especial, aí não estou
wltsixu; um dia estou sentado na praça da aldeia, vejo alguém
passar com peixes e fico com vontade de comê-los, pronto já estou
wltsixu; eu posso receber um pedaço de mutum assado, mas
oferecem-me somente a asa, mas eu tenho vontade daquela coxa
que estou vendo, pronto já estou wltsixu; pode ser que um dia eu
volte da pescaria com vários peixes, mas aquele matrinchã que eu
queria comer acaba sendo comido por meu cunhado, pronto já
estou wltsixu; um dia eu vou visitar meus parentes que chegaram da
cidade, eu vou sem fome para a casa deles, lá, vejo que as crianças
comem biscoito, mas elas não me oferecem, eu desejo comer
daquilo, mas eu não peço, pronto, já estou wltsixu; o meu pai chega
com peixes e os entrega para minha mãe, ela os cozinha e guarda
um pouco para eu comer mais tarde, porque eu não tinha vontade
de comer naquela hora, mas meu irmão descobre e come toda a
minha comida, aí quando eu volto, fico com vontade de comer
daquele peixe que meu pai pescou, mas acabou, pronto, já estou
wltsixu.

Para produzir o estado de witsixuki, um indivíduo não precisa estar com


fome, nem estar com o pensamento fixado em comida. O objeto do pensamento
não é de todo determinante, pois o witsixuki não é simplesmente gerado por uma
imagem mental em torno dos alimentos, mas sobretudo por uma visão concreta
destes. A questão centra-se mais na relação entre ver e desejar e menos na
relação entre pensar e desejar. É o desejo pelo que se vê, não pelo que se
imagina, que, em primeira instância, funda essa categoria. Em um sentido amplo,
o witsixuki ancora-se em uma relação visual.
O witsixuki não se mede em gradientes de intensidade, ele é um estado
que se manifesta apenas de modo integral e sempre por igual, não sendo

53 Usa-se wltsixu quando o sujeito é determinado e witsixuki quando há uma indeterminação do


91

portanto como o calor, a fome, a raiva e o medo que podem ser sentidos de
acordo com variações de intensidade. Também não é o wTtsixuki um sentimento,
um estado perceptivo ou uma sensação que pode ser corporalmente detectada.
Um indivíduo só toma conhecimento do seu próprio wTtsixu a posteriori, ou
melhor, quando ele cai doente. O wTtsixuki não é nem da ordem do sentir nem da
ordem do pensar. Também não pode ser intencionalmente provocado por si ou
por outrem. O wTtsixuki não tem valor moral, como os sentimentos e as ações.
As doenças graves principiam por um estado da alma e se elas se tornam
um estado corporal é porque alma e corpo implicam-se mutuamente, mas nem
sempre de modo simétrico, como veremos a seguir. Quando a pessoa está
wTtsixu a sua alma adquire uma espécie de “saliência visual”54 em relação ao
corpo, fazendo com que ela se revele aos apapaatai. Embora estes sejam
capazes de saber sobre tudo o que se passa com os humanos, — seus desejos,
pensamentos e sentimentos —, a sua percepção sobre o wTtsixuki não se
processa apenas por uma “leitura” da mente humana, é necessário que o
apapaatai veja essa “saliência” da alma. O wTtsixuki é percebido pelos apapaatai
como uma manifestação física da alma dos humanos, é quando ela se revela na
perspectiva dos apapaatai, tornando-se visível e tátil para eles. É nesse momento
que a intenção-corpo dos apapaatai entra em ação, de um modo tão repentino
quanto quando se entra em estado de wTtsixuki, aproveitando a “saliência”
adquirida pela alma para raptá-la55. Enfim, os Wauja entendem o desejo como
algo sem rédeas, incontrolável por natureza. E a coisa desejante é a alma, ou
melhor, é o desejo (insatisfeito) que funda a alma e, consequentemente, a
relação patogênica entre humanos e apapaatai.
Simultaneamente ao rapto, vários “feitiços” de apapaatai adentram o corpo
humano devido à proximidade que estes mantiveram entre si durante o rapto.
Para penetrarem no corpo humano, esses “feitiços” possuem a forma de
flechinhas (uku), na verdade minúsculas partes destacáveis da roupa ou do corpo
dos yerupoho responsáveis pelas sensações de dor: elas são a manifestação
concreta de uma doença, i.e. de uma relação com um apapaatai. As flechinhas
dos apapaatai {apapaatai onukula) acabam tornando o corpo do doente “fraco” e

sujeito ou para se referir a um estado genérico de wítsixu.


54 Os Wauja não usam o termo “saliência”, eles apenas dizem que os apapaatai conseguem ver e
tocar a alma, na condição de wTtsixu a alma torna-se apreensível.
55 Ekepe é o termo wauja para rapto.
92

“sofredor”. De acordo com uma relação de sinédoque, o doente passa a ter


dentro de si um corpo não-humano miniaturizado. O corpo torna-se continente de
outra coisa que não sua substância vital (alma), esta é “automaticamente”
substituída por uma outra substância, o corpo miniaturizado do apapaatai. O V
conteúdo-dor é apenas uma condição inevitável do rapto da alma, de uma troca
de substâncias. O objetivo das flechinhas é tornar o corpo do doente não-
receptivo a alma que foi raptada. A dor é apenas um efeito da permanência das
flechinhas, as quais devem ser retiradas por completo para que a alma possa ser
reintroduzida com sucesso no corpo. Assim, conforme essa noção de
patogênese, o doente passa a ter apapaatai dentro de si, e os apapaatai a ter a
alma humana em sua companhia.
Como o witsixuki não tem intensidade, o rapto, portanto, não depende da
profundidade/intensidade do desejo, mas da força e da agilidade do apapaatai
que percebeu o witsixu da pessoa. Cada rapto singular corresponde a um estado
de witsixu. Contudo, não são todas as vezes que um indivíduo estiver witsixu que
os apapaatai irão raptar sua alma. Ele pode ter proteção especial contra o rapto,
fazendo com que este seja impedido, adiado ou que tenha consequências menos
graves do que normalmente teria. As crianças de até aproximadamente 5 anos
de idade são as criaturas mais vulneráveis ao rapto, não porque elas são as
menos prováveis de controlar seus desejos — nem mesmo os adultos controlam
o witsixuki, pois não sendo ele um estado mental, não será emitindo
pensamentos contrários ao desejo que se irá controlá-lo —, mas porque elas não
têm a proteção especial que referi. Essa proteção depende de uma biografia
repleta de adoecimentos graves pregressos que culminaram em uma
“domesticação” dos apapaatai “agressores” por meio da oferta de alimentos e
festas. Satisfeitos, esses apapaatai acompanharão e protegerão, na medida de
sua capacidade, o ex-doente até o fim de sua vida; os apapaatai nessa condição
específica são chamados de kawoká (retorno a este assunto no próximo
capítulo).
Recolhi um depoimento que esclarece a reação de agentes patogênicos
feitos por feiticeiros, como o perigosíssimo Tyãu opotalá, diante do witsixuki. Em
uma situação como esta, o witsixuki pode vulnerabilizar uma pessoa a ponto de
falecer.
93

No princípio do ano 2000, uma mulher kamayurá muito desejosa de


comer peixe foi até o posto Leonardo para ver se seu filho lhe
pescaria algo. Ao chegar lá não o encontrou, resolvendo voltar para
a sua aldeia. Na estrada, havia um tronco caído que provocou um
acidente no veículo que a transportava. A mulher sofreu um
traumatismo craniano e morreu pouco tempo depois a caminho de
sua aldeia.
O mesmo informante disse que os xamãs kamayurá descobriram
posteriormente que, no local exato onde aconteceu o acidente, um
feiticeiro havia colocado um fortíssimo Tyãu opotalá que era
destinado a atingir o motorista do veículo. Mas como era a mulher
que estava com wTtsixu (com a insatisfação do desejo de comer
peixe, portanto vulnerável), o feitiço acabou tendo efeito apenas
sobre ela (Barcelos Neto, 2002: 228-229).

Este exemplo mostra que o estado de wTtsixuki pode se prolongar por


algumas horas e responder não só à agência dos apapaatai mas também à dos
feiticeiros, contudo seus efeitos são distintos. A agência dos primeiros causa, no
máximo, doença graves, e a dos últimos pode levar a morte.

3.2
O RAPTO COMO MULTIPLICAÇÃO E SUBTRAÇÃO DA ALMA

Logo que alguém entra em estado de wTtsixu, os apapaatai tomam


imediato conhecimento, porque, segundo os Wauja, eles sabem tudo, descobrem
pensamentos e sentimentos, escutam conversas à distâncias incríveis e fazem
uso de “roupas” (que podem funcionar como “aviões” ou “helicópteros”) que lhes
permitem transpor longas distâncias em pouquíssimo tempo. Os apapaatai são
onipresentes e oniscientes.
Por meio do wTtsixuki, a alma torna-se perceptível e “saliente”, permitindo
que esta seja tomada de assalto pelo apapaatai. A ação é tão repentina quanto f
um piscar de olhos. Ás vezes, o indivíduo pode perceber o assalto como um leve
susto ou arrepio. Diz-se apapaatai ekepewo opapitsi {apapaatai raptou a alma
dele). O verbo ekepepai refere-se a qualquer objeto que foi rápida e
violentamente retirado de um lugar específico, implicando em seu imediato
desaparecimento e no desconhecimento do seu destino. Ekepepai é também o
verbo empregado para se referir ao rapto de pessoas, e não apenas de almas.
94

É comum encontrar na literatura etnográfica traduções do tipo “roubo da


alma”. Em um certo sentido, ekepeke não deixa de ser um “roubo” (emetsuapai).
Todavia, o processo do rapto é conceitualmente muito mais sofisticado do que
um simples “roubo”. Essa “sofisticação” deve-se ao “objeto” do “roubo”, a alma.
Mas o que os Wauja entendem por “alma”?
No capítulo anterior, apresentei uma definição wauja de alma humana 4
como sendo o duplo material/visual do corpo, passível de ser multiplicado
enquanto imagem e igualmente de ser subtraído enquanto substância vital. De
modo sumário, 0 rapto consiste em “copiar” a alma a partir de um contato direto
do raptor com o corpo da vítima. Como disse antes, a “saliência visual”
provocada pelo wítsixuki é o que permite os apapaatai fazerem tal cópia. Os
Wauja a descrevem fazendo analogias com a isomorfia observada no processo
fotográfico. O valor ontológico da cópia é essencial-substancial, portanto cada
cópia é, do ponto de vista da alma e dos yerupoho/apapaatai, uma multiplicação
e, do ponto de vista do corpo moribundo e dos familiares do “morto” (kamãT,
doente em estado grave), uma subtração. Uma cópia é uma fração da alma-vida-
sujeito. Essa relação entre cópia e sujeito foi, há muito, identificada por Frazer e
mais recentemente discutida porTaussig:

this notion of the copy, in magicai practice, affecting the original to


such a degree that the representation shares in or acquires the
properties ofthe represented (apud Gell, 1998:100, grifos do autor).

No caso wauja, o original é o corpo, e a cópia é a fração da alma, o agente


afetante do corpo.
Seguindo esse campo de problemas, a noção upeke (cópia) mostra-se um
pouco mais complexa que a de potalapitsi (imagem) e também mais central para
o entendimento do rapto da alma. Como mencionado anteriormente, o rapto
consiste em copiar a alma a partir de um contato direto do raptor com o corpo da
vítima. Como disse antes, a “saliência visual” provocada pelo wítsixuki é o que
permite que os apapaatai façam as cópias. O wítsixuki causa uma “liberação”, um
“afrouxamento” da frágil unidade corpo/alma que jamais ocorreria de outro modo.
Sem wítsixuki não há rapto, não havendo, portanto, adoecimento grave e nem
morte.
95

Os Wauja dizem que todo processo de adoecimento grave é prolongado, a


não ser que o agente patogênico seja um Tyãu opotalá, mas nesse caso o efeito
pode rapidamente culminar em morte ou em sequelas, raramente ou quase
nunca reparáveis. Por ora, concentremo-nos nas doenças de apapaatai.
Ao passo que a alma é raptada, “flechinhas de feitiços” são introduzidas no
corpo do doente pelos seus raptores. As flechinhas não apenas debilitarão o
corpo, mas também dificultarão que a alma se reinstale. Em um rapto, nunca se
leva a alma por inteiro, apenas uma parte. A “quantidade” de alma (substância
vital) raptada depende da força do apapaatai raptor; essa força está em nos
objetos que ele porta (e.g. “roupa”, flauta, clarinete, adornos etc.) e no seu corpo,
feito de substâncias patogênicas. Se uma grande fração da alma for levada de
uma só vez, a gravidade da doença será maior, mas isso envolve também as
“flechinhas de feitiços”: a quantidade de alma levada é proporcional à quantidade
de flechinhas introduzidas no corpo. Portanto, uma doença grave é também uma
troca involuntária de substâncias, ou seja, de substância patogênica de apapaatai
por substância vital de humanos. É importante lembrar que todo esse processo
nada tem a ver com a intensidade do wTtsixuki, que, com efeito, não se manifesta
em escalas de qualquer tipo. A qualidade das doenças é função da substância e
não do wTtsixuki, mas por outro lado, a quantidade de doenças é função do
wTtsixuki.
A um primeiro rapto, quase invariavelmente sucedem-se outros, fazendo
com que o que sobrou da alma seja distribuído (raptado por) entre outros
apapaatai.
Voltemos ao caso de Atamai, que explicita um percurso clássico.
Primeiramente, ele vai à roça e entra em estado de wTtsixu, lá tem sua
alma raptada. Atamai retorna à casa e sente dores, mas acha que era “apenas
sujeira”. A essa altura, uma pequena fração de sua alma já tinha sido raptada e
simultaneamente algumas flechinhas de apapaatai já tinham sido introduzidas em
seus olhos. Mas Atamai ignora a “sujeira” e resolve “esperar um pouco”, voltando
a fazer trabalhos na roça. Nessas idas e vindas à roça, Atamai teve novos
wTtsixu, sofrendo, portanto, novas abordagens patogênicas dos apapaatai.
“Passaram-se uns dias e veio uma dor forte”, ou seja, a perda de substância vital
e a quantidade de flechinhas tinham aumentado a um ponto insuportável: o corpo
96

de Atamai começava a mostrar sinais de que entraria em colapso (“só mais tarde
eu percebi que eu estava com uma doença grave”).
Caso os cuidados xamânicos contribuam para a melhora do doente, ele
rapidamente retorna às suas atividades básicas pessoais, como ir ao banheiro
sozinho e tomar banho na lagoa. Todavia, sair do espaço da aldeia sem estar
plenamente recuperado sempre implica riscos, pois nunca se sabe quando se
está witsixu. Assim, ainda fraca, a pessoa poderá sofrer novas abordagens
patogênicas dos apapaatai. Esse processo de melhora e piora, i.e. de sucessivos
raptos e de extração de flechinhas, pode se estender por vários dias, semanas ou
até meses a depender do caso. A segurança de que a alma do recém doente não
será seguidamente raptada após breves melhoras depende diretamente da-
realização dos rifuais de máscaras e/ou aerofones.
Quando uma unidade anímica (i.e. uma pessoa) é fracionada (raptada) por
distintos apapaatai ao longo de um processo singular de adoecimento, tem-se
uma ampliação das suas possibilidades de contato com as subjetividades não-
humanas, e ainda uma ampla distribuição da pessoa raptada sobre o espaço
cósmico, pois os habitats dos apapaatai não são necessariamente coincidentes.
Contudo, quanto maior for a distribuição da pessoa e mais espalhadas e
distantes estiverem suas frações-cópias umas das outras, mais adverso será o
adoecimento e maiores também deverão ser os festejos, pois uma maior
distribuição da alma implica um maior número de apapaatai envolvidos, portanto
um maior número de personagens rituais a alimentar56.

3.3
Destinos da alma

Saindo do terreno do rapto, a noção wauja de alma apresenta outras


nuances descritivas e analíticas. Comparativamente ao corpo, a alma wauja não
pode ser abordada enquanto uma unidade, como bem vimos acima. A natureza

56 Compare-se, por exemplo, tal modelo de fragmentação múltipla com o material ikpeng de
Rodgers: “o agente afetante é invariavelmente múltiplo. O sujeito ikpeng afetado começa a entrar
em uma mescla populacional, se somando a esta, suplementando um povoamento heterogéneo
97

múltipla que a constitui está além do contexto do rapto e da condição de vivente


do sujeito; no post-mortem essa multiplicidade evidencia funções-destino
específicas da alma, permitindo entender melhor as relações dos Wauja com os
apapaatai.
Além da upapitsi (a susbtância vital, o “outro corpo”), os Wauja distinguem
mais dois “tipos” de “alma-imagem” — yakula (literalmente “sombra”) e ojutai
ogamawato (literalmente “algo refletido no olho”, podendo ser melhor traduzido
por “alma no (do) olho” ou simplesmente “alma-olho”)57 — e um “tipo” de alma-do-
morto, iwejekui (“vulto” ou “espectro do morto”). Esta classificação ternária pode
ser minimizada ao nível da upapitsi como uma categoria geral de referência para
alma. As primeiras exegeses levaram-me a pensar que se tratava de três “tipos”
dissociados de alma, todavia uma interpretação mais cuidadosa de novas
exegeses alinha conceitualmente as três almas como manifestações da
multiplicidade da upapitsi — manifestações enquanto “sombra”, “reflexo” ou
“espectro”. Essas três almas são sempre a imagem do corpo do sujeito, sendo
portanto visualmente iguais entre si.
No sujeito vivente, yakula e ojutai ogamawato existem em um plano
potencial e imagético (na verdade, como artifícios descritivos sobre a alma ou
meios de apreensão visual desta), embora sem a substância vital que caracteriza
a upapitisi. É apenas no post-mortem que a substância vital é incorporada a
essas “imagens”, tornando-as agentes. Com a morte, a yakula desprende-se do
corpo e uma parte da upapitisi lhe é automaticamente incorporada, que então
passa a ser chamada de iwejekui. Seu destino único é o céu, sua função é
permitir um certo contato com os que ficaram para trás, os vivos. Outra versão diz
que é a ojutai ogamawato que se transforma em iwejekui. Isso não se configura
1
uma contradição, pois nem yakula, nem ojutai ogamawato são distintas em V V'
natureza, em seus planos potenciais elas são a mesma coisa, embora
manifestadas de modos diferentes.
. Transformada em “espectro do morto”, a yakula (ou a ojutai ogamawato,
conforme a versão) segue para o céu, atualizando a sua potência subjetiva. No
piano terreno, permanece a ojutai ogamawato (ou a yakula) que, desprendida do

(Rodgers, 2002: 102). E daí com a discussão sobre a pessoa fractal na melanésia (Strathern,
1988 e Gell, 1998).
57Ogamawato refere-se a algo que reflete sobre o líquido ou sobre algo dotado de profundidade, é
igualmente dito para reflexos na água, mas não para reflexos no espelho.
98

corpo do morto, é buscada pelo principal apapaatai que lhe causou, no passado
remoto (ou recente, embora de modo mais raro), uma doença grave. Esse
apapaatai foi seu companheiro-protetor (kawoká) ao longo da vida. Os dois
principais destinos da alma são, portanto, as aldeias celestes de humanos e os
variados habitats dos apapaatai.

Quadro 3
Transformações e distribuições espaciais dasfrações-alma no post-mortem

Aldeias Iwejekui (“alma dos mortos”)


celestes

Qjutai ogamawato

Upapitisi (alma) Takula vivente com os


apapaatai

em qualquer
espaço do cosmo

No post-mortem, a iwejekui instaura-se como uma categoria especial de


M
alma”, com uma dinâmica própria sobre os negócios dos vivos. A iwejekui pode
sair de sua morada celeste e voltar na forma de raposa ou coruja. Meus
informantes mais entendidos do assunto disseram-me não se tratar de uma
transformação definitiva da iwejekui nesses animais, mas sim do uso de “roupas-
raposa” ou “roupas-coruja”. Tais “roupas” não são “materiais”, seriam apenas
mapitsai — uma importante categoria ligada às sensibilidades da alma e aos
prenúncios —, uma imagem ou som captado pela alma e transferidos para os
olhos ou ouvidos. Nesses retornos, as iwejekui informam aos vivos sobre perigos
iminentes e em algumas situações podem involuntariamente colaborar com a
morte de alguém, sem ser, contudo, o principal responsável.
Ainda no post-mortem outras frações de upapitsi permanecem no plano
terreno, mais precisamente no local onde o indivíduo morreu e/ou na casa onde
ele viveu. Os Wauja não ofereceram muitos detalhes sobre essas frações de
99

upapitsi que ficam nas proximidades dos vivos, apenas sei que elas não ficam
por muito tempo e que podem ir para o céu mais tarde. Quando os Wauja se
referem às almas dos feiticeiros que “andam por aí”, eles se referem àqueles que
foram executados e que não receberam tratamento funerário adequado, daí a
permanência dessas almas no plano terreno: um perigo sempre iminente.

3.4
Propriedades sensoriais da alma

As análises desta seção nos conduzirão de volta à relação corpo e alma e


à doença por meio das propriedades sensoriais da alma. Até chegarmos lá,
gostaria de discutir, entre outras coisas, algumas condições metodológicas em
que os dados sobre o assunto foram levantados. Para começar, parece-me
interessante uma questão posta por Thomas Gregor a partir da narrativa de um
sonho de um dos seus “excêntricos” informantes:

The perfect resemblance of the individual and his eye soul raises the
fascinating question of whether the soul is merely an extension of
the individual or separate being in its own right, albeit closely
connected to its possessor. I raised this question with one of the
villagers who had given the matter some thought. He recalled a
dream in which he saw himself (that is, his soul) sleeping and having
a dream. Following the logic of soul belief, he concluded that his soul
must have its own soul, suggesting that the eye soul is a separate
entity from the dreamer.
Does the soul’s soul in turn have its own soul, as in infinite
regression of Chinese boxes? (Gregor, 1981: 710).

Se sim ou não, é difícil responder, pois os Mehinako e muito menos os


Wauja — que não partilham da idéia de uma “alma da alma” — levam a questão
adiante. Apesar da incerteza sobre a resposta, a idéia das caixas como uma
pergunta me parece valiosa na medida em que ela se parece com a idéia de
fracionamento da alma que abordei acima, ao mesmo tempo em que se distancia
desta por suscitar a idéia de uma sucessão múltipla de continentes e conteúdos,
o que é inválido para a noção wauja de alma. De todo modo, permanece a idéia
de fragmentação, mas falta às análises de Gregor sobre os Mehinako aquilo que
100

os Wauja mais obtiveram sucesso em elaborar: a idéia de distribuição desses


fragmentos, a qual constitui o eixo desta etnografia e de suas extensões
argumentativas. O intuito de Gregor não é resolver a aparente confusão que
emerge dessa questão, o seu interesse incide sobre os planos das narrativas
oníricas e do sistema nativo de interpretação destas e sobre o que o autor pode
extrair disso para pensar as noções de pessoa e self.
A coleta de narrativas de sonhos cotidianos configurou um material
extremamente relevante para a análise de Gregor. Levando em conta a riqueza
com que os Mehinako elaboraram essas narrativas e a imensa proximidade
cultural entre eles e os Wauja, pensei que tal técnica de pesquisa pudesse se me
revelar igualmente profícua. Tentei, absolutamente em vão, obter narrativas de
semelhante riqueza. Os Wauja não me apontaram a narrativa de sonhos do
cotidiano (“ordinários”) como um meio de pensar as questões que eu propunha
investigar, que, a rigor, são as mesmas (ou quase as mesmas) de Thomas
Gregor, aliás, de toda uma geração de etnólogos das terras baixas sul-
americanas. Foi em meio aos ajustes metodológicos das tentativas fracassadas
que meus melhores e mais atuantes colaboradores wauja me fizeram perceber
que os sonhos estratégicos para a etnografia eram os sonhos “extraordinários”,
aqueles dos doentes graves e dos xamãs, e que atualizam uma multiplicidade
desconcertante de noções, cujo desafio descritivo-analítico certamente não se
encerra aqui. A riqueza que eu procurava estava nas narrativas das doenças e
não nas narrativas dos sonhos propriamente. Não quero dizer que os sonhos não
tenham importância na experiência da doença, ao contrário: eles são informação
fundamental no processo de diagnóstico, mas enquanto narrativa sua
característica essencial é ser uma narrativa subordinada à outra — sonhos são
narrados para explicar aspectos concretos de uma doença, como convulsão,
vómito, hemorragia, dor localizada, prisão de ventre, diarréia etc. —, por essa
razão, quando tomadas de maneira isolada, as narrativas dos sonhos dos
doentes tornam-se pouco rentáveis de um ponto de vista analítico. Para
rentabilizar o sonho do doente é necessário reconstruir um processo mais amplo
que envolve múltiplos agentes e momentos anteriores e posteriores ao próprio
sonho.
Embora os Wauja não separem, conforme categorias linguísticas, os
sonhos dos doentes, dos xamãs e dos indivíduos sãos — sepuni é o termo
101

empregado para qualquer sonho —, eles especificam as diferentes condições em


que as experiências oníricas de cada sonhador se realizam, pois os sonhos dos
doentes e dos xamãs58 não são da mesma qualidade sensorial que os sonhos
dos indivíduos sãos.
Os termos wauja e mehinako para as classificações da alma são muito
semelhantes, contudo, pelo menos um aspecto da experiência onírica demonstra
ser divergente. A proposição de Gregor (1981: 711-712) de que a alma, durante o
sonho, estaria dissociada da pessoa, ou que aquela fosse uma “outra” pessoa,
não apresenta ressonância nas exegeses wauja e com o que pude interpretar do
meu material. Suponho que minhas divergências em relação às interpretações de
Gregor devem-se ao interesse dele não ser tanto pela teoria mehinako da alma,
quanto por uma teoria geral do sonho. Gregor aborda excessivamente o sonho
como uma função da alma. É claro que as teorias do sonho e da alma se
imiscuem, mas também se separam em vários pontos, ademais o campo
semântico da alma é bem mais complexo que o do sonho. Já a idéia mehinako
de que o conteúdo dos sonhos são patalapiri (cognato de potalapitsi; que Gregor
traduz como “picture”, “representation” ou “symbol”) faz certo sentido entre os
Wauja, com a exceção dos sonhos dos doentes. Um sonho comum deve-se ao
despreendimento da “alma-olho” em direção a “qualquer lugar”, seus caminhos
são quase livres, em certa medida porque são “ilusórios”. O que se vê em um
sonho comum são meras imagens sobre as quais a “alma-olho” não tem controle
e pouco interage. Gregor afirma que “the Mehinaku are aware, for example, that
dreams are often constructed out of the residue of daily events” (1981: 712), o
que igualmente pode ser dito para os Wauja. Certa feita, um dos meus
colaboradores pediu que eu não mostrasse os realísticos desenhos de apapaatai
que coletei (vide reproduções em Barcelos Neto, 2002) aos seus filhos pequenos
para que eles mais tarde não tivessem sonhos ruins (sepuni malu). O sonho do
doente grave, por outro lado, opera com categorias bastante diferentes: trata-se
de uma experiência de outra natureza.
Um sonho de um doente grave não é simplesmente um “sonho”: é um
passeio (tuneke) com os apapaatai. É resultado do rapto e não do “natural”
despreendimento da alma-olho quando se sonha cotidianamente. A própria
convalescência do doente e suas dores são o sinal mais explícito de que ele está

58 Como veremos adiante, o xamã visionário-divinatório (yakapá) é um doente “permanente” em


102
r- ■

tendo um contato físico com os apapaatai. As evidências dos contatos são s

sempre manifestadas fisicamente, seja quando o doente vomita, defeca, perde o


apetite ou sente gostos estranhos na boca, ou quando lhe são retiradas
substâncias patogênicas. As dores são originalmente causadas pela
incompatibilidade substancial entre os corpos dos humanos e dos apapaatai, o
que conduz o mais frágil dos corpos ao colapso. O sonho do doente wauja não é,
portanto, uma experiência metafísica, neste caso estamos mais próximos da
teoria parakanã explicitada por Fausto (2001: 361 )59 do que da teoria mehinako
explicitada por Gregor (1981).
O adoecimento grave como sonho/“morte” cria um campo intersubjetivo
único e expõe a teoria amplamente verificada pelo Americanismo de que o
mundo é povoado por intencionalidades formalmente idênticas à consciência
humana (Viveiros de Castro, 2002a: 351). Mas o aspecto mais curioso é que na
sua condição de cativo/sonhador, o doente vê os seres que o raptaram como
“gente” (Tyãu), ou seja despidos das “roupas” animais ou monstruosas que
normalmente os ocultam. Na condição de “morto” (kamãT), o sujeito está livre da
natureza densa e limitada do corpo, o que permite que a sua alma (consciência,
mente) realize plenamente as suas capacidades de conhecer e entender outras
consciências.
Nestas circunstâncias, o que para os sentidos do corpo seria um animal,
aos sentidos da alma é “gente” — antropomorfo ao menos, mas que não significa
necessariamente humano conforme a acepção wauja de humanidade.£ortanto, a
alma vê o que o corpo ordinariamente não vê. Neste sentido e na sequência da
argumentação do capítulo anterior, corpos distintos (e.g. humanos e yerupoho)
são incapazes de conviver, todavia almas humanas podem conviver com almas
ou corpos de yerupoho, talvez isso indique que todas as almas são de mesma
natureza, e a não-humanidade sendo nada mais do que um atributo do corpo,
uma aparência (Viveiros de Castro, 2002a).
Por outro lado, a teoria juruna, descrita e analisada por Lima, complexifica
esse problema em pelo menos dois pontos. O primeiro afirma que há níveis de

função das substâncias patogênicas que ele carrega em seu corpo.


59 O mundo onírico parakanã desenha uma teoria do sujeito e da ação. Nos sonhos operam-se,
por exemplo, curas, caçadas e festins; ai as interações são tão plenas como na vida desperta. A
cosmologia parakanã “dá ao sonho uma função precípua na produção e manutenção da vida; por
meio dele, busca-se contrabalançar e controlar as forças negativas da existência — a dor, o
sofrimento, a doença — para se alcançar vida longa e felicidade” (Fausto, 2001: 384).
103

diferença e variações contínuas que caracterizam o regime cosmológico juruna,


levando à observação de que a “humanidade” do jaguar não é a mesma
“humanidade” do macaco guariba que por sua vez é distinta da “humanidade” dos
humanos e assim por diante, o que “exprime menos uma noção de humanidade
geral de todos os seres que um certo dualismo” (Lima, 1999: 48) e aponta para a
“ausência de um ponto de vista do todo, e, portanto, de hierarquia definida a
priori” (Lima, 1999: 49). O segundo ponto discute a privilegiada capacidade
reflexiva dos humanos. Seguindo a teoria juruna explicitada por Lima, a diferença
fundamental entre humanos e não-humanos é que estes últimos são incapazes
de perspectivar a si mesmos.
As múltiplas cópias-frações de almas são, em suas aparências visuais,
absolutamente idênticas, todavia elas podem mudar, senão de “aparência”, pelo
menos de “essência”. Assim, caso as almas não façam o caminho de volta para o
corpo seu destino é socializar-se entre os apapaatai; o “morto” tem seu espírito
Animalizado, pois passa a compartilhar os pontos de vista daqueles que o
raptaram e a exprimir um outro mundo real. Seguindo argumentos de Whitehead,
Latour e Deleuze, Viveiros de Castro oferece a seguinte interpretação para o
problema:

O mundo real das diferentes espécies depende de seus pontos de


vista, porque o “mundo” é composto das diferentes espécies, é o
espaço abstrato de divergência entre elas enquanto pontos de vista:
não há pontos de vista sobre as coisas — as coisas e os seres é
que são pontos de vista (Deleuze 1981: 203). A questão aqui,
portanto, não é saber “como os macacos vêem o mundo” (Cheney &
Seyfarth 1990), mas que mundo se exprime através dos macacos,
de que mundo eles são ponto de vista (2002a: 384-5).

A noção wauja de alma humana e não-humana levanta simultaneamente


um problema de aparência e essência, mas também de agência, pois a alma
guarda um substrato de intencionalidade que é dito estar por trás dos eventos e
ações decorridos no “mundo real”. As almas que vagueiam, sejam elas vestidas
em “roupas” invisíveis ou não, constituem uma das ordens causais do mundo
vivido. O xamanismo é exatamente o processo de conhecimento abdutivo que
revela a origem de tais intencionalidades.
Os sonhos dos doentes graves e dos xamãs são um meio de interação
interpessoal plena com os apapaatai, o único que talvez eles possam ter
104

enquanto viventes. Como não existe uma oposição entre corpo e alma e sim uma
composição, ou melhor, uma multiplicação fractal, há, muitas vezes, a
possibilidade do corpo recuperar o conhecimento apreendido pela alma.
Façamos um parêntese sobre o mapitsai, um outro tipo de interação com os
apapaatai via alma.
Na minha última temporada em campo, quando eu estava preocupado em
entender formas de contato com os apapaatai distintas das doenças graves, um
dos meus colaboradores, contou-me o caso de uma velha doente que tinha sido
tratada em Piyulaga algumas décadas atrás, pelo grande yakapá daquele tempo,
Malakuyawá.
Mesmo tendo sua alma recuperada pelos xamãs, Malakuyawá aventava
que a mesma não teria voltado por inteiro, deixando a consciência da mulher
mais ou menos livre para ver coisas que apenas se vê em momentos que
antecedem a morte ou durante eclipses. Por esta razão, a ex-doente via coisas
desagradáveis, como imagens que eram interpretadas como o prenúncio da
morte de certas pessoas e imagens de pessoas estranhas manipulando feitiços
atrás das casas e roças. Eram os apapaatai que mostravam isso para ela, porque
eles ainda não haviam-na abandonado completamente.
Essa experiência, conhecida por mapitsai, é uma revelação imediata dos
sentidos da alma para os sentidos do corpo, todavia ela é diferente do sonho, que
também revela as experiências da alma; o sonho é uma memória, é passado,
enquanto o mapitsai é uma visão presente. O mapitsai é imediato porque, neste
contexto, alma e corpo não estão “separados” por estados oníricos ou por
patologia crónica, portanto, ele acontece apenas quando a pessoa está acordada
e plenamente consciente. Há mais de uma forma de mapitsai, mas o princípio
que regula a experiência é esse imediatismo na transmissão dos sentidos da
alma para o corpo.
Ao saírem para fora da aldeia, os Wauja têm sua alma vulnerável à
abordagem dos apapaatai, que lhes oferecem comida e fazem gracejos. Se a
pessoa estiver wTtsixu, seguramente sua alma aceitará a comida oferecida pelo
apapaatai e logo ficará doente. Os Wauja acreditam que o hábito de se
alimentarem adequadamente antes de saírem para o mato ou roças os protege
contra esse tipo de abordagem. Mas nem sempre tudo sai como planejado, o
105

wTtsixuki é absolutamente imprevisível, como são imprevisíveis as abordagens


dos apapaatai.
Nem sempre os sentidos da alma e do corpo são equivalentes: o que é
saboroso para a alma pode não ser para o corpo e vice-versa. Por exemplo, a
alma come as comidas cruas dos apapaatai quando ela está passeando com
eles, a alma sabe que está cru, mas não rejeita o que lhe é oferecido. Apenas
quando ela retorna ao corpo que uma repulsa é sentida no paladar, mas tal
repulsa é sentida pelo corpo unicamente. iO corpo então vomita o que a alma
comeu. Neste campo semântico específico, o efeito das ações da alma é sempre
manifestado no corpo, mas nunca o inverso: os sentidos do corpo não têm
interferência alguma sobre os sentidos da alma. Vejamos um segundo exemplo.
Quando alguém sai para o mato, pode acontecer que ele se perca, por
mais experiente que seja. Uma explicação que os Wauja dão para isso é que foi
a alma que foi confundida pelos apapaatai, levando a pessoa a se perder, que
depois não sabe explicar como o infortúnio sucedeu. O que acontece é que a
atenção da alma pode se voltar para outra coisa. É importante notar que a alma e
o corpo nem sempre concentram sua atenção para a mesma coisa, enquanto o
caçador está preocupado em ouvir o movimento dos macacos, a alma pode estar
interessada no que os apapaatai estão fazendo no interior de uma árvore, por
exemplo. Mas porque a alma desvia sua atenção? O que lhe interessa fora das
atividades comuns do cotidiano? Embora os Wauja não sejam unânimes, as
respostas convergem, em um ponto ou outro, para o fato de que a alma não tem
intenção de errar, se ela erra é porque foi enganada pelos apapaatai. Como a
alma é capaz de interferir nos sentidos do corpo, e este é incapaz de controlá-la,
a pessoa fica completamente a mercê de infortúnios. Se a pessoa ficar perdida
por muito tempo é necessária a intervenção de um xamã visionário-divinatório
para trazê-la de volta. Este é o serviço xamânico do mais alto grau de dificuldade.
Os apapaatai interagem apenas com as almas das pessoas e não
diretamente com elas, pois, como já sabemos, a proximidade dos corpos dos
yerupoho com os corpos humanos, causam o colapso destes. Assim, as
mensagens dos apapaatai, revelam-se primeiro para os sentidos da alma e em
seguida para os sentidos do corpo.
O mapitsai realiza-se seletivamente e com rara frequência, quase sempre
para avisar que alguém vai morrer muito em breve. Manifesta-se através da
106

“alteração visual” de um evento corrente, que só a pessoa escolhida vê. O


mapitsai é uma abordagem visual do apapaatai, é uma subversão dos sentidos
normais do corpo.
Na década passada, uma mulher wauja tinha ido a Brasília para
tratamento médico acompanhada de seu marido, no caminho do hospital ela viu
alguém cair do alto de um edifício e começou a gritar dentro do carro avisando e
mostrando o fato para o marido. Era apenas um pedaço de papel que alguém
tinha jogado, mas a mulher vira um corpo. Ela teve um mapitsai, um aviso de
apapaatai. Naquela mesma semana, a mulher morreu. Sua morte foi também
anunciada por um outro mapitsai para uma de suas sobrinhas que ficou em
Piyulaga, e que mais tarde foi avisada pela imagem-alma (iwejekuí) da sua tia
que ela também morreria em um leito de hospital. Um mapitsai, portanto, não se
encerra em si mesmo, ele pode encadear um contato entre mortos e vivos ou
ainda provocar querelas em torno de acusações de feitiçaria, pois um mapitsai
pode “mostrar” quem faz feitiços.
Os Wauja não elaboraram nenhuma exegese sobre porque, inversamente
ao corpo, a alma humana consegue conviver com os yerupoho/apapaatai.
Suponho que a razão envolva as diferentes naturezas das substâncias que
compõem o corpo e a alma. Mesmo não tendo conseguido informações sobre do
que é constituída a upapitsi, sei, por negação, que ela não é feita nem de
esperma nem de sangue, como o monapitsi (corpo). Seria a alma imaterial?
Não disponho de dados sobre uma noção wauja de imaterialidade. A
redução mínima da noção de alma é a invisibilidade, mas daí deduzir que a alma
seja imaterial já é outra coisa. Os mitos afirmam que as flechas que viraram
humanos foram rezadas e sopradas com tabaco por Kamo, tornando-se vivas a
partir de então, o que leva a forte suposição de que a substância original da alma
seria uma mistura “mágica” de tabaco e som (palavras rezadas, encantamentos,
músicas de chocalho). Isso é um procedimento típico da magia de Kamo, mas
que não possui correspondência entre os humanos, que têm como única maneira
de dar a vida lançarem-se em repetidos intercursos sexuais. Entretanto há um
dado etnográfico que suscita alguma ponderação.
Passados algumas horas ou dias do nascimento de um bebê, este recebe
de um yatamá (xamã), que normalmente é um parente muito próximo, em geral, o

60 Lembro mais uma vez a homologia entre soprar e rezar, cunhadas pelo mesmo termo, ejekepei.

i
107

avô materno ou paterno, várias baforadas de tabaco durante dias seguidos ou


alternados. Os Wauja afirmam que esse procedimento é só para dar força ao
recém-nascido, para ele não adoecer; com efeito me diziam: “upapitsi\á está nele
(no bebê), é dele mesmo”, sugerindo que o procedimento nada tem a ver com a
“impostação” da alma. Mas o assunto ainda me parece obscuro e muito
complexo. Que a alma de um bebê xinguano é algo tão incompleto quanto o seu
corpo, me parece uma hipótese mais segura quando se tem em vista os dados
de Viveiros de Castro sobre a fabricação do corpo (1977) e a relação compósita
entre ambos.
Rivière (2001: 40) menciona que os Tiriyó concebem a existência de um
«,reservatório de almas”, “de onde é retirada a matéria espiritual para o recém-
nascido”. Os Wauja não me explicaram com clareza como a alma surge e se ela
vem de algum lugar em especial. Sei que a alma não é anterior ao corpo, ela é do
corpo e para o corpo. Diferentemente dos Tiriyó, os Wauja não concebem que a
alma de um morto pode servir de “matéria espiritual” para alguém que virá a
nascer. Rivière considera que a idéia tiriyó de uma cadeia circular de “matéria
espiritual” é consistente com a visão ideal de um socius auto-contido e auto-
suficiente do ponto de vista reprodutivo. A alma de um wauja vivente é
simultânea ao corpo, sobrevive no post-mortem, mas não retorna como
componente vital de outro corpo.
Exploremos um outro tipo de relação existente entre a alma e o corpo,
aquela que postula que a alma é capaz de antecipar sensações, interagir
livremente com domínios invisíveis e transferir para os sentidos do corpo
mensagens que este não é capaz de ver ou ouvir.
Quando alguém anda pelo mato, roças ou áreas ribeirinhas e lacustres é
possível que sua alma veja apapaatai, que procuram interagir com ela
conversando e oferecendo comida crua. Em princípio, a alma não aceita, porque
sente nojo do sangue contido nos alimentos crus, mas se a pessoa estiver em
estado de wTtsixu, certamente aceitará, permitindo uma aproximação efetiva com
os apapaatai e dando-lhes a chance de raptarem a alma, a qual só é indiferente a
esse tipo de abordagem quando a pessoa está livre de wTtsixu. Instala-se, então,
o princípio de um processo de adoecimento grave. -
Uma vez em estado de “morbidade”, as fezes e os vómitos do doente
conterão os restos da comida crua consumida pela sua(s) alma(s) no(s) dia(s)
108

anterior(es), apresentando provas de que houve um contato direto com apapaatai


e datcontinuidade física existente entre a alma e o corpo, cujos resultados só se
pode constatar a posteriori. Na condição de passeio (tuneke), a alma se
alimentará das comidas de apapaatai, fazendo com que a pessoa perca o apetite
e agrave sua doença. Todavia, não é a comida de apapaatai que causa a doença
— mesmo sendo o corpo humano incapaz de digeri-la — e sim as “flechinhas de
apapaatai” e a ausência da alma (substância vital). A comida só causa doença se
ela conter ixana (feitiço). A comida pode até estar estragada, isso apenas a torna
desagradável para o paladar, o que para os Wauja está muito distante de ser
indício de feitiço. Feiticeiros são “espertos”, dizem os Wauja, eles colocam ixana
nas comidas que as pessoas gostam de comer, e não na comida estragada que
ninguém mais quer.
Até o momento tratamos a idéia não-biológica de doença a partir das
experiências da alma (wítsixuki, tuneke, mapitsai) e dos yerupoho/apapaatai. É
chegada a hora de ver um outro plano de agência patogênica, aquela cuja
operação básica não se baseia exclusivamente na separação temporária entre
corpo e alma.

3.5
Feitiçaria e morte

A feitiçaria é, do ponto de vista da sociocosmologia wauja, um dos temas


mais polêmicos e incómodos. Já do ponto de vista da informação etnográfica, ela
é um assunto escorregadio, censurado. Seu valor analítico deve começar a ser
depreendido a partir daí. A feitiçaria é um dos pontos onde o sistema xinguano
dobra, permitindo expor uma tridimensionalidade não-aparente que rompe com a
visão chapada e recorrente de uma socialidade xinguana pacifista e
homeostática, na qual as altas e refinadas regras de etiqueta têm como desejo
“domesticar” a “ferocidade” da feitiçaria, este resíduo “desagradável” e
“subversivo” do sistema. Thomas Gregor vê nela uma articulação política “contra
o Estado” (apud Coelho de Souza, 2001), um modo de “regular” o despotismo
dos chefes.
109

O Alio Xingu é uma “sociedade de feitiçaria” sem feitiçeiros, que, contudo,


se esforça constantemente em “inventá-los” e nomeá-los (acusá-los). Por outro
lado, estes jamais confessam ou se vêem como feiticeiros. Outra parte da minha
argumentação segue uma direção distinta: em vários aspectos, a feitiçaria é a
antítese do xamanismo, no entanto, ambas operam, igualmente, por meio de uma
epistemologia abdutiva. Seu “cruzamento” epistemológico dá-se sobretudo, na
“contra-feitiçaria”, o tupaki, assunto que veremos na seção seguinte.
Tive, anteriormente, um certo receio em utilizar o termo feitiçaria, o que me
levou a escrevê-lo entre aspas na falta de uma alternativa melhor (Barcelos Neto,
2002). Noto que há sistematicamente uma evitação desse termo nas etnografias
sobre a região das Guianas (Sztutman, 2000), em detrimento de “agressões
xamânicas”, o que sugere ter o xamanismo uma natureza “bipolar”, podendo,
pois, tanto curar quanto agredir. Gallois (1988) propõe haver entre os Waiãpi uma
ligação entre os sistemas etiológico e terapêutico, que teriam como horizonte a
vingança e a retaliação, o que leva Sztutman (2000, cap. 4) a ver o fenômeno do
xamanismo entre os Waiãpi menos a constituir uma coletividade do que “um
movimento contínuo de divisão do espaço social, de articulação entre unidades
que ora se aproximam, ora se repulsam”. Este não é bem o caso do Alto Xingu,
onde as técnicas do xamanismo e da feitiçaria são profundamente distintas, além
da própria gnosiologia da agência patológica não situar a feitiçaria como uma
prática maléfica de xamanismo. Quero insistir na separação entre xamanismo e
feitiçaria, não apenas por ela ser um claro dispositivo êmico de classificação das
relações sociocosmológicas, mas porque tal separação permite pensar, de modo
produtivo, e a um só tempo, aspectos obscuros do sistema xinguano (Coelho de
Souza, 2001) e confrontá-lo com a teoria ontológica da predação amazônica
~ (Viveiros de Castro, 2002a, 2002b).
As ações de feiticeiros podem ser a causa de simples irritações cutâneas
até grandes ataques de porcos às roças (Carneiro, 1977), epidemias e incêndios
de casas e aldeias, mas o principal valor sociocosmológico da feitiçaria é, sem
dúvida, ser uma “arma letal”. Entre os Wauja, raríssimas são as mortes que não
tiveram a feitiçaria como causa principal ou complementar.
No Alto Xingu, considera-se a feitiçaria (íxanaki) e o xamanismo (yatamaki)
atividades basicamente antagónicas. Elas são desempenhadas por especialistas
distintos. O primeiro é imaginado como tendo sua formação em privado, por seu
110

genitor masculino, o outro em público, com iniciação e apresentações formais


desde a casa das flautas (kuwakuho'). A feitiçaria é um saber transmitido
patrilinearmente, portanto, todo feitiçeiro descende de um feitiçeiro, ou, no
máximo, terá aprendido o “ofício letal” em um restritíssimo círculo social de
feiticeiros. Há também “feitiçaria” feita por mulheres, embora sem poder letal. O
termo empregado é kuretsi (e não ixanaki, o termo “duro” para feitiçaria), um
feitiço “popular” usado para atrair namorados.
Viveiros de Castro (1977: 227) expõe com clareza a diferença primordial r
entre o feiticeiro e o xamã: “o que distingue o feiticeiro do xamã é que aquele ‘só
tem feitiço guardado no mato’ (é um tecnólogo do mal); o xamã tem yutsi61, poder
curativo inefável”. Naquele é algo externo ao corpo, no segundo é algo que
constitui o seu corpo.
Antes de prosseguir com as descrições sobre a feitiçaria, adianto uma
hipótese — tomando de empréstimo algumas idéias de Viveiros de Castro (1993,
2002b) para a socialidade amazônica — de que a “afinidade potencial” estaria
para a doença assim como a “consanguinidade” estaria para a morte. O que
quero sugerir é que a morte é vista, pelos Wauja, como um fenômeno cuja
causalidade/intencionalidade é interna ao socius. A feitiçaria é uma agência letal,
a abordagem patogênica dos apapaatai, não. A “letalidade” desta assume um
outro sentido. A “morte” que os apapaatai causam tem como equivalência o
passeio (sonho do doente) e a comensalidade animal dos humanos com os
apapaatai — é a “familiarização” dos humanos como apapaatai-. é “gente virando
bicho”, como dizem os yakapá exegetas. A feitiçaria é “gente sofrendo
(morrendo) à toa”, no dizer triste e apavorado de quem perdeu um parente
querido ou que esteve à beira da morte.
A aproximação conceituai da doença e da morte ao modelo de uma
metafísica do parentesco (Viveiros de Castro, 2002b; Fausto, 2002b) nos permite
visualizar como o esquema contínuo-gradativo que orienta a cosmologia
xinguana vê a morte como um efeito da “somatória” da predação (como doença)
e do assassinato (como feitiçaria). A morte é, para o morto, uma separação dos
horizontes da internalidade e da externalidade: ele pode ver seu “assassino” (por
meio do mapitsai) e presentir seu destino post-mortem como uma vida entre os

61 O yutsi yawalapíti corresponde ao yalawo wauja, uma substância que os apapaatai auxiliares
do xamã lhe oferecem para que ele ministre curas (vide capítulo 4 para maiores detalhes).
111

apapaatai e como uma vida na aldeia celeste dos mortos. Já para os viventes, a
morte de alguém atualiza uma potência letal que o sistema deseja expurgar. Para
os consanguíneos do morto, a sua morte funde os horizontes privado e público,
levando a uma empreita divinatória e a uma perseguição do “assassino”, ou
melhor, do feiticeiro (obviamente não se persegue os apapaatai, pois eles não
adoecem ninguém com intenções verdadeiramente letais). A rigor, uma
perseguição arriscada que, em alguns casos, precisa ser abortada, pois a
exposição excessiva do acusado de feitiçaria corrói os princípios estéticos da
etiqueta xinguana, gerando uma abertura para um novo assassinato, neste caso,
traduzido como vingança.
Inseridas no esquema contínuo-gradativo, a doença e a feitiçaria
mobilizam coisas muito distintas entre si, embora com um sentido de progressão,
conforme o pensamento nativo. Os Wauja dizem que a feitiçaria “aproveita” a
condição de “morto” do doente (kamãi) para matá-lo de vez. A feitiçaria é
oportunista. O sentido progressivo da doença à morte revela-se nos rituais de
cura, na “contra-feitiçaria” (divinação), nos exílios e nas execuções dos acusados
de feitiçaria. Vejamos por partes.
Na primeira seção deste capítulo, mencionei o trânsito de substâncias
patogênicas entre feitiçeiros e yerupoho, implicando em uma proximidade entre
ambos. Retomo aqui o tema a partir de outra base. Se a causa primeira da morte
é de ordem interior, ela, então, existiria como uma prática entre “iguais”. Mas
seria o feitiçeiro um “igual”? Qual o seu nível de “interioridade”? Seria ele
propriamente humano? Ou melhor, qual a sua posição de identidade/alteridade
no sistema? Por manipular feitiços, livremente e sem qualquer sequela, o
feiticeiro não pode ser, conforme os pressupostos ontológicos que distribuem os
predicados da humanidade, essencialmente humano62. Grande parte desses
predicados está centrada no corpo, ou melhor, nos seus processos de fabricação
(cf. Viveiros de Castro, 1977; 2002c).
Apenas um feiticeiro é capaz de fazer outro feiticeiro. Não se trata apenas
de um saber transmitido, mas sobretudo de uma incorporação, que é devida a um
tipo especial de reclusão, na qual o tempo do jovem feiticeiro é investido em
atividades como suportar doloridíssimas picadas de formigas tocandira — mêT,

62 Lembro aqui do risco de vida que humanos “normais” correm ao manipularem feitiços. Há um
mito, o de Atujuwá, o qual teve lugar entre os extintos Kustenau, que aborda precisamente esse
tipo de risco (Barcelos Neto, 2002: 214).
112

em wauja; elas são as companheiras dos feiticeiros e o modelo animal da alta


feitiçaria — e o calor das brasas63.
Os feiticeiros são também indivíduos hábeis na “fala feia” (aitsa-
awojogatakoja'), ou melhor, na capacidade de distorcer e de falsear fatos: “sua
língua não é boa”, “eles sabem fazer o pessoal brigar”, dizem os Wauja dos
feiticeiros.
Se seu corpo é “outro”, ele é homólogo ao dos seres prototípicos da
feitiçaria: suporta e provoca dores terríveis. Um feiticeiro recluso não bebe as
mesmas ervas que um jovem lutador, este bebe um emético que tem os felinos
como “donos”, seu corpo é fabricado em uma relação de isomorfia/homologia
com as onças, os grandes lutadores. Já o jovem aprendiz da feitiçaria bebe os
eméticos que têm como “donos” os animais feiticeiros. Nenhuma pessoa foi
capaz de mencionar os nomes desses eméticos, apenas me disseram que são
outros que aqueles usados por não-feiticeiros. Sei que a maldade de um feiticeiro
é resultado do uso de certas substâncias vegetais usadas na reclusão, pois os
valores da consciência podem ser adquiridos/mudados através da manipulação
dessas substâncias. Há uma categoria de “feitiço” especialmente com esse
objetivo, o kuretsi.
“Love magic” é a tradução dada por Gregor (1977: 88) ao kuretsi (kuritsi,
em mehinako). O kuretsi está por trás de muitas brigas entre mulheres, que
acusam umas às outras de o terem usado para enfeitiçar seus maridos. O kuretsi
leva o homem a pensar permanentemente em sua namorada “feiticeira”, fazendo-
o esquecer de suas obrigações domésticas, causa de muitos conflitos entre
casais. A mulher que manipula kuretsi não quer apenas um amante, mas sim
uma pessoa loucamente apaixonada. E, além disso, como dizem os Wauja,
provocar o ciúme de outra mulher. Quem o manipula também corre riscos: se
usado de modo errado ou excessivo, o seu efeito será inverso. Acompanhei,
durante dois meses, o drama de uma mulher que passou por essa situação.
Apaixonada por um não-índio, ela abandonou o marido e fugiu com o amante.
Levada de volta para Piyulaga, passou a receber tratamentos com eméticos a fim

63 Um dos meus colaboradores trouxe para uma de nossas conversas sobre feitiçaria uma
reflexão interessante sobre o calor. Conta um mito que um apapaatai Atujuwá caiu do céu em
Meixulu, antiga aldeia dos Kustenau (Barcelos Neto, 2002: 214), queimando tudo que havia em
volta. Os Kustenau foram até o local, pegaram os feitiços, mas não se queimaram, eles já
estavam preparados, pois eram todos feiticeiros, mas acabaram lançando os feitiços do Atujuwá
113

I
de neutralizar o efeito do kuretsi sobre sua mente. Seu pai, que lhe ministrava
diariamente os eméticos (contra-feitiços), tinha convicção de que sua filha havia
manipulado desastradamente o kuretsi—“kuretsi mudou a cabeça dela, por isso
a cabeça dela ficou ruim”, disse-me ele em privado, com vergonha do
comportamento da filha. O kuretsi não é, pois, apenas love magic, ele age sobre
a consciência e o comportamento de um modo geral, podendo inclusive apagar a
memória de alguém sobre algum fato recém ocorrido. Quando as crianças ficam
repentina e/ou prolongadamente agressivas e inquietas, o kuretsi é também uma
hipótese aventada. No entanto, o kuretsi não mata.
Os métodos de fabricação do corpo de um feiticeiro resultam em um ser
feio, fraco, mal lutador, pouco hábil em várias artes e ofícios, de personalidade
imprevisível e socialmente retraída. Além disso, ele tem pequena estatura,
abdome saliente, joelhos e cotovelos inchados e pernas e braços finos (cf.
também Carneiro, 1977: 225). Mas esta é apenas uma imagem ideal, que, na
verdade, afina a identidade corporal dos feiticeiros com certos yerupoho,
conforme pode se constatar pela iconografia (Barcelos Neto, 2002). Assim, a
condição “humana” de um feiticeiro pode ser diretamente contestada pelas
características do seu corpo, que, como categoria idealizada, é a mais perfeita
antítese do chefe e, em um certo sentido, do xamã também. A construção dessa
antítese é inclusive formalizada nos discursos públicos dos chefes, como se pode
perceber na fala de Akusa, um antigo chefe mehinako, a respeito dos Ikpeng:

Be like me. I am not a witch. At the Post there are many Txicão.
They have said, ‘We will kill Akusa; we have already shot him with
an arrowl’ I know they want to kill me. If I were a witch I would have
killed them long ago, every one of them, but look: their women are
pregnant and their babies are fat. I could not be a witch! (Gregor,
1977: 82).

Akusa constrói uma auto-imagem inversa ao que são, para os Mehinako,


os Ikpeng, que, neste caso, não serviram para tanto como uma escolha aleatória,
pois percebidos como “bravos” e “aguerridos”, apresentavam reconhecidos
atributos da feitiçaria. É sobre a aproximação entre guerra e feitiçaria que passo a
tratar.

uns sobre os outros e em consequência disso extinguindo-se. Meu colaborador disse que se um
Atujuwá desses caísse em Piyulaga, todos morreriam imediatamente, à exceção dos feiticeiros.
114

As relações entre chefia, guerra e feitiçaria foram exploradas de modo


bastante interessante por Menget (1985, 1993), Menezes Bastos (1995) e mais
recentemente por Coelho de Sousa (2001). Mas o assunto não é recente, ele
surge nas primeiras etnografias sistemáticas na região, realizadas na década de
1950 por Carneiro e Dole (esses resultados foram publicados na forma de vários
artigos), e, anos mais tarde, na monografia de Basso (1973).
Menget (1985) circunscreve a feitiçaria xinguana no mesmo campo
simbólico da guerra, sugerindo que a sua suspensão histórica teria sido
“compensada” pela sua atualização cotidiana enquanto feitiçaria. Assim, o
pacifismo xinguano seria apenas aparente: os xinguanos não fazem guerra ipso
facto, mas se matam em função de acusações de feitiçaria: o epifenômeno de
guerras faccionais (Menget, 1993). Entretanto, não é porque a feitiçaria condensa
um princípio de agressão e morte que ela necessariamente reforce esta
interpretação. É preciso ponderar. Parece-me, à luz dos dados wauja, que guerra
e feitiçaria não estão precisamente no limiar uma da outra.
A exegese mehinako, apresentada por Gregor, afima que a guerra é
atualmente ocupada pelos rituais e não pela feitiçaria: “nós não fazemos guerra;
temos festivais para os chefes, aos quais todas as aldeias comparecem. Nós
cantamos, dançamos, trocamos e lutamos” (Gregor apud Coelho de Souza, 2001:
388). Se tomarmos os mitos como exemplo, percebe-se que esta substituição
(transformação) da guerra pelo (em) ritual não é tão evidente como sugere a
leitura de Gregor.
O primeiro Kaumai (Kwarip, em kamayurá) foi uma guerra, na qual Kamo
tentou exterminar se(js convidados, os povos-Peixes (Kupatopoho) e as
Ariranhas, conforme visto no capítulo anterior. Em outro ritual inter-aldeão, os
povos-Peixes foram convidados a tocar Kawoká pelo povo-Abelha (Mapapoho),
que lhe ofereceu mingau envenenado. O ritual guarda em seu “fundo” mítico uma
potência beligerante64; é uma festa que pode se equivaler a uma guerra não
declarada, ou melhor, a uma emboscada. Esta ambivalência paira sobre várias
narrativas míticas sobre a origem dos grandes rituais, a mais eloquente talvez
seja sobre o ritual de “furação de orelha” (Pohoká), que foi, ele próprio, uma

64 Essa potência é atualizável, como se pode historicamente comprovar. Menget (185: 134) cita o
caso de um convite dos Kalapalo aos Yaruma (grupo carib linguisticamente próximo dos Ikpeng)
para participarem de um ritual, o qual, na verdade, era um plano de extermínio dos homens
Yaruma e de rapto de mulheres e crianças. A chacina dos Yaruma consumou-se, porém os Suyá,
vigilantes de toda a movimentação, foram mais rápidos que os Kalapalo e lograram o rapto.
115

tentativa de homicídio de Kamo contra Kamukuwaká e seus parentes masculinos


de mesma geração. Kamo, o idealizador da festa-massacre, colocou todos os
pohokaixê (os “iniciandos”) sentados em linha, de costas para a kuwakuho (casa
das flautas), e de uma certa distância atirou-lhes flechas; espertos, os jovens se
desviaram destas deixando-as furar apenas os lóbulos de suas orelhas, ao invés
de matá-los. Assim, todos os pohokaixê tiveram suas orelhas furadas por Kamo,
dando origem ao ritual. Mas as suas tentativas de massacre não pararam até que
todos os pohokaixê subissem ao céu por uma escada de flechas feitas por
Kamukuwaká.
No ritual Pohoká atualmente realizado entre os xinguanos, os furadores
posicionam-se de joelhos, em frente aos iniciandos, como se aqueles fossem
partir para uma luta contra estes. Mas é no Yawari que o clima de hostilidade
pode vir à tona, mais explicitamente, em pregos ou pontas de anzóis escondidos
sob a cera dos dardos, entre outros desrespeitos às “regras” da festa, os quais
também não faltam no kapi, luta que marca a presença dos convidados nos
rituais Kaumai, Yamurikumã e em visitas formais às outras aldeias. Aliás, a luta,
como disse Viveiros de Castro, “simboliza a tensão entre estranheza e
proximidade”, é uma “violência codificada, estilizada” (1977: 218), não deixando
de ser, portanto, uma hostilidade contida. Por esta leitura, os rituais xinguanos
me parecem menos celebrações de paz (cf. Gregor, 2001) do que negociações
de aceitabilidades estético-morais, como propõe Menezes Bastos (1990 e 1995).
A hipótese de que o ritual inter-aldeão, expressão de uma “tensão
controlada”, teria “substituído” a guerra pode ser indagada de outro modo: a
guerra pode não ser logicamente oposta ao ritual, uma guerra pode ser tanto um,
ritual, como este uma guerra. Os próprios mitos xinguanos e as etnografias Tupi
(Fausto, 2001) e Guarani (Montardo, 2001 e 2002)65 apontam para alguma
validade deste argumento.
Se no Alto Xingu a feitiçaria se acomodasse à lógica da guerra, ela seria
menos uma guerra contra o “outro” (índio “bravo”, não-xinguano) do que uma

65 Nesse panorama etnográfico tão variado, um interessante exemplo é do ritual xamanístico


Jeroky, sobre o qual Montardo (2001: 10) faz as seguintes observações: “Os Nhandeva afirmam
que os Kaiová fazem jeroky como exército, mas eles os Nhandeva, não. O mesmo ouvi entre os
Kaiová. A forte alteridade entre eles está sempre marcada, e o discurso pacifista aparece aí
imputando às características ligadas à agressividade como sendo um aspecto do outro”. O
objetivo do ritual Jeroky é tornar seus participantes “belos guerreiros” para que eles possam
enfrentar os desafios impostos para a continuidade e equilíbrio do cosmo (Montardo, 2002). O
ritual aqui é visto como guerra.
116

guerra de tipo intestina ou inter-faccional, segundo Menget (1993). O seu âmbito


seria o do “nós”, pelo menos daqueles que compartilham o mesmo ethos. Os
xinguanos raramente acusam os distantes Yudjá, Kayabi ou Suyá, mas acusam,
por exemplo, indivíduos de sua própria aldeia natal ou de residência. Este é o
padrão mais recorrente de acusações, como também observou Basso (1973) e
Ireland (1986, 1988a, 1993b, 1996). A feitiçaria é algo que ronda a vizinhança.
Não vem de muito longe. É uma agressão que dificilmente foge ao mundo dos
xinguanos (putakanãu), a fronteira mais nítida de sua validade ético-política.
Neste caso, é interessante tomar como contraponto os habitantes do norte do
PIX, que têm os xinguanos como sujeitos privilegiados de suas acusações de
feitiçaria (Lima, 2002). Os xinguanos são incorporados pelos habitantes do norte
do Parque para produzirem interpretações locais e extra-locais, mas o inverso
não apresenta correspondência.
Penso ser necessária uma interpretação mais ampla sobre o lugar da
feitiçaria no Alto Xingu. Para tanto, estou inclinado a compartilhar de uma idéia de
Coelho de Souza (2001: 388), que sugere a feitiçaria operar como um
contraponto à chefia, dito em outras palavras, como um operador dialético do
sistema xinguano e que lhe permite ser continuamente reconstituído.
Os Wauja vêem a feitiçaria como assassinato, ela é sempre um de
subtração absoluta: uma vida que se perde para sempre. Já a imagem evocada
pela guerra é a do rapto, que, pelo lado do grupo atacado, é, percebida como
subtração (relativa), mas que pelo lado do raptor é vista como soma. Esse
mesmo desequilíbrio subtração-soma pode ser corrigido ou acentuado com um
contra-ataque, cuja razão voltar-se-á também para o rapto de mulheres e/ou
crianças. As guerras que os Wauja fizeram contra os Ikpeng atentam para isso e
não para o seu extermínio por meio de uma retaliação. Conforme as narrativas
que recolhi, o objetivo das guerras era recuperar as crianças raptadas aos Wauja
e, se tivessem sorte, raptar algumas crianças Ikpeng. Mas essa sorte os Wauja
nunca tiveram. Sugiro mesmo que feitiçaria (como assassinato) e guerra (como
rapto) ocupam primariamente campos distintos na economia simbólica da
alteridade. A aproximação lógica entre ambas seria apenas secundária.
Ireland (1986, 1988a, 1993b, 1996) defende que ser acusado de feitiçaria
é o resultado de uma condição politicamente imputada. O que leva a supor que
os acusados, exilados e executados como feiticeiros seriam, acima de tudo,
117

adversários pessoais e políticos dos seus acusadores e algozes. Os Wauja são


enfáticos em dizer que os feiticeiros são movidos pela raiva (musixapai)66 e pela
inveja-ciúme (ukitsapaif7, e não pelo desejo de poder político. De todo modo, o
feiticeiro incorpora uma imagem de poder, porém, dado que esse poder opera
apenas em uma esfera oculta, ele não assume o foro público necessário para
torná-lo fundamentalmente político. O seu poder de matar é anti-político, pois ele
redunda em desrespeito: o feiticeiro é alguém por quem não se tem respeito.
Dele só se tem medo.
Se alguém quiser “respeito” (monapakí), categoria básica da economia
moral do poder no Alto Xingu, não será através de feitiçaria que ele irá conseguir.
A feitiçaria, em si, não é uma artimanha política. Apenas aquilo que é tido como
seu resultado, a morte, pode ser revestido de sentido político. Para os Wauja, os
feiticeiros matam não porque eles desejam poder, mas porque eles são maus e
egoístas. Sua maldade não tem razão fora de si mesma.
Os feiticeiros têm uma maldade intrínseca que pode atingir inclusive
pessoas que não são o seu alvo, como mencionei acima no caso da mulher
kamayurá que se acidentou na viagem de trator. O feiticeiro pode até não desejar
poder político, mas ele é quase inevitavelmente convertido em uma figura
política, pois ó que ele faz — a morte — está no limiar de um feito político
deliberado, por isso Ireland fala de condição politicamente imputada. Há,
portanto, a figura do feiticeiro como um modelo de pessoa (ou anti-pessoa) e a
figura do acusado68, que nem sempre corresponde ao modelo. Portanto o

66 Compare-se, por exemplo, a produtividade política das noções wauja de musixapai e ukitsapai
com os dados Ikpeng de Rodgers: “O fluxo negativo e oculto de inveja, ressentimento e raiva dos
outros tem uma dimensão sociopolítica altamente positiva, embora não explicitada pelos Ikpeng
[por sua vez explicitada pelos Wauja]: sua constante ameaça inibe a acumulação e mantém o
fluxo e a redistribuição de recursos mais ou menos equilibrados em uma população que evita
tanto a coerção quanto o conflito interno, que seriam ipso facto já externos: cisões” (2002: 93).
Embora inveja e raiva façam parte das moralidades políticas ikpeng e wauja, seus sentidos
operatórios são diferentes. Entre os Wauja, inveja e raiva não são inibidores, ao contrário: são os
eixos moventes da sociabilidade, propiciam conflitos, geram cisões.
67 A noção wauja de inveja-ciúme talvez evidencie uma percepção da distribuição desequilibrada
de bens materiais e imateriais. Sempre que eu realizava um pagamento mais substancial a algum
colaborador, este me pedia para não divulgar: queria evitar a inveja-ciúme dos feiticeiros, dos
fofoqueiros e dos que não gostam dele. Os Wauja dizem que os feiticeiros pensam que se estes
não podem usufruir o que é dos outros, que os outros também sejam privados de usufruir seus
bens, sejam estes artefatos ou o bem-querer de alguém.
68 Para efeitos práticos de acusação ou execução, um feiticeiro é definido contextualmente ao
longo de uma série intrincada de fatos que beiram a impossibilidade de ser levantada e de vários
processos biográficos, que incluem seus ascendentes, sobre os quais não disponho de um
número suficiente de casos para aprofundar a análise. De qualquer modo, quem é hoje acusado,
pode amanhã estar em uma posição privilegiada, sendo capaz de anular todo o peso negativo de
uma acusação e ocupar uma posição de acusador. Tornar-se um grande xamã visionário-
118

feiticeiro existe, na maior parte das vezes, em uma condição de virtualidade, que
apenas se atualiza com a perseguição ou a execução do acusado. Mas uma
acusação nua e crua não torna o acusado um feiticeiro, apenas a interpretação
do tupaki, a forma mais poderosa de contra-feitiço, pode dar o veredicto final.
Assim, o feiticeiro só é socialmente revelado por uma condição de violência
legalmente perpetrada conta ele. A contra-feitiçaria {tupaki) justifica todos os atos
de perseguição, em sua condição sempre pública é socialmente validada.
O tupaki é um modo de conhecimento abdutivo operante em uma cadeia
temporal na qual o feiticeiro passa da condição de agente para a de paciente.
Não observei a feitura de um tupaki69. Os dados que obtive foram gerados das
conversas sobre um tupaki que estava em funcionamento na aldeia kamayurá de
Ipavu ao longo de 2002. Vejamos o processo.

dinivatório, por exemplo, é o melhor caminho para evitar acusações, como foi o caso do yakapá
Itsautaku. Não tenho dados suficientes para passar da morte para o sistema de acusações e
execuções de feiticeiros, pois como disse isso só é possível em recorte sincrônico muito mais
extenso do que trabalhei, além disso, nenhuma acusação formal foi feita durante os períodos em
que estive em Piyulaga.
“ Os Wauja afirmam que apenas os Aweti conhecem toda a cadeia operatória do tupaki (a
principal modalidade de contra-fetiçaria que demanda o conhecimento de uma variada série de
técnicas), sendo por isso considerados exímios contra-feiticeiros. Tal reconhecimento parece ter
ressonância entre os Kuikuro, que, segundo Heckenberger (1999: 138 e informação pessoal),
recorreram aos Aweti para colocar em funcionamento a cadeia operatória do tupaki (kune em
kuikuro) por ocasião de uma importante divinação que envolveu a morte de um Kuikuro “nobre”
(amunaw).
119

Quadro 4
As condições agente [A] e paciente [P] do feiticeiro através do tempo

Feiticeiro [A] Tyãu opotalá [A] Vítima fatal [P e A] —>


• Em produção serial =
• múltipla distribuição
• , espacial e temporal
• da pessoa dofeiticeiro,
• potencializando
• múltiplas vítimas

Acusador [P e A] Piipaki [A] Feiticeiro [P]

• Em produção única —
redução da condição
J múltipla dofeiticeiro

O feiticeiro produz um vetor letal, o Tyãu opotalá, por meio de uma magia
simpatética, gerando uma vítima fatal, da qual serão retirados um dedo mínimo e
mechas de cabelo que serão juntadas à matérias orgânicas secretas para formar
um Tyãu opotalapitsi (“boneco”, imagem de gente) do feiticeiro, em um processo
semelhante à magia simpatética que gerou o Tyãu opotalá. O detalhe fundamental
é que a relação simpatética entre o “boneco” e o feiticeiro só é possível em
função das palavras (cantos?) secretas entoadas durante o processo de
feitura/amarração da “imagem” do feiticeiro70. Uma vez pronto o Tyãu opotalapitsi,
ele será alvo dos mais altos cuidados. Seu destino será uma panela kamalupo,
tipo kurisepu, de paredes altas e bordas extrovertidas e arredondadas, onde o
“boneco” passará por um longo processo de cozimento que se espera resultar na
morte do feiticeiro.
A panela do contra-feitiço deve ser vigiada dia e noite —: pois os feiticeiros
farão de tudo para inutilizá-la — e seu fogo e água constantemente mantidos. A
panela é colocada no interior da casa onde a vítima morreu, próxima ao local
onde dormem as pessoas da casa. É dito pelos Wauja que a panela “trabalha
sozinha”. É ela que mata o feiticeiro de calor/febre. O feiticeiro entra em
“combustão” interna e morre seco, com a pele colada nos ossos. Durante a
“combustão”, o feiticeiro e panela são um só, pois foram colocados em uma

70 Segundo os Wauja, apenas os Aweti conhecem as técnicas de fabricação do “boneco” de


contra-feitiço.
120

relação de magia contagiosa (contagious magic, cf. Frazer apud Gell, 1998: cap.
7). Se o feiticeiro for muito forte ou se ainda receber a ajuda de outros feiticeiros,
a panela poderá “explodir” (rachar). Se isso acontecer, significa que o feiticeiro
conseguiu “vencer” o tupaki, o que coloca os familiares da vítima em especial
risco de vida, pois o feiticeiro, livre do tupaki, poderá se voltar contra todos eles.
Daí uma atitude mais radical deve ser tomada em segurança dessas potenciais
vítimas.
Em virtude do risco de “explosão” da panela, o tupaki mostra-se muito
mais como um dispositivo de intimidação dos suspeitos de feitiçaria, do que como
uma arma letal em si mesma. O desejo do(s) acusador(es) é que o tupaki mate o
feiticeiro para que ninguém tenha que se “sujar” com o sangue dele. O tupaki é a
forma sancionada pela etiqueta e pelo resguardo da pureza. Quem se “suja”
dessa forma deve passar por uma limpeza, cujos resultados nem sempre são os
mais satisfatórios.
Assim como o iyau opotalá, o tupaki, também funciona segundo um regime
de atuação espacialmente limitado. Portanto, quando um tupaki “trabalha”, é
comum, dizem os Wauja, o feiticeiro fugir (exilar-se) da aldeia a fim de evitar a
sua “combustão”. À distância ele poderá ensaiar uma neutralização do tupaki. Os
parentes da vítima que estão a cuidar da panela ficam vigilantes, pois mesmo em
seu exílio o suposto feiticeiro pode agir com o auxílio de “roupas”, que lhe
permitiram viajar até a sua aldeia natal, “disfarçado” de algum pássaro. O artifício
do “disfarce” é muito antigo, remontando ao tempo de Kamo (Sol) e Kejo (Lua),
que usaram “roupas” para roubar a mandioca e as flautas Kawoká dos Porcos.
Segundo os Wauja nem todos os yakapá conseguem revelar a identidade
dos feiticeiros, e mesmo que o façam é necessário o tupaki para que a mesma
seja confirmada. O tupaki de Ipavu teria revelado a identidade do suposto
feiticeiro. Anteriormente acusado e ameaçado de morte, o suposto feiticeiro por
evitar, a todo custo, saídas da casa, passou a defecar em seu interior. Seu medo,
efeito psicológico do tupaki, entre outras coisas, foi interpretado com uma
“confissão”. O acusado foi assassinado no interior de sua casa, a tiros de
revólver.
Os Wauja dizem que esse Kamayurá de Ipavu “não era feiticeiro”, nem
seus parentes anteriormente executados nessa mesma aldeia. Os parentes
wauja do suposto feiticeiro defendem que ele foi morto por pura maldade dos
121

seus algozes. A execução de um suposto feiticeiro é, de longe, o assunto mais


polêmico no Alto Xingu. Embora eu tivesse apenas dois colaboradores que se
dispunham a discutir o assunto, ambos deram-me a impressão de que os Wauja
duvidam que se possa precisar, com absoluta certeza, a identidade de um
feiticeiro, seja por meio da divinação xamânica ou do tupaki. Os Wauja não
duvidam da existência da feitiçaria, mas isso não quer dizer que eles estejam
dispostos a personificá-la todo o tempo, e muito menos a acionar os dispositivos
de perseguição e execução que ela permite. Feiticeiros não são para se matar,
são para se ter medo, diz a reflexão de um sábio wauja. Medo como um valor da
incerteza e vice-versa. No sentido desse argumento, vale observar como os
yakapá revelam, com relativa facilidade, as identidades dos apapaatai que estão
a “matar” o doente. No entanto, essa revelação, como veremos no próximo
capítulo, é uma parte primordial da terapêutica. Já a ação de tais e tais feiticeiros
é muito raramente revelada pelos yakapá, embora seja dito que eles são capazes
de os descobrir. Os yakapá não dizem porque eles não sabem, mas porque eles
temem. Sua certeza éspecífica deve ser ocultada para dar lugar a uma incerteza
mais ou menos geral, cuja vantagem é uma segurança também mais ou menos
geral. A feitiçaria paira, sua densidade não pode ser precipitada sem fortes
a

razões. A estratégia é mantê-la mais ou menos em suspenso, o que gera um


estado latente de tensão. Trazê-lo à tona pode resultar em inevitáveis desastres.
O que os Wauja fazem, como um todo, é usar a feitiçaria enquanto um
dispositivo para negociarem imagens pessoais e de grupos familiares. O valor
“sociológico” deste dispositivo é menos evidente em situações do cotidiano do
que em momentos de crise profunda, como, por exemplo, a morte súbita e/ou
dolorosa de alguém. Quando isso ocorre, julga-se imediatamente que há um ou
mais feiticeiros a colocar em risco a vida dos membros do grupo. Nesse
momento, a feitiçaria torna-se uma questão eminentemente pública. Porém, o
que a funda como experiência social é a acusação.
Um acúmulo de acusações tende a cristalizar em alguém uma imagem de
feiticeiro. Escandalizações envolvendo adultério e recorrentes reações agressivas
à provoações várias podem concorrem também a gerar acusações de feitiçaria. A
execução do acusado é vista como um modo de suspensão do risco público.
Contudo, a passagem da acusação à excecução é bastante complexa. Em geral,
um acusado é alguém para o qual convergem conflitos de vários tipos: desde
122

brigas ligadas a adultérios até uma inimizade pessoal envolvendo o


reconhecimento público de status políticos específicos. Ireland (1988a), ao
questionar sobre a natureza das execuções, notou que um inimigo privado só
pode ser executado, sem sérias e imediatas retaliações conta o matador e/ou o
seu mandante, se ele for considerado uma ameaça pública. Portanto, não há
como desvincular a acusação de processos privados e públicos simultaneamente
construídos. Quando uma acusação torna-se pública, o problema já não é tanto
mais a feitiçaria como modelo, mas a acusação como perseguição e vingança,
como violência sancionada.
Volto-me novamente para a condição dek“virtualidade” da feitiçaria e para
as suas implicações no entendimento da noção xinguana de pessoa.
Antes de tudo, o feiticeiro encarna uma imagem de ambiguidade, nem
totalmente “igual” e “próximo”, nem totalmente “diferente” e “distante”,
identificável e não-identificável. Exploremos a idéia de que o feiticeiro é um anti-
modelo de pessoa humana, na medida em que ele expõe, segundo os valores
Wauja, a face mais brutal da violência, a morte.
No Alto Xingu, a violência está deslocada para o pólo da não-humanidade,
pois xinguanos “de verdade” são pacíficos. Assim, se uma mulher ver as flautas
Kawoká e for estuprada em decorrência disso, é dito que foi Kawoká que a
estuprou, a violência é uma perspectiva deslocada para fora do campo da
intencionalidade humana. Certamente, quando alguém morre de maneira
dolorosa, a ambiguidade da condição humana toma contornos mais nítidos e
revela um lado nefasto, pois idealmente é suposto que apenas os animais e
monstros matem os humanos.
As doenças graves de apapaatai correspodem a um modo de predação.
Mas o mesmo não pode ser dito a respeito da feitiçaria. Se por predação
entendermos a apreensão de subjetividades humanas e não-humanas por meio
de uma ação violenta, a feitiçaria xinguana não se enquadra nesse conceito, pois
o objetivo da feitiçaria não é obter outras subjetividades ou instaurar um tipo de
troca, ou seja, gerar uma reciprocidade forçada via predação. Se não é na guerra
e na caça71, as expressões mais loquazes da predação na Amazônia, então, qual
seria o locus central da predação entre os Wauja? Ao que indicam os dados

71 A cosmológica da caça é pouquíssimo elaborada entre os xinguanos em comparação a vários


povos do noroeste amazônico (Arhem, 1996 e Silverwood-Cope, 1990) e os Jívaro (Descola,
1994), por exemplo.
123

desta etnografia, a “lógica canibal” (Fausto, 2001: 533-546) xinguana centra-se


nas doenças graves de apapaatai e não na feitiçaria humana. Portanto, a
feitiçaria, como suposta extensão lógica da guerra, não é, conforme se poderia
supor a partir da proposição de Menget (1985, 1993), um paradigma da predação
no Alto Xingu.

3.6
A ANTI-ARTE DOS OBJETOS PATOGÊNICOS

O feiticeiro representa um modelo de não-humanidade. Talvez ele seja a


sua imagem mais bem acabada. Feiticeiros, não-feiticeiros e apapaatai
configuram, no âmbito da agência patológica, padrões relacionais que permitem
um outro ponto de vista para a comparação entre as noções wauja de
humanidade e não-humanidade. A relação entre os dois primeiros é antagónica,
entre os primeiros e os últimos pode ser, em alguns casos, de troca, e entre os
dois últimos é uma relação mais complexa que se desenvolve de uma agressão
para uma aliança. Se imaginarmos os não-feiticeiros no centro de uma condição
ideal de humanidade, temos os apapaatai muito mais próximos destes do que os
feiticeiros. Os apapaatai estão sociologicamente mais próximos dos humanos
(i.e. dos não-feiticeiros) porque eles são passíveis de serem “domesticados”, já
feiticeiros não se “domestica”, ou se mata ou se expulsa da aldeia. Por
participarem de experiências positivas de construção sociocósmica — rituais de
máscaras e aerofones e auxílios aos xamãs, por exemplo —, os apapaatai são
capazes de assumir uma posição de “equilíbrio” no sistema de relação entre
humanos e não-humanos. Os feiticeiros estão totalmente fora do mundo de
reciprocidade (ainda que forçada) que as doenças graves de apapaatai
instauram. A sociabilidade dos feiticeiros é sempre negativa, porque ela mata,
impedindo qualquer fluxo de contrapartidas. Com os feiticeiros não se negocia,
eles não querem nada em troca, pois eles agem contra a sociedade. Este é o
grande divisor ontológico entre os feiticeiros e os apapaatai. Embora ambos se
expressem por meio da violência, seus fins são profundamente distintos: o
apapaatai quer aliança, o feiticeiro apenas morte e destruição. Segundo o que se
124

verá no capítulo seguinte, os apapaatai são gente do bem, “eles só querem


ajudar”, conforme testemunha Itsautaku, um importante yakapá wauja.
A fenomenologia da doença e da morte estabelece relações hierárquicas
entre os feitiços não-humanos e humanos, muitas vezes o primeiro tipo de feitiço
funciona como um facilitador da ação de feiticeiros. Comecemos do momento em
que uma pessoa acaba de entrar em estado de wTtsixu e sofre o primeiro rapto de
sua alma. A doença está, portanto, em um estágio bastante inicial e pode ser
rapidamente curada pelos xamãs. Mas se o doente não apresentar melhora após
o esgotamento de todo o repertório terapêutico xamânico, os responsáveis pela
doença já não serão considerados apenas os apapaatai, que talvez até já tenham
saído da cena patológica depois de tanta intervenção xamânica. A conclusão de
que algo mais sério atua sobre o corpo do doente depende de um agravamento
abrupto da doença ou de um estranho prolongamento desta. O enfraquecimento
inicial da pessoa, causado pela introdução das flechinhas de apapaatai, é
considerado a melhor das oportunidades para que um feiticeiro lhe prepare um
feitiço letal.
O poder letal dos feitiços feitos por humanos (/xana) reside unicamente em
suas características físicas. Eles são sempre externos aos corpos de seus
artífices, são artefatos. O que é bem diferente dos feitiços de yerupoho, que são
emanados do seu próprio corpo ou são miniaturas deste que se propagam por
meio de roupas (na/). Os feitiços feitos pelos humanos são artefatos dotados de
intenção. Depois de fabricados eles agem “sozinhos”, eles são “automáticos”,
como dizem os Wauja. Uma vez instalado no interior do corpo de alguém, é o
feitiço que “comanda” a dor, ele assume uma independência em relação ao seu
artífice, que já não precisará se dedicar à manutenção do feitiço.
Ao contrário do ixana, as flechinhas de apapaatai não são letais. Elas são
moles e muito pequenas, e quando penetram no corpo, permanecem ao nível da
epiderme e “não são difíceis de tirar”, conforme defende Ulepe, um dos grandes
yakapá wauja. Mas as flechinhas multiplicam-se rapidamente pelo interior do
corpo: um pedaço parte-se em dois, e assim vão aumentando em proporção
geométrica até atingir outras partes do corpo, para os quais elas migrariam. Daí
porque os xamãs wauja fazem sucessivas sessões para sugar as flechinhas até
que mais nada reste, pois se algo sobra, mesmo que seja um pouquinho, a dor
pode voltar. Os ixana, por sua vez, são feitiços duros, que penetram fundo no
125

corpo, sendo, portanto, difíceis de serem extraídos por sucção. Eles se alojam
em partes vitais, como o coração, o pulmão e o cérebro. São feitos para matar.
O feiticeiro wauja é um artífice de artefatos letais. É um especialista de
uma “prática” da qual apenas se vê os seus efeitos e nunca a ação propriamente
dita. A ação do feiticeiro só existe como efeito, sendo passível de ser revelada
unicamente pelos xamãs que ou extraem os feitiços do, corpo da vítima- ou os
localizam escondidos nos locais de trânsito (roças, margens de lagoas e rios,
caminhos e banheiros). Disse-me um colaborador que “o feitiço pode estar bem
na sua frente, no caminho que você toma todo dia para a roça, para o rio, mas'
você não consegue ver, só pajé consegue”. O feitiço ê, portanto, uma
“descoberta” do xamã. Aquele, na sua qualidade artefatual, como é apresentado
aos espectadores de uma sessão de divinação, é o único índice explicativo para
o estado moribundo de um doente grave. Nenhum xamã sai à procura de feitiços
a menos que todas as possibilidades de extração de flechinhas de apapaatai e
outras práticas terapêuticas relacionadas a estes tenham se esgotado. A
divinação do(s) local(is) onde feitiços são escondidos é a última das alternativas
em um processo terapêutico. Como “invenção” etiológica, o feitiço é um domínio
exclusivo do xamã, o qual oferece aos não-xamãs o acesso visual aos objetos
patológicos. Estes surgem muitas vezes configurados em bonequinhas (ou na
variante de pequeninas trouxas) de folhas amarradas a pedaços de beiju, fios de
cabelo, linhas de buriti ou de algodão e excrementos, chamadas de Tyãu opotalá
— Tyãu traduz-se por “gente” e opotalá por “vil”. Segundo os Wauja, o Tyãu
opotalá dá forma antropomorfa e agentiva aos mais baixos valores morais.
O Tyãu opotalá é o mais poderoso tipo de feitiço. Além de matar, ele pode
ser feito para atrair nuvens de gafanhoto, contaminação generalizada de
alimentos, raquitismo dos tubérculos, ataques de formigas tocandira à aldeia,
epidemias de diarréia etc. O feiticeiro tem a capacidade de trabalhar contra a
sociedade como um todo.
Os feitiços do tipo Tyãu opotalá são figuras antropomorfas ou zoomorfas
em miniatura. Uma vez desfiguradas, sua eficácia fica comprometida, mas esta
só é completamente eliminada se os materiais que constituem o Tyãu opotalá
forem mergulhados em recipientes com água fria. As figuras não representam a
pessoa a quem se deseja fazer o mal. Portanto, não é uma relação de
semelhança com a vítima o que caracteriza o Tyãu opotalá como um tipo de
126

feitiçaria/magia simpática (Frazer apud Gell, 1998: 99-100), mas os restos


orgânicos da vítima usados na fabricação da imagem. A semelhança postulada
nesse tipo de feitiço é substancial e não visual.
Uma vez constituído, o Tyãu opotalá já é alguma coisa (ou alguém) capaz
de atuação e interação próprias, ele não é um meio para se atingir algo e nem »
está no lugar de algo. O Tyãu opotalá é a extensão material de uma intenção que
pode ser espalhada por tantos lugares quanto seu artífice desejar. A metáfora
básica que esse tipo de feitiço evoca é a da dispersão espacial da pessoa do
feiticeiro; trata-se da sua distribuição em “outras pessoas” que ele é capaz de
produzir e espalhar.
Vejamos um exemplo que os Wauja dizem ser recorrente. Um feiticeiro
pode fazer pequenas imagens de porcos com o objetivo de destruir a roça de
alguém. Essas imagens de porcos irão interagir com porcos animais, chamá-los
em varas muito grandes, despertar sua voracidade para que eles consigam saltar
ou destruir as cercas que protegem as roças. O Tyãu opotalá realiza negócios
vários — e.g. tornar os tubérculos de mandioca raquíticos, apodrecer as frutas,
72
trazer nuvens de insetos — porque ele é capaz de interagir com outros seres .
O poder de um Tyãu opotalá abrange as imediações em que ele se encontra
fisicamente, seu poder não é portanto metafísico ou místico. Como bem nota
Gell, em uma passagem em que ele comenta o erro de Frazer em pensar a física
indígena como “confused” ou “non-standard”, a magia

is what you have when you do without a physical theory on the


grounds of its redundancy, relying on the idea, which is perfectly
practicable, that the explanation of any event (especially if socially
salient) is that it is caused intentionally (Gell, 1998: 101).

Em fevereiro de 2000, no início de minha segunda viagem a Piyulaga, fui


informado de que “estava faltando peixe na aldeia”. Até o dia dois de abril,
quando parti em viagem de volta para Canarana, tal escassez ainda se
prolongava. Mas não era só peixe que faltava: mandioca também. O estoque

72 As formas como os Tyãu opotalá interferem nos negócios humanos é mais complexa do que a
descrição esquemática que realizo. Desconheço todas as variáveis de sua atuação, visto que é
muito difícil abordar o assunto isoladamente entre os wauja. Quem demonstra muito
conhecimento de feitiço é obviamente um feiticeiro, portanto ninguém se sente à vontade para dar
informações detalhadas sobre como são feitos os feitiços e como eles agem. Por isso, uma boa
parte das informações que possuo sobre feitiçaria foi coletada em Canarana e em visitas que os
Wauja me fizeram na cidade.
127

acumulado na estação seca (junho a setembro) anterior, não conseguiu supri-los


de amido ao longo da estação chuvosa (novembro a março). Esse estado de
dupla escassez era visto como algo muito excepcional para ter uma causa não-
intencional. Disseram-me que os tubérculos não desenvolveram o suficiente e
que um Tyãu opotalá tinha sido colocado na lagoa Piyulaga para espantar os
peixes. Indaguei porque alguém faria tal tipo de feitiço visto que ele seria
igualmente prejudicado. A resposta que obtive das pessoas era como uma frase
de efeito, pronta para qualquer pergunta que envolvesse alta feitiçaria: “esse
feiticeiro quer acabar com a aldeia”. Era dita quase em tom de consenso. Enfim,
supunha-se que a intenção do feiticeiro era dispersar os wauja pelo seu território
em busca de alimento, pois ele já tinha tornado a vida na aldeia bastante difícil.
Em resposta a essa situação, um dos chefes partiu, em meados de março, para
uma área cultivada ao sul de Piyulaga, levando consigo quase toda sua família.
Sua atitude repercutiu como se ele estivesse literalmente dizendo que o plano do
feiticeiro estava de fato funcionando e que ele era o primeiro a ser obrigado a sair
da aldeia devido à falta de comida. Assim, além, de resolver o seu problema
alimentar ele estava a reiterar o modelo que considera a feitiçaria uma ação
destrutiva do socius.
A escassez de alimentos levou algumas crianças a estados sérios de
desnutrição, dentre as quais três ficaram muito doentes. Imaginem-se os
inúmeros estados de wTtsixu que tal escassez teria provocado, facilitando a
abordagem patológica dos apapaatai. É claro que o wTtsixuki não é diretamente
causado pela fome, como vimos acima, mas quando alguém está com fome sua
atenção sobre alimentos é de fato bem maior do que quando não se tem fome.
Para o único caso crónico de doença — que resultou em morte —, diagnosticou-
se a ação simultânea de apapaatai (especificamente o yerupoho “dono” do peixe
ukixá-kumã) e daquele Tyãu opotalá que estava escondido na lagoa Piyulaga para
espantar os peixes. Embora estivesse em um local distante da vítima, o Tyãu
opotalá estava deixando a criança “como um peixe fora d’água”, “respirava, mas
não tinha ar para ela”. Como a criança não apresentava melhora da sua
pneumonia, levaram-na para o Posto Leonardo, onde ela aparentemente
recobrou sua saúde, pois, conforme seu avô, ela já estava longe do local de
abrangência daquele Tyãu opotalá. Assim, com as forças recuperadas, a criança
já poderia voltar para Piyulaga. Mas algo inesperado veio acontecer no Leonardo:
128

a criança morreu subitamente no colo da mãe, na sala de espera da enfermaria.


Houve múltiplos agentes envolvidos na sua morte: o “dono” do ukixá-kumã (pois
seu pai, que estava em Canarana, tinha comido desse peixe considerado
kanupá, i.e. tabu), o iwejekui de uma mulher kuikuro, que tinha morrido anos
antes naquele mesmo local, estava gostando da criança, e por isso queria a sua
alma como companhia (uma parte dela pelo menos, ou mais possivelmente o seu
iwejekui) e por fim um outro Tyãu opotalá que estava escondido nas imediações
do Posto.
A dois de abril de 2000, acompanhei Itsautaku na busca desse feitiço que
tinha contribuído para a morte do bebê wauja no Posto Leonardo. Entretanto,
esse feitiço tinha sido feito para a tal mulher kuikuro que também morrera na
enfermaria. Dois xamãs kuikuro foram ao Leonardo a fim de localizar o feitiço e
neutralizá-lo. Porém, segundo Itsautaku, o seu esforço foi em vão, pois eles
teriam descoberto apenas o feitiço “de mentira”, o qual é geralmente feito pelos
feiticeiros com o objetivo de enganar os xamãs de pouca habilidade divinatória.
Itsautaku apostava que o feitiço “verdadeiro” ainda permanecia atuante nas
proximidades do Posto, devido à recente morte do bebê; ou seja, o feitiço não
tinha sido descoberto pelos “incompetentes” xamãs kuikuro, nem teria sido
removido para outro local pelo seu autor. Como a criança que morreu era wauja,
Itsautaku resolveu então localizar o feitiço, o qual pude ver após uma sessão
divinatória em que Itsautaku intoxicou-se de tabaco, seguiu correndo de olhos
fechados em direção ao mato de lá trazendo o Tyãu opotalá, feito por um
incógnito feiticeiro kuikuro. Depois de ter recobrado os sentidos, Itsautaku
providenciou desembrulhar o feitiço, de aparência e textura de um coprólito, que
se esfarelou em meio aos fios de cabelo e outros materiais que o enrolavam.
Os xamãs têm uma posição sempre a posteriori em relação ao feitiço, e os
feiticeiros uma posição tanto a priori quanto a posteriori. Ou seja, estes últimos
fazem e desfazem feitiços, enquanto os primeiros apenas os desfazem, ou
melhor, desembrulham. É da relação entre as duas posições que emerge uma
parte importante dos discursos explicativos sobre morte e identidade pessoal.
Relatarei um caso que torna mais explícita a relação entre um xamã em ofício e
um suposto feiticeiro.
No início da década de 1980, uma velha chefe (amuluneju) wauja sofreu,
durante semanas, de fortes dores em função de uma flecha de feiticeiro que
129

estava dentro do seu corpo. Várias sessões de xamanismo foram feitas em seu
benefício, contudo elas aliviaram-lhe muito pouco as suas dores, fazendo sua
morte parecer iminente. Um de seus filhos, desesperado, fez acusações em
praça pública, ameaçando de morte os acusados caso eles não suspendessem o
efeito do feitiço. No prazo de poucos dias, a velha amuluneju começou a sentir-se
melhor e sua morte que era iminente veio ocorrer apenas alguns anos mais tarde.
Um suposto e incógnito feiticeiro não somente gera um processo de morte, como
também pode interrompê-lo, caso sinta-se intimidado pelos xamãs visionário-
divinatórios e/ou pelos familiares da vítima. É apenas o feiticeiro que tem domínio
sobre todo o processo, não o xamã, este só desembrulha os feitiços, já o
feiticeiro os pode tanto embrulhar (amarrar) quanto desembrulhar.
Menezes Bastos (1990 e 1995) sugere que, no Alto Xingu, os conflitos, em
suas diferentes variações, são mediados poppadrões de aceitabilidades estético-
morais ,e que o xamanismo e a feitiçaria configuram, juntamente com expressões
Standard como a música e o grafismo, um “sistema artístico”. Mencionei
ligeiramente acima algumas concepções estéticas que envolvem a figura dos
feiticeiros (baixa estatura, “fala feia”, ou seja, propensão a fofocar, musculatura
pouco desenvolvida, abdome saliente). Mas é talvez a sua arte de produzir
objetos patológicos, letais e anti-sociais, mais do que as suas características
físicas, que colocam os feiticeiros no pólo da fealdade. Não será possível analisar
aqui os diferentes modos que arte wauja lida com a sua própria noção de
fealdade73. Todavia, no caso da presente discussão, é plausível supor que um
desses modos pode ser lido pela chave do colapso da pessoa, a morte. O ethos
da feitiçaria e seus produtos (e.g. kuretsi, ixana, Tyãu opotalá) teriam, portanto,
i

um sentido paradigmático para aquilo que poderíamos chamar de anti-arte wauja.


Os comportamentos sociais e as expressões plásticas caracterizadas
como feias apontam para uma condição moral opotalá (vil), devendo ser
“marginalizadas” das experiências estéticas relevantes para a sociabilidade
wauja. A beleza tem um lugar bem distante da feitiçaria no baralho conceituai
wauja. Mas, do ponto de vista prático, as expressões de beleza (o canto
xamânico, as palavras da reza, o desenho simétrico e límpido no corpo do
dançarino, as máscaras e flautas perfeitamente confeccionadas, o pagamento
ritual feito com esmero) são meios que tentam revelar e anular a feitiçaria. Por

73 Vide capítulo 7, seção 7.1, para uma análise da estética wauja.


130

princípio lógico, a beleza é tudo aquilo que não é feitiçaria. A beleza é um


paradigma do universo terapêutico74, este propriamente um contra-modelo da

feitiçaria. Enfim, a idéia defendida aqui é que grande parte daquilo que denomino
arte wauja reveste-se de puro valor terapêutico, sendo sua ação caracterizada
como cosmética na medida em que ela é capaz de reordenar/equilibrar as
relações entre diferentes domínios do cosmo. O próximo capítulo é dedicado a
descrever os aspectos centrais da terapia estética e como ela opera a
transferência dos apapaatai de um domínio patológico para um domínio ritual.

74 Sobre “terapias estéticas” em outros povos amazônicos, vide, por exemplo, o caso Shipibo-
Conibo descrito por Gebhart-Sayer (1985, 1986).
131

Parte II

A CONSTRUÇÃO RITUAL
DOS APAPAATAI
132

4
A TERAPÊUTICA RITUAL

Uma pessoa em estado grave de adoecimento — kamãT, literalmente


“morto” — mobiliza em torno de si, de modo direto e imediato, e
independentemente da sua idade e da importância de seu status social, pelo
menos três categorias de pessoas humanas — yakapá (xamã visionário-
divinatório)1, akatupaitsapai (aquele que cuida do doente, sendo em geral um
parente consanguíneo co-residente, normalmente é quem contrata o yakapá para
o doente) e kawoká-mona (aqueles que “apresentam” para o doente os apapaatai
que raptaram a(s) sua(s) alma(s) — e uma categoria de pessoa não-humana —
apapaatai. À exceção do akatupaitsapai, as demais pessoas humanas estão
ontologicamente muito próximas dos apapaatai, sobretudo o kamãT.
O restabelecimento da saúde do kamãT depende da correta articulação de
procedimentos terapêuticos que o distanciarão dos apapaatai, contudo, sem por
fim a sua relação com estes2. A cura é na verdade um redimensionamento dessa
relação, iniciada, como vimos, pelo estado de wTtsixu e subsequente rapto da
alma. A agência do doente é exatamente esta: colocar em relação as outras
quatro categorias de pessoas. É sobre essas relações que este capítulo se
-detém.
A relação pivotal em qualquer processo de cura é aquela que um yakapá
estabelece com os apapaatai que o adoeceram, os quais lhe conferem, por meio

1 Yatamá é o termo genérico para xamã, e yatamaki, para xamanismo. Há três tipos de
especialistas xamânicos entre os wauja: o yakapá (especialista em recuperar almas humanas e
localizar e neutralizar feitiços letais, é o principal deles), o pukaiyekeho (especialista nas músicas
secretas do ritual xamânico de extrair flechinhas e de resgatar almas chamado Pukay) e o yatamá
(que apenas sabe aliviar dores com o uso da fumaça do tabaco, técnica também conhecida pelos
dois anteriores). Há outros dois especialistas terapêuticos, embora seus conhecimentos não lhes
conferem, segundo os Wauja, o status pleno de xamãs. Tratam-se do ajatapeiyekeho
(especialista em plantas medicinais, traduzido por “raizeiro”) e do ejekekiyekeho (especialista em
rezas, traduzido por “rezador”). Contudo, os seus “campos de especialização” não lhes são
exclusivos, muito dos seus conhecimentos sobre rezas e plantas são igualmente dominados pelos
yatamá.
Não abordarei aqui o sistema médico wauja, que obviamente envolve variados graus
patológicos e intervenções terapêuticas. Interessam-me apenas os estados graves de
adoecimento, aqueles em que é dito estar “morto” o doente, i.e. com a(s) sua(s) alma(s) a
vagar(em) com os apapaatai. É apenas a cura do “morto” que implica a realização de rituais de
apapaatai.
133

da doação de uma substância específica (yalawo) e do auxílio como guias3 e


interpretes, um conjunto de poderes terapêuticos capaz de, consoante à
sequência de intervenções, retirar os apapaatai onukula (“flechinhas de feitiço”)
do corpo do doente, de interpretar os sonhos deste, de identificar os apapaatai
que raptaram sua alma e de resgatá-la.

4.1
Yalawo, substância terapêutica

Reside sobre o corpo o princípio da diferença entre um xamã e um não-


xamã. Tal distinção é dada pela posse da yalawo, uma substância de yerupoho-
apapaatai que contém “potência xamânica”, ou melhor, que ativa capacidades de
cura. A yalawo está distribuída pelo corpo do yakapá’. em volta dos olhos (“para
ele ver apapaatai”; “para ele virar olho e ver o que a gente não vê”), nas palmas
das mãos (“para ele pegar ixana e apapaatai onukula”), nas pernas (“para ele
correr” em busca da alma do doente) e no estômago (“onde ele guarda a yalawo
principal”). Esta última é a que o yakapá poderá oferecer a um de seus
iniciandos. Dela o yakapá retira apenas uma parte para complementar a yalawo
que o iniciando já possui em seu corpo, ou seja, aquela que ele recebeu do
apapaatai que o adoeceu. A quantidade de yalawo que o yakapá sénior coloca no
corpo do iniciando deve ser consoante à capacidade deste em suportar a “dor” do
yalawo, se a quantidade for excessiva, o iniciando poderá morrer.
Ter yalawo, em seu corpo lembra permanentemente ao xamã a sua
condição de proximidade ontológica dos apapaatai, a qual pode ser interrompida
se um yakapá pedir a outro yakapá que lhe retire as yalawo do seu corpo.
Portanto, uma vez sem yalawo, cessa-se toda a potência de cura do xamã,
restando-lhe apenas a capacidade de sonhar com o mundo dos apapaatai. A
yalawo segue o mesmo princípio da “roupa”, ambas cumprem funções corporais,
a primeira sendo interior e a segunda exterior ao corpo. A “roupa” permite voar, a
yalawo permite ver o invisível, ouvir o inaudível, pegar feitiço e correr de olhos
fechados.

3 Os apapaatai que auxiliam os yakapá são denominados Tyakanãu.


134

Itsautaku e lllepe, dois dos quatro yakapá wauja, mostraram-me suas


respectivas yalawo do estômago — a única que pode ser auto-extraída — e
depois as engoliram, colocando-as “de volta” ao seu local, que me mostraram
ficar na “boca” do estômago. A extração, feita com o auxílio da fumaça de tabaco,
pode parecer uma demonstração para conquistar a credulidade do antropólogo.
De todo modo, surpreendeu-me o fato de que os yakapá guardam,
“permanentemente” em seu estômago, uma substância de textura parecida ao
látex e do tamanho de um grão de bico. Eles a extraíram sem vómito ou qualquer
coisa semelhante, e apenas expressavam dor. Aliás, dor é talvez a principal
sensação que caracteriza a atividade xamânica. Sempre que alguém me
confessava seu interesse em se tornar yakapá, eu lhe perguntava porque não
prosseguia com o projeto. Todos deram a invariável resposta de que talvez não
aguentassem as fortes dores e os longos períodos de abstinência sexual, enfim
hesitavam colocar suas vidas em risco e abrir mão do prazer sexual. Para se
tornar um yakapá deve-se, no limite, suportar ser um “doente permanente” —
para sermos fiéis à expressão de Viveiros de Castro (1977) —, ou seja, suportar
manter em seu corpo substâncias que provocam dor.
É bem verdade que a profunda intoxicação por tabaco, tal qual praticada
pelos yakapá, pode resultar em sequelas. A yalawo é unicamente ativada por
meio da ingestão da fumaça do tabaco. Desde Galvão (1953), a literatura
xinguana refere-se ao tabaco como a substância xamânica por excelência. Ela
não deixa de sê-lo, mas se perguntarmos a um xamã wauja qual a principal
substância xamânica, ele não hesitará em responder que é a yalawo. O tabaco
assume tal posição de excelência na medida em que ele associa-se à yalawo.
A yalawo funciona apenas em conjunto. Se um yakapá não as têm em
todas as partes do corpo mencionadas acima, seu poder terapêutico não se
atualiza. Aliás, entre os Wauja, não há poder xamânico puramente
“transcendental”. O poder dos yakapá é dependente da quantidade correta de
yalawo que ele carrega em seu corpo. Trata-se de um poder “substancial”,
material. Nenhum yakapá pode realizar curas se ele não tiver a yalawo do
estômago, que é recebido em uma das últimas etapas da sua iniciação
xamânica4. A transmissão da yalawo faz-se de um yakapá sénior para um júnior,

4 Há yakapá referidos na literatura (Mattos e Silva et alli, 1988: apêndice 1) que foram iniciados
pelos seus próprios Tyakanãu. Segundo meus colaboradores wauja, essa iniciação dá-se em
sonho. Desconheço detalhes sobre a mesma, pois o último yakapá wauja iniciado por Tyakãnau
135

normalmente iniciado por aquele. A iniciação confirma a idéia de uma


transmissão ancestral da yalawo do estômago. Sua origem remonta a Apuay,
personagem mítico que teria sido o primeiro yakapá wauja, obviamente iniciado
pelos próprios apapaatai. Apuay recebeu a yalawo dos Sapukuyawá e a partir
dela “fez” outros yakapá.

4.2
A VISITA DO YAKAPÁ

Diz-se do doente em estado grave, o “morto” (kamãT). Esta é também a


condição do yakapá em transe — “ele morreu pouquinho”, tradução corrente da
noção do transe como “morte”. O que se quer dizer com isso é que tanto a alma
do doente quanto a do yakapá estão fora de seus corpos, em companhia dos
apapaatai. Sobre esta questão, é necessário acionar um aspecto da
fragmentação/distribuição da alma, pois não é todo montante de alma que é
levada a vaguear, mas uma fração dela. De todo modo, isso implica riscos de
vida5. Ao narrar como foi gravemente adoecido pelas Onças (Yanumaka nãu),
Atamai enfatizou, em vários momentos da narrativa, que os apapaatai o estavam
a “matar”. No início, Atamai ainda estava consciente, porém, na medida em que
as dores aumentavam, ele “morria” mais e mais, até chegar a um estado de total
inconsciência. A doença anuncia um processo letal de perda de substância vital e
sua reversão cabe unicamente ao yakapá.
O primeiro passo é aliviar as dores do doente, extraindo do seu corpo, com
o auxílio do tabaco e das yalawo, as flechinhas de apapaatai. “Artefatos” doridos
e signos de agência patológica, as flechinhas apontam invariavelmente para um
ou mais sujeitos ocultos, cuja revelação é um atributo exclusivo dos yakapá. Logo
que se iniciam as extrações, os sentidos do yakapá orientam-se para os odores
e, secundariamente, para as formas das flechinhas. Na medida em que as

foi o antigo chefe Malakuyawá, falecido por volta de 1985. Segundo as fontes que possuo,
Takumã, antigo chefe da aldeia kamayurá de Ipavu, é o único yakapá (“xamã de ver e ouvir”, na
expressão de Menezes Bastos, 1985-84) iniciado por.mamaé {apapaatai) ainda vivo no Alto
Xingu.
5 Há um caso registrado por Joan Richards de um yakapá morto em pleno transe (informação
pessoal).
136

flechinhas são retiradas, evidências materiais começam a surgir para a


montagem do diagnóstico, pois as flechinhas, sendo miniaturas das “roupas” dos
apapaatai, fragmentos destas, pequenas porções de substâncias (cera de
abelha, resinas de árvores, pigmentos etc.) de uso característico dos apapaatai
e/ou restos de alimentos consumidos pelo doente enquanto passeava com os
apapaatai, trazem em sua materialidade pistas sobre tais agentes ocultos. O
yakapá ainda ouvirá os sonhos do doente (caso existam) e fará uma anamnese,
direcionada sobretudo para o histórico alimentar do doente e de seus
consanguíneos imediatos, destes apenas se o paciente for criança.
Concluída esta etapa, o yakapá põe-se a engolir sofregamente fumaça de
tabaco até atingir um estado de profunda narcose. Sempre há alguém, parente
do doente ou um yatamá, que lhe ascende os cigarros de tabaco, cujo
comprimento varia entre 30 e 40 cm, e os entrega em sua mão. A partir do
segundo ou terceiro cigarro, nota-se um enrijecimento de seus membros de tal
forma — evidenciando sinais de dor — que ele não consegue ficar em pé, então,
prostra-se no chão, como um animal de quatro patas, passando em seguida à
performance que o associa aos seus Tyakanãu, que em geral são animais de pêlo
(apapaatai-mona). O yakapá em transe poderá caminhar sobre os quatro
membros, percorrendo os cantos da casa indiferente a brasas de fogueiras,
espinhos ou objetos cortantes espalhados pelo chão. Falará palavras dispersas
que indicam que ele está próximo a revelar quais apapaatai estão a “matar” o
doente. Em uma etapa seguinte, mas que nem sempre se realiza, o yakapá
poderá atravessar o pátio da aldeia e correr em direção aos quintais das casas
em busca de mais pistas.
Este estado de transe por intoxicação com tabaco é o que os Wauja
chamam de metsepui. Ele é um estado “passivo”, no qual o yakapá apenas age
sob o comando ou a guia de seus Tyakanãu. Outro termo que lhes é empregado é
okahitsa, cujo campo semântico é o da condução guiada. Nada pode fazer o
yakapá no mundo dos apapaatai sem seus Tyakanãu; os dois primeiros
relacionam-se numa condição mediada pelos últimos.
O mundo dos apapaatai nunca é apreendido e experenciado de modo
igual pelos yakapá, pois a sua percepção desse mundo se dá unicamente através
do que os seus Tyakanãu conhecem e decidem lhe mostrar. Kamo, um dos
grandes yakapá do Alto Xingu, tem Yanumaka Kapalá (Onça Pintada) como
137

Tyakanãu. Para Kamo, os apapaatai são mostrados portando “roupas”


coloridíssimas, repletas de composições gráficas muito variadas. Kamo executou
longas sequências de desenhos que mostram tais roupas nos mínimos detalhes
(vide capítulo 2 supra e Barcelos Neto, 2002). No entanto, Kamo não era
considerado uma pessoa especialmente “criativa” ou mais “criativa” que as
outras, antes se dizia que aquelas “roupas” desenhadas por ele eram o que seu
Tyakanãu lhe mostrava em seus sonhos. As ênfases que cada yakapá confere à
descrição do mundo dos apapaatai são devedoras do viés do seu “guia”.
Estamos precisamente a fazer uma leitura etnográfica da afirmação de Viveiros
de Castro (2002a: 353) de que “a experiência pessoal própria ou alheia, é mais
decisiva do que qualquer dogma cosmológico substantivo”. Apesar de “qualquer
perspectiva [ser] igualmente válida e verdadeira”, isso não significa que “uma
representação verdadeira e correta do mundo não [exista]”, pelo menos no que
diz respeito aos humanos. Conforme explica Viveiros de Castro:

só existe uma vera e justa representação do mundo. Se


começarmos a ver, por exemplo, os vermes que infestam um
cadáver como peixes grelhados, ao modo dos urubus, só
poderemos concluir que algo anda muito errado conosco. Pois isso
significa que estamos virando urubu, o que não consta normalmente
dos planos de ninguém: é sinal de doença, ou pior. As perspectivas
devem ser mantidas separadas (2002b: 378).

Ao fim do metsepui (transe), o yakapá revela, ainda sob efeito narcótico,


em um tom de voz muito baixo, ao akatupaitsapai e demais parentes
consanguíneos do doente, que estejam próximos a sua rede, quais apapaatai ele
viu. O yakapá os enuncia dizendo o nome do yerupoho (“é Onça”) identificando-o,
em geral, a um tipo de “manifestação” mascarada — por exemplo, Sapukuyawá
Yanumaka (Onça vestida de Sapukuyawá) —, caracterizando com precisão o
modo transformativo que o yerupoho assumiu no rapto. A lista de agentes
patológicos sempre inclui mais de uma “manifestação” mascarada dos apapaatai
e, eventualmente, pode incluir aerofones, também identificados aos yerupoho.
Concluída a revelação, o yakapá contratado retorna a sua casa, onde mais
tarde receberá seu pagamento das mãos do akatupaitsapai ou de outro parente
consanguíneo co-residente do enfermo, caso não o tenha recebido
imediatamente após seu serviço. A partir desse momento o yakapá sai
138

completamente de cena, porém os postulados ontológicos xamânicos


continuarão a se enunciar por meio de novos outros agentes, os kawoká-mona.

4.3
O RITUAL DE TRAZER APAPAATAI

Logo que são revelados os apapaatai que estão a “matar” o doente, uma
das mulheres da casa providencia a distribuição de mingau frio de beiju, em um
número de calderõezinhos igualmente correspondente ao número de apapaatai
que raptaram a(s) alma(s) do doente. Esses calderõezinhos são levados até o
enekutaku (pátio frontal à casa das flautas) pelo akatupaitsapai que então
anuncia, em voz alta, para que toda a aldeia possa escutar, os nomes das
pessoas que deverão consumir o mingau. A frase padrão e invariável nestas
ocasiões de convocação é: fulano “manapatuwata apapaatai” (“vem trazer
apapaatai’). A pessoa convocada dirige-se ao enekutaku e pergunta ao
akatupaitsapai: “katsá apapaatai natuwiu?” (que apapaatai sou eu?), recebe dele
a resposta e logo em seguida um caldeirãozinho de mingau, levando-o a boca e
bebendo seu conteúdo, mesmo que não esteja com fome. Mais pessoas são
chamadas até que todos os calderõezinhos lhes sejam entregues em sua
simultânea identificação aos apapaatai raptores.
O akatupaitsapai pode escolher como kawoká-mona os afins e/ou os
consanguíneos “próximos” e/ou “distantes” das gerações igual e/ou abaixo do
doente, excluindo, invariavelmente, os seus co-residentes. Um chamado jamais
deve ser recusado, mas se a(s) pessoa(s) convocada(s) não estiver(em) na
aldeia naquele exato momento, outra(s) deve(m) ser escolhida(s), pois a situação
não pode ser adiada.
Consumido todo o mingau, os convocados assumem a identidade dos
apapaatai que eles deverão levar/apresentar ao doente, portando
enfeites/objetos-insígnia improvisados e entoando o canto próprio de cada
apapaatai. Esses objetos podem ser um pedaço de palha colocada na cabeça,
um cordão amarrado na cintura, um bastão de maniva. A única exceção a tal
singela improvisação ocorre quando o apapaatai que está “matando” o doente
139

manifesta-se como portador de Kawoká. Assim, o objeto-insígnia será a própria


flauta Kawoká ou o seu filho Kawoká Otãi (literalmente filho de Kawoká), que
expressarão o levar/apresentar unicamente por meio da música instrumental6. Os
convocados realizam a performance musical e coreográfica no trajeto de ida e
volta entre o enekutaku e a casa do kamãT, onde então assumem, em relação a
este, e de modo pleno, a identidade social de kawoká-mona.
No interior da casa, o doente permanece convalescido. Seu grupo de
substância7 imediatamente próximo afasta-se da sua rede, abrindo espaço para a
visita ritual dos apapaatai (i.e dos kawoká-mona). Estes interrompem a música e
a dança praticamente ao adentrarem a casa, onde recebem, cada um, cigarros
de tabaco previamente enrolados por um dos parentes masculinos do kamãT. Os
apapaatai manifestam, diante a assistência e por meio de onomatopéias, seu
contentamento pela comida e pelo tabaco recebidos. Fumando seus cigarros com
constância e parcimónia, sem tragá-los, os visitadores aproximam-se
solenemente da rede do kamãT, para quem dirão frases de conforto a partir dos
vocativos atu (avô) ou atsi (avó), se o kamãT for adulto, ou nutãi (filho) ou
nitsupalu (filha), no caso de crianças. O conteúdo das frases converge para a
anunciação de que aquele apapaatai em visita não mais fará mal ao doente e que
este recobrará a sua saúde. Estas são as poucas palavras que os apapaatai
pronunciam durante a visita ritual, todo o resto da comunicação oral é
onomatopéica. Na maioria dos casos, o doente não percebe o que lhe foi dito,
pois a intenção da visita não é estabelecer uma comunicação ao nível linguístico,
a fala aqui é praticamente retórica, sem qualquer efeito terapêutico explícito.
Imediatamente após a enunciação das frases, os apapaatai inclinam-se sobre o
kamãT e sopram tabaco sobre seu corpo, principiando pela cabeça e finalizando
no abdome. À medida que sopram, esfregam a fumaça com a mão direita, como
se estivessem provocando a sua aderência ao corpo. Ao fim desta ação, os
apapaatai manifestam mais uma vez seu contentamento pelo tabaco, retornam
ao enekutaku, onde descartam/guardam os objetos-insígnia, e seguem para suas

6 Vide contribuição de Coelho (1988) sobre a flauta Kawoká Otãi.


1 Entre os Wauja, um grupo de substância corresponde aos indivíduos (corpos) que foram
“fabricados” pelo “mesmo sêmen” e aos seus genitores, cuja abstinência de determinadas
práticas e alimentos, permitiram dar continuidade à produção do corpo iniciada pelo acúmulo de
sêmen no útero. A categoria é bastante operativa na descrição dos processos de produção da
pessoa e da cura. Trata-se de uma categoria menos inclusiva que a de “consanguinidade” e mais
ampla que a de “família nuclear”. Vide Matta (1976) para uma caracterização da categoria entre
os Apinayé e Viveiros de Castro (1977) entre os Yawalapíti.
140

respectivas casas. Afinal, o que estão a mobilizar e a fundar essas curtas visitas
que em geral não duram mais do que dez minutos?
O ritual de trazer apapaatai (Manapatuwata Apapaatai) é uma medida
extrema e urgente que atua em três frentes.
A primeira é a “familiarização” dos apapaatai, cujo passo primordial é o
consumo do mingau de beiju ou pequi levado ao enekutaku pelo akatupaitsapai.
Na fase crítica do adoecimento, eram os apapaatai que estavam a “familiarizar” o
doente com a oferta de carne crua e sangue; por sua vez, no ritual de trazer
apapaatai, são os parentes do doente que “familiarizam” os apapaatai com a
oferta de mingau. A operação lógica é fazer uma oposição entre alimentação
carnívora e crua (caça + hematofagia) e alimentação vegetariana e cozida
(agricultura + fogo), cujo efeito sociocósmico corresponde à produção do
parentesco. Conforme Fausto:

Comer como alguém e com alguém é um forte vetor de identidade,


assim como se abster por ou com alguém. As partilhas do alimento
e do código culinário fabricam, portanto, pessoas da mesma espécie
(2002:15).

A oferta de comida envolve ainda outras questões. Peter Rivière refere-se


a um mito tiriyó em que humanos oferecem comida aos queixadas a fim de
estabelecer uma relação de troca, cujos “termos são alimentos cultivados e
respeito, de um lado, e um suprimento moderado de caça, de outro” (2001: 47). A
oferta wauja de comida cozida aos apapaatai também implica em uma relação de
reciprocidade negociada, como veremos adiante. Reside nas formas alimentares
um dos modos centrais da transformação nas cosmologias ameríndias. Cru e
cozido não apenas evocam a distinção Natureza e Cultura e a passagem de uma
para a outra, mas também afecções e possibilidades transformativas. Em um
texto pioneiro, Peter Rivière (1995) cita um mito tiriyó em que um rapaz veste
“roupa” de onça e lambe o sangue cru da caça abatida, “em consequência, ele
não conseguiu mais tirar suas roupas: elas grudaram nele e ele se tornou um
jaguar, não só em aparência, mas em realidade”. Comer como onça (cru) torna
alguém onça. A comida cozida que os Wauja oferecem aos apapaatai anula a
sua “natural” ferocidade, permitindo a sua “desanimalização”.
A segunda frente é o reconhecimento dos apapaatai visitantes como
personagens rituais potenciais (este assunto será abordado na seção seguinte e
141

no capítulo 5). E a terceira é a reintegração da(s) alma(s) do doente ao seu


corpo. Cada apapaatai visitador devolve ao kamãT a fração de alma que outrora
ele raptou. Ao soprarem e esfregarem tabaco pelo corpo do kamãT, os visitadores
estão a operar a reintrodução das suas frações-alma. Se nos dois dias seguintes
o kamãT apresentar uma sensível melhora, dá-se por encerrada a terapia.
Entretanto, se a doença reincidir, faz-se necessária a organização de um ritual
mais “complexo” de resgate da(s) alma(s), o Pukay. Se o doente não melhorar,
não será mais possível repetir o ritual de trazer apapaatai com os mesmos
apapaatai que anteriormente visitaram o doente, pois aqueles já lhe devolveram
sua(s) alma(s) e prometeram não mais lhe fazer mal. Assim, o ritual só será
repetido se novos outros apapaatai raptarem alma(s) do doente. Se a doença
reincidir, nenhum Wauja dirá que o ritual de trazer apapaatai “falhou”, pois seu
objetivo é sempre alcançado, se o doente não melhora é porque alguma fração-
alma (fração de sua substância vital) continua dispersa, cuja localização o yakapá
(ainda) não logrou obter.
Os Wauja não encaram a atuação do yakapá como passível de falha, mas
como um processo feito de sucessos parciais. A própria noção de adoecimento
grave corrobora essa visão, pois os apapaatai agem patogenicamente consoante
a instabilidade do doente, função dos estados seqúenciados de wTtsixu por ele
manifestados. Além disso, nos casos de adoecimentos graves, raramente um
único yakapá é capaz de descobrir todos os apapaatai que afligem o kamãT.
Quando um doente grave demonstra uma recuperação muito lenta, um segundo
yakapá é chamado. No entanto, seu objetivo não é atestar que a atuação do
yakapá anterior foi infeliz, mas sim descobrir novos agentes patogênicos, pois se
o doente não recobrou sua saúde é porque algo novo está a fazer parte da sua
“morte”. Neste caso, faz-se necessária a realização do Pukay, um poderoso ritual
xamânico que tem como objetivo recuperar a alma in loco, ou seja, na área
próxima de seu rapto.
A única etnografia sobre o Pukay na literatura xinguana é devida a
Menezes Bastos (1984-85), que descreve a “versão” kamayurá deste ritual
(Payemeramaraká). Entre os Wauja, o Pukay é secreto e absolutamente vetado
aos não-xamãs, desse modo, toda informação que obtive sobre o Pukay advém
de depoimentos e de narrativas míticas. Ao longo das minhas estadas em
Piyulaga, ocorreram quatro Pukay — maio de 1998, março e setembro de 2000 e
142

setembro de 2002. Raros são os casos de adoecimento grave que não


demandam a realização de um ou mais Pukay. Embora o Pukay seja uma terapia
importantíssima, ele não é um ritual que tenha implicações diretas sobre a
“cadeia operatória” que nos conduzirá aos rituais de máscaras e aerofones.A
análise do Pukay nos desviaria da rota, pois o mesmo encerra-se sobre si
mesmo, enquanto o ritual de trazer apapaatai, foco central destecapítulo,
estende-se a novas relações rituais e sociais.

4.4
A POTÊNCIA TERAPÊUTICA DOS KAWOKÁ-MONA

Quando os apapaatai visitam e devolvem a alma ao kamãT, eles se se


tornam kawoká. Como vimos, essa visitação é sempre feita por um grupo de
pessoas da aldeia, cujo status passa a ser kawoká-mona, e que personifica uma
relação com os apapaatai que antes era vivida apenas na condição de “morte” ou
passeio. Em um sentido restrito, os kawoká-mona mediam uma relação, num
sentido amplo eles correspondem a uma extensão/distribuição da pessoa dos
apapaatai.
O kawoká é uma “condição especial” do apapaatai, que tem como sinais
de reconhecimento (1) a oferta de alimentos cozidos pelos humanos e o seu
consumo pelos apapaatai, no caso os kawoká-mona-, e (2) a “familiarização” do
apapaatai como “protetor” do doente (ou ex-doente, se seu estado de saúde já
estiver normalizado). Esses sinais de reconhecimento são recíprocos: os
apapaatai vêem os humanos como provedores de alimentos cozidos, e estes
vêem aqueles como protetores contra a investida de outros apapaatai. Por
exemplo, Atamai, ex-doente de Tankwara Yanumaka (Onça), atualmente
alimenta esse apapaatai por meio do patrocínio de seu ritual, cuja performance é
feita por um quinteto de clarinetistas, seus kawoká-mona, os tocadores dos
clarinetes. É Tankwara, como pessoa não-humana e ser-kumã (sujeito
xamânico), que protege Atamai. E é Atamai, como pessoa humana capaz de
gerar parentes (co-residentes em função da uxorilocalidade) e de mobilizar
especialistas rituais (originalmente apresentados como visitadores xamânicos,
143

kawoká-mona), em torno de si, que permite que aquilo que outrora foi uma
subtração de sua alma venha a ser uma soma de novos sujeitos, os apapaatai. O
ritual, como oferta de alimentos, é a maneira de positivar a doença.

Quadro 5
Da doença ao ritual de trazer apapaatai

Momentos da As categorias Processos Economia Economia visual


terapêutica envolvidas alimentar

Pré-terapêutica. 1. kamãi, o “Morte” como sonho e Carne crua Invisível para o


Constatação da “morto” (doente passeio com os apapaatai. e sangue corpo. Visível para a
“morte”: corpo grave) “Morte” como lenta alma
em vias de 2. apapaatai Animalização do doente.
colapso_______
Visitação do 1 .apapaatai Extração de flechinhas de Tabaco Visível no transe e
yakapá 2. yakapá apapaatai como desanima- no sonho. Visível na
3. tyakanãu lização do corpo do kamãi forma de feitiço
4. kamãi extraído, esta
visibilidade é restrita
ao grupo de
substância do doente
e ao xamã._________
Visitação dos 1. kawoká Devolução da alma e/ou seu Tabaco e Visibilidade máxima
apapaatai 2. kawoká-mona resgate por meio do ritual mingau e socialmente
3. kamãi Pukay. integrada.
Desanimalização dos
apapaatai via oferta de
comida.
Kamãi torna-se “dono” do
apapaatai

A fim de esclarecer os conceitos kawoká (“espírito” protetor) e kawoká-


mona é necessário evocar, mais uma vez, a análise de Viveiros de Castro
(2002c) sobre os afixos-modificadores (-kumã, -rúru, -mina, -malú) dos conceitos-
base na ontologia yawalapíti8. Viveiros de Castro (2002c: 34-35) defende que o
sufixo -mina (-mona) funciona como um corporificador de substâncias. À luz dos
dados wauja, parece-me bastante acertada a sua análise que contrasta -kumã e -
mina, aproximando-os respectivamente aos sentidos conceituais de alma e
corpo. Assim, seguindo a reflexão de Viveiros de Castro, -kumã seria uma
condição espiritual do corpo e -mina uma condição corporal do espírito. Portanto,
no sentido dessa reflexão, os kawoká-mona são precisamente aqueles que
trazem o “espírito” em corpo. Daí a lógica da realização do ritual Manapatuwata
Apapaatai como um recurso terapêutico. De outro lado, há Kawoká, a famosa
144

flauta de madeira proibida às mulheres, como a forma modelar da espiritualidade


xinguana (cf. também Viveiros de Castro, 2002c). No sentido da sua construção
ritual, a flauta Kawoká9 é uma corporificação do “espírito” de Kawoká.
Quando os apapaatai aceitam o mingau oferecido pelo akatupaitsapai, eles
se tornam, para o doente, seus kawoká, “protetores espirituais”. O doente
passará a ser kawoká (apapaatai) wekeho (“dono” de kawoká), devendo assumir
os cuidados alimentares de seus “protetores”. Se o ex-doente parar de cuidar dos
seus kawoká, por meio da frequente oferta de comida aos seus kawoká-mona,
eles o abandonarão, deixando-o sem proteção, portanto sob o risco de novos
adoecimentos. Itsautaku e seus filhos frequentemente me lembravam que os
apapaatai se aproximam dos Wauja porque eles querem ajudá-los. Quem tem
apapaatai é protegido da agressão de outros apapaatai, de feiticeiros e de
acidentes graves.

O apapaatai “manda” (orienta) na sua upapitisi (alma) na hora


do perigo. (...) Um dia, aqui em Canarana, eu estava andando de
bicicleta, sem prestar atenção. Vinha um carro em minha direção,
mesmo atrás de mim, mas eu não estava ouvindo nada. Eu já ia
virar e o carro ia me pegar, mas de repente eu parei, não sei
porque, e carro passou por mim de uma vez, sem buzinar, nem
nada. Eu pensei: nossa eu não vi esse carro! Ele ia me matar.
Aqui na cidade, vocês falam “Deus!”, “graças a Deus”, vocês
agradecem a Deus, a gente agradece o nosso apapaatai, aquele
que nos adoeceu, que a gente deu festa para ele.

O depoimento é de Yanahin, agente indígena de saúde, que continua sua


reflexão sobre outro modo de ajuda dos apapaatai:

Faz tempo, o irmão de Paru (importante yakapá yawalapíti),


meu tio (Tapayé) e meu primo (Ewelupi) foram para uma pescaria.
Só meu tio e meu primo saíram de canoa, foram para o outro lado
da lagoa (chamada Carrapato). Tem uma parte da lagoa, bem perto
do meio, que é muito perigosa. Ninguém passa por lá. É mesmo
proibido. Se você passar por perto, os peixes começam a pular.
Meu tio e meu primo pensavam que estavam remando no
caminho certo, mas como estava chovendo e ventando muito (...),
eles foram afastados para a direção dos apapaatai-iyajo (i.e. para a
“casa” deles, que fica o meio da lagoa), que já estavam preparados
para comer o meu tio e o meu primo.

8 Na língua wauja, esses afixos são -kumã, -iyajo, -mona, -malu.


9 Grafo em maiúsculo o nome dos aerofones e máscaras precisamente em função da sua
natureza “espiritual”.
145

O irmão de Paru estava no acampamento de pesca,


dormindo, sonhando. Ele via tudo o que estava acontecendo com
eles. Ele gritava no sonho, gritava muito para que eles não
ultrapassassem o limite do meio: — “Cuidado, vocês vão morrer!
Vocês têm que sair daí!” Mas eles não escutavam nada. Até que
irmão de Paru gritou tanto que os apapaatai (protetores de Tapayé e
Ewelupi) o escutaram e foram fazer uma barragem (fila) bem
comprida para que a canoa não passasse para o lado da casa dos
apapaatai-iyajo. Ele (o irmão de Paru) também mandou seus
apapaatai (Tyakanãu) para ajudar.

Segundo Yanahin, se o irmão de Paru não tivesse intercedido, Tapayé e


Ewelupi muito provavelmente teriam sido devorados. A relação íntima com os
apapaatai protetores (kawoká) é mais frequente nos sonhos. A figura 1 mostra
Aulahu passeando com seu kawoká Wejeje (Sapo), que lhe apresenta o “outro”
mundo, onde os animais são invariavelmente “gente” (Tyãu) e as festas muito
frequentes. Esse plano onírico é diferente daquele vivido pelo doente grave. A
rigor, um sonho com apapaatai indica que a alma do sonhador foi raptada e está
sendo Animalizada no “outro mundo”. Já os sonhos com os kawoká (apapaatai
“familiarizado”, apapaatai protetor) se passam de um modo bastante diferente,
pois não é a substância vital (upapitsi) que vagueia, como no caso do “morto”
(kamãi), mas a alma-olho (ojutai ogamawato), que leva consigo uma parte da
consciência do sonhador. Ter kawoká significa poder conhecer. Claro que isso
dependerá da boa qualidade do tratamento (oferta ritual de comida, basicamente)
que o ex-doente dispensa aos seus kawoká-mona, i.e. a condição encorporada
dos seus kawoká.
Como mencionado no capítulo 2, os apapaatai patogênicos existem em um
estado -kumã — prototípico, poderoso, invisível. A única condição em que os
humanos podem ter uma experiência não-patogência/não-letal com estes seres
de natureza-kumã é quando eles são “rebaixados” a uma natureza-mona: de
“espírito” a corpo, portanto. Isto implica que um humano desperto e com sua
unidade corpo/alma Intacta, ou seja, em condição normal de saúde, não deve se
aproximar de um Macaco, um ser-kumã por excelência, cujo corpo ou “roupa” é
potencialmente patogênico, entretanto um humano pode se aproximar de um
macaco, ou seja, um apapaatai-mona. Como apontou Viveiros de Castro, o afixo-
modificador -mona é uma atualização do protótipo marcada pela carência, que,
neste caso específico, corresponde a sua saída de uma posição canibal para
uma posição de comensal com os humanos. Portanto, na condição de doentes
146

graves, os humanos são comensais com os apapaatai, seus “predadores” e


mestres da transformação dos humanos em Animais. Tanto no caso do
adoecimento grave (“morte”) quanto no processo terapêutico (visitação dos
kawoká-mona, em especial), a comensalidade funda um princípio de
transformação e identidade. A possibilidade de reversão, seja do Animal para o
humano ou do humano para o Animal, opera no domínio das substâncias, as
quais têm poderes intrínsecos. Se o idioma fundamental do adoecimento é a
substância, não menos o é para a cura. Esta, porém, lança mão de dispositivos
mais complexos que dependem diretamente dos modos de conceber a vida em
grupo.
Um kawoká-mona não é um xamã, embora ele seja imbuído de imenso
poder terapêutico. Enquanto o xamã ocupa uma posição de
tradutor/mediador/negociador, o kawoká-mona ocupa a de “presentificador”. No
“pequeno” ritual de trazer apapaatai, os parentes do doente, publicamente
convocados a ser kawoká-mona, personificam cada um dos apapaatai raptores
das frações-alma do doente e realizam a performance que as reintegra em seu
corpo. Os kawoká-mona têm o poder de devolver as almas aos doentes, pois a
pessoa dos apapaatai se distribui na pessoa dos parentes através da aceitação
da comida oferecida e da performance.
Esse processo pode ser aproximado àquele que Gell (1998: cap. 7)
descreve como a distribuição da pessoa por meio da produção de ídolos e de
rituais de consagração, os exemplos etnográficos da sua análise provêm da
Polinésia e da índia, sobretudo. Um dos exemplos que particularmente nos
interessa, é o Kumaripuja, o culto da feroz e erótica deusa Taleju na forma de
uma criança do sexo feminino, kumari. Neste caso, o “índice da divindade não é
uma imagem esculpida, mas um ser humano” (1998: 150). Os kawoká-mona
estão para os apapaatai assim como a kumari está para Taleju, eles são os
índices de um poder terapêutico, cuja concentração máxima encontra-se entre os
apapaatai/yerupoho.
Nos casos de adoecimento grave, os yakapá muito raramente conseguem,
sozinhos, curar os seus “pacientes”. Os kawoká-mona surgem para
complementar os trabalhos xamânicos. Em comparação a outros povos das
terras baixas sul-americanas, parece-me ser peculiar aos Wauja essa prática de
estender a todos da aldeia, inclusive crianças, o poder de atuar como agentes de
147

cura. É claro que no âmbito da produção ritual dos apapaatai, como máscaras e
aerofones, alguns rearranjos são necessários, fazendo com que as
responsabilidades produtivas e performáticas concentrem-se sobre aqueles
kawoká-mona que têm conhecimentos rituais específicos. A atuação terapêutica
dos kawoká-mona não é mediada/guiada por Tyakanãu, como no caso dos
yakapá, mas simplesmente por sua habilidade artística como músicos,
dançarinos, pintores, ceramistas etc. Os kawoká-mona têm poder de cura
especialmente porque eles podem atualizar, em estado “corporal”, aquilo que
está em estado “espiritual”. E esta atualização só é possível por meio da
performance musical-coreográfica somada às insígnias/ornamentos específicos.
Os kawoká-mona são “xamãs por expediente”, ou melhor, sua “potência
xamânica” é função do seu conhecimento das performances rituais. Os yakapá,
por sua vez, são xamãs permanentes: eles têm potência xamânica inefável
(yalawo) e se comunicam com os apapaatai. Os últimos são os que vêem e
ouvem apapaatai, eles realizam uma etapa da cura, preparam o terreno para a
emergência dos kawoká-mona. Estes prosseguem com a cura, cuja pujança de
sentido é ritual. Trata-se de um tipo de cura que implica em especializar-se nas
performances que identificam cada apapaatai singularmente.
Vejamos agora uma outra possibilidade de desenvolvimento dessa questão a
partir da contribuição de Rodgers sobre os Ikpeng:

Tal intoxicação — tipicamente alcançada na Amazônia através de


substâncias alucinógenas/psicotrópicas, de bebidas fermentadas e
também do desequilíbrio somático provocado por dança/música
intensas — pode ser vista como uma autoviolência positivada. Essa
composição de fatores compromete fatalmente, penso eu, a
proposição das teorias mais fenomenológicas da etnologia
amazônica de que os rituais alteram o outro, mas não o eu, baseada
em sua tendência a recalcar a violência como se fora o mal puro
(Overing e Passes 2000: 7). Essa conservação do humano e da
auto-identidade faria pouco sentido para os Ikpeng: sua condição de
vida depende da sobrevivência — e não da evitação de —
encontros potencialmente danosos ou letais com outros corpos,
pessoas e substâncias (2002: 98).

A análise de Rodgers apresenta ecos profundos na condição ontológica do


xamanismo wauja, que é, precisamente, estar no limiar da “morte”, uma “morte”
que pode se radicalizar em morte, seja do xamã ou do doente. A outra condição
do xamanismo wauja é uma via dupla de transformações: parentes tornam-se
148

apapaatai (kawoká-mona) e apapaatai comem comidas cozidas e se tornam


“parentes” (“familiarizados”, pelo menos), em um movimento simultâneo que
dissolve as auto-identidades. A conservação do humano — i.e. a reversão da
transformação do doente em apapaatai—é atingida por uma anticonservação do
humano — i.e. parentes viram kawoká-mona para que o doente receba de volta a
sua alma, o seu princípio de subjetividade humana. A condição do xamanismo é
a da dissolução/inversão das auto-identidades. Por fim, o yakapá, mestre
superior da recuperação das almas, sujeito “misturado”, de corpo repleto de
substâncias extra-humanas, está ali para orientar essa inversão e a devida
alocação das subjetividades Animais e humanas. O yakapá está ali para apontar
a arena pantanosa e obscura das identidades. Ele é um pouco não-humano para
que os outros Wauja não se tornem Animais.
Se o xamanismo tem algo de vil ou feio para os Ikpeng (Rodgers, 2002) e
para os Parakanã (Fausto, 2001), por exemplo, para os wauja é exatamente o
inverso. A maioria dos Wauja é um pouquinho “xamã”, ou melhor, muitos deles
podem, em algum momento de suas existências, ser chamados para ser kawoká-
mona de um “morto”, e para isso devem, ao longo da vida, obter conhecimentos
rituais, e igualmente cultivar o gosto pelas festas, para um dia ser capaz de
realizá-las em favor da cura de seus parentes, próximos ou distantes. Os
kawoká-mona efetivam uma capacidade terapêutica que lhes é conferida ao
aceitarem levar apapaatai para o doente. Enfim, a cura como ritual é um esforço
de criar um campo intersubjetivo humano/não-humano num nível plenamente
corporal e ao mesmo tempo de superar a condição puramente espiritual
(anímica) da relação com os apapaatai. Os yakapá e os kawoká-mona estão,
conjuntamente, a (re)fabricar o corpo do doente, a torná-lo, mais uma vez,
parente, humano, pelo menos.
149

5
O FAZIMENTO DOS APAPAATAI EM
GRANDES RITUAIS DE MÁSCARAS

Este capítulo descreve e analisa como os agentes patogênicos (apapaatai)


se tornam personagens em grandes rituais de máscaras. Em consonância com
os processos de criação e de atribuição de personitude aos artefatos wauja,
desenvolveremos alguns dos argumentos brevemente apresentados nos
capítulos 2 e 4 a respeito das propriedades transformativas dos apapaatai.
Nos três últimos capítulos, aproximei as interpretações dos dados à teoria
da pessoa distribuída conforme elaborada por Gell (1998). Façamos aqui uma
breve recapitulação.
Num primeiro momento, afirmei que a multiplicação voluntária das almas
dos yerupoho e o subsequente uso de “roupas” implicavam a ampla distribuição
desses seres por todos os espaços do cosmo10. Tal distribuição expandia
“naturalmente” as potencialidades patogênicas dos yerupoho/apapaatai (contidas
em seu corpo/“roupa”). Posteriormente, descrevi o wTtsixuki como o estado que
impulsiona relações, de um ponto de vista patológico, entre os humanos e os
apapaatai. O wTtsixuki é a condição para o rapto da alma humana e este a
condição para a sua distribuição entre diferentes apapaatai. O xamanismo é a
arte da recomposição dos fragmentos dispersos da alma, em cujo processo é
conferida especial ênfase à identificação de certos parentes do doente como
kawoká-mona, que em muitos casos poderão vir a se apresentar ritualmente
como apapaatai. Neste caso, o xamanismo é a dobra conceituai que transfere a
distribuição da alma do doente, que é homóloga à distribuição dos apapaatai,
para o domínio dos seus parentes consanguíneos e/ou afins. Esta distribuição,
contudo, não se limita ao nível da pessoa dos kawoká-mona. A rigor, ela tende,
quando se trata dos adoecimentos graves, a passar para níveis artefatuais (i.e.
das personagens rituais) e alimentares (dos alimentos produzidos por esses
mesmos personagens a fim de manter o ritual e, por conseguinte, a
“familiarização” dos apapaatai).
150

Enfim, partimos da “roupa”, passamos pelo parentesco/sociabilidade e


retornamos a ela; agora, porém, como máscara ritual. A distribuição dos
apapaatai não se esgota com as máscaras, pois a linha distributiva atinge a
produção de outros artefatos de valores tão complexos quanto as máscaras,
como panelas, canoas, casas, colares de caramujo, adornos plumários etc. É a
capacidade que os Wauja conferem a todas essas coisas de
reterem/reproduzirem a persona dos apapaatai que marca tal linha de uma ponta
a outra e o que une conceitualmente as “roupas invisíveis” de apapaatai, suas
imagens oníricas reproduzidas em desenhos pelos yakapá, as flechinhas de
apapaatai, os kawoká-mona, os artefatos rituais e os alimentos. Contudo, essa
retenção não é uniforme, ela é transformativa em seu próprio processo, o qual
gera diferentes relações em cada etapa. A etapa que nos interessa é a que incide
sobre a fabricação ritual das máscaras.

5.1
Motivações e antecedentes

Os apapaatai podem assumir sete formas rituais básicas: (1) máscaras, (2)
aerofones11, (3) Yamurikumã12, (4) Kukuho13, (5) Matapu/Mapulawá14, (6) Huluki15

10 Vide Barcelos Neto (2002) para uma pormenorização da geografia cósmica dos apapaatai.
11 A watana, flauta usada no ritual funerário Kaumai (Kwarip), é o único aerofone que não está
ligado, pelo menos de modo direto e inequívoco, aos apapaatai.
Ritual realizado unicamente por mulheres que “encenam” o mito da transformação dos antigos
humanos em apapaatai. O ritual focaliza as relações de gênero a partir da antiga decepção das
mulheres míticas (as Yamurikumã) por terem sido esquecidas por seus maridos, em decorrência
de uma prolongada pescaria coletiva. Nesse ritual as mulheres xinguanas usam objetos
característicos do gênero masculino, como flechas e cocares, e lutam entre elas como lutam os
homens entre si.
13 Ritual em que são feitos as pás de beiju (kutejo) e os desenterradores de mandioca (tunuaT).
14 Referente ao ciclo das Festas do Pequi, o qual não presenciei. Nesse ritual são feitos os
zunidores (Coelho, 1991-92a) e ícones dos órgãos genitais masculinos e femininos.
15 Embora parcialmente descrito (Basso, 1973), o Huluki é um dos rituais menos conhecidos do
Alto Xingu. Entre os wauja, os “donos” do ritual Huluki são sempre pessoas que foram adoecidas
por Huluki (Andorinha). A sua forma ritual não é personificada por nenhum objeto específico (e.g.
máscara, flauta, zunidor etc.). São as pessoas engajadas nas trocas rituais que são as
Andorinhas. E são os próprios objetos trocados que adquirem o sentido de “objetos rituais”. O
agrupamento das pessoas para as trocas corresponde a um hulukialu, ou seja, à reunião das
A(a)ndorinhas em bandos no céu. Nos fins de tarde, as A(a)ndorinhas se reúnem para fazer
Huluki, ritual há muito inventado por elas.
151

e (7) Pulu-Pulu (trocano)16. A forma ritual que os apapaatai irão assumir depende,
direta e exclusivamente, da forma como eles se apresentaram aos yakapá
durante os transes que envolveram a cura de um determinado doente. Como foi
dito acima, o doente apenas vê os apapaatai despidos, ou seja, enquanto Tyãu
(“gente”, yerupoho), já os yakapá, por sua vez, podem ver os yerupoho vestidos
ou portando objetos rituais, como flautas, clarinetes, pás de beiju,
desenterradores de mandioca, zunidores etc. É no curso da divinação xamânica
que estas formas são identificadas e informadas.

— São as Tankwara Yanumaka nãu (i.e. Onças clarinetistas)


que estão fazendo mal para o teu marido. Atujuwá que está com ele
é Onça também.

Esta breve fala do yakapá Ulepe, dirigida a esposa de Atamai quando este
estava “morto” (kamãi), é a articulação conceituai de dois momentos
fundamentais da sociocosmologia wauja. De um lado, ela alivia a ansiedade da
família do doente na medida em que identifica nominalmente os agentes da
doença, de outro, permite que a terapêutica seja avançada, pois ela
simultaneamente define a forma ritual que os apapaatai deverão assumir,
colocando-os então a protagonizar o início de uma sequência propriamente
estética da terapia. No caso de Atamai, as formas rituais de Yanumaka (Onça)
aparecem como Tankwara, um quinteto de clarinetes, e como Atujuwá, um tipo
de máscara circular que alcança até dois metros de diâmetro. Atujuwá, aliás, é a
maior e mais elaborada dentre as máscaras fabricadas no Alto Xingu. Sua
descrição será contemplada nas seções seguintes.
A forma ritual “máscara” é, de longe, a mais frequente e a que gera um
maior número de pequenos rituais. Em seguida, vêm os clarinetes, os coros
femininos de Yamurikumã e as flautas. As formas rituais dos apapaatai são
hierarquicamente organizadas em torno da posição central que os aerofones e o
trocano ocupam nesse sistema .
Os rituais de apapaatai são denominados de acordo com o nome do
apapaatai responsável pela doença. Portanto, se a pessoa foi adoecida por

16 O ritual do Pulu-Pulu é muito raro. O último realizado entre os Wauja data de 1947 (Lima,
1950). No Alto Xingu, o mais recente ritual do trocano teve lugar na aldeia kamayurá de Ipavu, na
estação seca de 1998. Contudo, desconheço se entre esses tupi-guarani a performance ritual do
trocano tenha, como entre os Wauja, uma ligação direta com estados graves de adoecimento.
17 Este assunto será analisado no próximo capítulo.
152

Apasa, o ritual chamar-se-á Apasa. O regime da nomeação mútua da doença e


do ritual segue invariavelmente o diagnóstico xamânico. A inexistência de nomes
específicos para as doenças parece seguir um princípio etiológico: uma doença é
ter/estar com apapaatai. Isso funciona em duplo sentido: é tanto o corpo que
contém flechinhas quanto a alma que passeia. A doença como estado corporal é
uma metonímia da contenção (de outros “corpos”, as miniaturas dos apapaatai
introduzidas como flechinhas); e como estado da alma é uma expansão da
pessoa. Como as doenças não são auto-evidentes, nem são entendidas como
uma disfunção orgânica ou o resultado de uma contaminação virai ou
bacteriológica, faz sentido que os “nomes” das doenças sejam os nomes dos
apapaatai, e, por conseguinte, os dos rituais. Enfim, o pensamento wauja sobre
as doenças não se orienta por uma classificação nominal das mesmas, mas pela
dinâmica das suas causalidades.
Após as revelações xamânicas, o kamãT torna-se “dono” (wekeho) dos
apapaata/que estão a lhe adoecer. O status de “dono” implica no dever de cuidar
desses apapaatai, ou melhor, fazer com que os mesmos sejam alimentados. Se
ao longo da sua vida um indivíduo for acometido por muitas doenças graves, ele
certamente será “dono” de muitos apapaatai.
Quanto à ritualização dos seus apapaatai, o doente (ou ex-doente, caso
seu estado de saúde tenha se normalizado) terá quatro possibilidades: 1. jamais
festejá-los, o que implica a possibilidade dos mesmos apapaatai lhe adoecerem
novamente; 2. festejá-los, em pequenos rituais, logo após os processos
terapêuticos (ou seja, ao fim dos rituais de trazer apapaatai e do Pukay); 3.
festejá-los no âmbito de uma festa oferecida por uma outra pessoa; 4. “guardar”
os apapaatai para que todos sejam festejados, de uma só vez, numa grande
festa de máscaras (Apapaatai Tyãu), que poderá ter então entre 30 e 50
personagens rituais.
Observei casos nas quatro modalidades. A primeira é bastante comum e
deve-se, em geral, a falta de recursos ou ao esgotamento dos recursos
disponíveis em outras terapias, como o Pukay. Nos meses de fevereiro e março e
na primeira semana de abril de 2000, acompanhei o caso de uma criança de 8
meses de idade que sofreu sucessivos ataques de diferentes apapaatai. Seu avô,
que assumiu o papel de akatupaitsapai da criança, contratou, nos momentos
mais críticos da doença, três rituais Pukay, os quais consumiram muitos quilos de
153

miçanga e algumas panelas. A criança recebeu após cada sessão de xamanismo


visionário-divinatório a visita dos apapaatai, mas nenhum esforço foi feito no
sentido de produzi-los ritualmente, que, a rigor, é considerado o procedimento
que efetiva a cura. Se a criança não tivesse falecido duas semanas após o último
Pukay, talvez o seu itinerário terapêutico contemplasse o ritual das máscaras dos
apapaatai que a estavam adoecendo. Porém, o dado mais seguro é que a família
não dispunha de recursos para realizar o ritual, era fins de março e o estoque de
mandioca da estação chuvosa (dezembro a março) já tinha sido todo consumido.
Além disso, havia uma “estranha” falta de peixe em Piyulaga, cuja causa era
atribuída a um íyãu opotalá (tipo de feitiço) instalado dentro da lagoa, o qual
ainda dificultava a recuperação da criança, como mencionei no capítulo 3. Um
ano mais tarde, o avô da criança, confessou que se ele dispusesse de mais
recursos teria continuado a tratá-la com Pukay ao invés de tê-la levado para o
Posto Leonardo, onde os médicos “nada conseguiram fazer” para curar sua neta.
A segunda modalidade é mais comum que a primeira. Realizar o ritual é a
etapa mais avançada e complexa da terapia ritual. Na maioria dos casos ela é
imprescindível, impondo-se pelo caráter urgente da cura. Em maio de 1998,
assisti ao ritual das máscaras Ewejo (Ariranha) e Sapukuyawá Kupato Mohãjá
(“Peixe Vermelho”, Carpa). Trata-se de uma “festinha” de emergência, como bem
a descreveu Atamai. Seu objetivo era um só: permitir que Mayaya, irmão sénior
de Atamai e chefe da aldeia (putakanaku wekeho), então afetado por esses
apapaatai, recobrasse sua saúde18.
A terceira modalidade quase sempre está embutida na quarta. Trata-se de
ex-doentes que não conseguiram ou que preferiram não patrocinar a produção
ritual dos seus apapaatai, seja porque tiveram rápido sucesso na recuperação da
sua saúde ou porque não houve reincidência de ataque dos apapaatai nos anos
seguintes. Em geral, são pessoas que pouco adoecem, sendo, portanto, “donas”
de dois ou três apapaatai. Esses apapaatai ficam “guardados”, podendo ser
festejados juntamente com os de outras pessoas, a fim de se fazer a “festa
grande” (Apapaatai lyãu).
O que particulariza o Apapaatai lyãu no conjunto dos rituais xinguanos é
que ele associa cênica, musicológica e cosmologicamente máscaras e flautas. É
claro que há rituais de flautas sem máscaras e vice-versa. A ambas ainda está

18 Vide Mello (1999) para uma descrição da música desse ritual.


154

associado o trocano19, formando um conjunto mais amplo de personagens rituais,


cuja complexidade é desconhecida. Até o momento de ser queimado, o trocano
{Pulu-Pulu) ficava por vários anos guardado dentro da kuwakuho, sendo
igualmente vetado à visão das mulheres. Dentro do Pulu-Pulu eram guardadas as
máscaras de madeira {Yakui) e as flautas Kawoká, replicando uma idéia de
“Container” ritual, cuja expressão máxima é a própria kuwakuho.
Este é o maior e o principal ritual “intratribal” wauja20, no qual são reunidas
máscaras e flautas ao modo de uma encenação de um possível convívio dos
humanos com os apapaatai. O Apapaatai lyãu21 ocorre com uma frequência
irregular e segundo motivações terapêuticas. É sobre essa modalidade de
ritualização dos apapaatai que este capítulo é voltado. Por se tratar de um ritual
muito grande, que normalmente envolve toda a aldeia, as vias de sua realização
são igualmente complexas.
Introduzirei o assunto a partir de um Apapaatai lyãu ocorrido em agosto de
1997, portanto, sete meses antes da minha primeira viagem a Piyulaga.
No início da década de 1990, Atamai foi acometido por uma gravíssima
infecção nos olhos. Aos yakapá Itsautaku e Ulepe foi dada a responsabilidade de
identificar os agentes patogênicos, que foram revelados como sendo: Kawoká,
Kawoká Otãi (filho de Kawoká), Yamurikumã e Makaojeneju (tipos de “Mulheres
monstruosas”), Tankwara Yanumaka (Onça clarinetista), Atujuwá Yanumaka
(Onça vestida com “roupa” redemoinho), Ewejo (Ariranha), Yuma (Pirarara),
Tukujê (uma espécie de Pombo), Kukuho (uma espécie de Larva), Kagaapa (uma
espécie de Peixe), Yukuku (uma espécie de Árvore), Nukuta Pitsu Run Run Run
(Arqueiro), Kapulu (Macaco-Preto), uma espécie de Peixe vestido de
Kuwahãhalu, e sete espécies de yerupoho vestidos de Sapukuyawá (um tipo
genérico de máscara).
Após as revelações xamânicas, Atamai tornou-se “dono” dos apapaatai

19 Krause afirma “que com a crinolina de dança (de Atujuwá, Yakui e Kuwahãhalu) podem ser
executados ‘movimentos giratórios e ondulantes’ e que durante a dança toca-se tambor numa
árvore ôca deitada diante da cabana de festas” (Krause, 1960: 102). Essa dança das máscaras
com o “tambor” foi demonstrada para Karl von den Steinen, em 1887, e para Herrmann Meyer, em
1898.
20 Mas que outrora teria tido uma fase inter-aldeã, segundo as anotações dos etnólogos alemães
do século XIX (Krause, 1960:103).
21 A performance do Apapaatai lyãu tem um “palco” muito bem definido: o enekato (a grande
praça da aldeia), cuja área, em Piyulaga, é de 3,84 acres (15.540 m2). Uma pequena parte dessa
área é constituída pelo enekutaku, pátio central situado em frente à porta frontal da kuwakuho. O
enekutaku é correntemente traduzido pelos Wauja como “o meio”. Na verdade, grande parte da
atividade ritual acontece no enekutaku, é também aí que os homens se reúnem diariamente, logo
155

mencionados. Kukuho foi festejado enquanto Atamai estava “morto” num hospital
de Brasília e Ewejo logo que ele retornou a Piyulaga. Um par de anos mais tarde,
foi a vez de Tankwara e Kagaapa. Os outros dezenove apapaatai ficaram
“guardados”, a espera da ocasião mais oportuna para serem festejados. Para
Atamai, essa oportunidade chegou inesperadamente por uma via bastante
incomum: uma solicitação da Artíndia22 de Brasília para que os Wauja fizessem
uma “demonstração” do seu praticamente desconhecido grande ritual de
máscaras. Reproduzo a seguir um trecho de uma narrativa de Atamai, datada do
ano 2000, que enquadra esse evento na perspectiva temporal do seu
adoecimento.

Lá, em Brasília, eu fiquei mais doente. Eu pensei que ia


morrer. Eu não tinha apetite, não comia nada mesmo, por isso fiquei
muito fraco. Eu achava que apapaatai estavam comigo. Depois
descobri que Tankwara e Atujuwá que estavam comigo eram de
Yanumaka (Onças). Os dois estavam comigo, por isso eu comia as
comidas das Onças nos meus sonhos, como porco, veado, anta.
Eram as Onças que estavam dando esses animais para eu comer,
por isso eu não tinha fome.
Na aldeia, chegou a notícia de que eu tinha piorado. Foi aí
que os meus kawoká-mona perguntaram à minha filha se eles
podiam fazer a festa de Kukuho para mim, mesmo eu estando
distante. Minha filha disse que sim, e aceitou fornecer todas as
comidas da festa enquanto eu estava em Brasília. Assim, fizeram a
festa de Kukuho para mim.
Quando terminou a festa aqui em Piyulaga, logo na mesma
noite eu sonhei com algumas “pessoas” {apapaatai) falando comigo:
— “Nós vamos embora, pois já terminou tudo o que nós queríamos”.
Então, quando eu acordei eu estava me sentindo melhor. Eu
já não sentia as mesmas dores fortes de antes. Só sentia algumas
dores na cabeça.
Quando eu cheguei de volta à aldeia, o pessoal falou para
mim: — “Tio, nós fizemos apapaatai {Kukuho) para você”.
Aí eu pensei: ah! é por isso que eu estou melhor agora. Eu
fiquei emocionado com essa atitude deles, com a sua preocupação
comigo. Eles fizeram a coisa certa para eu melhorar. Então eu fiquei
aqui na aldeia. Eu já estava um pouco melhor, mas não podia
trabalhar como antes, nem ficar muito tempo exposto ao sol.
. Logo quando eu cheguei aqui, fizeram Ewejo para mim.
Chamaram-me e disseram que iam fazer apapaatai para eu
melhorar. Então fizeram. Quando terminou a festa de Ewejo eu

após o por do sol, para conversar sobre assuntos diversos.


22 A Artíndia é um programa oficial de revenda de “artesanato indígena brasileiro” ligado à
Fundação Nacional do índio (Funai), um órgão do Ministério da Justiça, cuja sede encontra-se em
Brasília. O programa, que possui lojas em várias capitais brasileiras, é o principal revendedor de
“artesanato indígena” no país.
156

nunca mais pesquei no meu sonho e nem comi peixe cru.


Depois de algum tempo fizeram Tankwara. São eles que
estão me ajudando agora. Tankwara não permite que outros
apapaatai me façam mal. Agora eu estou bem. Só o meu olho que
às vezes fica um pouco ruim.
Mas os meus sonhos com as “pessoas” {apapaatai) não
tinham parado totalmente, eu ainda sonhava muito com as
“pessoas” que me adoeceram. Até quando a Artíndia de Brasília
pediu para a gente mostrar a festa de apapaatai para eles.
Então eu contei (consultou) para os meus irmãos e sobrinhos
(que neste caso são seus kawoká-mona). Eles aceitaram fazer a
festa. O pessoal da Artíndia veio, assistiu, fez fotos da dança, levou
as máscaras para a loja e nunca mais voltou.
Fui eu que patrocinei essa festa de máscaras para a Artíndia.
Perguntei a todos da aldeia se eles tinham apapaatai, e se
gostariam de fazer a sua festa. Os que já tinham apapaatai optaram
em festejá-lo em outra ocasião. Assim, eu mesmo ofereci os meus
apapaatai para que fosse feita a grande festa.
Depois que terminou aquela grande festa eu melhorei mesmo.
Eu me senti tão forte. Eu realmente me senti bem.

Os eventos abrangidos por essa narrativa aconteceram num intervalo de


aproximadamente 7 anos, sendo o primeiro evento a ida de Atamai para Brasília
e o último, a realização do grande ritual das máscaras {Apapaatai íyãu) para a
Artíndia, ocorrido em agosto de 1997. A contrapartida solicitada pelos Wauja foi o
auxílio para a abertura de uma pista de aterragem para pequenos aviões. O
auxílio consistia concretamente no envio de máquinas que permitissem tal
trabalho. Ainda teremos espaço para explorar as consequências sociopolíticas da
opção de Atamai de realizar o ritual dessa maneira. Por ora, interessa-nos o fato
de Atamai ter ligado a sua melhora, de modo direto e inequívoco, à realização
desse ritual, e a idéia de que se pode encomendar uma festa “original”23 de
apapaatai.
Atamai não foi o primeiro a vincular a realização de um grande ritual de
máscaras a uma transação com brancos {kajaopa). Em 1993, o yakapá Ulepe
igualmente disponibilizou todo o seu “estoque” de apapaatai para um ritual
“encomendado” por uma renomada loja de artesanato indígena de São Paulo. Ao
fim do ritual, a dona da loja levou todas as máscaras, pagando em dinheiro a sua
aquisição.

23 “Original” é uma categoria “nativizada” pelos Wauja e diz respeito basicamente aos objetos e
performances produzidas em contextos rituais ou solenes, cujo rigor estético está diretamente
ligado a vegonha/respeito pelas pessoas que receberão esses objetos como pagamento ritual e
pelas pessoas que assistirão às performances.
157

A raiz desse tipo de promoção do ritual, que o liga diretamente a


instituições como museus e lojas, não é assim tão recente, ela pode ser
remontada há pelo menos duas décadas. E se pensarmos em termos de um
comércio mais amplo da cultura material wauja, devemos levar em consideração
a grande coleção feita por Harald Schultz em 1963, que reuniu 664 peças para o
Museu Paulista da Universidade de São Paulo.
Em 1983, a antropóloga Emilienne Ireland, então em trabalho de campo
financiado pelo Museu Nacional de História Natural da Fundação Smithsonian,
pretendia fazer uma coleção de máscaras. Contudo, a sua aquisição mostrou-se
mais complicada do que parecia ser à primeira vista. Foi absolutamente
impossível para Ireland comprar as máscaras que os Wauja guardavam e que
futuramente seriam ritualmente queimadas. Também não era possível
encomendá-las a um artesão, visto que os Wauja consideravam um desrespeito
fazer apapaatai “simplesmente para vender”.

Because the sponsor of a given ceremony is supposed to display in


his house paraphernalia associated with the ceremony he has
sponsored, it would not have been possible for me to collect a mask
that had been used on a ceremony commissioned by a Waura
without going against local custom and public opinion. Of course, it
is always possible to find individual Waura who are willing to sell to
outsiders items that the Waura say it is wrong to sell, but this would
have create bad feelings. The only reasonable solution was to
sponsor a ceremony myself, which would automatically make me the
rightful owner of the ceremonial paraphernalia. I had planned to do
this as a purely economic transaction, and applied to the
Smithsonian for a grant to sponsor the atujuá ceremony in this
fashion (Ireland, 1985: 16-17).

Portanto, a única alternativa de Ireland era o patrocínio de um ritual de


máscaras. Mas esse seu projeto sofreu uma inesperada reviravolta.
No período em que os Wauja aguardavam chegar de São Paulo parte das
matérias-primas encomendadas para fazer as máscaras Atujuwá para o Museu
Nacional de História Natural da Fundação Smithsonian, Ireland ficou muito
doente, tendo sido levada a recorrer aos cuidados de um xamã local (Ireland,
1985: 18). Segundo o diagnóstico xamânico, a sua doença fora causada pelos
apapaatai Sapukuyawá e Kuwahãhalu, com os quais ela então passava a ter a
relação de “dona” (weheho, em wauja, melhor traduzido no contexto do ritual por
“aquele que cuida de alguma coisa ou de alguém”). Assim, na condição de “dona”
158

desses apapaatai, Ireland pode tranquilamente promover o ritual dessas


máscaras e viabilizar a sua aquisição para o Museu Nacional de História Natural
da Fundação Smithsonian. Ao adoecer, Ireland adquiriu imediatamente um
“direito ritual” sobre os apapaatai24. Como veremos, este não foi exatamente o
meu caso.
Eu soube da produção das máscaras para a Artíndia antes mesmo da
minha primeira viagem para Piyulaga, em março de 1998. Porém, só vim saber
dos detalhes da negociação em março de 2000, quando indaguei Atamai sobre o
assunto. Desde 1998, sonhava em poder ver esse mesmo ritual. No entanto,
queria que ele acontecesse “espontaneamente”, sem qualquer transação
comercial. Por outro lado, como não havia ninguém gravemente doente naquela
altura, não existia razão imediata para se fazer um enorme ritual de máscaras.
Portanto, a única possibilidade de etnografar o ritual Apapaatai Tyãu dependia dos
Wauja disponibilizarem os seus apapaatai para que eles fossem confeccionados
como máscaras rituais.
A “conversão” dos apapaatai de “bens metafísicos” a artefatos rituais é
antes de tudo uma decisão individual, ou melhor, daquele indivíduo que possui
apapaatai ainda não festejados. Se sua decisão for positiva, ele poderá então
solicitar, com a mediação do chefe, neste caso o “dono da aldeia” (putakanaku
wekeho), a ajuda do resto do grupo. Essas negociações internas são muito
delicadas e dependem de um forte apoio dos amunaw (“nobresVchefes).
Portanto, apenas possuir muitos apapaatai não é um requisito suficiente para
patrocinar um Apapaatai Tyãu.
Simultaneamente à aquisição das máscaras para o Museu Nacional de

24 Apenas um lembrete sobre as empreitadas colecionistas em tomo da aquisição das grandes


máscaras Atujuwá. Em 1887, Karl von den Steinen desejou levar um exemplar para o Museu de
Etnologia de Berlim, porém as precárias condições logísticas o impediram. Finalmente, em 1898,
Herrmann Meyer conseguiu, com muitas penas, levar uma Atujuwá para o mesmo Museu. Este
único exemplar sobreviveu até 1943, quando foi destruído durante o bombardeio da cidade.
Tardou quase um século para que uma outra Atujuwá fosse adquirida para um museu. Em 1983,
Emmiliene Ireland fracassou em seu projeto de aquisição de um casal de Atujuwá para o Museu
Nacional de História Natural da Fundação Smithsonian, em Washington. Em 1994, Michael
Heckenberger logrou adquirir, para o Museu de História Natural da Universidade de Pittsburg, um
par dessas máscaras, feito entre os Kuikuro. O casal de Atujuwá Yanumaka feito ritualmente
pelos Wauja em agosto 1997, para curar Atamai, foi vendido pela Artíndia de Brasília para um
antiquário (Baú-Baú) da cidade do Salvador. Hoje, essas máscaras certamente se encontram em
alguma coleção particular, cuja localização não deve ser muito complicada. E por fim, em julho-
agosto de 2000, adquiri para o Museu Nacional de Etnologia de Portugal, juntamente com dois
casais de Atujuwá, também feitos pelos Wauja, um conjunto de 32 máscaras rituais. Até a
presente data, nenhum museu brasileiro possui as grandes Atujuwá. Registros visuais sobre a
159

Etnologia de Portugal, interessava-me a performance ritual “original” das


máscaras. Inicialmente supus que se o ritual fosse encomendado, o processo
“original” que informa a sua execução seria elidido pelo objetivo comercial que o
motivava, o que faria a minha encomenda resultar em uma mera demonstração
de dança e não em um ritual. Porém, não tardou algumas semanas para eu
perceber que a minha suposição inicial estava completamente errada.
Era a última semana de junho de 2000 quando consultei Atamai sobre a
possibilidade de se realizar o Apapaatai lyãu. “Acabou tudo naquela festa”. Esta
foi a resposta que Atamai me deu quando lhe expus minha intenção de comprar
máscaras rituais para a coleção. Com efeito, o que ele quis dizer é que não lhe
sobravam mais máscaras. “Vou perguntar se alguém ainda tem”, disse Atamai,
procurando não anular minhas esperanças. Atamai levou o caso ao “dono da
aldeia” e demais amunaw, que o discutiram ao longo de uma semana. Verificou-
se então que apenas o amunaw Itsautaku tinha apapaatai suficientes para
realizar o Apapaatai Tyãu. Ele imediatamente concordou em promover o
fazimento ritual dos seus apapaatai, porém, era preciso que os seus kawoká-
mona concordassem em levar a cabo essa produção. Diante da unânime
concordância dos kawoká-mona, a questão foi mais uma vez discutida pelos
“conselho dos amunaw". Assim, semanas mais tarde, a minha “encomenda” virou
ritual25.

versão wauja do seu ritual foram realizados apenas pela Artíndia e por mim. No meu caso,
somam-se ainda registros em áudio.
25 No capítulo 7, analisaremos outros aspectos da encomenda de rituais de máscaras em
comparação com os grandes rituais intertribais xinguanos, o Kaumai, o Pohoká (“furação de
orelha”) e o Yawarí, que, ao contrário do Apapaatai lyãu, funcionam sob outro regime de
contratação por não terem sua origem na estrutura xamânica de produção ritual.
160

Quadro 6
A aldeia Piyulaga

Nascente

Estrada para a
aldeia kamayurá

Poente
Estrada para a lagoa Piyulaga

80 100 m
_J

A casa com detalhe aparente é a residência de Atamai. O detalhe


representa as árvores com raízes suspensas sobre a cobertura da casa, um sinal
de que o seu dono é um amunaw.
A casa a direita da estrada para a lagoa é a de Itsautaku e a da esquerda,
a de Yatuná.
A área romboidal próxima ao meio da aldeia (putakanaku) é o enekutaku e
o pequeno círculo em seu interior é a kuwakuho (casa das flautas). O círculo de
casas (iypp) mais a grande praça (enekató) têm 243 m de diâmetro e 5.72 acres
(23.189 m2) de área.
161

5.2
Cuidar de apapaatai ou como acionar
UMA REDE DE PRODUÇÃO RITUAL

Itsautaku tinha 18 apapaatai que ele ainda não tinha festejado, os quais o
adoeceram nos últimos 25 anos. Dentre esse conjunto de apapaatai, dois casais
do apapaatai Atujuwá figuravam-se como os principais. Os kawoká-mona
Atujuwá de Itsautaku eram quatro homens de grande prestígio ritual: Mayaya, o
chefe putakanaku wekeho (literalmente “dono” da aldeia), Yatuná e Atakaho,
seus irmãos juniores e o tio deles, Kaomo, o principal flautista de Piyulaga.
Mayaya teve um papel decisivo em assegurar que os 18 apapaatai fossem
feitos/festejados. Para ele, toda a aldeia deveria se envolver para que a festa
fosse grandiosa. Segundo os adultos mais jovens, Mayaya entusiasma-se com as
grandes festas. A rigor, espera-se que ele contagie o pessoal com seu
entusiasmo, pois um verdadeiro chefe (amunaw-iyajo) é um homem que gosta de
festas. Ele não só deve cuidar para que o conhecimento sobre elas seja
transmitido, mas também manter alto o moral do seu grupo quanto à participação
em rituais, sejam estes intra ou intertribais.
“Meus apapaatai são de antigamente”, como disse o próprio Itsautaku, o
que implicava que seus kawoká-mona também “eram de antigamente”. E de fato,
o eram, visto que vários deles já tinham falecido. Ou seja, Itsautaku tinha os
apapaatai, mas não podia mais contar com as pessoas que originalmente os
tinham “levado” para ele nos momentos em que ele adoeceu. Porém, o
falecimento de um kawoká-mona não impede que o ritual do apapaatai que ele
“representava” seja realizado. O sistema ritual wauja tem eficientes dispositivos
para contornar situações como essa. Todo esforço é em nome do ritual, ou
melhor, de assegurar que suas capacidades produtivas sejam mantidas.
Para que os 18 apapaatai de Itsautaku fossem produzidos era necessário
envolver pelo menos 36 pessoas. Dentre estas, seis já eram kawoká-mona
antigos, os outros 30, portanto, precisavam ser “escolhidos”. Tal duplicação deve-
se ao fato de que os apapaatai agem, em sua maioria, em dupla. Ou seja, cada
apapaatai age enquanto casal (macho e fêmea) ou família (pai, mãe e filhos).
Quando um indivíduo sofre sucessivos ataques de apapaatai, como foi o caso de
162

Itsautaku, torna-se bastante alta a possibilidade dele ter uma mesma pessoa
assumindo o papel de kawoká-mona de mais de um apapaatai. Isso significa que
na realização de um ritual como Apapaatai lyãu tal pessoa teria uma inegável
sobrecarga de trabalho. Mais dramática, porém, pode ser a situação do “dono”
dos apapaatai, pois patrocinar a feitura de 36 máscaras apenas com a ajuda de
sua família é algo que exigiria um trabalho colossal, visto que o “dono” das
máscaras deverá fornecer as matérias-primas e ainda alimentar os kawoká-mona
fabricantes das máscaras durante todo o período de trabalho. A quantidade de
comida deve ser sempre suficiente para o kawoká-mona e os membros de sua
família nuclear, e isso faz imenso sentido, pois tal kawoká-mona está deixando
de pescar para si e para sua mulher e filhos a fim de se dedicar ao ritual. De todo
modo, ninguém aceita um trabalho colossal como esse, mesmo porque é
praticamente impossível a uma família sustentar um número tão elevado de
pessoas durante os nove ou dez dias que dura o ritual. Vejamos como os Wauja
se organizam de modo a não gerar sobrecargas de trabalho para o “dono” dos
apapaatai e nem para os kawoká-mona.
A organização do trabalho ritual é sempre gerida pelo “conselho dos
amunav\/’, que é composto pelo chefe putakanaku wekeho, os “donos” de rituais
permanentes de apapaatai e os grandes especialistas rituais do sexo masculino.
Entre os Wauja, este grupo é composto por um número que varia de cinco a dez
homens, conforme o prestígio de cada um deles em intervir em questões rituais.
A dinâmica de interação dos nobres será analisada nos próximos dois capítulos.
Para o Apapaatai lyãu, foi decidido por esse “conselho” que cada unidade
residencial assumiria o patrocínio de pelo menos um casal de máscaras.
A transferência do cuidado sobre os apapaatai foi feita ritualmente pelo
u
'dono” original, Itsautaku. O ritual consiste em uma visita vespertina de Itsautaku
a todas as casas, nas quais ele entra solenemente e, com a voz impostada,
pergunta “quem vai cuidar de meu kawoká?”. A pessoa interessada em cuidar
pergunta: “qual kawoká?”. Itsautaku diz o nome do apapaatai, agradece à pessoa
e dirige-se à casa seguinte até perfazer, em sentido anti-horário, o círculo de
casas da aldeia. Essa visitação que Itsautaku fez às casas dá a base para a
estruturação espacial do ritual. Para atingirmos um sentido etnográfico mais
preciso, podemos dizer que o ritual Apapaatai lyãu começou nesse dia, com
“dono” oferecendo os seus apapaatai, que são, para os que os recebem, um
163

signo linguístico, um nome. O ritual começa com o verbo, discreto e interno às


casas, mas ao mesmo tempo ligando uma a outra por compromissos mútuos de
patrocínio ritual.

Quadro 7

Nome dos apapaatai Nome em português Apapaatai wekeho

1. Atujuwá Ajou eneja__________ Jatobá macho_______________ 1. Itsautaku


2. Atujuwá Ajou toneju_________ Jatobá fêmea________________ Itsautaku
3. Atujuwá Anapi eneja_________ Arco-Íris macho_____________ Itsautaku
4. Atujuwá Anapi toneju________ Arco-Íris fêmea_____________ Itsautaku
5. Sapukuyawá Yanumaka eneja Onça macho________________ Itsautaku
6. Sapukuyawá Yanumaka toneju Onça fêmea________________ Itsautaku
7. Sapukuyawá Kuwa eneja_______ Peixe Curimatá macho_______ 2. Kaomo
8. Sapukuyawá Kuwa toneju______ Peixe Curimatá fêmea________ Kaomo
9. Sapukuyawá Wajai eneja______ Peixe Tambaqui macho_______ 3. Aluwakumã
10. Sapukuyawá Wajai toneju_____ Peixe Tambaqui fêmea_______ Aluwakumã
11. Kuwahãhalu Yakuwa-kumã eneja Peixe Piranha-vermelha macho, 4. Kuratu
“Piranhão”_________________
12. Kuwahãhalu Yakuwa-kumã toneju Peixe Piranha-vermelha Kuratu
fêmea, “Piranhão”___________
13. Yutsipiku eneja Não é espécie Animal é 5. Aruta
“bicho mesmo”_____________
14. Yutsipiku toneju Não é espécie Animal é Aruta
“bicho mesmo”_____________
15. SapukuyawáMuluta eneja Peixe Cascudo macho________ 6. Mayaya
16. Sapukuyawá Muluta toneju Peixe Cascudo fêmea________ Mayaya
17. Sapukuyawá Anapi eneja Arco-Íris macho_____________ 7. Yapatsiama
18. Sapukuyawá Anapi toneju Arco-Íris fêmea_____________ Yapatsiama
19. Sapukuyawá Alapipirá eneja “Peixinho de rabo 8. Uwitsapa
vermelho” macho___________
20. Sapukuyawá Alapipirá toneju “Peixinho de rabo Uwitsapa
vermelho” fêmea____________
21. Yuma eneja______________ Peixe Pirarara macho_________ 9. Sapalaku
22. Yuma toneju_____________ Peixe Pirarara fêmea_________ Sapalaku
23. Watana-mona eneja________ “Flauta” macho_____________ 10. Atamai
24. Watana-mona toneju_______ “Flauta” fêmea______________ Atamai
25. SapukuyawáYutapá eneja Peixe Pacu macho___________ 11. Kamo
26. Sapukuyawá Yutapá toneju Peixe Pacu fêmea____________ Kamo
27. Sapukuyawá Arikamu eneja Jacaré macho_______________ 12. Atakaho
28. Sapukuyawá Arikamu toneju Jacaré fêmea________________ Atakaho
29. Sapukuyawá Kapunetejá eneja Peixe Traíra macho__________ 13. Peisatapa
30. Sapukuyawá Kapunetejá toneju Peixe Traíra fêmea___________ Peisatapa
31. Sapukuyawá Puwixa eneja Matrinchã macho____________ 14. Malalo
32. Sapukuyawá Puwixa toneju Matrinchã fêmea____________ Malalo
33. Sapukuyawá Apaja eneja Peixe Acará-Bandeira macho 16. Marikawa
34. Sapukuyawá Apaja toneju Peixe Acará-Bandeira fêmea Marikawa
35. Atujuwátãi Tukujê eneja Pombo 16. Yatuná
36. Atujuwátãi Pukujè toneju Pomba Yatuná
164

Quase no meio deste círculo está a kuwakuho (vide acima o esquema da


aldeia), o centro cerimonial de Piyulaga, local da mais alta “domesticação” dos
apapaatai, onde os sentimentos dos yerupoho são homólogos aos dos humanos,
onde a troca de comida por proteção se efetiva. No Apapaatai Tyãu a kuwakuho é
o ponto de convergência de todas as casas de Piyulaga que participam do ritual.
Todavia, a convergência não é direta, sua mediação é feita pela casa do principal
“dono” do ritual em causa, Itsautaku, portanto. É a partir da sua casa que toda a
aldeia estabelece um elo com o centro cerimonial {kuwakuho).
Ao fim da visitação os 18 apapaatai de Itsautaku ficaram assim
distribuídos:
Os nomes dos apapaatai são muitos e aparentemente complicados, mas
não é aos seus nomes que vamos nos deter agora. Vejamos, por enquanto, os
seus wekeho.
Ao fim da visita de Itsautaku as 16 casas de Piyulaga, apenas duas delas
decidiram não patrocinar nenhuma máscara. Todavia ninguém ficou
sobrecarregado, exceto Itsautaku que assumiu seis máscaras (i.e. três
apapaatai), mas isto já era esperado, pois ele e seus quatro Atujuwá eram os
protagonistas do ritual.
Quando Itsautaku passou pela terceira casa oferecendo seus apapaatai,
dois de seus moradores, Aluwakumã e seu genro Kuratu, perguntaram
conjuntamente, quase em uníssono, “qual kawoká?” Isso implica que ambos
desejavam cuidar de apapaatai. Diante de tal manifestação de interesse,
Itsautaku entregou aos cuidados de cada um deles um casal de apapaatai. A
quarta casa declinou a oferta de Itsautaku, por motivos que ainda não cheguei a
entender. Na sexta casa, repetiu-se o duplo interesse verificado na terceira casa.
Assim, Mayaya e seu filho Yapatsiama, aceitaram cuidar de dois casais de
máscaras Sapukuyawá. As casas seguintes ficaram cada uma com um apapaatai
para cuidar, a exceção da 14a casa. Enfim, Itsautaku transferiu para 15 pessoas
os cuidados sobre os seus apapaatai, consolidando a possibilidade de realização
do Apapaatai íyãu.
Os cuidados/patrocínio, como dito acima, implicam em prover matéria-
prima e comida aos fabricantes das máscaras. Afora os dois casais de Atujuwá e
o casal de Sapukuyawá Yanumaka nãu, que já tinham seus kawoká-mona
previamente definidos, os demais 15 apapaatai ainda não desfrutavam da mesma
165

situação. Restava então decidir quem assumiria a sua fabricação e performance


ritual. A escolha dos novos kawoká-mona foi feita na reunião de fim de tarde que
os Wauja realizam diariamente no enekutaku. À reunião compareceram em peso
os homens da aldeia acima de 18 anos.
O entusiasmo de Mayaya parecia ter contagiado Itsautaku, que descrevia
aos presentes de modo efusivo os detalhes das pinturas das máscaras, dizendo
ao fim “awojo-iyajo” (“é bom-bonito mesmo!”). Durante a reunião de escolha dos
kawoká-mona, Itsautaku relatou sobre as dores que sentia nos joelhos (típicas
dores de quem sofre de artrite), consequências de ações dos apapaatai. A
intensificação da dor ou o medo da sua intensificação era o anúncio de que
Itsautaku devia oferecer comida aos seus apapaatai, i.e. “domesticá-los”
ritualmente. Portanto, a realização do ritual tinha para Itsautaku uma razão
terapêutica, a qual foi reiterada por Mayaya, que, todavia, tinha seus próprios
interesses pelo ritual, obviamente em função do status que ele possui. O que
agradava Mayaya era o fato do número de máscaras ser suficientemente grande
para que o ritual tivesse o efeito cênico apropriado. Lembro o leitor que Mayaya
era o kawoká-mona da principal máscara do ritual — o macho do Atujuwá Ajou.
Mayaya tinha, assim como Itsautaku, uma posição de grande proeminência, pois
o macho do Atujuwá Ajou era quem coordenaria os trabalhos de produção das
máscaras no interior da kuwakuho. Para um chefe putakanaku wekeho como
Mayaya, não há ocasião melhor para que ele pudesse mostrar a sua habilidade
em coordenar grandes rituais. Conforme todos os depoimentos que recolhi,
quanto maior o número de máscaras maior é a alegria dos apapaatai no ritual.
Quando se festeja com um ou dois casais de máscaras apenas, os apapaatai
ficam, como dizem os Wauja, “bravosTtristes”. O número reduzido de apapaatai
enfurece seus parentes que não foram introduzidos na aldeia como personagens
rituais, isso impede que eles participem do esquema de distribuição de comida.
De um ponto de vista “socioeconômico”, um número reduzido de máscaras
significa que houve desinteresse de membros da comunidade em se engajar em
uma produção coletiva; para os Wauja isso é um sinal de egoísmo e de falta de
respeito com o “dono” dos apapaatai.
Embora o ritual tenha sido originalmente motivado por uma encomenda, é
preciso esclarecer que essa motivação tornou-se irrelevante. A partir do dia da
reunião em que foram escolhidos os novos kawoká-mona, os Wauja calaram-se
166

em relação ao destino museológico das máscaras, como se este estivesse à


margem de todo o processo. Assaltados pela alegria da festa, os Wauja
conferiram um sentido autónomo ao Apapaatai Tyãu. O ritual não precisava do
Museu, foi o que semanas mais tarde deixou entender Atamai com a sua “boa
fala” (awojogatakoja) de “amansar” brancos (Franchetto, 1992). Nessa
oportunidade, pude recuperar uma série de informações a respeito da festa
“para” a Artíndia. A razão pela qual foi realizado o Apapaatai Tyãu em julho de
1997 foi elaborada a posteriori pelos Wauja, que diziam que o pessoal fez a festa
“para Atamai, a festa era dele, para ele ficar melhor, para dor ir embora, para ele
sonhar bem”. É o próprio Atamai que, em seu depoimento, diz: “Depois que
terminou aquela grande festa eu melhorei mesmo. Eu me senti tão forte. Eu
realmente me senti bem”. É como se há tempos ele esperasse por aquela festa,
cujo momento adequado pareceu ser aquele em que a Artíndia pronunciou o seu
interesse pelas máscaras. Portanto, a festa não foi feita com o propósito de se
obter uma pista de aterragem de aviões, que ao fim não contou com o apoio
prometido pela Artíndia. Enfim, o ponto de vista que prevalece é o
patológico/terapêutico, ou seja, se não são por razões terapêuticas não há
porque se fazer rituais de máscaras.
A lista abaixo relaciona os fabricantes/performers (kawoká-mona) com os
apapaatai que eles deverão confeccionar e vestir e com os seus respectivos
“donos”. Excetuando Mayaya, Yatuná, Kaomo, Atakaho, Malalo e Mairu, as
demais pessoas foram escolhidas, com a orientação do “conselho dos amunaw",
na reunião da tardinha, algumas horas depois que Itsautaku conclui a visitação às
casas, quando entregou seus apapaatai aos cuidados dos 15 novos “donos”.
167

Quadro 8

Fabricante e Nome dos apapaatai Apapaatai wekeho


performer

1. Mayaya_______ 1. Atujuwâ Ajou eneja___________ 1. Itsautaku


2. Yatuná_______ 2. Atujuwá Ajou toneju__________ Itsautaku
3. Kaomo 3. Atujuwâ Anapi eneja__________ Itsautaku
4. Atakaho 4. Atujuwá Anapi toneju_________ Itsautaku
5. Malalo________ 5. Sapukuyawá Yanumaka eneja Itsautaku
6. Mairu 6. Sapukuyawá Yanumaka toneju Itsautaku
7. Marikawa_____ 7. Sapukuyawá Kuwa eneja_______ 2. Kaomo
8. Mayawai______ 8. Sapukuyawá Kuwa toneju_______ Kaomo
9. Ulako________ 9. Sapukuyawá Wajai eneja_______ 3. Aluwakumã
10. Kapisalapi_____ 10. Sapukuyawá Wajai toneju______ Aluwakumã
11. Sapalaku______ 11. Kuwahãhalu Yakuwa-kumã eneja 4. Kuratu
12. M/oz/kumã_____ 12. Kuwahãhalu Yakuwa-kumã toneju Kuratu
13. Atamai 13. Yutsipiku eneja______________ 5. Aruta_____
14. Uwitsapa______ 14. Yutsipiku toneju_____________ Aruta_____
15. Arapawa______ 15. Sapukuyawá Muluta eneja______ 6. Mayaya
16. Atatari________ 16. Sapukuyawá Muluta toneju_____ Mayaya
17. Tarukaré______ 17. Sapukuyawá Anapi eneja_______ 7. Yapatsiama
18. Talakway_____ 18. Sapukuyawá Anapi toneju______ Yapatsiama
19. Ulepe________ 19. Sapukuyawá Alapipirá eneja 8. Uwitsapa
20. Akari_________ 20. Sapukuyawá Alapipirá toneju Uwitsapa
21. Aruta_________ 21. Watana-mona eneja___________ 10. Atamai
22. Tsirawá_______ 22. Watana-mona toneju__________ Atamai
23. Kari 23. Sapukuyawá Yutapá eneja______ 11. Kamo
24. Mujuleu______ 24. Sapukuyawá Yutapá toneju_____ Kamo
25. Tuhu_________ 25. Sapukuyawá Arikamu eneja____ 12. Atakaho
26. Asalu_________ 26. Sapukuyawá Arikamu toneju Atakaho
27. Wahixá 27. Sapukuyawá Kapunetejâ eneja 13. Peisatapa
28. Autulu 28. Sapukuyawá Kapunetejâ toneju Peisatapa
29. Yapatsiama 29. Sapukuyawá Puixa eneja 14. Malalo
30. Mayuta 30. Sapukuyawá Puixa toneju______ Malalo
31. Sapukuyawá Apaja eneja_______
Talakway*_____ 15. Marikawa
33. Peisatapa_____ 32. Sapukuyawá Apaja toneju______ Marikawa
34. Itsakumã 33. Atujuwátãi Yukujèueneja______ 16. Yatuná
35. Mapuké 34. Atujuwátãi Tukujè toneju Yatuná
* duas vezes
fabricante e perfomer

A observação atenta da lista mostra que 14 dos apapaatai wekeho eram


também kawoká-mona. Apenas Itsautaku, que já tinha o imenso trabalho de
cuidar de três apapaatai, e Kamo se eximiram de fabricar máscaras. A atuação
dessas 14 pessoas nas duas frentes de trabalho — como patrocinador e como
fabricante/performer — teve implicações cruciais para que o Apapaatai Tyãu
viesse à luz, pois estruturou de modo equilibrado o fluxo de prestações e contra-
168

prestações rituais. O fluxo assumiu as seguintes direções: Itsautaku proveu


Mayaya, Yatuná, Kaomo, Atakaho e Mairu de alimentos e de matéria-prima para
as máscaras, Mayaya proveu Arapawá e Atatari, Yatuná proveu Itsakumã e
Mapuké, Kaomo fez o mesmo para que Marikawa e Mayawai fabricassem um
casal do Sapukuyawá Kuwa nãu, Marikawa, por sua vez, proveu Talakway e
Peisatapa. Já Peisatapa ficou responsável pela alimentação de Wahixá e Autulu
que confeccionaram um casal do Sapukuyawá Kapunetejá nãu. Deve-se notar
que algumas pessoas não patrocinaram máscaras, como foi o caso de Wahixá e
Autulu, pois não havia um número suficiente de máscaras para todos, e ainda
que houvesse o sistema não funcionaria se todos os homens adultos de Piyulaga
fossem patrocinadores ao mesmo tempo. O patrocínio ritual só funciona se ele
ocorrer por unidade residencial (household unit, cf. a descrição de Basso, 1973:
43-59).
O sistema de patrocínio tem dispositivos de limitação que, como veremos,
regula a distribuição de prestígio e poder no sistema político-ritual. Embora a
possibilidade de participação no Apapaatai íyãu seja ampla — inclusive mulheres
podem aceitar cuidar de máscaras de apapaatai —, a distribuição dos
excedentes simbólicos e materiais gerados pelo ritual dá-se de modo claramente
desigual (vide capítulos 6 e 7). Com efeito, o que se evidencia é o esforço de
configurar uma rede de produção que centraliza a atribuição do status de nakai
wekeho (“dono” ritual) aos seniores e “nobres” adultos.
Deve-se notar que um nakai wekeho e jamais pode ser co-residente com
seus kawoká-mona, pois assim não seria possível instaurar o sentido de troca
que marca o ritual, o qual é dependente de uma integração produtiva que envolve
as diferentes casas participantes. Para os Wauja é ilógico que a comida
ritualmente produzida em uma casa retorne para a mesma casa. A comida deve
retornar sim, mas na forma de máscaras, panelas e outros objetos de pagamento
ritual.
Esse sistema de organização socioeconômica do ritual permite que um
Apapaatai lyãu seja realizado às pressas, sem a necessidade de longos
preparativos, como no caso dos rituais intertribais — e.g. Kaumai, Yawarí e
Pohoká. Ser for preciso, um Apapaatai lyãu pode ser preparado num prazo de
até duas semanas. E de fato é assim que ele às vezes é feito, uma vez que se
trata de um ritual para curar pessoas, as quais, em determinados casos, têm
169

urgência em oferecer uma festa aos apapaatai que estão a lhes fazer mal. A
própria flexibilidade em transferir os apapaatai de um doente (ou ex-doente) para
que outras pessoas cuidem deles, talvez evidencie um aspecto irrefutável desse
pragmatismo no ritual.

5.3
O Apapaatai Íyãu

No dia seguinte à concordância em cuidar dos apapaatai de Itsautaku, o


grupo dos 16 apapaatai wekeho, acompanhado por vários ajudantes, seguiu para
a expedição de coleta de talos de buriti26, enquanto seus filhos e/ou genros foram
pescar. Era suposto que os pescadores retornassem antes dos coletores. A
expedição do grupo levou quase cinco horas. No seu retorno, alimentaram-se na
kuwakuho, onde foi feita a primeira distribuição de comida aos kawoká-mona.
Foram recolhidos aproximadamente 80 talos (pecíolos) de buriti. Cada
apapaatai wekeho dividiu o feixe trazido por ele com cada um dos seus kawoká-
mona, que entregaram os talos às suas respectivas esposas. Os trabalhos de
abrir os talos, extrair deles a fibra, colocá-la para secar, e fiá-la competem às
mulheres. Os talos de buriti têm em média 90 cm de comprimento e uns 16 cm de
circunferência. Seu interior é formado por um aglomerado de fibras verde-
amareladas, que quando secas tornam-se uma palha lisa, de fina espessura e
largura média de 30 mm. Essa palha, quando fiada, oferece um cordão
resistente, porém com uma textura relativamente macia27. Para a confecção das
máscaras apenas o miolo da fibra é fiado, o restante deve permanecer palha
(ainda voltaremos a abordar as técnicas de confecção das máscaras). O trabalho
das mulheres deve ser feito com muita agilidade, pois a confecção das máscaras
fica à espera do cumprimento dessa tarefa.
Enquanto as mulheres fiam o buriti, os homens “fazem alegria”, ou melhor,
provocam as mulheres com suas brincadeiras. O espírito de descontração toma

26 O buriti é, ao lado da argila, a matéria-prima tradicional mais usada pelos Wauja.


27 É por esse motivo que a fibra do buriti é a matéria-prima ideal para a fabricação de um tipo de
rede muito leve, antigamente usada nas curtas viagens interaldeias, e, mais recentemente,
convertida em item comercial da categoria “artesanato indígena”.
170

conta da aldeia. A primeira “brincadeira”, Kaapi (Coati), deu-se na noite do dia


seguinte em que as mulheres receberam os talos. Um grupo de
aproximadamente vinte rapazes, de 15 a 30 anos, saiu em fila da kuwakuho em
direção à casa de Itsautaku, onde a brincadeira teve início, aliás onde teve início
todas as ações rituais do Apapaatai lyãu ocorridas fora da kuwakuho e do
enekutaku. A “brincadeira” consistia em sapatear dentro da casa, levantando o
máximo de poeira possível, e dar solavancos nas redes das mulheres para que
elas se levantassem. A “brincadeira” estendeu-se por todas as casas da aldeia
em sentido anti-horário. Kaapi não tem cantos, apenas onomatopéias e gritos. Os
Wauja não consideram as “brincadeiras”, chamadas de yuleleki, propriamente
rituais (chamados de nakai). Yuleleki é “só pra ficar animado, não é sério. A gente
faz antes da festa mesmo”, explica Aulahu.
Ainda no prelúdio do Apapaatai lyãu, teve a performance dos cantos de
Kapojai (próprios dos rituais de Sapukuyawá e Kukuho)28, logo na tarde do dia
em que foram trazidas as primeiras matérias-primas para a confecção das
máscaras. Três dias depois, quando os homens retornaram da expedição de
coleta dos talos de buriti, iniciaram-se as brincadeiras. Não detalharei, nesta tese,
a performance das brincadeiras e dos cantos de Kapojai, pois o nosso interesse
maior é pelo Apapaatai lyãu. O esquema abaixo dá uma idéia geral da sequência
de eventos que antecederam esse ritual.
Três dias depois da “brincadeira” do yerupoho Kaapi, o buriti já estava
pronto e uma boa parte do trabalho de confecção das máscaras já tinha sido
avançado. A kuwakuho, tomada por estruturas de palha que mais tarde viriam a
ser as máscaras, convertera-se em uma verdadeira “oficina”. Foi então a vez da
“brincadeira” de Awalawalá, um yerupoho sem qualquer relação identitária com
espécies e fenômenos naturais. Awalawalá é apenas gente (Jyãu).

28 Kapojai constitui um gênero de canções cujos temas envolvem disputas políticas, ciúmes,
provocações pessoais e protestos. As letras das canções são carregadas de sarcasmo, ironia,
lascívia e comicidade, cujo objetivo é provocar, acusar, criticar e/ou criar divertimento. Para o
Apapaatai lyãu de julho de 2000, um cantor sénior compôs uma canção pornográfica sobre uma
jovem wauja que recentemente tinha se casado com um rapaz ikpeng. A canção, que protestava
e ironizava esse casamento, foi cantada, ininterruptamente, no interior de todas as 17 casas da
aldeia durante toda a metade de uma tarde. Segundo Ireland, Kapojai é “the only legitimate forum
for public criticism of the chief and challenge ofhis political authority (1985:13, grifos meus).
171

Quadro 9
Sequência de eventos que antecederam o Apapaatai Tyãu dejulho de 2000

Dias Eventos____________________________________________________
Io dia Coleta matutina das primeiras matérias-primas (cipós para a confecção
das máscaras circulares).
Trabalhos vespertinos de confecção das máscaras.
Início dos cantos vespertinos de Kapojai.__________________________
2o dia Coleta matutina de talos de buriti.
Entrega dos talos de buriti às esposas dos kawokâ-mona.
Cantos vespertinos de Kapojai.___________________________________
3o dia Processamento do buriti pelas mulheres.
Coleta matutina de madeira e cabaça para a confecção das máscaras.
Trabalhos matutinos e vespertinos de confecção das máscaras.
Cantos vespertinos de Kapojai.___________________________________
4o dia Processamento do buriti pelas mulheres.
Trabalhos matutinos e vespertinos de confecção das máscaras.
Fim dos cantos vespertinos de Kapojai.
Brincadeira noturna de Kaapi (Coati) no interior de cada casa.________
5o dia Processamento do buriti pelas mulheres.
Pescaria coletiva matutina coordenada pelos kawoká-mona de Itsautaku.
Trabalhos vespertinos de confecção das máscaras.__________________
6o dia Processamento do buriti pelas mulheres.
Trabalhos matutinos e vespertinos de confecção das máscaras.
Brincadeira matutina e vespertina de Yalatu-kumã (Caranguejo) com o
objetivo de pedir do peixe pescado no dia anterior._________________
7o dia Os kawoká-mona recebem o buriti fiado pelas esposas de seus
respectivos “donos”.
Trabalhos matutinos e vespertinos de confecção das máscaras.
Brincadeira vespertina de Awalawalá (pxnyerupohd).
Yukalu, filha do “dono” do ritual, é atacada por 7 apapaatai.__________
8o dia Trabalhos matutinos e vespertinos de confecção das máscaras.
Brincadeira vespertina de Maiwá (Lagartixa)._______________________
9o dia Trabalhos matutinos e vespertinos de confecção das máscaras.
Brincadeira vespertina de Kuau (Peixe Pacurau).
Conclusão da confecção das máscaras.
Fim das brincadeiras.

No Awalawalá, participam, sobretudo, homens adultos entre 25 e 45 anos.


A “brincadeira”, igualmente iniciada pela casa de Itsautaku, consiste em
arremessar massa seca de mandioca (pukupi) nas mulheres, que se refugiam em
suas casas, trancando as portas. Mesmo assim, bolas de mandioca continuam a
ser arremessadas às portas, fazendo a maior sujeira, que depois será limpada
pelas mulheres. Quando os homens terminam o círculo de casas é a vez das
mulheres revidarem. Elas catam bolas de massa seca de mandioca e correm
atrás dos homens, que se refugiam na kuwakuho. Como não há portas nessa
“casa”, as mulheres invadem-na. Foi no Awalawalá a única vez em que vi
172

mulheres entrarem na kuwakuho. Mas isso foi possível porque todos sabiam que
não havia nenhuma flauta ou outro artefato proibido em seu interior. No ano de
2000, por motivo de luto, todas as flautas foram recolhidas para o interior das
casas de seus respectivos donos rituais.
Awalawalá é uma “brincadeira” marcada por violências física e verbal.
Tudo isso é feito com muitos xingamentos de conotação erótico-sexual,
envolvendo namoros, ciúmes, assédios mal sucedidos, acusação de ter alguma
doença venérea contraída na cidade etc.
Aqui, volto ao ciúme. Na tarde quente de Awalawalá, enquanto as
mulheres revidavam as provocações dos homens, sete apapaatai resolveram
manifestar seu descontentamento com os preparativos do Apapaatai íyãu.
Yukalu, segunda filha mais velha de Itsautaku, sofreu um “ataque” (epiléptico?),
caiu no chão, debateu-se por uns segundos, empalideceu e desmaiou. Às
pressas, recebeu cuidados de um yakapá, que revelou serem Yukuku (uma
Árvore), Kapulu (Macaco-Preto) e Paho (Macaco-Prego) os agentes de sua
doença. Itsautaku, sua esposa e o marido de Yukalu rapidamente chegaram ao
consenso de que esses apapaatai estavam enciumados, e para aplacar sua
agressividade e o risco de Yukalu piorar, o melhor era incluir imediatamente os
grupos de Yukuku, Paho e Kapulu no Apapaatai Tyãu. Os apapaatai, assim como
os humanos, têm muitos desejos, cujas manifestações frequentemente causam
espanto, sofrimento ou ansiedade nos humanos.
Sete calderõezinhos de mingau fresco e sete cigarros de tabaco nativo
foram levados para o enekutaku. Aulahu, filho sénior de Itsautaku, assumiu o
papel de akatupaitsapai de Yulaku e convocou sete homens para serem os
kawoká-mona de Yukalu. Um casal do apapaatai Yukuku, outro de Kapulu e uma
família de Paho com um filho. No transe do Yakapá, apareciam todos juntos
dançando ao seu modo, como se estivessem em uma festa. Assim,
inesperadamente, o Apapaatai íyãu, que tinha 36 máscaras, passou a ter 43.
PRANCHA 3

Figura 4 - Performance do
Apotalatuapai (“Ensaio”) no
entardecer do dia 26 de
julho de 2000. Kaomo toca
Kawoká Otãi enquanto dois
Atujuwá fazem sua dança
giratório-circular em frente à
casa das flautas.

Figura 5 - Performance
do Apotalatuapai
(“Ensaio”) no entardecer
do dia 26 de julho de
2000. Ainda sem suas
pinturas, os 43
apapaatai do ritual
Apapaatai lyãu dançam
em fila, tendo o flautista
Kaomo a sua frente.

Figura 6 - Perfor­
mance da grande
dança na manhã do
dia 28 de julho de
2000. Já com suas
pinturas específicas,
os apapaatai dançam
no trajeto entre a
casa de um “dono"
ritual e a casa das
flautas.
173

Quadro 10

Os apapaatai de Yukalu Nome em português Fabricante e performer

37. Yukuku eneja Árvore (e.n.i.) macho Marikawa*


38. Yufaíku toneju Árvore (e.n.i.) fêmea 36. Kaki ~
39. Kapulu eneja Macaco-Preto macho 37. Ahonapu
40. Kapulu toneju Macaco-Preto fêmea 38. Mayawariku
41. Paho eneja Macaco-Prego macho 39. Tamuwã
42. Paho toneju Macaco-Prego fêmea Mapuké*_____
43. Paho otãi filhote macho de Atatari*
Macaco-Prego______
e.n.i = espécie não * duas vezes fabricante e
identificada performer, vide quadro 8.

Depois de Awalawalá, a casa de Itsautaku ficou de fato sobrecarregada,


com um total de 13 homens adultos (6 de Itsautaku e 7 de Yukalu) para alimentar
por um período de uma semana. A seguir ao Awalawalá, os Wauja fizeram mais
duas brincadeiras: Maiwá (Lagartixa) e Kuau (Peixe Pacurau), centradas também
na provocação das mulheres pelos homens. Em simultâneo com as brincadeiras,
os homens confeccionavam as máscaras.
Ao fim dos trabalhos de confecção das máscaras estava programada uma
viagem dos Wauja à aldeia kamayurá de Ipavu para a participação no ritual
funerário Kaumai (Kwarip, em kamayurá). Os Wauja dormiram três noites em
Ipavu, pois eles eram os convidados principais, i.e. os “ajudantes” dos seus
anfitriões. O intervalo entre a confecção das máscaras e o Apapaatai íyãu não foi
apenas preenchido pelo Kaumai. No dia seguinte ao retorno de Ipavu, logo pela
manhã os Wauja realizaram uma pescaria coletiva para aliviar a fome que
passaram em Ipavu. O Kaumai terminou no dia 23 de julho de 2000, num
domingo. No dia 26, quando já se sentiam descansados e bem alimentados, os
Wauja deram início ao Apapaatai lyãu.
Quando os Wauja partiram para Ipavu, as máscaras ficaram guardadas,
sem pinturas, na kuwakuho. Era exatamente assim que elas deveriam ser
deixadas, pois é com suas identidades ainda não marcadas, que elas devem
executar a primeira dança (figuras 4 e 5), em um evento chamado Apotalatuapai
( ensaio ).
Por volta das 14 horas, Kaomo, o principal flautista wauja, levou, para
dentro da kuwakuho, uma Kawoká Otãi (literalmente filho de Kawokâ). Kaomo
puxou um banquinho, sentou-se e tranquilamente começou a tocar uma música;
174

ele estava “treinando” para tocar dentro de algumas horas. No Apapaatai Tyãu, as
máscaras idealmente dançam com pelo menos um trio de flautas Kawoká.
Porém, como a “dona” de um dos cinco trios de Kawoká existentes em Piyulaga
tinha ficado viúva poucos meses antes, decidiu-se, em respeito ao seu luto, não
tocar as flautas grandes, que foram substituídas por Kawoká Otãi. A Kawoká Otãi
é um

aerofone tipo flauta aberto nas duas extremidades, com defletor de


iyapi, “cera de abelha”, e quatro orifícios digitais. É feita de õtapi,
“taquara”, e amarrada na extremidade proximal com fibra de
mehepejo, “embira”. É passado urucum em toda sua extensão,
sendo seu comprimento de aproximadamente 50 centímetros. Serve
como instrumento para aprender a tocar kawoká e faz parte do
complexo ritual da kawoká. (...) De acordo com os informantes não
existe uma kawokátãi especial, ela pode ser feita com qualquer
bambu, pode ser feita com cano de água, cano de bicicleta, que seu
poder é o mesmo, não importando o material, mas sim o “som, a
canção, o ritmo” (Mello, 1999: 100).

O “treinamento” de Kaomo não durou mais do que vinte minutos. Aos


poucos os fabricantes/performers (kawoká-mona) das máscaras começaram a se
agrupar na kuwakuho, enquanto as mulheres voltavam apressadas do igarapé
Utawana, a 1 km de distância do centro da aldeia. Por volta de quatro e meia da
tarde, Kawoká Otãi estava prestes a sair da kuwakuho para o pátio central
(enekutaku). As portas de todas as casas foram fechadas, aos seus interiores,
recolheram-se todas as mulheres e crianças. Se as mulheres vissem a
performance de Kawoká Otãi, o “espírito” da flauta manifestaria, por meio dos
homens da aldeia, a violência de um poder assustador e incomensurável.
Às 17 horas todos os kawoká-mona já estavam dentro da kuwakuho, cada
qual vestido com o seu apapaatai. Nesse mesmo momento Kaomo se direciona
para o enekutaku e começa a tocar. Aos poucos, os apapaatai iniciam a saída da
kuwakuho. O casal Atujuwá Ajou nãu (Jatobá), vestido em grande máscara
circular, foi o primeiro a sair, seguido do casal Atujuwá Anapi nãu (Arco-Íris). Os
quatro apapaatai cercam Kawoká Otãi e principiam um duplo movimento circular
em torno de si mesmas e de Kawoká Otãi. Em poucos minutos, os demais
apapaatai saem em massa da kuwakuho, conforme a ordem do quadro 7, que é,
na verdade, a ordem das casas da aldeia, tendo como casa “1” a de Itsautaku, o
“dono” do Apapaatai Tyãu. Num movimento muito rápido, Kawoká Otãi rompe o
f
175

n
“cerco” dos Atujuwá e segue em direção à casa de Itsautaku. O círculo de
Atujuwá é desfeito e todos os apapaatai seguem em fila, tendo sempre Kawoká
Otãi à frente, que toca ininterruptamente. A enorme fila segue em direção à casa
seguinte, dando início a uma volta da aldeia em sentido anti-horário. Nesse dia,
as máscaras não cantam, elas apenas seguem a música de Kawoká Otãi. Diante
da porta frontal das casas, os Sapukuyawá ensaiam uma provocação às
mulheres: sapateiam, levantando imensa poeira, e às vezes dizem estar com
fome. As mulheres respondem que a comida que têm é pouca e ruim. Essa
provocação é repetida na porta frontal de todas as casas.
Quando todos os apapaatai já estavam na quinta casa, Kawoká Otãi, deu
meia volta e retornou para o enekutaku, onde fez um movimento circular que foi
seguido por todos os seus 43 acompanhantes. Daí tomaram, em linha reta e em
fila, a direção da sexta casa. Os apapaatai alcançaram a 17a e última casa
poucos minutos antes do pôr do sol, retornando em seguida para a kuwakuho,
onde foram despidas as “roupas”. A flauta foi guardada aí mesmo, entre as
palhas do telhado. As portas das casas puderam, enfim, serem abertas.
Por volta de sete horas da manhã do dia 27 de julho, portanto no dia
seguinte ao Apotalatuapai, Itsautaku levou duas bolas de urucum para a
kuwakuho, eram para o uso dos kawoká-mona, que a partir daquela hora
começavam a se reunir para pintar, em um só dia, todas as 43 máscaras do
Apapaatai íyãu. Os Wauja utilizam ainda a raiz do urucum (para as pinturas em
amarelo), a tabatinga (um mineral de cor branca) e fuligem misturada com
resinas e óleos vegetais (para as pinturas em preto). Itsautaku e Kamo, grandes
yakapá, orientaram a pintura de muitas máscaras. Os irmãos Mayaya, Yatuná e
Atakaho e Kaomo, seu tio, igualmente grandes conhecedores do universo ritual,
pintaram os quatro Atujuwá. Foi dessas quatro pessoas que a realização do
Apapaatai lyãu demandou maior dedicação. De um lado, porque a confecção das
Atujuwá é muito trabalhosa, de outro porque elas são pesadas, o que demanda
um grande esforço físico durante suas performances. A Atujuwá é sustentada por
um cone de rodilhas, de 35 cm de altura, colocado sobre a cabeça do
“dançarino”, neste cone é encaixado um cilindro de madeira, cuja posição central
na máscara (entre os olhos) permite que esta seja sustentada com equilíbrio.
Com as duas mãos o “dançarino” segura uma trave inferior horizontal (figura 4) e
projeta a máscara em posição vertical. Esta trave permite que o “dançarino” alivie
PRANCHA 4

Figura 7 - Família
do apapaatai
Apasa. Da es­
querda para a
direita, a filha, a
mãe e o pai.
Coleção Aristó-
teles Barcelos e
Maria Ignez Mello,
MAE/UFBA, 1998.

Figura 8 - Casal de máscaras Yuma. Da esquerda para a direita, o


macho e a fêmea. Coleção do Museu Nacional de Etnologia, 2000.

Figura 9 - Tarde do dia


28 de julho de 2000,
horas depois da grande
dança. Em primeiro
plano, Yuma toneju
(Pirarara fêmea), a
mesma da figura 8. É
através dos dois
minúsculos furos no
centro da máscara que o
performer enxerga o seu
caminho. De costas,
Atujuwátai Tukujê eneja
(Pombo) vestida por uma
criança.

i
176

o peso sobre a sua cabeça, então encaixada sob o cone de rodilhas, e o distribua
para os membros superiores, possibilitando-o a andar, correr e fazer os
movimentos giratórios e circulares próprios da coreografia de Atujuwá. Atujuwátãi
(ou Atujuwá “pequeno”, figuras 9, 52 e 53) segue uma estrutura semelhante,
porém, por ser mais leve que Atujuwá, não possui o cone de rodilhas. As demais
máscaras são de uso menos complicado, exceto Yuma (figura 9), cujo peso, por
ser de madeira, pressiona os ombros e o pescoço, e para agravar, o equilíbrio é
comprometido pelo empunhamento constante de um longo escarificador de
dentes de peixe cachorra (figura 49).
Nesse dia não há músicas nem danças. A atividade ritual concentra-se no
interior da kuwakuho, onde todo o esforço é unicamente voltado para a atribuição
de identidades específicas às máscaras. Sem as pinturas as máscaras são
apenas formas genéricas.
A confecção e a pintura das máscaras é uma oportunidade para os jovens
exercitarem técnicas específicas de encordoamento e trançado e de aprenderem
a usar o repertório de motivos visuais que confere identidade às máscaras. Como
veremos a seguir, a atribuição de identidade por meio da pintura funciona sob um
regime de alternância mais ou menos aleatória dos motivos e marcas. A
ornamentação que cada máscara vai receber é decidida no momento mesmo de
sua pintura. A única coisa que se tem a priori é a máscara como “tipo”
(Sapukuyawá, Atujuwá, Yuma etc.), cujas estruturas formal e fabril estão
intrinsecamente ligadas. Desde o século XIX, conforme se pode observar pelos
exemplares coletados e desenhados, essas estruturas permanecem invariáveis.
Cada kawoká-mona pintou sua própria máscara, embora alguns tiveram a
ajuda dos mais experientes. Por volta de 15 horas o trabalho de pintura estava
encerrado, em seguida as máscaras foram cuidadosamente dependuradas, nos
caibros do telhado da casa da flautas, para secagem.
Antes de continuar a descrição do Apapaatai lyãu, analisemos
detalhadamente como as personagens rituais, que até agora foram referidas
apenas pelos seus nomes, assumem formas e identidades específicas na cultura
material wauja.
177

5.4
ASPECTOS MORFOLÓGICOS E PLÁSTICOS DAS MÁSCARAS

Desde pelo menos os meados da década de 1960, quando os estudos de


antropologia da arte adquiriram um volume sistemático de contribuições advindo
sobretudo das pesquisas na África e Oceania, tendências das antropologias
britânica e australiana da arte passaram a questionar enfaticamente se as
abordagens sociológicas seriam satisfatórias para os estudos de antropologia da
arte (Ucko, 1977). Alguns estudos, como o de Morphy (1977), que lidam com
sistemas de comunicação baseados em formas visuais complexas, mostraram
que somente análises formais e estilísticas podem revelar a complexidade
operativa de certos sistemas de objetos e sistemas gráficos, a despeito do estudo
e da observação desses sistemas em seu “living” cultural context. Em um
simpósio sobre arte indígena que reuniu oceanistas e europeanistas, do qual
Morphy fez parte, um dos entendimentos comuns foi que

The complexity of the social system of any culture which we may


consider, and the variety of interpretations which will be offered in
any given case, do not, by definition, invalidate the analysis of
artistic works on the basis of stylistic and/or morphological criteria
(Ucko, 1977: 14).

A análise formal que procederei nas páginas a seguir não é feita a partir da
terminologia indígena, aliás, alguns motivos sequer têm nomes. Como veremos,
há questões próprias da etnografia wauja que podem ser seguramente
formuladas a partir da forma e de uma controlada vinculação aos mitos e
exegeses.
Nos capítulos anteriores, acompanhamos os processos de aproximação
entre os humanos e os não-humanos, nos quais os últimos assumiam formaè
sobretudo antropomorfas. Como vimos acima, é na divinação xamânica que a
aparência da agressão dos yerupoho — sob “roupas”, tocando aerofones, de
mulheres “travestidas” etc. — é revelada. A questão que se impõe agora é
precisamente a das formas visuais que os Wauja ritualmente conferem aos
apapaatai. Como não poderei abordar a questão de múltiplas frentes,
aprofundarei um aspecto no qual a análise formal mostrou ser central: a
178

atribuição de identidades específicas às máscaras.


Enquanto design e cosmética, as máscaras veiculam idéias não-verbais
sobre a transformação. Aliás, a própria transformação como noção ontológica é
muito mais marcada visualmente do que verbalmente. O intuito deste capítulo é
mostrar a construção visual das transformações, as quais se dão por meio de
relações internas ao estilo artístico wauja. Para tanto, a minha descrição seguirá
um percurso clássico: matérias-primas, elementos de composição, morfologia e
acessórios29, que nos permitirão caracterizar cada personagem.
Ao que meus dados indicam até o momento, não há um modelo êmico de
classificação morfológica das máscaras wauja. A classificação êmica de maior
saliência está centrada nos distintos graus de poder dotados pelas máscaras
enquanto agentes patogênicos30. Todavia, os aspectos morfológicos que
configuram essas personagens não devem ser desprezados, ainda que a sua
classificação tenha se demonstrado, pelo menos em uma primeira investigação,
ausente do discursso wauja.

29 Os elementos acessórios são os adornos plumários (brincos, braçadeiras, diademas e


cocares), os cintos de miçangas, os de algodão, os de pele de onça-pintada, os colares de
caramujo e as braçadeiras de algodão.
30 Este tipo de classificação será discutido no capítulo seguinte, no qual veremos que há uma
relação direta entre potência patogênica, hierarquia e continuidade ritual.
179

Quadro 11
Tipologia das máscaras

Tipo das Relação com espécies Matérias-primas Formas


Máscaras31 Animais e Vegetais, básicas32 geométricas
Fenômenos Naturais básicas das
e Artefatos máscaras

7. Atujuwá Amplamente variável Buriti, cipó e algodão 1. circulares


2. Atujuwátãi Variável no interior de Buriti, cipó e algodão
duas Ordens33_______
3. Awajahu lyãu-kumã (yerupoho) Cipó, penas de harpia e 2. semicirculares
Emplumado________ arara, algodão e cabaça
4. Yakui Variável no interior de Madeira e buriti 3. retangulares
duas Ordens34
5. Nukuta Pitsu Run lyãu-kumã arqueiro Madeira e buriti
Run Run_________
6. Yutsipiku “Bicho”: é apenas Buriti e algodão 4. cónicas
yerupoho vestido, sua
“roupa” não tem relação
com nenhuma espécie
7. Awaulu Raposa Madeira e buriti
8. Keju________ Tucano______________ Madeira e buriti_______
9. Yukuku Arvore (e.n.i.) Buriti, madeira e algodão 5. cilíndricas
10. Yuma Peixe Pirarara Madeira e buriti
11 Tuapi Flauta Rawokà Buriti e algodão
12. Watana-mona Flauta watancA________ Cabaça e buriti________
13. Apasa_____ lyãu-kumã canibal______ Cabaça e buriti________ 6. esféricas
14. Kuwahãhalu Variável no interior da Buriti e algodão 7. ovais
Ordem dos Peixes
15. Rwejo Ariranha Buriti e algodão
16. Paho Macaco-Prego Cera, buriti e algodão
17. Rapulu Macaco-Preto Cera, buriti e algodão
18. lyá_______ Camaleão____________ Buriti e algodão_______
19. Sapukuyawá Amplamente variável Buriti, madeira e algodão 8. semi-elípticas
20. Eiusi Rã Buriti e algodão
21. Kajutukalu Sapo Buriti e algodão
22. Kyakyá Coruja Buriti e algodão

31 Exemplares dos tipos 1, 2, 6, 9, 10, 12, 14, 15, 16, 17, 19 e 20 podem ser encontradas na
coleção que formei para o Museu Nacional de Etnologia no ano 2000, e exemplares dos tipos 2,
3, 5, 7, 8, 9, 10, 13, 15, 17, 18, 19, 20 e 22 na coleção Aristóteles Barcelos Neto e Maria Ignez
Mello do Museu de Arqueologia e Etnologia da UFBA. Quanto às máscaras Tuapi e Yakui,
desconheço qualquer museu que as possua. O Museu Nacional da UFRJ possui máscaras
Yakuikatu de origem Kamayurá. Um informante disse-me que a Yakuikatu é parente de geração
descendente de Yakui. Voltaremos a falar sobre a Yakui no próximo capítulo.
32 Matérias-primas complementares como conchas, dentes de piranha e cera de abelha são
usados para fazer os olhos, o nariz e a boca das máscaras.
33 Atujuwátãi é uma “roupa” vestida por Aves, sobretudo a Pomba (Tukujê), e por Peixes, como o
Acará-Bandeira (Apaja).
34 Yakui é uma “roupa” vestida por várias espécies de Aves e Peixes, em especial os carnívoros,
como a Traíra, a Piranha e o Tucunaré.
35 Vide Mello (1999) para uma classificação e descrição dos instrumentos musicais wauja.
180

A quase totalidade das Espécies e Fenômenos Naturais do cosmo pode


ser ritualmente construída a partir dos 22 tipos de máscaras identificados entre os
Wauja.
As máscaras wauja são muito mais do que um tipo de objeto que visa a
cobrir o rosto. Uma máscara wauja é, acima de tudo, uma “roupa” (naT). Sua
feitura combina até quatro tipos básicos de peças: (1) otowonaT (literalmente
“roupa para cabeça”), (2) pisi (saia), (3) puti (calça) e (4) owana (manga). A
otowonaT geralmente compreende a peça que cobre o rosto (paakai), a qual se
liga a uma estrutura trançada posterior permitindo que a máscara, como rosto
(paakai), seja vestida e assim recubra toda a cabeça. Em alguns casos, como a
Atujuwá (figuras 4, 6 e 46) e Atujuwátãi (figuras 9, 52 e 53), a otowonaT é tão
grande que chega a cobrir o tronco e os membros superiores do performer.
A paakai é a peça imprescindível de uma máscara, é onde se marca a sua
identidade específica. Já saias, calças e mangas são confeccionadas segundo
formas-padrão rigosamente fixas e pouco adequadas as singularizações
alcançadas pelas paakai e otowonaT. Assim, por exemplo, uma saia usada por
Watana-mona nada (ou quase nada) difere de uma saia usada por Atujuwátãi ou
Kagaapa. A pintura de saias, calças e mangas é sempre secundária e/ou
contínua à pintura das otowonaT. Se saia, calças e manga são unidades que
apresentam poucas diferenças num coletivo de máscaras, paakai e otowonaT
são, por outro lado, peças de identidade singulares.
Os materiais empregados para a confecção das paakai e otowonaT são
cera de abelha, cabaças, madeira, cipós e fibras de buriti e de taquarinha, cujas
espessuras e flexibilidades são bastante variáveis. Em contraste com saias,
calças e mangas, as paakai e otowonaT são peças de confecção bastante
complicada, sendo ainda as superfícies nas quais se aplicam as pinturas mais
elaboradas.
Embora as otowonaT assumam formas específicas (circulares,
semicirculares, retangulares, cónicas, cilíndricas, esféricas, ovais e semi-
elípticas), isoladamente, tais formas oferecem poucas informações sobre as
identidades específicas das máscaras. É pela observação completa da
morfologia, associada às características anatômicas das espécies, e dos motivos
visuais (grafismos e marcas), cujo repertório formal é relativamente extenso, que
se pode reconhecer a identidade de uma máscara.
181

Quadro 12
Motivos gráficos criados pelo personagem mítico Arakuni

4
5

9 10
:4


I

"1
12 13

1. Kulupienê Motivo de peixe


2. Kajujuto otapaka Desenho do rosto da arara
3. Kunye-kunyejutogana Asa de mariposa
4. Kupato onabe Espinha de peixe
5. Kutaho onapula Caminho da formiga saúva
6. Mepinyaku Uma planta aquática
7. Mitseuenê Dente de piranha
8. Pawãponá ou Kupato Literalmente 1 forma ou peixe
9. Qgana paakai Literalmente pintura do rosto
10. Sapalaku Peça de indumentária feminina
11. 1'emepianá Jibóia
12. Wene-wene sucu Rio Wene
13. Walamá oneputaku Cabeça de sucuri
PRANCHA 5

Figura 10 - Manhã do dia 28 de julho de


2000. Kapulo (Macaco-Preto) dança em
direção à casa de Itsautaku. O rosto da
máscara é moldado em cera de abelha.

Figura 11 - Manhã do
dia 28 de julho de
2000. Casal de
Sapukuyawá
Yanumaka nãu
(Onça). Em primeiro
plano, o macho, com
cinto de couro de
onça-pintada. De
costa, a fêmea, iden­
tificada pela listra
vermelha no dorso da
máscara e pelo cinto
vermelho de algodão.

Figura 12 - Manhã do
dia 28 de julho de
2000. Os apapaatai
Sapukuyawá Arikamu
(Jacaré), em primeiro
plano, e Sapukuyawá
Muluta (Peixe Cascu-
do), em segundo
plano, posam para
uma fotografia. Os
adornos plumários são
componentes
indispensáveis da
ornamentação da
maioria das máscaras
e devem ser providos
pelos seus performers
e/ou “donos”.
182

Com as exceções de Atujuwá, Atujuwátãi, Yakui, Kuwahãhalu e


Sapukuyawá, todas as demais máscaras relacionam-se, cada uma, com um ser
ou objeto singular. A segunda coluna do quadro 11 enumera essas relações.
Como se pode observar, as máscaras dividem-se em duas grandes categorias:
as de “relações variáveis” e as de “relações fixas”. É essa divisão que vamos
analisar de modo pormenorizado.
A maioria das “relações fixas” possui um nítido “apelo icônico”. Apasa
(figura 7), Yuma (figuras 8 e 9) e Kapulu (figura 10) são alguns exemplos. O mito
de Apasa diz que ele é uma pessoa de cabeça imensa, abdome proeminente e
membros inferiores e superiores finos, ele é a manifestação mais pura (e ao
mesmo tempo a mais grotesca) do que vem a ser o modelo ideal de
antropomorfia para os ixana wekeho (“donos” de feitiço, ou feiticeiros). A máscara
que personifica Apasa é fabricada com a maior espécie de cabaça existente no
Alto Xingu com o claro objetivo de caracterizar a deformação craniana desse
apapaatai.
As máscaras do Macaco-Preto (Kapulu) e do Maçado-Prego (Paho) têm o
rosto (paakai) moldado em cera sobre a parte frontal de uma estrutura ovoide de
fibras de buriti, cujos pés se apoiam sobre um aro de diâmetro igual ao da cabeça
de um adulto. Pendem longas fibras de buriti de toda a extensão do aro a fim de
cobrir o rosto de quem veste a máscara. O performer veste o aro e a máscara
propriamente dita está acima da sua cabeça (figura 10). Na parte anterior da
estrutura ovoide é aplicado um rabo, completando, juntamente com a pintura em
preto, um ideal de figuração realista36.
Os fabricantes da máscara Yuma procuram aproximá-la às características
anatômicas do peixe pirarara. Seu delineamento cilíndrico e o achatamento da
parte superior da máscara aludem ao corpo desse peixe, cuja anatomia é
singularizada pela robustez e pela cabeça larga e achatada — aliás, o nome
científico do pirarara é Phactocephalus hemiliopterus37. A máscara Yuma tem a

36 O ideal realista na arte wauja é mais bem elaborado nos desenhos de sonhos e transes
xamânicos (Barcelos Neto, 2001, 2002), um terreno onde a figuração, condição fundamental das
expressões realistas, viceja com certa liberdade criativa.
37 Segundo a descrição de Ferreira (1975: 1092) trata-se de um peixe amazônico com o “dorso
escuro, uma faixa amarela ao longo da linha lateral, com duas séries de pigmentos amarelo-ouro;
cabeça e parte anterior do dorso revestidas de uma couraça amarela, e comprimento de até
1,25m. A gordura costuma(va) ser dada (pelos Tupinambá) aos papagaios a fim de provocar a
mudança do verde das penas em amarelo”. É curioso esse interesse em tornar uma ave verde em
amarelo oferecendo como alimento um peixe de cor predominantemente amarela. Embora esta
183

boca muito larga e “bigodes” longos, que são meticulosamente feitos de cordão
(figura 8). Sua semelhança com o peixe pirarara é inequívoca. A pintura desse
exemplar também evidencia um interesse realista: preto no dorso e amarelo nas
regiões ventral e laterais. Porém, o que faz essa máscara ser invariavelmente
reconhecida como Yuma é a sua morfologia e não a sua pintura. Sustento essa
afirmação a partir do estudo de mais seis exemplares38 dessa máscara, cujas
pinturas foram feitas com os motivos geométricos kulupienê (vide quadro 12) e
ogana paakai. A pintura pode variar, mas a forma de Yuma é sempre fixa.
As máscaras de tipo Atujuwá, Atujuwátãi, Yakui, Kuwahãhalu e
Sapukuyawá também têm formas fixas, o que variam são as pinturas e algumas
pequenas marcas e adornos (vide exemplos nas figuras 11 e 12). Contudo, no
caso destas, na medida em que as pinturas variam as identidades das máscaras
também variam, o que já não é o caso de Yuma, Kapulu e demais máscaras,
cujas identidades são definidas pela morfologia.
A respeito das máscaras wauja, Ireland observa que

The kwãhãhãlu spirit is said not to be associated with any particular


forest animal, fish, ceremonial object, or other entity in the tangible
world. However, precisely because sapukuyawá and kwãhãhãlu are
not clearly linked to specific entities in the natural world, they seem
to have a more protean ceremonial character than those spirits that
are “animal masters” (Ireland, 1985: 6).

De fato, nem Kuwahãhalu nem Sapukuyawá são relacionados a “nenhum


animal em particular”. Por outro lado, elas não são tipos “espíritos”, como afirma
Ireland. Schultz (1966), também por não se atentar aos nomes específicos dos
Sapukuyawá, sugeriu que elas fossem espíritos da floresta. Máscaras do tipo
Kuwahãhalu e Sapukuyawá são “roupas” genéricas que, como apontei acima,
podem ser vestidas por várias Espécies e Fenômenos Naturais. Ou seja, são os
“espíritos” (yerupoho) que vestem as máscaras e não as máscaras que são tipos
de “espíritos”. Aquelas facultam capacidades/poderes aos “espíritos” (yerupoho),
por isso eles as usam; elas são, como afirmei no capítulo 2, instrumentos
(voltaremos a esta questão no próximo capítulo). Nem Ireland nem Schultz
observaram que máscaras como Kuwahãhalu e Sapukuyawá possuem nomes

prática fosse tupinambá e não wauja, não é ela em si que nos interessa, mas a idéia de variação
cromática como um dispositivo para as transformações.
PRANCHA 6

r 1

Figura 13 - Sapukuyawá Yanapá macho, Figura 14 - Sapukuyawá Yanapá macho,


Peixe da família dos Caracídeos, Peixe da família dos Caracídeos,
autor: Kamo, 2000. autor: Kamo, 2000.

&
5)
r ♦ 1

J
£3

Figura 15 - Sapukuyawá Atojo fêmea, Figura 16 - Sapukuyawá Yuluma macho,


Peixe da família dos Caracídeos, Peixe Piranha, autor: Kamo, 2000.
autor: Kamo, 2000.
PRANCHA 7

Figura 17 - Sapukuyawá Kulapagato fêmea, Figura 18- Sapukuyawá Uluwi fêmea,


Peixe Lambari, autor: Kamo, 2000. Peixe Cará, autor: Kamo, 2000.

Figura 19 - Kajutukalu onai, “roupa” do Figura 20 - Kajutukalu onai, “roupa” do


Sapo-Cururu macho, autor: Kamo, 2000. Sapo-Cururu fêmea, autor: Kamo, 2000.
184

específicos (e.g. Sapukuyawâ Muluta, ou seja, Peixe Cascudo vestido de


Sapukuyawâ, figura 12). Em um ritual, o que revela que Sapukuyawâ está sendo
vestido por uma Onça (figura 11) ou por um Jacaré (figura 12), são primeiramente
as suas pinturas e marcas/acessórios e, secundariamente, as suas canções auto-
enunciativas .
No Apotalatuapai (“Ensaio”), quando Atujuwá, Atujuwátãi, Yakui,
Kuwahãhalu e Sapukuyawâ dançam, sem as pinturas, elas formam um conjunto
indistinto de Espécies e Fenômenos Naturais. O que não ocorre com os outros
tipos de máscaras, que, mesmo sem pinturas, podem ser identificadas em função
da sua morfologia. No primeiro grupo, as identidades são graficamente
construídas, e no segundo, morfologicamente “dadas”.

5.5
Esquemas de antropomorfia e monstruosidade

A atribuição de identidades aos apapaatai nos grandes rituais de máscaras


evidencia tanto o emprego de convenções visuais, assentadas nos aspectos
morfológicos, quanto uma “aversão” às mesmas, caracterizada pela
multiplicidade e instabilidade de respostas que o grafismo pode dar à atribuição
de identidades. Porém, ainda que não opere ao modo de convenções, o grafismo
emprega, pelo menos, um tipo de esquema visual40.
As figuras 13, 14, 15, 16, 17 e 18 são máscaras Sapukuyawâ que estão
vestidas por diferentes espécies de Peixes, algumas violentas e grandes, outras
pequenas e imprevisíveis em suas ações. Identificar cada espécie, a partir dos
motivos gráficos que “ornamentam” sua máscara, é uma tarefa impossível.
Excetuando o yakapá, que as viu em seus sonhos e transes, nenhum wauja é
capaz de distinguir a identidade de cada um desses seis Peixes vestidos de

38 Dois da coleção wauja de Harald Schultz do MAE/USP, dois da coleção que formei para o
MAE/UFBA em 1998 e mais dois da coleção do Museu Nacional de Etnologia formada em 2000.
39 As máscaras só cantam no dia seguinte ao recebimento das pinturas, quando elas saem
individualmente da kuwakuho para dançar e receber alimentos. Vide descrição das canções e
danças na seção 5.6.
40 Segundo Clegg (1977) um esquema é um modelo mental que opera uma redução de uma idéia
complexa em um simples motivo, em geral abstrato-geométrico. Os esquemas podem ter
naturezas “conceituais” e/ou “representativas”.
185

Sapukuyawá, ainda que a pintura de cada um seja diferente e tenha o propósito


de diferenciar os Peixes entre si. As possibilidades combinatórias (e
consequentemente de mudança de identidade) dos motivos gráficos é uma
resposta visual à capacidade de cada yerupoho se transformar em apapaatai ou,
neste caso específico, de vestir uma “roupa”. Portanto, é preciso haver uma
amplitude de combinações de motivos gráficos que permita singularizar cada
espécie, ainda que a forma da “roupa” seja a mesma. Vejamos passo a passo os
processos de especiação das máscaras.
São três os princípios relacionais das máscaras com as Espécies
“naturais”:
1. o tipo de “roupa” varia e a mesma Espécie se mantém;
2. os motivos gráficos variam, o mesmo tipo de “roupa” se mantém, e a
Espécie varia;
3. os motivos gráficos variam, e o mesmo tipo de “roupa” e a mesma
Espécie se mantém.
Um ou outro princípio relaciona-se ao gênero: mantém-se o mesmo tipo
roupa”, invertem-se as cores e varia-se o gênero da Espécie.
tf.

O princípio “1” pode ser exemplificado quando a espécie Onça-Pintada


(Yanumaka Kapalá) se apresenta ritualmente vestida de Sapukuyawá ou
Atujuwá. Neste caso cabe ao grafismo o papel de singularizar a Onça-Pintada
com o emprego de certos motivos gráficos, como o pala-palala (constituído de
círculos concêntricos dispostos aleatoriamente).
O segundo princípio pode ser observado, por exemplo, nas figuras 11, 12,
15, 16, 17 e 18.
O terceiro princípio, exemplificado pelas figuras 13 e 14, mostra que o
convencionalismo realmente não é uma característica saliente do grafismo wauja.
Essas figuras mostram que duas máscaras de mesmo tipo, pintadas com motivos
diferentes, podem ser a mesma personagem.
O princípio que permite a diferenciação de gênero opera, em geral, por
uma inversão das disposições das cores nas máscaras, portanto, o que é preto
no macho torna-se vermelho na fêmea e assim sucessivamente até que uma
máscara seja a imagem invertida da outra (figuras 19 e 20).
Diante desses exemplos, é possível concluir que os motivos gráficos não
186

convencionam identidades e que há uma tensão entre os planos plástico (da


morfologia) e gráfico (dos motivos). Um aspecto fundamental dessa tensão reside
nas esquematizações, as quais permitem ver a tensão a partir do ponto em que
ela articula significados comuns entre as diferenças dos dois planos.
A forma visual de dois arcos em elipse dispostos lateralmente, com as
aberturas voltadas para o exterior, que invariavelmente delineia o corpo das
máscaras Sapukuyawá é, ao mesmo tempo, um motivo gráfico e um esquema.

Figura 21 - Duas versões do motivo


yetulaga naku: esquema de antropomorfia.

Como motivo gráfico, a forma visual de arcos em elipse é denominada


yetulaga naku (“campo do jogo da bola”)41 e, como esquema, é alusiva à
antropomorfia. Neste caso, os arcos configuram o tronco dos seres
antropomorfos.

Figura 22 - Ser antropomorfo desenhado com o motivo yetulaga


naku. Detalhe do fundo externo de uma panela nukãitsãin
mehinako. Autor desconhecido. Coleção Maria Heloísa Fénelon
Costa, 1970. Museu Nacional/UFRJ.

Este esquema de antropomorfia surge em uma série de artefatos


xinguanos, desde pequenos objetos do cotidiano, como as pás de virar beiju até
as grandes sepulturas para os amunaw.
Os dados e as análises sobre a arte xinguana apresentados por Steinen
187

(1942 [1894]) e Krause (1960) foram muito importantes para a síntese estilística
que procuro desenvolver. Esses autores fizeram compilações cuidadosas e
únicas em sua riqueza de detalhes. Karl von den Steinen42 não fez trabalho de
campo sistemático no Alto Xingu — como posteriormente ele chegou a realizar
entre os marquesanos (Steinen, 1925)—, todavia ele formou uma excepcional
coleção xinguana (Hartmann, 1986a, 1986b, 1993), e a documentou com o
máximo possível de informações, o que lhe permitiu mais tarde consolidar
questões em gabinete.
Ao longo da década de 1930 e início da década de 1940, Fritz Krause
(1960) empreendeu um estudo sobre o material oitocentista xinguano com vistas
a sintetizar problemas etnológicos específicos, dentre eles a relação entre as
máscaras e o grafismo. Krause desenvolve o seu artigo a partir de três tipos de
máscaras encontradas nas coleções e nas referências de campo de Karl e
Wilhelm von den Steinen, Herrmann Meyer e Max Schmidt, são elas: kualóhe
(Kuwahãhalu, em wauja), nuturua (Atujuwá, em wauja) e monotsi (Yutisipiku, em
wauja).
Avancemos o assunto a partir das Atujuwá — grandes máscaras
circulares, protagonistas do ritual Apapaatai lyãu de julho de 2000, cuja dimensão
média em diâmetro alcança 2 metros. Eis a primeira referência feita a Atujuwá na
literatura xinguana:

A cerca de um quilómetro da aldeia [mehinako], num ponto em que


a floresta se tornava menos densa, havia, traçada na areia, uma
grande figura circular [figura 23 abaixo]. Na parte voltada para a
aldeia, via-se, desenhada internamente, uma figura de difícil
interpretação. Tumayaua [um dos Bakairi que acompanhavam von
den Steinen] denominava essa figura de ‘atuluá’, informando-me de
que nesse local os índios costumam caminhar em círculo, cantando
kaãã... De fato, muitos rastros de pés a rodeavam (Steinen, 1894,
apud Krause, 1960: 111).

41 O jogo da bola era um ritual inter-aldeão, provavelmente extinto no final do século XIX. O
desenho do campo no solo era precisamente configurado por esse motivo, assim como é hoje a
sepultura feita durante o ciclo ritual do Kaumai (Kwarip).
42 Este etnólogo alemão não foi apenas um dos pioneiros da etnologia indígena, mas também um
dos pioneiros do estudo antropológico da arte. Arte e cultura material eram temas fundamentais
para as discussões de sua época. Franz Boas (1955 [1927]) abre a sua análise sobre o
simbolismo na arte primitiva a partir dos desenhos geométricos xinguanos descritos por Steinen
(1894). A grande preocupação teórica desses dois etnólogos alemães concernia à relação entre
forma e significado e ao problema da representação.
188

Figura 23 - Desenho aturuá feito na areia, nas


imediações da aldeia mehinako em 1887, e reproduzido
por Karl von den Steinen (1894). Os Wauja chamam
esse desenho de Atujuwá opaka (rosto de Atujuwá).

Mais adiante, Steinen retoma a inquietação teórica causada por esse


desenho:

Com especial frequência copiam-se [nas grandes panelas de tipo


kamalupo] as linhas de tatuagem dos Mehinakú, linhas que
acompanham o bordo interno da omoplata e têm forma de ângulos
ou de arcos. A prancha 15, com grandes potes, apresenta, no fundo
do pote, à esquerda em cima, êste motivo [yetulaga naku] com
feição já desenvolvida; aí os arcos não são só duplos, como
também já acontece às vezes na própria tatuagem, mas triplos,
havendo, além disso, pontinhos entre os dois internos, e linhas em
ziguezague (cobras) entre os externos. Arcos menores, como as
mulheres os têm, tatuados nos braços, encontram-se acima do
campo central totalmente coberto de tinta (Steinen, 1894, apud
Krause, 1960:113).

O que inquietava Steinen, e também Krause, era a aparição simultânea


desse motivo de linhas elípticas em tantos suportes diferentes. O primeiro resolve
o dilema reduzindo o desenho à tatuagem, que para ele seria a forma primeva da
arte gráfica no Alto Xingu (um reflexo de suas preocupações evolucionistas).
Krause, porém, não se convence com a interpretação Steinen:

não temos nenhuma explicação razoável para a aplicação de


padrões de tatuagem nos fundos das panelas! É provável, ao
contrário, que represente a imagem de uma máscara nuturua
(Atujuwá). Essa explicação é sugerida não somente pela
semelhança entre o desenho na areia, dos Mehinakú, e o feitio da
parte central da máscara, como também pela interpretação dessa
pintura de fundo de panela dada, a Meyer, independente e
coincidentemente por Guikuru e Kalapalu. Uns e outros
designavam-na com o mesmo nome usado para o desenho na
189

areia: — guikuru: atoroa, kalapalu: turua vutóxo (Krause, 1960: 113).

É curioso que um outro nome para o motivo yetulaga naku, Atujuwá opaka
(rosto de Atujuwá), seja exatamente essa parte central da máscara Atujuwá
(nuturua) à qual Krause faz referência. Krause percebeu que o problema não
estava em reduzir o motivo a este ou àquele suporte. A grande dificuldade de
Krause era encontrar um princípio conceituai que explicasse a distribuição do
mesmo motivo sobre suportes aparentemente tão diferentes e que relacionasse
coerentemente todos esses objetos e o corpo humano. Herrmann Meyer parece
ter chegado mais perto de entender o problema:

A área da máscara [Kuwahãhalu] não abrange simplesmente a face,


mas o corpo inteiro, e, por meio de determinadas linhas, o artista
procura representar adequadamente algumas das partes do corpo
que lhe parecem mais importantes. Mas nessa operação confunde
duas idéias: a de reproduzir partes do corpo humano e a de
representar símbolos animais que evidenciam a finalidade especial
da máscara. Pedi que me explicassem o nome de tôdas as linhas e
áreas que aparecem na maioria das máscaras, mas até agora não
consegui a interpretação de todas essas palavras. É difícil decidir
até que ponto as partes componentes da máscara procuram
representar o corpo humano ou um determinado animal (Meyer
apud Krause, 1960:116, grifos meus).

Meyer nota com precisão o aspecto “híbrido” próprio das máscaras


xinguanas, o qual cria essa aparente “confusão” entre o humano e o animal. Na
verdade, as máscaras, sejam as Kuwahãhalu, as Atujuwá ou qualquer outra, são
as duas coisas, elas são os “objetos” próprios do tempo em que os yerupoho
começaram a sua especiação. A grande dificuldade analítica de Meyer era lidar
com esse aspecto “híbrido”, daí o seu esforço (inútil) em tentar separar as “partes
componentes da máscara” segundo as categorias “humano” e “animal”. Se a
ontologia Wauja nos diz que a condição original dos yerupoho é a humanidade,
portanto, é razoável supor que a condição corporal dos yerupoho é a
antropomorfia. Porém, que relação têm os yerupoho com objetos como panelas,
máscaras, sepulturas ou pás de virar beiju? Minha hipótese é que para os Wauja
a idéia de antropomorfia tem um sentido sobretudo visual: é por meio de uma
esquematização, expressa por determinados motivos gráficos ou formas
plásticas, que yerupoho/apapaatai, objetos e pessoas adquirem uma
continuidade que é pensada como antropomorfia. Ou seja, o conceito de
190

antropomorfia seria dependente da sua possibilidade de ser visualmente


sintetizado. Ainda teremos a oportunidade de analisar as projeções de
intencionalidade que ligam artefatos e pessoas nos rituais de apapaatai.
O antropomorfismo e as suas questões conexas, tal como analisadas por
Boyer (1996) e Gell (1998), oferecem uma chave para abordar o aparente
paradoxo ontológico que os objetos wauja colocam. É bastante complicado dizer
que as máscaras são objetos, talvez de um ponto de vista estritamente
museológico e mercadológico elas o sejam. Estrutura anatômica e instrumental,
as máscaras são também um problema da alma. Elas podem inclusive ser uma
emanação da alma, como afirmei no capítulo 2, ao discutir o processo de
fragmentação/multiplicação (efeito fractal) da alma dos yerupoho. Mas por que a
estrutura anatômica das máscaras (e das flautas também) é majoritariamente
antropomorfa? Lévi-Strauss (1989) sugere o corpo humano como sendo um dos
principais “símbolos naturais” envolvidos na ordenação do pensamento sobre a
natureza dos seres e objetos. Um dos modos clássicos dessa ordenação ocorre
por meio da projeção da anatomia/fisiologia humana sobre as coisas43.
Continuemos com análise de como a morfologia de alguns artefatos
atualiza a idéia de síntese mencionada acima.
As máscaras Sapukuyawá têm como delineamento formal o motivo
yetulaga naku. As máscaras Atujuwá têm o mesmo motivo circunscrito por um
círculo (cf. figura 23). Juntamente com as máscaras, há pelo menos dois
artefatos em que os arcos em elipse invariavelmente surgem nas suas formas
construtiva e/ou ornamental; são eles a pá de virar beiju e a panela tipo
kamalupo. A pá de beiju é, na sua própria materialização como artefato, um arco
elíptico fechado por uma linha reta.

43 Ainda assim resta a pergunta: por que o antropomorfismo é “natural”? Segundo Boyer (1996),
essa questão pode ser resolvida “by means of a cognitive theory of cultural representations, in
which representations are likely to become stable and widespread if they have both salience and
inferential potential. Anthropomorphic projections have inferencial potencial because they activate
a powerful modular capacity for mentalistic accounts of behaviour. They are salient because they
are counter-intuitive, and therefore attention-grabbing” (1996: 83).
191

Figura 24 - Pá de beiju wauja. Coleção


Harald Schultz, 1964. MAE/USP.

O curioso é que essa forma é ainda enfatizada na ornamentação gráfica


da pá de beiju, como se aquela quisesse multiplicar o referido arco. Na pá da
figura 24, por exemplo, os arcos são dispostos nas laterais, emoldurando o
motivo central.
Nas panelas kamalupo, essa forma materializa-se no artefato, delineando
o seu perfil lateral (figuras 61, 62 e 63), como no caso das máscaras
Sapukuyawá. Os arcos em elipse também surgem como motivo central na
ornamentação gráfica do fundo externo das kamalupo, porém com a
denominação alternativa de atujuwá opaka (rosto da máscara Atujuwá).
A esquematização da antropomorfia por meio das elipses não é aqui a
redução/simplificação de um motivo mais complexo, como ocorre nas artes de
muitos povos da Oceania (Ucko, ed. 1977). A complexidade do esquematismo
wauja está em sua capacidade de criar relações conceituais entre distintos
artefatos e seres. O esquema sugere uma “essência humana” que a maioria dos
seres e coisas do mundo compartilham, todavia essa essência se manifesta
como aparência, e a arte é o lugar dessa manifestação. É na aparência, ou seja,
na definição formal de uma “roupa” ou flauta que reside o sentido perspectivista
da arte wauja. O perspectivismo é capaz de associar cada aparência (corpo,
“roupa”, artefato) a um ponto de vista singular e de, ao mesmo tempo,
depreender de um ponto de vista externo e diferente uma essência comum. As
máscaras e flautas são uma manifestação sui generis do
animismo/perspectivismo na arte, carregando em sua própria forma a
dualidade/mistura entre o humano e o não-humano e a variação dos pontos de
vista. Elas articulam a “essência comum” de humanidade com a aparência
singular de cada apapaatai. Uma consequência disso é que elas permitem
PRANCHA 8

Figura 25 - Kaapi (Coati), Figura 26 - Pássaro Kulukulusi,


autor: Kamo, 2000. autor: Kamo, 2000.

Figura 27 - Awaulu (Raposa), Figura 28 - Kuhupoja-kumã (Harpia),


autor: Kamo, 2000 autor: Kamo, 2000.

Figura 29 - Cobra Tsepu,


Autor: Kamo, 2000.

Figura 30 - Yupe (Tamanduá),


Autor: Kamo, 2000.
192

projeções das intenções e desejos dos apapaatai/yerupoho sobre os kawoká-


mona. No contexto dessas projeções, as máscaras e as flautas passam a ter uma
existência homóloga àquela que seus “donos” têm no mundo “sobrenatural”. Isso
nos faz voltar à questão que abordamos no capítulo 2 sobre a indissociação
formal entre alma (essência) e corpo (aparência). Não é o caso de justificar essa
análise por meio dos mitos wauja, que abundam de exemplos de objetos com
consciência própria e de pessoas que assumiram a forma de objetos (Barcelos
Neto, 1999 e 2002). Vimos que em um conjunto de artefatos (máscara-panela-
pá de beiju) pode haver uma síntese formal, cujo conceito atravessa distintas
relações cosmológicas. Essa síntese, alcançada pelas elipses, é um traço
distintivo do estilo wauja.
Se ampliarmos nossos exemplos, veremos que a arte wauja produz outras
sínteses modelares por meio de esquemas lineares. Façamos uma passagem da
linha elíptica para a linha sinuosa, dessa vez vista em uma sequência de
apapaatai desenhados pelo yakapá Kamo, a partir dos seus sonhos.
Em setembro de 2000, Kamo realizou 56 desenhos sobre papel Canson
(tamanho 63 x 45 cm) com a técnica de pastel a óleo. Era a primeira vez que
Kamo se deparava com folhas dessas dimensões — em 1998 ele usou folhas
com a metade desse tamanho — e com aqueles lápis de cores vibrantes e
texturas macias. Quarenta e nove era a oferta de cores. Logo no primeiro
desenho, Kamo percebeu que com os pastéis à óleo ele não conseguia obter os
mesmos resultados plásticos que ele obteve dois anos antes com os lápis
alemães Faber Castell que eu tinha levado para o campo. Kamo notou a
diferença entre os materiais, e procurou explorar o que eles tinham de melhor.
Com os lápis Faber Castell, que são muito mais finos e mais duros do que os
pastéis a óleo, Kamo conseguia criar detalhes e contrastes controlando a
espessura da linha (vide exemplos em Barcelos Neto, 2002; e figura 2). Isso não
podia ser feito com os pastéis a óleo, porém estes permitiam fazer desenhos com
uma agilidade muito maior. Assim, Kamo resolveu explorar as possibilidades de
movimento e amplitude da nova técnica e suporte.
Do início ao fim da sequência de desenhos, Kamo trouxe ao nosso
conhecimento dezenas de corpos monstruosos de apapaatai, lançando mão de
um mesmo esquema formal: uma linha sinuosa. As figuras 25, 26, 27, 28, 29 e
30, que retratam respectivamente um Coati, um Pássaro Kulukulusi (espécie não
193

identificada), uma Raposa, uma Harpia, uma Cobra Tsepu (espécie não
identificada) e um Tamanduá, são alguns desses desenhos.

Figura 31 - síntese da linha sinuosa usada para composição de


desenhos figurativos por Kamo: esquema de monstruosidade.

As exegeses do autor dizem tratar-se de desenhos realistas, retratos fiéis.


Ainda que eles expressem fidelidade, a mesma não deixa de ser esquemática,
não no sentido de uma representação, mas em um sentido puramente
morfológico. Os mais de cinquenta desenhos feitos por Kamo são sem dúvida um
exercício de figuração realista, mas são, sob o ponto de vista que nos interessa,
um exercício de síntese formal. Os desenhos não mostram como Kamo vê esses
corpos, mas como eles são. Os desenhos tratam do que vem a ser uma
possibilidade real de corpo monstruoso.
Na atualização desses corpos em papel, Kamo gerou um esquema, que
pode ser chamado de “representação esquemática”, mas que eu prefiro chamar
de síntese formal. Essa síntese, ao agrupar uma quantidade de seres muito
diversos entre si do ponto de vista anatômico, permite que esses mesmos seres
sejam contrastados com outras sínteses formais. Se no caso da antropomorfia
foram os arcos em elipse que estavam por trás de uma síntese formal, aqui é a
linha sinuosa que está por trás do conceito de monstruosidade, um conceito que
é sinteticamente pensado pela forma. Em contraste, ambas sínteses formais são
uma reflexão mais ampla sobre a corporalidade.
É claro que um outro desenhista wauja pode gerar uma outra síntese
formal para lidar com a idéia de corpo monstruoso, sugerindo assim um outro
esquema. Ajoukumã, um yakapá wauja, relaciona em seus desenhos a
monstruosidade à hipertrofia dos olhos e da boca, por exemplo.
O que veremos a seguir é uma continuação da análise iniciada acima
sobre as “identidades gráficas” das máscaras.
194

5.6
A PINTURA DAS MÁSCARAS: IDENTIDADES E TRANSFORMAÇÕES

O grafismo é uma chave interpretativa elementar do sistema de


transformações dos apapaatai. Sem as transformações em via dupla — humanos
virando apapaatai e apapaatai virando humanos —, não seria possível criar as
condições para as relações entre os dois mundos. Aliás, as transformações são
relações. O domínio mais profundo dessa arte é, conforme dizem os Wauja,
xamânico, pois são os yakapá que, em primeira mão, vêem os yerupoho vestidos
(transformados em apapaatai) e que, por meio das informações que seus
Tyakanãu lhes transmitem, descobrem as identidades dos apapaatai, questão
fundamental da articulação terapia/ritual. Não é nada evidente que uma máscara
Sapukuyawá com as pinturas do motivo temepianá, dispostas vertical e
contiguamente a uma listra vermelha (figura 13), seja um Peixe. Ora, temepianá é
o motivo da cobra jibóia, e listras vermelhas podem estar associadas a dezenas
de animais. Apesar de pouca coisa ser totalmente evidente, não se trata de uma
iconografia esotérica.
Ao longo do estudo em gabinete dos desenhos xamânicos e dos artefatos
da cultura material, passei a questionar o papel do repertório gráfico na atribuição
das identidades das máscaras. Haveria uma padronização das identidades pelo
grafismo? Como o sistema gráfico gera e usa os dispositivos visuais para as
transformações dos apapaatai?
Na temporada de 2002, levei para o campo seleções de fotografias e
desenhos de máscaras de vários tipos e épocas. Olhar e comentar desenhos e
fotografias alheias era um tipo de atividade que muito agradava os Wauja. As
perguntas sobre o material eram feitas individualmente ou em grupo. Se alguém
chegava e queria participar, o fórum estava aberto. Das conversas mais ou
menos informais sobre o material selecionado, tive, acima de tudo, surpresas
com o desconhecimento que muitos Wauja demonstravam ter sobre a identidade
de determinadas máscaras, sobretudo das Sapukuyawá, precisamente o tipo de
máscara que é, de longe, o mais comum e numeroso nos rituais. A maioria dos
colaboradores sabia os nomes dos motivos que compunham as pinturas das
máscaras, mas pouquíssimos entre eles sabiam precisar, a partir da composição
PRANCHA 9

Figura 32 - Sapukuyawá Arikamu eneja (Jacaré Figura 33 - Sapukuyawá Kuwa eneja (Peixe
macho). Desenho da máscara usada no Curimatá macho). Desenho da máscara usada
ritual Apapaatai lyãu de julho de 2000. no ritual Apapaatai lyãu de julho de 2000.

Figura 34 - Sapukuyawá Yusitsêtsi eneja (Peixe Figura 35 - Sapukuyawá Ukixá eneja (Peixe
Voador macho). Desenho da máscara usada Pacu Grande macho). Desenho da máscara
no ritual Apapaatai lyãu de fevereiro de 2002. usada no ritual Apapaatai lyãu de fevereiro de
2002.
PRANCHA 10

A
r
' - II
5-

Figura 36 - Sapukuyawá Yutapá eneja (Peixe Figura 37 - Sapukuyawá Muluta eneja (Peixe
Pacu macho). Desenho da máscara usada Cascudo macho). Desenho da máscara usada
no ritual Apapaatai lyãu de julho de 2000. no ritual Apapaatai lyãu de julho de 2000.

1
Figura 38 - Sapukuyawá Yuma eneja (Peixe
r
Figura 39 - Sapukuyawá Isejo eneja (Peixe
Pirarara macho). Desenho da máscara usada Cascudo Liso macho). Desenho da máscara
no ritual Apapaatai lyãu de fevereiro de 2002. usada no ritual Apapaatai lyãu de fevereiro de
2002.
PRANCHA 11

Figura 40 - Sapukuyawá Wajai eneja (Peixe Figura 41 - Sapukuyawá Puixa eneja (Peixe
Tambaqui macho). Desenho da máscara usada Matrinchã macho). Desenho da máscara
no ritual Apapaatai lyãu de julho de 2000. usada no ritual Apapaatai lyãu de julho de
2000.

Figura 42 - Sapukuyawá Ejekalu eneja (“Peixe Figura 43 - Sapukuyawá Ejekalu eneja (“Peixe
Preto” macho). Desenho da máscara usada Preto” macho). Desenho da máscara usada
no ritual Apapaatai lyãu de fevereiro de 2002. no ritual Apapaatai lyãu de fevereiro de 2002.
195

gráfica, a identidade da máscara. Supus que essa capacidade exigisse um


conhecimento profundo das personagens e que era algo aprendido depois de
longos anos de participação ativa no fazimento ritual dos apapaatai. Suposição
errada.
Quando se estuda um Apapaatai íyãu in situ, como fiz em julho de 2000, a
identidade das máscaras parece ser, a primeira vista, algo claramente
padronizado pelas pinturas e marcas (“sinais diacríticos”). Pensa-se que aquela
Sapukuyawá Kuwa (figura 33) tem aquela pintura e só aquela. Assim, tal pintura
é o que faz um Kuwa ser Kuwa. Ali, no meio da praça, enquanto Sapukuyawá
Kuwa dança com as demais máscaras, a sua identificação, pelos Wauja, é
inequívoca. Porém, passados dois anos, quando mostrei uma foto daquela
mesma Sapukuyawá Kuwa, ela já não foi mais identificada como Kuwa pelos
Wauja, que hesitavam em lhe atribuir uma identidade precisa. Simplesmente
tinham-na “esquecido” por completo. Então, quando lhes revelei que se tratava
de um Kuwa, receberam a revelação com indiferença. Situações semelhantes
repetiram-se ao longo de toda a temporada de 2002. Foi a partir daquela altura
que comecei a perceber que o regime de atribuição de identidades das máscaras
não pode ser questionado fora de sua performance e do conjunto ritual completo
em que elas estão inseridas.
Disse anteriormente que quando um yerupoho multiplica sua alma, cada
unidade resultante da multiplicação poderá vestir uma “roupa” (máscara) singular
feita exclusivamente para ela (vide capítulo 2). Se tomarmos a imaginação visual
dos apapaatai tal qual expressa pelos yakapá em seus desenhos (Barcelos Neto,
2002), teremos um repertório formal de “roupas” muito maior do que se observa
nos rituais. A possibilidade de “fazer” os apapaatai com lápis de cor e papel
permite expressar com eloquência as suas capacidades transformativas. Mostrei
também que os apapaatai, enquanto “roupas”, estabeleciam com os animais uma
relação de “distorção” formal por meio de uma superlativização,
compartilhamento ou redução anatômicos, tendo ainda o grafismo como signo
complementar da “distorção” e da “mistura’7“hibridização” (Barcelos Neto, 2002:
155). Assim, por exemplo, os grafismos de uma anta bebê e de um tucunaré
podem estar contemplados na máscara de um apapaatai qualquer, sem que esse
apapaatai seja necessariamente uma anta ou um tucunaré ou ambas as coisas.
As “roupas” revelam um esforço de combinar/alterar os elementos que se
196

encontram isolados na “natureza” ou separados conforme cada espécie animal.


“Roupas” não são, portanto, representações dos animais.
Os motivos que os Wauja denominam com nomes animais não são cópias
dos grafismos que lhes são peculiares, são sobretudo motivos, i.e. formas
estilizadas. Nas artes decorativas, a estilização pode evocar uma idéia de
representação, quiçá de “código visual” (Munn, 1973; Vidal, 1992). O caso wauja,
não inclina para nenhuma dessas direções.
O que aqui chamamos de grafismo ou sistema gráfico (yanaiki) é para os
Wauja um universo de expressões sem fronteiras cosmológicas muito claras. O
yanaiki (termo que também inclui as cores) surgiu no tempo em que os yerupoho
se lançaram a fazer suas “roupas”, e também no tempo em que o jovem Arakuni
transformou-se em um cobra monstruosa e gigantesca. Todo o sistema gráfico
wauja está estruturado a partir da combinação de cinco formas visuais: (1)
triângulos (retângulos e isósceles), (2) pontos, (3) círculos, (4) quadriláteros
(losangos, quadrados, retângulos e trapézios) e (5) linhas (retas e curvas). Estes
são os elementos gráficos mínimos dessa arte. Como em qualquer sistema
gráfico geométrico, são as combinações precisas dos elementos mínimos que
determinam a formação de um motivo. E os motivos, combinados segundo
disposições rítmicas e simétricas ou assimétricas, configuram um padrão gráfico.
O que singulariza um padrão é sobretudo o tipo de ritmo e (as)simetria
empregado e menos os motivos que o compõe. A quantidade de padrões num
determinado estilo artístico depende dos tipos de combinação entre ritmos e
simetrias (ou assimetrias) empregados. Esses tipos de combinação são a base
modelar do estilo e um dos aspectos formais mais complexos de uma arte gráfica
geométrica.
Os padrões (i.e. tipos de combinação de motivos) não têm nomes em
wauja, apenas os motivos. Todavia, os Wauja não deixam de enfatizar esse
aspecto da sua arte, aliás, de um modo bastante complicado, o que pode
confundir o(a) estudioso(a) em suas primeiras análises, dificultando a
identificação do motivo. Ao apreciar a obra, o indivíduo tem a sua percepção
involuntariamente presa à simetria e ao ritmo que estruturam o padrão44. A

44 Em uma análise de um desenho apotropaico celta, Gell (1998: 83-84) procura demonstrar como
padrões complexos de desenho são capazes de excercer agência: “Apotropaic art, which protects
an agent (whom we will take to be the artist, for the present) against the recipient (usually the
enemy in demonic rather than human form), is a prime instance of artistic agency, and hence a
topic of central concern in anthropology of art” (idem, 1998: 83). No sétimo capítulo analiso como
197

estrutura rítmica e simétrica escolhida tende a fixar um modo de composição


gráfica do motivo, associando-o a um padrão específico. Contudo, uma análise
mais detida logo perceberá que essa fixação é “ilusória”. O que torna o grafismo
wauja complexo é que múltiplos motivos podem ser desenhados segundo
variadas estruturas rítmico-simétricas. Isso se deve, em parte, à variedade de
suportes — planos retangulares e circulares, esféricos e cilíndricos.
Aprofundaremos oportunamente essas questões quando analisarmos a estética
wauja no capitulo 6.
O grafismo wauja utiliza um repertório de 40 a 45 motivos na
ornamentação da cultura material. Há ainda um repertório “flutuante” de
variações formais que é resgatado em situações de maior liberdade expressiva.
Além dos desenhos e cores inventados pelos yerupoho, existe um outro conjunto
de motivos gráficos — dentre o qual figura o motivo mais importante para os
Wauja, denominado kulupiene e difundido na literatura como merechu (Steinen,
1940) — que foi inventado pelo personagem mítico Arakuni*5. Apesar desse
extenso repertório, apenas 16 motivos gráficos são empregados com ampla
frequência, e dentre esses, o motivo kulupiene tem sido desenhado com altíssima
frequência sobre todos os tipos de suportes desde a primeira notícia histórica
sobre os xinguanos, em 1884 (Steinen, 1886). Segundo os Wauja, esses 16
motivos são “muito antigos”, 13 (ou 14, a depender da versão) deles foram
inventados pelo personagem mítico Arakuni para recobrir a sua “roupa”-cobra
(vide quadro 12 supra).
Quando mencionei que um dos objetivos desta tese era uma reflexão
sobre o lugar da arte no clássico esquema amazônico das relações entre
humanos e não-humanos marcadas pela predação e pela produção, tinha em
mente que só o poderia fazer se fosse capaz de entender o regime de atribuição
de identidades aos artefatos. Ao nos depararmos com objetos de arte, cuja
sobrevivência ao tempo se impõe, como no caso dos objetos recolhidos aos
museus, há sempre a insistente pergunta: mas afinal, o que é (ou era) esse
objeto? Quando se trata de um objeto ritual, como máscaras, a questão torna-se
bem mais complexa, pois não se trata apenas de um “objeto”, mas de uma

padrões gráficos complexos exercem, em contextos rituais, agência sobre os apapaatai e os


humanos. No caso wauja, os desenhos complexos não protegem contra seres perigosos, mas os
seduzem e os alegram, embora a estratégia seja a mesma.
45 Vide Barcelos Neto (2002) para uma versão completa desse mito.
198

personagem, o que coloca o problema da identidade numa posição


absolutamente central.
A identidade dos objetos de arte está geralmente relacionada a elementos
físico-formais, o que leva o pesquisador a refletir sobre as questões de referente-
referência e forma-conteúdo. Será que em mundos altamente transformacionais
(Rivière, 1995; Gallois, 2003) como os ameríndios, as artes teriam alguma
ressonância sobre essas questões? Ou elas se voltariam mais para a
inconstância e para as identidades ambíguas e múltiplas? Será que devemos
achar que toda máscara wauja pintada com motivos ictiomorfos sempre será uma
(“representação” de) ave ictiófaga ou (de) um peixe?
Embora as formas visuais sejam padronizadas de um ponto de vista
estilístico, elas não configuram um “código” fundamental, não veiculando,
portanto, identidades em si. Um motivo de círculos (weri-weri) concêntricos
pintado numa máscara pode identificá-la como Onça, mas essa relação,
conforme veremos, é arbitrária e contextuai. Na arte gráfica wauja uma forma
específica não implica um conteúdo invariável. O valor de um conteúdo tem uma
duração, no máximo, “biográfica”: é o tempo de um eixo relacional
doente/xamã/performer que culmina com o fazimento ritual dos artefatos em
grupo.
As análises do material que recolhi em campo e dos depoimentos dos
Wauja atestam que a “decifração” da identidade de uma máscara não passa pelo
aprendizado de uma “linguagem de códigos visuais”, uma vez que o grafismo
wauja não funciona ao modo de uma “gramática”. A “decifração” está ancorada
na performance xamânica. Do ponto de vista êmico, a pintura das personagens
rituais vale-se antes das capacidades performáticas dos xamãs do que de
pressupostos canónicos de produção e recepção. Portanto, são as
interpretações/traduções xamânicas que constroem as “imagens mutantes” que
são as pinturas das máscaras. Essa pintura não está abrangida por um campo de
conhecimentos esotéricos ou de habilidades específicas, a pintura não é uma
arte difícil enquanto técnica. Os motivos gráficos empregados na cultura material
são conhecidos por todos os Wauja adultos, assim como as técnicas de desenho.
O que interessa aos Wauja não são os motivos em si, mas como eles se revelam
a partir da relação doença-cura-ritual. O grafismo, enquanto marcador de
identidades, está profundamente ligado a um processo criativo no interior do
199

mundo dos apapaatai e que é revelado pela experiência xamânica.


No processo de atribuição de identidades às máscaras rituais pela pintura,
podem ocorrer muitíssimas variações formais sem que estas sejam tomadas
como contraditórias, pois a explicação é sempre a mesma: a pintura é resultado
do que o yakapá viu. Ou melhor, a pintura é para aquele momento, e para agir
terapeuticamente. A possibilidade de variação é tão ampla quanto a capacidade
criativa dos apapaatai e do poder visionário-divinatório dos yakapá, que, aliás, só
fazem mostrar quanto o mundo dos apapaatai é inconstante.
Como disse na seção anterior, as máscaras passam por dois processos
técnicos que formalizam a sua identidade. O primeiro é a feitura da sua forma
básica (retangular, circular, esférica etc.), o segundo é a aplicação de marcas e
pinturas. Para máscaras como Yuma, Kapulu e Apasa o primeiro processo já é
suficiente para determinar as suas respectivas identidades. Entretanto, para
máscaras como Sapukuyawá, Atujuwá e Kawahãhalu é o segundo processo que
é imprescindível. Como veremos a seguir, os wauja marcam ambos processos,
de um modo bastante explícito, na performance ritual do Apapaatai Tyãu.
Sapukuyawá é uma máscara retangular feita com a técnica de trançado de
fibra de buriti. A trama, bastante fechada, resulta em uma superfície ideal para a
aplicação dos grafismos. A parte superior da otowonaT é presa a uma vara de
madeira muito reta e cilíndrica de aproximadamente 100 cm de comprimento, em
cujas extremidades pendem fios de algodão que têm, em suas pontas inferiores,
um pequeno pompom feito de fios de algodão. Abaixo da otowonaT estende-se o
puhutapa, uma espécie de “cauda” que cobre os ombros e parte do abdome de
quem veste a máscara. Um par de calças e mangas, também feitas de fibra de
buriti, completam a “roupa”. Sapukuyawá é uma máscara que consegue
expressar imenso equilíbrio formal. A vara com cordões e pompons atados que
atravessa horizontalmente a otowonaT cria um enquadramento retangular que
acentua e equilibra a verticalidade da “roupa”, tornando-a uma peça sui generís.
Quando alguém veste uma “roupa” é óbvio que o seu corpo lhe conferirá volume,
mas a idéia da “roupa” é propor uma outra anatomia. Assim, quem vestir Apasa
apresentará uma cabeça três vezes aumentada, ou quem vestir Yuma
apresentará uma cabeça achatada e alongada. As máscaras apresentam outras
possibilidades anatômicas, nem humanas, nem animais, mas apapaatai.
Na pintura das Sapukuyawá empregam-se três tipos de pigmentos: resinas
200

vegetais misturadas com fuligem, que dão a cor preta; urucum, que dá a cor
vermelha; e raiz de urucum, que dá a cor amarela. Sapukuyawá tem duas faces
laterais planas que são igualmente pintadas. Na verdade, trata-se de um único
motivo que se estende de uma face à outra, entretanto ele é melhor percebido
quando a máscara está vestida.
A pintura das Sapukuyawá é um excelente exemplo para se analisar o
sistema de transformações que relaciona forma gráfica e identidade. A sua
pintura segue dois padrões básicos que consistem em seccionar ou não o campo
plástico. São três os tipos de seccionamento: transversal, vertical e horizontal,
sendo o primeiro o mais recorrente. As Sapukuyawá Arikamu (figura 32), Kuwa
(figura 33), Yusitsétsi (figura 34) e Ukixá (figura 35) têm como motivo gráfico uma
faixa preta que secciona transversalmente o espaço plástico em duas partes. As
Sapukuyawá Yutapá (figura 36) e Muluta (figura 37) têm o mesmo motivo de
secção transversal, porém bicolor (preto e amarelo).
Listar as características morfológicas das espécies animais, verificar como
elas se manifestam nas máscaras e depois deduzir uma identidade Animal é ir
em direção contrária ao pensamento e a prática artísticas wauja, é supor, de
partida, que os animais são o modelo para a criação arte gráfica e das
personagens rituais. Se seguirmos a trilha dos mitos, veremos que os animais
são tanto arte quanto as máscaras, pois ambos são coisas fabricadas a partir de
elementos formais que os Wauja reconhecem como ogana (desenho) e
opotalapitsi (imagem). Máscaras (“roupas”) e animais podem ser vistos como
transformações/variações uns dos outros, e, neste caso, dizer o que precede,
como modelo, é analiticamente pouco útil. O impulso de transformações ocorrido
com o surgimento do astro solar explica a criação da maioria dos animais pelos
yerupoho, mas há animais que Kamo e Kejo criaram, e outros que ninguém sabe
exatamente como apareceram. Portanto não há o jacaré, o tucunaré, o urubu etc.
O que há são múltiplas origens de muitos dos animais conhecidos pelos Wauja e
isso implica igualmente nas múltiplas identidades dos animais. Se um
determinado macaco-prego for o filho de Alawiru46, ele será a caça ideal, pois não
adoecerá os humanos, mas se a presa macaco-prego for uma “roupa” de
yerupoho ou um yerupoho transformado em macaco-prego, os filhos pequenos

46 Lembro o leitor do mito em que uma mãe humana abandona, no alto rio Batovi, o seu filho que
estava se transformando em macaco. A mãe, Alawiru, pede que ele seja um macaco bonzinho,
que não faça mal aos humanos.
201

do caçador correrão risco de adoecer.


O que se pode depreender disso é que os aspectos anatômicos e
morfológicos dos animais não determinam a natureza do animal. Acima da
aparência, o que mais importa é saber que tipo de gente é aquele animal. Como
demonstrei na seção anterior, aparências distintas podem ocultar pessoas (i.e.
yerupoho) iguais (ou pelo menos semelhantes), por outro lado uma mesma
aparência pode ocultar pessoas diferentes. São para esses modos de relacionar
aparência e essência que os rituais de máscaras e aerofones se voltam.
Muluta (peixe cascudo) é um peixe todo preto e pequeno (21 cm em
média), porém com a cabeça e a boca grandes, desproporcionais ao corpo,
assim como o peixe pirarara (yuma). Se a espécie muluta fosse um modelo para
a representação, a máscara Sapukuyawá Muluta (figura 37) deveria, no mínimo,
ser totalmente preta, ou então ter uma forma parecida com a da máscara Yuma
(figuras 8 e 9), cuja cabeça é achatada e a boca larga. Mas o exemplar de Muluta
no Apapaatai íyãu de Itsautaku foi feito na forma de Sapukuyawá, com uma
metade da pintura em preto e a outra em amarelo, e com marcas (pequenos
detalhes decorativos) em vermelho, características formais que não podem ser
elevadas ao estatuto de referências. A máscara Sapukuyawá Ejekalu (figura 37),
que aliás é um “peixe preto” (espécie não identificada), foi inteiramente pintada
em preto. O que a análise a seguir mostra é que essas mesmas identidades
formais podem ser invertidas. Ou seja, Ejekalu, como máscara, poderia ser
Muluta e vice-versa, pois assim como ambos são pretos, ambos também podem
se apresentar como não-pretos. Se as posições formais são intercambiáveis, a
forma tem, portanto, a identidade que se lhe atribui ao momento da fabriação de
cada máscara. O problema que as máscaras colocam é que as diferenças entre
as identidades não são necessariamente fixas. Vejamos estas questões a partir
de um repertório mais extenso de exemplos.
Para efeitos de demonstração analítica, denomino o motivo mono­
cromático47 de secção transversal de motivo gráfico X e o bicromático de motivo
gráfico Y. Conforme a amostra apresentada o motivo gráfico X foi empregado em
quatro Sapukuyawá:

47 Os motivos monocromáticos não têm, tal como os motivos de Arakuni (quadro 9), nomes
específicos. Eles são apenas chamados de ejetaku (“campo preto”), mohãjataku (“campo
vermelho”), kisuátaku (“campo branco”), weruiyátaku (“campo amarelo”).
202

Arikamu, doravante identidade A (figura 32),


Kuwa, doravante identidade B (figura 33),
Yusitsêtsi, doravante identidade C (figura 34),
Ukixá, doravante identidade D (figura 35);

e o motivo gráfico Y, também em quatro:

Yutapá, doravante identidade E (figura 36),


Muluta, doravante identidade F (figura 37),
Yuma, doravante identidade G (figura 38),
Isejo, doravante identidade H (figura 39).

Observamos, portanto, a mesma base motívica determina diferentes


identidades, o que resulta no seguinte esquema:

Motivo gráfico X identidade A (figura 32)


Motivo gráfico X -> identidade B (figura 33)
Motivo gráfico X -> identidade C (figura 34)
Motivo gráfico X -> identidade D (figura 35)
Motivo gráfico Y -> identidade E (figura 36)
Motivo gráfico Y -> identidade F (figura 37)
Motivo gráfico Y -> identidade G (figura 38)
Motivo gráfico Y identidade H (figura 39)

Na maioria dos casos, são pequenos detalhes ornamentais (marcas) que


fazem essas máscaras se diferenciarem umas das outras. Yuma, por exemplo,
tem apêndices (doravante marca visual X) a imitar barbas/nadadeiras, que é o
que basicamente a diferencia das outras máscaras de motivo gráfico Y. Marcas
“menores”, como a cor dos pompons e das línguas, também variam muito, sendo
igualmente importantes. Aqui, elas também estão convencionadas como marca
visual X.
Um outro meio recorrente de diferenciação é a inserção de uma forma
figurativa (doravante marca visual Y). Para diferenciar duas Sapukuyawá Ejekalu
(identidade K, figuras 42 e 43,) num mesmo ritual (o Apapaatai Jyãu de março de
2002), empregou-se essa marca. Assim, a Ejekalu da figura 42 tem o desenho
estilizado de um peixe a ocupar o centro do campo plástico, ou do ejetaku, como
diriam os Wauja. Vê-se repetir nas máscaras Sapukuyawá Wajai (figura 40) e
Puixa (figura 41) esse mesmo recurso, que neste caso é apenas um detalhe a
mais que as diferenciam das outras máscaras de motivo gráfico X.
203

Outro recurso de diferenciação é o emprego de motivos gráficos do


repertório de Arakuni (doravante marca visual Z), o qual pode ser observado nas
máscaras Sapukuyawá Isejo (identidade H, figura 39) e Wajai (identidade I, figura
40). No caso de Isejo, é precisamente o motivo mitsewenê (dente de piranha),
disposto transversalmente, que a diferencia, por exemplo, de Muluta (figura 37),
além obviamente das marcas visuais X. No caso de Wajai, o mitsewenê é mais
um detalhe que a torna diferente de Puixa (figura 41) e das demais máscaras de
motivo gráfico X.
Os exemplos acima podem ser resumidos no seguinte esquema:

Marca visual X identidade D (figura 35)


Marca visual X identidade G (figura 38)
Marca visual X identidade I (figura 40)
Marca visual Y -> identidade I (figura 40)
Marca visual Y -> identidade J (figura 41)
Marca visual Y -> identidade K (figura 42)
Marca visual Z -> identidade H (figura 39)
Marca visual Z -> identidade I (figura 40)

A análise da iconografia das máscaras mostra que, neste sistema, A pode


ser B, C ou D (ou ainda E, F e G, se consideramos o motivo gráfico Y uma
variante do motivo gráfico X) e que a marca visual X pode, por exemplo,
transformar A em D ou F em G. Já a marca visual Z pode, por sua vez,
transformar F em H. Nesta sequência de máscaras, passa-se de uma identidade
a outra tendo como recurso ligeiras (re)combinações formais sob uma forma
básica. Esse fenômeno pode ser conceituado como template:

a structure of possible relationships between sets of things, which


generates both alternative paintings and alternative interpretations of
them (Morphy apud Kuchler, 1987: 246)48.

A análise da relação entre identidade e iconografia nos mostra que, como


o repertório gráfico das máscaras Sapukuyawá é relativamente reduzido,

48 Embora o conceito de template tenha sido originalmente empregado por Morphy na década de
1980, seu desenvolvimento parece mais bem resolvido nos trabalhos de Kuchler (1987, 1992)
sobre as máscaras malangan da Melanésia. Se no caso malangan os templates estão ligados à
morte e à consequente mudança de aldeia, no caso dos apapaatai eles estão ligados a novos
adoecimentos, ou melhor, às interpretações xamânicas advindas dos mesmos. Os casos
malangan e apapaatai geram respectivamente fragmentações do grupo e da alma, que apenas as
máscaras podem recompor. Esta é talvez a sua disposição agentiva de maior importância.
204

sobretudo do ponto de vista dos padrões de composição, é necessário criar


pequenas variações formais para produzir as máscaras como personagens
rituais. Todavia, a variação é cuidadosamente limitada, como uma estratégia do
próprio estilo, em relação ao imenso número de personagens. No caso das
Sapukuyawá, a transversalidade das linhas sobre o plano, as marcas e as
associações cromáticas e motívicas que elas geram, configuram um template
(relações de variação) próprio da arte wauja. Nesse sentido, o template é a base
para a depreensão de um estilo. Para conferir uma base comparativa à análise,
podemos dizer que a pintura e a atribuição de identidades às mascaras
Sapukuyawá constituem um template. O modelo que a relação pintura e
identidade gera é de minimização das formas gráfico-plásticas e maximização
das personagens. Vejamos agora o exemplo das máscaras Atujuwá.
O Apapaatai Tyãu de 2000 tinha dois casais de Atujuwá: um Jatobá (Ajou,
figuras 46 e 55, apresentadas nas seções seguintes) e um Arco-Íris (Anapi, figura
53), ambos pintados com o mesmo motivo de sucessivos arcos de cores
alternadas. A única diferença saliente entre Jatobá e Arco-Íris está no uso da cor
amarela para caracterizar este último. Não penso que tenha prevalecido aí outro
ponto de vista além do estético. Ora, pintar as quatro máscaras com os mesmos
motivos, procedendo apenas a uma variação interna mínima, é exatamente a
estratégia de gerar continuidade formal entre as personagens; observamos este
mesmo processo ao analisar acima o caso das máscaras Sapukuyawá nos
Apapaatai lyãu de 2000 e 2002. Assim, Jatobá e Arco-Íris são estética e
ontologicamente aproximados não apenas pelo mesmo tipo de máscara que
vestem, mas também pelas pinturas que as identificam. Para entender o universo
de criação das personagens rituais enquanto máscaras é praticamente inútil
(salvo raras exceções) pensar em termos de analogia com as
espécies/fenômenos naturais: estamos em um mundo onde a morfologia
animal/vegetal tem um rendimento artístico e estético baixo. A ênfase é formal e
estética. As máscaras pintadas parecem ser modelos de si próprias.
205

5.7
Uma máscara total

As questões que venho abordando desde a seção anterior começam no


capítulo 2, e lá estão sinteticamente colocadas nos comentários ao quadro 2 e na
idéia de que o ponto de vista prevalecente na relação entre humanos e não-
humanos é o da manipulação das possibilidades transformativas por uns e por
outros.
Os yerupoho/apapaatai podem assumir mais formas transformativas do
que os humanos, mas eles não podem se transformar em humanos, enquanto
todos os humanos podem se transformar em “bichos”. Se a transformação muda
o ponto de vista, poderia uma mudança de ponto de vista resultar em uma
transformação? Se seguirmos a narrativa do mito de Arakuni, o inverso da “regra”
também é possível. É em Arakuni que aparece, de um modo bastante claro, a
idéia da fusão entre a arte e o ser. E, para efeitos da nossa análise, onde surge
um outro template, ou quando o template Sapukuyawá pode ser visto “invertido”,
como se mostrará a seguir.
O mito conta que Arakuni engravidou sua irmã, Kamayulalu, tendo por isso
sido violentamente banido do convívio aldeão por sua mãe. Arakuni toma então
consciência do seu ato Animal. Triste e profundamente perturbado, ele faz uma
“roupa” para se tornar, de modo definitivo, uma cobra monstruosa. O nosso
personagem, trocou um ponto de vista humano (troca de mulheres) por um ponto
de vista Animal (incesto). Refugiado no mato, Arakuni começa a trançar uma
imensa Cobra com fibras de taquarinha. À medida que a trançava, Arakuni
cantava seu lamento, porém paradoxalmente reafirmando o seu desejo por
Kamayulalu. Os desenhos surgem simultaneamente com essas canções, que,
aliás, têm uma conotação “sagrada” por fazerem parte do ritual funerário Kaumai
(Kwarip). Portanto, a arte do desenho em Arakuni surge como expressão técnica
do trançado. Ao terminar a Cobra e o canto, Arakuni tinha criado uma série de
motivos.
A peculiaridade mais significativa dessa “roupa”-Cobra, do ponto de vista
wauja, é que ela contém “todo” o iyanaiki (sistema gráfico) wauja. Porém, se
tomada da perspectiva linguística da denominação dos motivos, a cobra Arakuni
PRANCHA 12

Figura 44 - Arakuni, autor: Aulahu, 2000.

o O F.F.-

íill ®o '

Figura 45 - Arakuni, autor: Aruta, 1998.


206

tem apenas 13 (ou 14 a depender da versão), o que a primeira vista pode parecer
uma contradição, pois essa cifra está longe da “totalidade”. A totalidade que
Arakuni encerra não é um efeito de “retórica” exegética, ela pode ser verificada
quando analisamos algumas propriedades formais das apresentações que os
wauja fazem de Arakuni em papel.
O kulupienê foi o primeiro motivo feito por Arakuni — inicialmente pintado
em seu próprio corpo e depois impresso na pele da sua irmã como consequência
de sua união incestuosa —, os demais motivos foram feitos enquanto ele cantava
(ou encantava?) e trançava a sua “roupa” no sentido da cabeça para a cauda.
Observe o leitor, que no desenho feito por Aulahu (figura 44) o primeiro motivo da
“roupa”-Cobra de Arakuni é o kulupienê, que, localizado próximo à cabeça, se
desenrola clara e fluentemente em uma diversificada sequência de motivos até a
cauda. O mesmo vale para a versão de Aruta (figura 45).
Não é necessária uma observação muito demorada da “representação” de
Arakuni para perceber que os motivos passam de um ao outro seguindo
mudanças no curso das linhas e dos losangos, a partir da matriz original, o
kulupienê. Esse modelo de continuidade e transformação, tão bem expresso por
Aulahu e Aruta — mas também por outros desenhistas wauja — nos leva a
pensar que a cauda de Arakuni não é o fim da linha. Lembro-me que ao indagar
Aruta sobre a sua versão do desenho de Arakuni, ele, o principal xamã-cantor
wauja e profundo conhecedor da mitologia, disse: “desenho não acaba nunca”. A
totalidade que Arakuni anuncia é a infinitude do desenho. Dentre todas as
“roupas” existentes no cosmo wauja, a de Arakuni é simplesmente paradigmática.
Além de carregar todos os motivos gráficos existentes e possíveis, ela veicula a
idéia de que os motivos se transformam uns nos outros na medida em que eles
vão sendo executados49; é como se a linha tivesse autonomia expressiva.
Nas conversações posteriores com os meus informantes-desenhistas,
ficou claro que tão importante quanto a invenção dos desenhos por Arakuni, foi a
posterior cópia, manutenção e reinvenção desses desenhos pelos apapaatai,
que, a partir de então, passaram a ser também “donos” dos desenhos
originalmente inventados por Arakuni. Na verdade, ele não criou todos os
desenhos geométricos conhecidos pelos Wauja, muitos foram e continuam sendo
inventados por outros apapaatai. Há, portanto, no mundo (quase) invisível das
207

alteridades não-humanas a continuação da ação original de Arakuni. Arakuni


parece ser uma das chaves centrais do sistema de desenho geométrico wauja e
talvez uma porta de abertura para a comparação com outros sistemas complexos
de desenhos na Amazônia.
As cobras são seres paradigmáticos da transformação e da invenção do
grafismo na Amazônia, pelo menos entre grupos Carib (Velthem, 2003), Arawak
(Baer, 1994), Pano (Gebhart-Sayer, 1984, 1985; Keifenheim, 1998; Lagrou, 1991,
1998, 2002) e Tukano (Reichel-Dolmatoff, 1978). Vejamos uma personagem
kaxinawa, Yube, a sucuri mítica que ensinou a uma velha senhora kaxinawa “os
desenhos de jenipapo, os desenhos da rede (tecelagem), da cestaria e da
cerâmica” (Lagrou, 1996: 199). Sobre Yube diz-nos Edivaldo, um jovem líder
kaxinawa:

“o desenho da cobra contém o mundo. Cada mancha na sua pele


pode se abrir e mostrar a porta para entrarem novas formas. Tem,
vinte e cinco manchas na pele de Yube, que são os vinte e cinco
desenhos que existem” (Lagrou, 2002: 40).

A afirmação de que o desenho dessa cobra “contém o mundo” parece


referir-se ao poder de síntese cosmológica operado pelo desenho, o qual, no
caso dos grupos arawak e pano do Acre/Piemonte Andino, tem uma
correspondência simultânea com a música (Gebhart-Sayer, 1985; Lagrou, 1998,
2002). Nos mundos ameríndios, música e imagem são, muitas vezes, princípios
indissociáveis de materialização do (no) mundo. A cobra é a manifestação
máxima desses princípios porque ela os tem “naturalmente” ordenados em sua
pele, e, além disso, ela os renova de acordo com ciclos.
A segunda afirmação dá um outro impulso à comparação. Edivaldo
Kaxinawa diz que Yube pode se abrir à entrada de “novas formas”, ou seja, o
processo criativo é contínuo, e pela própria natureza da linha ele pode ser
pensado como infinito. Essa abertura para “novas formas” é ao mesmo tempo a
expressão do elemento idiossincrático que personaliza uma composição gráfica e
que também possibilita o seu movimento do exterior para o interior, adaptando as
“novas formas” ao estilo kaxinawa. As idéias de abertura e de continuidade são

49 Vide em Monod-Becquelin (1993: 514-515) uma interessante demonstração desse processo


fora do corpo da “roupa”-Cobra.
208

talvez as mais vigorosas do grafismo kaxinawa50. A sua expressão realiza-se de


maneira mais plena na tecelagem, técnica na qual a tecelã deliberadamente
intercala seções de desenho com seções “vazias” (i.e. “sem desenho”), dando a
falsa impressão de que o desenho foi interrompido. No entanto, as linhas de uma
seção de desenho “atravessam” uma seção “vazia” e se unem “invisivelmente”
(ou muito sutilmente) às linhas da seção de desenho seguinte (Lagrou, 1998).
Há uma forte associação simbólica entre as técnicas do trançado e da
tecelagem com as peles das cobras em várias partes da Amazônia51. Em ambas
as técnicas os desenhos surgem simultaneamente com o trançar/tecer, não
havendo uma dicotomia entre suporte e desenho, como na cerâmica, no corpo ou
em artefatos de madeira. Além de possuírem um apelo metafórico, o trançado e a
tecelagem são também técnicas de natureza mimética: os seus produtos são, em
um sentido de apreensão direta, “peles de cobras”52. Os motivos gráficos se
“confundem” nos movimentos curvilíneos e na maleabilidade do corpo das
cobras. Nesse sentido, o trançado e a tecelagem são o inverso lógico da
cerâmica, uma contraposição entre maleabilidade e fixidez e entre superfícies
retilíneas que apontam para um continuum infinito e superfícies circulares
espacialmente encerradas sobre si mesmas. Outra imensa relevância simbólica
atribuída ao trançado e à tecelagem assenta-se sobre a idéia de que, nos seus
processos de produção, ambos tornam-se “naturalmente” desenhos, ou seja, em
função das suas próprias especificidades técnicas, os desenhos surgem
concomitantemente aos atos de trançar/tecer. Portanto, faz imenso sentido que a
origem do desenho entre tantos grupos amazônicos esteja associada às técnicas
do trançado e da tecelagem, eles próprios transposições/distribuições das
“roupas”/peles das cobras por toda a cultura material. E é curioso como os Wauja
tematizam essa questão. Exegeses dos mitos afirmam que objetos decorados
(pintados/desenhados/trançados) podem “virar bicho” e ir embora para o mato.
Ora, isso vem, dentre outras coisas, confirmar o sentido agentivo do desenho nos

50 Há ainda a questão da dualidade figura e fundo, cujos desdobramentos simbólicos são


analisados por Lagrou nos âmbitos da ontologia e da socialidade kaxinawa. O estilo gráfico
xinguano não desenvolveu uma percepção dualista no mesmo sentido que os Kaxinawa a
orientam, no caso xinguano um provável dualismo parece existir na pulsão entre a eficácia e a
ineficácia estéticas (vide capítulo 7).
51 O que Arakuni postula enquanto personagem mítico, a tecelagem kaxinawa realiza como obra
de arte: “On large weavings where the patterns cover the entire surface, seamless transitions form
one kene (motivo gráfico) to the next are often found. It becomes apparent that every pattern can
be transformed and that the totality of visual transformations engenders a shifting pictorial
continuum" (Keifenheim, 1988:11).
209

processos criativos cósmicos. Porém, é necessário, como sempre, distinguir,


nesses processos, as naturezas dos “animais” de acordo com as suas múltiplas
origens e capacidades.
Foi dito acima que o desenho wauja (wauja ogana) jamais poderia ser visto
como uma cópia do grafismo dos animais. Ainda que este seja um tipo de arte,
não é para esta arte que os Wauja voltam seu maior interesse, e sim para o
grafismo dos apapaatai. Portanto, interessa-nos o que os Wauja pensam sobre
como os apapaatai criam seus próprios desenhos e o que os motiva a cobrir a
superfície dos seus corpos e “roupas” com desenhos. Recorro à etnografia piro
de Peter Gow para avançar essas questões e para reforçar os contrastes que
venho fazendo entre humanos, apapaatai e animais.

This point helps us to distinguish some of the ontological conditions


of design-covered surface for the Piro. I will take the two non-human
forms of designs first. The designs of natural species are their
intrinsic properties, direct manifestations of the interior identity of the
species on the skin or surface of the individual. As such, natural
species designs are non-illusory forms: they are what they are53. By
contrast, drug designs are the skin markings of the illusory anaconda
form of kamalampi spirit. Spirits have no intrinsic attributes in the
manner of natural species, for all modes of their corporeal presence
are products of their knowledge. That is what makes them spirits,
which by definition are the generators of their own visible forms.
Thus we have an opposition between design as intrinsic identity form
and designs as illusory form produced by knowledge. In the first
case, the design is an intrinsic feature of a certain kind of body, while
in the second case all bodily forms are the product of knowledge
(Gow, 1999: 237).

Gow fala do grafismo como propriedade intrínseca e como


conhecimento/criação, relaciona-o às espécies naturais e aos espíritos
respectivamente, e afirma que os últimos não possuem atributos intrínsecos
como os primeiros. Este esboço de um conceito piro de arte é absolutamente
válido para o caso wauja, que, todavia, exige alguns ajustes. Para os Wauja, o
problema da criação artística compete sobretudo aos yerupoho/apapaatai, aos
yakapá compete conhecer as criações e transmiti-las aos não-yakapá, estes, por
sua vez, aprendem a transformar os conhecimentos transmitidos no mais belo

52 Entre os Wayana esta acepção é igualmente válida (Velthem, 1998).


53 (Cf. a nota 6 do autor, 1999: 245) “The conception of natural species designs as intrinsic
properties parallels an important contrast, in Piro origin of illness, between beings that are
intrinsically harmful and those that know how to cause harm (i.e. are spirits) (Gow 1987)”.
210

feito (Velthem, 2000). Ou seja, a preocupação wauja é expressar as criações dos


yerupoho/apapaatai com “eficácia estética”, e essa eficácia é um problema dos
homens e das mulheres e da sua capacidade (cultural e social) de gerar beleza.
Os animais encontram-se afastados desse esquema de criação-produção, pois
eles já são criações, “criações congeladas”, originárias de um outro tempo, de
ações cosmogônicas que se deram no passado.
Na citação acima, Gow reporta que a “forma corporal” dos espíritos, vistos
na experiência alucinógena, é produto do conhecimento. No caso wauja, esse
conhecimento é (não ele todo) compartilhado, o que me permitiu afirmar alhures
que:

O lento e contínuo processo de transferência de conhecimentos de


um mundo para o outro praticamente impossibilita estabelecer
fronteiras no campo da artisticidade. É por isso que a arte wauja só
pode ser puramente humana na medida em que ela for puramente
extra-humana (Barcelos Neto, 2002: 265)54.

Um esboço conceituai da arte wauja a situa em dois pólos, um de fixidez,


compreendido pelos animais — com suas propriedades intrínsecas — e o outro
de fluidez, compreendido pelos yerupoho/apapaatai e pelos humanos — com
seus conhecimentos. Assim, nesse esboço, uma sucuri só é uma sucuri porque
ela tem a pele com determinados desenhos, mas uma máscara-sucuri não
precisa ser pintada, por exemplo, com o motivo walamá oneputaku (cabeça de
sucuri), para criar uma relação metonímica entre a máscara e a sucuri.
Afirmei acima que Arakuni era uma variação do template Sapukuyawá e
vice-versa. Vimos que Arakuni exibe um processo de transformação dos motivos
gráficos em um plano único e sequenciado (ou seja em uma única “roupa”),
enquanto Sapukuyawá exibe o mesmo processo em planos descontínuos e
múltiplos (ou seja, em várias “roupas”). Se Arakuni é um modelo de totalidade
sintética, Sapukuyawá é um modelo de fragmentação/distribuição, condição
fundamental para o surgimento das personagens rituais como máscaras. Se cada
máscara Sapukuyawá fosse linearmente disposta, tornando o conjunto uma única
peça, teríamos, do ponto de vista da lógica formal desses templates, um Arakuni.
E se fragmentássemos a cobra em vários pedaços, teríamos várias máscaras.
Arakuni é a máscara que contém todas as máscaras.
211

Os templates Sapukuyawá e Arakuni parecem ter dado conta da discussão


sobre identidade e mascaramento e do alinhamento das relações cosmológicas
que considerei importantes para entender como as personagens adquirem
formas específicas. Vimos, nas três seções anteriores, que a personificação ritual
dos apapaatai começa com as técnicas fabris das “roupas” e suas pinturas, cujas
ênfases são dadas nos dias do Apotalatuapai (o primeiro dia) e da pintura
(segundo dia). Contudo, essa personificação só se completa no terceiro e último
dia do Apapaatai Jyãu, quando um plano cênico coloca os apapaatai em contato
direto com os seus “donos”.

5.8
A GRANDE DANÇA DOS APAPAATAI

Na madrugada do dia 28 de julho de 2000, um dia após a pintura das


máscaras, a tinta já tinha avançado um pouco a sua secagem, mas o cheiro forte
das resinas e do urucum que impregnara a kuwakuho dava a impressão de que
as máscaras tinham acabado de ser pintadas naquele exato momento. Eram
cinco horas da madrugada quando Kaomo pegou, pela última vez, Kawoká Otãi e
se dirigiu para o enekutaku. Por um quarto de hora, Kawoká Otãi tocou algumas
músicas que, ouvidas pelos kawoká-mona, anunciavam que já era a hora dos
apapaatai saírem da kuwakuho e voltarem a dançar pela praça da aldeia. Kaomo
interrompeu a música e guardou a flauta. Enquanto isso, no interior da kuwakuho,
as Atujuwá Ajou nãu estão sendo vestidas por seus kawoká-mona. Uma vez
vestidos, macho e fêmea olham-se frontalmente. O dia vai clareando e o macho
cuidadosamente se abaixa para fazer passar sob a pequena saída da kuwakuho
os seus dois metros e meio de altura, em seguida é a vez da fêmea (figura 46).
Kawoká Otãi já não os acompanhará mais, pois no Apotalatuapai ele já
mostrou o caminho que os apapaatai mascarados deveriam tomar no dia
seguinte ao recebimento das pinturas. Ao contrário dos outros 43 apapaatai, que
eram pela primeira vez integralmente personificados em Piyulaga, Kawoká Otãi já
era um apapaatai “familiarizado”, pois já estava entre os Wauja há alguns anos.

54 Leia-se extra-humana como sendo apenas os yerupoho/apapaatai.


PRANCHA 13

Figura 46 - Manhã do dia 28


de julho de 2000, os
apapaatai Atujuwá Ajou
(Jatobá) iniciam sua dança
giratório-circular em frente à
casa das flautas antes de
seguirem para a casa de
Itsautaku, onde receberão
comida e cintos de algodão.

Figura 47 - Manhã do dia


28 de julho de 2000, um
casal do apapaatai
Sapukuyawá Puixa
(Matrinchã) dança em
frente à casa das flautas.
Com os braços erguidos e
paralelos ao chão os
Sapukuyawá dançam,
frente a frente, apoiando-se
alternadamente sobre os
pés esquerdo e direito.
Terminada a dança, os
dois seguirão para a casa
de seu “dono”, onde rece­
berão comida e cintos de
algodão.

Figura 48 - Manhã do dia


28 de julho de 2000, o
apapaatai Sapukuyawá
Yanumaka eneja (Onça
macho) recebe de seu
“dono”, Itsautaku, peixe
moqueado embrulhado
em beiju. A Onça leva
enrolado sobre a cabeça
um cinto de algodão,
também oferecido pelo
seu “dono”. Observa-se,
na face lateral da
máscara, o desenho
figurativo de uma onça,
parcialmente encoberto
por um diadema de
penas.
PRANCHA 14

Figura 49 - Manhã do
dia 28 de julho de 2000.
No interior da casa das
flautas, o apapaatai
Kuwahãhalu Yakuwa-
kumã toneju (“Piranhão”
fêmea) prepara-se para
sair, fazendo movi­
mentos leves com o seu
temível escarificador de
dentes de peixe-
cachorra, objeto que
fascina e amedronta as
crianças. Vê-se, em
segundo plano, Itsau-
taku a orientar a
Assistência infantil para
que se afaste e dê
pássagem para
Kuwahãhalu.

Figura 50 - Manhã do dia


28 de julho de 2000. Os
apapaatai Kuwahãhalu
Yakuwa-kumã dançam
com escarificadores em
frente à casa das flautas.
Com o dorso em amarelo,
a fêmea; a sua frente,
com desenhos figurativos
de peixes no rosto, o
macho.

Figura 51 - Manhã do
dia 28 de julho de 2000.
Os apapaatai Yukuku
(Árvore) cantam e
dançam com seus
chocalhos. Yukuku é o
único apapaatai que usa
esses instrumentos no
ritual Apapaatai lyãu.
PRANCHA 15

Figura 52 - Manhã do dia


28 de julho de 2000, um
casal de apapaatai
Atujuwátãi Tukujê
(Pombo) realiza sua
dança giratório-circular
em frente á casa das
flautas minutos antes de
seguir para a casa de
Yatuná, seu “dono” ritual.
À esquerda, a fêmea,
caracterizada por sua
pintura vermelha em
contraste com o macho,
cuja pintura é preta.

Figura 53 - Manhã do dia


28 de julho de 2000, os
apapaatai Atujuwátãi
Tukujê retornam da casa
de Yatuná para a casa
das flautas, acompa­
nhadas por um casal de
Atujuwá Anapi (Arco-Íris),
que já tinham realizado a
sua saída da casa da
flautas anteriormente.
Observa-se, pendurado
sobre o penacho do
Pombo macho, o cinto de
algodão que Yatuná lhe
ofereceu.

Figura 54 - Atujuwá Anapi


tonoju (Arco-Íris fêmea)
acompanha a dança dos
clarinetes Tankwara na
tarde do dia 1 de agosto
de 2000.
212

Logo ao saírem da kuwakuho, as máscaras recebem, dos seus “donos”,


cintos e adornos plumários (braçadeiras, diadema de plumas de reicongo e
harpia ou diadema de plumas de tucano), o que lhes permite então iniciar a
dança.
No enekutaku, os Atujuwá Ajou executaram a mesma dança giratório-
circular descrita no Apotalatuapai, porém, fazendo apenas um círculo completo e
seguindo em direção à casa de seu “dono”. Lá receberam comida e cintos de
algodão, que foram enrolados em seu “nariz”. Os caldeirões com mingau e os
peixes moqueados envoltos em beiju foram carregados por duas pessoas que
acompanharam os Atujuwá Ajou. Em fila e em linha reta os Atujuwá Ajou fizeram
o caminho de volta para o enekutaku. Enquanto eles voltavam, os Atujuwá Anapi
saíam da kuwakuho e executavam a mesma dança giratório-circular. Pouco antes
dos Atujuwá Anapi seguirem para a casa de Itsautaku, Atujuwá Ajou chegaram
no enekutaku, repetiram a dança giratório-circular e acompanharam os Atujuwá
Anapi até a casa de seu “dono”. Antes mesmo que os Atujuwá voltassem para o
enekutaku o casal Sapukuyawá Yanumaka, cujos cuidados também cabiam a
Itsautaku, saía da kuwakuho e executava a dança dos Sapukuyawá (figura 47),
coreograficamente caracterizada por uma sucessão de saltos, para a direita e
para a esquerda sobre um só pé, realizados em simultâneo pelo casal. Os
Sapukuyawá Yanumaka (Onça) executaram mais ou menos seis saltos e
seguiram correndo para a casa de Itsautaku; deste recebem, em mãos (figura
48), a comida que foi especialmente preparada para eles. Atrás dos Sapukuyawá
Yanumaka vieram os quatro Atujuwá, que, ao chegarem, ficam saltitando
levemente, demonstrando contentamento. Os seis apapaatai retornam para o
enekutaku.
Os apapaatai da casa seguinte são os Sapukuyawá Kuwa (Peixe
Curimatá). Eles executam a mesma dança das Onças, aliás, esta é a coreografia
própria dos Sapukuyawá. Na medida em que cada casal de apapaatai vai até a
residência de seu “dono”, a fila de apapaatai aumenta progressivamente (figura 6
e 53). Este aspecto progressivo da grande dança evidencia uma encenação que
protagoniza os Atujuwá, pois eles acompanham todos os apapaatai da primeira
até a última casa. No Apotalatuapai, os apapaatai saem todos juntos de uma só
vez (figura 5) e se misturam de modo que a sequência dos apapaatai em fila
pouco tem a ver com a sequência circular anti-horária das casas dos seus
213

“donos”. Na “grande dança” há um esforço em fazer coincidir ambas sequências,


mas que nem sempre se mantém de um modo exato. Pelo menos este é o ideal.
Os movimentos realizam-se em um ritmo frenético, o que dificulta, devido às
várias idas e vindas dos apapaatai, manter uma sincronia perfeita entre as duas
sequências. Na figura 6, por exemplo, os Sapukuyawá Anapi atravessaram na
frente dos Atujuwá. A grande dança é de fato um momento apressado do
Apapaatai Jyãu, pois se o ritual não fosse feito nesse ritmo ele certamente se
estenderia para além do meio dia.
Vimos que no Apotalatuapai (“Ensaio”), as máscaras não cantam, nem
executam suas danças específicas, com a exceção dos casais de Atujuwá que
fazem a dança giratório-circular e dos Sapukuyawá que sapateiam e levantam os
braços. As canções no dia da grande dança são, em sua maioria, auto-
enunciações das identidades55 das máscaras ou apenas cantos onomatopaicos.
Os Sapukuyawá, por exemplo, cantaram duas canções. A primeira delas
tinha a seguinte letra:

Sapukuyawá iya tukuheneipausixu Sapukuyawá vai tomar seu mingau


Ha, ha, ha, ha, ha Ha, ha, ha, ha, ha
Haaaa Haaaa
Sapukuyawá iya tukuheneipausixu Sapukuyawá vai tomar seu mingau
Ha, ha, ha, ha, ha Ha, ha, ha, ha, ha
Haaaa Haaaa
Sapukuyawá iya tukuheneipausixu Sapukuyawá vai tomar seu mingau

A segunda é mais específica quanto à enunciação:

Ha, ha, ha Ha, ha, ha


Haaaa Haaaa
Sapukuyawá Yutapâ nãu natuwi, atsi Eu sou Sapukuyawá Yutapá ,vovó
Ha, ha, ha Ha, ha, ha
Haaaa Haaaa
Sapukuyawá Yutapá nãu natuwi, atsi Eu sou Sapukuyawá Yutapá ,vovó
Ha, ha, ha Ha, ha, ha
Haaaa Haaaa
Sapukuyawá Yutapá nãu natuwi, atsi Eu sou Sapukuyawá Yutapá ,vovó
Ha, ha, ha, ha, ha, ha Ha, ha, ha, ha, ha, ha

Os casais de Yuma e Atujuwátãi “cantaram” apenas curtas onomatopéias.


Os Atujuwá não cantam, porém tocaram flautinhas de bambu, como se fossem
214

apitos. Já Yutsipiku e Yukuku cantam seus nomes:

Hai, hai, hehe


Hai, hai, hehe
Yutsipiku piku
Hai, hai, hehe
Yutsipiku piku
Yutsipiku piku
Yutsipiku piku

Yukuku, Yukuku
Yukuku, Yukuku
Yukukukukukukuku
Yukukukukukuku
Yukuku, Yukuku
Yukuku ehiké iyé ha

Embora a canção de Kuwahãhalu56 seja auto-enunciativa como as demais,


surgem algumas palavras “intraduzíveis”, “língua de apapaatai”57:

Kuwahãkahalu natu Eu sou Kuwahãkahalu


Eyakuyo ehá Eyakuyo ehá
Kuwahãkahalu natu Eu sou Kuwahãkahalu
Eyakuyo ehá Eyakuyo ehá
Yunupá,yanupa,yanupa Yunupá,yanupa,yanupa

55 Esse “gênero” musical foi também observado por Goldman (1968: 288) no grande ritual de
máscaras Cubeo. O autor afirma que as canções são dificilmente traduzíveis e que muitas delas
mencionam os nomes das máscaras.
56 Sobre a performance musical de Kuwahãhalu, Ireland faz as seguintes observações:
“Kwãhãhãlu is less often performed than sapukuyawá, and consequently is less familiar to
younger Waura. Neither does it seem to possess a rich traditional ritual behavior and ceremonial
license asoociated with certain other Waura spirits. Althrough several hours of singing preceded
the ceremony [canções Kapojai, vide seção 5.3], the actual kwãhãhãlu performance I winessed
was quite simple. The spirit merely danced and sang briefly in the plaza, then outside the house of
the recovered patient in recognition of her [neste caso a própria Emilienne Ireland] sponsorship of
the ceremony, and finally retired to the men’s house [kuwakuho] to enjoy the feast that marked the
end of the ceremony” (1985: 9). O que presenciei no Apapaatai Tyãu a respeito de Kuwahãhalu
não difere desta descrição. Na festa patrocinada para curar Ireland dançaram apenas um casal de
Sapukuyawá e um casal de Kuwahãhalu, cujos nomes específicos não foram mencionados pela
autora. As canções Kapojai que precederam a dança das máscaras propriamente ditas fazem
parte do complexo ritual de Sapukuyawá e não de Kuwahãhalu, como supôs Ireland. Segundo os
Wauja, “é Sapukuyawá que puxa Kapojai” (vide Mello, 1999, para outros dados a respeito da
relação entre Sapukuyawá e Kapojai).
57 Todas as canções foram traduzidas por Yanahin, que disse desconhecer várias palavras, pois
estas estavam na “língua dos apapaatai’-. “só pajé sabe”, “só quem escuta apapaatai'. Entre os
Wauja, há um yatamá que perdeu muito de sua audição em função de uma doença causada pelo
apapaatai Aluwa-kumã (Morcego). Na verdade, o que ocorreu foi uma mudança na sua audição:
esse yatamá não ouve bem os humanos, mas ouve os apapaatai, pois os Aluwa-kumã nãu
“fizeram” o seu ouvido com susbtâncias patogênicas. Esse yatamá passou então ser chamado de
Aluwakumã e tornou-se notório por escutar não apenas os apapaatai, mas também Deusu
(Deus), ou melhor, Kwamutõ e seus netos Kamo (Sol) e Kejo (Lua). Tentei “decifrar” essas
canções com Aluwakumã, porém ele pouco acrescentou à tradução que já tinha sido feita por
Yanahin. O sentido geral dessas palavras tem a ver com a alegria dos apapaatai pela comida que
eles recebem nos rituais.
215

Yunupá, yanupa, yanupa Yunupá, yanupa, yanupa


Yunupá, yanupa, yanupa Yunupá, yanupa, yanupa
Euwahãkahalu natu Eu sou Euwahãkahalu
Ehá, ehá Ehá, ehá
Yunupá, yanupa, yanupa Yunupá, yanupa, yanupa
Kuwahãkahalu natu Eu sou Ejiwahãkahalu

A “mesma língua” observa-se nas canções de Paho (Macaco-Prego):

Pahoyanani, Pahoyanani
Ehai, ehai, ehai
Pahoyanani, Pahoyanani
Ehai, ehai, ehai
Pahoyanani, Pahoyanani
Yunuyunupani,yunuyunupari
Ehai, ebe
Pahoyanani, Pahoyanani
Ehe, eheyunuyunupani
Ehai, ehai, ehai
Pahoyanani, Pahoyanani
Ehai, ehai, ehai
Pahoyanani, Pahoyanani
Ehai, ehai, ehai
Hohoho hooooo

Pelas 11:30 horas, todos os apapaatai já tinham recebido suas comidas,


que, na medida em que eram trazidas para a kuwakuho, evidenciavam a
totalidade da dimensão produtiva desse ritual: quilos e quilos de peixe, de mingau
e de beiju. Na volta da 17a casa (figura 53), a de Yatuná, os apapaatai fizeram a
última dança circular antes de entrarem na kuwakuho, onde as “roupas” foram
despidas e guardadas.
Ao fim da grande dança, os 39 kawoká-mona foram para suas respectivas
casas, trazendo de lá panelas, colares de miçangas e flechas: eram os
pagamentos para os seus “donos”. De cada um de seus quatro kawoká-mona
Atujuwá, Itsautaku recebeu uma panela nukãi (diâmetro médio de 60 cm) e dos
seus Sapukuyawá Yanumaka, duas makulatãi (diâmetro médio de 40 cm). De
todas as panelas oferecidas, Itsautaku recebeu as melhores. Como disse acima,
para criar as condições de realização de um ritual de máscaras tão grande como
esse, é necessário que cada casa assuma os cuidados de pelo menos um casal
de máscaras. Às vezes, isso faz com que algumas pessoas sejam ao mesmo
tempo kawoká-mona e “dono”, como o foram os casos de Mayaya, kawoká-mona
Atujuwá de Itsautaku e “dono” de Sapukuyawá Muluta (Peixe Cascudo), e Kuratu,
kawoká-mona Yuma de Sapalaku e “dono” de Kuwahãhalu. Por sua vez,
216

Sapalaku foi kawoká-mona Kuwahãhalu e ”dono” de Yuma. Assim, em função do


regime de pagamentos Kuratu deu uma panela a Sapalaku e este deu uma ao
primeiro. O Apapaatai Tyãu só pode ser feito na medida em que ele não demande
recursos em excesso a um único “dono”. Assim, cada apapaatai (kawoká-mona)
precisa “gerar”, além de si, como máscara, pelo menos mais um objeto — em
geral uma panela de tamanho médio ou grande, conforme o trabalho demandado
por cada máscara — em retribuição ao alimento oferecido por seu “dono”.
Terminados os pagamentos, a comida já podia ser consumida. Os 39
kawoká-mona sentaram-se no enekutaku e começaram a repartir a comida. Uma
parte era consumida ali mesmo, e o restante, levado para casa, era entregue às
suas esposas, ou no caso dos homens solteiros, para suas mães ou irmãs sénior.

5.9
O RECOLHIMENTO DAS MÁSCARAS

No fim da tarde do dia 28 de julho de 2000, a kuwakuho foi invadida por


crianças do sexo masculino; era a sua vez de vestirem as máscaras, de
brincarem com elas (figura 9). As crianças escolhiam as máscaras meio
aleatoriamente, elas só não escolhiam as máscaras grandes (Atujuwá) ou as de
madeira (Yuma) porque estas eram muito pesadas para elas. Às vezes vestiam-
nas dentro da kuwakuho, às vezes arrastavam-nas para fora, metiam-se dentro
delas e daí saíam correndo desvairadas pela praça da aldeia em direção incerta.
Passeavam vestidas por aqui e ali na esperança de ganharem comida das
mulheres. Alguns adolescentes imiscuiam-se na brincadeira para invadir o
espaço de privacidade das suas namoradas ou potenciais namoradas.
Atrapalhavam o trabalho delas, balançavam suas redes, e os mais desinibidos
faziam piadas eróticas. Segundo Ireland, “sapukuyawá is a favorite of the young
people because, as the adolescent boys say, ‘when we dance sapukuyawá,
there’s a lot of flirting going on’” (1985: 8).
As crianças entre 1 e 3 anos de idade eram alvo da intimidação de jovens
vestidos nas temíveis máscaras de Yuma e Kwahãhalu, que, empunhando seus
escarificadores de dentes de peixe-cachorra, tinham o prazer de assustar os
PRANCHA 16

Figura 55 - Tarde do dia 1


de agosto de 2000, os
apapaatai Atujuwá Ajou
perseguem Wataho, que
voltava para sua casa com
um caldeirão de água.
Wataho recebe com bom
humor a brincadeira dos
Atujuwá Ajou, mesmo que
isso a faça perder uma parte
da água que ela levava.

Figura 56 - Cercada
pelos quatro Atujuwá,
Wataho abandona o
caldeirão de água no
chão e vai para sua
casa.

Figura 57 - Manhã do dia 2


de agosto de 2000, os
quatro Atujuwá reúnem-se
em frente à casa de seu
“dono”, Itsautaku, para
assistir televisão. Um deles
bloqueia a porta de entrada
da casa, enquanto os outros
três esperam a sua vez.
217

pequeninos. Indefesas, as crianças ficavam paralisadas de pavor e choravam


desesperadamente. Alguns adultos achavam graça naquilo e deixavam-nas
“sofrer pouquinho”, mas logo a criança era socorrida por um adulto, que
jocosamente ralhava com a máscara. Nessas ocasiões, a identidade dos jovens
que vestem as máscaras nem sempre é sabida. Já as crianças maiores, como se
sentem incomodadas com a palha e a sensação de sufocamento, estão
frequentemente a por e a tirar as máscaras para coçarem o rosto ou para
respirarem melhor.
Depois que recebiam as comidas, as crianças voltavam para a kuwakuho.
Nessas idas e vindas elas não perdiam a oportunidade de imitar a dança
giratório-circular que os adultos performatizaram nos dias 26 e 28 de julho.
No Apotalatuapai e na grande dança, o objetivo ritual da máscara não é
esconder a identidade de quem a veste; nessas ocasiões cada máscara é vestida
por seu kawoká-mona correspondente, o qual passa a personificar um
determinado apapaatai, macho ou fêmea. Terminado o Apapaatai Tyãu, o que se
sucede são “brincadeiras”, cujo mote é o ocultamento da pessoa que veste a
máscara e a expressão de um comportamento provocativo, com uma certa
algazarra. Durante as “brincadeiras”, qualquer indivíduo pode vestir a máscara
que ele quiser; a associação exclusiva entre um kawoká-mona e sua máscara,
observada durante Apapaatai íyãu, é completamente dissolvida.
A alegria infanto-juvenil que tomou conta da praça de Piyulaga na tarde do
dia 28 de julho estendeu-se por mais cinco dias: era a hora dos apapaatai
“andarem por aí, pedirem comida, brincarem com o pessoal”. Os protagonistas
dessas brincadeiras eram os Atujuwá, Yuma e Kuwahãhalu. Os primeiros, por
seu tamanho excepcional e disposição em provocar as mulheres (figuras 55 e
56), e os dois últimos por seus escarificadores que intimidavam as crianças.
Era o dia dois de agosto de 2000, as máscaras pareciam fartas de brincar.
Tamanho foi o seu uso após a grande dança na manhã do dia 28 de julho que
algumas perderam os olhos, outras os dentes. Preocupado com a destruição das
máscaras pelas crianças, Atamai pediu que eu as embalasse e as levasse
embora. Era chegada a hora do seu recolhimento definitivo na sua nova morada
além-mar, Lisboa, mais precisamente no Museu Nacional de Etnologia.
Enquanto eu embalava as máscaras do Apapaatai Tyãu, notei que sete
delas não se encontravam mais na kuwakuho. Eram as máscaras de Yukalu, a
218

filha de Itsautaku que tinha sido agredida pelos apapaatai Macaco-Prego,


Macaco-Preto e Árvore Yukuku. Aulahu, irmão de Yukalu, disse que ela não tinha
permitido que suas máscaras fossem vendidas para o Museu Nacional de
Etnologia. Yukalu deseja continuar oferecendo comida aos seus sete kawoká-
mona (que, como vimos, “representam” os apapaatai em questão), pois ela tinha
medo de voltar a ficar doente desses mesmos apapaatai. Yukalu já sofreu
“ataques” antes, mas essa foi a primeira vez que ela teve a oportunidade de
atender o desejo de seus apapaatai de serem feitos em um grande ritual de
máscaras.
Essa oportunidade mostra-se dupla: os apapaatai que adoeceram Yukalu
aproveitaram o ensejo do ritual de Itsautaku para terem sua existência
“incorporada” (embodied) entre os Wauja, e Yukalu, tendo recebido esses
apapaatai, resolveu aceitar a oportunidade de dar-lhes comida. Os Wauja dizem
que toda a vez que alguém lembra de seu sofrimento quando estava doente,
sente-se motivado a oferecer comida aos seus apapaatai. Com o ritual, o cru
deixa de ser a comida dos Animais, pelo menos daqueles que foram
“cativizados”. Os rituais de apapaatai parecem tentar “corrigir” a assimetria
tecnológica que funda a diferença entre humanos e Animais, porém essa nunca
será superada: os apapaatai jamais serão plenamente humanos.
A relação entre a “incorporação” (embodiment) e a imanência espiritual
dos artefatos rituais, sejam eles máscaras, aerofones, panelas ou cestos, é
tomada muito seriamente pelos Wauja. É dito que os apapaatai passam a viver e
a se alimentar na casa do seu “dono” (um ex-doente, no caso), dando-lhe
proteção. Vi as máscaras de Yukalu (do Apapaatai Tyãu de julho de 2000) de
Tupará e de Malahokato (do Apapaatai Tyãu de fevereiro de 2002) guardadas na
área da cozinha, muito próximas do local onde são processados os alimentos
(razão pela qual elas ficam enegrecidas pela fuligem, fazendo sumir suas
pinturas)58. Os apapaatai são colocados a olhar a preparação da comida, e
comem-na junto com os seus co-residentes — sim, pois os apapaatai,
“capturados” como objeto de arte, passam a viver na mesma casa de seu “dono”
e tornam-se comensais com a sua família. Vi ainda um trio de flautas Kawoká
embrulhadas e guardadas muito próximas à rede onde sua “dona” dormia. Na

58 Na visita à segunda aldeia kamayurá, em outubro de 1887, Karl von den Steinen notou “muitas
máscaras guardadas em casas de moradia” (Krause, 1960: 115). Krause supõe, todavia
219

qualidade de “dona” ritual das flautas, essa mulher é responsável pela sua
alimentação, porém ela jamais poderá ter um contato visual com esses objetos
que lhe pertencem.
O recolhimento implica o estabelecimento de um universo moral entre os
Wauja e os apapaatai, que, presentes na aldeia tanto na forma de objetos rituais
quanto na pessoa de certos parentes do doente, transformados em kawoká-
mona, colocará em curso sentimentos de respeito e vergonha, inveja e ciúme,
motores da manutenção e da suspensão dos próprios rituais, assuntos que
abordaremos nos próximos capítulos.
A relação entre o ex-doente (“dono” ritual) e seus apapaatai passa
diretamente pela relação de seus kawoká-mona com os artefatos rituais. Como
veremos a seguir, não é possível pensar os artefatos desligados das pessoas
que os produziram e das pessoas que eles “incorporam”. Uma vez recolhidos ao
interior da casa de seu “dono” ritual, os apapaatai, “incorporados” na forma de
máscaras e/ou aerofones, passam a saber sobre tudo o que se passa ali; eles
ficam especialmente atentos à comida produzida na casa do seu “dono”, e se
este não a oferece esporadicamente aos seus kawoká-mona, os apapaatai ficam
insatisfeitos. Ao lado dos artefatos rituais, os kawoká-mona são a outra condição
“incorporada” dos apapaatai. Os artefatos e os kawoká-mona, ocupam posições
associativas no esquema de distribuição e permanência da persona dos
apapaatai entre os humanos. Essa associação, contudo, extrapola o plano da
performance ritual — no qual a máscara e o performer configuram uma unidade
indissociada — e faz com que o estatuto desses artefatos assuma foros de
complexidade que escapam às análises centradas apenas em seus contextos
performáticos. Posto isto, deixemos para trás as questões iconográficas e
cênicas e partamos para uma outra sequência de atribuições de personitude aos
artefatos e para os seus desdobramentos na cosmopolítica wauja.

erroneamente, que essas máscaras estavam assim guardadas porque a “casa-de-festas”


(kuwakuho) daquela aldeia estava inacabada.
220

Parte III

OS RITUAIS DE APAPAATAIE A
COSMOPOLÍTICA WAUJA
221

6
SOBRE A PERMANÊNCIA DOS APAPAATAI

6.1
A HIERARQUIA DAS FORMAS RITUAIS

Na primeira parte desta tese, descrevi as diferenças básicas entre


humanos e não-humanos e porque a experiência da doença é entendida como
uma aproximação entre esses dois pólos. Na segunda parte, vimos como os
processos de transformação ritual permitiam a introdução dos apapaatai entre os
Wauja. As duas partes anteriores traçam, portanto, as formas patológicas,
xamanísticas e artísticas da distribuição das pessoas dos apapaatai. O que nos
interessa agora é como e porque os Wauja tornam permanente essa distribuição
e quais as suas implicações para a socialidade wauja. Permanência não se
refere, obviamente, a uma continuidade ininterrupta dos rituais, mas à idéia de
tornar permanente as condições de sua realização e, com elas, a própria
permanência da persona dos apapaatai entre os Wauja.
Na “fase” de prolongamento da distribuição, as relações já não são mais
marcadas pela patologia (predação), mas pela oferta de alimentos e objetos
(produção ritual). A permanência dos apapaatai gera uma série de processos de
trocas, que têm uma repercussão profunda na socialidade wauja.
Segundo Viveiros de Castro,

O sistema cerimonial ativado pela doença preenche o lugar dos


grupos cerimoniais ou de parentesco que fariam a mediação entre
‘indivíduo’ e ‘sociedade’, inexistentes na constituição social
xinguana (2002c: 81).

Os grupos cerimoniais wauja são precisamente os grupos de kawoká-


mona, cada qual oficiante de um ou mais tipos de formas rituais dos apapaatai.
Os kawoká-mona podem participar, de acordo com as suas habilidades, de mais
de um grupo cerimonial e assumir mais de um tipo de personagem ritual.
222

Minha hipótese é que as ações desses grupos cerimoniais revestem-se de


sentido político, tanto em direção aos homens quanto em direção aos apapaatai.
Os idiomas fundantes dessa política seriam tanto o controle e o poder — neste
caso, vistos como formas de cancelamento da reciprocidade e de coerção por
meio de constrangimentos morais — quanto a estética. Esses idiomas são como
“corpos densos” que se atraem: a “economia simbólica do poder” (Heckenberger,
1999) e a “economia política da beleza” concorreriam mutuamente para “produzir”
aquilo que podemos chamar de “socialidade wauja”. Esses “modelos” constroem-
se em mão dupla: dos apapaatai (como doadores de pinturas, imagens, músicas,
danças) para os humanos e destes (como doadores de alimentos cozidos e das
condições de compartilhar estados de alegria) para aqueles. Entre as linhas do
poder e da beleza, transitam praticamente todos os predicados
sociocosmológicos wauja, sobretudo aqueles atribuídos aos amunaw (chefes),
aos especialistas rituais e aos yakapá. Apenas um detalhe importante: em função
de sua natureza-kumã, os apapaatai são, em sua maioria, essas três coisas ao
mesmo tempo.
A conjunção dessas duas linhas resulta em uma proliferação de objetos
que carregam e expandem a persona dos apapaatai (roças, panelas, canoas,
cestos, casas etc.) e em trocas de enunciados morais: respeito (monapakí),
vergonha (aipitsiki), generosidade (kamanakaiyapai) e ciúme-inveja (ukitsapai).
Este último, aliás, exerce uma força de “contra-poder”, e está na base das
imagens conceituais da feitiçaria e da contestação da legitimidade dos amunaw.
Os grupos cerimoniais têm o poder de suspender a produção de artefatos
em favor de um determinado “dono” ritual e direcioná-la para um outro “dono”.
Desconheço o regime dessas mudanças, contudo sei que ele é, em grande parte,
motivado por um desequilíbrio das expectativas de generosidade, respeito e
vergonha que selam as relações de produção/distribuição entre os “donos” rituais
e os seus kawoká-mona.
A demonstração dessa hipótese, que se desenrolará ao longo deste
capítulo e do seguinte, baseia-se na descrição do patrocínio de rituais de
apapaatai nos anos de 1998, 2000, 2001 e 2002, a partir de uma abordagem
biográfica. Antes, entretanto, é necessário aprofundar o entendimento da relação
entre divinação xamânica e ritual, introduzido no capítulo 4, em simultâneo com o
223

entendimento da organização hierárquica das personagens rituais, e da relação


entre os status de kawoká-mona e de “dono” ritual.
No capítulo 2, comentei sobre o valor instrumental/letal das “roupas”.
Disse, seguindo os Wauja, que elas são como máquinas (“helicópteros”,
“submarinos”, “aviões” etc.), cujas capacidades de ação são marcadas por
poderes patogênicos que variam segundo níveis gradativos. O efeito dessa
gradação está transposto na organização hierárquica das formas rituais, que têm
como tipos básicos os aerofones (flautas e clarinetes), os coros femininos
(Yamurikumã) e as máscaras (na/).
Para entender o plano de permanência dos apapaatai e a organização
produtiva dos seus rituais é preciso voltar atenção para as matérias-primas que
constituem cada personagem ritual. As matérias e as substâncias são os veículos
de transmissão/manifestação dos poderes patogênicos e terapêuticos dos
apapaatai. Alguns eméticos, como o totu (espécie não-identificada), são capazes
de transferir, para o corpo de quem os consome, certas propriedades físicas e
psíquicas de seus “donos”. Assim, o totu, cujo “dono” é a Onça, é consumido pelo
recluso com o objetivo de fortalecê-lo, de torná-lo um kapiyekeho (campeão de
luta), pois as Onças são kapiyekeho arquetípicos. A argila, por sua vez, carrega a
potência patogênica de seu “dono”, a cobra mítica Kamalu Hai1 — esse
sedimento mineral são as suas fezes. Se manipulada por ceramistas que têm
filhos pequenos (i.e. que ainda não andam), o efeito recairá sobre estes na forma
de dermatoses ou infecções respiratórias.
O fazimento ritual dos apapaatai implica necessariamente o uso de
matérias. Neste caso específico, o sentido de poder está ancorado numa
homologia entre dureza e permanência.
A madeira yalapanã2, usada para a fabricação das flautas Kawoká, é,
juntamente com as conchas, a matéria-prima mais dura empregada na cultura
material wauja. Segundo a cosmogênese, Jatobá, a mãe de Kuwamutõ, é filha de
uma Árvore macho de madeira muito dura (Yalapanã?). Jatobá casou-se com o
Morcego (que não por acaso é o polinizador do jatobá na Amazônia), daí
nascendo Kuwamutõ. Ele é, portanto, o neto da Árvore “primordial”, tendo dele
herdado, conforme a regra privilegiada de transmissão de status e poderes por
gerações alternadas, o seu poder xamânico, o qual retransmitiu para os seus

1 Vide mito em Barcelos Neto (2002:156-158).


224

netos, os irmãos gêmeos Kamo (Sol) e Kejo (Lua). Um dado oriundo de uma
exegese mítica recolhida por Pedro Agostinho (informação pessoal) entre os
Kamayurá conta que no início dos tempos o mundo era coberto por uma vasta
floresta de jatobá. De acordo com um mito kuikuro, todos os peixes comestíveis e
as águas que deram origem ao maior lago do Xingu, o Tahununu, estavam
contidos no interior de uma árvore (Carneiro, 2001).
Segundo a ordem de dureza das matérias, após a flauta segue o trocano
(Pulu-Pulu), feito do tronco inteiro de uma árvore homónima3. Em seguida
encontram-se as máscaras Yakui, feitas também de madeira dura. Também
fazem parte desse sistema os coros femininos (Yamurikumã). A primeira vista
parece estranho que esses coros integrem um sistema cuja lógica do sensível
baseia-se numa gradação entre matérias duras e macias. Todavia, não me
parece ser a voz o objeto de interesse classificatório neste contexto, mas um
objeto feito no ritual das Yamurikumã, o pilão. No ciclo biográfico de um ritual de
Yamuhkumã, os pilões são alternadamente produzidos e destruídos (pelas
chamas de uma fogueira), neste caso quando eles já atingiram um nível de
desgaste avançado.
As relações entre flautas, coros femininos e máscaras podem ser tomadas
por diferentes aspectos, mas nem todos resultam num mesmo efeito se tivermos
em vista os sentidos pragmáticos do ritual. Embora não usem máscaras durante
a sua performance ritual, as Yamurikumã não deixam de estar mascaradas. São
os seus cantos que dão o sentido transformativo próprio do mascaramento: as
Yamurikumã são “máscaras verbais” (Pollock, 1995). O mito das Yamurikumã é
homólogo ao mito do surgimento dos apapaatai, i.e. da fabricação das “roupas”
animais/monstros pelos yerupoho machos. Enquanto os homens, num remoto
acampamento de pesca, estavam a fabricar “roupas” e flautas para virar “bichos”,
as mulheres permaneciam famintas na aldeia a espera de que seus maridos,
pais, irmãos e filhos voltassem da pescaria. As mulheres sentiram-se
desprezadas com a demora dos seus maridos e com a notícia de que eles
estavam virando “bichos”. Revoltadas, elas resolvem fazer o mesmo e fogem em
represália aos homens. O entrelaçamento entre essas três formas rituais (música

2 Extraída de uma árvore homónima, cuja identificação botânica não obtive.


3 O mito wauja do Pulu-Pulu afirma que foi do interior dessa árvore que Kamo libertou vários
peixes comestíveis.
225

instrumental, canto e máscaras)4 e os mitos é colocada por Lévi-Strauss nos


seguintes termos:

Ao longo deste livro demonstraremos que existe um isomorfismo


entre a oposição da natureza e cultura e a quantidade contínua e a
quantidade discreta. Para apoiar nossa tese, podemos, pois utilizar
como argumento o fato de que numerosas sociedades, passadas e
presentes, concebem a relação entre língua falada e o canto de
acordo com o modelo existente entre contínuo e descontínuo. O que
equivale a dizer que, no seio da cultura, o canto se distingue da
língua falada como a cultura se distingue da natureza; cantado ou
não, o discurso sagrado do mito se opõe do mesmo modo ao
discurso profano. Além disso, o canto e os instrumentos musicais
são frequentemente comparados a máscaras: equivalentes, no
plano acústico, do que as máscaras são no plano plástico (que, por
essa razão, lhes são moral e fisicamente associados, especialmente
na América do Sul). Também por esse viés, a música e a mitologia,
ilustrada pelas máscaras, são simbolicamente aproximadas (1991
[1964]: 36).

No caso wauja, há equivalência, porém marcada por rígidas distinções


hierárquicas. Flauta, trocano, pilão e máscaras Yakui configuram, nesta mesma
ordem, um esquema hierárquico pressuposto pela dureza, cujo sentido liga-se à
durabilidade/longevidade dos objetos rituais. Assim, idealmente, quando mais
durável for o objeto mais prolongada poderá ser a manutenção do seu ritual. O
pilão é um exemplo de que não devemos reduzir os objetos rituais Wauja ao
paradigma “instrumento musical/máscara”. Outros exemplos são as pás de beiju
e os desenterradores de mandioca, objetos fabricados no ritual Kukuho (Larva
“dona” da mandioca), com os quais os Wauja cantam e dançam, tornando esses
dois tipos de objetos verdadeiros personagens do ritual.
Entre a Kawoká e as máscaras de palha (os objetos rituais de menor
durabilidade) situam-se, num nível intermediário, as flautas Kuluta e Kawoká Otãi
e os clarinetes Tankwara e Talapi, todos os quatro feitos de bambu5.
Antes de prosseguirmos com a análise desse sistema, é necessário
esclarecer um aspecto da relação entre esses objetos e seus portadores

4 Segundo os Kamayurá, “Amurikumã é o ritual exclusivo feminino, sendo, neste sentido,


complementar do masculino Yaku’i (das flautas Kawoká). É tão clara esta complementaridade que
diversos informantes me explicitaram a idéia de que a música de um é idêntica à de outro, a
diferença residindo tão somente no fato de que em um caso são as mulheres que cantam, em
outro, homens que cantam e tocam” (Menezes Bastos, 1978: 164). Tal complementaridade é
também observada entre os Wauja (Mello, 1999).
5 Kawoká Otãi pode também ser feita de tubo de PVC ou de alumínio.
226

yerupoho. O poder patogênico/letal dos yerupoho depende do objeto que eles


estão usando no momento do rapto da alma humana e não das espécies que
eles “representam”. As Onças, por exemplo, são Animais prototipicamente
poderosos, mas a natureza-Onça pode manifestar seu poder segundo distintos
graus. Assim, uma Kawoká Yanumaka (Onça flautista) possui o grau máximo de
poder, pois se trata de uma Onça portadora da flauta — a forma modelar dã
espiritualidade xinguana, i.e da potência-kumã (cf. também Viveiros de Castro,
2002c). É nesse sentido que um Sapo flautista {Kawoká Kajutukalu) se mostra
mais poderoso do que uma Onça mascarada (e.g. Sapukuyawá Yanumaka),
embora a Onça, enquanto Espécie, seja mais poderosa do que o Sapo.
Despossuídos de objetos de poder (flautas, clarinetes, “roupas”), os yerupoho
(Animais) têm apenas seus poderes “natos” de “gente” não-humana. A “roupa”,
como disse antes é uma máquina — para voar, correr rápido, cortar, esquartejar,
devorar. Arakuni quando fez sua “roupa”-cobra adaptou-a com uma serra que
perfurava o solo e disse ao seu sãtsa6:

— Olha, sãtsa quando eu virar cobra você não pode chegar


perto de mim, porque aí eu posso te matar com minha serra.

A “roupa” de Arakuni era ao mesmo tempo uma “escavadeira” e uma


“moto-serra”. As “roupas” são coisas letais, mesmo que não disponham de
dispositivos como uma moto-serra.
Tal letalidade tem implicações na “morte” do doente, ou melhor, no rapto
da sua alma. Quanto mais poderosa é a forma assumida pelo apapaatai no rapto,
maior é a fração-alma que ele consegue raptar. A sequência anunciada acima —
Kawoká, Pulu-Pulu, Yamurikumã, Yakui e máscaras de madeiras macias e de
palha — corresponde, em ordem decrescente, a tais capacidades letais. Àquele
apapaatai que rapta a maior fração-alma é conferido o protagonismo nas
performances rituais, ele é dito ser o “principal” (kitsimãi), ou seja, aquele que os
demais apapaatai acompanharão. É ainda o kitsimãT que dá início e coordena as
tarefas rituais, tendo nelas uma atuação visivelmente mais intensa, que, aos
olhos dos demais tarefeiros, desponta como exemplar.

6 Termo para o companheiro com quem se “fura a orelha” no ritual Pohoká de iniciação masculina
à chefia. Todos os adolescentes que furam as orelhas num mesmo ritual tornam-se sãtsa uns dos
outros, constituindo assim um grupo discreto de “amigos formais”.
227

É por meio da divinação (diagnóstico) xamânica que se determina que


apapaatai adentrarão o domínio social wauja. Segundo Ireland,

While we cannot presume to know all the factors in the chiefs7 mind
determining which spirits he names in a given case, there are
nevertheless certain predictable patterns in his diagnosis as afflicted
by spirits requiring expensive and elaborate ceremonies that provide
much food and entertainment for the community and prestige for the
sponsor. In contrast, it seems to be primarily children and adults with
few assets who are found to be troubled by spirits associated with
less elaborate ceremonies (Ireland, 1985:13).

Ao traçar um mapa dos patrocínios correntes de rituais de apapaatai e


contrastá-lo com a investigação dos diagnósticos das pessoas que adoeceram
gravemente durante as minhas temporadas de pesquisa, observei que o padrão
sugerido por Ireland está na base da organização sócio-econômica dos rituais de
apapaatai. O que a divinação xamânica faz é uma distribuição controlada dos
potenciais consumptivos e produtivos dos apapaatai. É o yakapá que desenha o
edifício sociológico da associação entre humanos e apapaatai. A sua construção,
feita pelo engajamento da “comunidade” nas tarefas rituais, parece possuir
objetivos ligados à criação de distinções políticas e de prestígio. Neste sentido,
dificilmente um yakapá diagnosticará Kawoká como o causador da doença de
uma criança, porém o poderá fazer mais facilmente no caso de um adulto, cuja
estrutura familiar permite a realização da festa desse apapaatai. Se um yakapá
diagnosticar um apapaatai que demanda rituais dispendiosos8 para um doente
que dispõe de poucos recursos, isso causará confusão e decepção, pois essa
pessoa e sua família não poderão cumprir o requisito terapêutico de fazer os
apapaatai e consequentemente alimentá-los. Se uma situação dessas suceder, o
yakapá corre o risco de perder a confiança do grupo. Muito do prestígio de um
yakapá advém da confiança que o grupo deposita nele, ou melhor, da sua

7 Ireland faz referência aqui a Malakuyawá, antigo chefe (putakanaku wekeho, “dono” da aldeia) e
grande yapaká. A autora não está dizendo que é a categoria chefe que identifica os “espíritos”,
mas um chefe em particular devido ao fato dele ser também yakapá. Na época da pesquisa de
Ireland entre os Wauja (1981-1983), Malakuyawá era, aliás, o único yakapá de Piyulaga.
8 A fabricação de um trio de flautas Kawoká custa ao doente ou ex-doente, ou seja, ao “dono” dos
apapaatai, pelos menos três cintos ou colares de conchas de caramujo. Porém, a depender da
espessura dos colares, o fabricante das flautas deverá receber ainda um adorno plumário
completo com penas de harpia, arara, recongo e tucano. Enfim, a fabricação das flautas Kawoká
só pode ser paga com adornos de luxo (awojopaixê).
228

capacidade de organizar e bem distribuir o potencial sobrenatural dos apapaatai


entre os Wauja.
O que torna realmente caro um ritual de apapaatai são as performances
musicais de flautistas e de coros femininos. Não se pode esquecer, que antes do
pagamento das performances, deve-se sempre suportar o custo de fabricação
dos apapaatai, que pode ser elevadíssimo, no caso de Kawoká, ou praticamente
irrisório, no caso de Kagaapa, no qual os performers usam saias de palha, folhas
terapêuticas de epêyêi (espécie não identificada), adornos plumários simples, um
arco preto, um chocalho, um bastão de percussão e um banquinho de madeira. É
importante notar que o esquema de durabilidade dos objetos rituais, que descrevi
acima, tem uma relação homóloga com as capacidades musicais desses objetos
e personagens. A flauta é o objeto musical por excelência, seguido dos coros
femininos e do trocano. Este, por sua vez, na sua relação com as máscaras,
mostra-se análogo às flautas (Krause, 1960). As Yakui, únicas máscaras feitas de
madeira dura, são guardadas dentro do trocano e os personagens (Espécies) que
elas encarnam são muitas vezes os P(p)eixes que antigamente viviam dentro do
Pulu-Pulu, como Yuluma-kumã (Piranha) e Siyai-xumã (Tucunaré). Segundo
Mello (1999: 111), a performance desse idiofone de percussão é acompanhada
de um cantor. O alto custo de um ritual de flautas deve-se, em primeiro lugar, ao
pagamento da fabricação das flautas com objetos de luxo e ao fornecimento de
comida durante o longo ciclo desse ritual.
Na ponta inferior desse sistema material-musical, encontram-se as
máscaras, personagens rituais muito pouco musicais. As canções das máscaras
são breves, algumas delas nem mesmo cantam, como é o caso das Atujuwá,
Atujuwátãi e Yuma. A maioria dos diagnósticos xamânicos identifica os apapaatai
como mascarados e não como flautistas, por essa razão as máscaras são as
formas rituais mais produzidas/festejadas entre os wauja. Ademais,
comparativamente aos rituais de aerofones, os rituais de máscaras são baratos,
pois eles não exigem a contratação de altos especialistas em músicas de
apapaatai. Os apapaatai feitos como máscaras rituais cantam muito pouco.
Dezenas de pessoas têm vários apapaatai, manifestados como máscaras, a
espera de que eles possam ser futuramente feitos em algum Apapaatai Tyãu,
portanto, para que eles possam dançar sob o comando de trios de flautas já
constituídos ou a constituir. Em Piyulaga, há um número maior de apapaatai, a
229

espera ou não de rituais, do que de gente humana. Várias dezenas de apapaatai


já estão inseridas entre os Wauja: grupos de Onças, de Peixes, de Macacos, de
Fogo, de Mulheres Arraia (Yamurikumã Yapuneju nau), de Mulheres Tracajá
(Yamurikumã Ixuneju nãu), de Sapos, de Morcegos etc.
A principal distinção entre máscaras, flautas e clarinetes no âmbito do
ritual assenta-se em uma relação relativamente exterior a esses objetos. É por
meio das relações de troca entre o nakai wekeho (“dono” ritual) e os seus
kawoká-mona que um ritual de apapaatai pode ser mantido. São as tarefas rituais
executadas pelos performers dos “objetos duros” e seus auxiliares que
asseguram a produção dos alimentos que serão consumidos por eles.
No caso das máscaras, passados alguns anos, elas são queimadas,
cessando completamente as obrigações do “dono” do ritual de oferecer comida
aos seus kawoká-mona e destes de retribuírem a comida com trabalho e/ou
artefatos. Idealmente, o fogo não é o destino das flautas de madeira e dos
clarinetes, uma vez que a imagem de durabilidade a eles associada concorre
para a permanência de sua forma ritual. Os apapaatai mascarados pertencentes
a um “dono” específico terão a sua performance ritual realizada apenas uma
única vez, enquanto que as performances das flautas Kawoká e/ou dos clarinetes
Tankwara de um “dono” específico poderão ser várias vezes repetidas até o fim
da sua vida, ou ainda seguir sob os cuidados de seu(sua) herdeiro(a), caso este
seja o seu desejo.
A idéia de durabilidade representada pelas flautas Kawoká é de fato
profunda. O caso dos buracos subaquáticos (memulu) feitos para guardar as
Kawoká e máscaras de madeira (Yakui), por períodos de luto ou outra razão de
suspensão temporária do ritual, é um exemplo interessante. O uso desses
buracos vigorou até antes da segunda grande epidemia de sarampo, ocorrida em
meados da década de 1950. Meus informantes dizem que há muitas Kawoká e
Yakui abandonadas em memulu, porém esses objetos rituais não podem mais
ser resgatados, pois eles se tornaram “objetos” perigosíssimos, capazes de matar
quem os tocar. Sua letalidade surgiu em virtude do longo tempo em que
permaneceram sem alimentos e cuidados. Eles se transformaram definitivamente
em apapaatai-iyajo (monstros). Assim, o traço de familiaridade que havia neles foi
inevitavelmente suplantado pelo retorno desses apapaatai à sua antiga
alimentação de carnes e vegetais crus e/ou de sangue. Se um “dono” não quer
PRANCHA 17

Figura 58 - Tarde do dia 1


de agosto de 2000. O
quinteto de clarinetistas de
Atamai festeja o apapaatai
Tankwara Yamunaka
(Onça clarinetista). A fileira
de feixes de sapé que se
estende ao longo da casa
de Atamai foi recolhida sob
a liderança dos clarine­
tistas e será usada para
finalizar a cobertura da
casa, sobre a qual serão
colocados troncos inteiros
de árvores, índices de
reconhecimento do estatu­
to de alta chefia do dono
da casa.

Figura 59 - A parte oriental


da aldeia wauja vista do
telhado da casa de
Mayaya, o putakanaku
wekeho. A grande casa ao
fundo, oferecida a Atamai
por seus kawoká-mona
Tankwara Yamunaka, teve
a sua construção iniciada
em dezembro de 1998,
tendo sido interrompida
algumas vezes até à sua
conclusão em agosto de
2000. Com uma área
aproximada de 600 m2, a
amunaw opona de Atamai
encontra-se repleta de
insígnias distintivas, como
por exemplo, a disposição
dos caibros do telhado e os
quase 350 metros lineares
de frisos internos pintados
com motivos gráficos.

Figura 60 - Manhã do dia 8


de setembro de 2002. Sob
a liderança dos kawoká-
mona Tankwara Yamunaka
de Atamai um grupo de
homens planta manivas na
roça de Atamai. Em
primeiro plano, Yamalui,
seu genro, identifica os
limites dos 3,8 acres dessa
imensa roça plantada como
tarefa ritual para sustentar
os apapaatai Tankwara
Yamunaka de Atamai.
230

mais alimentar os seus apapaatai, ele deve destruir seus objetos rituais,
sobretudo se estes forem flautas. Muitas vezes, quando alguém herda do pai ou
da mãe um trio de Kawoká, preocupa-se imediatamente em consolidar as
condições de alimentar os seus kawoká-mona. Caso o herdeiro pressinta que
não terá sucesso em satisfazer as demandas alimentares de Kawoká, ele
decidirá pela queima das flautas, oferecendo um último ritual, no qual receberá o
último pagamento de seus kawoká-mona, sinal da dissolução completa da sua
relação produtiva com esses mesmos kawoká-mona.
Os Wauja dizem que “antigamente” havia pessoas que, por pura maldade,
abandonavam seus objetos rituais nas lagoas, deixando os apapaatai agressivos
e consequentemente infestando-as de perigos. As histórias dos memulu e dos
abandonos mostram que os objetos rituais podem passar diretamente à condição
de protótipo, tornado eles próprios um tipo particular de protótipo. Uma flauta de
madeira é um corpo hiper-resistente que, uma vez lançado no memulu, tende a
ficar cada vez mais duro. Dureza de monstro, “bicho” que não morre, a não ser
pela ação física e violenta de outrem.
Embora as flautas Kawoká ocupem, na organização hierárquica do ritual, a
posição mais elevada, seus grupos rituais raramente existem e atuam de maneira
isolada: há uma nítida cooperação entre os apapaatai produzidos como flautas e
aqueles produzidos como máscaras. Assim, se um “dono” de ritual de aerofones
também possuir kawoká-mona de apapaatai mascarados (Ariranhas, por
exemplo), estes devem ajudar os kawoká-mona de aerofones em seus trabalhos
rituais, mas não o inverso, o que confirma a posição central e superior dos
aerofones nesse sistema. Kawoká ocupa, portanto, o centro do sistema
cerimonial wauja, em torno do qual gravitam as máscaras.
As flautas de madeira são um dos pouquíssimos objetos rituais passíveis
de transmissão para as gerações seguintes. O(a) herdeiro(a) recebe não apenas
as flautas, mas também os kawoká-mona responsáveis pela sua performance
ritual. Essa transmissão é um dos melhores indícios do caráter permanente que
as flautas assumem entre os Wauja. Aliás, não há uma única aldeia em todo Alto
Xingu que não possua pelo menos um trio delas. Há, na aldeia wauja, cinco trios
rituais de Kawoká constituídos, porém apenas três estão operantes, ou seja,
executam tarefas rituais, como o plantio de roças, fabricação de canoas, casas
etc. (figuras 58, 59 e 60).
231

Esta ordenação hierárquica baseada numa lógica do sensível (som e


matéria), que coloca as flautas Kawoká em uma posição privilegiada, está, no
momento, sendo “subvertida”, segundo manifestam alguns Wauja. Há indivíduos
que são “donos” rituais de Kawoká, mas que continuamente têm recebido
serviços e bens de menor valor, comparativamente a um certo “dono” ritual de
Tankwara. O fato tem sido objeto de dissensões no campo político wauja. Elas
são, como veremos no capítulo seguinte, um conflito na própria estrutura ritual.
Passada a fase do diagnóstico xamânico, a decisão se um determinado
ritual tomará ou não lugar no centro da aldeia cabe prioritariamente aos kawoká-
mona do ex-doente (ou doente, caso seu estado de saúde ainda não tenha
normalizado). Assim, a figura do yakapá torna-se secundária depois do
diagnóstico. Suas habilidades divinatórias serão requisitadas uma única, e última
vez, no dia da pintura das máscaras, pois é o yakapá que descreverá para os
kawoká-mona as pinturas das máscaras dos apapaatai que ele identificou em
seus transes e/ou sonhos. Os kawoká-mona devem executá-las com a máxima
fidelidade, pois, caso contrário, estar-se-á produzindo um apapaatai distinto
daquele que de fato adoeceu o sujeito da terapia ritual. Enfim, o que importa não
é apenas o conhecimento do repertório iconográfico, mas o modo singular que os
motivos gráficos devem ser empregados para individualizar os apapaatai como
personagens rituais; e isso apenas o yakapá pode dizer. No caso dos aerofones
é a música que cria a condição de individualização, portanto cada Animal tem a
música própria da sua Espécie.
O que veremos nas seções seguintes é como os usos desses objetos
rituais esboçam as linhas de uma cosmopolítica wauja.

6.2
OS KAWOKÁ-MONA E A MANUTENÇÃO

DOS RITUAIS DE APAPAA TAI

No quarto capítulo, mostrei como os kawoká-mona são imbuídos, a partir


do ritual de trazer apapaatai, de um poder xamânico que deve ser usado para
zelar pela saúde do seu “dono”, ou seja, daquele que adoeceu. Esta seção
232

descreve como se processa a passagem do ritual de trazer apapaatai para a


etapa do fazimento ritual das personagens, tomando como exemplo o caso dos
clarinetes Tankwara, formas rituais cuja capacidade de permanência é maior que
a das máscaras.
Além de terapeutas, os kawoká-mona são responsáveis pela produção de
bens e serviços ligados à manutenção dos rituais dos apapaatai que eles
incorporam para o seu “dono”. Ou seja, se o diagnóstico xamânico distribui o
potencial produtivo dos apapaatai, a sua atualização depende direta e
inevitavelmente dos kawoká-mona. Em consequência disso, os kawoká-mona
têm um papel fundamental no curso das mudanças dos status sociocosmológicos
dos seus “donos”. Prossigamos com o caso de Atamai.
Como vimos anteriormente, os yakapá diagnosticaram que a alma de
Atamai estava sendo alimentada com sangue e carne crua por famílias de Onças
e Ariranhas. No caso de Atamai, as formas rituais de Yanumaka (Onça)
aparecem como Tankwara (um quinteto de clarinetes) e Atujuwá (máscara); as
Ariranhas (Ewejo) também aparecem mascaradas. Outros yerupoho atuavam
como flautistas, como cantoras (Yamurikumã), como máscaras diversas e como
portadores de pás de beiju e desenterradores de mandioca. O ritual de Kukuho,
no qual se fabrica estes dois últimos tipos de artefatos, foi feito quando Atamai
ainda estava em Brasília, já o ritual das Ariranhas mascaradas, tão logo ele
retornou a Piyulaga. Apesar desses esforços, o estado de Atamai melhorou
apenas um pouco. As Onças clarinetistas ainda afligiam Atamai. Decisões
precisavam ser tomadas para que essas Onças fossem “familiarizadas”. Atamai,
consciente da sua frágil relação com esses Animais, passa esporadicamente a
oferecer-lhes comida por meio dos seus cinco kawoká-mona, sim, pois se trata
de um quinteto de Onças clarinetistas.
É Kuratu, sobrinho e kawoká-mona de Atamai, que continua a nos contar
como seu tio alcançou o status de “dono” do ritual Tankwara e logrou dar início à
“familiarização” desse grupo de Onças.

Pakairu (esposa de Atamai) colocou mingau nos


caldeirãozinhos. Yatuná (irmão e akatupaitsapai de Atamai) levou-
os para o enekutaku (centro da praça) e chamou o pessoal. Eu
ainda estava na roça. Foi meu filho pequeno que ouviu e foi
correndo bem depressa até a roça para me chamar.
233

— “Papai, pessoal está te chamando lá no enekutaku”.


(Kuratu vai ao encontro do chamado).
— Que apapaatai sou eu? (perguntou Kuratu para Yatuná)
— “Você é Tankwara”.
— Qual Tankwara?
— “Yanumaka" (Onça).
Aí Yatuná terminou de chamar o resto do pessoal. Eu fui o
primeiro (i.e. kawoká-mona kitsimãT, por isso Kuratu é o líder do
quinteto de clarinetistas). Antes, o outro pessoal tinha feito só as
festas de Kukuho e Ewejo (máscaras de Ariranha). Mas o que
estava mesmo fazendo mal para meu tio era Yanumaka, por isso
ele melhorou só um pouquinho lá em Brasília. (...)
Ele não tinha Tankwara (quer dizer os clarinetes) ainda. Aí eu
fiquei pensando. Eu estava preocupado com ele. Eu tinha que
ajudar ele a melhorar. Pensei: se eu não fizer Tankwara ele vai
piorar. Eu estava preocupando, pensando nesse assunto. Aí chegou
aqui em Piyulaga um pessoal Kayabi que trabalhava com o ISA
(Instituto Socioambiental). Veio muita gente lá de cima (do Baixo
Xingu), explicando sobre como fazer o sabão de macaúba, o óleo
de pequi e o sal do índio para vender para os brancos. Os Kayabi
estavam conversando com o pessoal lá no enekutaku. Aí eu falei
para Yawari, um Kayabi.
— Oh amigo, será que você consegue uns tubos de bambu
para mim?
— “Arrumo sim”.
— Então eu vou dar o pagamento para você.
— “Está bem então”.
Eu dei uma caixa de munição quase cheia e uma calça de
moletom grosso.
Passou um mês e ele mandou os tubos de bambu. Pessoal
do (Posto) Leonardo disse pelo rádio que os Kayabi deixaram os
tubos lá na boca (na foz do rio Tuwatuwari com o Kuluene).
De manhã eu fui buscar. Fui de bicicleta (a distância entre
Piyulaga e a “boca” é de aproximadamente 32 km) Pessoal deixou
lá. Fiquei procurando. Estavam escondidos no mato. Eu carreguei
tudo de bicicleta, um rolo grosso de bambu. Cansei muito para
chegar até aqui.
À noite (naquele mesmo dia) falei com os nupamona nãu
(companheiros de grupo kawoká-mona) para a gente fazer as
Tankwara.
— Agora nós vamos fazer Tankwara para o nosso tio, para
ele ficar melhor, senão ele vai piorar.
— “Então, está bem" (concordaram os companheiros).
Aí eu chamei esse tio lá no meio.
— Tio, nós vamos fazer Tankwara para você ficar melhor.
— “Então está bem, podem fazer. No meu sonho ainda tem
gente trazendo carne crua para eu comer”.
No dia seguinte, às sete horas da manhã a gente começou a
fazer as Tankwara. Lixamos e colocamos watanatãi (palheta que
vibra) dentro. À tarde já estava pronto. Já estava tocando bem.
(Enquanto isso) Os genros dele estavam pescando para nós.
234

Pegaram muito peixe (demonstração de respeito por Atamai e


capacidade).
No outro dia a gente voltou a tocar. Tocamos até às cinco
horas (da tarde). Paramos. Aí eu peguei um banco e dei para o meu
tio sentar. Trouxe as Tankwara de dentro da kuwakuho e dei para
ele guardar (na sua própria casa).
— Olha tio, toma essas Tankwara para você, para você ficar
melhor.
— “É isso mesmo, é isso que fez mal para mim”.
No outro dia ele trouxe mingau, peixe cozido.
— “Isso é para vocês, é para apapaatai” (disse Atamai).

“Como você virou kawoká-mona de Atamai?” Esta foi a pergunta que dirigi
a Kuratu e que inesperadamente resultou num longo depoimento. Neste trecho
em especial, Kuratu constrói a narrativa de modo a indicar que os kawoká-mona
possuem um poder terapêutico e um dever moral de utilizá-lo. Na sequência
dessa reflexão, Kuratu demonstra claramente a sua responsabilidade em relação
à saúde de Atamai e convence seus companheiros sobre a legitimidade da sua
preocupação com seu tio e os compele a instituir o ritual de Tankwara para ele.
O fato mais inusitado da narrativa é que partiu unicamente de Kuratu a
iniciativa de fazer os clarinetes. Via de regra, o pagamento da fabricação dos
artefatos rituais que personificam os apapaatai é devido ao “dono” do ritual e não
aos seus kawoká-mona. A decisão de Kuratu foi movida pela “dó” que ele sentia
do seu tio. Por outro lado, ele também tinha admiração por ele (em função do
sucesso na redemarcação de um território limítrofe ao PIX em favor dos Wauja).
Para Kuratu, Atamai era merecedor de objetos rituais (o quinteto de clarinetes)
que permitissem a instauração de um ritual permanente, pois era adequado, ao
seu status de chefe iminente, a oferta da possibilidade de cuidar de apapaatai.
Todavia, há mais do que isto. Há sentimentos qualificados por traz dessa atitude
de Kuratu: há carinho e respeito por Atamai.
Rituais de cura com esse caráter são uma oportunidade do doente receber
afeto do grupo. Por mais que procuremos uma “linguagem” política nos rituais de
apapaatai, não se pode deixar de lado a moralidade privada que eles evocam, a
qual nem sempre está relacionada à política e ao plano propriamente humano da
existência, pois, como diz um sábio yakapá wauja, os apapaatai se apiedam dos
humanos, desejam cuidar destes e serem cuidados por eles. A “mistura”
ontológica é de tal forma que redimensiona, nos rituais de apapaatai, as posições
235

de “humano”, “animal” e “espírito”. Como afirmam os Wauja, “é tudo ‘gente’


(7yãu)”.
Todavia, não é a simples oferta da possibilidade de cuidar de apapaatai o
que assegura a continuidade prolongada do seu ritual. A passagem plena do
status de “dono” de apapaatai (apapaatai wekeho) para o de “dono” de ritual
(nakai wekeho) depende, inicialmente, de duas coisas: a disponibilidade de
especialistas rituais para levar a cabo as performances com certa frequência e
uma parentela co-residente suficientemente numerosa para produzir e processar
alimentos para os kawoká-mona por um longo período de tempo.
Quando o akatupaitsapai convoca, desde o enekutaku, as pessoas que
irão levar apapaatai para o doente, um dos aspectos mais importantes que ele
deve levar em conta é o conhecimento ritual das pessoas que ele pretende
convocar, e secundariamente se essas pessoas já não tem excessivos
compromissos rituais em curso ou em vias de entrar em curso. Em se tratando de
levar apapaatai^ para indivíduos amunaw, o seu akatupaitsapai escolherá
“pessoas que gostam de festa”, i.e. que demonstram ânimo para criar as
condições de manutenção mais prolongada do ritual. Os que “gostam de festa”,
normalmente são homens de grande atividade pública entre os Wauja, aqueles
que conseguem mobilizar seus pares em torno de tarefas rituais. O kawoká-mona
ideal é sempre aquele que chama o “pessoal para dançar”, que envolve a
comunidade em trabalhos para seu “dono”. O seu oposto é o matanaká, categoria
social que designa os indivíduos desinteressados pelas coisas rituais e públicas
— corresponde ao “homem do quintal”, na etnografia de Gregor sobre os
Mehinaku (1977). Convocar um matanaká seria um desrespeito ao doente, pois
aquele apresenta imensas chances de pouco ou nada fazer pelo zelo da saúde
de seu “dono”. Kuratu é exatamente o oposto do matanaká. Embora ele não
tenha conhecimentos profundos sobre a alta esfera ritual wauja, a qual diz
respeito às músicas das flautas Kawoká e do ritual funerário Kaumai, ele se
tornou um dos mais importantes e ativos especialistas rituais wauja ao liderar o
grupo kawoká-mona Tankwara do chefe Atamai.
Para que alguém possa manter um ritual de apapaatai é fundamental ter
uma parentela co-residente que inclua sua esposa ou esposo e pelo menos duas
filhas casadas ou dois filhos casados para o auxílio na produção de alimentos.
Sem possuir os recursos humanos nessas condições, a manutenção de um ritual
236

de apapaatai é praticamente impossível. Mas a questão vai um pouco além de


simplesmente ter essas condições ideais. Trata-se, em primeiro lugar, de uma
decisão do grupo de kawoká-mona que foi originalmente convocado para
performatizar o ritual de trazer apapaatai. O líder desse grupo (kawoká-mona
kitsimãT) deve informar, solenemente, no pátio em frente à kuwakuho, na
presença dos demais homens da aldeia, a sua decisão de assumir as tarefas que
envolvem a realização e/ou a manutenção do ritual do apapaatai que ele e seus
companheiros kawoká-mona foram anteriormente convocados a levar (i.e.
mimetizar) para o doente.
Um kawoká-mona kitsimãT é um homem de prestígio em função do
conhecimento ritual que possui e da sua habilidade em envolver a comunidade
nos trabalhos coletivos. Ao comunicar sua decisão, a comunidade sente-se
moralmente pressionada a se engajar nas tarefas que ele propôs. O “dono” dos
apapaatai não deve recusar o patrocínio de uma tarefa ritual proposta por seus
kawoká-mona, pois ele perderia a chance de aumentar/consolidar seu prestígio e
poderia ainda perder a estima que o grupo tem por ele. Uma recusa gera um
auto-constrangimento. Ao lado disso, o “dono” dos apapaatai correia o risco de
sofrer novas investidas patogênicas dos mesmos apapaatai que o adoeceram
antes.
Logo que os kawoká-mona começam a performance ritual que precede as
tarefas, o “dono” dos apapaatai deve providenciar grande quantidade de comida
para alimentá-los. A partir desse momento, o “dono” dos apapaatai passa a ter o
status de nakai wekeho (“dono” do ritual ou “o que cuida do ritual") dos apapaatai
que o adoeceram.
Uma decisão desse tipo não é tomada em favor de um certo “dono” de
apapaatai apenas porque ele tem as condições materiais de manter um ritual,
mas porque ele desperta a “confiança” do grupo, ou seja, porque ele demonstra
potencial para cuidar das questões comunitárias e de tomar decisões acertadas.
A instauração de rituais permanentes de apapaatai cria um sistema de
crédito e débito entre um “dono” ritual e o restante do grupo. Para Basso (1973:
107-124), a sociedade kalapalo pode ser basicamente dividida em duas
categorias: os que têm o privilégio de receber e os que, por respeito a estes,
devem oferecer. Contudo, estas posições são intercambiáveis: quem recebe
muito tem a delicada obrigação moral de redistribuir. Essa divisão aplica-se do
237

mesmo modo aos Wauja. Esse modelo, que no Alto Xingu é regulado por noções
morais como o ifutisu kalapalo (Basso: 1973), por exemplo, encontra ecos
também em outros povos do Brasil Central:

a economia política Xikrin hoje se assenta em uma diferenciação


entre uma ‘classe’ de chefes com mais capacidade de acumulação
— que atuam como redistribuidores — e a outra parcela da
comunidade (Gordon, 2003: 23).

A diferença entre os Xikrin e os Wauja é que no primeiro caso os bens


para redistribuição vêm de fora, do mundo dos brancos; no caso wauja, esses
bens precisam ser produzidos pelos próprios kawoká-mona (com ou sem a ajuda
do resto do grupo), o que implica na manutenção de uma estrutura produtiva
interna a pleno vapor, que é precisamente os rituais de apapaatai. Isso
obviamente significa um incremento do sistema de crédito e débito mencionado
acima.
Penso estar explícita a idéia de que a doença insere o potencial produtivo
dos apapaatai entre os humanos, porém a sua atualização em bens que
asseguram a manutenção dos próprios rituais depende de um outro estado de
coisas, que não possui uma relação direta com a doença. A minha hipótese é que
o “motor” dessa manutenção liga-se diretamente a uma noção de “nobreza”, ou
melhor, ao status de amunaw, e a um projeto de progressão desse status,
representado por determinados indivíduos. Um dos dados que apoia a minha
hipótese é o fato de que os únicos rituais permanentes de apapaatai— Kawoká,
Tankwara ou Yamurikumã — são mantidos unicamente em favor de indivíduos
amunaw. Esse padrão de patrocínio de rituais por amunaw pode ser
historicamente traçado desde fins do século XIX pela genealogia e por flautas
herdadas. Na aldeia wauja, os “donos” de rituais permanentes de apapaatai são
em número de sete, dois dos quais se encontram em disputa “faccionai” mais ou
menos velada. No capítulo seguinte, veremos como cada um deles participa do
sistema produtivo sustentado pelos rituais de apapaatai.
Sempre que os kawoká-mona realizam tarefas em favor de um “dono”
ritual, eles estão a lhe conferir um “crédito de confiança”. É por meio desses
rituais que uma quantidade extraordinária de excedentes alimentares e de
artefatos circulam, permitindo que os amunaw demonstrem um aspecto
extremamente importante da chefia wauja: a generosidade. Foi uma oportunidade
238

dessa natureza que foi dada a Atamai, a partir de 1993, quando os seus kawoká-
mona de Tankwara resolveram fazer uma roça de mandioca para ele, desde a
primeira etapa, constituída pela derrubada da floresta, até a última, consistida
pelo plantio. Atamai destinou os produtos dessa roça para os seus kawoká-mona
Tankwara e secundariamente para os seus co-residentes. A decisão de um grupo
de kawoká-mona de tornar um “dono” de apapaatai um “dono” de rituais
permanentes tem motivações políticas implícitas, que muitas vezes só podem ser
identificadas quando inseridas em vários quadros referenciais biográficos. A
escolha sempre incide sobre alguém que demonstra empenho no bem-estar do
grupo como um todo. Vejamos como isso se processou no caso de Atamai.

6.3
O STATUS DE AMUNAWE O

PATROCÍNIO DE RITUAIS

Em sua etnografia sobre os Kalapalo, Ellen Basso (1973) identifica quatro


status sociais básicos: anetaw (amunaw), oto (nakai wekeho, “dono” de ritual), ifí
(kawoká-mona, especialista ritual) e fuati (yatamá, xamã). Idealmente, nada
impede que um homem wauja ou kalapalo acumule mais de um desses status.
Contudo, ele poderá encontrar a oposição de pessoas do seu grupo em relação a
esse esforço de acumulação. A alternativa usualmente mais seguida, mas não a
mais almejada, é acumular prestígio, no máximo, dentro de dois status diferentes.
Passemos a palavra a Basso:

In general, all these statuses are specialist positions, which involve


Services to the community.
This conscious model does not take into consideration the possibility
of status “accumulation”, nor the cumulative effect of this
accumulation in terms of the acquisition of power. The Kalapalo do
not speak of any one of these statuses in terms of leadership or the
ability to control the initiative of others. However, in reality leaders
are those few persons who have managed to acquire a great many
statuses and who thus stand apart from the rest of the community as
powerful individuais (1973: 124).
239

Os amunaw são os indivíduos que mais acumulam status. Além de


amunaw, eles quase sempre são “donos” rituais (nakai wekeho), que é nada mais
do que um status que retro-alimenta o primeiro. Conflitos políticos podem tomar
maior relevo quando um grande amunaw, já somado o seu status de nakai
wekeho, resolve se tornar um yakapá: surge então um indivíduo com poderes
extremos, os quais lhe permitirão sustentar acusações de feitiçaria contra seus
inimigos e conduzir, de modo mais ou menos pleno, os negócios cosmopolíticos
da sua aldeia.
As contribuições de Ireland (1986, 1988a, 1993b e 1996) mostram como a
contestação e a afirmação do status de amunaw é perpassada por acusações de
feitiçaria, sendo, portanto, um status suscetível a se fragilizar. Isoladamente, o
status de amunaw não garante poder político. Entre os Wauja, é extremamente
importante somá-lo ao status de nakai wekeho para fortalecê-lo e para evitar que
os conflitos sejam enquadrados pelo idioma da feitiçaria. No capítulo seguinte,
mostrarei como um “nobre menor” tem, desde o início da última década, se
esforçado em fortalecer o seu status de amunaw por meio do patrocínio quase
desenfreado de rituais de apapaatai. Tal patrocínio concorreu ainda para descolar
a sua pessoa das acusações de feitiçaria que ele sofreu na década de 1980.
Viveiros de Castro, em seu estudo sobre os Yawalapíti, observou o mesmo
padrão que observei para os Wauja a respeito da relação entre os status de
amunaw e de nakai weheho\

O amulaw é aquele que dispõe de uma capacidade de mobilização


de trabalho — de seus filhos e afins — maior que a maioria. Isto lhe
permite acesso a símbolos valorizados pelo grupo, especialmente o
patrocínio das festas em homenagem aos espíritos. Todas as
cerimónias que tinham dono entre os Yawalapíti se repartiam entre
uns poucos indivíduos, ditos amulaw (1977: 221, grifos meus).

E ainda:

Os amulaw representam o tipo ideal xinguano, seja por seu


comportamento, seja pelo privilégio de uso de certos símbolos
visuais e verbais; eles estão mais próximos dos arquétipos; todo
personagem mítico classificado como humano é sempre amulaw
(Viveiros de Castro, 1978:168).
240

As cerimónias a que esse autor se refere são precisamente os rituais de


apapaatai. Por meio da categoria amunaw e do patrocínio de rituais de apapaatai
pode-se desenhar com alguma nitidez os espaços de atuação e de conflito
político entre os Wauja.
Um indivíduo, ao adoecer gravemente, possui a condição ideal de
estabelecer uma aliança mais ampla com a comunidade via a ritualização dos
seus apapaatai. Contudo, apenas certos indivíduos potencializam essa aliança.
Obviamente, todos os Wauja são passíveis de adoecer gravemente, porém nem
todos eles têm condições de promover uma festa de aerofones para os
apapaatai, e um número ainda muito menor de indivíduos consegue manter, ao
longo de anos a fio, um ritual de apapaatai. Uma das razões da possibilidade de
manutenção esta ligada capacidade de acumular simultaneamente os status de
amunaw e de nakai wekeho. Mas afinal quem são esses indivíduos que têm uma
relação privilegiada com a dimensão “mais” humana da pessoa distribuída dos
apapaatai (os kawoká-mona), aquela que ele alimenta, “cuida”?
Amunaw {amuluneju, feminino) é uma categoria que, no diálogo com os
brancos, os Wauja traduzem por “cacique” ou “capitão” (esta, já um tanto mais
antiga, ainda segue sendo aplicada entre os Kamayurá e Yawalapíti), porém ela é
bem mais do que isso9. Meus informantes indicaram-me uma outra tradução, a
de “nobre”, a qual, para determinados indivíduos, deve ser somada à de chefe.
Nobre, aqui, não tem obviamente a ver com nobiliarquia, mas com notabilidade
do discurso e do corpo, com generosidade, altruísmo e ascendência. Um
amunaw é alguém que descende de um amunaw e que obteve sucesso em
fabricar o seu corpo (Viveiros de castro, 1979), com perfeição e beleza, e em
desenvolver a bela fala {awojogatakoja)w. A noção wauja de “nobreza” assenta-
se de modo muito excepcional sobre concepções estéticas.
Todo amunaw, antes de ser propriamente um chefe político, é alguém que
possui substância de amunaw, herdada patri e/ou matrilinearmente. Se herdada
de apenas uma linha, a quantidade de substância será menor. Em uma
referência ao status kuikuru de anétâ {amunaw), Carneiro sugere que

9 Viveiros de Castro (2002c: 35) traduziu a categoria amunaw (amulaw em yawalapíti) por
aristocrata.
10 A awojogatakoja não é a amunaw ogatakoja (“fala dos chefes”, Franchetto, 1993). Ela é,
sobretudo, uma fala edificadora de relações sociais de qualidade, que anima o grupo para os
trabalhos coletivos e que oferece boas soluções aos problemas cotidianos.
241

o fato de que este status seja transmitido bilateralmente, e não


(apenas) patrilinear ou (apenas) matrilinearmente, fortalece a idéia
de que se trata de um vestígio de um sistema de classes sociais, e
não de sibs ou metades. Embora não existam verdadeiras classes
sociais entre os cuicuros, é evidente que um anétâ tem uma posição
social mais alta que um não-anétâ ou kamaga [corruptela de
“camarada”]. Portanto, somente ele [um anétâ] pode ocupar a
posição de chefe da aldeia, e dirigir a cerimónia de troca, uluki
(1993:408).

A chefia wauja se expressa em duas dimensões, uma doméstica e outra


supra-doméstica (de aldeia). A primeira delas nos interessa aqui de modo apenas
indireto, na medida em que os chefes de aldeia dependem do apoio de chefes de
grupos domésticos. Para ser chefe de um grupo doméstico não é necessário ser
amunaw, entretanto a chefia de aldeia tem como requisitos indispensáveis a
posse de substância “nobre” e a sua potencialização, a qual depende de uma
parentela extensa — que pode incluir um ou mais chefes de grupos domésticos
— capaz e interessada em fazer pesados investimentos rituais em nome de um
parente que possui reconhecida substância de amunaw (e.g. primogénitos) e
habilidades para liderança.
Em um primeiro plano, o que está por trás da chefia de aldeia é a idéia de
« nobreza”, de transmissão patri e/ou matrilinear de uma substância escassa que
apenas alguns poucos indivíduos possuem. A estratégia de conservação dessa
substância é um dos principais aspectos da política matrimonial wauja: amunaw
normalmente casam-se com amunaw. Essas alianças têm um caráter
exogâmico11 mais acentuado do que a maioria das alianças entre os não-
amunaw. A posse dessa substância deve receber uma confirmação ritual — o
Pohoká — na adolescência, condição irrefutável para que o jovem que possui
substância de amunaw possa, quando adulto, ser apoiado em uma posição
relevante de chefia, cuja expressão máxima se realiza na chefia de aldeia,
reservada para não mais do que dois indivíduos em atuação simultânea,
idealmente o primogénito e o irmão subsequente.
A categoria amunaw é melhor compreendida quando associada aos quatro
afixos modificadores dos conceitos-base amplamente empregados nas línguas

11 Nos últimos 40 anos, as alianças exogâmicas wauja mais evidentes deram-se com os
Kamayurá, os Mehinako e os Yawalapíti. O casamento do primogénito de um grande chefe wauja
das décadas de 1960 e 1970 com uma amuluneju yawalapíti foi uma das alianças
estrategicamente idealizadas entre esses dois grupos.
242

arawak xinguanas: -kumã (arquetípico, extraordinário, superior), -iyajo


(verdadeiro, o próprio, autêntico, legítimo), -mona (semelhante, ordinário,
comum), -malu (falso, imprestável, impróprio). Amunaw-kumã é dito para os
“chefes” do tempo mítico (Sol, Lua e seu avô, Kwamutõ) e para os “donos”
(chefes) não-humanos de domínios geocósmicos específicos, como o Ulupu-
kumã, Urubu-Rei bicéfalo que vive no céu sem jamais descer à terra. A bicefalia é
um índice de chefia. Décadas atrás, os pesados bancos de madeira
“representando” o Ulupu-kumã eram uma importante e exclusiva insígnia de
chefia entre os xinguanos (Agostinho, 1974; Coelho, 1980). Os Wauja contam
que “antigamente” a produção de bancos-Urubu para os “donos” rituais era uma
das tarefas dos kawoká-mona. Os amunaw, aliás, são também chamados de
“donos” do banco (sepiyekeho). A idéia que tal posse evoca é a de alguém que
se senta sobre a imagem de um poderoso chefe do céu. Amunaw-iyajo são os
grandes líderes políticos, sejam eles indígenas ou brancos. Amunaw-mona são
os chefes de parentelas extensas ou de grupos domésticos ou ainda auxiliares
dos amunaw-iyajo (contextualmente, já percebi os Wauja traduzirem amunaw-
mona por “vice-cacique” e por “ministro”). Amunaw-malu é alguém que não tem
sua “nobreza” reconhecida. Malu é um termo extremamente pejorativo e
desrespeitoso, sendo por isso empregado para desqualificar ou ofender um
amunaw-mona ou amunaw-iyajo em atividade. Enfim, esses quatro sufixos
apontam para a idéia de que os wauja dividem os seus “nobres” entre “maiores” e
“menores”.
Tal variação qualitativa é uma função direta da quantidade de substância
“nobre” que o indivíduo recebeu de seu pai e/ou mãe amunaw e da sua condição
de primogênito(a). A quantidade de substância “nobre” decresce do primeiro filho
para os subsequentes, gerando uma forte desigualdade entre os filhos seniores e
juniores de um amunaw ou de uma amuluneju. Essa lógica degenerativa da
substância é também função do tempo do resguardo pós-parto observado por
ambos genitores. O resguardo é maior para o primogénito e praticamente nulo a
partir do quarto filho. Esse tipo de resguardo pós-parto de duração decrescente é,
acima de tudo, um esforço para gerar a distinção entre o primogénito e os demais
filhos, sendo, nesse sentido, o primeiro símbolo (rito) da reprodução do status de
amunaw na descendência, ao qual seguem muitos outros, tudo culminando no
grande ritual pós-funerário em homenagem ao amunaw morto (Kaumai, em
243

wauja; Kwarip, em kamayurá). Na sua etnografia sobre este ritual, Agostinho


afirma que

uma das condições para o exercício das funções de “capitão”12, de


aldeia ou apenas de família extensa é a linhagem. O status de
morerekwat (“capitão”) transmite-se hereditariamente, e, seguindo a
bilateralidade do sistema de parentesco local, por via paterna e
materna, com tendência à acentuação da primeira no que se refere
ao exercício efetivo da liderança. As prerrogativas do status de
capitão ou de seu descendente fazem-se sentir de modo muito mais
efetivo na esfera cerimonial, e aqui as regras de bilateralidade (...)
aplicam-se cabalmente. Os homens (morerekwat) e mulheres (noitu,
morerekwara kunyã) descendentes em linha direta de um
morerekwat, gozam do direito de terem celebrados funerais
especiais e Kwarip em sua memória (1974: 27).

Menezes Bastos oferece-nos uma síntese precisa do que vem a ser um


morerekwat com um elevado grau de poder político:

O homem eminente xinguara é basicamente o núcleo de uma


grande parentela — um sogro/cunhado/irmão conspícuo — e de
uma clientela também importante — um cativizador e asilador por
excelência. Por outro lado, seu acesso privilegiado ao ritual e ao
xamanismo — à legislação, enfim, da etiqueta da xinguanidade —
lhe propicia a concentração de poder indispensável para a
manutenção do controle que detém sobre o sistema, inclusive sobre
suas manifestações em “feitiçaria” (1995: 260).

Tal concentração de poder pode torná-lo um chefe altamente temido. O


último chefe wauja (putakanaku wekeho), com esse caráter, faleceu há duas
décadas.
Idealmente, principal amunaw-iyajo é o putakanaku wekeho (literalmente
u
‘dono da aldeia”). Outros anumaw-iyajo o auxiliam em assuntos específicos,
como o trato com os brancos, a condução de certos rituais (sobretudo o Pohoká)
e a participação como cantores em um importante ritual xamânico chamado
Pukay13. Ao putakanaku wekeho é atribuído o dever de cuidar da vida
comunitária da aldeia e da própria aldeia enquanto espaço físico; “chefe” é

12 Equivalente ao status wauja de amunaw.


13 O Pukay é conhecido como Payemeramaraká (música da comunidade de pajés) entre os
Kamayurá. Menezes Bastos (1984/1985) realizou uma etnografia da versão kamayurá desse
ritual.
244

sempre aquele que “cuida”, razão pela qual o putakanaku wekeho chama seu
pessoal de “crianças” nos discursos cerimoniais.
De um certo modo, todo o amunaw nasce mais próximo do grau -mona
desse status. É apenas uma trajetória pessoal que lhe permita exibir, com
coerência, os atributos que constituem a persona ideal do chefe xinguano, e,
portanto, conquistar o respeito e a confiança do grupo, que lhe permitirão, um dia,
tornar-se amunaw-iyajo. O mais “nobre” dos wauja, por sua perfeita dupla
descendência de importantes amunaw, não demonstrou, em sua juventude, pleno
domínio da etiqueta, uma performance oral minimamente aceitável, nem um
desenvolvimento corporal satisfatório aos olhos dos Wauja: sua estatura ficou
abaixo da média e sua performance nas lutas era realmente péssima. Embora
amunaw, esse homem não tem nenhuma voz nos assuntos da aldeia, e sua
“chefia” se restringe apenas ao seu pequeno grupo doméstico. Juntam-se a ele,
na mesma condição de “nobre” de baixíssimo status, mais três ou quatro homens
de idades que variam entre 30 e 50 anos.
Aproximadamente vinte por cento dos homens e mulheres adultos em
Piyulaga são amunaw, alguns “mais” outros “menos”, dentre estes apenas três
homens e três mulheres são amunaw-iyajo/amuluneju-iyajo, e outros três ou
quatro homens caminham para a posição de amunaw-iyajo em um futuro não
muito distante. O que se dará quando os amunaw-iyajo atuais falecerem ou
decidirem, ainda em vida, transferir para outrem, a sua posição de chefe. Embora
haja uma forte diferenciação qualitativa (que não deixa de ser também
quantitativa) entre as categorias amunaw-mona e amunaw-iyajo no plano ideal,
no plano empírico a estrutura de representação política permite com que certos
indivíduos, conforme sua inserção na economia simbólica de prestígio e suas
conquistas pessoais, ascendam da posição amunaw-mona à de amunaw-iyajo.
llm grande chefe wauja não é exata e necessariamente alguém que nasceu com
uma excepcional quantidade de substância “nobre”, mas aquele que conseguiu
potencializar a substância “nobre” que herdou, mesmo que esta não seja muita.
Este foi precisamente o caso de Atamai.
Quando Atamai saiu da reclusão pubertária, Orlando Villas-Bôas14 pediu
permissão ao seu pai, o grande chefe (putakanaku wekeho) Malakuyawá, para

14 Orlando Villas-Bôas, ao lado de seus irmãos Cláudio e Leonardo, foram os personagens


centrais da mediação das relações entre os índios do Alto Xingu e Estado brasileiro, e da criação
do Parque Indígena do Xingu, na década de 1950.
245

que seu filho fosse viver no posto administrativo, onde ele aprenderia português e
algo sobre os modos do trato com os brancos. Informalmente, os irmãos Villas-
Bôas foram os mentores da formação de uma elite política indígena no Parque do
Xingu, mas essa elite não era constituída de filhos primogénitos dos grandes
chefes, mas dos segundo, terceiro e/ou quarto filhos15, como é o caso de Atamai.
Diante da resolução Standard de que a chefia tradicional é idealmente reservada
aos primogénitos e que por isso seus pais dificilmente permitiriam que seus
primogénitos se desviassem do curso do aprendizado da arte de ser putakanaku
wekeho (a mais difícil e importante das artes xinguanas), os Villas-Bôas tinham
pouca escolha além dos filhos juniores dos amunaw.
Anos mais tarde, Atamai retorna a Piyulaga, então casado com uma jovem
trumai, descendente de uma alta linha de chefes desse grupo. A escolha da sua
esposa teve especial influência de Orlando Villas-Bôas, mas não teve o
consentimento de Malakuyawá. O matrimónio de Atamai só veio se mostrar
estratégico, anos mais tarde, quando Orlando Villas-Bôas mediou a formação de
uma aliança trumai-mekragnoti, por meio do matrimónio entre uma sobrinha da
esposa de Atamai e um sobrinho de um importante chefe mekragnoti.
Desde a década de 1960, Malakuyawá treinava, juntamente com seu
primogénito Kasuelê, um FBSS, Yawalá, o qual Malakuyawá adotou quando pais
deste morreram na grande epidemia de sarampo da década de 1950 (Ireland,
1988b). Por ser Yawalá mais velho, por ter ele passado pelo ritual de “iniciação” à
chefia antes de Kasuelê e por ele demonstrar ter a personalidade ideal para
ocupar a posição de putakanaku wekeho, Malakuyawá, anos antes de morrer, o
havia escolhido para sucedê-lo. Fato que definitivamente ocorreu em meados da
década de 1980. Yawalá muito certamente foi um dos últimos xinguanos a
encarnar com certa perfeição o ethos da chefia maior. Em 1978 e 1980, Vera
Coelho se referia a ele como o “príncipe herdeiro”, e mencionava, em nossas
conversas, a especial dedicação que Malakuyawá conferiu à formação de
Yawalá.
Yawalá morreu subitamente poucos anos depois que assumiu a posição
de putakanaku wekeho. Conforme os treinamentos realizados por Malakuyawá e

15 O caso de Aritana, atual chefe yawalapíti, é uma exceção. Devido à enorme proximidade que a
aldeia yawalapíti tinha do posto indígena Leonardo Villas-Bôas (1,5 km), Aritana pôde ser
preparado para a chefia política tanto por Kanatu, seu pai, quando por Orlando Villas-Bôas
(Viveiros de Castro, 1977: 69).
246

a faixa etária de seus descendentes, a chefia maior da aldeia deveria ser


transmitida a Kasuelê, mas, alguns anos antes de seu pai morrer, ele exilou-se
na aldeia Yawalapíti, por motivos de intrigas que envolveram acusações de
feitiçaria, e jamais retornou a viver em sua aldeia natal. O status de putakanaku
wekeho foi então assumido por Mayaya, o segundo filho masculino de
Malakuyawá. Porém Mayaya assumia um status para a qual ele não estava
plenamente preparado, como estiveram seu irmão sénior (apesar de seu
temperamento imprevisível) e seu primo Yawalá. Ademais, Mayaya não falava
português16 algum. E ainda hoje, seu domínio desse idioma é bastante
inexpressivo. Em 2003, Mayaya transferiu o status de putakanaku wekeho para o
seu irmão Yatuná.
A partir de meados da década de 1980, quando a administração do Parque
Indígena do Xingu passou por uma grande reviravolta, a necessidade do trato
político com os brancos já se fazia imperativa entre os Wauja. O chefe ideal, ou
pelo menos o mais próximo do ideal, seria alguém versado tanto na chefia
tradicional quanto na capacidade de articulação com a política de Brasília. Mas
uma pessoa assim não existia entre os Wauja. Foi chegada então a vez de
Atamai, o terceiro filho masculino17, de ter certa saliência nos negócios políticos
wauja. É um fato bastante interessante que a elite treinada pelos irmãos Villas-
Bôas só tenha chegado ao poder quando os brancos deixaram o parque. A
“bipartição” na chefia wauja — co-existência de um chefe “interno” {putakanaku
wekeho) e um chefe “externo”, ou seja, para lidar com brancos — está totalmente
ligada à biografia de Atamai. Mas foi um fato absolutamente inédito no Alto Xingu
que possibilitou essa “bipartição” se consolidar.

16 Os Wauja ainda são o grupo mais conservador de todo o Alto Xingu. Por vários anos eles
mantiveram uma evitação dos brancos, a qual era tão saliente que os xamãs em iniciação eram
proibidos de falar qualquer palavra em português, sob o risco de comprometer seu processo
iniciático (Vera Coelho, informação pessoal). Até meados da década de 1990 os Kamayurá e os
Yawalapíti faziam piadas sobre a ignorância que os Wauja tinham sobre o mundo dos brancos,
muito dela em função do seu conhecimento relativamente pequeno da língua portuguesa. A aldeia
wauja foi oficialmente visitada em 1947 (Lima, 1950). Contudo, os Wauja dizem ter recebido a
visita de um homem chamado “Tsariwa” (corruptela wauja do seu verdadeiro nome) antes de
1947, mas desconheço registros que a comprovem.
17 Conforme Coelho (1980), nas décadas de 1960 e 1970, os Wauja consideravam Atamai “só
pouquinho amunaw”, razão pela qual não se esperava que ele se tornasse um amunaw-iyajo. Na
cerimónia de “furação de orelha” (Pohoká) que Atamai tomou parte, ele ficou colocado entre os
“peões”, ou seja, entre aqueles que apenas “acompanham” o principal “iniciando”. Vera Coelho,
que esteve entre os Wauja pela última vez em 1980, ficou bastante surpresa quando lhe disse,
em meados de 2000, que Atamai ascendera ao status de amunaw.
247

Ainda em meados da década de 1980, a segunda filha de Atamai contraiu


matrimónio com um importante líder kayapó, Megaron Mekragnoti, o qual foi o
primeiro administrador índio do Parque Indígena do Xingu, firmando, a partir
daquele momento, expressão na política indigenista brasileira. A posição de
sogro de Megaron assegurava a Atamai uma inserção privilegiada no campo
político da administração do Parque, coisa que poucos homens no Alto Xingu
poderiam ter, exceto se estivessem em semelhante condição de afinidade. Mas a
prova definitiva da capacidade de liderança de Atamai ainda estava por vir.
É mais ou menos quando ocorre essa inusitada aliança kayapó-wauja que
uma área no extremo sudoeste do território wauja começa a ser invadida por
fazendeiros, caçadores e pescadores brancos, tornado crítica a necessidade de
vigilância das fronteiras do Parque. Atamai instrui a Administração do Parque a
intervir junto à FUNAI para a criação de um Posto de Vigilância no alto rio Batovi,
para onde ele mandou o seu primogénito. O objetivo maior de Atamai era a
recuperação de um sítio sagrado, o Kamukuwaká, que fica 40 km ao sul do Posto
de Vigilância do Batovi. Em 1988, Atamai solicita ajuda institucional ao seu sogro
no que concerne a recuperação do Kamukuwaká18. Foi nesse contexto que
Atamai começou a construir seu status de amunaw-iyajo entre os Wauja. No
período entre 1988 e 1994, Atamai mostrou-se bastante empenhado na luta por
uma redemarcação territorial que abrangesse o Kamukuwaká, mas os 5159
hectares que constituem a “Terra Indígena Batovi” (Ricardo, ed. 2000), finalmente
homologados a favor dos Wauja em 1998, não chegaram a abranger o referido
sítio sagrado. Embora o Kamukuwaká tenha “ficado de fora”, o resultado geral da
negociação de Atamai com Brasília foi um êxito amplamente reconhecido pelos
Wauja, permitindo que ele “pegasse a confiança da comunidade”, conforme a
expressão usada por eles.
A ascensão de Atamai de um amunaw de “terceira categoria” para um
amunaw de “primeira categoria” (amunaw-iyajo) não deve ser vista como um
resultado direto e/ou exclusivo da sua competência em representar os Wauja
perante os brancos. Há uma outra dimensão que também concorre para isso: o
ritual de apapaatai, cuja importância é absolutamente imprescindível para afirmar
e consolidar uma posição de chefia do tipo amunaw-iyajo. A decisão tomada por
Kuratu em 1992 de oferecer a Atamai um quinteto de clarinetes deu-lhe a
248

possibilidade de colocar em curso um tipo de relação privilegiada com a aldeia.


Em 1993, o grupo de Tankwara de Atamai mobilizou os homens adultos de
Piyulaga em torno do trabalho completo de plantio de uma roça de mandioca
para Atamai. O produto dessa roça foi destinado a alimentar os kawoká-mona e
demais pessoas que participaram das tarefas, ou em termos mais abrangentes,
os apapaatai (Onças clarinetistas) que os kawoká-mona incorporam.
Desde os últimos dez anos, Atamai tem recebido roças de mandioca da
comunidade, sob a liderança de seus kawoká-mona Tankwara (figura 60), e
distribuído ritualmente beijus e mingaus e peixes cozidos ou moqueados,
pescados por seus genros e preparados por suas filhas e esposa. O ápice do
reconhecimento de seu status de amunaw-iyajo lhe foi dado, em 1999, quando
seus kawoká-mona Tankwara decidiram fazer para ele a amunaw opona (“casa
de chefe”)19, o maior bem distintivo que um chefe xinguano pode ter.
Quando visitei Piyulaga no outono de 1998, Atamai morava em uma
modesta casa tipo mehehe de duas águas, cujas paredes são feitas de pequenos
troncos, o que resulta em uma construção de altura relativamente pequena se
comparada à casa tradicional xinguana (Sá, 1983). Em Piyulaga, mêhêhe é um
tipo de construção secundária, normalmente usada como cozinha. Quando voltei
a Piyulaga, em fevereiro de 2000, fiquei muito surpreso ao encontrar Atamai e
sua família morando em uma enorme amunaw opona de 39.7 metros de
comprimento, 8.4 metros de altura e 16.2 de largura (figuras 58 e 59).
Atualmente, em todo o Alto Xingu, apenas dois chefes vivem em uma amunaw
opona, Atamai, em Piyulaga, e Yakumin, na aldeia Aweti20. A amunaw opona
destaca-se dos demais tipos de casas xinguanas não só por suas avantajadas
dimensões, mas, sobretudo, pelos exclusivos enfeites e insígnias de chefia que
ela ostenta em seu interior e exterior.
Retorno aqui ao episódio da encomenda do ritual de máscaras que a
Artíndia fez aos Wauja em 1997, e que Atamai resolveu patrocinar sozinho em
julho do mesmo ano. Ora, Atamai soube, nessa situação, explorar com maestria
seu estoque de apapaatai não-festejados, vinculando a realização do ritual e a
venda das máscaras ao compromisso da Artíndia em auxiliar a abertura de uma

18 Lembro o leitor que 1988 foi um ano excepcionalmente importante no cenário indigenista
nacional em virtude da aprovação da nova Constituição Federal.
19 Conhecida como tajife entre os Kuikuro (Heckenberger, 1999:138)
20 Informação pessoal de Sebastian Drude (agosto de 2002).
249

pista de aterragem de aviões em Piyulaga2\ A combinação adequada de


agências internas e externas de poder (ressalto que neste caso tal exterioridade
mostra-se dupla: kajaopa (brancos) e apapaatai), realizada por Atamai no ritual
Apapaatai íyãu de 1997, demonstra que os apapaatai são bens preciosos que
permitem a transformação de um poder “metafísico” em um poder “económico”. É
importante notar que apesar daquele poder estar centrado no indivíduo, ou seja,
na sua experiência patológica, a sua transformação em um outro poder é sempre
uma empresa coletiva.
Essas transformações, que Viveiros de Castro (2002c: 81) descreve como
a mediação entre “indivíduo” e “sociedade”, apontam para projetos de opulência e
beleza, cuja matriz são os próprios apapaatai em todas as articulações e
extensões da sua personitude. É em torno dos sentidos de poder que esses
projetos anunciam que serão finalizadas, no capítulo seguinte, as interpretações
sobre as relações sociais entre os apapaatai e os Wauja.

21 Cansados de esperar que a Artíndia cumprisse seu compromisso de enviar as máquinas


adequadas para o trabalho, os Wauja abriram a pista por sua própria conta e com a ajuda da
Fundação Nacional de Saúde. De todo modo, a Artíndia pagou em dinheiro pelas máscaras e
comprou, meses mais tarde, um imenso carregamento de panelinhas e convidou os Wauja para
fazerem uma apresentação de dança em Brasília, oportunidade em que eles levaram mais outro
grande carregamento de objetos para essa loja.
250

7
RITUAIS DE PRODUÇÃO: UMA POLÍTICA DE OPULÊNCIA

7.1
A NOÇÃO WAUJA DE BELEZA E O PROJETO

SOCIAL DOS OBJETOS

Os rituais de apapaatai promovem verdadeiras apoteoses dos objetos. No


ritual Kukuho, por exemplo, dezenas de pás de beiju e desenterradores de
mandioca são exclusivamente fabricadas e colocadas a “dançar” junto com os
homens. Larvas e Borboletas são os temas mito-cosmológicos evocados por
esses objetos de pintura “compulsiva” (Gow, 1988). São esses objetos de origem
patológica, que enfileirados em forquilhas de bambuzinho, integram o conjunto de
personagens do Kukuho. No ritual Yeju, grandes quantidades de panelas ou
cestos são reunidas, no centro da aldeia, logo após o efeito da animação musical
dos aerofones ou dos coros femininos. Nesse ritual, ao invés de panelas ou
cestos, podem ser também oferecidas canoas, as quais são acompanhadas até a
lagoa por um cortejo de flautas Kawoká que executam suas músicas quando as
canoas são definitivamente colocadas na água.
Argumentei anteriormente que essa presença ostensiva de objetos nos
rituais wauja tinha a ver com um modo particular de produzir morfológica e
graficamente a personagem ritual com ênfases numa antropomorfia e
monstruosidade esquemáticas. Assim, canoas estão para as grandes cobras
constrictoras e monstros aquáticos22 do mesmo modo que panelas estão para
“gente” (Jyãu) e borboletas para Borboletas. Com a sua música, as flautas
Kawoká animam monstros, e não meras canoas. Atribuídas de olhos e boca, as
próprias flautas Kawoká são, aliás, concebidas como seres antropomorfos. Raros
objetos da cultura material wauja estão ausentes de traços que os remetam a
idéia de personagem e a concepções cênicas complexas.

22 Vide em Barcelos Neto (2002) uma abordagem iconográfica da relação entre canoas e cobras.
251

A espetacularização dos objetos rituais é o ponto de convergência de duas


noções crucias do pensamento wauja: beleza (awojotopapaí) e alegria
(kotepemonapaí). A beleza é o substrato essencial para a produção da alegria,
estado imprescindível para a obtenção do sucesso terapêutico em caso de
doenças graves (“morte”). Descrevi acima como o papel terapêutico do yakapá
torna-se secundário após a divinação, sendo a terapia então formalmente
assumida por especialistas rituais. Viveiros de Castro menciona que

Os critérios de avaliação da qualidade de um xamã [araweté] são de


ordem estético-teológica: a beleza e complexidade de seus cantos;
não se punham jamais considerações de ordem instrumental ou de
eficácia terapêutica (1986: 535).

Para os Wauja, o que tem eficácia terapêutica é precisamente a beleza. O


ideal de beleza23 impregna quase tudo o que faz parte do campo ritual, mas ele
começa no corpo de indivíduos singulares, com a pintura corporal ou dos
artefatos. Ao serem indagados sobre o porque da pintura, os Wauja não
oferecem muito mais do que lacónicas respostas do tipo: “é pra ficar bonito”. E
por que tem que ficar bonito? — “para ficar alegre”, respondem. Antes de
iniciarem qualquer atuação ritual, os Wauja devem estar minimamente pintados e
adornados, pois é inconcebível que alguém dance sem qualquer marca visual
sobre o corpo. Um indivíduo pode até dançar sem certos adornos plumários, ou
com adornos estragados, isso pode, no máximo, deixá-lo envergonhado, a
depender, obviamente, do ritual em que ele toma parte.
Vejamos o que o material yawalapíti nos diz sobre as questões da alegria
e do ritual.

Se o mito é discurso, o ritual, para os Yawalapíti, pertence


essencialmente à categoria do fazer. Além de jumualhi, alegria, há
um outro termo para ritual, que se aplica propriamente à festa dos
mortos: itsatí. Itsatí ora foi-nos glosado por “festa”, ora aplicado
como termo designativo da festa dos mortos (também chamada
amakakáti, “perna de rede”, referência provável ao enterramento
dos chefes em redes presas a dois troncos subterrâneos). Só esta

23 É importante lembrar que nos rituais de Kawoká não há apenas beleza, mas também temor
(que pode acidentalmente virar terror), o qual não deixa de ser esteticamente apreciado enquanto
beleza. O fato das mulheres não verem os rituais de flautas não significa que elas não participem
deles e nem que um plano de percepções e emoções não seja compartilhado. O temor é
secundário em relação à beleza. É realmente tão secundário, que alguns Wauja questionam a
interdição visual imposta às mulheres.
252

cerimónia é itsatí, disseram-me, porque dela participam


conjuntamente todas as aldeias xinguanas; as demais festas são só
jumualhi ou pahitsí itsatí: “pouco” itsatí. Ora itsatí é um qualificativo
que se aplica a indivíduos, artesãos, muito hábeis no fazer objetos
culturalmente valorizados: bancos, máscaras, cestos, flautas etc.
Isto se explica por uma referência mitológica: Kwamuty, o demiurgo,
é sempre chamado de itsatí por seus interlocutores míticos. Dizem
os Yawalapíti que é porque ele é muito hábil no fazer (“ele sabe
fazer muita coisa”). De fato, Kwamuty fez o artefato mais precioso:
os seres humanos. Fez o protótipo do “fazer”: transformou troncos
de árvore em gente. E a cerimónia dos mortos tem como símbolo
focal toras desta madeira (miri), que simbolizam os mortos (são
ipuniniri pitalapíji, “figura de gente”). Assim, esta festa parece ser o
“tipo ideal” de cerimónia (é itsati-ruru, “festa de verdade”); seu nome
relembra o demiurgo criador, e, através dele, o fazer como essência
do ritual: recriação de protótipos, replicação, fabricação de
exemplares de essências umani. A alegria está no fazer (Viveiros de
Castro, 1978: 173).

Enquanto no caso yawalapíti há uma homonímia entre alegria e ritual, no


caso wauja há uma distinção léxica (kotepemonapai, alegria e nakai, ritual),
porém ligada por uma sinonímia. Se “a alegria está no fazer”, a beleza, como
antecessor lógico daquela, também está. Seu ponto máximo é a fabricação do
corpo (Viveiros de Castro, 1979 e 2002c).
Em um ritual de apapaatai, os Wauja alegram-se para os apapaatai, a
alegria “domestica” sua monstruosidade, neutraliza (ou pelo menos minimiza) a
sua potência patogênica. O oposto dessa alegria é a “brabeza”, sentimento de
quem detesta festas: matanaká, feiticeiros e “gente preguiçosa que não gosta de
trabalhar para dar comida ao pessoal” (leia-se pessoal como apapaatai). A
alegria começa com a beleza, porém ela não termina aí: fartura de comida,
música e dança articulam-se mutuamente.
Os temas das canções também concorrem para a produção de alegria.
Durante o ciclo Kapojai (canções de Sapukuyawá) do ritual Apapaatai lyãu de
julho de 2000, um dos cantores sénior da aldeia improvisou uma canção sobre
uma jovem wauja que tinha se casado com um rapaz ikpeng dois meses antes. O
refrão dizia que ela deveria “usar bem a sua vagina e ajudar o seu marido a ter
bons orgasmos”. Durante uma festa também de Sapukuyawá, realizada em maio
de 1998 como parte do processo de cura do chefe Mayaya, Mello (1999: 133-
135) registrou que dois cantores de Kapojai entoaram canções sobre os prazeres
253

do sexo, enquanto o doente permanecia convalescido em sua rede. Noto,


entretanto, que os temas eróticos não são restritos à música.
Em uma festa do apapaatai Kukuho ocorrida logo após o Apapaatai Tyãu
de 2000, um jovem executou desenhos do órgão genital feminino em várias pás
de beiju. Kukuho é o apapaatai que causa doenças urinárias e genitais, daí sua
aproximação ao tema da sexualidade e do erotismo. Esses temas são
considerados kotepemonapai. Muitas músicas dos repertórios de Yamurikumã
também expressam esses temas (Mello, 2003). Avancemos agora para o centro
da questão.
Como a produção e circulação de artefatos estariam coladas em uma
cosmopolítica, ou melhor, como delinear uma cosmopolítica por meio de
artefatos? Para o caso wauja, a minha hipótese é que a circulação de objetos
rituais produz pessoas “nobres” (amunaw), também consideradas belas.
Para o presente caso etnográfico, a exploração dessa hipótese seria
restrita se ela não começasse pelo entendimento das distinções morais que as
concepções estéticas ensejam entre os Wauja. Todavia, a discussão sobre
estética proposta aqui não se faz ausente da produção concreta de artefatos, um
caminho analítico, aliás, já demonstrado por Velthem (2003). Em primeiro, porque
os Wauja não têm uma teoria da estética desvinculada da fixação de formas no
espaço. Os Wauja não se contentam em mantê-las em um plano imaginativo e
muito menos discuti-las abstraídas de suas atualizações expressivas. Assim
como na Melanésia (Strathern, 1988; Gell, 1992b), a estética wauja nos fala
sobre eficácia, uma eficácia no interior da socialidade, porém, com a
particularidade de que, no caso wauja, a mesma se evidencia tanto no plano da
cura quanto no da cosmopolítica.
No mundo xinguano, a obtenção de objetos belos é um sinal de
enobrecimento tanto de quem oferece quanto de quem recebe. Os Wauja levam
extremamente a sério essa proposição a ponto de lançarem coisas “feias” para o
campo conceituai da feitiçaria. Eles fazem muita questão de enfatizar que seus
objetos de uso cotidiano, recebidos como pagamento ritual, foram “belos” um dia.
Como se pode facilmente notar, passado algum tempo de uso, a fuligem apaga
por completo a pintura das panelas, a poeira e a terra impregnam nos cestos, e
as pinturas das pás de beiju e desenterradores de mandioca descascam, dando a
impressão de que esses objetos nunca foram pintados. Porém, a sua beleza
PRANCHA 18

Figura 61 - Lateral e fundo exter­


no de uma panela kamalupo
pintada com uma composição
gráfica do motivo kupato onabe
(espinha de peixe). Fabricada em
1998-9. 78,6 cm de diâmetro no
fundo externo.

Figura 62 - Lateral e fundo exter­


no de uma panela kamalupo
pintada com uma composição
gráfica dos motivos temeplaná
(motivo da cobra jibóia),
kulupienê (“peixe”), kuwajata
(escama de curimatá) e weri-weri
(pontos). Fabricada em 1998-9.
82,5 cm de diâmetro no fundo
externo.

Figura 63 - Lateral e fundo exter­


no de uma panela kamalupo
pintada com uma composição
gráfica dos motivos kulupienê,
Atujuwá opaka (rosto da
máscara Atujuwá), mitsewenê
(dente de piranha), kuwajata e
walamá oneputaku (cabeça de
sucuri). Fabricada em 1998-9.
88,2 cm de diâmetro no fundo
externo.
254

pretérita fica registrada na memória de quem ofereceu e de quem recebeu. Sim,


a beleza também está ligada ao ato. Ninguém está preocupado em conservar os
objetos porque eles são belos, e sim em repetir essa beleza numa produção
contínua de objetos. A preocupação maior é em oferecer belos objetos como
pagamento ritual. Retomaremos o assunto adiante.
Os objetos produzidos pelos kawoká-mona como apapaatai (máscaras,
flautas, clarinete, zunidores etc.) e para os próprios apapaatai (panelas, cestos,
canoas, roças) são índices de um poder “domesticado”, o efeito de uma empresa
xamânica-ritual-alimentar. Ao tornar o conceito apapaatai o operador central do
pensamento sociocosmólogico wauja, esta etnografia propõe uma aproximação
ontológica entre máscaras e roças, cestos e flautas, casas e pás de beiju, pois
todos são continuações/extensões da permanência ou da passagem temporária
dos apapaatai pela vida dos Wauja. Assim, panelas, cestos, canoas, roças
operam para os seus “donos” a transformação de um “poder simbólico” (os
apapaatai'. pura potência) em um “poder sociopolítico” (infraestrutura para
distribuição de alimentos cozidos: pura atualização). Neste sentido, as artes
wauja podem ser chamadas de arts of empowerment (Gell, 1993), artes que
trabalham com altos níveis de fixação da forma e de elaboração estilística, tal
como entre os marquesanos (Gell, 1993,1998).
A estética é um tema polêmico no terreno da antropologia social. Em 1993,
Tim Ingold (ed. 1996) organizou um debate para discutir se a estética é uma
categoria transcultural. Joanna Overing, um dos participantes do debate, contesta
a afirmação e defende que “the category of aesthetics is specific to the modernist
era. As such, it characterizes a specific consciouness ofart” (1996: 260). O que a
autora quer dizer é que a nossa consciência estética (o julgamento do belo e do
gosto) em nada ajudaria a entender as “artes” que não sejam as nossas.
Tomando a sua etnografia entre os Piaroa, Overing afirma que:

For the Piaroa, ‘art’ is not something that stands alone, outside the
context of life. Second, most of these modes of artistic production,
the exceptions being ceremonial masks and music, belong to the
domain of everyday, and thus to daily productive activities.
Beautification plays a part, first and foremost, in a process of
everyday empowerment that enables both a person and an object to
act productively. When it comes to beautification, people and objects
are not so different (Overing, 1996: 263, grifos da autora).
255

Ainda neste debate, Peter Gow (1996), citando Bourdieu, mostra que a
estética no Ocidente veicula claramente propósitos de discriminação e de
distinção. Porém, uma coisa é tomar um discurso hegemónico e legitimizador do
belo e aceitar suas características como transculturais, outra bem diferente é
dizer que apenas no Ocidente moderno os julgamentos estéticos estão
associados à distinção social e moral. Enfim, resta a pergunta de Gow: o que a
antropologia pode fazer com a estética? A resposta, parece-me, já foi dada
décadas antes por Edmund Leach: “se quisermos entender as regras éticas de
uma sociedade, é a estética que devemos estudar” (apud Lagrou, 2002: 36). Gell
defende que a antropologia da arte não pode ser o estudo de princípios estéticos
dessa ou daquela cultura, mas da mobilização de princípios estéticos no curso da
interação social (1998: 4) No caso wauja, os objetos têm um papel absolutamente
fundamental para a análise dessa mobilização.
Descreverei a estética gráfica wauja em dois movimentos: isolando
determinados objetos cerâmicos considerados “belos” pelos Wauja e observando
esses mesmos objetos e outros semelhantes no âmbito dos pagamentos rituais
aos “donos”.
Em qualquer expressão artística, o domínio dos processos técnicos é a
condição essencial para a produção de uma obra. Mais do que isso: o domínio
das técnicas influi diretamente na percepção da qualidade da obra e na sua
consequente apreciação ou depreciação estética. Para uma composição gráfica
ser considerada “bonita” pelos Wauja é necessário que ela expresse absoluta
qualidade técnica e que seja preferencialmente de difícil execução (ehejuapai).
A qualidade técnica corresponde à nitidez, homogeneidade e firmeza do
traço. A dificuldade de execução é uma característica que não só confirma a
destreza técnica, mas também a capacidade interpretativa do desenhista. Um
desenho difícil é definido por quatro características, pelo menos. Entretanto,
somente em alguns casos todas surgem simultaneamente numa mesma
composição. Uma característica fundamental é a perfeita correspondência entre
simetria e ritmo (figuras 61, 62 e 63). Outra característica do desenho difícil é a
composição com, no mínimo, três motivos gráficos diferentes ocupando todo o
espaço plástico (figura 63) e respeitando a distribuição hierárquica dos motivos
do centro para a periferia do objeto. E a mais, nesse tipo de desenho não pode
haver espaços vazios entre os motivos e suas seções.
PRANCHA 19

Figura 64 - Composição gráfica para fundo de Figura 65 - Composição gráfica para fundo de panela
panela com os motivos kulupienê e mitsewenê. com os motivos kunye kunye jutogana e walamá
Grafite sobre canson, 23x33 cm, 1998 oneputaku. Grafite sobre canson, 23x33 cm, 1998.

Figura 66 - Composição gráfica para Figura 67 - Composição gráfica para


fundo de panela com o motivo pojojeká. fundo de panela com o motivo ahonapu.
Grafite sobre canson, 23x33 cm, 1998. Grafite sobre canson, 23x33 cm, 1998.
256

Ainda que o desenhista tenha optado por elaborar seu desenho com um
único motivo, ele pode estar diante de um desafio maior do que aquele que optou
por uma composição repleta de motivos diferentes. Embora as simetrias e ritmos
sejam simples, alguns motivos são complexos, sobretudo o kulupiene e o kupato
onabe (espinha de peixe, figura 61), que são motivos repletos de linhas retas
paralelas e/ou perpendiculares. A grande dificuldade reside exatamente em fazer
coincidir simétrica e ritmicamente todas as linhas retas em uma superfície circular
ou cilíndrica respeitando uma distribuição hierárquica dos motivos. A dificuldade
de execução do desenho funciona como um grau superlativo de beleza: quanto
mais difícil for a execução, “mais bonito” será considerado o desenho ornamental.
Um desenho vale o conhecimento e o tempo investidos para torná-lo “bonito”.
As características formais próprias do desenho considerado “feio” (aitsa-
awojotopapai, literalmente “não-bonito”) pelos Wauja são exatamente opostas ao
desenho awojotopapai (“bonito”), com o detalhe de que podem ser feitos com os
mesmos motivos gráficos em ambos os casos. A característica mais visível do
desenho “feio” é a ausência de simetria e ritmo, o que demonstra que o
desenhista não sabia (ou não quis) vencer o desafio do dimensionamento
proporcional dos motivos no espaço plástico. Às vezes o desenho é simétrico,
mas o motivo escolhido é simples demais para ele ser considerado um desenho
realmente bonito. Portanto, um desenho aitsa-awojotopapai (“feio”) é quase
sempre considerado aitsa-ehejuapai (“não-difícil”).
Estudar o grafismo na cerâmica wauja tendo apenas a ornamentação dos
artefatos em circulação como material de investigação impõe uma séria limitação
devido à rapidez com que as pinturas desaparecem quando as panelas e os
torradores de beiju são levados ao fogo. Outro detalhe importante é que as
panelas novas são zelosamente guardadas (escondidas, talvez), encobertas por
panos velhos para protegerem as suas pinturas da poeira. Ademais, algumas
panelas permanecem sem pintura (biscoito) até poucos dias antes de serem
oferecidas como pagamento ou destinadas ao uso da casa. Um estudioso de
antropologia da arte logo perceberá que, entre os Wauja, muito do que ele
gostaria de ver desapareceu com o uso ou está encoberto, seja pela fuligem, pela
escuridão ou por panos sujos ou está na memória dos sonhos e transes. Tais
indícios sugerem o processo de produção dos desenhos a ocupar um lugar mais
central do que a sua apreciação: trata-se, muito provavelmente, de uma arte
257

menos para ser vista do que para ser feita, ou melhor, para ser vista por um
tempo muito curto e/ou em situações apoteóticos.
A fim de obter uma documentação mais extensa e precisa sobre as
categorias estéticas wauja, solicitei a um grupo de quatro ceramistas do sexo
feminino24 que desenhassem em papel as composições gráficas consideradas
awojotopapai e aitsa-awojotopapai. Elas iniciaram, com muito interesse, pelas
composições “bonitas” (figuras 64 e 65). Quando eu solicitei que fizessem
desenhos “feios”, disseram-me de imediato que não sabiam fazer desenhos
‘feios”, quer dizer: não sabiam criá-los. Mudei o sentido do meu pedido sugerindo
“d

que elas tentassem se lembrar de desenhos “feios” alguma vez vistos e que
usassem suas memórias visuais para reproduzi-los nos papéis que eu lhes
oferecia. Então, com menor relutância, mostraram-me, ao longo de sessões de
desenhos que duraram algumas semanas, aquilo que os Wauja consideram fora
dos limites de aceitabilidade e agradabilidade estética. As figuras 66 e 67 são
exemplos resultantes desse meu pedido. Terminados os desenhos, elas não
contiveram seus risos: aquilo parecia realmente ridículo aos olhos de um Wauja.
Esses dois desenhos, de simetria incipiente e feitos com motivos gráficos
bastante incomuns (pojojeká e ahonapu, respectivamente “rabiscos” e
“caminho”), diferenciam-se expressivamente dos outros desenhos considerados
“bonitos”, feitos por essas mesmas ceramistas. Ao comparar os quatro desenhos
(64, 65, 66 e 67), é notável como tal reduzido número de exemplos consegue
descrever as bases estéticas sob as quais o sistema gráfico wauja está
assentado. Mais exemplos apenas confirmariam que, entre os desenhos “bonitos”
e os “feios”, há uma sensível escala de valores que vai da simetria à assimetria.
Volto às minhas informantes-desenhistas que disseram não saber fazer
(i.e. criar) desenhos “feios”. Isso talvez seja a indicação de que a fealdade é algo
fora do espaço imaginativo que se concebe para a criação artística, a fealdade
existiria por si, seria da ordem do dado, posicionando-se inversamente à beleza,
que seria da ordem do construído — do controle e do contato com o mundo
extra-humano a partir da doença, do longo aprendizado e do labor meticuloso,

24 Entre os Wauja, tanto homens quanto mulheres dominam as técnicas de fabricação e pintura
da cerâmica. As mulheres iniciam seu aprendizado na reclusão pubertária apenas produzindo
pequeninas panelas. Os homens aprendem modelagem depois dos 30 ou 40 anos de idade,
quando geralmente já participam de um circuito de prestações rituais que os obriga a produzir
panelas-pagamento, ou, mais raramente, quando se interessam espontaneamente pela arte da
258

portanto. Noto que quando entreguei os papéis às desenhistas elas começaram


pela execução de composições consideradas “bonitas” (figuras 64 e 65), e foram
desenho a desenho — em uma sequência de aproximadamente 12 pranchas
para cada desenhista — distanciando-se dos padrões de beleza até alcançarem
completamente o nível dos desenhos “feios” (figuras 66 e 67), chegando a uma
idéia de ineficácia estética.
Para entendermos questões de socialidade, envolvidas na produção de
objetos graficamente decorados, em âmbitos rituais ou não, as categorias de
“bonito” e “feio” devem ser transpostas, respectivamente, para as noções de
eficácia e ineficácia estéticas. Ambas as noções, tomadas aqui como categorias
analíticas, são emicamente descritas pelos termos apapalai-iyajo (objetos
“autênticos”, “verdadeiros”) e apapalai-malu (objetos “insuficientes”,
“imprestáveis”).
Os objetos-iyajo e -malu movimentam-se de modos distintos — os
primeiros migram da periferia da aldeia para o centro (ou em certos casos são
feitos aí mesmo) e depois retornam para a periferia, em geral, para as casas dos
“donos” rituais; já os objetos objetos-malu raramente saem do lugar (ou seja, são
feitos em seu próprio local de uso), e quando há alguma circulação, eles a fazem
pela linha periférica da aldeia25. Se acionarmos uma chave stratherniana,
notaremos os objetos eficazes encapsulados por uma “socialidade política”
(Strathern, 1988: 96-97), na qual eles têm uma participação ativa na produção de
imagens de “nobreza”. Todavia, eles também estão encapsulados por uma
“socialidade doméstica”, o que os coloca numa posição de estreita intersecção
entre ambas as “socialidades”. Ou seja, os objetos eficazes são tanto uma
questão de ações coletivas (aqui lidas como objetivos comuns e gerais de
produção ritual) quanto de relações particulares (aqui lidas como as trocas,
equilibradas ou não, entre um patrocinador ritual e seus kawoká-mona, e a
relação que estes têm com seus cônjuges). Retomarei essas questões adiante ao
abordar a produção e a troca.
De volta às pranchas das informantes-desenhistas. Somente alguns dias
mais tarde, quando uma jovem aproximou-se cheia de curiosidade a fim de olhar

cerâmica. Mesmo não dominando as técnicas de modelagem, a maioria dos homens é capaz de
fazer os desenhos geométricos que decoram as panelas, mas segundo competências variadas.
25 Há, como veremos a seguir, uma exceção, que é a venda de objetos esteticamente ineficazes
para as lojas de artesanato.
259

os desenhos que eu estava a organizar e comparar, pude compreender melhor


as suas evitações em produzir desenhos “feios” e, depois, o deboche feito sobre
eles. A jovem ficou espantada diante dos desenhos “feios”, e percebendo que
não havia ninguém por perto, atrevidamente me perguntou quem os tinham feito.
Respondi-lhe que não poderia revelar a identidade das pessoas. Muito segura de
si, a jovem disse que não precisava saber, pois aqueles desenhos só podiam ser,
segundo ela, obras de pessoas sem qualquer discernimento. Seu julgamento não
se aplica às desenhistas que os fizeram, pois, com cuidado e inteligência, elas
conseguiram traduzir graficamente aquilo que está no terreno da ineficácia
estética e explicar as relações entre as características formais e as concepções
estéticas no âmbito do desenho decorativo geométrico.
A dinâmica expressiva idiossincrática no sistema gráfico wauja permite
notar uma relação mais ou menos “frouxa” entre as regras do desenho “bonito” e
a ação concreta de cada desenhista. Este é um sistema de limites expressivos
razoavelmente extensos e de rigidez moderada, digo isso pensando como base
comparativa o sistema gráfico Kayapó-Xikrin tal qual descrito por Lux Vidal
(1992). Ultrapassar os limites do modelo tradicional — este sendo precisamente
os desenhos de Arakuni, o próprio modelo mítico do sistema gráfico — leva à
produção de desenhos muitas vezes distanciados dos padrões de eficácia
estética wauja. É o seu enquadramento numa escala gradativo-contrastiva de
valores estéticos, que permite criar distinções entre as esferas rituais e
domésticas de circulação dos objetos decorados.
Os aspectos plásticos do desenho simétrico e ritmado e do desenho
assimétrico e sem ritmo só podem ser tomados em consideração para uma
etnoestética quando eles passam a marcar e a afirmar o próprio lugar da beleza
na socialidade wauja. Esse lugar é preenchido por uma idéia de que a beleza,
mais do que produto, é algo que produz relações por meio de uma interação ativa
entre a distribuição de poderes rituais e suas contra-prestações.
As diferenças entre os quatro desenhos acima (figuras 64, 65, 66 e 67)
apontam que as características próprias da beleza gráfica expressam-se na
simetria e no ritmo, mas estes são os aspectos de reconhecimento formal que os
Wauja me apontaram depois de muito perguntar e de comparar o corpus que
venho reunindo desde 1994. Resta agora explorar os contextos em que beleza e
fealdade adquirem saliências sociais. Além do motivo consciente de produzir
260

alegria, por que os Wauja pintam profusamente os seus objetos? A fim de


responder a essas questões, evoco aqui uma idéia de Gell:

Decorative patterns applied to artifacts attach people to things, and


to the social projects those things entail (1998: 74).

Que “projetos sociais” têm os objetos de arte wauja? Como o grafismo e


demais modos decorativos participam na constituição desses projetos? Estas
duas questões podem, com efeito, ser sintetizadas em uma única questão: qual é
a estratégia de relação social dos apapaatai?
No que diz respeito aos padrões gráficos “geométricos” (i.e. non-
representational, nos termos de Gell, 1998: 73), a atração que os mesmos
exercem nas pessoas parece resultar de uma predisposição cognitiva para o
aspecto sinergético próprio aos padrões gráficos complexos. A sinergia é
produzida por uma interação causal entre as partes (“part-to-part interaction”) que
constituem a obra como um todo. É a tensão entre as partes que cria a aparência
de movimento e animação, e, portanto, o interesse cognitivo. Vistos a partir do
todo, a simetria e o ritmo são os princípios básicos da animação, porém esse
efeito só é possível em função de operações menores de repetição e alternância
de certos movimentos gráficos sobre o plano (“rigid motions in plane”): reflexo,
translação, rotação e reflexo torcido-, todos os padrões de decoração gráfica
existentes no mundo são variações desses quatro movimentos (Washburn &
Crowe, 1988: 43-51 )26. O grafismo wauja emprega os quatro.

We need a formula which captures the inherent agency in decorative


forms, forms which do not simply refer to (represent) agency in the
externai world, but which produce agency in the physical body of the
index [a obra de arte] itself, so that it becomes a ‘living thing’ without
recourse to the imitation of any living thing. Decoration makes
objects come alive in a non-representational way (Gell, 1998: 76,
grifos meus).

Nenhum objeto wauja produzido ou usado em contextos rituais está

26 Em sociedades onde a arte figurativa é pouco elaborada ou mesmo ausente, é comum o


desenvolvimento de uma arte gráfica complexa, como, por exemplo, o que historicamente ocorreu
com a arte hispano-árabe, cuja expressão máxima se vê nos palácios nazaríes da Alhambra de
Granada. Porém figuração e geometrismo não são excludentes entre si, ambos tipos de
expressão podem se desenvolver paralela e conjuntamente em semelhantes níveis de
sofisticação, como se pode observar, por exemplo, nos mosaicos romanos.
PRANCHA 20

Figura 68 - Verão de
1999, uma cena do último
dia do ritual Yeju, quando
foram feitos os
pagamentos aos cinco
“donos” do ritual dos
clarinetes Tankwara. Ao
todo foram oferecidas 25
panelas. O ideal é que
todas sejam de cerâmica,
mas nem sempre a
produção oleira consegue
suprir a demanda ritual.
Assim, foi inevitável que
quatro panelas de
alumínio viessem contras­
tar com a beleza da
cerâmica wauja. No lado
direito da foto vê-se, em
primeiro plano, Mayaya,
um dos “donos” rituais de
Tankwara.

Figura 69 - Quatro dos


cinco kawoká-mona
Tankwara que trabalham
para Atamai e as panelas
que cada um lhe
ofereceu. De costas, em
primeiro plano, Kamo, um
dos principais yakapá do
Alto Xingu; no centro,
envergando flechas,
Kuratu, o líder dos
kawoká-mona Tankwara
de Atamai. Vê-se, em
primeiro plano, a panela
que ele fez especialmente
para a ocasião.

Figura 70 - Manhã do dia


28 de agosto de 2002.
Todo o polvilho produzido
pelas kawoká-mona
Yamu-rikumã do chefe
Mayaya depositado no
fundo da sua casa. Esse
alimento, que foi produzi­
do ao longo de quase
duas semanas de
trabalho, deverá durar de
três a quatro meses, e
será consumido tanto
pelas Yamurikumã quanto
pelos co-residentes de
Mayaya.
261

ausente de decoração. O que a decoração faz é impedir que os objetos assumam


um estatuto auto-referenciado. É exatamente por serem decorados que os
objetos wauja podem “transitar” entre a Animalidade e a monstruosidade. Lá,
entre os Wauja, os objetos raramente são apenas objetos. Basta um evento
cósmico incomum, um eclipse, por exemplo, para que a decoração figurativa de
um cesto descole-se dele e fuja para a floresta. A decoração guarda e ativa
potencialidades subjetivas, cujo conhecimento chamei de iconografia xamânica
(Barcelos Neto, 2002).
Vejamos alguns exemplos etnográficos que nos permitem articular as
idéias até aqui apresentadas.
Os cantos escuros das casas wauja escondem tesouros. Certa feita, em
junho de 2000, deparei-me acidentalmente com três impressionantes panelas
kamalupo (figuras 61, 62 e 63), protegidas sob panos velhos e poeirentos. Elas
faziam parte de um conjunto de cinco panelas oferecidas a Atamai por seus
kawoká-mona Tankwara, no ritual Yeju de 1999 (figuras 68 e 69). Cada uma das
panelas corresponde a um dos cinco tubos que constituem o conjunto dos
clarinetes Tankwara e cada tubo corresponde a um kawoká-mona Tankwara. Os
clarinetistas ofereceram as panelas-pagamento em tamanhos decrescentes de
acordo com os tamanhos dos tubos que cada um tocava. Das vinte e cinco
panelas oferecidas nesse ritual, as de Atamai estavam entre as mais bem feitas,
com pinturas altamente apreciadas pelos Wauja.
Todo ritual de apapaatai gera pagamentos que variam desde o mínimo de
três panelas grandes {kamalupo) até quarenta panelas de tamanhos variados,
todas pagas ao fim do ritual. Poucos são os objetos passíveis de compor uma
lista de pagamento, ademais só podem ser incluídos aqueles de primeira
qualidade. As panelas são os principais ou às vezes os únicos objetos que os
Wauja dispõem como pagamento em rituais. Soma-se a isso o fato de nos rituais
inter-aldeões (Pohoká, Kaumai e Yawari), os anfitriões de outras aldeias
esperarem como pagamento dos Wauja suas panelas ou torradores de beiju,
pois, como já bastante mencionado na literatura (Agostinho, 1974: 19-21; Coelho,
1981; Heckenberger, 1996), eles são os únicos que, no Alto Xingu, fabricam as
grandes kamalupo usadas para cozinhar o caldo venenoso da mandioca.
Os Wauja fazem um especial investimento em distinguir esteticamente os
objetos feitos como pagamento ritual dos demais objetos. Num contexto como o
262

de uma festa de apapaatai, uma panela-pagamento precisa seguir as


expectativas wauja de eficácia estética: motivos complexos dispostos em perfeita
simetria numa superfície circular-cilíndrica, demonstrando um alto grau de
domínio do repertório e das técnicas. As panelas devem ser pintadas desse
modo, sobretudo, em respeito aos apapaatai e ao “dono” ritual que as recebe
como pagamento. Artefatos esteticamente ineficazes não contribuem para o bem-
estar do doente (ou do ex-doente) e nem para o contentamento dos apapaatai.
Produzir coisas-ma/u como pagamento ritual é altamente condenável.
Em uma abordagem musicológica, Piedade (2003), mostra que o principal
flautista de Kawoká (Kawoká topá) jamais pode errar a melodia, sob o risco de
“morrer” (i.e. ficar gravemente doente) ou de sofrer outros infortúnios. Kawoká é o
objeto ritual que incorpora o ideal máximo de perfeição, o qual concorre para o
seu plano de “deificação”, cujos sentidos principais são o perigo e a abundância.
Kawoká é o apapaatai mais faminto, o que demanda de seus “donos” grandes
ofertas de comida, as quais Kawoká deve, em contrapartida, retribuir com belos e
vultosos pagamentos, como canoas, panelas kamalupo, roças, casas etc.
Ainda que entre os Wauja e os Xikrin “o belo, o bom, a perfeição sejam
valores essenciais”, e que a produção de “coisas, pessoas e comunidades (enfim,
a sociedade) belas seja a finalidade última da ação” (Gordon, 2003: 242), há,
entre os primeiros um lugar próprio e necessário para as coisas esteticamente
ineficazes. Vejamos isso mais a seguir.
Das cinco kamalupo de Atamai, três (figuras 61, 62 e 63) continuaram
intactas até outubro de 2000. Quando retornei a Piyulaga em 2002 para a minha
última temporada de pesquisa de campo, restava apenas uma, aquela
inteiramente pintada com o motivo kupato onabe (figura 61). Ao longo das várias
conversas que tive com os Wauja sobre essas três panelas, todos foram
unânimes em dizer que a panela da figura 61 era a que tinha a pintura de
execução mais difícil.
Em setembro de 2002, chegaram em Piyulaga os três convidadores (waká)
do Kaumai kamayurá. Mayaya, o putakanaku wekeho, os recebeu e, como parte
da alta solenidade, convocou pessoas para assumirem as trocas cerimoniais que
teriam lugar no Kamai dos kamayurá da aldeia de Ipavu. Das seis pessoas que
Mayaya convocou, apenas duas pessoas manifestaram disponibilidade/interesse.
Ainda faltava uma pessoa, pois o número de objetos de valor cerimonial (e.g.
263

panela grande, torrador de beiju, adorno plumário completo, colar e cinto de


conchas) levados pela aldeia convidada deve invariavelmente corresponder ao
número de convidadores. Cada pessoa que aceita o convite deve levar apenas
um objeto de valor cerimonial, visto que representaria um estranho desequilíbrio
se um único convidado levasse três objetos, ou se dentre dois convidados, um
deles levasse dois objetos e o outro um objeto. Percebendo que a situação
poderia se tornar constrangedora para os Wauja, Atamai resolveu assumir o
compromisso de levar um objeto de valor cerimonial para o Kaumai kamayurá.
Isso demonstra que além de possuir objetos de luxo extra, Atamai segue a
expectativa de generosidade e cuidado político que a sua pessoa deve
representar em níveis local e supra-local. Todavia, se Atamai não tivesse objetos
de luxo disponíveis sua representação desses atributos não se concretizaria.
Este era o terceiro Kaumai com o qual Atamai se comprometia no ano de
2002. Atamai resolveu então levar a sua última kamalupo (figura 61). Mas um
problema mostrou-se inesperado: a pintura da panela estava muito apagada,
inadequada, portanto, para um objeto de troca ritual, sobretudo em se tratando de
um Kaumai. Atamai decidiu repintar a panela, reforçando os seus traços com
uma nova camada de tinta, um trabalho que se revelou tão ou mais difícil do que
pintar uma panela biscoito. Preocupadíssimo em não borrar e em ser fiel aos
traços originais da composição, Atamai passou duas tardes debruçado sobre a
panela, executando a meticulosa re-pintura. Mesmo sendo ele cego de um olho,
o resultado foi excepcional e sua satisfação patente.
Dois anos antes tentei comprar essa mesma panela de Atamai para a
coleção que eu então formava para o Museu Nacional de Etnologia. Frustrada a
tentativa, resolvi encomendar uma pintura especial para uma kamalupo ainda
sem pintura. Depois de muita busca, encontrei um indivíduo que tinha uma
makula (típo de kamalupo) em condição de biscoito, e que é um excelente
desenhista. Pedi que ele reproduzisse o desenho kupato onabe da panela de
Tankwara de Atamai (figura 61). Fomos até a casa do chefe para que o
desenhista contratado observasse o exato padrão composicional que eu queria
para o kupato onabe. No dia seguinte, o encontrei, na área de luz da porta frontal
da casa de Atamai, a copiar, em um pedaço de papel, o desenho da panela.
Quando ele me viu por ali, apenas levantou os olhos e me disse baixinho, em
português, que estava “aprendendo” (i.e. estudando) o desenho. Ele próprio
264

parecia estar interessadíssimo na qualidade da composição gráfica que tinha


diante de si. Na tarde do dia posterior, teve lugar na sua casa o processo de
pintura da panela biscoito delicadamente lisa e cuja modelagem, polimento e
cozimento mostravam-se perfeitos para uma pintura sofisticada como a que lhe
servia de modelo. Em duas horas e meia de meticuloso trabalho, toda a
superfície branca externa converteu-se em uma obra-prima repleta de um só
motivo, e o interior e o lado superior da borda achatada, característica típica das
panelas makula, inteiramente pretos. Aliás, essa panela foi pintada com a melhor
(pois não descasca) e a mais difícil das técnicas de pintura, aquela que emprega
o sumo da casca de uma árvore chamada mawatã misturada com fuligem27. Ao
fim do trabalho, notei que o desenhista tinha deliberadamente corrigido todos os
pequenos defeitos do desenho que lhe serviu anteriormente de modelo,
demonstrando a eficiência do seu estudo.
Dois dias antes da minha partida, perguntei se ele embalaria a panela no
cesto cargueiro que eu tinha lhe oferecido especialmente para isso. Com um
certo acanhamento e sem dar qualquer explicação, disse-me simplesmente que
não venderia mais a panela para o Museu. Há um aspecto implícito em sua
decisão que merece atenção: a excepcionalidade de sua pintura não cabia em
outro lugar que não fosse tão excepcional quanto a própria panela, e esse lugar é
o ritual. Na verdade, o pintor em menção preferiu guardar a panela para oferecê-
la ritualmente em um momento oportuno. E a mais, sua decisão vai de encontro
ao fato de que raras são as casas wauja que não têm guardadas pelo menos
duas kamalupo para situações de emergência, como a contratação de um xamã
visionário-divinatório ou de um ritual Pukay para resgate da alma, ou no caso da
necessidade imediata de substituir uma kamalupo que por ventura tenha se
quebrado durante o uso.
Esse episódio me ajudou a entender melhor um questionamento que
Atamai e outros amunaw me colocavam: “por que você quer levar essas coisas
[objetos de pagamento ritual] para o Museu?”
Para os Wauja, não constitui um problema se peças-ma/u são destinadas
aos museus, à Artíndia ou às lojas de artesanato28, o que elas não podem é

27 Sobre as matérias-primas e os processos técnicos da cerâmica wauja, consulte Barcelos Neto


(1999b).
Vale aqui uma breve contextualização das categorizações do sistema de objetos no âmbito das
relações com os brancos. Há, no Alto Xingu, um estilo de mercadorias especialmente inventado
para suprimir, por meio de vendas ou trocas, as necessidades dos índios por bens
265

servir de pagamento aos “donos” de rituais ou aos yakapá (neste último caso, a
alta qualidade do pagamento tem uma relação direta com a efetiva recuperação
do doente). Aliás, os lugares acima mencionados podem naturalmente receber
peças “feias”, pois, como me dizia Atamai, os brancos “não entendem nada
mesmo do nosso desenho”29.
As estratégias de restringir e de demarcar a circulação das coisas belas
(pinturas e objetos, sobretudo) são amplamente empregadas entre os Wauja para
gerar distinções sociais e rituais muito específicas. O caso da pintura corporal
das reclusas púberes é um excelente exemplo.
As jovens reclusas passam até dois anos preparando-se para o dia em
que sairão para dançar num ritual inter-aldeão e, logo em seguida, para o
casamento. A pintura e os adornos são as últimas coisas que elas recebem no
dia da festa. Nenhuma outra mulher além das adolescentes ostentará o motivo
kulupiene, o “mais belo” (awojo-iyajo) que pode ser empregado em situações
rituais como o Kaumai e o Yawari. Aliás, nas festas do Yawari Yawalapiti (junho
de 2000) e Wauja (junho de 2000), que servem de objeto para esta análise, todas
as jovens recém saídas da reclusão possuíam perfeitas pinturas do kulupiene. As
mulheres que já passaram por essa experiência devem ficar “menos bonitas” —
noto enfaticamente que os Wauja dificilmente diriam isso —, pois a beleza das
reclusas deve ser exclusiva. Tal como entre os Piro (Gow, 1999), a reclusa wauja
incorpora as dimensões maiores da beleza.
Voltemos mais uma vez aos Kayapó, a fim de melhor enfocar a questão da
distinção estética. Terence Turner menciona que

industrializados. Muitos objetos vagabundos ou descartáveis levados pelas centenas de brancos


que passam pelo Parque todos os anos já têm seus correspondentes no artesanato local. O
volume desse comércio tem crescido anualmente, abrangendo cada vez mais uma maior
diversidade de produtos. Recentemente, uma família wauja trocou um conjunto de máscaras
“paraguai” — noto que essa categoria, que tem imediata equivalência semântica com o afixo-
modificar -maia, é extremamente operante — por um gerador usado a fim de assistir televisão.
Apesar desse imenso comércio, circula no Alto Xingu a idéia de que as coisas “originais”, “de
verdade” (iyajo), devem ser preservadas do comércio com os brancos. Mas se caso forem
solicitadas por estes as tais coisas “originais” deverão ser pagas “com muito dinheiro, com barco,
motor, Toyota, placa solar, moto-serra”, o que indica que não há nenhuma idéia hegemónica
nesse sentido. Não obstante, os limites desse comércio são virtualmente, ou às vezes
concretamente, controlados pelos chefes mais tradicionais a fim de preservar, sobretudo, os
rituais das flautas Kawoká e as canções xamânicas.
29 Claro que não são todos os brancos que recebem objetos-ma/fl. Atamai refere-se aqui ao
branco “médio”. Há, obviamente, várias lojas com belíssimos objetos wauja, mas isso não quer
dizer que eles sejam necessariamente de natureza-/yayo (“autênticos” ou de origem ritual). Muitos
266

Do ponto de vista da cosmologia kayapó tradicional, as mercadorias


brasileiras desempenham um papel semelhante ao dos bens rituais
tradicionais, os nekretch, também eles dotados de um poder social.
Recorde-se que estes nekretch são normalmente itens (objetos,
canções, nomes) tomados de povos estrangeiros, ou
(supostamente) de seres naturais como peixes e pássaros. Tais
bens funcionam, dentro do sistema cerimonial tradicional, como
repositórios de poderes de integração e renovação associados ao
valor “beleza”, mas sua capacidade para tanto depende justamente,
aos olhos kayapó, de sua origem no exterior, de onde provêm os
poderes e valores que eles encarnam (1993: 62).

Tal tipo de “desempenho" dos objetos kajaopa (i.e. dos brancos) inexiste
entre os Wauja. Em primeiro, porque os únicos estrangeiros que lhes interessam,
do ponto de vista da produção ritual, são os apapaatai (enquanto que os Kayapó
se interessam por exterioridades várias). Em segundo, porque muito poucos
objetos kajaopa têm a eficácia estética necessária para o âmbito ritual. Em geral,
eles são considerados inapropriados, com a exceção das miçangas, das linhas
de algodão industrial e dos guizos metálicos — a beleza/eficácia desses objetos
está ligada ao seu brilho e durabilidade. A “inclusão” de outros objetos kajaopa,
quando há, é relativamente discreta, e, em alguns casos, como o da oferta de
panelas de alumínio ocorrida no ritual Yeju de 1999, a mesma não deixa de
causar algum desconforto. Por isso os Wauja fazem questão de explicar como
uma determinada “inclusão anómala” mostrou-se inevitável. Aliás, como Ireland
(1991, 2001) demonstrou, o mundo dos brancos é o que mais se aproxima da
anomalia moral, e estética, portanto.
Os Wauja vivem praticamente sob uma ortodoxia estética30. Qualquer
coisa, quanto mais bela for, mais próxima ela estará dos apapaatai31. Se belos,
os objetos geram uma eficácia estética que permite uma permanência
“domesticada” dos apapaatai. Portanto, no plano ritual, os Wauja visam
incorporar a cultura dos apapaatai e não a dos kajapoa. Essa entrada modesta
dos objetos kajaopa no universo da produção ritual contrasta frontalmente com o

desses objetos são peças de “arte turísticai’” que chegaram a um nível de refinamento
insistentemente exigido pelas próprias lojas.
30 Não penso que os demais povos do Alto Xingu expressam essa mesma ortodoxia. Em 1965,
Agostinho viu um Kamayurá usando cerimonialmente um capacete de bombeiro como adomo.
Excetuando o Yawari, que permite jocosidades e alguma liberdade no uso dos adornos e pinturas,
nenhum Wauja se sentiria à vontade ao usar um capacete de bombeiro num ritual como o Kaumai
(Kwarip) ou Pohoká, na verdade, ele ficaria muito envergonhado. De acordo com Agostinho, “dos
grupos aruak sobreviventes, os Waurá são os mais numerosos e, segundo tudo indica, os mais
conservadores e imunes a influências civilizadas” (1974: 30).
267

caso Xikrin, no qual os objetos dos brancos possuem a capacidade de


impulsionar o sistema ritual (Gordon, 2003: cap. 5 e 6), todavia esses objetos
devem ser “xikrinizados”.
O sistema cerimonial wauja é limitado por uma noção quase exclusiva de
beleza32 e em muitos aspectos “auto-referênciado”, em especial na sua forte
relação com o mito. Note-se, por exemplo, este parágrafo conclusivo de um artigo
de Viveiros de Castro:

Assim, as noções de tempo mítico, mito e ritual giram em torno da


idéia de que os seres que povoam o mundo derivam sua essência
de “criaturas”, idéias fabricadas e encarnadas em arquétipos
míticos. O mundo é uma aproximação ao mito (1978: 173).

E nas palavras de Basso:

For each ritual, there is a myth describing the context of origin of


some musical phenomenon (a song or instrument) which is an
integral partof that ritual (1981: 275).

Muitas vezes, canções rituais estão integralmente “dentro” dos mitos,


como é o caso das canções de Arakuni no Kaumai. É por isso que os modelos
explicativos kamayurá (Menezes Bastos, 1990 e 2001) e wauja afirmam que a
performance musical projeta o mito “dentro” da dança ritual, “dentro” do
movimento e do corpo, portanto.
De volta agora aos objetos rituais.
Não é simplesmente porque eles são belos e perfeitos que a sua
circulação extra-ritual (diga-se para fora do mundo xinguano) é relativamente
proibida, mas é exatamente por serem belos e perfeitos, que esses objetos são
outra coisa além de objeto; é isso que está por trás da restrição de sua circulação
e o que torna inequívoca a sua capacidade agentiva.
Quando consultei Atamai sobre a possibilidade de venda de pelo menos
uma de suas panelas, ele respondeu negativamente, acrescentando:

31 Compare-se esse ideal com a etnografia wayana de Velthem (2003), por exemplo.
32 Menezes Bastos (1990, 1995) afirma que muito das disputas políticas entre os Kamayurá tem
como lugar privilegiado a arena das (in)aceitabilidades estéticas, sobretudo no âmbito da
performance musical nos grandes rituais.
268

— isso é pagamento de Tankwara, não posso desrespeitar


quem está me ajudando, se eu fizer isso, eu morro.

A declaração coloca seus kawoká-mona, as pessoas que fabricaram as


panelas, numa condição implícita e a ajuda é dita ser de Tankwara, mais
precisamente das Onças que o adoeceram. Atamai evocou um princípio
ontológico para reforçar o ponto de vista da proibição da venda. Portanto, a
desaprovação da venda não seria apenas dos seus tão bem dispostos kawoká-
mona Tankwara, mas também das Onças “familiarizadas” por Atamai. Contudo,
há um detalhe que reservo para adiante: as panelas não são de Atamai, mas de
Tankwara Yanumaka mesmo.
Em julho de 2000, mais de um mês depois do episódio das panelas,
estávamos eu e Atamai a conversar sobre o seu adoecimento e sobre os
trabalhos pregressos de seus kawoká-mona Tankwara. Foi aí que, de repente,
ele me disse: “eu tive Ewejo (Ariranha) também. Faz tempo eles me ajudaram
muito. Você quer ver?” Atamai, como que se tivesse lembrado de algo há tempos
esquecido, dirigiu-se ao fundo escuro da casa com uma lanterna, vasculhou os
cantos e trouxe, arrastando, um enorme saco plástico coberto de poeira, fuligem
e teias de aranha, do qual começou a retirar o que tinha dentro. Eram oito
máscaras Ariranha (Ewejo), feitas quando Atamai retornou do hospital de
Brasília. Elas constituíam o grupo de personagens do segundo ritual de apapaatai
que os Wauja fizeram para Atamai depois de sua crise, o primeiro, Kukuho, foi
feito quando ele ainda estava internado. Portanto, em julho de 2000, aquelas
máscaras já tinham quase uma década de existência.
M
Diante das oito máscaras dispostas no chão, ele voltou a dizer: “essas
Ariranhas me ajudaram muito”. Perguntei se elas ainda o ajudavam. Atamai disse
que não, que elas (i.e. as Ariranhas que o adoecerem) já tinham ido embora, e
que um dia elas (as máscaras) seriam queimadas. Porém, ainda naquela
temporada de pesquisa, Atamai resolveu vender as oito máscaras para a coleção
que eu então formava para o Museu Nacional de Etnologia. Ao ter suspendido,
anos atrás, a oferta mais ou menos frequente de comida aos seus oito kawoká-
mona Ewejo, Atamai deixou claro que ele pretendia encerrar seus deveres rituais
com Ewejo. Assim, as máscaras já não “representavam” uma relação corrente
entre “dono” ritual e kawoká-mona, portanto elas não serviam para mais nada.
Esse foi o motivo que lhes permitiu serem vendidas.
269

Em 1991, após o ritual das Ariranhas (Ewejo), as máscaras foram


guardadas, mas a relação de Atamai com seus kawoká-mona Ewejo não cessou,
pois ele continuou, esporadicamente, a oferecer-lhes comida. Em 1993, os
kawoká-mona Tankwara decidiram fazer o ritual de clarinetes para Atamai,
criando-se assim um novo grupo de produção ritual, ao qual os oito Ewejo vieram
a se somar como colaboradores. Algum tempo depois do ritual das máscaras, os
oito kawoká-mona Ewejo de Atamai fizeram para ele quase duas dezenas de
cestos cargueiros (mayaku weke), os quais ele dependurou sob o teto da sua
casa, formando uma linha horizontal em frente à área de entrada da casa. Essa
disposição dos cestos causava um forte impacto visual sobre os estrangeiros que
visitavam Piyulaga. Conforme Atamai, os mesmos pediam com insistência para
que ele lhes vendesse ao menos um cesto. Atamai recusou todas as solicitações.
Seus cestos cargueiros ficaram dependurados por quase dois anos, sendo
usados aos poucos, segundo as necessidades de transporte da mandioca desde
a roça de Tankwara até a casa de Atamai. Tal qual sua amunaw opona (casa do
chefe construída por seus kawoká-mona Tankwara), os cestos eram índices da
sua aliança com os apapaatai, com os kawoká-mona e, por extensão, com a
comunidade.
Conforme mencionado no capítulo anterior, a superioridade hierárquica e a
tendência dos aerofones a permanecerem como personagens rituais agem como
um atrator33 em relação às máscaras, situando-as no esquema da produção ritual
para seu “dono” ritual. No entanto, se Atamai não possuísse os clarinetes, as
máscaras Ewejo (Ariranha) jamais teriam trabalhado para ele. Lembro aqui da
enorme importância do aspecto consorciado que pode existir entre as diferentes
formais rituais no que diz respeito as performances — como se pode notar na
descrição do Apapaatai Tyãu realizada no quinto capítulo — e as execuções de
tarefas rituais, para as quais podem servir de exemplo o consórcio entre
Tankwara e Kagaapa, entre Yamurikumã e Tankwara e entre Tankwara, Ewejo e
Kagaapa, que foi precisamente a formação consorciada que esteve a frente do

33 Tomo de empréstimo aqui a idéia de atrator adaptada por Andrade: “Em cosmologia física, o
‘grande atrator’ é um corpo oculto de altíssima densidade e força gravitacional responsável pelo
deslocamento convergente de galáxias em sua direção e que pode ser o resultado de uma
gigantesca concentração de energia cristalizada na forma de super cordas após a explosão
primordial que deu origem ao universo. Utilizo a imagem do atrator para o toré por este apresentar
— dentro do universo tumbalalá — grande densidade simbólica, alto poder de atração e de
concentração de signos de identidade e estar referenciado às origens do grupo” (2002: 79).
270

plantio de dezenas de acres de roças para Atamai ao longo de uma década


aproximadamente.
Panelas, cestos e outros artefatos integram a relação de produção ritual
que venho descrevendo desde o capítulo anterior. Esses artefatos são índices da
distribuição de pessoas. Recapitulemos de modo sumário a via dessa
distribuição: (1) os apapaatai fragmentam o doente, cada fragmento corresponde
a um apapaatai raptor, que é "familiarizado” pela oferta de comida a um kawoká-
mona, portanto a primeira grande distribuição dá-se entre os consanguíneos e/ou
afins do doente; e (2) Os kawoká-mona produzem artefatos rituais (máscaras e
aerofones basicamente) que lhes permitem atualizar a agência dos apapaatai,
cujo sentido é direcionado para a produção de roças, panelas, cestos, fardos de
pequi, armadilhas de pesca, pás de beiju, desenterradores de mandioca etc.,
portanto a segunda grande distribuição dá-se ao nível dos artefatos.
Tal processo de distribuição relaciona-se a um modo abdutivo de
conhecimento, o qual está por trás da declaração de Atamai de que Tankwara lhe
“mataria”, se ele vendesse as panelas. Quando digo que determinados cestos e
panelas são pessoas estou precisamente acessando esse modo de
conhecimento (Gell, 1998). Tais artefatos fazem parte das relações de produção
ritual tanto quanto pessoas humanas, portanto eles não são
implementos/instrumentos de trabalho, e sim pessoas que trabalham. Os
artefatos, escrupulosamente proibidos a venda por Atamai, estão repletos de
personitude, tanto dos apapaatai quanto dos kawoká-mona que os fabricaram.
A personitude dos apapaatai se prende aos artefatos de duas maneiras:
durante a performance e a oferta de alimentos, portanto esses artefatos são
produzidos por indivíduos que são apapaatai, cujas caracterizações abrangem os
três padrões formais básicos descritos acima: máscaras, aerofones e coros
femininos. Como vimos no capítulo anterior, as máscaras são descartáveis,
portanto elas não têm a mesma capacidade de retenção do “espírito’’ (do
apapaatai), como os aerofones Kawoká e Tankwara. O “espírito” é retido quando
seus performers são alimentados. Há, portanto, uma escolha que privilegia a
retenção do “espírito” por meio dos rituais de Kawoká e Tankwara.
Embora o poder seja originalmente emanado do adoecimento, ele só pode
ser usufruído se for freqiientemente ritualizado, e isto depende de um
engajamento coletivo. Isso implica outra coisa: que flautas e clarinetes são bens
271

do grupo (da “comunidade”, como diriam os Wauja). O seu “dono” é apenas o


indivíduo a quem foi concedido o privilégio de “cuidar”, de ser o wekeho desses
objetos rituais. Portanto um wekeho toma conta do grupo via o cuidado que ele
devota a esses objetos. As panelas, cestos e peneiras feitos pelos kawoká-mona
(i.e. em âmbito ritual) são produzidos em nome da continuidade dos próprios
rituais de apapaatai. A produção e a oferta desses artefatos é, em grande parte,
responsável pela manutenção das trocas de alimentos e serviços entre as
diferentes unidades residenciais wauja. Por isso, a venda de objetos oferecidos
como pagamento ritual implica questões morais de vida e morte, como aquela
que Atamai levantou a respeito das panelas que ele recusou vender para a
coleção.
No sentido dessa discussão, flautas e clarinetes são máquinas de
produção. Já as máscaras são pequenas máquinas complementares. Elas foram
e são feitas aos milhares, como indica o yakapá Kamo. Elas vêm e vão, em
festas grandes ou pequenas. Porém o que importa, do ponto de vista de uma
qualificação da sociabilidade, é o que elas poderão fazer mais tarde na forma
agentiva do kawoká-mona: panelas, cestos, peneiras.
É importante esclarecer aqui as idéias de posse que cercam esses objetos
para entender a sua atuação no sistema produtivo. Em um nível abstrato
podemos dizer que artefatos como roças de mandioca, panelas, peneiras e
cestos ritualmente produzidos não pertencem, na verdade, a um “dono” particular
e nem ao grupo (“comunidade”). Eles pertencem a si próprios. São índices de sua
própria continuidade como apapaatai alimentado. Essas categorias de objetos
existentes na aldeia wauja são uma população de apapaatai. Há que se contar
uma imensa população de apapaatai que ainda não “virou” objeto, e que segue
sendo apenas Kawoká (“espírito familiarizado” de apapaatai) para os ex-doentes.
Em Piyulaga, há mais gente não-humana “domesticadaTcativa” ou em vias de
“domesticação” do que gente humana. É a própria incorporação wauja da cultura
dos apapaatai que, paradoxalmente, permite a “domesticação” destes.
A beleza conferida na feitura de determinados objetos concorre para sua
personificação. Uma vez transformados em pessoas, os objetos podem projetar a
sua reprodução, cuja realização baseia-se em fundos “conceituai” — a maioria
dos objetos é feita como macho e fêmea — e “estrutural” — os objetos são
consorciados e interdependentes: panelas “precisam” de cestos cargueiros,
272

cestos cargueiros “precisam” de desenterradores de mandioca, pás de beiju


“precisam” de torradores de beiju, e assim por diante. O desempenho específico
de um cesto — transportar mandioca — depende do desempenho específico de
um desenterrador de mandioca. São as relações-rede e as relações-“posse”, que
têm na sua constituição básica os apapaatai e os “donos” rituais respectivamente,
que dão sentido à reprodução dos objetos. Como entre qualquer população de
seres vivos, o projeto social dos objetos é se multiplicar. Assim, esse projeto,
iniciado na beleza, culmina com a opulência. Mas quem tem objetos belos? E
para quê tal opulência?

7.2
A DINÂMICA DOS GRUPOS DE PRODUÇÃO

Espero ter ficado claro que os apapaatai apenas subsistem/permanecem


entre os humanos quando há uma relação contínua entre a oferta de alimentos e
a produção de artefatos, que, nos termos wauja, é chamada de “pagamento”
(upete). Qualquer ação ritual específica gera pagamentos. Com a exceção dos
rituais xamânicos e do enterramento do morto, não se contrata, de modo privado,
um serviço ritual. Alguém (ou um grupo) deve se oferecer a fazê-lo segundo a
observação de necessidades prementes, devendo, portanto, ser pago(a) por
quem se beneficiou do serviço. O movimento inicial que gera a dívida de
reciprocidade raramente parte do beneficiário da tarefa ritual. O caminho que
beneficia alguém com um ritual de produção é, como veremos, tortuoso e
nalgumas vezes árduo. Posto isso, é hora de recuperarmos a hipótese que lancei
no capítulo anterior de que a ritualização dos apapaatai converte-se em índices
de poder político. A sustentação da hipótese depende de uma visada mais ampla
sobre a dinâmica produtiva criada pelos rituais de apapaatai.
273

Quadro 13
Os rituais permanentes de apapaatai e seus "donos”

Yerupoho Formas rituais “Donos” rituais


{apapaatai)
Kajutukalu nãu (Sapos) Kawoká_________ Itsautaku
itsei-xumã nãu (Fogos) Kawoká Ulepe/Maná34
Mutukutãi
Yanumaka nãu (Onças) Kawoká Itsakumã
Mutukutãi
Kawoká Otãi sénior
Kawoká Otãi júnior
Yanumaka nãu (Onças)_____________ Tankwara________ Itsautaku_________
Yanumaka nãu (Onças)_____________ Tankwara________ Mayaya___________
Yanumaka nãu (Onças)_____________ Tankwara________ Atamai___________
Aluwa-kumã nãu (Morcegos)_________ Tankwara________ Aluwakumã_______
Yanumaka nãu (Onças)_____________ Tankwara________ Yanahin/Itsautaku35
Kajutukaluneju nãu (Mulheres Sapo) Yamurikumã Itsautaku
Aluwaneju nãu (Mulheres Morcego) Yamurikumã_____ Aluwakumã_______
Makaojoneju nãu (Mulheres “Bakairi”)36 Yamurikumã_____ Yatuná___________
Makaojoneju nãu (Mulheres “Bakairi”) Yamurikumã_____ Mayaya___________
Ixuneju nãu (Mulheres Tracajá) Yamurikumã Itsakumã

Entre 1998 e 2002, período em que visitei Piyulaga, havia treze grupos
permanentes de trabalhos rituais entre os Wauja: três de flautas Kawoká37, cinco
de clarinetes Tankwara, e cinco de cantoras Yamurikumã (vide quadro 13). A dois
dos grupos de Kawoká e a três dos grupos de Tankwara são somados, em
caráter consorciado, cinco duplas de cantor/percussionista, conhecidos por
Kagaapa (uma espécie de Peixe). Isoladamente, Kagaapa não é capaz de
mobilizar trabalhos rituais coletivos, sendo apenas “ajudantes” nos mesmos.

34 Por ambos terem sido adoecidos pelo mesmo apapaatai, Ulepe e Maná (marido e esposa) são
donos consorciados do mesmo conjunto de flautas. Muito recentemente recebi a notícia de que
Ulepe havia acabado de se tornar “dono” de Arraias (Yapu) sob forma ritual de Yamurikumã
(Yamurikumã Yapuneju nãu) e que um ritual estava sendo feito enquanto ele se encontrava
internado em Canarana.
35 Os clarinetes Tankwara são de Yanahin, filho de Itsautaku. Durante algum tempo, quando
Yanahin esteve fora de Piyulaga, seu pai alimentou as Onças. Como Yanahin ainda não dispõe
dos meios para sustentar as Onças, ele resolveu suspender o patrocínio desse ritual para retomá-
lo em um momento oportuno.
36 Makaojo é como os Wauja chamam os índios Bakairi, que outrora fizeram parte do “sistema
xinguano”, ou seja, no tempo em que esses Carib ainda eram reconhecidos como putaka nãu.
Makaojoneju nãu é um apapaatai, cuja característica distintiva assenta-se na música. As canções
de Makaojoneju nãu são chamadas de Kawoká-kumã, e têm uma relação direta com as músicas
das flautas Kawoká (Mello, 2003). Os Wauja dizem que as canções de Makaojoneju nãu são uma
“invenção antiga” dos Bakairi.
37 Há mais dois trios de Kawoká fabricados e constituídos, todavia eles estão “parados” por motivo
de viuvez. Como disse acima, a manutenção de um ritual depende de uma unidade de produção
doméstica plena: marido, esposa e filho(a)s casado(a)s. Possivelmente, essas flautas só voltarão
a ser ativas quando seus “donos” morrerem e elas forem herdadas por seus filhos.
274

Assim, por exemplo, quando os kawoká-mona Tankwara de Atamai propõem


fazer uma roça para ele, Atanaku e Sapalaku, que são seus kawoká-mona
Kagaapa, imediatamente se juntam a Tankwara. Esses treze grupos rituais mais
as cinco duplas de Kagaapa são compostos por 54 indivíduos adultos (31
homens e 23 mulheres). Esta cifra correspondia a 63% dos adultos de Piyulaga
entre 20 e 70 anos38. Portando a maioria dos Wauja está engajada nesses
grupos rituais. Algumas pessoas fazem parte de mais de um grupo ao mesmo
tempo. Kaomo, o principal flautista wauja, é kawoká-mona de Itsautaku e Ulepe,
embora ocupando status diferentes em cada grupo. No primeiro, ele é apenas
opamona (“companheiro”), já no segundo ele é kawoká-mona kitsimãT (“líder”/
“principal” do grupo).
O número de componentes dos grupos de kawoká-mona variam de dois
(e.g. Kagaapa) a sete integrantes (e.g. Yamurikumã), mas há também variações
intra-específicas, mais precisamente nos grupos de Kawoká. O grupo patrocinado
por Itsautaku é composto por três flautistas; outro grupo, patrocinado por Ulepe, é
formado por quatro — o quarto integrante, contudo, não toca Kawoká, mas
Mutukutãi, um aerofone que a “acompanha” —, um terceiro grupo, cujo “dono” é
Itsakumã, é composto por seis indivíduos: três flautistas de Kawoká, um de
Mutukutãi e os dois últimos de Kawoká Otãi. Tankwara não varia, sua formação é
sempre na modalidade de quinteto. Essas formações são extremamente
relevantes para o ponto de vista da performance — porque Tankwara é
“impensável” como trio, do mesmo modo que Kawoká não “funciona” como
quinteto —, e ainda incidem diretamente no número de pessoas dedicadas ao
“dono” ritual.
As variações inter e intra-específicas na formação dos grupos de kawoká-
mona adquirem um sentido mais explícito quando associadas à variação na
“posse” de rituais. São sete os “donos” de rituais permanentes, alguns deles
acumulando dupla ou triplamente o status de “dono”. Estes sete “donos” rituais e
os 54 kawoká-mona, que trabalham para a manutenção dos “seus” rituais, são os

38 A população entre 0 e 20 anos perfaz 179 indivíduos, e a de 20 a 70 anos, 86 indivíduos. A


população total de Piuylaga em julho de 2001 era de 268 indivíduos. Embora, os adolescentes
tenham pouca participação nas performances rituais, vários deles engajam-se nos trabalhos
rituais coletivos, sobretudo nas roças. Essa população podia aumentar em até 20 pessoas, visto
que estas tinham um trânsito mais ou menos constante entre Piyulaga, o Posto de Indígena de
Vigilância Batovi e uma segunda aldeia wauja, a pequena “Aruak”, localizada no médio rio von
den Steinen.
275

personagens de uma trama cosmopolítica que envolve praticamente todos os


residentes de Piyulaga.
Um grupo de kawoká-mona constitui a unidade económica básica de um
determinado ritual, a qual temporariamente se amplia quando os demais
moradores da aldeia são convocados a colaborar com as tarefas. De um ponto
de vista amplo, os grupos de kawoká-mona ensejam grandes ações coletivas sob
o comando centralizado do kawoká-mona kitsimãT, que não por acaso é o
principal performer do grupo. Em um trio de Kawoká, por exemplo, o kawoká-
mona kitsimãT é o Kawoká topá, i.e. aquele que “canta”, os outros dois flautistas,
que ficam dos seus lados esquerdo e direito, são Kawoká omonawato, os que lhe
“respondem” ou “acompanham”. Basso é enfática na afirmação da centralidade
da música no processo produtivo:

The musical activity is in fact prompted by a call for the economic


activity, and thus marks the economic act as “of the ritual.” To that
extent the musical performance is itself an index of the economic. At
the same time, the economic activity is only performed in the first
place because of the need for payment to the performers of a
planned ritual event (1981: 284, grifos meus).

Os pagamentos a que Basso se refere são unicamente feitos em alimentos


cozidos oferecidos pelos “donos” rituais. A maior parte é constituída de
subprodutos da mandioca. Uma visada sobre a sua produção leva-nos um pouco
mais ao interior do sistema ritual dos apapaatai.
A respeito do plantio da mandioca entre os Kuikuro, Robert Carneiro faz as
seguintes observações:

The massive scale on which the Kuikuru plant, harvest, and store
manioc is most impressive. One gets the feeling of bountiful, almost
lavish accumulation. But yet, not of ostentation. There is no invidióus
display of one’s stored flour, no competition as to who can produce
the most. And certainly no tubers are ever left to rot as a show of
affluence. What we find is a controlled supply of manioc reflecting a
comfortable abundance (Carneiro, 1983:105).

E ainda:

Manioc cultivation, then, provides the Kuikuru with a broad and solid
subsistence base. On this base they have developed a culture that is
276

relatively rich by Tropical Forest standards. For example, there are


many cerimonies in their ritual cycle, and plenty of time to engage in
them. Moreover, I am convinced that prior to European contact, this
culture was even richer. The Kuikuru and their neighbors probably
had bigger villages, stronger chiefs, mobilized labor on a larger
scale, and perhaps even had classes. If manioc cultivation did not
create this culture, it at least provided the economic foundation on
which it could be reared (Carneiro, 1993:108).

Na década de 1950, Carneiro demonstrou que os Kuikuro produziam


mandioca duas vezes e meia acima da sua necessidade de consumo (Carneiro,
1957: 159). Uma segunda pesquisa na década de 1970 confirma seus dados
anteriores (Carneiro, 1977: 105-106). Minha investigação das roças39 wauja
mostra uma cifra inferior (1,6 vez). Todavia, penso que ela seja oscilante, estando
sujeita a ciclos ou vicissitudes que desconheço.
Carneiro interpreta os excedentes de farinha e polvilho como um “seguro
alimentar” para os casos de perda acidental da produção, como ataques de
porcos e formigas, incêndio dos silos, infestação de insetos e fungos etc. Sugiro
uma ampliação da interpretação sobre o excedente, porém sem desvinculá-lo
totalmente da idéia de “seguro alimentar”. Ao equalizar o conjunto das roças
kuikuro, Carneiro deixou de lado dois aspectos que considero muito importantes:
em primeiro, o lugar social da produção dos excedentes e em segundo, a
classificação social da mesma.
O conjunto das roças wauja é emicamente dividido em duas categorias: as
roças domésticas e as roças de apapaatai. Os meus dados apontam que o lugar
social da produção dos excedentes localiza-se nos trabalhos coletivos guiados
pela música/dança dos kawoká-mona. Todavia, para a interpretação que almejo,
não faz sentido isolar as roças de apapaatai do conjunto maior de produção que
inclui desde pequenas pás de beiju até grandes casas. Como mencionei na
Introdução, um determinado conjunto de objetos remete-nos diretamente ao
sistema ritual dos apapaatai: o pilão para socar a farinha é de Yamurikumã-, a pá
para virar o beiju, de Kukuho; a roça, de Kawoká: a panela e o torrador de beiju,
de Tankwara-, e o cesto e a peneira, de Ewejo. De toda sorte, as roças são o
maior património dos apapaatai. Plantadas ano a ano elas garantem a sua
permanência entre os Wauja.
277

Algumas cifras oferecem uma idéia mais clara da dimensão económica


dos rituais de apapaatai. Dos 44.67 acres plantados em Piyulaga no ano de 2002,
7.96 acres (aproximadamente dezoito por cento da área cultivada de mandioca)
são devidos aos kawoká-mona Kawoká e kawoká-mona Tankwara; e das catorze
canoas de madeira existentes em Piyulaga, três (vinte e um por cento das
canoas, portanto) tinham sido feitas pelos kawoká-mona Kawoká naquele mesmo
ano. Essas cifras podem oscilar em até cinco por cento para mais ou para
menos. Não pude determinar com exatidão a cifra relativa às panelas kamalupo,
todavia suspeito que seu número não seja diferente daquele apontado para as
roças.
Entre os Wauja, cada indivíduo adulto possui pelo menos uma roça
plantada por ele ou com a ajuda de seus filhos não casados. Toda casa é auto-
suficiente na produção de farinha e polvilho. Contudo, pequenas quantidades de
comida circulam diariamente entre as casas por meio de vínculos de ofertas entre
os parentes cruzados, portanto, uma circulação sem vínculos com os rituais de
apapaatai, e que está limitada ao produto das roças domésticas. As medições
que eu Maria Rosário Borges realizamos das roças e da produção doméstica de
farinha e de polvilho mostram que os kawoká-mona não dependem das roças de
apapaatai, ou seja, das roças de seus “donos”, para se alimentarem. A farinha e
o polvilho das roças rituais ficam estocados no interior da casa dos seus “donos”,
em silos próprios, separados dos silos da produção doméstica. Estes podem
fazer uso privado dos produtos rituais, porém não devem esgotá-los no âmbito do
consumo doméstico, exceto por alguma razão muito excepcional. Vale aqui citar
um caso.
Em 2002, o período de colheita de mandioca e de produção de polvilho
correspondeu aos dois últimos meses da complicada gravidez de Uno, segunda
filha de Mayaya, o que a impossibilitou de realizar os trabalhos. As kawoká-mona
Yamurikumã de Mayaya perceberam a gravidade da situação e assumiram a
produção de polvilho como tarefa ritual. Elas convocaram grande grupo de
mulheres que colheu toda a mandioca da roça do marido de Uno. Em dez dias as
Yamurikumã realizaram um trabalho (figura 70) que a Uno custaria dois meses de
dedicação. Todavia, essa produção não seria prioritariamente destinada às

39 A metodologia para o estudo do cultivo da mandioca entre os Wauja foi emprestada de Robert
Carneiro (1983), cujos dados apontam que 80% da dieta kuikuro (e xinguana, por extensão) é
baseada no consumo desse tubérculo.
278

Yamurikumã de Mayaya, mas ao consumo doméstico da casa deste amunaw, o


que também inclui Uno e sua família nuclear. Durante os dias de trabalho das
Yamurikumã, o marido de Uno pescou para elas e Uno preparou os cozidos de
peixe, os beijus e os mingaus. As Yamurikumã de Mayaya esperarão novas
retribuições de alimento em momentos mais oportunos para Uno. As Yamurikumã
trabalharam porque elas tiveram pena de Uno: “apapaatai é assim, tem que
ajudar quando ‘dono’ precisa”, disse o marido de uma das kawoká-mona
Yamurikumã de Mayaya. Neste caso, ajudaram a filha do “dono”, porém, como
eles são co-residentes, a ajuda contempla Mayaya também.
Já que os kawoká-mona não dependem da produção ritual para a sua
subsistência, então porque eles se engajam em tarefas com esse caráter? Por
que 63% dos adultos de Piyulaga trabalham esporadicamente para concentrar
recursos nas casas de sete homens, que, aliás, são todos reconhecidamente
amunaw? Por que os dados do cultivo da mandioca remeteram Carneiro a
suposições sobre chefia forte e a mobilização de trabalho em larga escala? Antes
de avançar com essas questões detenhamo-nos um pouco sobre a relação
“dono” ritual e kawoká-mona.
O fato de alguém se tornar “dono” ritual não lhe garante, de imediato, que
seus kawoká-mona lhe devotarão trabalhos. Para que isso ocorra, o “dono” deve,
como mencionei no capítulo anterior, demonstrar ser digno da “confiança da
comunidade”, para então ser creditado com um trabalho inicial, que pode ser uma
roça de mandioca ou apenas uma etapa de sua produção, em geral, o plantio ou
a colheita. Esse crédito é imediatamente englobado pelos valores do respeito
(monapakí) e da vergonha (aipitsikí), atingindo um valor “maior” — o da
generosidade (kamanakaiyapaí) —, quando entra em cena a distribuição do que
foi produzido. A díade crédito-distribuição promove uma “reação em cadeia”
sempre retro-alimentada pelo respeito e a vergonha. Quanto mais um “dono”
oferece alimentos, mais vergonha seus kawoká-mona sentem dele, e em função
dessa vergonha sentem-se moralmente constrangidos a retribuir o alimento com
novos trabalhos. O “dono” deve “humilhar” os seus kawoká-mona com a sua
generosidade. Às vezes essa relação pode se enfraquecer ou se romper, como
se verá adiante.
279

Em um texto sobre a má consciência de matar animais para o consumo


humano, Descola acaba por delinear uma “moral amazônica", para a qual,
conforme sugere o autor, a condenação da avareza

deriva menos de uma obsessão pela reciprocidade que da


obrigação de ser generoso com o próximo e de um certo desdém
com relação à acumulação de bens materiais (Descola, 1998: 33).

Penso que o autor atinge o cerne da questão, mas há algumas nuances na


etnografia wauja que nos pede ponderação a respeito de tal “desdém”. Entre os
Wauja, acumular não é um problema moral, todos anseiam acumular. O
problema é não distribuir, é ser avaro. No âmbito dos rituais de apapaatai, quem
não é generoso perde as condições de acumular. Porém, essas coisas não são
assim tão equilibradas.
A relação produtiva entre um nakai wekeho e seu grupo de kawoká-mona
pode ser dissolvida por decisão dos kawoká-mona, caso estes considerem que o
“dono” ritual não esteja cuidando bem do seu pessoal (i.e. sendo generoso em
suas ofertas de alimentos), ou por decisão do próprio nakai wekeho, caso ele
considere que seus kawoká-mona não estejam empenhados em trabalhar. A
manutenção dessa relação depende basicamente de satisfação mútua, mas a
isto precede a habilidade e a sorte em escolher as pessoas certas que em um
futuro não distante constituirão o grupo de kawoká-mona. Essa escolha é feita
por um parente próximo do doente (futuro nakai wekeho) quando ele ainda está
convalescido em sua rede, precisando da visita ritual dos apapaatai (futuros
kawoká-mona) para se recuperar. O mais comum é que o irmão ou o pai, ou mais
raramente o cunhado ou o sogro - de todo modo evita-se que seja alguém de
geração descendente - escolha as pessoas que “representarão” os apapaatai
para o doente. Do ponto de vista da produção ritual, nem sempre se obtém
sucesso nessa escolha, pois raramente os grupos de kawoká-mona são perfeitos
e harmónicos.
A consolidação de qualquer relação produtiva entre um nakai wekeho e um
grupo de kawoká-mona pode demorar alguns anos, pois, como mencionei acima,
é necessário que o primeiro obtenha confiança e respeito daqueles parentes que
possam assumir papéis de liderança no interior dos grupos de kawoká-mona.
280

O quinteto de clarinetistas do grupo kawoká-mona Tankwara de Atamai,


composto por quatro sobrinhos (FBDS, FZSS, FZSS e BS) e por um irmão júnior
(FS), é um exemplo de uma escolha que resultou em uma relação produtiva. De
saída, Atamai já tem quatro de seus kawoká-mona em uma posição na qual eles
“naturalmente” lhe devem respeito. Ademais este grupo está muito bem
posicionado na rede política da aldeia, pois o irmão júnior de Atamai, Yatuná, é
um importante amunaw, especialista ritual de grande projeção e ainda “dono”
ritual de Yamurikumã (vide tabela acima). Em contraste, Itsautaku, o principal
oponente “faccionai” de Atamai, não teve a mesma “sorte” na constituição do trio
de flautistas de seu grupo kawoká-mona Kawoká, o qual é composto por um FB e
dois FFBSS, ambos irmãos de Atamai.
Contrastemos brevemente alguns aspectos da trajetória dos irmãos
Mayaya e Atamai com a de seu primo paralelo Itsautaku. Este último recebeu, a
partir de meados da década de 1980, significativos serviços de seus kawoká-
mona, mas estes começaram lentamente a declinar quando Mayaya e Atamai
firmaram suas posições de chefia da aldeia (vide capítulo anterior), pressionando
Itsautaku a uma posição de menor prestígio.
Entre os Wauja, um pequeno número de consanguíneos próximos do sexo
masculino é uma brecha para sufocar um adversário político por meio de
acusações de feitiçaria. Sem irmãos do sexo masculino e ocupando uma posição
de competição com seus primos, Itsautaku passou a ser acuado por esse tipo de
acusação, o que o colocou em uma posição frágil na disputa por prestígio
político. A fim de contornar essa situação, restou-lhe apenas a alternativa de
tornar-se yakapá.
Entre 1984 e 1987, Itsautaku passou algumas temporadas na aldeia
kamayurá a fim de aprender as artes xamânicas. Já no fim da década de 1980,
Itsautaku tornou-se o principal xamã wauja, ocupando definitivamente o lugar de
seu tio Malakuyawá, o maior yakapá wauja entre as décadas de 1960 e 1980.
Tornar-se yakapá foi o modo de compensar a sua posição desprivilegiada diante
de seus primos paralelos que assumiram a chefia principal. Porém, tornar-se
xamã não fez com que os kawoká-mona de Itsautaku lhe devotassem trabalhos
de grande monta, tal como fazem para os chefes principais (amunaw-iyajo).
Mesmo descendendo matrilinearmente de uma importante “linha” de chefia e
tendo se tornado um grande xamã, Itsautaku continua a ocupar uma posição de
281

menor relevo político, o que sugere ser o xamanismo uma via de poder político
de segunda instância em contraste com o tradicional poder da chefia hereditária.
O poder político dos chefes wauja não se nutre diretamente do
xamanismo, mas da “posse” de rituais, de uma parentela extensa de
consanguíneos disposta a engajar-se na produção desses rituais e do apoio de
genros e/ou noras co-residentes.
Em geral, um grande especialista ritual é também amunaw. Assim, de um
ponto de vista funcional, ele é um chefe de “segunda linha” (i.e. chefe de seu
grupo doméstico) que auxilia um “chefe maior”, um amunaw-iyajo, o qual, muitas
vezes, é o putakanaku wekeho (o “dono” da aldeia).
Os grandes especialistas rituais wauja (flautistas, cantoras de Yamurikumã
e clarinetistas) normalmente possuem mais de um “dono”. Yatuná, irmão de
Atamai, deve, por exemplo, obrigações rituais a este e a seu FFBSS, Itsautaku —
ao primeiro, como clarinetista de Tankwara, e ao segundo, como flautista de
Kawoká. Como os grandes especialistas rituais wauja (kawoká-mona kitsimãi)
são em pequeno número e os membros da comunidade às vezes estão
sobrecarregados com seus próprios afazeres, aqueles precisam decidir se
concentrarão os trabalhos a favor de um ou de dois “donos” rituais ou se
distribuirão equilibradamente os trabalhos entre todos os “donos”. Afirmo que,
nessa matéria, equilíbrio é a última coisa que constatei entre os Wauja, basta
comparar a diferença nos tamanhos das três únicas roças — 3.8 acres (para
Atamai), 2.47 acres (para Ulepe) e 1.69 acres (para Itsakumã) — que os grupos
de kawoká-mona Tankwara e kawoká-mona Kawoká fizeram para os seus
“donos” em 2002, obviamente com o engajamento de toda a comunidade
masculina. Além dessas diferenças há ainda aqueles “donos” para os quais seus
kawoká-mona não plantaram um acre sequer. Mencionei acima que os “donos”
de rituais permanentes de apapaatai são em número de sete, portanto quatro
deles não receberam roça. São em situações como essas que se visualiza com
melhor clareza qual “dono” ritual de apapaatai possui maior prestígio, e quais
grupos kawoká-mona conseguem' convergir e agregar os demais homens e
mulheres da aldeia em torno dos seus projetos específicos de produção.
Nas últimas três décadas, alguns grupos de kawoká-mona Tankwara,
Kawoká e Yamurikumã foram dissolvidos e se reorganizaram a favor de outros
“donos”. Uma dissolução ideal é devida à morte do “dono” do ritual, mas há
282

dissoluções, muito lentas obviamente, que parecem dizer respeito a interesses


explícitos em apoiar um outro “donoVamunaw. Suponho que essas mudanças de
interesse sejam uma resposta ao descontentamento do grupo em relação a este
ou aquele amunaw. Tal descontentamento é, em geral, resultado de uma quebra
do fluxo de generosidades que “regulam” a continuidade da produção ritual.
Seguindo esse padrão e as frequentes expressões de descontentamento dos
jovens wauja em relação a Atamai, as quais são sempre feitas em reserva, supus
que parte da “comunidade” não mais se engajaria nos grandes trabalhos
futuramente requisitados pelos kawoká-mona Tankwara de Atamai, sobretudo
depois da construção da amunaw opona, que consumiu meses de trabalho.
Porém, a suposição logo se mostrou falha.
O descontentamento dos jovens, aparentemente forjado como fofoca, não
teve o menor impacto sobre o regime de produção ritual devotado a Atamai. Em
2001, seus kawoká-mona Tankwara iniciaram um novo ciclo produtivo,
começando com a derrubada de uma área de floresta e em seguida plantando
uma grande roça de mandioca (3.23 acres). Trabalhos adicionais na estação
chuvosa de 2002 (janeiro a março) envolveram a produção de peneiras e esteiras
para o processamento da mandioca anteriormente plantada. Na estação seca de
2002 (junho a setembro), uma nova e imensa roça de 3,8 acres foi plantada, ao
passo que o produto da roça de mandioca plantada em 2001 era colhido,
processado e armazenado em silos no interior da grande amunaw opona. Em
março de 2003, recebi a notícia de que cestos cargueiros seriam feitos para
transportar a safra de mandioca que seria colhida na estação seca (junho a
setembro). Assim, por quase uma década, os Wauja vêm confirmando a posição
de amunaw-iyajo de Atamai por meio da produção de excedentes que lhe permite
expressar a sua generosidade, o capital simbólico fundamental do poder político.
A economia política wauja está baseada na possibilidade de distribuir
constantemente o que foi acumulado nos rituais de produção e de reiniciar novos
ciclos produtivos a partir do que foi previamente distribuído. Um grande chefe é
alguém capaz de sustentar um considerável número de rituais, e
consequentemente de arregimentar pessoas para os trabalhos. Essas pessoas
trabalham nos rituais patrocinados pelo chefe porque elas confiam na sua
generosidade, ou seja, no seu compromisso em dar continuidade aos ciclos
produtivos. Um homem de poder entre os Wauja é um homem capaz de
283

acumular e de distribuir. Essa distribuição não diz respeito apenas a bens


materiais, mas também à transferência de posse de apapaatai e
consequentemente dos rituais aí implicados, como mencionado anteriormente.
A partir da análise de alguns grupos sul-americanos, Santos Granero
procura demonstrar que “nas configurações xamanísticas das terras baixas da
América do Sul o poder político está freqúentemente imbuído nos processos
económicos e que, em sociedades nas quais xamãs são líderes políticos, seu
poder apresenta-se como sendo de natureza económica” (1986: 657). Os dados
wauja que apresento corroboram com a conclusão de Santos Granero de que o
poder político e o ritual de produção são dois lados de uma mesma moeda.
Contudo, os Wauja não colocam a mesma ênfase em uma posição privilegiada
do xamanismo na configuração desse esquema.
Entre os Wauja, o controle de símbolos sagrados necessários para a
produção das relações de poder (“meios místicos de reprodução”, cf. Santos
Granero, 1986) não tem uma ligação direta com o xamanismo, pois, como vimos,
os “donos” dos rituais permanentes de apapaatai são invariavelmente amunaw e
os performers, kawoká-mona; portanto, é desnecessário ser xamã para assumir
ambas posições. O xamanismo só é crucial no momento de identificação dos
apapaatai e da recuperação das almas raptadas por eles. Concluída essa etapa o
mesmo se retira de cena, deixando espaço livre para a etapa seguinte, o
fazimento ritual dos apapaatai. Assim, uma vez que estes foram “familiarizados”,
cessam as atuações dos xamãs.
Qualquer indivíduo wauja pode se tornar xamã, esta é uma decisão
pessoal, entretanto é impossível alguém se tornar amunaw. Além disso, a
ascensão de um amunaw à posição de chefe é menos uma escolha pessoal do
que uma longa negociação com o grupo. Um chefe wauja não precisa de
conhecimento místico para configurar seu poder político, mas sim de corpo e de
“substância de amunav\T, cuja distribuição, como vimos, é bastante desigual40.
“Substância de amunav/’ (sangue / substância de origem interior / relação
vertical com os ancestrais) e “substância xamânica” (yalawo / substância de

40 Essa mesma distribuição desigual pode ser observada no âmbito do poder xamânico. A maioria
dos homens wauja de idade madura dominam a técnica xamânica de soprar tabaco, contudo os
wauja só reconhecem como poderosos apenas os xamãs que recuperam almas raptadas pelos
apapaatai e que igualmente praticam divinação e neutralização de feitiços letais. O xamanismo
wauja é mais potente nas suas dimensões comunicacionais, de trânsito de almas e de trocas de
284

origem exterior / relação horizontal com os apapaatai) configuram poderes de


natureza e escopo distintos para os Wauja. Quando somados, resultam num
poder excessivo, um risco que os Wauja evitam, embora figuras “despóticas”
possam surgir sem grandes dificuldades (Ireland, 1986, 1993b; Menezes Bastos,
1995).
A importância do xamanismo visionário-divinatório na economia política
wauja precisa ser melhor esclarecida, ainda que a sua posição seja secundária.
Mas isso não enfraquece a interpretação de Santos Granero (1986), aliás,
apenas reforça a idéia de que sua moeda deve ser cunhada não só com uma
ideologia de poder baseada nos “meios místicos de reprodução”, mas também
baseada na descendência41.
O bailado dos poderes cosmopolíticos vai além da relação entre chefes e
xamãs. Os especialistas rituais (kawoká-mona') têm um papel fundamental na
legitimação dos chefes. Para a economia política wauja nada é mais precioso que
obter a confiança e o respeito dos kawoká-mona, pois nada adianta ser “dono”
dos rituais se não há quem os execute, por outro lado os kawoká-mona nunca
são “donos” dos rituais que eles oficiam. A lógica organizacional dos rituais de
produção wauja funda-se na idéia de que ninguém pode performatizar os seus
próprios rituais. Mesmo que um chefe seja um grande flautista, ele nunca poderá
performatizar um ritual em seu próprio favor. Portanto, o próprio sistema limita as
possibilidades de acumular capacidades políticas. Aliás, a estrutura de relações
sociais, vista de um horizonte mais amplo, dificilmente permite autonomias
pessoais, assim como não há auto-cura, também não há auto-promoção política.
É absolutamente impossível nesse sistema que alguém decida se tornar um
mestre de música para executar um ritual em seu próprio favor.

Sommes-nous face à un système politique oú la multipilication des


fonctions (de coordination, d’exécution, d’entretien, d’initiative...)
résulterait de la volonté clastrienne de refuser le pouvoir de
coercition? Cette diffraction du pouvoir em multiples petites
compétences est-elle méfiance absolue du pouvoir, ou du povoir
absolu? (Menget, 1993: 69).

perspectivas do que como uma técnica de cura; a rigor, esta é apenas uma forma subsidiária das
dimensões supra referidas.
41 A questão da descendência foi analisada sete anos mais tarde, no seu texto sobre os líderes
político-religiosos amuesha (Santos Granero, 1993).
285

O problema não é exatamente acumular poder, mas acumular diferentes


poderes e unificá-los. A “multiplicação de funções” políticas e rituais é um efeito
da desconfiança do poder absoluto, e não da desconfiança absoluta do poder.
O excedente de bens simbólicos dos chefes (basicamente rituais de
aerofones e máscaras para o caso wauja), que Heckenberger (1999: 136) propõe
estar na base de uma “economia simbólica do poder”, é sempre dependente do
apoio de seus kawoká-mona, os quais, por sua vez, devem ter o respaldo do
resto da comunidade. Em suma, o sistema se configura da seguinte maneira: os
xamãs visionário-divinatórios (yakapá) atestam que os amunaw, em seus
processos de adoecimento, são “donos” de tais e tais apapaatai; e os
especialistas rituais (kawoká-mona) atestam que apenas eles podem
performatizar os rituais de apapaatai para os amunaw. Esse sistema ternário,
fundado na interdependência hierárquica desses três status sociais, é
propriamente o sistema de ritualização dos apapaatai, no qual cada
movimento/decisão singular tende a repercutir no todo.

7.3
OS RITUAIS DE APAPAATAIE O CONTINUUM

CERIMONIAL XINGUANO

O Alto Xingu é rico em rituais, porém não é igualmente rico em etnografias


sobre esses rituais, dos quais apenas dois foram sistematicamente descritos — o
Kaumai (Kwarip), por Agostinho (1974), e o Yawari (Javari ou festa da
Jaguatirica), por Menezes Bastos (1990). São ainda ausentes análises sobre a
articulação e continuidade simbólico-temporais entre os rituais xinguanos.
Embora o objetivo central desta tese não seja desenvolver uma análise dessa
natureza, procurei oferecer pistas nesse sentido, o que me permite agora
direcionar a sua conclusão de um modo outro que fechar um círculo em torno dos
rituais de apapaatai.
O regime temporal dos rituais xinguanos é biográfico e a sua ênfase é
sobre a progressão da “substância nobre”. Na biografia de um grande amunaw
cabe toda a tipologia ritual xinguana: do Pohoká ao Kaumai, o “primeiro” e o
286

“último” ritual de sua vida42, e entre ambos estão os rituais de apapaatai que ele
patrocinou/“cuidou”. Penso, em função dessa natureza temporal, que a idéia de
“sistema ritual” seria válida se analisada em termos de continuum, tomado, no
caso xinguano, como um plano consciente de produção ritual contínua de
homens e mulheres amunaw. Recorro mais uma vez aos Xikrin para impulsionar
um eixo de argumentação. Segundo Gordon:

Há uma estreita conexão entre ‘beleza’ (cerimonial), ‘riqueza’ (nos


termos Xikrin), parentesco, sustentação política e chefia. Mais
parentes, mais riqueza, mais beleza, mais agência. Essas coisas
andam juntas na socialidade Mebêngôkre. (...) O objetivo dos rituais
é conferir ou confirmar, pública e coletivamente, os nomes bonitos e
as prerrogativas cerimoniais (2003: 272).

A equação Xikrin — parentes, riqueza, beleza, prestígio — é familiar à


socialidade wauja. Digamos, contudo, que entre os Wauja o objetivo é
conferir/aumentar o status de amunaw e criar as condições de progressão e de
transmissão de substância “nobre”.
Cada ritual no Alto Xingu é feito, primordialmente, para uma única pessoa.
Todos os demais que dele participam são chamados de “os acompanhantes”.
Assim, no Pohoká wauja, apenas um menino terá ambos os lóbulos auriculares
perfurados com agulha de fémur de onça. Eventualmente, outros meninos de
“alta linhagem” de amunaw poderão ter uma de suas orelhas perfuradas com tal
agulha. Nos “acompanhantes” usam-se apenas agulhas de madeira.
Inicia-se aí uma série de procedimentos que distinguirá os meninos de
uma mesma geração. Entre os Wauja, o Pohoká tem sido feito a cada 15 anos,
em média. Nessa ocasião, todas as aldeias do Alto Xingu são convidadas a
(re)conhecer o menino que foi escolhido para ser um futuro amunaw. A diferença
de idade entre eles varia em até sete anos. Depois do ritual, os meninos entram
em seu primeiro período de reclusão. Mas aquele que teve os lóbulos auriculares
perfurados com a agulha de fémur de onça terá uma reclusão mais prolongada
que os demais, terá, portanto, uma fabricação distintiva do seu corpo, tomará
mais eméticos “fortes” e passará fome. Ele é deixado passar fome para que
aprenda a controlar a sua raiva, pois um verdadeiro amunaw é aquele que jamais
se encoleriza.

42 O Kaumai é na verdade um ritual pós-funerário.


287

O ano de realização de um Pohoká é decidido em função da recém


entrada na puberdade do menino escolhido. A rigor, seus pais e avós não farão o
investimento ritual necessário, cujo custo da performance musical é realmente
altíssimo, se o menino escolhido não apresentar o caráter e o temperamento
desejados para um chefe e se ele não puder receber o nome de um amunaw do
passado43. Os nomes xinguanos são transmitidos por gerações alternadas.
Provavelmente os nomes permanecem por séculos. Aritana, por exemplo, o atual
chefe yawalapíti, é o terceiro Aritana de uma sucessão de grandes amulaw
yawalapíti com este nome, portanto, tataraneto de “Aritana I” (Viveiros de Castro,
1977: 68).
Antes de se casar, o jovem amunaw terá demonstrado, nos grandes rituais
inter-aldeões, que é um bom lutador, e então fará, sozinho, a sua primeira roça e
logo se casará. Terá filhos, aprenderá a oficiar rituais, adoecerá, conquistará a
confiança do grupo, patrocinará rituais, morrerá e será homenageado em um
Kaumai especialmente feito para ele, no qual poderá ser “acompanhado” por
outros amunaw de diferentes idades. Por ora suspendamos a discussão sobre o
Kaumai e prossigamos com algumas trajetórias biográficas.
Entre 1998 e 2002, acompanhei os esforços de Itsautaku, um amunaw
“menor”, pelo reconhecimento coletivo do status “nobre” de uma de suas filhas e
de um de seus netos. A maior parte desse esforço deu-se em âmbito ritual.
Itsautaku é neto (SS) de Topatari, um indivíduo historicamente
reconhecido como um grande amunaw. Porém, Itsautaku não alcançou um
reconhecimento político semelhante ao do seu avô, embora tenha feito imensos
esforços nesse sentido. Para evitar que a sua linha de “nobreza” caísse no
esquecimento, Itsautaku aguardou o momento mais propício e conseguiu
continuá-la de modo integral através de dois de seus descendentes.
Em 1998, nasceu o primeiro filho masculino do segundo filho de Itsautaku.
Este não era um neto como os outros, precisamente em função de descender,
também por linha materna, de um outro grande amunaw do passado. Este
menino é, portanto, o que possui mais substância de amunaw dentre os netos de

43 Meus dados sobre nominação são ainda muito incipientes. Algumas vezes, ouvi, no interior de
um grupo de primos paralelos, comentários do tipo: “faltou nome para mim”, “meus primos já
pegaram os nomes dos meus avôs”. As pessoas se referiam aos nomes “importantes”, aqueles
que permitiriam gerar alguma distinção. A importância e extensão desse tema escapam às
limitações desta etnografia. Num trabalho de campo futuro, pretendo explorar a atribuição de
valores aos nomes wauja e os mecanismos de sua transmissão.
288

Itsautaku, sendo o descendente ideal para receber o direito de futuramente usar


e transmitir o nome Topatari, e, com isso, prolongar a linha “nobre” de seus
ascendentes.
Para que esse projeto pudesse se concretizar, Itsautaku teve que contratar
um Pohoká especialmente para o seu neto bebê, que ainda levava o nome
Kayapu44. Quem oficia o rito de furação são unicamente os “donos” das canções
de Pohoká. Portanto, sem conhecimentos musicais especializados há uma
estagnação do socius wauja. O Pohoká de Kayapu foi apenas “intra-tribal”, e teve
lugar dentro da kuwakuho.
Em 2000, foi a vez de Itsautaku contratar um outro ritual de confirmação do
status “nobre” — o Kaojátapá—, dessa vez para a sua filha Masinta, seu décimo
rebento. A razão dele a ter escolhido é muito mais “conjetural” do que a inevitável
razão que revestiu a escolha de Kayapu dois anos antes. Masinta estava na
idade apropriada (pré-menarca), demonstrava ter o temperamento próprio de
uma amuluneju e tinha desejo de sê-la. É no Kaojátapá que as participantes
recebem a famosa tatuagem de três linhas paralelas sobre a face externa
superior de ambos os braços, referida por Karl von den Steinen como um sinal
distintivo arawak “para caracterizar homens e mulheres das famílias dos
caciques” (1940: 232-233). No Kaojátapá para Masinta, outras quinze meninas,
suas “acompanhantes”, também receberam a tatuagem. No entanto, nenhuma
delas teve seu grau de “nobreza” reconhecido na mesma altura que o de Masinta,
que “puxou” da mãe de Itsautaku o status de amuluneju. Continuemos com a
trajetória desse amunaw.
Em seu trabalho de campo de 1980, Vera Coelho notou que Itsautaku

não era um indivíduo muito benquisto no seu grupo: não tomava


parte em muitas das festividades e trabalhos coletivos e sobre ele
pesavam muitas acusações de feitiçaria. Talvez por causa disso,
fazia frequentes visitas ao posto indígena, de onde voltava trazendo
muitos objetos de origem industrial, como, por exemplo, um carrinho
de mão e várias outras ferramentas (Coelho, 1980) .

44 Este nome é uma corruptela de Kayapó, tendo, para este bebê, um sentido apenas provisório.
45 Atualmente Itsautaku continua trazendo objetos, porém, não mais coisas ordinárias como
carrinhos de mão. Em 2002, ele e três de seus filhos construíram uma pequena aldeia turística de
estilo xinguano, na área de uma fazenda fronteiriça ao parque, onde eles fazem apresentações de
dança e vendem artesanato para turistas. Como pagamento, Itsautaku e seus filhos receberam
um barco com motor diesel. Sua decisão de construir essa “aldeiazinha” para obter um barco
“particular” foi muito criticada pelos amunaw wauja, do mesmo modo que anos atrás o criticavam
por trazer carrinhos de mão e outros objetos do posto.
289

Naquele ano, Itsautaku era um jovem de aproximadamente 33 anos de


idade que vivia na casa de seu FB46, ou seja, ele ainda não era chefe de uma
unidade residencial. Como mencionei acima, foi só no final da década de 1980,
com a sua iniciação no xamanismo visionário-divinatório entre os Kamayurá, que
Itsautaku começou a ver a diminuição dessas acusações. Além disso, ao longo
de toda a década de 1990, Itsautaku fez pesados investimentos nos rituais de
Kawoká e de Yamurikumã dos quais ele é “dono”. Para sustentá-los, Itsautaku
dependia de um abastecimento mais ou menos frequente de excedentes de
peixes e de roças suficientemente produtivas para oferecer comida ritual aos
seus kawoká-mona Kawoká e kawoká-mona Yamurikumã. Para tanto, ele
contava com os seus co-residentes. Mas por que estariam esses co-residentes
interessados em fazer investimentos nos rituais de seu sogro ou pai? Seguindo a
lógica do sistema, arrisco uma hipótese.
Quando um genro pesca para sustentar os rituais de seus sogros co-
residentes, ele estaria pensando, sobretudo, em seus filhos, ou melhor, na
possibilidade destes receberem nome(s) importante(s) ou objetos rituais dos
avôs. Devido à transmissão preferencial do status de amunaw por gerações
alternadas, o genro co-residente tem que produzir os sogros para produzir o filho
ou para que sua esposa herde as flautas Kawoká, caso seu pai ou sua mãe as
possua, e para que estas um dia possam ser transferidas para um de seus filhos.
Embora trajetórias desse tipo façam total sentido, as vicissitudes do
convívio doméstico levam muitos genros a desistir de ajudar seus sogros. Parte
da desistência pode se dar em função de uma fraca reposta da “comunidade” aos
investimentos feitos pela casa. Insatisfeitos, os genros acabam construindo suas
próprias casas e constituindo uma outra unidade de cooperação doméstica,
porém sem perder laços de cooperação com a antiga casa. Muitos dos conflitos
domésticos entre os Wauja resultam de insatisfações em torno da distribuição de
peixe. Em toda casa onde há pelo menos um “dono” de ritual permanente, a
produção alimentar, sobretudo a pesca, está sob atenta observação dos
apapaatai, ou melhor, dos kawoká-mona que os “representam”. Piyulaga é um
lugar onde todos vêem tudo, ou pelo menos, quase tudo.

46 Esclareço que a residência na casa do irmão do pai não é um “traço estrutural”.


290

Quando perguntei ao filho sénior de Itsautaku o que ele faria com as


flautas Kawoká de seu pai, caso este falecesse, recebi a seguinte resposta:

Eu ia acabar. (...) Porque eu não gosto. Eu não quero ficar igual ao


meu pai que sofreu com Kawoká. Ele não comeu direito a comida
dele só para dar para Kawoká. (...) E quando genros dele
pescavam, chegavam com muito peixe. Aí meu pai pegava os
melhores peixes e levava para o enekutaku para dar para Kawoká.

A resposta de outro filho de Itsautaku sobre a mesma questão, pondera


sobre três aspectos:

Por mim, se eu fosse filho único, se não tivesse meus irmãos, eu


acabaria com todas as festas dele, la queimar tudo (referindo-se à
Kawoká e Tankwara). (...) Porque eu não tenho roça grande, não
tenho como dar comida. (...) Eu acho que minha irmã (a primogénita
de Itsautaku) vai querer Kawoká para ela. (...) Se antes de morrer,
meu pai disser que tem que cuidar (de Kawoká), a gente vai ter que
cuidar.

Itsautaku é “dono” de três rituais permanentes de apapaatai (Kawoká,


Yamurikumã e Tankwara). Há mais de uma década ele vem trabalhando
sofregamente em busca do “reconhecimento da comunidade”, a ponto de ofertar
comida em “excesso”, como esclarecem seus filhos. Em tom de desgosto, os
mesmos acrescentam que os kawoká-mona de Itsautaku não têm “vergonha da
comida que recebem dele”, por isso eles “trabalham pouco”, ou melhor, eles
demonstram um reconhecimento menor do que Itsautaku deseja receber.
A duração e intensidade dos investimentos nos diferentes amunaw nem
sempre é previsível e certos estados de coisas podem mudar o curso do
reconhecimento político. Um dos fatores dessa imprevisibilidade são as
acusações de feitiçaria, a principal mola de “contra-poder” no Alto Xingu. Viveiros
de Castro conta que Aritana II, o avô do atual chefe Aritana, foi assassinado por
um Aweti, envolvendo acusações de feitiçaria (1977: 66)47. Portanto, até mesmo
um amunaw-iyajo corre o risco de ser executado. Os estudos de Ireland (1986,
1988a, 1993b e 1996) mostram como antigos chefes wauja conseguiram, por

47 O filho de Aritana II, pai do atual Aritana, esperou dezenove anos para realizar o Kaumai de seu
pai (Ferreira apud Carneiro, 1993: 410). A realização desse Kaumai — tardio em função da
fragilização sofrida após o assassinato e da subsequente dissolução da aldeia yawalapíti, no final
da década de 1930 — coincidiu com a época do re-aldeamento dos Yawalapíti, em 1948, e
contribuiu para recolocar a “linhagem Aritana” na alta posição que ela ocupava anteriormente.
291

meio de acusações de feitiçaria, exilar ou executar os seus inimigos, todos eles


amunaw. Aa acusações de feitiçaria e as execuções podem levar uma linha de
amunaw ao desaparecimento, devido à dificuldade que seus membros enfrentam
em confirmar e produzir ritualmente o seu status de amunaw, na condição de
exilados. Se este status não for confirmado, a cada geração alternada, a linha
corre o risco de extinção. Eis o conflito maior: intimidar/submeter determinadas
pessoas que possam comprometer posições de reconhecimento político.
Na seção 6.1 do capítulo anterior, mencionei que dissensões no campo
político wauja vinham ocorrendo por razão de um “desequilíbrio” envolvendo as
produções rituais de Tankwara e de Kawoká. Um dos cinco “donos” de Tankwara
é acusado de receber “excessivos” trabalhos de seus kawoká-mona, enquanto
um dos “donos” de Kawoká há muito não é beneficiado, como ele próprio
desejaria, com uma roça, uma casa ou belas panelas. Segundo a lógica
hierárquica da posse de objetos rituais, tal “desequilíbrio” não deveria ocorrer,
pelo menos a um longo prazo, como vem ocorrendo. Se observados
isoladamente, os rituais de Kawoká e Tankwara pouco esclareceriam sobre a
“socialidade política” (Strathern, 1988: 97) wauja. Ao contrastar o patrocínio de
ambos os rituais, nota-se que está em processo um questionamento da “estrutura
hierárquica” em que esses objetos estão situados, o qual se dá por meio do
conflito entre “nobres”. O conflito é também entre o “conceito-madeira” e o
“conceito-bambu”: ponto de convergência epistemológica do sistema. Mas não é
apenas no ritual que certas posições sociopolíticas podem ser alteradas ou
revogadas — um “grande chefe” pode ser acusado de feitiçaria, um “nobre
menor” pode se tornar um “grande chefe”. No Alto Xingu, a inconstância das
posições balança o desejo privado de equilíbrio.
Na esfera wauja, o reconhecimento político que um amunaw pode obter é
expresso, sobretudo, por meio da oferta de artefatos, desde roças a adornos de
luxo (awojopaixê) e casas. É uma idéia de opulência que orienta a economia
política wauja. Um grande amunaw é um kapapalataipai (pessoa que está
acumulando objetos valiosos), e isso é o reflexo do investimento que a
“comunidade” faz nele. Se os pais e avôs investem em suas crianças e
adolescentes, a “comunidade” investe em seus amunaw adultos. Se estes
investimentos são interrompidos, a possibilidade do reconhecimento pleno do
status de amunaw de uma pessoa estagna. Os artefatos e alimentos trabalham
292

para a progressão da substância e do status “nobres”. Sem a sua abundância


não há como exercer propriamente esse status, e muito menos a chefia de
aldeia. Toda essa progressão desemboca no Kaumai. No caminho há os rituais
de apapaatai: as máquinas da opulência.
Quando os convidadores de rituais inter-aldeões chegam numa aldeia
xinguana ele é recebido pelo putakanaku wekeho (“dono” da aldeia), que convoca
os amunaw locais para levarem objetos de luxo (panelas e torradores de beiju
finamente pintados, colares e cintos de caramujo, adornos plumários de cabeça)
para serem trocados na aldeia anfitriã. São esses objetos que fazem circular e
que dão notoriedade ao nome de um amunaw. Um amunaw que não tem objetos
de luxo para levar para os rituais não atinge reconhecimento supra-local. Um
dado importante: apenas pessoas que passaram pelos rituais de Pohoká e
Kaojatapá podem assumir o papel de “dono” do pagamento, ou noutras palavras,
o papel de levar objetos de luxo para trocar nas outras aldeias.
Atamai, seus irmãos Mayaya e Yatuná, Itsautaku, Ulepe, Yauru e
Katsiparu (as duas últimas são amuluneju e grandes ceramistas) são os Wauja
que mais participam de rituais inter-aldeões na condição de “donos” do
pagamento. É dito pelos Wauja que a comida oferecida pela aldeia anfitriã aos
seus convidados é “paga” com os objetos de luxo levados pelos “donos” do
pagamento. Na verdade, cada um desses “donos” recebe um outro objeto em
troca daquilo que ele levou. A idéia de que os objetos “pagam” a comida recebida
pelos convidados ainda precisa ser melhor esclarecida.
O fluxo ritual de objetos de luxo no Alto Xingu é enorme. Atualmente, um
único Kaumai48 mobiliza a circulação de pelos menos 70 objetos. Se levarmos em
conta que, a cada ano, acontecem de um a quatro Kaumai, pode-se calcular em
até 280 o número de objetos de luxo que circulam entre as doze aldeias do Alto
Xingu. Esse cálculo obviamente não inclui os outros rituais inter-aldeões de
trocas — Yawarí, Huluki, Yeju — que, eventualmente, podem ter lugar em uma
dessas aldeias ao longo de um ano. Portanto, se não há abundância de bens de
luxo, o sistema estagna.

48 Há um certo consenso de que o Kaumai é um ritual cuja matriz oriunda dos arawak (Franchetto,
1992; Dole, 1993). Esse ritual, além de imprimir um forte sentido de regionalidade à “sociedade
xinguana” (Heckenberger, 2001a), é o delimitador mais claro da abrangência regional dessa
“sociedade”. Conforme uma antiga proposição de Galvão (1953, 1960), o uluri (“cinto” perineal
feminino) seria o “objeto” emblemático dessa Região. Entretanto, ao que se pode depreender da
293

Nem todos os convidadores das aldeias anfitriãs conseguem um número


suficiente de objetos para trocar com seus convidados, protelando a entrega do
objeto prometido. Em outubro de 2002, Atamai ainda era credor de pagamentos
entre os Kuikuro e os Kalapalo de Kaumai realizados anos antes. Como a
demanda por objetos de luxo é muito grande, algumas aldeias que não os
produzem têm oferecido como pagamento grandes panelas de alumínio, que em
Canarana custam em média trezentos e cinquenta reais.
Se isolarmos a produção ritual em performances discretas, perderemos de
vista a possibilidade de investigar como cada ritual trabalha para impulsionar o
ritual seguinte, ou como funcionam os rituais, cuja realização se dá em intervalos
igual ou superior a dois anos, como por exemplo o Yeju.
Agostinho (1974: conclusões) observou a relação de continuidade
simbólica e ecológica entre o Kaumai e o Ciclo do Pequi. É no limiar entre o fim
da estação seca e o início da estação chuvosa que se dá o Kaumai, exatamente
quando começa a maturar o pequi. Agostinho aproxima esse calendário a uma
“razão” ecológico-económica, pois essa época permite levantar a abundância de
recursos necessários. O autor demonstra que esse calendário é encompassado
por um simbolismo de renovação sociocósmica que envolve a puberdade
(condição de reprodução biológica), a maturação do pequi (esta fruta
corresponde aos testículos de um Jacaré mítico), a extração da sua castanha e o
seu consumo. A castanha, que é extraída durante a Festa do Pequi, fica
guardada por alguns meses — mais ou menos correspondentes ao período de
uma gestação humana49 — e só é quebrada alguns dias antes do Kaumai.
Segundo Agostinho (1974), a associação ritual entre jovens púberes e castanhas
de pequi funda uma idéia de fertilidade/reprodução que tem seu momento
máximo de veiculação quando as reclusas saem para distribuir as castanhas aos
amunaw das outras aldeias convidadas para o Kaumai. Esses símbolos de
renovação estão inteiramente envolvidos pela homenagem aos amunaw mortos.
O Kaumai é uma “repetição” simétrica e invertida do Pohoká. Se este ritual
é a anunciação supra-local dos prováveis futuros amunaw, o Kaumai é a
confirmação máxima do status de “nobreza” de uma ou mais linhas de

etnografia de Agostinho (1974: introdução) e de outras contribuições (Carneiro, 1993; Dole, 1993),
esse estatuto cabe, sem dúvida alguma, ao Kaumai.
49 A Festa do Pequi acontece entre meados de outubro e o fim de novembro e o Kaumai entre a
última semana de julho e a primeira semana de setembro.
294

descendência. Os parentes de um amunaw morto que patrocinam o Kaumai em


sua homenagem estão, na verdade, fazendo algo próximo a um “auto-
investimento”, pois, o “efeito” da confirmação da linha se fará sobre os
descendentes do amunaw morto.
O Kaumai é o ritual onde desemboca “todos” os elementos que articulam o
sistema: luta, casamento, reclusão, troca, nominação e produção de
descendência “nobre”. O Kaumai fixa de maneira supra-local os nomes do morto
homenageado e atribui-lhes valor, também supra-local. Aliás, todo o movimento
de produção de status especiais, seja o de amunaw, o de músico ritual
(apayekeho) ou o de “dono” ritual (nakai weheho) aponta invariavelmente para
âmbitos supra-locais.
Grande parte da biografia de um amunaw é atravessada pelo seu
patrocínio de rituais de apapaatai. Embora as suas realizações tenham um fundo
majoritariamente local, é preciso estar atento a um segundo fundo, nem sempre
muito evidente, e cuja amplitude é supra-local. Ou seja, os rituais de apapaatai
realizam-se também num nível inter-aldeão. Neste caso eles são chamados de
Yeju, havendo ainda a “variante” Huluki.
O Yeju pode acontecer para Kawoká, Yamurikumã e Tankwara. Um Yeju é
basicamente caracterizado pelo encontro, numa aldeia anfitriã, de vários grupos
kawoká-mona de uma dessas três formas rituais. Assim, pelo princípio lógico dos
rituais de apapaatai, Onças e Tracajás da aldeia wauja podem ir dançar com
Sapos e Tucunarés da aldeia mehinako ou com Arraias e Beija-Flores da aldeia
kamayurá. No Yeju, convida-se apenas uma aldeia. Além de objetos-pagamento,
os convidados devem levar, para a aldeia anfitriã, as suas flautas, no caso de
Yeju Kawoká, ou os seus clarinetes, no caso de Yeju Tankwara, ou os seus coros
de mulheres, no caso de Yeju Yamurikumã. A particularidade do Yeju assenta-se,
portanto, em promover a circulação simultânea de objetos-pagamento (e.g.
colares, panelas, adornos plumários etc.) e de objetos de rituais permanentes
(flautas e clarinetes), estes, porém, são levadas de volta à aldeia dos convidados,
juntamente com os objetos-pagamento trocados com os seus anfitriões.
A promoção de um Yeju inter-aldeão traz enorme prestígio aos “donos”
rituais da aldeia anfitriã. Muitos “donos” rituais esperam até dez anos para
receberem de seus kawoká-mona um reconhecimento dessa magnitude. O último
295

Yeju inter-aldeão na aldeia Wauja deu-se em 1998 e foi realizado em nome dos
cinco “donos” de Yamurikumã, tendo sido seus convidados os Kamayurá.
Num primeiro momento, vimos que os rituais de apapaatai são
internamente hierarquizados, agora vemos um outro nível de hierarquização, tão
crucial quanto aquele, cujo sentido repousa no próprio “funcionamento” da
“sociedade regional xinguana”. O Yeju inter-aldeão é o degrau máximo de
reconhecimento que um importante “dono” ritual — que no caso wauja é
invariavelmente um amunaw, como também o é entre os yawalapíti (Viveiros de
Castro, 1977: 221) — pode receber em vida. Depois disso, só o Kaumai, mas aí
ele já está morto. Portanto, o reconhecimento aumenta, e consequentemente a
substância “nobre” que ele transmitirá aos seus descendentes, na medida em
que ele fizer circular um maior número de objetos de prestígio, sobretudo os seus
aerofones e/ou coros de mulheres. Como mencionei na introdução desta tese, os
apapaatai estão para além de seus próprios rituais. Espero ter deixado pistas
suficientes para avançar a idéia de que a “familiarização” dos apapaatai gera um
input sobre a progressão/transmissão do status de amunaw. Enfim, os rituais de
apapaatai não são apenas de amunaw, mas sobretudo para os amunaw.
Ao chegar a esta conclusão, após tentar enquadrar os rituais de apapaatai
no continuum cerimonial xinguano, penso que o Alto Xingu é o lugar para uma
possível resposta a uma questão formulada por Fausto (2001) sobre os regimes
sociocosmológicos das terras baixas sul-americanas. Fausto sintetiza dois
modelos:

um centrífugo, outro centrípeto. No primeiro, predominaria o


esquema da predação familiarizante; no segundo, esse lugar seria
ocupado pela transmissão vertical e/ou horizontal de bens e
atributos (2001: 533).

Nesse esquema, os Jê e os xinguanos seriam casos “típicos” de sistemas


centrípetos, cada um, porém, com fortes particularidades que os distinguem entre
si:

enquanto os últimos se constituem pela capacidade de atrair,


incorporar e aculturar grupos inimigos enquanto grupos (daí seu
caráter multilingúístico e multiétnico), os primeiros tendem a
capturar e incorporar membros isolados de grupos estrangeiros,
dissolvendo suas identidades em diferenças internas preexistentes.
296

Restaria perguntar, por fim, em quê tais mecanismos de absorção


de pessoas e riquezas se distinguem do movimento negativo-
positivo da predação familiarizante e qual o lugar deste último na
reprodução dos sistemas centrípetos. Mas essas são questões que,
por ora, prefiro deixar sem resposta (2001: 537).

O Alto Xingu, tomado pelo exemplo wauja, parece articular ambos


regimes. É por meio de um processo contínuo e prolongado de “familiarização”
dos apapaatai que o cenário mais amplo das transmissões toma corpo. Assim,
como nos sistemas centrífugos, os Wauja também “capturam” estrangeiros
(apapaatai), “absorvendo” as suas identidades por meio de uma supressão da
sua potência patológica. No caso wauja, conforme indicam as dobras entre
xamanismo e ritual e entre ritual e socialidade, as qualidades centrífugas e
centrípetas impulsionam-se mutuamente.
A arte estaria nos vértices da triangulação entre as “socialidades política e
doméstica” (Strathern, 1988) e a cultura dos apapaatai. Por outro lado, a arte é
essa máquina de capturar os apapaatai. Se a doença grave é o cativeiro dos
humanos e a sua condição primeira de Animalização, a arte é o cativeiro dos
apapaatai e o único meio de sua “familiarização” (ou de humanização
“humana”?). E, segundo vimos, quanto mais durável for o objeto de arte, mais
prolongada será a sua “familiarização”. Obviamente há exceções: se os objetos
forem abandonados, eles poderão se tornar seres perigosíssimos. Ou seja, a arte
pode tornar os apapaatai ainda mais monstruosos.
A etnografia dos rituais de apapaatai mostra que os Wauja incorporam
famílias inteiras de gentes não-humanas, tornando-os um pouco wauja, e nesse
movimento de tornar o outro o mesmo, os próprios wauja torna-se também
apapaatai. É necessário “ser” apapaatai, para que estes “sejam” nós. A própria
terminologia sociocosmológica indica isso: os wauja especialistas em músicas,
danças e iconografias rituais são kawoká-mona, ou seja, “como” apapaatai.
Enfim, o que quero dizer é que sem o fluxo contínuo de predação (de
pessoas) e de produção (material e de pessoas) não há possibilidade de
transmissão local de substância de amunaw e nem de atração supra-local de
pessoas.
Como outros regimes sociocosmológios arawak (Hill & Santos Granero,
2002: 17-22), o wauja tem um forte matiz de expansão e inclusão. O “sistema
ritual xinguano”, visto em seu horizonte máximo, é, na verdade, a inclusão do
297

mundo “inteiro”. Há nele desde Larvas e Onças até aldeias estrangeiras inteiras.
E, com a realização dos Kaumai para os irmãos Cláudio (1998) e Orlando Villas-
Bôas (2003), podemos dizer que esse “sistema” conseguiu ampliar seu esquema
de inclusão ao incorporar ritualmente o kajaopa (branco).
É importante relembrar que Kamo e Kejo fizeram, num mesmo impulso
criador, os índios e os kajaopa. Os últimos, por terem escolhido a espingarda,
foram mandados embora do lugar da criação, o Mojená, “o centro do mundo”,
ponto de confluência dos principais formadores do rio Xingu (Agostinho, 1974:
19). Ao escolher a espingarda, o kajaopa mostrou a sua disposição à violência,
da qual esse objeto é o símbolo maior: instrumento de genocídio. Porém, muito
tempo depois, os kajaopa voltaram, e os xinguanos perceberam que alguns deles
tinham renunciado à espingarda.
A renúncia reaproximava aqueles que as escolhas do passado tinham
separado. Os xinguanos, entretanto, administraram essa proximidade da maneira
que eles sabem fazer melhor: com o ritual inter-aldeão. Assim, os Kaumai feitos
em nome dos irmãos Villas-Bôas são uma reordenação do trabalho de criação
dos Gêmeos e de seu avô. Capturados pela lógica do mito de criação dos
humanos, os Irmãos Villas-Bôas viraram “objeto” ritual, viraram “troncos” de
umejo (kwarip), efígies dos falecidos, única maneira de passarem para o nível
mais elevado da inclusão: o reconhecimento pleno de seu status de amunaw.
Mais uma vez, “objetos” belos surgem como agentes de um processo de
“domesticação” política. Nas palavras de Agostinho (1974: 154-155), o Kaumai é
a “expressão viva” do restabelecimento de um equilíbrio ameaçado pela morte de
um morerekwat (amunaw). Portanto, comemorar os irmãos Villas-Bôas era um
imperativo dessa ordem, visto que eles foram, por muitos anos, grandes chefes
naquele lugar.
O regime sociocosmológico xinguano de expansão e inclusão é ainda uma
abrangente questão a explorar. Deixo, para tanto, um caminho a percorrer.
Entretanto, nesse caminho, a “domesticação” dos apapaatai não deve ser
separada da “domesticação” dos kajaopa eminentes.
Muitos dos rituais permanentes de apapaatai entre os Wauja têm Onças
como personagens, conforme se pode constatar para os casos de Kawoká e
Tankwara. Assim como esses grandes felinos, os irmãos Villas-Bôas tiveram a
sua inclusão via ritual, porque eles foram amunaw. As Onças são o arquétipo da
298

chefia no outro mundo, seguidos da Sucuri e da Harpia, dos quais peles e penas
são extraídos para compor, em âmbito ritual, um mundo de distinções sociais
entre amunaw e r\ão-amunaw. Esse parece ser um dos fundamentos principais
do mundo xinguano: os rituais são o lugar dos chefes, cada qual situado aí
conforme suas origens específicas: o tempo antes dos homens e o tempo depois
dos homens, o “tempo patológico” e o “tempo político”, respectivamente. E o
controle de ambos50 implicando numa “domesticação” cosmopolítica.
Encerro com uma fala de Hukai Wauja, ela própria uma síntese dessa
vontade de inclusão/“domesticação”:

Se meu pai ou minha mãe passar Kawoká para mim, eu vou aceitar,
vou continuar com Kawoká. Porque não pode perder Kawoká. É
para ficar aí, comendo a comida da gente. Porque Kawoká fica com
a alma da gente, a gente não está vendo, mas Kawoká sempre está
lá, na casa, comendo.

50 O uso, aqui, da idéia de controle do tempo via ritual é inspirado em Gell (1992a), da qual faço
um aproveitamento apenas parcial. Seu aprofundamento implica em desdobramentos que
escapam à finalização desta etnografia. Em suma, Gell defende, a partir de um complexo diálogo
interdisciplinar, que a representação do tempo é uma variável da acumulação de poder.
299

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