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Sumário

Editorial – A atenção à saúde da população LGBT


Comitê Técnico de Saúde Integral da População LGBT................................................................ 3

Diversidade sexual: confrontando a sexualidade binária


Regina Figueiredo .......................................................................................................................... 7

Diversidade sexual e Direitos Humanos


Haroldo Jun Tani, Deborah Bittencourt Malheiros ....................................................................... 19

Nome social e a plena cidadania T


Cássio Rodrigo........................................................................................................................ 29

Saúde das mulheres lésbicas e atenção à saúde: nem integralidade, nem equidade
diante das invisibilidades
Marisa Fernandes, Luiza Dantas Soler, Maria Cecília Burgos Paiva Leite ...................................... 37

Experiência de discriminação e violências: um estudo descritivo com homens que


fazem sexo com homens de São Paulo
Denis Gonçalves Ferreira, Thiago Pestana Pinto, Maria Amélia de Sousa Mascena Veras .............. 47

Vigilância de violências: considerações sobre as informações relativas às violências


perpetradas contra a população LGBT no município de São Paulo
Carmen Helena Seoane Leal, Maria Lucia Aparecida Scalco, Ruy Paulo D’Elia Nunes,
Edriana Regina Consorti, Beatriz Yuko Kitagawa......................................................................... 55

Transfobia e racismo: articulação de violências nas vivências de trans


Lincoln Moreira de Jesus Menezes ........................................................................................... 62

Da invisibilidade ao reconhecimento: experiência de roda de conversa e validação


da bissexualidade em São Paulo
Cinthya Giselle Coutinho Oliveira dos Santos, Natasha Avital, Santiago de Paiva Bernardes,
Wesley Torres Rodrigues Ferreira .............................................................................................. 77

AMTIGOS – Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual,


do IPq-HCFM/USP: proposta de trabalho com crianças, adolescentes e adultos
Alexandre Saadeh, Liliane de Oliveira Caetano, Luciane Gonzalez, Beatriz Bork,
Desirèe Monteiro Cordeiro, Cassiana Léa do Espírito Santo, Leandro Augusto Pinto Benedito,
Matheus de Cillo Arantes, Zoe Barossi, Daniel Augusto Mori Gagliotti, Saulo Vito Ciasca,
Karine Schlüter, Maíra Caricari Saavedra ................................................................................... 86

Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais: desafios e realizações


Maria Clara Gianna, Ricardo Barbosa Martins, Emi Shimma ....................................................... 98

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A experiência de implantação da Política de Saúde Integral para Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) no município de São Paulo
Gabriela Junqueira Calazans, Salete Monteiro Amador, Gláucia Renata Beretta,
Nelson Figueira Junior, Ana Lúcia Cavalcanti ............................................................................ 105

Ampliando o olhar para a população LGBT em um grupo de discussão com trabalhadores


de saúde: potencialidade e desafios
Marcelen Palu Longhi ............................................................................................................ 116

Experiências de uma ONG na promoção de direitos e saúde trans em São Paulo


Marta McBritton, Tadeu Di Pietro, Regina Figueiredo, Barry Wolfe, Karen Schwach,
Fernanda Peres Guidolin, Vera Luz de Oliveira, Whelton Gabriel Lima dos Santos,
Luiz Augusto Spanghero Macarenhas, Margarete de Jesus Fernandes,
Nadja de Figueiredo Araújo..................................................................................................... 125

Gênero e diversidade: uma análise sobre os grupos de pesquisa do CNPq e a população LGBT
Renato Barboza, Alessandro Soares da Silva........................................................................... 135

Curso “A Conquista da Cidadania LGBT” – uma experiência da Secretaria de Estado


da Saúde de São Paulo
Deborah Malheiros, Juliana de Souza Ferreira, Vania Alessandra Feres ...................................... 144

Incursões sobre uma política de formação de educadores no Estado de São Paulo: o curso
“Gênero, Sexualidade e Diversidade Sexual: desafios para a escola contemporânea”
Thiago Teixeira Sabatine, Marina Matera Sanches ................................................................... 157

Orientação para escolas e educadores sobre encaminhamentos em sexualidade,


diversidade sexual e saúde sexual e reprodutiva
Regina Figueiredo, Letícia de Almeida Lopes Cândido .............................................................. 169

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Editorial

A atenção à saúde da população LGBT

A
saúde da população LGBT tem sido histo- cultural acerca da copar-
ricamente negligenciada, refletindo o pre- ticipação LGBT na arena
conceito a que pessoas pertencentes a social. Afinal, a luta con-
esse grupo estão expostas. tra o estigma e a discriminação cabe a todos
Até o advento da aids, na década de 1980, e a compreensão das diferentes experiências
que associou membros desse grupo a um seg- humanas se faz necessária para a constru-
mento de risco, não houve ações específicas ção de uma sociedade mais justa, inclusiva e
voltadas à promoção da saúde, da segurança, democrática.
dos direitos humanos e, portanto, à cidadania da Nesse sentido, esta edição do Boletim do
população LGBT. A partir daí, a vulnerabilidade Instituto de Saúde foi organizada e está sendo
social, as ocorrências desumanas e a condição apresentada, pelo Comitê Técnico de Saúde Inte-
dessa população foram visibilizadas por meio de gral da População LGBTI da Secretaria de Estado
um trabalho pioneiro de aproximação das políti- da Saúde de São Paulo, a todos os gestores e
cas de saúde junto a esses grupos e do prota- profissionais da área da saúde e afins. Busca
gonismo desses na luta contra a aids, mas tam- sensibilizá-los quanto aos principais temas e pro-
bém por seus direitos. blemáticas que acometem a saúde da população
Nesse processo, veio à tona a importância LGBT, incluindo suas reivindicações e experiên-
da integração de ações de promoção à cidada- cias de atenção às suas especificidades em
nia, à inclusão social, à integridade e ao res- saúde.
peito, envolvendo a observância de suas alteri- O panorama, os direitos e as estratégias
dades e demandas específicas. A discussão da de promoção e atenção à saúde são abordados
identidade de gênero, das necessidades e dos de forma geral e específica, conforme o segmen-
comportamentos tem sido reconhecida e tradu- to LGBT a que se referem, possibilitando, dessa
zida em pautas que saíram dos guetos, se am- forma, que outros serviços de saúde e gestores
pliaram e se transformaram em ações coletivas, das secretarias municipais se inspirem e se per-
políticas públicas e até na publicação de leis e cebam estimulados a participar dessas estraté-
portarias. gias de inclusão social e de fomento ao direito
Esta “2ª Revolução Sexual” atinge também à saúde.
a sociedade, que passa a ter mais contato e in- Atualmente, a maioria dos serviços que
formação sobre as diversidades sexuais, promo- atendem a população LGBT se concentra em
vendo um olhar mais humano e integrado, assim IST/HIV/aids, favorecendo uma abordagem des-
como a produção de conhecimento científico e sa população apenas pela doença. Com exeção

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do município de São Paulo, que já tem uma abor- Panorama da Atenção à Saúde LGBT no Estado
dagem mais complexa na rede de Atenção Bási- de São Paulo
ca, são poucos os municípios que já ampliaram a Um levantamento realizado de outubro a
assistência à saúde vislumbrando a integralida- novembro de 2018 pelo Comitê Técnico de Saú-
de da saúde desses indivíduos, com suas carac- de Integral da População LGBT da Secretaria
terísticas específicas e necessidades de promo- de Estado da Saúde e executado pelo Instituto
ção e cuidados em outras áreas da saúde além de Saúde desta secretaria entre os municípios
das IST em consonância a “Política Nacional de do estado, apresentou o seguinte panorama da
Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, atenção à saúde da população LGBT, entre os
Travestis e Transexuais”. 128 (19,8%) do total de 645 que responderam
Esta publicação que traz artigos sociológi- ao levantamento:
cos, da área do Direito, da Educação e, principal- – 120 municípios afirmam que a Coordena-
mente, experiências exitosas desenvolvidas pe- ção de Atenção Básica já tinha conheci-
la área de Saúde, visando sensibilizar e equipar mento da Lei Estadual nº 10.948 de 2001
com informações, gestores, profissionais de saú- que proíbe a discriminação por orientação
de e outros interessados para a questão. Procura sexual ou identidade de gênero; 85 deles
assim contribuir para que as políticas públicas (66,4%) afirmando inclusive que essa in-
em curso que promovam a cidadania LGBT sejam formação é de conhecimento de todas as
implementadas e extendidas nos diversos servi- suas unidades básicas de saúde (incluin-
ços e municípios. Para aqueles que desejam ter do de Estratégia de Saúde da Família) e
uma visão dos serviços de saúde já disponíveis, 33,6% não;
– em 110 municípios a Coordenação de
incluímos na próxima página, um panorama atual
Atenção Básica possui conhecimento De-
do nosso estado.
creto Estadual nº 55.588 de 2010 que
Comitê Técnico de Saúde Integral da obriga o registro e o uso do nome social
População LGBTI da Secretaria de informado pela população trans nos ser-
Estado da Saúde viços de saúde; sendo que desses 57,8%
afirmam que as unidades de saúde sa-
bem dessa orientação; sendo que 61,7%
a realizam no momento de cadastro do(a)
I
Comitê Técnico de Saúde Integral da População LGBT (http://www.saude. usuário(a), 91,4% quando fazem a aborda-
sp.gov.br/centro-de-referencia-e-treinamento-dstaids-sp/humanizacao/comi-
te-tecnico-de-saude-integral-da-populacao-lgbt). Coordenação: Fabíola Santos gem direta verbal a esta pessoa e 42,0%
Lopes (CRT DST/Aids de São Paulo); Membros da Secretaria de Estado da
Saúde de São Paulo (SES/SP): Renato Barboza e Regina Figueiredo (Instituto na solicitação de exames;
de Saúde); Vania Alessandra Feres (Coordenadoria de Recursos Humanos);
Eliana Ribeiro e Marisa Ferreira da Silva Lima (Coordenadoria de Serviços de – 78 (60,9%) municípios afirmaram que todas
Saúde); Silvana Tognini e Antonio Carlos Vazquez Vazquez (Coordenadoria
de Regiões de Saúde); Patricia Olivati Sacramento (Assoria de Saúde Men-
as unidades de saúde notificam o SINAM
tal); Vanderbaldo Ferreira Rezende (Coordenadoria de Gestão de Contratos
de Serviços de Saúde); Ligia Maria de Azevedo Soares e Frederico Carbone
ocorrências devido a motivação de homofo-
(Coordenadoria de Planejamento de Saúde); Cleusa Maria Gomes de Abreu
(Núcleo Técnico de Humanização); Membros externos à SES/SP: Deborah
bia, lesbo e transfobia, 7,8% que algumas
Malheiros e Haroldo Tani (Coordenação de Políticas da Diversidade Sexual fazem essse registro e 31,3% municípios
da Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania (SJDC); Elaine Maria Frade
Costa (Hospital das Clinicas da Faculdade de Medicina da Universidade de ainda não realizam;
São Paulo); Maria Ermínia Ciliberti (Conselho de Secretários Municipais de
Saúde); Cecília Bezerra (Conselho Estadual dos Direitos da População LGBT); – apenas 16,7% afirmam divulgar sem-
Albert Carlos Andreone dos Santos (Fórum de ONGs Aids do Estado de São
Paulo); Daniel Vas (Coletivo Bi-Sides). pre serviços contra a violência para a

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população LGBT e 23,0% às vezes; situ- • no Núcleo de Assistência Multiprofissio-
ações em que informam que orientem pa- nal à Pessoa Trans da Unifesp;
ra que o público denuncia para que este • no Ambulatórios de Atenção à Saúde Inte-
público denuncie essas situações nos ór- gral da População de Travestis e Transe-
gãos competentes, 76,0% orientando de- xuais da Secretaria Municipal de Saúde
núncias para o Disque Denúncia 100 – Di- de São Paulo: Ambulatório de Especiali-
reitos Humanos, e os outros (24,0%) para dade (AE) Alto da Boa Vista – Zona Sul;
a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos
AE Freguesia do Ó – Zona Norte; UBS Dr.
de Intolerância (DECRADI), para Delegacia
Humberto Pascale (Santa Cecília) – Cen-
de Polícia Civil, para a Polícia Militar e para
tro e demais regiões;
outros órgãos públicos como a Ouvidoria
– São Carlos: Ambulatório de Sexualidade
Municipal, a Secretaria de Saúde Munici-
Humana no Centro Municipal de Especia -
pal, Centros de Assistência Social (CRAS),
lidades;
o Conselho Tutelar e para ONG.
– São José do Rio Preto: Ambulatório Muni-
Todos os municípios devem atender a po-
cipal de Saúde a Travestis e Transexuais;
pulação LGBT na rede de Atenção Básica sem
discriminação. No entanto, apenas 24 municípios – Santos: Hospital Guilherme Álvaro;
creem que a sua população lésbica, gay, bissexu- – Guarulhos: Ambulatório Especializado na
al e trans é atendida normalmente nas unidades Saúde de Transexuais no CTA Ubiratán
básicas de saúde. Apenas 42 municípios haviam Marcelino dos Santos;
realizado sensibilizações com profissionais e 27 – Ribeirão Preto: Ambulatório de Estudos
com a população em geral, inclusive LGBT, sobre em Sexualidade Humana da Faculdade de
seu direito a esse atendimento. Medicina da USP/RP.
Também todas as Secretarias de Saúde de- Todos esses serviços possuem uma equi-
vem promover ações programáticas de prevenção
pe multidisciplinar e realizam atenção em Psico-
de IST/HIV/aids entre essa população, que segun-
lógico e Psiquiático, além do procedimento de
do o levantamento são realizados em todos os
hormonioterapia. No município de São Paulo,
municípios, em 57 (44,5%) dos que responderam
os ambulatórios regionais pertencentes à Pre-
por meio dos Programas Municipais de DST/Aids,
feitura, é necessário, para o acesso à hormo-
também 23,3% pela Atenção Básica e 31,8% por
nioterapia, que os usuários procurem a UBS
meio do encaminhamento para serviços de refe-
mais próxima de sua residência para receber o
rência do Estado ou em outros municípios.
Quanto aos serviços específicos de assis- encaminhamento.
tência à população trans, somente 6 municípios Entre os outros municípios do estado de
paulistas possuem ambulatórios específicos pa- São Paulo que não possuem esses serviços, 60
ra a atenção à saúde dessa população: (70,6% dos que responderam ao levantamento)
– São Paulo: afirmam encaminhar a população LGBT para ser-
• no Ambulatório de Saúde Integral à Popu- viços de referência em outras regiões para: re-
lação LGBT/CRT Aids; alização de hormonioterapia para feminilização
• no ProSex do Hospital das Clínicas de das trans, 75,0% para larioplastia e para cirurgia
São Paulo da Universidade São Paulo; de resiganação sexual para trans mulheres que

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queiram, 72,6% para a realização de hormoniote- Embora já tenham atendido mais de 500 pessoas
rapia para masculinização, 75,0% para mastecto- para esse procedimento no período desde 2008;
mia e 75,3% para histerectomia de trans homens. a demanda reprimida que esses serviços passa-
Cirurgias de transexualização estão sendo ram a atender geram uma grande procura e, por
realizadas em São Paulo, por meio de uma fi- isso, uma fila de espera de mais de uma década.
la controlada pelo CRT DST/Aids e realizada no Ou seja, muito ainda há que ser feito para
Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina atender às necessidades de saúde da popula-
da Universidade de São Paulo (HC/FM/USP), no ção LGBT. Para saber mais sobre várias dessas
Hospital Mário Covas (em Santo André) e em São ações, veja aqui nesta edição do BIS, os artigos
José do Rio Preto, no Hospital das Clínicas da Fa- que trazem as experiências vivenciadas pelos ser-
culdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto. viços de saúde que atendem a população LGBT.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Diversidade sexual: confrontando a sexualidade binária


Sexual diversity: confronting binary sexuality

Regina FigueiredoI

Resumo Abstract

O artigo aborda as origens da construção do padrão de classifica- This article discusses the origins of the constructed pattern of bi-
ção binária da sexualidade humana, apresentando as diversidades nary classification of human sexuality, presenting the human sexu-
sexuais e de gênero humanas, registradas pelas Ciências Sociais al and gender diversities, recorded by Social Sciences throughout
ao longo da História. Sistematiza as ocorrências de diversidade History. It systematizes occurrences of sexual diversity in the follo-
sexual nas categorias: diversidades do sexo físico-biológicas; di- wing categories: physical-biological sex diversity; diversities rela-
versidades relativas à identidade de sentimento, autopercepção ted to identity feelings, self perception and classification as a gen-
e classificação enquanto expressão de gênero; e diversidades de der expression; and diversity of affection orientation, desires and
orientação dos afetos, desejos e parcerias sexuais. Com isso, visa sexual partnerships. With that, it seeks to propagate knowledges
difundir conhecimentos e facilitar a compreensão das discussões and facilitate the comprehension of political discussions and pro-
e propostas políticas, inclusive da área da Saúde, que têm o in- positions, including from the field of Health, that mean to include
tuito de incluir e garantir plenos direitos a todos os indivíduos, and guarantee full rights to all individuals, including those who live
incluindo aqueles que vivem a sexualidade de forma diversificada their sexualities in forms diverse from binary and heteronormative
ao padrão binário e heteronormativo creditado pelo senso comum. standards credited by common sense.

Palavras-chave: Ciências sociais aplicadas; Saúde; Diversidade se- Keywords: Applied social sciences; Health; Sexual diversity; LGBT.
xual; LGBT.

Introdução atualmente, a abordagem da formação cultural

Q
uando falamos em diversidade sexual, das pessoas para exercer papéis femininos ou
recorremos ao vasto campo da sexua- masculinos e suas identidades com relação a
lidade, que historicamente tem agrupa- esses papéis (identidade de gênero), a maneira
do temas muito diversos. Ele abrange desde a como as relações desses gêneros se dão e o
discussão sobre o sexo biológico, das parcerias quanto estão entrelaçadas aos sexos biológicos
sexuais, os discursos sobre reprodução, como – já que há pessoas com diferentes identidades
das formas de conjugalidade vividas pelas so- e expressões sexuais. Tal diversidade de abor-
ciedades humanas, da composição familiar e dagens torna os temas que rondam a sexualida-
que, posteriormente (com a influência freudia- de não apenas objeto de discussões confusas e
na), integraram as discussões sobre os impul- controversas – uma vez que se refere a aspec-
sos e desejos, do prazer e das sensações; até, tos vividos de diferentes maneiras por todos os
indivíduos –, como também de disputas de po-
der e de concepções ideológicas1.
I
Regina Figueiredo (reginafigueiredo@uol.com.br) é socióloga, Mestre em Em vista disso, esse artigo pretende abor-
Antropologia e Doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo
(USP), Pesquisadora do Instituto de Saúde e membro do Comitê Técnico de dar a sexualidade a partir do prisma das diver-
Saúde do Adolescente e do Comitê de Saúde Integral da População LGBT
da Secretaria de Estado da Saúde de Saúde de São Paulo (SES-SP). sidades sexuais, expondo suas características e

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Diversidade Sexual e de Gênero

sua presença nas sociedades humanas, visando nomeia as coisas, servindo para estabelecer com-
a facilitar a compreensão das discussões e pro- paração entre a pessoa e os objetos, entre ela e as
postas políticas, inclusive de saúde, que se en- outras pessoas e entre os objetos entre si.
contram em voga com o intuito de incluir e propor- O antropólogo Lévi-Strauss5, analisando a
cionar cidadania a todos os indivíduos. cultura de diversas sociedades, também conclui
que a racionalidade humana funciona à base de
oposições binárias, que formariam estruturas
O pensamento binário da mente, denominadas por ele como “lógica do
De forma geral, as pessoas tendem a clas- concreto”, que faz uma organização intelectual
sificar a sexualidade e o sexo a partir de duas ca- a partir da experiência afetiva da realidade. Por
tegorias binárias: macho/fêmea, homem/mulher, isso essa forma de classificação é um dos as-
feminino e masculino. Por quê? pectos mais frequentes do senso comum, o que
Em suas pesquisas observando crianças, Galvão6 nomeou “bipartição como pensamento
Piaget2 concluiu que a fala, assim como outras semiológico” e que não se instrumentaliza por
formas de linguagem, criam as categorias de uma lógica abstrata, mas sim referenciada no
pensamento que as pessoas utilizarão para se concreto e por isso enormemente presente em
comunicar, o que denomina “pensamento inte- nossa sociedade.
ligente”. Assim, a forma como apreendemos a Com relação à simplicidade desse tipo de
realidade se inicia como uma “rotulação” e vai construção do pensamento e, portanto, de per-
se sofisticando na classificação das coisas, que, cepção do mundo, Burigo7 chama a atenção dos
após mais ou menos os sete anos de idade, se perigos iminentes nessa forma de encarar a rea-
torna cada vez mais complexa. Não à toa, a par- lidade, uma vez que segundo ela “pensamentos
tir daí as crianças começam a perguntar muitos pautados em conceitos binários são facilmente –
porquês – momento em que passam a ter noção e perigosamente – petrificantes”, ou seja, não só
de causalidade: a compreender que tudo é cau- advém da apreensão simples do concreto, mas
sado por algo ou algum motivo. Conforme a reali- também tende a concretizar como “verdade” as
dade se apresenta, portanto, os seres humanos categorias binárias pensadas, compreendendo-
se ajustam intelectualmente, criando consciência -as como “dois elementos supostamente comple-
e passando a pensar cada vez mais abstrata- mentares, ou por duas faces presumivelmente
mente, a ponto de poder, lá pelos dez anos, pas- opostas, ou ainda por duas partes hipoteticamen-
sar a fazer conjecturas e a qualificar a realidade, te distintas”.
mesmo com coisas que não sejam apresentadas Nessa reflexão pode-se pensar essa dis-
concretamente. tinção como “valorativa”, na medida em que
Assim, a mente vai formando “esquemas”, transpõe uma “sensação” que pode ser de com-
que são as formas de organizar o pensamento3. plementariedade (exemplo: baixo-alto), mas a
Com relação a diversas categorias, esses esque- valoração pode ser transformada na oposição
mas partirão da observação da realidade e forma- bem-mal, ganhando esses aspectos simbólicos
rão módulos binários: grande-pequeno, criança- do que seria positivo ou negativo dentro do bi-
-adulto, homem-mulher, noite – lua, etc. Wallon4 nário, transferindo o bem-mal para seres imagi-
aponta que essa binariedade é uma das principais nários: deus-diabo, para aspectos da vida: espí-
características da sofisticação do pensamento que rito-carne, cultura-natureza; e até para relações:

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homem-mulher ou masculino-feminino. Por isso, e a perpetuação de um modelo social patrimonial


Burigo7 chama a atenção de que esses manique- patriarcal que beneficia os homens. Esta reflexão
ísmos são bastante presentes também na forma se alinha às conclusões de Foucault10, que afirma
de classificação de elementos pela moral, incluin- que a sexualidade é um dispositivo de poder que
do a sexualidade, que passam a ser entendidas está impregnado de relações assimétricas entre
também a partir das sínteses binárias, discrimi- os sexos.
nando as diversidades. Loyola11 aponta que as ciências, em geral,
Algo que não se encaixa nessa abordagem vêm abordando a s exualidade através de dois
é considerado fora de lugar, incerto, errôneo, de- ângulos básicos: pela Biologia e/ou Medicina
sequilibrado, perigoso, anormal e não natural. reprodutiva e por trabalhos apoiados nas Ciên-
Da mesma forma, em seus estudos sociológi- cias Humanas. Nesse sentido, a Biologia tende
cos, Piaget8 aponta que essas representações a encarar a sexualidade pela ótica evolucionis-
de mundo se imporão tanto sobre os compor- ta do instinto da reprodução da espécie, pouco
tamentos individuais quanto no comportamento estudando a esfera erótica e relacional; já as
coletivo, transformando-se em prática. Por isso, Ciências Humanas abordam a sexualidade co-
as categorias intermediárias, como “médio’ (nem mo expressão social e/ou psíquica, dando ênfa-
grande, nem pequeno), “adolescente” (aquele se à diversidade de comportamentos, códigos
que não é nem criança e nem gente grande), etc., e ao erotismo11. Essas duas abordagens não
também vão ser criadas por uma sofisticação da costumam dialogar, por isso há pouca dissemi-
realidade que se apresenta à observação e que nação dos estudos sobre as diversidades, uma
para serem pensadas precisam estar igualmen- vez que são os estudos das Ciências Biológicas
te presentes para o “senso comum” para serem os que ganham mais difusão na sociedade pela
percebidas, servindo para organizar o pensamen- prática da Medicina reprodutiva, reforçando a
to e, portanto, novas práticas; elementos “inter- abordagem binária.
mediários” invisíveis ou até invisibilizados terão Considerando as ocorrências da sexualida-
dificuldade de ser entendidos. de humana em suas diversas expressões já ob-
servadas pelas Ciências Humanas, principalmen-
te pela Antropologia, verifica-se que a sexualida-
Pensamento binário em oposição de é uma construção sociocultural. Isso significa
à diversidade sexual que vai muito além da biologia e da reprodução12.
Será a antropóloga americana Gayle Rubin Mesmo se considerarmos os instintos básicos de
quem primeiro irá sistematizar o questionamento reprodução, Mead13 demonstra que os elementos
da binariedade na sexualidade, quando cunha o da cultura modelam as tendências sexuais, como
sistema “sexo/gênero”. A autora deduz que a so- observamos nas diferentes formas fazer e viver
ciedade amplia o sexo biológico em um sistema o sexo, a maternidade e a paternidade; ou se-
de classificação cultural dos comportamentos de ja, como aponta Loyola, na “na espécie humana
mulheres e homens, criando convenções do que esses processos são separados”11 (p.30) e há,
deveria ser feminino e masculino, respectivamen- como concluiu Mead, uma “plasticidade das ten-
te ao sexo biológico9. dências instintivas”13 (p.22).
Nesse sentido, Rubin9 denuncia que esse sis- Por isso, apesar dos aspectos biológi-
tema binário tem servido para gerar desigualdades cos serem inerentes à sexualidade, eles não

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Diversidade Sexual e de Gênero

regulam a maneira como a sexualidade humana (ONU)18. Isso significa apenas no Brasil, cerca de
será vivida por uma determinada pessoa ou co- 104.000 a 3.535.000 pessoas, se considerar-
munidade, inclusive porque na maioria das ve- mos a população atual de mais de 208.000.000
zes essas vivências não se traduzem em even- de habitantes19.
tos reprodutivos. Assim, a diversidade sexual Diferentemente do que muitos pensam, es-
humana pode ser dividida, de forma simplifica- ses casos de intersexualidade não são associa-
da, conforme três aspectos básicos: a) diversi- dos automaticamente ao que se denomina como
dades do sexo físico-biológicas; b) a diversida- “falsos hermafroditas”, ou seja, aqueles XX ou
de da identidade de sentimento, autopercepção geralmente XY que não tiveram seu desenvolvi-
e classificação enquanto expressão de gênero; mento fisiológico completo, mas que podem ser
c) a diversidade de orientação dos afetos, dese- observados em análise cromossômica que confir-
jos e parcerias sexuais. ma o XX ou XY. Existem efetivamente indivíduos
Essas diversidades estão registradas em da espécie humana que biologicamente não se
provas arqueológicas (ossadas, artefatos, etc.), enquadram no dualismo macho/fêmea e apre-
documentos históricos, incluindo relatos de via- sentam outras conformações cromossômicas
jantes e mitos, que vão desde 10.000 anos atrás, que determinam o sexo biológico, como os indi-
até a constatação prática nos dias atuais, portan- víduos apenas X, que ocorre em 1 a cada 3.000
to, aponta-se a importância de se reconhecer a fêmeas nascidas20, outros XXY, presentes em 1 a
sua “universalidade temporal e espacial”14. De cada 660 indivíduos nascidos machos, às vezes
forma similar, Moreira Filho e Madrid15 referem configurados também XXXY21. Considerando es-
essa diversidade também no comportamento de sa grande frequência, não à toa, várias culturas
outros animais, conferindo que, neste sentido, registram a ocorrência da intersexualidade entre
sua existência é “natural”. seus membros.
Obviamente, existem inúmeras formas de Essas intersexualidades foram, tanto duran-
classificar essa diversidade, modos nativos de te a Antiguidade, quanto em várias sociedades
cada povo como apontou Fachini e França16, mas, não europeias, denominadas como “androginia”
além da descrição das diversidades biológicas, uti- (o ser uno homem-mulher), fenômeno associado
lizaremos aqui as diversidades de gênero e orien- a seres míticos com poder de proteger o amor,
tação sexual que estão em voga, principalmente a sexualidade não procriativa e o controle das
as utilizadas pelos próprios movimentos de mili- doenças sexualmente transmissíveis14. Por es-
tância LGBT no Brasil para se autodescreverem17. se motivo, indivíduos intersexos recebiam posi-
ções sociais especiais, como as de sacerdotes
– diversidades biológicas na sexualidade: ou xamãs14,22,23. Em oposição, principalmente a
sexos e intersexos: partir da Idade Média, as sociedades europeias
A medicina aponta que além da ocorrência passaram a consider essas pessoas como uma
biológica de sexo biológico fêmea formado pelos “aberração” e portanto sujeitas à desclassifica-
cromossomos XX e macho, pela junção XY, os in- ção, pela exibição pública para escárnio, ou à
tersexos ou pessoas com “estados intersexuais”, eliminação pela exclusão pública e morte, como
popularmente denominadas hermafroditas, atin- mostrou Foucault10,24. Posteriomente, a partir da
gem cerca de 0,05% a 1,7% da população mun- Idade Moderna, como cita Machado25, passaram
dial, segundo a Organização das Nações Unidas a ser alvo da intervenção da Medicina visando à

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“correção” de suas condições, uma vez que pas- adotar padrões, comportamentos, roupas, ador-
saram a ser classificadas como portadoras de nos do universo masculino; ao contrário, pesso-
anormalidade e/ou síndrome. as que nascem machos biológicos adotam os pa-
Nesse sentido, essa caracterização pode drões femininos.
determinar toda uma forma de lidar com essas Segundo Mott14, a presença dessa diversi-
pessoas, desde o nascimento até durante toda dade de comportamentos de gênero está regis-
a sua vida. trada firmemente não apenas na Antropologia,
mas também nos documentos de conquista da
– diversidades de gênero na sexualidade: América, África, Ásia e Oceania, a partir das gran-
travestis, transexuais, transgêneros: des navegações do século XV. Também Mead13,
Considerando as convenções sociais que estudando índios norte-americanos, demonstrou
classificam as formas de ser e agir conforma- a diversidade de comportamentos e tempera-
das ao padrão binário biológico macho-fêmea, mentos diversos entre homens e mulheres e que
surgem as expectativas das performances de não se confirmavam às expectativas do padrão
gênero masculino e feminino, naturalizadas pe- mulher-meiga e homem-rude do padrão dos “ci-
la expressão biológica. A sociedade “cria” so- vilizados” norte-americanos. Da mesma forma, a
bre sua leitura concreta e binária sobre os se- própria cultura europeia ocidental regista a ocor-
xos as categorias de gênero, esperando que os rência do travestismo até entre imperadores ro-
indivíduos assim se conduzam16. O não cum- manos, como Heliogábalo (203-222 d.C.)27, além
primento ou convergência com essas expecta- de descrevê-la na colonização da América do Sul,
tivas, apesar de bastante relatado pelas cultu- entre os índios guaicurus, mbyás, kaduweu, etc.,
ras casos de não correspondência macho-mas- onde se observaram homens que imitavam, se
culino e fêmea-feminino. vestiam ou assumiam ocupações femininas28.
O antropólogo Marcel Mauss26, estudando Além do travestismo, registra-se também a
as culturas, aponta que o próprio corpo (gestos, transexualidade, quando se ocupa não só apenas
expressões), assim como padrões de adornação, da aparência mas também se assumem identida-
roupagem, etc., são utilizados pelos povos para des relativas ao outro sexo biológico, como ocor-
expressar padrões culturais e, portanto, papéis reu na colonização da África, onde havia mulhe-
sociais femininos ou masculinos. Nesse sentido, res que se portavam como “guerreiros” e como
considerando a percepção do indivíduo sobre si “reis”, assim como entre os índios brasileiros tupi-
mesmo e as regras culturais que o cercam, for- nambás, onde mulheres que assumiam tarefas e
mas de diversidades de gênero na espécie huma- jeito de ser masculinos e, entre os guaiakiu, onde
na são verificadas não só quanto ao mesmo se- homens que não caçavam “viravam” mulheres28.
xo, quanto à autoidentificação e comportamento Esses registros de sociedades tribais não
e vestuário e que geralmente se expressam des- permitem aprofundar o conceito de identidade
de a infância, como se observam no travestismo de gênero na qual essas pessoas se autoclas-
e na transexualidade. sificavam, mas foram geralmente descritos por
O travestismo é descrito como a situação viajantes ou visitantes, ou seja, “outros” que os
em que o indivíduo se adorna, se apresenta ou classificavam. Porém, a definição do sentir-se
se comporta como gênero oposto ao seu sexo de outro sexo e chegar a querer não apenas se
biológico. Assim, fêmeas biológicas começam a adornar, mas identificar seu corpo propriamente

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e convertê-lo em outro sexo, ganha espaço com Apesar disso, movimentos de direitos de
as conquistas cirúrgicas das sociedades urba- transexuais têm conseguido vitórias nas políticas
nas modernas, principalmente após a Segunda públicas como as cirurgias de redesignação sexu-
Grande Guerra Mundial29, onde se torna possível al e hormonização gratuitas instituídas no Brasil
a extração de seios, de pênis e as cirurgias de por intermédio do Sistema Único de Saúde (SUS)
transexualidade fundamentais para a separação de 200633.
das categorias travestis e transexuais. Antes dis-
so, historicamente só se registra a eliminação do – diversidade de orientação de afetos e de-
pênis entre eunucos por motivos não associados sejos na sexualidade: gays, lésbicas, bisse-
à diversidade de gênero. xuais e assexuais:
A ocorrência do travestismo é calculada por A prática sexual vista na concepção cultu-
Meyer e colegas30, em 1 a cada 11.900 homens ral binária por um enfoque exclusivamente de re-
e 1 a cada 30.400 mulheres. Já a transexuali- produção, tende a entender a sexualidade como
dade, ou seja, a tendência de sentir-se e, até, associada “naturalmente” às práticas heterosse-
querer se tornar fisicamente do outro sexo bio- xuais, ou seja, homens e mulheres que se parcei-
lógico, teria prevalência geral de 8,18 em cada rizam para fins reprodutivos. No entanto, conside-
100.000 pessoas (0,008%), com uma relação ho- rando as parcerias sexuais e afetivas observadas
mem/mulher de 4/1 casos, segundo referido por e registradas milenarmente entre os povos hu-
Athayde31. manos, a experiência humana registra incontes-
É importante ressaltar que toda essa di- tavelmente, em todas as sociedades conhecidas,
versidade de gênero não se constitui como um parcerias homossexuais, do tipo mulher-mulher e
problema para vários povos. Fernandes28 aponta homem-homem, como também indivíduos variam
que, em cerca de 40% das sociedades em que nessas parcerias, ou as praticam conjuntamente,
houve registro de comportamento diverso da for- os bissexuais.
ma binária, não há nenhuma repressão social, Tais práticas foram muito bem registradas
mas apenas reclassificações das funções e pa- nas civilizações euroasiáticas antigas, incluindo
péis desses indivíduos, dirigindo-os ao desem- nossas antecessoras culturais Grécia e Roma,
penho de funções mais compatíveis com o seu bem como no “Kama Sutra” indiano escrito en-
comportamento. tre 100 e 400 d.C., também na China34; assim
Ao contrário, a cultura majoritária ociden- como em relatos pelos “descobridores” do conti-
tal de origem judaico-cristã adotou a repressão, nente em diversos grupos indígenas da América
opressão e eliminação desses comportamentos do Norte, Península Mexicana, América Central,
vistos como desviantes, chegando a considerá- Região da Colômbia e Venezuela e na América
-los indesejáveis. Assim, passou tanto a expô-los do Sul Andina, Selva Amazônica e povos do leste
não só à discriminação, quanto a uma extrema brasileiro.
violência que se inicia dentro da própria família Os levantamentos de Mott14 apontam que,
e se perpetua em todas as instituições sociais pelo menos em 79 etnias nativas brasileiras en-
– o que justifica o registro do grande número de contradas pelos portugueses na época da Colo-
ocorrências de violência verificadas atualmente nização do país, havia termos específicos para a
no Brasil32, país que ocupa primeiro lugar no as- designação de tais práticas tanto entre homens,
sassinato de transexuais. como de mulheres homossexuais, parcerias não

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só com objetivos sexuais, mas também para o reprodutivos e a vivência da sexualidade como di-
estabelecimento de residência e casamentos reito individual inalienável integrando as reivindi-
ritualizados. cações de grupos organizados de gays e lésbicas
Conforme levantamento de Kinsey35, o pri- que se fortaleceram com combate à aids, a partir
meiro a realizar um levantamento científico so- dos anos de 198038.
bre essas práticas sexuais e afetivas, as práti- Também recentemente, o grupo de pessoas
cas homo ou bissexuais alcançam de 6 a 10% assexuais tem se apresentado, ou seja, indivídu-
da população dos países ocidentais, sendo por- os que não têm desejo, atração ou necessidade
tanto recorrentes na sociedade. Quanto ao de- da prática sexual e que, por este motivo, podem
sejo de mantê-las, autores como McConaghy e ficar sem parceiros ou desenvolver parcerias afe-
colegas36 apontam que atinge aproximadamente tivas sem fazer sexo.
22% da população em algum momento da vida.
Nesse sentido, a diversidade de desejo sexual
também é facilmente observável nas sociedades Binariedade, Controle e Poder
em que não seja fortemente recriminada. Entre A Civilização Ocidental, com forte influên-
os índios brasileiros, como observou Mott14, não cia do pensamento religioso judaico-cristão,
havia tendência à perseguição a quem realizava adota como base da existência humana, a bina-
essas práticas, sendo que esses indivíduos eram riedade carne-espírito, originária do pensamen-
integrados à sociedade, conformormando casais to platônico39. Esta concepção encara a carne
homossexuais ou funções distintas e específi- (corpo) e seus desejos e satisfações como uma
cas, como a de pajé. indução ao mau comportamento, portanto, de-
Quanto à aceitação ou não dessas parce- sejáveis de controle, para deixar o espírito livre,
rias, percebidas geralmente após a puberdade, “puro” e guiado pelo domínio das ideias, pela
existe, da mesma forma, uma variação enorme razão. Assim, os sentidos e expressões da se-
de respostas tal como as outras diversidades xualidade são vistos como “perigosos” e devem
sexuais já descritas. Ao mesmo tempo em que ser evitados e só utilizados para a procriação,
existem sociedades que as consideram natural e tida como um “mal necessário” à perpetuação
até desejável, outras impõem a esses indivíduos da espécie e das famílias, portanto uma sexua-
uma série de recriminações que vão desde a sim- lidade eminentemente heterossexual associada
ples repreensão, até condutas mais drásticas, aos binômios macho/fêmea e masculino/femi-
como a sua proibição com penalidades severas nino, respectivamente.
que podem chegar à pena de morte ou à atribui- Nessa concepção dominada pela percep-
ção desses comportamentos a distúrbios físicos ção da sexualidade como reprodução, as práti-
e psicológicos, tal como fez por tanto tempo a cas sexuais diversas da prática heterossexual
Medicina Ocidental, que promoveram um verda- e/ou que visem apenas ao prazer são rejeitadas
deiro “caça às bruxas” e situações de confina- e marginalizadas e unificadas na categoria de
mento e extermínio dessas pessoas nos últimos “mal”, oposta às boas práticas que seriam o
séculos37. “bem”, as “certas” em oposição às “erradas” e,
Essa repressão vem sendo combatida à depois, com a adoção da linguagem organicis-
medida que as noções de direitos humanos ta da Medicina, como práticas “normais” versus
se ampliaram e incluíram os direitos sexuais e as “anormais”.

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Quadro 1: Discurso binário na sexualidade

Bem/Certo/Normal Mal/Errado/Anormal

- sexo para a reprodução - sexo para o prazer, o relaxamento, etc.

- indivíduos machos com pênis versus fêmeas com vagina


- hermafroditas e intersexos
e seios

- estereótipo de comportamento macho/fêmea, em pa- - diversidade de identidades e comportamentos: travestis


drão masculino versus padrão feminino e transgêneros, transexuais

- prática sexual pênis-vagina - diversidade de práticas sexuais, anal, oral, masturbação

- parcerias diversificadas, homossexuais e bissexuais e/


- parcerias heterossexuais
ou não parcerias (assexuais)

- parceria familiar: marido-esposa, virgindade antes do - parcerias diversas: adolescentes que fazem sexo, sexo
casamento entre solteiros, separados, com profissionais do sexo,
assexuais que não querem sexo/casamento

Dessa forma, corpos intersexos, práticas de “...existe a dominação dos homens sobre as
expressão das diversas ligadas à transexulidade, mulheres e onde se exercem em permanên-
transgeneridade e travestismos, como associadas cia formas particulares de violência ideoló-
à homossexualidade feminina ou masculina pas- gica social e material dos homens sobre as
sam a representar padrões fora do modelo preco- mulheres, a sexualidade é, sem cessar, soli-
nizado, e, como afirmou Perlonguer40, quanto à ho- citada a manter um discurso que faça apare-
mossexualidade, vistas como “polo de transgres- cer esta legitimação como perfeitamente le-
são da ordem sexual vigente” (p.11), transforma- gítima aos olhos dos homens que a exercem
das em imoral. Os sujeitos da diversidade passam e das mulheres que a sofrem” (p. 353).
a ser discriminados e a correr risco de violência e Moreira Filho e Madrid15 apontam que as pri-
humilhação pelo rompimento das normas sociais40. meiras leis de repressão à prática bi e homosse-
Nesse sentido, registros do uso da opres- xual foram escritas no século V pelo Imperador
são sobre as sexualidades diversas estão pre- bizantino Justiniano (522 a.C). A alegação é que
sentes ao longo da História. Godelier41 verifica essas práticas não eram aceitas pelo Deus cris-
que esse uso ocorre principalmente em socieda- tão, adotado em Roma desde o ano 300, por is-
des com estados e/ou modelos de poder mono- so, quem as realizasse deveria ser condenado à
gâmicos e patriarcais, onde o controle da sexua- fogueira ou à castração. Com maior poder de ex-
lidade é utilizado, mesmo que no modelo binário. tensão, a Igreja Católica que reprovava a homos-
A sexualidade feminina e a dos indivíduos com sexualidade (bem como outras atividades sexuais
práticas não heterossexuais são submetidas ao como a masturbação), desde sua institucionaliza-
poder ordenador masculino heterossexual que ção em Roma, disseminou a orientação a partir
seria o “natural” e, inclusive, indicado por Deus do Concílio de Latrão de 1179, de excomungar
nos “Estados Teológicos”. Ou seja, tal como diz quem a praticasse15. Nesse sentido, reis, impera-
Godelier41, em sociedades onde: dores e senhores feudais, a partir dos séculos XII

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e XIII iniciam na Europa uma repressão maciça à à família passa a ser incorporado nessa institui-
diversidade sexual, incluindo o ataque à homos- ção, também nas escolas, aumentando e facili-
sexualidade e a outras “heresias”, que culmina- tando o controle do que Foucault denomina como
ram com a fase de terror dos tribunais da Santa controle de corpos24.
Inquisição da Igreja Católica no final da Idade Mé- Segundo Zeldin42, esse controle tem objeti-
dia e se perpetuou frente à criação dos principais vos não apenas individuais, mas também políti-
centros urbanos europeus e colônias conquista- cos, uma vez que exclui indivíduos do espaço pú-
das na África e América. Essa prática veio junto blico e, portanto, também do exercício e domínio
à regulação de casamentos e ao registro docu- da cidadania:
mental das uniões conjugais pelas igrejas locais,
“As forças do sexo, que são capazes de esti-
como refere Zeldin42.
mular a abnegação, afiguram-se destrutivas,
Segundo Mott14, apenas na Inquisição Portu-
sendo melhor excluí-las da arena pública e
guesa, que registrava os processos também das
relegá-las à privacidade do lar” (p.130).
colônias de Portugal, como foi o caso do Brasil,
há mais de 4.000 processos, quase 10% deles Showalter43 relata, que no século XVII, com
por denúncias de sodomia, como se denominava o aumento da vida urbana e a Revolução France-
o sexo anal; outras denúncias também atingiam sa, diversas reivindicações políticas por mais li-
práticas sexuais realizadas por lésbicas, todas berdade individual e participação política. Assim,
punidas com degradações14 e/ou cárcere e se- a abertura política do final do século XVIII, trouxe
questro de bens. Assim, o discurso e o compor- reformas e novas legislações que incluíam reivin-
tamento discriminatório dos colonizadores são dicações das mulheres: questionam-se o casa-
adotados não apenas nas atitudes do dia a dia, mento eterno, a heterossexualidade compulsória,
mas também institucionalmente: inicialmente, etc. Isso fez com que os termos “feminismo” e
pelostribunais da Inquisição Portuguesa ou Espa- “homossexualistmo” passassem a ser utilizados
nhola, que apenas no Brasil registraram-se 283 e difundidos43. A homossexualidade começa a
casos de prática homossexual14; além de, poste- ser definida e a ganhar identidade e “a ter sua
riormente, ter sido assimilado em legislações dos própria voz, a forjar sua identidade e cultura, mui-
poderes públicos coloniais locais. tas vezes nos mesmos termos exatos com os
Foucault24 aponta que essa discriminação quais havia sido marginalizado”43 (p.30-31).
da diversidade sexual passa a ser encampada Porém, como afirma Showalter43, esses mo-
pelos médicos e cientistas, a partir do sécu- vimentos geram reações de reafirmação da im-
lo XVIII, quando esses grupos se legitimam no portância da família contra a decadência sexu-
poder estatal e nas elites frente aos discursos al se constituindo em campanhas pela “pureza
de urbanização e higienismo que deram início social” (p.15-16), isso geral também conforme o
às intervenções de Saúde Pública do século XIX, autor uma reação pública conservadora a respei-
transformando os antigos códigos punitivos em to da prostituição e da epidemia sexual de sífilis,
propostas de cura dos que eram considerados modificando o discurso da sexualidade, do corpo
“desviados” e “invertidos sexuais”14. Enquanto e da enfermidade (p.16).
especialidade que têm poder de transitar entre Assim, a homossexualidade e comportamen-
o espaço público e o privado, a discriminação e tos de diversidade sexual passam a ser patologi-
o controle, antes feito por instituições externas zados, e o esforço de delimitar homossexualismo

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masculino estende-se à esfera legal43, o lesbianis- de movimentos conservadores que tentam a exclu-
mo é incluído como perversão sexual que classi- são de pessoas diversas em sexualidade durante a
fica as mulheres altamente sexualizadasII. Essa história, como as campanhas visando a condenar
patologização, no entanto, não exerce orientação a homossexualidade, observadas nos Estados Uni-
para a inclusão social desses indivíduos. Será a dos, na década de 1950, e na Argentina, nos anos
psicanálise, no final do século XIX que irá desem- de 1976-1983, por isso a necessidade de sempre
penhar um papel fundamental para a integração dar atenção à luta pela inclusão social e direitos
social e despenalização da homossexualidade, in- humanos dessas minorias.
fluenciando a área da medicina e da saúde até que
essas concepções venham a ser modificadas43.
Na década de 1970, a homossexualidade Conclusões
sai do código de transtorno de várias associa- O Brasil vive um momento político tenso, on-
ções de Psicologia e Psiquiatria. No Brasil, em de um conservadorismo pautado em valores mo-
1984, a Associação Brasileira de Psiquiatria po- rais desconhece e ignora os estudos científicos
sicionou-se contra a discriminação e considerou que demonstram a riqueza da diversidade sexu-
a homossexualidade algo que não prejudica a al humana. Ao mesmo tempo, por várias vezes,
sociedade desse grupo e, em 1985, o Conselho como diz Fausto-Sterling, as ciências biológicas
Federal de Psicologia deixou de considerar a ho- são utilizadas como argumentos para travar ar-
mossexualidade um desvio sexual17. gumentos morais e se constituir enquanto força
Quanto à transexualidade, intervenções ci- política pautada pela cultura e pelo interesse de
rúrgicas vêm sendo realizadas pontualmente des- controle da sexualidade46. Da mesma forma, co-
de a 2ª Guerra Mundial, porém ganharam mais mo apontou Ribeiro e Rohden47, abordagens da
frequência com os avanços da medicina, a partir mídia reforçam as explicações dos comportamen-
da década de 1970. Em 1998, foi realizada a pri- tos sexuais e questões de gênero a partir de uma
meira cirurgia, autorizada pelo Conselho Federal abordagem biologicista e de binarismo.
de Medicina brasileiro44, atualmente também nor- Divulgar as contribuições das Ciências Hu-
matizada pelo SUS33. manas e estudos científicos que retratem a diver-
Quanto à intersexualidade a “Declaração sidade, promover a compreensão, a exposição e
dos Direitos Sexuais”45 exprime a orientação de a aceitação e integração da diversidade sexual
que deixem de ser extirpados ou modificados ór- humana na sociedade é um princípio democrá-
gãos sexuais e seja respeitada a manifestação tico de garantir direitos humanos e cidadania a
da identidade sexual das crianças, dando fim à todas as pessoas indistintamente. Qualquer inse-
realização de cirurgias decididas apenas com ba- gurança frente a essa questão representa desin-
se no próprio médico ou pela família do indivíduo, formação e ameaça de retrocesso, como já ocor-
reivindicação que vem sendo acatada pelos cen- reu nas lutas pela emancipação das mulheres e
tros de especialidade médica brasileiros. agora frente as conquistas do Movimento de Lés-
Independentemente dessas mudanças legais, bicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e
Perlongher40 aponta que sempre houve estratégias Transgêneros (LGBT).
São posições políticas que retardam o ple-
no desenvolvimento da sociedade e que recorrem
II
A concepção era que a sexualização da mulher gerava histeria por proble-
mas de útero, ovário, etc.44 a um naturalismo biológico quando lhe convém

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Diversidade Sexual e de Gênero

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Diversidade Sexual e de Gênero

Diversidade sexual e Direitos Humanos


Human Rights and sexual diversity

Haroldo Jun TaniI, Deborah Bittencourt MalheirosII

Resumo Abstract

O liberalismo clássico apontou o pluralismo como um princípio cen- Classical liberalism has pointed out pluralism as a core principle
tral da democracia moderna, do qual John Stuart Mill foi um pai of modern democracy, of which John Stuart Mill was a founding
fundador. Hannah Arendt e Judith Butler acrescentaram a essa father. Hannah Arendt and Judith Butler added to that association
associação percepções que corroboram uma a outra, relativas à insights that corroborate one each other, concerning the importan-
importância da visibilidade política. Tomando a teoria de gênero ce of political visibility. Taking Judith Butler’s theory of gender and
e de assembleia de Judith Butler e o valor do pluralismo, pode- of assembly, and the value of pluralism, one can conclude the im-
-se concluir a importância das políticas públicas para a população portance of public policies to LGBT population, such as those sited
in Secretary of Justice and of Defence of Citizenship, of São Paulo
LGBT, como as que se encontram na Secretaria de Justiça e Defe-
State’s Government.
sa da Cidadania, do Governo do Estado de São Paulo.

Keywords: Human rights; Sexual diversity; Political liberalism.


Palavras-chave: Direitos humanos; Diversidade sexual; Liberalismo
político.

Introdução 2. Não será também feita nenhuma distinção

N
fundada na condição política, jurídica ou in-
este ano, o mundo completa 70 anos da
ternacional do país ou território a que perten-
“Declaração Universal dos Direitos Huma-
ça uma pessoa, quer se trate de um território
nos” e o Brasil, os 30 anos de sua Cons-
independente, sob tutela, sem governo pró-
tituição Cidadã. No seu artigo 2º, a Declaração
prio, quer sujeito a qualquer outra limitação
Universal dos Direitos Humanos1 assim enuncia:
de soberania” (artigo 2º).
“1. Todo ser humano tem capacidade para
gozar os direitos e as liberdades estabeleci- A atual Constituição Brasileira2 assim pre -
dos nesta Declaração, sem distinção de qual- coniza:
quer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, “Todos são iguais perante a lei, sem distinção
religião, opinião política ou de outra natureza, de qualquer natureza, garantindo-se aos bra-
origem nacional ou social, riqueza, nascimen-
sileiros e aos estrangeiros residentes no País
to, ou qualquer outra condição.
a inviolabilidade do direito à vida, à liberda-
de, à igualdade, à segurança e à proprieda-
I
Haroldo Jun Tani (htani@sp.gov.br) é Bacharel em Ciências Sociais e em de, nos termos seguintes:
Filosofia pela Faculdade de Letras e Ciêncis Humanas da Universidade de
São Paulo (FFLCH/USP) e Executivo Público da Secretaria da Justiça e da (...)
Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo (SJDC-SP).
X - são invioláveis a intimidade, a vida pri-
II
Deborah Bittencourt Malheiros (dbmalheiros@sp.gov.br) é psicóloga pelas
Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) e Coordenadora da Coordenação vada, a honra e a imagem das pessoas, as-
Geral de Apoio aos Programas de Defesa da Cidadania (CGAPDC) da Secreta-
ria da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo (SJDC-SP). segurado o direito à indenização pelo dano

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Diversidade Sexual e de Gênero

material ou moral decorrente de sua viola- gênero e orientação sexual não serem escolhas,
ção” (artigo 5º). o argumento da defesa da liberdade religiosa é
Os defensores dos direitos da diversidade comparável ao argumento moderno em favor do
sexual valem-se do argumento liberal, segundo direito à diversidade sexual.
o qual os regimes democráticos modernos têm Da mesma forma que, há poucos séculos
como característica fundadora o direito de seus atrás, existiam minorias religiosas em países nos
cidadãos à garantia contra o poder arbitrário do quais elas eram criminalizadas, há, hoje, gays, mu-
Estado. Incluem-se nessa garantia o direito à li- lheres e homens bissexuais e mesmo movimentos
vre opinião, à manifestação intelectual, científica organizados em defesa dessa população inclusive
e artística. Marshall3 denominou esses direitos em países onde determinadas orientações sexu-
como sendo direitos de primeira geração. ais são passíveis de punição (inclusive por morte).
A diversidade sexual diz respeito a duas di-
mensões da vida humana: identidade de gênero
A vida pública e as liberdades individuais
e a orientação sexual. Nas democracias moder-
Para Hannah Arendt6, a vida pública distin-
nas, são consideradas ambas como parte das
gue-se da vida privada da mesma forma que a li-
liberdades fundamentais, ou seja, dizem respei-
berdade se difere da necessidade. O motivo pelo
to ao foro íntimo dos cidadãos; não são assunto
qual apenas os proprietários eram considerados
passível de intervenção pelo Estado senão na ga-
como cidadãos nas cidades-estados gregas, não
rantia de que sejam respeitadas as identidades
tinha propósito de oligarquização do regime polí-
de gênero e as orientações sexuais divergentes
tico – muito embora certamente se constituísse
da “norma” historicamente convencionada co-
um dos pilares de sua estabilidade –, mas sim
mo desejávelIII. Por conseguinte, comparam-se à
devia-se à preservação do sentido da vida públi-
liberdade de expressão ou à liberdade religiosa
ca: a liberdade.
quanto à garantia de que não serão objeto de in-
Etimologicamente, economia (em grego
tervenção do Estado.
) significa “administração do lar”, ou se-
Por analogia, seriam aplicáveis os argumen-
ja, não guarda nenhuma relação com a vida públi-
tos de John Locke em relação à liberdade religio-
ca e é um assunto exclusivo da vida privada6. Na
sa5: a religião diz respeito à salvação da alma; se
Grécia Antiga, a propriedade era condição para
pudesse o Estado determinar a crença religiosa
a cidadania porque a garantia dos meios de vida
de uma pessoa, não resultaria desse ato do po-
der público à salvação da alma do cidadão, visto – ou de subsistência, como diríamos hoje –, não
que tal graça ocorre tão somente segundo a ação poderia ser assunto público sob pena de compro-
de escolha individual, não da escolha de outrem. meter a liberdade que caracteriza a política.
Mesmo que o poder soberano, por meio da força, A manutenção dos meios de vida, ou seja, a
sobredeterminasse a fé de um cidadão, não con- vida privada – espaço da economia –, implica na
seguiria decerto alterar sua crença como convic- sujeição do ser humano à natureza, às restrições
ção íntima. Exceto pelo fato de que identidade de impostas pela sua condição de mortal. A busca
pela preservação da produção e da reprodução
da vida torna, assim, impossível a verdadeira ca-
III
Não obstante, grande número de países criminaliza determinadas orienta- pacidade de escolha humana. Precisamente, es-
ções sexuais e identidades de gênero, conforme levantamento feito pela In-
ternational Lesbian, Gay, Bissexual, Trans and Intersexual Association (ILGA)4. sa capacidade de escolha é o sentido, segundo

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Hannah Arendt, da política6. A liberdade existe da publicidade, de ver e de ser visto. A política
apenas enquanto não condicionada à busca pela depende, desta maneira, do reconhecimento dos
preservação dos meios de vida; por esse motivo, atos e de seus agentes. Por isso, segundo a au-
nem mulheres nem escravos poderiam ser cida- tora8, a bondade cristã seria sempre antipolítica,
dãos na polis grega. pois depende da invisibilidade total do ato bom;
A política é o âmbito da vida humana no ao contrário do ato político, que requer intrinsica-
qual a associação entre as pessoas é livre: po- mente o reconhecimento público.
dem ou não escolher dela fazer parte – pelo me- A dependência da política da publicidade e,
nos nos regimes democráticos contemporâneos portanto, da visibilidade, torna-a oposta à menti-
–, visando à realização de objetivos comuns que ra e ao segredo, que são facilmente revelados, e
só podem ser executados por uma coletividade. A são o fundamento dos regimes totalitários, que
política existe, pois, pela e para a liberdade. seguem a máxima de “tudo ver sem ser visto”,
O caso-limite no qual ocorre a supressão da como explica Celso Lafer sobre as conclusões de
política é o regime totalitário. Caracterizado pela Arendt11:
eliminação sistemática de todos os liames entre
“Conforme se verifica, Hannah Arendt, em
os indivíduos sem a mediação do Estado, o tota-
The Human Condition, procura estabelecer
litarismo cria o isolamento absoluto da pessoa,
as razões ontológicas que levam a uma iden-
“que não consegue se fazer companhia na soli-
tificação entre o público como o comum e o
dão”, nas palavras de Celso Lafer7 (p.239).
público como o visível no âmbito da vita acti-
O agir em conjunto é, portanto, a característi-
va. Este esforço de identificação tem as suas
ca da política, a qual é, como apontou Hanna Aren-
raízes hermenêuticas na análise arendtiana
dt8, indissociável da linguagem – meio pelo qual as
da dominação totalitária. De fato, esta tem
pessoas se ligam objetivamente à realidade. Estar
uma dinâmica que se baseia no secreto e no
só é diferente de estar sozinho; é uma condição
segredo. Daí a importância, já reiterada nes-
por meio da qual a pessoa pode se unir aos pró-
te capítulo, para o totalitarismo, tanto da es-
prios pensamentos. O pensamento, por sua vez, é
trutura burocrática na forma de cebola, que
intencional, ou seja, liga o sujeito ao objeto, dessa
assegura a opacidade do poder, quanto da
forma o pensamento é sempre o pensamento de
polícia secreta, que busca realizar o ideal su-
algo; não há pensamento que não seja entre um
premo de poder na perspectiva ex parte prin-
sujeito e um objeto, conforme o argumento da fe-
cipis: o de tudo ver sem ser visto. O tudo ver
nomenologia, reafirmado por Arendt8,9.
sem ser visto é o que torna muito concreta a
Por isso, é por meio da linguagem que os
observação arendtiana de que num Estado
sujeitos se unem no mundo. O mundo é aquilo
totalitário “o verdadeiro poder começa onde
que se interpõe entre os sujeitos e é dotado, as-
o segredo começa” (p.245).
sim, de objetividade. O agir em conjunto, a ação,
ou a política, permite a perenidade do mundo. O totalitarismo requer o rompimento de to-
Por isso, a política tem potencial de permitir, por dos os laços entre as pessoas que não sejam
meio das instituições, dar durabilidade ao mundo perpassados pelo Estado. Estados totalitários
(“vós sois o sal da terra”) (v.5-13)10. necessitam da despolitização da esfera pública
A política depende da capacidade de se fa- e da eliminação da vida privada. O governo, por
zer e de se cumprir promessas. Depende também meio de atos secretos e por meio de mentiras,

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despolitiza a esfera pública. O perigo moderno, seus fundamentos averiguados e questionados.


segundo Hannah Arendt9, seria a possibilidade A verdade, expressa como doutrina, passa a ser
de redução da política à administração pública, quase uma superstição, ou seja, deixa de ser
ao cálculo simples entre fins e meios e a con- verdade. Segundo Stuart Mill12, mesmo que as
versão dos cidadãos em meros mecanismos da opiniões dissidentes se mostrem posteriormen-
máquina do Estado8. te falsas, elas são úteis à sociedade, visto que
A esfera pública, conforme Arendt, tem co- colocam à prova as opiniões predominantes e di-
mo princípio a igualdade6, a igualdade construí- tas verdadeiras, obrigando seus autores a expor
da, que assume que pessoas diferentes podem seus fundamentos.
ser tratadas como iguais. Ao contrário, a esfe- O risco identificado por Stuart Mill na Ingla-
ra privada tem como princípio a diferenciação, terra Vitoriana de seu tempo era não a tirania da
na medida em que os indivíduos são diferentes autoridade, mas a tirania da opinião12:
entre si. Assim, a esfera pública – espaço da “Como outras tiranias, a tirania da maioria
liberdade –, exige a visibilidade e a verdade e é foi no princípio, e ainda é, em geral tida co-
o espaço onde a defesa da liberdade de pensa- mo temível, especialmente por operar atra-
mento é indissociável da liberdade da expressão vés dos atos de autoridades públicas. Mas
do pensamento. os pensadores perceberam que, quando a
Diz-se, popularmente, que “toda a unanimi- própria sociedade é o tirano – a sociedade
dade é burra” e que “toda censura é burra”. John como coletivo –, seus meios para tiranizar
Stuart Mill12 defendeu a liberdade de opinião por não se restringem aos atos que possa co-
ser útil, uma vez que quem pratica o ato de cen- meter pelas mãos de seus funcionários pú-
surar assume automaticamente que é infalível. blicos. A sociedade pode executar e executa
Censurar uma opinião não seria apenas, portan- seus próprios mandos: e, se ela emite man-
to, discordar dela, mas assumir que tal opinião dos errados em vez de corretos, ou quais-
não pode ser verdadeira. A história demonstra, quer mandos em geral, a respeito de coisas
contudo, que opiniões dissidentes censuradas, nas quais não devia se intrometer, pratica
inclusive por morte, mostraram-se verdadeiras. uma tirania mais notável do que muitos ti-
Stuart Mill cita, por exemplo, a condenação de pos de opressão política, uma vez que, em-
Sócrates, como inimigo da polis, à morte; usa o bora não comumente não apoiada em pena-
exemplo também da condenação de Jesus de Na- lidades tão extremas, deixa menos vias de
zaré à crucificação, por acusação de ser um fal- escape, penetrando muito mais profunda-
so profeta; por fim, cita a condenação da religião mente nos meandros da vida, escravizando
cristã pelo imperador Marco Aurélio, que a acusa- a própria alma. Portanto, a proteção con-
va de ser uma fé que teria o efeito de fragmentar tra a tirania do magistrado não é suficiente;
a sociedade romana12. também é preciso proteção contra a tirania
Opiniões dissidentes nunca deixam de da opinião e do sentimento prevalente; con-
existir, mesmo com a censura em sua manifes- tra a tendência da sociedade de impor, por
tação. O problema é que, se as opiniões dissi- outros meios que não as penalidades civis,
dentes não são levadas a público, a opinião suas próprias ideias e práticas, na forma de
predominante não é colocada à prova, não tem regras de comportamento, sobre aqueles

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que deles discordam; de condicionar seu da excelência humanas. Stuart Mill, juntamen-
desenvolvimento e, se possível, evitar a for- te com Rousseau – seu antecessor de quase
mação de qualquer individualidade que não um século –, foi, por isso, um dos precursores
seja em harmonia com seu modo de ser e de uma linhagem da Filosofia da Educação de-
coagir todos os caracteres a se moldarem fensora da preservação da espontaneidade das
segundo seu próprio modelo. Há um limite crianças enquanto elemento fundamental para
para a interferência legítima da opinião na o seu autodesenvolvimento12.
independência do indivíduo; encontrar esse Apenas quando a liberdade de opinião e de
limite, e defendê-lo de interferências, é tão ação de um indivíduo colide com a liberdade de
indispensável à boa condição das questões opinião e de ação de seus pares, justificaria a
humanas quanto a proteção contra o despo- censura da autoridade. O limite exato da liberda-
tismo político” (p.75-76). de individual em relação à coletividade, por este
motivo, nem sempre é bem delimitado, conforme
A imposição à maioria da minoria de opini-
os exemplos utilizados pelo autor. A embriaguez,
ões e de costumes produz a uniformização da
segundo ele, não pode ser passível de sanção;
humanidade e, junto com ela, promove a medio-
contudo, se ela recorrentemente provoca danos
cridade (que, etimologicamente, significa nivelar
ao ébrio e às demais pessoas, inclusive àquelas
as diversas singularidades em algo mediano). A
de seu convívio, a censura da autoridade é justi-
mediocridade, por sua vez, priva a humanidade
ficável. A prodigalidade de um indivíduo nos seus
de sua capacidade de inovar cultural, artística,
gastos pessoais por si só, da mesma forma, não
científica e filosoficamente. Constitui, assim, um seria passível de censura, mas, na medida em
óbice à excelência humana. Mill12, portanto, cor- que impactasse negativamente na sua função de
relaciona a tirania da opinião ao que entendemos prover sua família, seria.
hoje como o sentido negativo de uma cultura de Stuart Mill12 defende, por fim, a liberdade
massas, à falta de pluralismo. dos indivíduos contra a intervenção do gover-
Stuart Mill percebia na modernidade de no, em três argumentos: em primeiro lugar, há
sua época, no desenvolvimento da educação assuntos nos quais os indivíduos são mais ca-
pública, do comércio, das manufaturas e trans- pacitados a conduzir do que o governo, como
portes, as condições favoráveis à supressão da os processos de trabalho; em segundo lugar,
individualidade e à disseminação da mediocri- há assuntos que possivelmente seriam melhor
dade12. Segundo o filósofo inglês, a individuali- tratados pelo governo do que pelos indivíduos;
dade precisa ser cultivada e preservada da tira- entretanto, a condução individual ainda permite
nia da opinião, que tende a uniformizar os indi- o exercício das funções pelos cidadãos, favore-
víduos em relação, não apenas a opiniões, mas cendo o autodesenvolvimento destes (por exem-
também a costumes e a modos de vida. O autor plo o exercício da função de júri); em terceiro lu-
insurge-se contra o pensamento calvinista, se- gar, a preservação da liberdade individual coíbe
gundo ele dominante no seu tempo, que consi- o excesso de poder do governo e a transforma-
dera as manifestações da individualidade como ção deste na tirania da burocracia estatal, que,
a origem do mal e reminiscência do pecado ori- de outro modo, tenderia a assumir um controle
ginal; para ele, pelo contrário, são elas a fonte sobre um número cada vez maior de assuntos
de origem da possibilidade de perfectibilidade e da vida humana (p.213-222).

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Diversidade Sexual e de Gênero

A diversidade sexual e de gênero enquanto o interno e o externo é confundida pelas pas-


liberdades individuais sagens excrementícias em que efetivamen-
A diversidade sexual emerge na agenda pú- te o interno se torna externo, e essa função
blica muito em decorrência da visibilidade dos excretora se torna, por assim dizer, o mode-
movimentos sociais em defesa dos direitos da lo pelo qual outras formas de diferenciação
população de lésbicas, gays, bissexuais, traves- da identidade são praticadas. Com efeito, é
tis e transexuais (LGBT), principalmente a partir dessa forma o Outro “vira merda”. Para que
da década de 1970. os mundos interno e externo permaneçam
Segundo Judith Butler13, os sentimentos de completamente distintos, toda a superfície
medo, rejeição, vergonha ou nojo que acometem do corpo teria que alcançar uma imperme-
a população LGBT estão relacionados à forma co- abilidade impossível. Essa vedação de suas
mo a tradição filosófica ocidental pensa o corpo superfícies constituiria a fronteira sem sutu-
e, por conseguinte, o gênero. De acordo com Bu- ras do sujeito; mas esse enclave seria inva-
tler, Sartre e Beauvoir pensam o corpo como “fac- riavelmente explodido pela própria imundície
ticidade muda”, um substrato sobre o qual age a excrementícia que ele teme” (p.191-192).
significação, mas que, por si só, é pré-discursivo. O “limpo” e o “sujo” seriam assim bina-
O mesmo pode ser dito de Foucault quando ana- riamente construídos por estratégias de signifi-
lisa o caso Herculine (pessoa intersexo), situação cação. O sexo entre dois homens é associado à
em que o autor afirma a existência de um corpo impureza, por exemplo, na mobilização discursiva
anterior à inscrição cultural. da origem etiológica da aids como sendo a tro-
De acordo com a filósofa, o trabalho da an- ca de fluidos corporais como parte da estraté-
tropóloga Mary Douglas permite o apontamento gia simbólica que designa essa moléstia como
de um novo paradigma de se conceber o corpo. sendo a “doença gay”. Da mesma forma, a até
Em “Pureza e Perigo”14, essa autora estuda os recente codificação internacional das identidades
tabus sociais que se formam em torno do corpo, de gênero e das orientações sexuais dissidentes
como, por exemplo, o nojo. A repulsa que as cul- como doenças refletia a corporalidade do estig-
turas humanas concebem ocorre porque a pró- ma que acomete a população LGBT IV,15,16.
pria corporalidade se forma na segregação entre Butler13 utiliza o exemplo da drag queen na
o que é considerado “limpo” e o que é conside- sua teoria sobre corpo e gênero. A drag queen, na
rado “sujo”, entre o “interior” e o “exterior” ao medida em que se vale de trejeitos e vestimentas
corpo. Assim, o corpo se forma a partir de uma femininos exagerados sobre um corpo biológico
superfície entre o “interior” e o “exterior”, que, masculino, brinca com a distinção entre interno
justamente por ser frágil e instável, carece de for- e externo, por meio da qual o próprio corpo e o
ça e estabilidade, as quais são conferidas pelos próprio gênero são definidos. Destarte, a perfor-
paradigmas de significação dominantes, como mance da drag queen revela o próprio caráter per-
conclui Butler13: formático do gênero; a primeira é uma metáfora,
ou melhor, uma sinédoque do segundo.
“O que constitui mediante divisão os mundos
“interno” e “externo” do sujeito é uma frontei-
ra e divisa tenuamente mantida para fins de IV
A homossexualidade foi retirada pela Organização Mundial da Saúde da
“Classificação Internacional de Doenças” em 17 de maio de 199015; a tran-
regulação e controle sociais. A fronteira entre sexualidade, em 18 de junho de 201816.

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Diversidade Sexual e de Gênero

A autora13 sugere que, ao contrário do suge- sexualidade nos termos da estrutura obriga-
rido pelas tradições cristã e cartesiana, não é a tória da heterossexualidade reprodutora. Se
alma que está aprisionada no corpo, mas o corpo a “causa” do desejo, do gesto e do ato po-
que está aprisionado na alma. O gênero não sur- de ser localizada no interior do “eu” do ator,
ge a partir da imposição da cultura ou da socieda- então as regulações políticas e as práticas
de ao desejo (corpo) tal como uma massa amorfa disciplinares que produzem esse gênero apa-
sendo moldada. O gênero é fabricado por atos rentemente coerente são de fato deslocadas,
performativos realizados na superfície do corpo, subtraídas à visão” (p.194-195).
na distinção entre “interno” e “externo”, “limpo” Frente a isso, Butler aponta a origem do pa-
e “sujo”. Essa fabricação não é percebida como drão heteronormativo: um processo de fabrica-
tal, mas como “realidade” e como um processo ção não revelado como tal, no qual identidades
de reificação, universal e obrigatória: de gênero e orientações sexuais são percebidos
“Em outras palavras, atos, gestos e desejo como “impuros” e, assim, subversivos.
produzem o efeito de um núcleo ou substân- Em um trabalho mais recente, “Notas sobre
cia interna, mas o produzem na superfície do uma Teoria Performativa de Assembleia” (“Notes
corpo, por meio do jogo de ausências signi- Toward a Performative Theory on Assembly”)17, a
ficantes, que sugerem, mas nunca revelam autora esboça uma teoria segundo a qual a as-
o princípio organizador da identidade como sembleia ou a manifestação pública é como o
causa. Esses atos, gestos e atuações, enten- corpo e o gênero, ou seja, é performática. A as-
didos em termos gerais, são performativos, sembleia não é a “democracia em movimento” –,
no sentido de que a essência ou a identidade a expressão transitória da democracia –, é uma
que por outro lado pretendem expressar são substância com estatuto ontológico próprio da
fabricações manufaturadas e sustentadas qual o ato público é apenas uma manifestação.
por signos corpóreos e outros meios discur- Na medida em que a assembleia ou ato pú-
sivos. O fato de o corpo gênero ser marca- blico se vale das novas tecnologias de comunica-
do pelo performativo sugere que ele não tem ção e de interação social, sem a mediação dos
status ontológico separado dos vários atos canais tradicionais de imprensa, ela se constitui
que constituem sua realidade. Isso também como uma estratégia discursiva política. A as-
sugere que, se a realidade é fabricada como sembleia não é a expressão de um povo, mas o
uma essência interna, essa própria interiori- próprio povo constituído por atos performáticos,
dade é efeito e função de um discurso decidi- como aponta Butler17:
damente social e público, da regulação públi- “Mas talvez uma percepção muito mais impor-
ca da fantasia pela política de superfície do tante em questão aqui, em outras palavras, é
corpo, do controle da fronteira do gênero que que “o povo” não é apenas produzido pelas su-
diferencia interno de externo e, assim, institui as reivindicações verbalizadas, mas também
a “integridade do sujeito. Em outras palavras, pelas condições de possibilidade de sua apa-
os atos e gestos os desejos articulados e pos- rição e, dentro do campo visual, suas ações e,
tos em ato criam a ilusão de um núcleo inter- assim, como parte da sua performance corpo-
no e organizador do gênero, ilusão mantida rificada. Essas condições de aparição incluem
discursivamente com o propósito de regular a condições de infraestrutura de encenação e

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Diversidade Sexual e de Gênero

também de meios de capturar e de transmi- ao mesmo tempo em que, nelas, essas pessoas
tir uma reunião, uma confluência nos cam- exercem a liberdade, expressam-se, apesar do
pos visual e auditivo. O som que falam ou estigma que carregam na vida diária. A visibili-
o sinal gráfico do que é falado, é tão impor- dade é, por assim dizer, a condição sine qua non
tante quanto a atividade de autoconstituição para a existência de pessoas com identidades de
na esfera pública (e a constituição da esfera gênero e de orientação sexual diversas daquelas
pública é uma condição de aparição) como preconizadas socialmente. Negar a manifestação
também outros meios. Se o povo é consti- do afeto entre pessoas do mesmo sexo ou a ex-
tuído por meio de uma interação complexa pressão de gênero de pessoas transexuais ou
de performance, imagem e acústica, e todas travestis, ou ainda relegar essa manifestação e
as várias tecnologias envolvidas nessas pro- essa expressão a guetos segregados, é o mesmo
duções, então a “mídia” não está relatando que defender que a população LGBT não tem o
quem o povo afirma ser, mas a mídia entrou direito de ser quem é.
na própria definição de povo. Não apenas As questões da diversidade sexual demons-
subsidia essa definição ou a torna possível; tram a atualidade dos argumentos de Stuart Mill
é a coisa da autoconstituição, o lugar da dis-
em defesa da pluralidade e da importância do
puta hegemônica sobre quem “nós” somos”
princípio liberal da máxima ausência possível de
(p.18-19)V.
restrição à liberdade individual como condição
Para um segmento populacional estigma- para o florescimento da excelência e da perfecti-
tizado, como a população LGBT, a teoria perfor- bilidade humanas. A discussão sobre diversidade
mativa de Judith Butler é particularmente valiosa. sexual não é relevante apenas à população LGBT,
Manifestações públicas como as paradas do or- mas à toda a população. Se não cotejadas com
gulho LGBT, não apenas expressam à sociedade outras identidades de gênero ou outras orienta-
a existência de pessoas com identidades de gê- ções sexuais, a identidade de gênero e a orien-
nero e orientações sexuais fora do padrão hetero- tação sexual predominantes não são colocadas
normativo, mas são a própria performance dessa em questão, não por serem legítimas, mas por-
população que se apresenta por meio de uma es- que são apenas uma possibilidade entre muitas
tratégia discursiva. Nesses eventos, a população e não universais.
LGBT afirma seu direito de ocupar o espaço pú- A heteronormatividade, como o próprio gê-
blico, de estar onde estão e de denunciar as de- nero, é fabricada, conforme demonstrado por Ju-
ficiências – preconceito, discriminação, falta de
dith Butler13. A fundamentação dos direitos hu-
acesso a direitos sociais, etc. – que a desafia a
manos, que completam seu septuagésimo ani-
estar ali presente em ato público.
versário neste ano de 2018, é justamente a de-
As paradas do orgulho LGBT reafirmam e
fesa de uma sociedade plural, contra a qual se
atualizam a liberdade política, o pluralismo que
insurgiram, no passado, os regimes totalitários.
caracteriza as democracias contemporâneas. De-
As condições para a negação do pluralismo são
monstram, de forma performática, a associação
as mesmas que a negação de toda política ou
necessária entre a visibilidade e a vida pública,
de toda a vida pública e, infelizmente, continuam
presentes no Brasil, talvez mais do que em todo
V
Tradução livre dos autores deste artigo. seu incipiente passado democrático.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Considerações finais O reconhecimento da população LGBT, as-


Instrumentos legais em proposição, como o sim como o de todas as populações vulneráveis
Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero (Pro- e historicamente marginalizadas, depende da
jeto de Lei do Senado no 134 de 2018)18 ou exis- memória e da atualização dos princípios do libe-
tentes, como a Lei Estadual no 10.948 de 2001 ralismo clássico e da Declaração Universal dos
de São Paulo19 são de suma relevância. Direitos Humanos de 1948 e da própria Constitui-
A Lei no 10.948 de 2001 garante o direito ção Federal de 1988, como aquele do pluralismo.
de manifestação de orientação sexual e de iden- Este, por sua vez, está intrinsecamente ligado à
tidade de gênero em todo o Estado de São Paulo, ideia de democracia moderna e ao princípio da vi-
com previsão de sanção administrativa a pesso- sibilidade dessas populações no espaço político.
as físicas e jurídicas que atentem contra essas
liberdades. Sua divulgação, bem como seu trâmi-
te, é de responsabilidade da Secretaria da Justi-
ça e da Defesa da Cidadania, órgão do Governo
Referências
do Estado de São Paulo que dispõe de outras
1. Organização da Nações Unidas. Declaração universal
políticas interligadas e articuladas, em conformi-
dos direitos humanos. Generbra: ONU; 1948.
dade com o princípio da universalidade, da inter- 2. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil.
dependência e da indissociabilidade dos direitos Brasília: Congresso Nacional; 1988.
humanos preconizados pela Declaração e Progra- 3. Marshall TH. Cidadania, classe social e status. Rio de
ma de Ação da Conferência de Viena de Direitos Janeiro: Zahar Editores; 1967.
Humanos de 199320. 4. International Lesbian, Gay, Bissexual, Trans and Interse-
xual Association. [acesso em: 23 out 2018]. Disponível em:
A Secretaria da Justiça e da Defesa da Ci-
https://ilga.org/maps-sexual-orientation-laws
dadania do Estado de São Paulo reconhece as
5. Locke J. Carta sobre a tolerância. Lisboa: Edições 70;
especificidades de lésbicas, gays, bissexuais, 1987.
travestis, mulheres transexuais e homens trans 6. Arendt H. A condição humana. São Paulo: Forense Uni-
e, mediante essas diferenças, instituiu um es- versitária; 1983.
paço específico para debater e implantar polí- 7. Lafer C. Hanna Arendt - pensamento, persuasão e poder.
ticas públicas direcionadas a esse segmento. São Paulo: Paz e Terra; 2018.
8. Arendt H. Responsabilidade e julgamento. São Paulo:
Assim, em 2009, o Estado de São Paulo criou
Companhia das Letras; 2004.
a Coordenação de Políticas para a Diversidade
9. Arendt H. As origens do totalitarismo. São Paulo: Compa-
Sexual, órgão específico para pautar políticas nhia das Letras; 1989.
públicas de promoção da cidadania LGBT. As 10. Novo Testamento. Bíblia on line. Mateus (vers.5):13.
violações de direitos decorrentes de orientação (on line). [acesso em 23 out 2018]. Disponível em: https://
sexual e identidade de gênero não devem ocor- www.bibliaonline.com.br/acf/mt/13
rer no estado e para que as políticas públicas 11. Lafer C. A reconstrução dos direitos humanos - um diá-
logo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Com-
de enfrentamento a LGBTfobia sejam implanta-
panhia das Letras, São Paulo; 1988.
das nas diversas secretarias, também foi criado
12. Mill S., Sobre a liberdade e A sujeição das mulheres,
o Comitê Intersecretarial de Defesa da Diversi-
Penguin Classics/ Companhia das Letras, São Paulo, 2017.
dade Sexual, composto por diversas secretarias 13. Butler J. Problemas de gênero - feminismo e subversão
estaduais com o objetivo de implantar políticas da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2013.
públicas de forma abrangente em São Paulo. 14. Douglas M. Pureza e perigo - e-nsaio sobre as noções

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Diversidade Sexual e de Gênero

de poluição e tabu. trad. Sônia Pereira da Silva Lisboa: Edi- Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero. Brasília; 2001.
ções 70; 1966. 19. São Paulo. (estado). Lei Estadual de nº 10.948. Dis-
15. Organização Mundial da Saúde. Assembléia Geral. Ge- põe sobre as penalidades a serem aplicadas à prática
nebra: OMS; 17 mai 1990. de discriminação em razão de orientação sexual e dá
16. Organização Mundial da Saúde. Assembléia Geral. Ge- outras providências. São Paulo: Palácio Bandeirantes; 5
nebra: OMS; 18 jun 2018. nov 2001.
17. Butler J. Notes Toward a Performative Theory of Assem- 20. Conferência Internacional de Direitos Humanos. Decla-
bly, Cambridge: Harvard University Press; 2015. ração e Programa de Ação da Conferência de Viena de Direi-
18. Brasil. Senado Federal. Projeto de Lei no 134. Institui o tos Humanos. Viena: 14-25 jun 1993.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Nome social e a plena cidadania T


Social name and full citizenship T

Cássio RodrigoI
Verbo Ser1
(Carlos Drummond de Andrade)

Que vai ser quando crescer?


Vivem perguntando em redor. Que é ser?
É ter um corpo, um jeito, um nome?
Tenho os três. E sou?
Tenho de mudar quando crescer? Usar outro nome, corpo e jeito?
Ou a gente só principia a ser quando cresce?
É terrível, ser? Dói? É bom? É triste?
Ser; pronunciado tão depressa, e cabe tantas coisas?
Repito: Ser, Ser, Ser. Er. R.
Que vou ser quando crescer?
Sou obrigado a? Posso escolher?
Não dá para entender. Não vou ser.
Vou crescer assim mesmo.
Sem ser Esquecer.

Resumo Abstract

O texto aborda o conceito de nome social para travestis, mulheres This text discusses the concept of social name to transvestites,
transexuais e homens trans e como o mesmo se reverte em polí- transgender and trans men and women as the same reverts in
ticas públicas no Estado de São Paulo em áreas como Educação, public policy in the State of São Paulo in areas such as education,
Administração Penitenciária e Segurança Pública. Apresentamos Correctional Administration and public safety. We present the exis-
a legislação existente em relação ao tema e como ela se desdo- ting legislation in relation to the theme and how it unfolded for the
brou para as demais áreas de governança, buscando garantir ple- remaining areas of governance, seeking to ensure full citizenship
na cidadania para essa parcela da população. Com alto índice de for that portion of the population. With high level of truancy, we de-
evasão escolar, demonstramos como o respeito à identidade de monstrate how the respect for gender identity and social name can
gênero e ao nome social podem ser fatores preponderantes para be important factors for the permanence of transvestites, transse-
a permanência de travestis, mulheres transexuais e homens trans xual women and trans men in school benches.
nos bancos escolares.
Keywords: Social name; Gender identity; Public policy.
Palavras-chave: Nome social; Identidade de gênero; Políticas
públicas.

I
Cássio Rodrigo (cassiorossp@gmail.com), formado em Jornalismo pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Coordenador Estadual de Po-
líticas para a Diversidade Sexual, da Secretaria da Justiça e da Defesa da
Cidadania do Estado de São Paulo.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Direitos da personalidade Lei nº 6.015 de 1973 de Registros Públicos5, que

C
prevê:
omo já dizia o poeta Carlos Drummond de An-
drade, “Que vai ser quando crescer? Vivem “Os oficiais do registro civil não deverão regis-
perguntando em redor. Que é ser? É ter um trar prenomes que venham expor seus porta-
corpo, um jeito, um nome? Tenho os três. E sou?”. dores ao ridículo. Restando os pais irresigna-
Desde antes do nosso nascimento já “so- dos, o oficial submeterá o caso ao juiz com-
mos” toda uma carga de expectativas oriundas petente. A exposição ao ridículo que a lei visa
dos nossos pais, familiares e da própria socie- prevenir é “noção subjetiva, discrepando as
dade. Nem chegamos ao mundo e já nos deram pessoas e as convicções. O oficial agirá com
nome, profissão e, em casos mais extremos, até moderação, respeitando tais convicções, só
já nos casaram! tolhendo a escolha quando aberrante da nor-
Assim surgiram os direitos da personalida- malidade” (art. 55, parágr. único).
de, “aqueles cujo objeto é o modo de ser físico
ou moral das pessoas, aqueles direitos que as
Retificação de nome no Brasil
capacitam e protegem sua essência, sua perso-
Então, para esses tais casos de “aberrante
na, as mais importantes virtudes do ser”2 (p. 31)
anormalidade”, quando se é permitida a retifica-
Como direito da personalidade, o nome não
ção de nome no Brasil?
pode ser renunciado, não pode ser transferido a
A retificação pode ocorrer no primeiro ano
outrem, é inalienável, não pode ser valorado eco-
após a maioridade civil, conforme disposto na Lei
nomicamente e é imprescritível.
de Registros Públicos5: “o interessado, no primei-
O nome possui caráter obrigatório, ou seja,
ro ano após ter atingido a maioridade civil, po-
toda pessoa deve ter um, que recebe logo que
derá, pessoalmente ou por procurador bastante,
nasce, conforme previsão no Código Civil: “Toda
alterar o nome, desde que não prejudique os ape-
pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos
lidos de família...” (art. 56). No Brasil a maiorida-
o prenome e o sobrenome”3 (art. 16).
de civil se dá aos 18 anos, de acordo com o atual
O nome é o sinal que caracteriza o indivíduo
Código Civil.
na família e na sociedade e o diferencia, ao lado
de outros elementos de individualização, dos de- Em relação à retificação de nome, outra
mais membros do grupo. O nome goza da prote- questão tem batido às portas dos tribunais brasi-
ção da Lei, tanto no Código Civil, como no Penal: leiros, com precedentes nos estados de São Pau-
lo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul: a mudança
“Não pode ser empregado por terceiros em de nome e de gênero de cidadãs travestis, mulhe-
publicações ou representações que o expo- res transexuais e homens trans6.
nham ao desprezo público, ainda quando Tratamos, aqui, do conceito de identidade de
não haja intenção difamatória. Além disso, o gênero como a percepção que uma pessoa tem
nome não pode ser utilizado em propaganda
de si como sendo do gênero masculino, feminino
comercial sem autorização de seu portador”3
ou de alguma combinação dos dois, independen-
(art. 17-18)3, (art. 185)4, respectivamente.
te de sexo biológico. Trata-se da convicção íntima
Para que tenhamos noção do quão impor- de uma pessoa em ser do gênero masculino (ho-
tante é o nome, temos lei de proteção como a mem) ou do gênero feminino (mulher).

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Diversidade Sexual e de Gênero

Temos, assim, na identidade de gênero, as na documentação, por que tanta dificuldade no


variáveis cisgênero e transgênero, sendo: reconhecimento do mesmo direito para pessoas
- cisgênero: a pessoa cuja identidade de gê- transgênero?
nero está alinhada ao seu sexo biológico, portan- Se o princípio para a retificação é, justamen-
to, aquelas que são biologicamente mulheres e te, a de “prenomes que venham expor seus por-
possuem identidade de gênero feminina ou bio- tadores ao ridículo”5 (art. 55, parágr. único), por
logicamente homens e possuem identidade de que não reconhecer que uma mulher transexual
gênero masculina. com um documento com o nome civil masculino
- transgênero: terminologia normalmente é, diariamente, exposta ao ridículo?
utilizada para descrever pessoas que transitam Porque ainda temos que romper com “bina-
entre os gêneros. Contudo, há quem utilize es- rismo de gênero”, “ideia de que só existe macho/
se termo para se referir apenas àquelas pessoas fêmea, masculino/feminino, homem/mulher, sen-
que não se identificam nem como travestis, nem do considerada limitante para pessoas não biná-
como mulheres transexuais e nem como homens rias, ou gênero fluido, ou outras expressões de
trans, mas que vivenciam as suas expressões de gêneros possíveis”9.
gêneros de maneira não convencional. Infelizmente ainda não temos nenhuma lei
Na questão da identidade de gênero, recen- aprovada sobre identidade de gênero. Assim, as
temente a Organização Mundial de Saúde (OMS) conquistas quanto ao reconhecimento dessa no
retirou a transexualidade da categoria de “distúr-
Brasil se fizeram por meio do Judiciário, criando
bios mentais” na “Classificação Internacional de
jurisprudência nos casos exitosos de retificação
Doenças” (CID)7. A atualização foi um marco e
de nome e sexo para travestis, mulheres transe-
aconteceu mais de 40 anos depois de a homos-
xuais e homens trans. Mas os sucessos eram
sexualidade também ser retirada da lista, na dé-
restritos e limitantes. Ou seja, a maioria dos juí-
cada de 1990. Essa é a primeira grande revisão
zes entendiam que essa retificação deveria estar
da CID em quase três décadas.
condicionada à existência de laudo e/ou realiza-
A transexualidade, no entanto, não saiu to-
ção de terapia hormonal e/ou cirurgia de redesig-
talmente da CID-11, ela foi movida para a cate-
nação sexual (transexualização).
goria “condição relativa à saúde sexual”. A OMS
Contudo, em decisão histórica, no julgamen-
admite que mantê-la na “Classificação Internacio-
to da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI)
nal de Doenças” pode reforçar estigmas, mas diz
nº 4.2759, por maioria dos votos dos ministros,
que a medida ainda é necessária:
o Supremo Tribunal Federal decidiu que não há
“O raciocínio é que, embora as evidências mais a necessidade de autorização judicial pa-
agora estejam claras de que não se trata de ra a mudança de nome e sexo de travestis, mu-
um transtorno mental, e de fato classificá-lo lheres transexuais e homens trans, passando a
pode causar enorme estigma para as pesso- ser uma questão meramente administrativa junto
as transgênero, ainda há necessidades sig- aos cartórios. Assim, a retificação do nome e do
nificativas de cuidados de saúde que podem gênero passa ser feita diretamente nos cartórios
ser melhor atendidas se a condição for codifi- de registro civil e não depende mais de cirurgia
cada na CID”7 (HA60). de redesignação sexual, laudo médico e/ou psi-
Mas, se o Estado brasileiro reconhece o di- cológico, conforme regulamentação da Correge-
reito de pessoas cisgênero retificarem seu nome doria Nacional de Justiça abaixo transcrita10.

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Diversidade Sexual e de Gênero

“Dispõe sobre a averbação da alteração do por sua comunidade e em sua inserção so-
prenome e do gênero nos assentos de nas- cial” (art. 2º).
cimento e casamento de pessoa transgê- O direito ao nome social, no Estado de São
nero no Registro Civil das Pessoas Naturais Paulo, constituiu-se como uma das mais efetivas
(RCPN)” (provim. 73). políticas públicas, tanto que o Decreto Estadual
inicial acabou por gerar uma série de outras nor-
mas e resoluções baseadas no seu escopo legal.
Nome social
Assim, na Secretaria da Administração Penitenci-
Nome social é o prenome adotado pela pes-
ária, em janeiro de 2014, foi editada a Resolução
soa travesti, mulher transexual ou homem trans,
SAP12, que “dispõe sobre a atenção às travestis e
que corresponde ao nome pela qual se reconhece,
transexuais no âmbito do sistema penitenciário”.
identifica-se e é reconhecida(o) e denominada(o)
Ressalto, aqui, alguns dos principais pon-
por sua comunidade.
tos da resolução:
Sabemos que o nome é, junto com a apa-
rência, a primeira coisa que nos apresenta e “As pessoas privadas de liberdade ou que in-
identifica. É muito importante que o nome social tegram o rol de visitas das pessoas presas
seja respeitado, de acordo com a identidade de devem ter preservado o direito à sua orien-
gênero, independente da alteração no Registro tação sexual e a identidade de gênero;
Geral (RG). Por isso, existem hoje decretos esta- § 1º - Fica assegurado às travestis e transe-
duais e municipais que garantem o direito do uso xuais o uso de peças íntimas, feminina ou
do nome social por travestis e transexuais em masculina, conforme seu gênero;
órgãos públicos. § 2º - Às travestis e transexuais femininas é
Mesmo com o avanço garantido pelo Supre- facultada a manutenção do cabelo na altura
mo Tribunal Federal, muitas travestis, mulheres dos ombros” (art. 1).
transexuais ou homens trans ainda optam por A resolução buscou, ainda, garantir a integri-
não retificar seus nomes, apesar de manter o uso dade física e psíquica dessas pessoas privadas
do nome social. de liberdade12:
O Estado de São Paulo garante o direito das
“Artigo 2º – As unidades prisionais podem im-
pessoas travestis e transexuais de serem trata-
plantar, após análise de viabilidade, cela ou
das pelo seu nome social em todos os órgãos
ala específica para população de travestis e
públicos da administração direta e indireta do Es-
transexuais de modo a garantir sua dignida-
tado, por meio do Decreto Estadual nº 55.588 de
de, individualidade e adequado alojamento.
201011, que dispôs sobre o tratamento nominal
Parágrafo único: Para isso deve-se analisar o
das pessoas transexuais e travestis nos órgãos
interesse da população assistida evitando
públicos, prevendo:
assim segregação social ou quaisquer for-
“A pessoa interessada indicará, no momento mas de discriminação negativa em razão da
do preenchimento do cadastro ou ao se apre- identidade de gênero ou orientação sexual.
sentar para o atendimento, o prenome que (...)
corresponda à forma pela qual se reconhe- Artigo 4º - No momento de inclusão nos esta-
ça, é identificada, reconhecida e denominada belecimentos prisionais deverá ser informado

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Diversidade Sexual e de Gênero

à travesti ou transexual sobre o direito ao tra- § 1º - Entende-se por nome civil aquele regis-
tamento nominal nos atos e procedimentos trado na certidão de nascimento.
da pasta. § 2º - Entende-se por nome social aquele
§ 1º - A solicitação de uso de prenome social adotado pela pessoa e conhecido e identifi-
deverá ser requisitado pela presa (o) no formu- cado na comunidade.
lário de inclusão, que passará a ser utilizado (...)
no prontuário penitenciário e todos os de- Art. 3º - O nome social deverá ser usual na
mais documentos oficiais gerados pela SAP; forma de tratamento, e acompanhar o nome
§ 2º - O prenome anotado no registro civil civil nos registros e documentos escolares
deve ser utilizado para os atos que ensejarão internos.
a emissão de documentos oficiais, acompa- Art. 4º - A inclusão do nome social nos docu-
nhado do prenome escolhido. mentos escolares internos poderá ser reque-
§ 3 º - O prenome social deverá ser inserido rida por escrito, a qualquer tempo, observado
nos sistemas informatizados de registros e o disposto no artigo 2º desta Deliberação”.
controle em campos específicos;
De acordo com o Sistema de Cadastro
§ 4º – A adoção do prenome social poderá
de Alunos14, em dados atualizados de junho
ser realizado a qualquer tempo por meio de
de 2018, há 512 registros de travestis, mulhe-
manifestação da pessoa presa a partir de so-
res transexuais e homens trans cadastrados na
licitação formal por escrito ou verbalmente a
Rede Estadual de Ensino de São Paulo, sendo
um funcionário da unidade prisional”.
34% homens trans e 66% travestis e/ou mulhe-
Outra conquista foi na área da Secretaria res transexuais. Outro dado importante é que, de
de Estado da Educação por meio da edição da acordo com o Artigo 2º da Deliberação, hoje te-
Deliberação CEE – 125 de 201413, que dispõe mos 30% dos registros de alunas e alunos meno-
sobre a inclusão de nome social nos registros res de 18 anos, exigindo a autorização de pais e/
escolares das instituições públicas e privadas ou responsáveis, o que demonstra uma mudança
no Sistema de Ensino do Estado de São Paulo nas famílias na forma de acolher e reconhecer a
e dá outras providências correlatas. Diferente- identidade de seus filhos e filhas13:
mente da Administração Penitenciária, a Deli-
“Em se tratando de alunos menores de idade,
beração do Conselho Estadual de Educação13,
é necessária a manifestação expressa dos
adotou-se a autoinformação, uma vez que a
pais ou responsáveis autorizando a inclusão
mesma tem validade legal tanto para as institui-
do nome social” (art. 2º).
ções públicas, quanto as instituições privadas
de ensino. Ainda em relação à Deliberação, devemos re-
forçar a importância do seu artigo 5º13, que traz
“Art. 1º - As instituições vinculadas ao Sistema
garantia a professoras e professores para o deba-
de Ensino do Estado de São Paulo, em respei-
te sobre respeito às diversidades em sala de aula:
to à cidadania, aos direitos humanos, à diver-
sidade, ao pluralismo e à dignidade humana, “A instituição deverá viabilizar as condições
incluirão, a pedido dos interessados, além do necessárias de respeito às individualidades,
nome civil, o nome social de travestis e transe- mantendo, entre outros, programas edu-
xuais nos registros escolares internos. cativos e assegurando ações e diretrizes

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Diversidade Sexual e de Gênero

previstas nos Planos Estaduais de Enfrenta- direitos humanos, reforçando o profissionalis-


mento à Homofobia e Promoção da Cidada- mo e a responsabilidade da Polícia Militar do
nia LGBT” (art. 5º). Estado de São Paulo, bem como contribuin-
do para formar uma boa imagem da nossa
Por fim, mas não menos importante, são os
Instituição.
avanços em relação ao reconhecimento da iden-
Em primeiro lugar, visando garantir a identi-
tidade de gênero e do nome social no campo da
dade de gênero, o Decreto nº 55.588/1017,
Segurança Pública do Estado de São Paulo. Des-
que assegura às travestis, mulheres transe-
de novembro de 2015 foi criado um campo para
xuais e homens trans, o direito à escolha de
inserção do nome social nos Registros Digitais de
tratamento nominal nos atos e procedimen-
Ocorrência (RDO), tanto os realizados on line co-
tos promovidos no âmbito da Administração
mo presenciais. À mesma época foi inserido, no
Direta e Indireta do Estado de São Paulo.
campo “provável motivação do crime” os termos
(...)
“homofobia” e “transfobia”, permitindo que os
Por fim, a Lei Estadual nº 10.948/01 proíbe a
Boletins de Ocorrência passem a registrar o mo-
discriminação em razão da orientação sexual e
tivo de ódio agregado às tipificações do crime15.
da identidade de gênero e pune toda manifes-
Em junho de 2017, durante o Seminário de
tação atentatório ou discriminatório praticada
Direitos Humanos, foi anunciado pelo Diretor de
contra cidadão LGBT no Estado de São Paulo.
Polícia Comunitária e Direitos Humanos da Polí-
Em seu artigo 2º, a norma lista uma série de
cia Militar do Estado de São Paulo, também a
exemplos considerados atos discriminatórios:
alteração no Boletim de Ocorrência da Polícia Mi-
I - praticar qualquer tipo de ação violenta,
litar, conhecido por (BOPM), com a inserção de
constrangedora, intimidatória ou vexatória, de
um campo para o nome social, conforme preconi-
ordem moral, ética, filosófica ou psicológica;
zado no Decreto Estadual nº 55.588 de 201011,
II - proibir o ingresso ou permanência em
e também dois novos campos, um para sexo
qualquer ambiente ou estabelecimento públi-
(masculino ou feminino) e outro para identidade
co ou privado, aberto ao público;
de gênero (travesti, mulher transexual ou homem
III - praticar atendimento selecionado que não
trans), a ser preenchido quando das abordagens
esteja devidamente determinado em lei;
da Polícia Militar em todo o Estado de São Paulo.
IV - preterir, sobretaxar ou impedir a hospeda-
Entre 2016 e 2017, a Coordenação de Po-
gem em hotéis, motéis, pensões ou similares;
líticas para a Diversidade Sexual, da Secretaria
V - preterir, sobretaxar ou impedir a locação,
da Justiça e da Defesa da Cidadania, em parce-
compra, aquisição, arrendamento ou emprés-
ria com a Seção de Direitos Humanos da Direto-
timo de bens móveis ou imóveis de qualquer
ria de Polícia Comunitária e Direitos Humanos da
finalidade;
Polícia Militar do Estado de São Paulo, construiu
VI - praticar o empregador, ou seu preposto,
conjuntamente uma Instrução Continuada do Co-
atos de demissão direta ou indireta, em fun-
mando (ICC), com o tema “Tratamento Nominal
ção da orientação sexual do empregado;
das Pessoas Transexuais e Travestis”. A mesma
VII - inibir ou proibir a admissão ou o aces-
foi atualizada em 201816:
so profissional em qualquer estabelecimento
“Hoje iremos abordar dois temas importantes público ou privado em função da orientação
e que agregam conhecimento na área dos sexual do profissional;

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Diversidade Sexual e de Gênero

VIII - proibir a livre expressão e manifestação mulher e, assim, despachava em seu escritório19,
de afetividade, sendo estas expressões e ma- ou, na Década de 1920, com a primeira cirurgia
nifestações permitidas aos demais cidadãos. para mudança de sexo à qual se submeteu o pin-
Ainda segundo a Lei acima, através de pro- tor dinamarquês Einar Wegener, transicionando
cesso administrativo, pode ser punido todo ci- para Lili Elbe20.
dadão, inclusive detentor de função pública, Por isso, hoje, nosso corpo ainda é resis-
civil ou militar, e toda organização social ou tência. A cada 25 horas temos um LGBT morto
empresa, pública ou privada por prática de no Brasil. Nossas travestis e mulheres transexu-
discriminação em razão de orientação sexu- ais possuem uma expectativa de vida de apenas
al. As penas vão de advertência e multa, até 35 anos, nos colocando no topo dos países que
suspensão e cassação do alvará estadual de mais matam transexuais e travestis.
funcionamento. Assim, como diria Drummond: “Que vou
Assim: ser quando crescer? Sou obrigado a? Posso es-
a) Os servidores públicos deverão tratar a colher? Não dá para entender. Não vou ser. Vou
pessoa pelo prenome indicado, que constará crescer assim mesmo. Sem ser esquecer...”.
dos atos escritos;
b) O prenome anotado no registro civil deve
ser utilizado para os atos que ensejarão a
emissão de documentos oficiais, acompanha-
Referências
do do prenome escolhido;
1. Andrade, C. D. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Agui-
e) Os documentos obrigatórios de identifica-
lar; 1992.
ção e de registro civil serão emitidos nos ter- 2. Cecconello AM, De Antonio C, Koller SH. Práticas edu-
mos da legislação própria”. cativas, estilos parentais e abuso físico no contexto fami-
liar. Psicol. estud. [online]. 2003; 8(spe):45-54. [acesso em:
12 out 2018]. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/
Conclusão S1413-73722003000300007.
Segundo Chauí18, ter direitos é também ter 3. Brasil. Lei nº 10.406. Institui o Codigo Civil. Brasília: Pre-
poder. Portanto, um direito não é concedido, mas sidência da República; 10 jan 2002.
4. Brasil. Decreto Lei nº 2.848. Código Penal. Rio de Janei-
algo que é conquistado e conservado, porque ele
ro: Presidência da República; 7 dez 1940.
é um poder.
5. Brasil. Lei nº 6.015. Dispõe sobre os registros públicos,
Todas as políticas públicas apresentadas e dá outras providências. Brasília: Presidência da Repúbli-
foram construídas em conjunto pelo Comitê In- ca; 31 dez 1973.
tersecretarial de Defesa da Diversidade Sexual, 6. Viegas CMAR, Rabelo CLA, Polio LM. Os direitos hu-
composto por 11 Secretarias de Estado de São manos e de personalidade do transexual: prenome, gê-
Paulo, de forma transversal para garantir a manu- nero e a autodeterminação. In: ambitojuridico.com.br.
(on line). [acesso em: 12 out 2018]. Disponívem em: ht-
tenção dessas conquistas.
tp://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_
Importante, ainda, é visibilizar que, desde
artigos_leitura&artigo_id=12914
que o mundo é mundo, existem registros da po-
7. Organização Panamericana de Saúde (OMS). Classificação
pulação LGBT e casos de transexualidade ou tra- internacional de doenças nº11 (CID-11). (on line). [acesso em:
vestilidade, como se registra sobre o primeiro go- 4 out 2018]. Disponível em: https://www.paho.org/bra/in-
vernador colonial de Nova Iorque que se vestia de dex.php?option=com_content&view=article&id=5702:oms-

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Diversidade Sexual e de Gênero

-divulga-nova-classificacao-internacional-de-doencas-cid- nos registros escolares das instituições públicas e privadas


-11&Itemid=875 no Sistema de Ensino do Estado de São Paulo e dá outras
8. World Health Organization (WHO). International classifi- providências correlatas. São Paulo; SEE; 1 mai 2014.
cation of diseases, 11th (ICD-11). Genebra; 2018. [aces- 14. Secretaria de Estado da Educação. Sistema de Cadas-
so em: 12 out 2018]. Disponível em: https://icd.who.int/ tro de Alunos. Identidade de gênero. (on line). São Paulo;
browse11/l-m/en#/http://id.who.int/icd/entity/90875286 Sistema de Cadastro de Alunos; 2018.
9. Reis T. (org.). Manual de comunicação LGBTI+. Curitiba: 15. Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana
Aliança Nacional LGBTI, GayLatino; 2018. [acesso em 4 out (CDDPH). Resolução nº 06. Dispõe sobre as recomenda-
2018]. Disponível em: https://unaids.org.br/wp-content/ ções do CDDPH para a garantir de direitos humanos e apli-
uploads/2018/05/manual-comunicacao-LGBTI.pdf9. Su- cação do princípio da não violência no contexto de manifes-
premo Tribunal Federal (STF). Ação Direta de Inconstitucio- tações e eventos públicos, bem como na execução de man-
nalidade (ADI) 4275. Brasília; 1 mar 2018. dados judiciais de manutenção e reintegração de posse.,
10. Corregedoria Nacional de Justiça (CNJ). Provimen- Brasília; 8 jun 2013.
to nº 73. Dispõe sobre a averbação da alteração do pre- 16. Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania. Coor-
nome e do gênero nos assentos de nascimento e casa- denação de Políticas para a Diversidade Sexual, Seção de
mento de pessoa transgênero no Registro Civil das Pes- Direitos Humanos da Diretoria de Polícia Comunitária e Di-
soas Naturais (RCPN). Brasília; 28 jun 2018. [acesso reitos Humanos da Polícia Militar do Estado de São Paulo.
em: 4 out 2018]. Disponíveil em: http://www.cnj.jus.br/ Instrução continuada do comando (ICC). Tratamento nomi-
busca-atos-adm?documento=3503 nal das pessoas transexuais e Travestis. São Paulo; 2018.
11. São Paulo. (estado). Decreto Estadual nº 55.588. Dis- 17. São Paulo. (estado). Lei nº 10.948. Dispõe sobre as pe-
põe sobre o tratamento nominal das pessoas transexuais e nalidades a serem aplicadas à prática de discriminação em
travestis nos órgãos públicos do Estado de São Paulo e dá razão de orientação sexual e dá outras providências. São
providências correlatas. São Paulo: Palácio dos Bandeiran- Paulo: Palácio dos Bandeirantes; 5 nov 2001.
tes; 17 mar 2010. 18. Chaui M. Convite à filosofia. São Paulo: Editora Ática;
12. São Paulo. (estado). Secretaria da Administração Peni- 1998.
tenciária (SAP). Resolução nº 11. Dispõe sobre a atenção 19. Bonomi PU. The lord cornbury scandal: The Politics of
às travestis e transexuais no âmbito do sistema penitenciá- Reputation in British America. Virgínia: Omohundro Institute
rio. São Paulo; de 30 jan 2014. of Early American History & Culture;1998.
13. São Paulo. Secretaria de Estado da Educação. Delibe- 20. Ebershoff D. The danish girl. New York: Viking Books;
ração CEE – 125. Dispõe sobre a inclusão de nome social 2000.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Saúde das mulheres lésbicas e atenção à saúde: nem


integralidade, nem equidade diante das invisibilidades
Lesbian women’s health and health care: neither
completeness nor equity towards invisibilities

Marisa FernandesI, Luiza Dantas SolerII, Maria Cecília Burgos Paiva LeiteIII

“A História, os bons ventos e os furacões”

Resumo Abstract

O presente artigo é o produto de um esforço conjunto entre mulhe- This article is the product of a joint effort among lesbian, feminist
res lésbicas, feministas e ativistas, no sentido de delinear a ques- and militant women to delineate the issue of the sexual health of
tão da saúde das lésbicas no Brasil a partir de uma perspectiva lesbians in Brazil, from a multidisciplinary perspective and with a
multidisciplinar e com forte contribuição de escutas qualificadas strong contribution of qualified hearing and their own experiences.
e vivências das próprias ao longo de suas vidas. Com ele busca- As a goal we seek to circumvent the invisibility of our bodies and,
mos driblar a invisibilidade de nossos corpos e, por conseguinte, consequently, the almost total absence of numbers and public po-
a quase total ausência de números e políticas públicas que nos licies that consider us as subjects, and bring the possible data
considerem enquanto sujeitos, e trazer os dados possíveis sobre about our sexualities and health, for us and by us.
as nossas sexualidades e saúde, para nós e por nós.
Keywords: Lesbians; Sexuality; Public health.

Palavras-chave: Lésbicas; Sexualidade; Saúde pública.

Introdução Com o passar dos anos e o crescimento


de grupos e de redes nacionais de lésbicas, aos

D
esde que o Movimento de Lésbicas femi- poucos, alguns avanços foram alcançados, so-
nistas teve início no Brasil, em fevereiro de bretudo na área da saúde. Quando da realização
1979, as lésbicas denunciavam o apaga-
dos I, II e III e IV Seminário Nacional de Lésbi-
mento das suas existências, as violências e dis-
cas (SENALE), respectivamente em 1996, 1997,
criminações sofridas pelo fato de serem mulhe-
1998 e 2001, no Rio de Janeiro, Bahia e Minas
res e lésbicas e a mais completa ausência de
Gerais e Fortaleza, os temas foram referentes à
políticas públicas e legislações que atendessem
saúde das lésbicas1. Não por menos, no mês de
à população brasileira de LGBT+.
março de 2001 aconteceu em Brasília, uma reu-
nião sobre a saúde das lésbicas organizada pelo
I
Marisa Fernandes (fernandes1marisa@gmail.com) é historiadora e Mestre
em História Social pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas Programa Nacional de DST/Aids (PN-DST/Aids) do
da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP) e Pesquisadora do Coletivo de
Feministas Lésbicas.
Ministério da SaúdeIV, visando a pensar políticas
II
Luiza Dantas Soler (luizadantassoler@gmail.com) é advogada pela Universi- públicas para essa população.
dade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Especialista em Gênero e Sexualidade
pelo Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos do Instituto de
Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (CLAM/IMS/UERJ).
III
Maria Cecília Burgos Paiva Leite (cica.burgos@gmail.com) é psicóloga clí- IV
Memória da coautora deste artigo, Marisa Fernandes, que esteve presente
nica formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). ao evento.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Muitos outros eventos realizados por lés- Em uma pesquisa pioneira abordando saú-
bicas organizadas, envolvendo o tema da saúde de sexual de lésbicas, realizada entre 2002 e
aconteceram. No ano de 2006, em Belo Horizon- 2003, no Centro de Referência e Treinamento
te, a Associação Lésbica de Minas (ALEM) reali- em DST/Aids da Secretaria do Estado da Saú-
zou o “Seminário Saúde e Visibilidade”V, em ce- de de São Paulo (CRT DST/Aids/SES-SP), com a
lebração aos 28 anos de ativismo das lésbicas ajuda do Coletivo de Feministas Lésbicas (CFL) –
no Brasil. Neste mesmo ano, a “IV Caminhada ainda um dos melhores trabalhos sobre o assun-
de Lésbicas, Bissexuais e Simpatizantes de São to –, Pinto5 conclui que os/as profissionais de
Paulo”2 saiu às ruas com o tema “Saúde e Res- saúde não deveriam assumir previamente que
peito são Direitos das Lésbicas”. Ainda em 2006, as mulheres que fazem sexo com mulher, têm,
uma lésbica e feminista foi eleita para compor o automaticamente, baixo risco para as infecções
Conselho Nacional de SaúdeVI,3. sexualmente transmissíveis (IST) e que jamais
Na 13ª Conferência Nacional de Saúde, em façam sexo com homens; além disso, apontou
2008, a orientação sexual e a identidade de gê- que não existe o uso de preservativos ou outro
nero foram incluídas na análise da determinação método de barreira para a proteção no sexo fei-
social da saúde4. Entre as recomendações des- to entre mulheres, mostrando ser necessário
ta conferência temos duas, entre outras, muito pensar estratégias para essas práticas. Reve-
importantes para a população lésbica e de mu- lou, também, que 83% das mulheres pesquisa-
lheres bissexuais: o estabelecimento de normas das esperavam que os médicos não tivessem
e protocolos de atendimento específicos para as preconceito com sua sexualidade, praticamente
lésbicas e travestis e a implementação do proto- 98% desejando um serviço mais sensível às mu-
colo de atenção contra a violência, considerando lheres que fazem sexo com mulheres5. A revela-
a identidade de gênero e a orientação sexual. Es- ção de suas relações com mulheres fizeram com
ta última requer o reconhecimento de que todas que os profissionais tivessem para 28% atitudes
as formas de discriminação – como o caso das de atendê-las mais rapidamente e em 17% dos
homofobias e dos preconceitos do machismo, casos de deixar de examiná-las. Já as mulheres
do racismo e da misoginia devem ser considera- que não revelaram tal informação, 91% alega-
das na determinação social de sofrimento e de ram não ter contado devido ao desconforto cau-
doença. sado pelo profissional de saúde; resultados que
Sabemos que a saúde mental das lésbicas evidenciaram a necessidade que os profissio-
é comprometida por vários fatores, resultantes nais de saúde possuem de serem corretamente
da lesbifobia. É muito alta a quantidade de lés- informados e sensibilizados para o cuidado da
bicas em depressão e isolamento, mas pouco é saúde dessas mulheres que fazem sexo com ou-
falado sobre o adoecimento mental dessas mu- tras mulheres5.
lheres, se comparado com a abordagem da saú- Embora o Brasil tenha alcançado um nível
de sexual e ginecológica. de excelência nos seus programas de preven-
ção e tratamento do HIV/aids foram os grupos
de lésbicas que se mobilizaram e assumiram a
V
Memória da coautora deste artigo, Marisa Fernandes, que esteve presente tarefa de divulgação da necessidade de preven-
ao evento.
ção e do uso de métodos de barreiras improvi-
VI
Carmen Lúcia Luiz, representante do Movimento LGBT brasileiro pela Liga
Brasileira de Lésbicas (LBL) que atuou na gestão 2006-2010. sadas que pudessem servir para a proteção no

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Diversidade Sexual e de Gênero

sexo feito entre mulheres. Esse esforço envol- população em condição de vulnerabilidade. Nes-
veu a realização de pesquisas, oficinas de sexo sa importante iniciativa, consta a observação
seguro, produção e distribuição de folhetos, fol- curiosa, até visionária e que, lamentavelmente,
ders, cartilhas, boletins e vídeos no país; pro- mantém sua permanência:
jetos que em geral receberam apoio financeiro
“Os desafios na reestruturação de serviços,
governamentais6.
rotinas e procedimentos na rede do SUS se-
As lésbicas negras, de forma mais intensa,
rão relativamente fáceis de serem supera-
se confrontam com a violência institucional em
dos. Mais difícil, entretanto, será a supera-
hospitais e/ou centros de saúde, no atendimento
ção do preconceito e da discriminação que
relativo à saúde sexual, física e mental, devido
requer, de cada um e do coletivo, mudanças
sua orientação sexual e em relação à raça. Tais
de valores baseadas no respeito às diferen-
violências sofridas resultam em aversão à busca
ças”9 (p.16).
de ajuda em momentos de dor e sofrimento físico
e psíquico7. Em 2014, a Secretaria de Políticas para as
Na década de 2010, as lésbicas continua- Mulheres e o Ministério da Saúde realizaram em
ram na luta pelo direito à saúde digna, por aten- Brasília, juntamente com as lésbicas organizadas
dimento médico capacitado e outras necessida- no Brasil, a oficina “Atenção Integral à Saúde de
des na área da saúde. Mais uma vez fomos às Mulheres Lésbicas e Bissexuais”, publicada en-
ruas na IX Caminhada de Lésbicas e Mulheres quanto relatório10 e cujo objetivo foi levantar e
Bissexuais/SP, em 2011, com o tema “Liberda- aprofundar conteúdos para o desenvolvimento
de, saúde e autonomia! Conquistar direitos todos de materiais voltados para profissionais de saú-
os dias”2. de sobre a promoção e atenção à saúde integral
Depois de anos de reivindicação das lésbi- desse grupo social.
cas e das bissexuais, inclusive para que existisse Embora consideremos todas essas inicia-
um material educativo e informativo que abordas- tivas, seja por desinteresse, descaso, falta de
se nossas especificidades e sensibilizasse pro- entendimento, de vontade, por não conside-
fissionais de saúde e gestores para um acolhi- rar importante ou necessário, por preconceito,
mento adequado à saúde dessas mulheres, final- discriminação ou lesbifobia, já no alvorecer da
mente, em 2013, o Ministério da Saúde lançou década de 2020, as lésbicas ainda precisam
30 mil exemplares da Cartilha “Mulheres Lésbi- continuar sua luta para abrir espaço, diálogo e
cas e Bissexuais: direitos, saúde e participação construção de ações com os setores da saúde,
social”6. Este material aborda especialmente as intra e intersetoriais, além de reivindicar que se
interfaces entre a “Política Nacional de Atenção coloque em prática a Política Nacional de Saúde
Integral à Saúde da Mulher”8 e a “Política Nacio- Integral para LGBT+.
nal de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexu- Profissionais de saúde necessitam rever co-
ais, Travestis e Transexuais”9. mo conduzir suas consultas, como dirigir a inter-
A “Política Nacional de Saúde Integral de locução sobre a vida sexual dessas mulheres, de
LGBT”9, instituída em 2011, é um divisor de forma a permitir espaço para o diálogo e para
águas para as políticas públicas de saúde no Bra- que se sintam à vontade para assumir sua orien-
sil. É um marco histórico de reconhecimento das tação sexual, melhorando a relação médico-pa-
demandas e necessidades específicas dessa ciente. Os médicos já não podem mais afirmar

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Diversidade Sexual e de Gênero

desconhecimento das especificidades na saúde uma vida, a gestação em si e, por fim, a meno-
dessa população; por isso, não faz sentido essa pausa, que é o final desse ciclo reprodutivo.
resistência. Sexualidade, prazer, diversidade e nem na-
Não queremos mais cartilhas, queremos da além do eixo da reprodução têm a atenção
atitudes, queremos profissionais de saúde mais necessária dessas formações; essa deficiência
atentos e mais humanizados para atender as mu- tem reflexo direto na efetivação de qualquer ini-
lheres que fazem sexo com mulheres. Queremos ciativa que rompa com a lógica reprodutiva. Ou
um basta ao preconceito dos profissionais de seja, se até mulheres heterossexuais que não
saúde. Queremos continuar vivas e saudáveis! se adequam à norma, como por exemplo, as que
não desejam engravidar, não são abarcadas por
completo pelas práticas atuais, nós lésbicas sim-
Saúde sexual e ginecológica plesmente não existimos nesse contexto.
– profissionais de saúde: como o preconcei- Essa invisibilização é uma questão importan-
to e despreparo interfere no atendimen- te e que precisa ser observada, pois, por si só, já
to, cuidado e promoção de saúde para as se constitui enquanto uma violência. A mulher lés-
lésbicas: bica não precisa ser xingada em uma consulta pa-
Apesar de já terem sido abordadas a exis- ra se sentir violentada: a presunção da heterosse-
tência de ações governamentais, instruções nor- xualidade (compulsória), a conclusão imediata de
mativas e até cartilhas que promovem a saúde e que não deseja engravidar ao afirmar sua orienta-
o acolhimento e atendimento de mulheres lésbi- ção sexual, a falta de espaço para a discussão da
cas de maneira integral e humanizada no Siste- sua sexualidade e do seu prazer, a ausência de
ma Único de Saúde (SUS), o que se verifica na informações que considerem suas práticas sexu-
prática é que nada disso se concretiza enquanto ais para a prevenção de infecções sexualmente
política pública. Nesse sentido, o ponto crucial transmissíveis (ISTs), a falta de conversa sobre o
para que possamos compreender esse cenário é que lhe é confortável para a realização do exame
perceber o papel do profissional de saúde nessa papanicolau, ou mesmo, a negativa quanto às su-
dinâmica. as necessidades – tudo isso é violência.
Esses profissionais são membros de nossa Os relatos de experiências ruins em consul-
sociedade, que por sua vez está permeada pelo tórios ginecológicos são quase uma unanimidade
preconceito e a LGBTfobia. Soma-se a isso, o fa- entre as lésbicas e, como consequência, essas
to de que as formações em saúde em nosso pa- mulheres continuam frequentando consultas e
ís são pautadas pela heteronormatividade, o que mentindo em seus próximos atendimentos ou,
significa que até o momento atual, a Medicina simplesmente, não retornam ao mesmo – pelo
pensa e multiplica conhecimento sobre a saúde menos não até que algo lhes cause muita dor
da mulher essencialmente enquanto a saúde de ou desconforto. Isso tem uma série de consequ-
um ser reprodutivo. Um exemplo claro disso é a ências em termo de Saúde Pública: negação ao
organização das disciplinas de Ginecologia nas direito fundamental à saúde, impossibilidade de
faculdades de Medicina, que basicamente giram se produzir dados epidemiológicos que possam
em torno de três situações: a puberdade, que é embasar políticas públicas mais completas, vio-
colocada como o momento que corpo da mulher lência institucional, mulheres que poderiam ser
está começando a se preparar para poder gerar cuidadas preventivamente e que só chegam ao

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Diversidade Sexual e de Gênero

sistema com quadros avançados de doenças. Is- Em termos de biologia, tal fato não tem
so gera gastos mais elevados aos cofres públicos qualquer pertinência, pois a principal forma de
e esse custo se mede em vidas. Um exemplo é contágio para a maioria dessas doenças é a tro-
a maior letalidade do câncer de colo de útero em ca de fluídos, o que ocorre nas mais variadas prá-
mulheres não heterossexuais, apesar de esse ti- ticas sexuais. Então, pode-se perceber o caráter
po de câncer ter uma taxa de curabilidade de pra- político dessa ausência de informação, que re-
ticamente 100%, desde que detectado em seus força a invisibilização dos corpos, sexualidades
estágios iniciais, o que é perfeitamente possível e afetos de mulheres e também de nós lésbicas.
mediante a realização periódica do exame de pa- Não falar com mulheres sobre sexualidade e pra-
panicolau conforme preconiza pela Organização zer é reforçar o que lhes é imposto socialmente
Mundial de Saúde (OMS). Porém, entre lésbicas, e dizer-lhes, mais uma vez, que esses temas não
a taxa de cura cai significativamente, pois mui- lhes dizem respeito.
tas dessas mulheres não chegam ao SUS antes
dos sintomas comprometerem a sua capacidade – novas demandas em direitos e saúde
de realizar as atividades cotidianas, por receio ou sexual e reprodutiva:
lembrança de discriminação, ou porque, mesmo Desde os seus primórdios em 1979, o Mo-
frequentando atendimento ginecológico, o exame
vimento de Lésbicas feministas tem como pauta
preventivo lhes é negligenciado.
a reivindicação do direito à saúde1. Apesar de
“Reforçando a noção de maior vulnerabilida- ainda não haver grandes avanços em termos de
de, vários estudos sugerem menor frequên- garantias desse direito, as demandas vêm se di-
cia de realização de exames de papanicolau versificando e se multiplicando constantemente.
nesse grupo populacional, principalmente en- Se, num primeiro momento, estávamos falando de
tre as mulheres exclusivamente homossexu- atendimentos ginecológicos mais dignos, respeito-
ais, quando comparadas às heterossexuais. sos e inclusivos, posteriormente, a saúde sexual
Os resultados sugerem que profissionais de de lésbicas passou a incluir também as deman-
saúde solicitam menos sua realização e que das sobre a questão reprodutiva como um reflexo
as mulheres nem sempre procuram cuidado, da pauta da união e casamento entre mulheres e
quando necessário, ou só o fazem quando atualmente também traz a perspectiva do cuidado
surgem sérios problemas e em períodos de integral como eixo. O conceito de saúde, que ho-
maiores agravos à sua saúde”1 (p.19). je perpassa os aspectos físico, mental e emocio-
Hoje o Brasil está vivendo uma nova epi- nal13, se refletiu diretamente nessa militância.
demia de sífilis11, assim como tem acompanha- O fenômeno da inseminação caseira entre mu-
do um aumento no contágio por HIV entre os jo- lheres lésbicas é um bom exemplo dessa mudan-
vens12. Esses males são resultados diretos de ça de paradigma. As mulheres que se relacionam
uma tendência de menor uso dos métodos de com mulheres seguem querendo um atendimento
barreira na proteção das ISTs e questões que se ginecológico acolhedor, mas hoje também buscam
tornam especialmente preocupantes quanto con- informação sobre técnicas reprodutivas que aten-
trapostos ao fato de que não se fala sobre essa tem para os seus desejos individuais e possibili-
prevenção com as mulheres que se relacionam dades financeiras quanto à concepção, bem como
com mulheres. um ambiente seguro e sem julgamentos para essa

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Diversidade Sexual e de Gênero

discussão. Esse movimento começou de maneira permeiam suas vidas, como por exemplo, a idade,
espontânea com a troca de informações através o gênero, a condição socioeconômica, a situação
da Internet sobre como poderiam engravidar com a habitacional, a regionalidade, a cor/raça/etnia, a
participação de suas parceiras e sem a limitação rede familiar, o acesso à educação, à saúde, à
dos valores exorbitantes para a realização dos pro- cultura e ao lazer, entre outros marcadores15.
cedimentos de inseminação artificial e fertilização Ressalta-se aqui a importância do marcador
in vitro14. Assim, o caminho encontrado por essas “gênero”, que pauta a vivência de toda lésbica.
mulheres foi a procura de doadores voluntários e Uma sociedade patriarcal e misógina traz desdo-
a realização do procedimento, fora de ambiente bramentos bastante específicos no que diz respei-
hospitalar; ou seja, quando essa demanda chegou to às violências e discriminações direcionadas a
aos consultórios, já caracterizava uma realidade e, esse grupo. Os padrões de feminilidade, o rompi-
diante disso, o sistema de saúde foi confrontado mento com o paradigma da heteronormatividade
de maneira firme, no sentido de ter que se informar
familiar, conjugal, doméstica, sexual e/ou reprodu-
para poder atendê-las de maneira acolhedora e so-
tivo são alguns dos pontos em que há especifici-
bre como orientá-las para realizar a inseminação
dades nas violências de gênero sofridas. Salien-
artificial caseira da maneira mais segura possível.
tando que as intersecções com cor/raça/etnia e
Essa mudança de paradigma quanto à produção
socioeconômicas potencializam essas agressões.
das nossas demandas, aponta para o crescente
No “Dossiê sobre Lesbocídio no Brasil”16, o
empoderamento das lésbicas.
termo ”lesbocídio“ é definido como a morte de
lésbicas por motivo de lesbofobia, ou seja, ódio,
Saúde Mental e multiplicidade de repulsa e/ou discriminação contra a existência
vulnerabilidades lésbica. Ressaltando o alto nível de crueldade
– consequências de violências e discrimina- que esses assassinatos apresentam, registro de
ções sofridas por lésbicas para o uso abu- casos onde tiros são direcionados às vítimas, de
sivo de substâncias e suicídio: esquartejamentos e de rostos que são desfigu-
A multiplicidade de vulnerabilidades que po- rados. Esse dossiê aponta que, entre os anos
de atravessar a vida de mulheres lésbicas são 2014 e 2017, 72% dos casos de lesbocídios ocor-
consequências e desdobramentos de violências reram em vias públicas e 28% nas residências
e discriminações sofridas por esse grupo; en- das vítimas; sendo 83% dos assassinatos come-
tre elas está o uso abusivo de substâncias e o tidos por homens e 17% por mulheres16.
aumento nas taxas de suicídio presente nessa Entre as tipologias utilizadas na pesquisa16,
população. se encontram as categorias “lesbocídios cometi-
Segundo Facchini e Barbosa1, as mulheres dos por parentes homens” e “homens conheci-
lésbicas apresentam níveis elevados de sofrimen- dos sem vínculo afetivo-sexual ou consanguíneo”,
tos psíquicos pelas diversas violências enfrenta- ou seja, homens que têm algum convívio com a
das nos âmbitos social, de trabalho e familiar, mulher vitimada. Essas duas tipologias foram
quando comparados à população heterossexual. responsáveis por 64% dos casos registrados de
Para melhor compreensão dessa realida- lesbocídio entre 2014 e 2017, enquanto outros
de, é necessário considerar alguns fatores que 36% dos assassinatos haviam sido cometidos
aumentam ou diminuem as vulnerabilidades que por homens desconhecidos.

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Outra situação recorrentemente que explici- lésbica e que entenda e acolha as suas deman-
ta a lesbofobia se dá nos ambientes de formação das, considerando suas especificidades. Para
e educação. Bento17 aponta sobre as escolas: pensar em possíveis diretrizes para a questão
“...não existem indicadores para medir a ho- do uso abusivo de substâncias nesse grupo, é
mofobia de uma sociedade e, quando se fala levar em conta as possíveis barreiras que po-
de escola, tudo aparece sob o manto invisi- dem acarretar em maior dificuldade de acesso
bilizante da evasão. Na verdade, há um de- desse sujeito e sua menor adesão às propostas
sejo de eliminar e excluir aqueles que “con- atualmente existentes na saúde. Esse distancia-
taminam” o espaço escolar. Há um processo mento também pode acarretar em outros adoe-
de expulsão, e não de evasão. É importante cimentos, como os prejuízos à saúde mental. Pa-
diferenciar “evasão” de “expulsão”, pois, ao ra traçar esse panorama, temos que entender o
apontar com maior precisão as causas que que se conceitua aqui enquanto “adoecimento”.
levam crianças a não frequentarem o espaço Em uma tentativa de romper com a lógica biomé-
escolar, se terá como enfrentar com eficácia dica, patologizante e das determinações da Psi-
os dilemas que constituem o cotidiano esco- quiatria – ainda que se reconheça a relevância
lar, entre eles, a intolerância alimentada pela da mesma e as discussões dessas categorias –,
homofobia” (p.555). entende-se aqui como processo de adoecimen-
to aquele que “... traz sérias implicações para a
Essa “expulsão” à qual a autora se refere
identidade, tais como: baixa autoestima, perda
muitas vezes se desdobra para outros âmbitos
de habilidades laborativas e de mobilidade, ca-
além do escolar, como: mercado de trabalho, es-
pazes de gerar sentimentos de incapacidade pa-
paços públicos, acesso aos serviços de saúde,
ra o trabalho e autocensura que ratificam estig-
contatos sociais, rupturas significativas com nú-
mas”18 (p.482), que, por sua vez, se encontram
cleo familiar, problema habitacional e socioeco-
presentes na população lésbica.
nômico. Em outras palavras, os marcadores de
O suicídio de lésbicas acontece em dife-
vulnerabilidades, na maior parte das vezes, estão
rentes idades a partir da adolescência, classes
entrelaçados.
sociais, etnias e regiões do Brasil. Esse índice
Na Saúde, uma das preocupações especial-
vem crescendo significativamente a cada ano. Do
mente expressa é o uso de álcool e outras subs-
tâncias pela população lésbica. O uso abusivo de número total de lésbicas que cometeram suicí-
álcool e de outras substâncias é apontado como dio entre os anos de 2014 e 2017, 6% foram em
proporcionalmente alto quando comparado à po- 2014, 15% em 2015, 21% em 2016 e 58% em
pulação heterossexual, acarretando em desdobra- 201716, apontando crescimento dos casos. Essas
mentos para a saúde física dessa população1. Pen- mulheres estão em processos de adoecimento e
sar esse uso é reconhecer a existência de reflexos altos níveis de sofrimento. Reconhecendo a com-
dos estigmas pautados contra as lésbicas, o que plexidade do tema e que há especificidades em
envolve medos, discriminações cotidianas, invisi- cada caso, é necessário atentar-se ao fato, de
bilidades institucionais, experiências e angústias, que pode haver uma correlação entre esses sui-
muitas vezes pouco compartilhadas socialmente. cídios com a questão da lesbianidade, tendo em
Atualmente há uma ausência de políticas vista a recorrência destes acontecimentos em
públicas eficazes voltadas para a comunidade um segmento tão específico.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Um grupo como o das lésbicas, que tem su- por uma das autoras deste artigoVII, registrou ele-
as vivências construídas com uma escassez de mentos comuns trazidos por essas mulheres nos
referenciais que validem o seu lugar social e fami- processos terapêuticos. Observa-se uma dificulda-
liar, bem como a sua forma de se relacionar afe- de de nomear, colocar em palavras, externalizar e
tiva e sexualmente, além do medo de possíveis falar sobre ser lésbica e sobre seus afetos. “Para
violências e do estigma, já é, em si, um grupo não ser marcada, a abjeção não deve ser proferi-
com um fator enorme de adoecimento. da, descrita, nomeada, pois, uma vez feito isso, ela
É interessante pontuar que, durante a pro- ganha peso e se constitui como matéria dentro da
dução desse artigo, a própria dificuldade de en- sociedade, deixando de ser abjeção”19 (p.2923).
contrar dados referentes aos campos de saúde Nas experiências clínicas aqui referidas, es-
física e mental de mulheres lésbicas, se constitui se lugar de abjeção de vivências desses aspec-
como reflexo da invisibilidade em que vivem nas tos identitários foram muitas vezes pilares signi-
ficativos para essas mulheres. A dificuldade em
estatísticas dos serviços de saúde. Não foram
nomear seus processos não se encerrava na clí-
encontrados dados mais específicos de uso de
nica, transbordava no social, no prejuízo na saú-
drogas em níveis nacionais especificamente na
de mental e na qualidade de vida. A falta de refe-
população lésbica. Tampouco foram encontradas
rências, espaços de convívio e redes com outras
outras fontes, além do “Dossiê sobre Lesbocídio
lésbicas se mostrou como fator que dificultava a
no Brasil”16, que contabilizassem dados sobre as
prática da fala. Os empecilhos da verbalização
mortes dessa população e suas tipologias. Con-
sobre suas vivências foram apresentados como
siderando todo o território brasileiro, tal dificulda-
fatores relacionados à sensação de solidão.
de se mostra ainda maior ao se reconhecerem
Ainda que algumas dessas mulheres manti-
as especificidades das diferentes regiões do pa-
vessem relacionamentos duradouros, os mesmos
ís, no que diz respeito às violências e discrimina- eram vividos às margens, pois não havia um lugar
ções sofridas em suas formas, conteúdos e des- social que os acolhessem. Relatos de falta de pers-
dobramentos para quem as sofre. pectiva para construções familiares, sentimentos de
Assim, falar sobre saúde física e mental de inferioridade em relação a pessoas heterossexuais
mulheres lésbicas é, portanto, falar sobre violên- em diferentes situações cotidianas, sensação de
cias e apagamentos; inclusive nas dificuldades de angústia e medo constante de possíveis violências,
acesso a dados que contabilizem essa população pouca circulação em ambientes públicos para lazer,
e que considerem as suas especificidades. Fica evi- busca de lugares fechados e considerados mais se-
dente a defasagem de produções sobre lésbicas, guro (isolamento social), preocupação e inseguran-
ainda, que essas tenham, teoricamente, as mes- ça com visual (roupas, cabelos, acessórios) foram
mas exigências e direitos de escuta e cuidado inte- recorrentes no decorrer desses atendimentos.
gral tal qual todas as outras parcelas da população. Parte desses processos terapêuticos cons-
tou em trazer uma materialidade para aquelas vi-
– reflexões sobre experiências da clínica psi- vências que existem, visando à formação de no-
cológica de atendimento às lésbicas: vas perspectivas e referências para as mesmas.
A escuta da clínica psicológica de pacientes
lésbicas de diferentes idades, vivida em consultó- VII
Atendimentos psicológicos de 5 mulheres lésbicas, feito por Maria Cecília
rio particular em São Paulo entre 2017 e 2018, Burgos P. Leite em consultório particular localizado na Cidade de São Paulo.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Acessar a “sujeito lésbica” se torna muito mais à saúde das lésbicas e mulheres bissexuais, são
difícil quando a lógica hegemônica não a contem- de grande utilidade, não só para os problemas
pla. É preciso validar social e politicamente as de- individuais dessas mulheres, mas para o avanço
mandas desse grupo de sujeitos, para que as vio- de definições estratégicas e para a eficácia das
lências diminuam e as consequências sofridas se- políticas públicas na área de saúde.
jam atenuadas. É necessário romper com a lógica As lutas empreendidas pelas lésbicas e mu-
heteronormativa, para que se tirem as mulheres lheres bissexuais e pelas populações de gays, tra-
lésbicas do lugar de abjeção e se materializem as vestis e transexuais, bem como as ações gover-
possibilidades de uma melhor qualidade de vida e namentais dirigidas a estas pessoas – que infeliz-
recursos para essa população. mente ainda não decolaram, por falta de vontade
política resultante dos retrocessos que estamos
vivendo no cenário político nacional –, nos deixam
Conclusão muitas perguntas, ausências e inquietudes.
Este artigo, elaborado por três lésbicas bus- Nos últimos anos, o Brasil vem sofrendo
cou levantar questionamentos e provocar a reflexão um profundo retrocesso político, amparado pelo
nas instituições governamentais, nos movimentos reacionarismo e conservadorismo, de setores re-
sociais e entre acadêmicas (os), para a melhoria de trógados articulados nacionalmente, que hoje do-
resultados eficazes na área de saúde das lésbicas, minam o Congresso Nacional, por meio de ban-
de mulheres bissexuais e demais populações de cadas de representantes das igrejas evangélicas
gays, travestis e transexuais, inseridos em todas as fundamentalistas, de ruralistas, mineradoras, da
outras variáveis, para além das sexualidades, como indústria bélica e do militarismo, cujas pautas
gênero, geracional, raça, etnia e condição socioeco- hegemônicas estão baseadas na intransigência,
nômica. Nele apresentamos dados incisivos, tanto intolerância, na ordem, na moral, nos discursos
de vivências quanto dos desvios de procedimentos de ódio, na hierarquização das relações de gêne-
relativos inclusive a direitos já conquistados na área ro, no machismo, racismo, sexismo, classismo,
da saúde, para essas populações mais vulneráveis. lgbtfobia e na manutenção da heteronorma, que
Para muitas lésbicas e mulheres bissexuais resultam na crescente violência contra as popu-
esmagadas pela invisibilidade a que são subme- lações de LGBT+, mulheres, negras, pobres, indí-
tidas pelos preconceitos, discriminações e violên- genas e jovens. Um Estado com essas caracterís-
cias, apenas por suas sexualidades, faltam infor- ticas reforça a intimidação dos grupos mais vulne-
mações sobre saúde física e mental, notadamente ráveis e socialmente marginalizados, promovendo
para as jovens. As lésbicas estão nesta situação a repressão e o aumento do controle social.
porque faltam ações concretas e eficazes nas áreas São 40 anos de organização lésbica e do
da saúde, educação, cultura e segurança, bem co- movimento GBT+ no Brasil, de contínua resistên-
mo legislativas e judiciárias, que precisam ser supe- cia e de lutas para não sermos submetidas a
radas, aperfeiçoadas e principalmente cumpridas. qualquer forma de violência e pelo direito de não
Propostas, como esta publicação organiza- ser discriminadas.
da pelo Núcleo de Práticas de Saúde do Instituto Lutamos, para que Poder Público de forma
de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de articulada garanta direitos iguais na sua integra-
São Paulo, que abordem as necessidades, as di- lidade, para todas as pessoas, além de promover
ficuldades e as possíveis soluções na assistência o reconhecimento e o respeito às diferenças e as

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Diversidade Sexual e de Gênero

diversidades humanas. Lutamos pela transforma- 8. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saú-
de. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Po-
ção do Brasil, para que seja um país mais inclu-
lítica nacional de atenção integral à saúde da mulher: princí-
sivo e justo. pios e diretrizes. Brasília: Ministério da Saúde; 2004.
Mesmo que estejamos amparadas por legis- 9. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estra-
lações e tenhamos o direito já assegurado em pro- tégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Par-
ticipativa. Política nacional de saúde integral de lésbicas,
gramas nacionais de saúde LGBT+, sabemos que
gays, bissexuais, travestis e transexuais. Brasília: Ministé-
apenas isso não é suficiente, mas é uma garantia, rio da Saúde; 2013.
no entanto é notório, que para as nossas vidas co- 10. Ministério da Saúde. Atenção integral à saúde de mu-
tidianas há muito para ser aperfeiçoado. lheres lésbicas e bissexuais – relatório da oficina “Atenção
Integral à Saúde de Mulheres Lésbicas e Bissexuais” rea-
lizada em Brasília de 23 a 25 de abril de 2014. Brasília;
2014. [acesso em 5 out 2018]. Disponível em: https://do-
cplayer.com.br/7011578-Atencao-integral-a-saude-de-mu-
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reitos Reprodutivos; 2006. [acesso em 5 out 2018]. Dispo- venção e Controle das IST, do HIVAids e das Hepatites Vi-
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almente transmissíveis em mulheres que fazem sexo com galvao.org.br/fontes-e-pesquisas/wp-content/uploads/si-
mulheres. (Dissertação de Mestrado). Faculdade de Saúde tes/3/2018/04/Dossi%C3%AA-sobre-lesboc%C3%ADdio-
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gritude e Visibilidade: Saúde e Autocuidado. Relatório final gorias de gênero até a abjeção. Cadernos do CNLF. 2010;
do SENALESBI. Teresina/PI; 9 a 12 junh 2016. XIV(4):t4.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Experiência de discriminação e violências:


um estudo descritivo com homens que fazem
sexo com homens de São Paulo
Discrimination and violence: a descriptive study with men who have sex
with men in São Paulo

Denis Gonçalves FerreiraI, Thiago Pestana PintoII, Maria Amélia de Sousa Mascena VerasIII

Resumo Abstract

Diversos estudos sinalizam uma associação entre formas diversas Several studies indicate an association between different forms
de discriminação e violência ao desenvolvimento de doenças e es- of discrimination and violence and the development of diseases
tados de saúde. O presente estudo tem como objetivo apresentar and poor health status. This study presents a brief overview of how
um breve panorama de como a discriminação e a violência podem discrimination and violence can impact the health of men who have
impactar a saúde de homens que fazem sexo com homens (HSH) sex with men (MSM) in the city of São Paulo. This is a descriptive
na cidade de São Paulo. Trata-se de um estudo descritivo que apre- study which presents crude frequencies of violence and discrimi-
senta as frequências brutas de violência e discriminação entre HSH nation among MSM in the city of São Paulo. A total of 1175 MSMs
da cidade de São Paulo. Participaram desse estudo 1.175 HSH com ranging from 18 to 77 years old participated in this study, those
idades que variam de 18 a 77 anos, sendo que brancos e pessoas who self-identified as white and completed high school and above
com ensino superior completo representam a maioria dos sujeitos, education representing the majority of participants, 59% and 30%
com 59% e 30% respectivamente. As formas de violência que mais respectively. The forms of violence most reported in this sample
apareceram nessa amostra foram agressão verbal (59,9%), amea- were verbal aggression (59.9%), threat of aggression (33.4%) and
ça de agressão (33,4%) e agressão física (16%). Os locais onde as physical aggression (16%). The places where most people felt dis-
pessoas se sentiram mais discriminadas foram na escola e/ou uni- criminated against were in the school and/or university (29.5%); in
versidade (29,5%), no ambiente religioso (28,7%), com amigos e na the religious environment (28.7%); with friends and in the neigh-
vizinhança (28,5%) e, por fim, no ambiente familiar (26,5%). É muito borhood 28.5% and finally in the family environment (26.5%). It is
alta a frequência de discriminação e violência experimentada por very high the level of discrimination and violence experienced by
HSH em São Paulo. Dados sugerem que políticas públicas preventi- MSM in São Paulo. Data presented pointed to the urgent need of
vas e educação para o fim da discriminação em virtude das práticas prevention and education policies against discrimination and vio-
e orientações sexuais das pessoas, são necessárias e urgentes. lence towards MSM population.

Palavras-chave: Homossexuais masculinos; Violência; Sampacen- Keywords: Male homosexuals; Violence; Sampacentro; MSM.
tro; HSH.

I
Denis Gonçalves Ferreira (denisgferreira@hotmail.com) é graduado em III
Maria Amélia de Sousa Mascena Veras (maria.veras@gmail.com) é gra-
Psicologia pela Universidade Paulista (UNIP), Mestre em Psicologia Social duada em Medicina pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Mes-
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Doutorando e tre em Medicina Preventiva pela Faculdade de Medicina da Universidade de
Pesquisador em Saúde Coletiva do Grupo de Estudos em Saúde, Sexualidade São Paulo (FM/USP), Mestre em Saúde Pública pela University of Califórnia
e Direitos Humanos da População LGBT da Faculdade de Ciências Médicas - Berkeley, Doutora em Medicina pela FM/USP, Pós-Doutora pela University of
da Santa Casa de São Paulo (FCMSCSP) e atua como Professor no Curso de Califórnia - San Francisco e atua como Professora Adjunta e Coordenadora do
Medicina do Centro Universitário de Várzea Grande (UNIVAG). Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva e do Grupo de Estudos em
Saúde, Sexualidade e Direitos Humanos da População LGBT da FCMSCSP.
II
Thiago Pestana Pinto (thiago_pestana@yahoo.com.br) é graduado em En-
fermagem pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), Mestre em
Saúde Coletiva pela FCMSCSP, Doutorando em Epidemiologia pela Faculdade
de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP) e atua como
enfermeiro na Prefeitura de São Paulo e como Pesquisador no Grupo de
Estudos em Saúde, Sexualidade e Direitos Humanos da População LGBT da
FCMSCSP.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Introdução psicoativas e está entre os grupos em que há

N
maior concentração da epidemia de HIV/aids4-7.
a descrição da história dos movimentos
A explicação utilizada para a compreensão
de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e
do binômio saúde-doença em HSH é porque es-
transexuais (LGBT) no Brasil, Green1 in-
sas pessoas são estigmatizadas desde muito
forma que, na década de 1950, os homens que
cedo e, por isso, acabam padecendo. Diversos
tinham atrações afetivas e eróticas por outros
estudos já apontam a associação direta entre as
homens escolhiam lugares escuros e ermos pa-
condições sociais e o desenvolvimento de doen-
ra manifestar suas práticas e desejos sexuais.
ças8-10. Nesse sentido, a violência é um bom
A constituição do grupo de homens que fazem
exemplo para pensar a relação saúde-doença.
sexo com outros homens (HSH) em São Paulo,
No tocante a violência, os homossexuais a
por exemplo, está marcada por uma manifesta-
sofrem de longa data. Alguns autores descrevem
ção socialmente proibida em virtude de discrimi-
que ela começa pela família – para a qual os ho-
nação e preconceito2.
mossexuais não podem falar sobre seus desejos
O binômio saúde-doença está alicerçado
homoeróticos porque serão, inevitavelmente, discri-
nos determinantes sociais da saúde, e devido a
minados –, passando pela escola, pelas relações
essa compreensão o Ministério da Saúde criou
de trabalho e etc. Ou seja, é difícil pensar em um
a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbi-
ambiente onde não haja discriminação aos HSH em
cas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais3,4,
virtude das suas práticas afetivas e sexuais3,4,11.
que tem por objetivo principal proporcionar maior
Assim, o objetivo desse trabalho é apresen-
equidade no que diz respeito à oferta de serviços
tar os diversos contornos da discriminação a que
e atendimentos desse grupo.
são submetidos os HSH da região central da ci-
As consequências nefastas ao longo da his-
dade de São Paulo.
tória no que diz respeito a discursos excluden-
tes de preconceito e discriminação afetaram di-
retamente a saúde das pessoas e dos grupos. A Método
questão racial pode ser usada como um exemplo, Foi feito um estudo descritivo em locais de
visto que os negros sofrem de mais moléstias sociabilidade de HSH, usando o método Time Lo-
que os brancos, não porque são mais vulneráveis cation Sampling (TLS). Os dados apresentados
biologicamente, mas porque as vulnerabilidades resultam da pesquisa SampaCentro, financiada
a que são submetidos ao longo da vida impactam pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
diretamente a sua saúde. Dentre os determinan- de São Paulo (FAPESP) nos anos 2011-201212.
tes sociais que impactam a saúde dos negros, ci- O estudo em questão foi precedido de uma
tamos moradias precárias, trabalhos insalubres, fase formativa que identificou os locais onde os
crimes violentos, entre outros5. HSH se reúnem, os horários de maior frequência
No que diz respeito aos homossexuais e os dias da semana, objetivando descrever ca-
masculinos, os impactos na saúde por meio de racterísticas de amostra representativa de seus
suas condições de vida e socialização se apre- frequentadores.
sentam com números preocupantes. Autores afir- Homens elegíveis (aqueles maiores de 18
mam que HSH têm mais chances de desenvolver anos, residentes no estado de São Paulo e que
transtornos mentais, ter mais pensamentos de haviam tido ao menos uma relação sexual com
suicídio, fazer maior uso e abuso de substâncias outro homem) foram convidados para participar

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Diversidade Sexual e de Gênero

do estudo. Após o consentimento declarado por moram com parceiros masculinos e 1,1% mora
meio do Termo de Consentimento Livre e Escla- com parceiras femininas.
recido, os sujeitos participaram de uma entrevis-
Tabela 1. Informações sociodemográficas de
ta estruturada “cara a cara” a respeito de dados
HSH que vivem em de São Paulo
demográficos e comportamentais. Os resultados
foram obtidos por meio de frequências simples n %

processadas no software Stata 10.0. Orientação Sexual


homossexual 920 78,3
bissexual 174 14,8
Resultados heterossexual 34 2,8
Foram abordados 3.110 homens para ele- Idade
gibilidade e participaram do estudo respondendo de 18 a 24 anos 342 30,2
ao questionário 1.217 (39,1%). Para fins desse de 25 a 34 anos 442 37,7
artigo serão considerados apenas os 1.175 en- de 35 a 49 anos 295 24,3
trevistados HSH, uma vez que 42 pessoas se au- de 50 a 77 anos 95 7,8
toidentificaram como travestis ou transexuais. Raça
O estudo aconteceu entre novembro de amarela 28 2,3
2011 e janeiro de 2012. A respeito dos locais, branca 694 59,0
54,3% deles foram abordados em bares e res- indígena 11 0,9
taurantes, 17,4% lugares para sexo (saunas, dark parda 310 26,3
rooms, cinemas de sexo), 16,3% em clubes, 5,4% preta 117 9,9
nas ruas e 6,6% em outros locais. outra 13 1,1
Na amostra estudada, predomina a orienta- Escolaridade
ção sexual homossexual ou gay (78,3%), seguida ensino fundamental completo 20 1,7
por bissexual (14,8%) e heterossexual (2,8%). A ensino fundamental incompleto 26 2,2
faixa etária com maior concentração é de 25 a 34 ensino médio completo 302 25,7
anos, totalizando 37,7% da amostra. As pesso- ensino médio incompleto 39 3,3
as de raça/etnia branca foram as que mais res- ensino superior incompleto 272 23,1
ponderam à pesquisa (59%), seguidas por pardos ensino superior completo 353 30,9
(26,3%) e indígenas, pretos, amarelos e outros, pós-graduação (compl. ou inc.) 162 13,7
que representaram 14,2% da amostra. Em rela- Mora sozinho
ção à religião, os resultados apontam equilíbrio, sim 337 28,7
sendo que 50,9% dos entrevistados afirmaram não 835 71,2
não praticar nenhuma religião e outros 49% ser Estado civil
praticantes (tabela 1). casado 141 12,0

A respeito da escolaridade dos sujeitos, 30% ficando 126 10,7

declarou possuir grau superior completo, 25,7% namorando 257 21,8

completaram o Ensino Médio, 23,1% têm superior não respondeu 2 0,1

incompleto e 13,7% têm pós-graduação (tabela 1). sozinho 648 55,1

Referente à moradia, 71,2% declaram não Pratica alguma religião

morar sozinho. Nesse grupo, 45,8% moram sim 576 49,0

com parentes, 15,2% moram com amigos, 9,9% não 599 50,9

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Diversidade Sexual e de Gênero

No tocante às experiências de discrimina- Tabela 2. Número de discriminação sofrida ao


ção, foram várias as situações em que as pes- longo da vida em diversos contextos
soas responderam já terem sofrido algum tipo
n %
de constrangimento associado à orientação se-
Não ser selecionado ou ter sido demitido
xual. Dentro do universo de locais onde mais do emprego
aconteceram as discriminações, destaca-se a sim 129 10,3
não 1.038 88,3
escola, ambiente no qual 29,5% dos entrevista-
Ser mal atendido ou ter sido impedido de
dos afirmaram já terem sido excluídos ou mar- entrar em comércio/locais de lazer
ginalizados por professores ou colegas. O am- sim 187 15,9
não 987 84,0
biente religioso figura em segundo lugar, com
Ser mal atendido em serviços de saúde ou
28,7%, e em quantidade aproximada aparecem por profissionais de saúde
amigos ou vizinhos, com 28,5% de menções. sim 110 9,3
não 1.063 90,4
O ambiente familiar também aparece como um
Ser excluído ou marginalizado por
lugar hostil, visto que 26,5% já se sentiram professores ou colegas na escola scola/
excluídos ou marginalizados neste contexto faculdade
sim 347 29,5
(tabela 2). não 826 70,3
As experiências de discriminação se so- Ser excluído ou marginalizado de grupo de
mam com as experiências de violência, que amigos ou vizinhos
sim 335 28,5
vão de chantagem ou extorsão, até violências não 834 70,8
físicas, passando pela violência sexual e psi- Ser excluído ou marginalizado em
cológica. Os dados mostram que 59,9% dos ambiente familiar
sim 312 26,5
respondentes disseram já ter sofrido alguma não 855 72,7
agressão verbal, 33,4% sofreram ameaça ou Ser excluído ou marginalizado em
extorsão, 16% agressão física e, não menos ambiente religioso
sim 258 21,9
importante, 7,1% sofreram violência sexual. So- não 889 75,6
mam-se a esses números as pessoas que po- Ser impedido de doar sangue
dem ter sido vítimas dessa série de violências sim 208 17,7
e, ainda assim, ter sido ameaçadas de sofrer não 936 79,6
Ser maltratado por policiais ou ter sido
agressões exclusivamente por sua orientação mal atendido em delegacias
sexual (32,6%). sim 184 15,6
não 982 83,5
Ser mal atendido ou maltratado em
serviços públicos, como albergues,
subprefeituras, transporte ou banheiros
públicos
sim 129 10,9
não 1.044 88,8
Ser excluído ou maltratado por motivos
religiosos (religião da outra pessoa)
sim 338 28,7
não 832 70,8

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Diversidade Sexual e de Gênero

Gráfico 1. Proporção de violências sofridas por HSH no Centro de São Paulo.

sexual

física

psicológica/verbal

ameaça de agressão

chantagem ou extorsão

0 10 20 30 40 50 60 70

percentagem

Discussão O estudo com HSH, realizado Magno e cola-


A experiência de ter sido vítima de estigma boradores em 10 cidades brasileiras, encontrou
e discriminação foi relatada em diversas situa- um total de 27,7% de pessoas que relataram já
ções e em alta proporção, superando o que foi ter sido discriminadas14. Adicionado a isto, outro
encontrado por Gustavo Venturi13 em uma pesqui- estudo15 afirma que 79% da opinião pública consi-
sa realizada para a Fundação Perseu Abramo, em dera que as pessoas LGBT experimentam discri-
que 23% das pessoas afirmaram que o segundo minação – demonstrando ser comum a discrimi-
grupo mais discriminado são os gays. A justifica- nação das pessoas LGBT.
tiva apresentada pelo autor para a discriminação O que se apresenta nesse aspecto é que o
em decorrência da conduta ou orientação sexual modus operandi da existência LGBT tem sido de so-
foi que as pessoas no Brasil não aceitam que ho- brevivência a situações adversas. Alguns casos cul-
mens se agarrem, se casem, se envolvam e etc. minam em situações de violência mais primitiva, co-
Ainda sobre os achados no tocante a vítimas de mo agressões físicas, outros casos em violências
homofobia, 26% responderam que conheciam pe- mais subjetivas, porém não menos danosas.
lo menos uma pessoa que já havia sido vitimada. A escola, por exemplo, tem destaque no que
Nesse sentido, nossos achados confirmam a diz respeito às experiências de agressão verbal
hipótese de que os HSH são um grupo socialmen- (bullying) e violência física. Dados da nossa pes-
te marginalizado em diversos contextos, situação quisa apresentam a escola como o ambiente mais
que tem sido apresentada por filmes, noticiários hostil. Nela, por vezes, os sujeitos discriminados
e depoimentos nas redes sociais. não têm claro para si seus desejos sexuais em

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Diversidade Sexual e de Gênero

virtude deste se tratar de um processo de cons- ambiente que as rodeia comunica o tempo todo
trução ao longo da vida; todavia outros sujeitos, que são pessoas menos importantes por serem
como os colegas e até professores, nomeiam os quem são. A família parece se omitir no cuidado
comportamentos afeminados como ridículos, de- e justifica que não sabe lidar com a situação; a
sengonçados e merecedores de estigma. escola favorece a exclusão, porque não educa pa-
Os dados encontrados em nossa pesquisa ra a inclusão; o trabalho impossibilita conversas
também são bastante superiores ao encontrado de cunho íntimo, porque reproduz o modelo hete-
por Magno e colegas14 que aponta preconceito ronormativo de vivência da sexualidade; e assim
e discriminação na escola e/ou universidade em por diante.
5,9% dos sujeitos que se diziam gays. A suspeita que se tem a partir dessas infor-
Embora a escola tenha se apresentado co- mações é de que a vivência das práticas sexu-
mo um lugar hostil, é interessante notar que uma ais homoeróticas, assim como a vivência de uma
parte significativa da amostra conseguiu concluir orientação sexual homossexual, leva a diversas
o Ensino Médio, o que mostra a capacidade que discriminações e violências ao longo da vida, o
essas pessoas têm de lidar com situações ad- que nos faz ressaltar quais são os impactos des-
versas na sua formação, ao mesmo tempo em sas discriminações sistemáticas na saúde des-
que aponta para a necessidade de uma provável ses indivíduos.
camuflagem dos comportamentos tidos como ho- De acordo com o Centers for Disease Con-
mossexuais, por medo de discriminação e para trol and Prevention (CDC) norte-americano17, os
que consigam concluir os estudos. impactos para a vida dos sujeitos vítimas de dis-
Como apresentado por outros estudos15,16, criminação em decorrência de suas práticas afe-
o ambiente de trabalho também figura como um tivas e sexuais podem: afetar a renda, limitar o
lugar hostil para a expressão de comportamen- acesso aos cuidados de saúde, colaborar para o
tos e sentimentos homoeróticos, tal como o am- desenvolvimento de problemas de saúde mental,
biente escolar. Falar sobre sentimentos de cunho dificultar a capacidade de manter relações a lon-
não heterossexual parece ser socialmente proibi- go prazo e tornar mais difícil para os indivíduos
do no espaço profissional, embora haja um movi- falar sobre sua orientação sexual.
mento de grandes empresas para a aceitação da A “Política Nacional de Saúde Integral de
diversidade sexual. Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Tran-
Em alguns casos as violências são mais sexuais” vem exatamente a esse encontro, por
contundentes, exercidas de forma sexual ou fí- diagnosticar a dificuldade que os HSH e a popu-
sica e deixando marcas que são levadas ao lon- lação LGBT encontram para acessar os serviços
go da vida. Sobre as formas de violência mais de saúde e, em virtude dessa dificuldade, podem
graves, Mallory e colegas, em um estudo realiza- apresentar vulnerabilidades na saúde3,4,18.
do nos Estados Unidos15, afirmam que pessoas Outros estudos19-21 apontam, ainda, que
LGBT chegaram a sofrer violências físicas e virtu- pessoas vítimas de discriminação podem ter 8
ais até três vezes mais que pessoas não LGBT. vezes mais chances de cometerem suicídio, 6
Com tanta violência, a compreensão de au- vezes mais chances de relatarem depressão, 3
tocuidado fica fragilizada. Parece que é de se es- vezes mais chances de usarem drogas lícitas e
perar que essas pessoas não tenham muitos cui- ilícitas e 3 vezes mais chances de praticarem se-
dados com a própria vida, visto que boa parte do xo não protegido.

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Diversidade Sexual e de Gênero

A reflexão que se faz nesse sentido é que, por Consideramos pertinente, ainda, a realiza-
ter seus desejos afetivos e sexuais exaustivamente ção de estudos com amostras mais heterogêne-
reprimidos e que muitas vezes só podem emergir as e em contextos sociais distintos. Além disso,
às escondidas e em situações imprevisíveis, a pro- ressaltamos para a necessidade de estudos es-
teção contra as infecções sexualmente transmissí- pecíficos sobre a associação da vulnerabilidade
veis (IST) seja colocada em segundo plano e não vivida pelos HSH e a saúde.
sendo uma preocupação nos encontros casuais,
justificando o alto número de casos de HIV, além,
claro, da maior exposição ao risco devido à relação
anal ser mais favorável a essas infecções.
Desse modo, embora a discriminação não Referências

seja um problema eminentemente de saúde, é 1. Green JN. Mais amor e mais tesão: a construção de um
movimento brasileiro de gays, lésbicas e travestis. Cad.
provavelmente na saúde que os desdobramentos
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da discriminação e das formas de violência po-
2018]. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/
dem aparecer, por meio de doenças que as pes-
ojs/index.php/cadpagu/article/view/8635596
soas acabam por desenvolver por não terem se 2. Cunha R, Reis T, Glenia F, Brandt M, Tomaz K, Es-
prevenido e/ou diagnosticado e que podem tam- trella I, et al. O mapa da homofobia em São Paulo. In
bém estar associadas aos distintos mecanismos Globo.com. (on line). [acesso em: 16 out 2018]. Disponí-
de humilhação ao longo da vida. vel em: http://especiais.g1.globo.com/sao-paulo/2017/
o-mapa-da-homofobia-em-sp/
3. Brasil. Ministério da saude. Política nacional de saúde
Considerações Finais integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transse-
Autores em uníssono nos alertaram sobre xuais. Brasília: Editora do Ministério da Saúde 2012;34.

as associações entre as vulnerabilidades sociais (on line). [acesso em: 16 out 2018]. Disponível em: http://
bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_saude_les-
e a saúde8,9,22. Nesse sentido cabe alternati-
bicas_gays_bissexuais_travestis.pdf
vas mais enérgicas para promover o fim das for-
4. Mello L, Perilo M, Braz CA, Pedrosa C. Políticas de saúde
mas diversas de violência, desde as mais sutis
para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais no
– tais como as piadas –, até as mais violentas Brasil: em busca de universalidade , integralidade e equida-
– como os crimes de morte –, cometidos contra de. Sex. Salud y Soc. 2011; (9):7-28.
pessoas que não correspondem à sexualidade 5. Fiorio NM, Flor LS, Padilha M, Castro DS, Molina MCB.
heteronormativa. Mortalidade por raça/cor: evidências de desigualda-
A reflexão que escolhemos para findar o ar- des sociais em Vitória (ES), Brasil. Rev. Bras. Epidemiol.
tigo perpassa pelas políticas de saúde no tocan- 2011; 14(3):522-530. [acesso em: 16 out 2018]. Dispo-

te à prevenção ao suicídio, aos transtornos men- nível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_


ar ttext&pid=S1415 -790X2011000300016&lng=pt&t
tais, ao HIV e a outras morbidades. Políticas de
lng=pt
saúde que não levem em consideração a discri-
6. Carrara S, Simões JA. Sexualidade, cultura e política: a traje-
minação e a violência como um fator de risco pa-
tória da identidade homossexual masculina na antropologia bra-
ra o desenvolvimento de doenças, provavelmen- sileira. Cad. Pagu. 2007; (28):65-99. [acesso em: 16 out 2018].
te não serão efetivas, pois ignoram um aspecto Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
extremamente relevante e aderente à vida social ar ttext&pid=S0104 - 83332007000100005&lng=pt&t
dos indivíduos LGBT. lngpt

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Diversidade Sexual e de Gênero

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Diversidade Sexual e de Gênero

Vigilância de violências: considerações sobre as


informações relativas às violências perpetradas contra
a população LGBT no município de São Paulo
Violence surveillance: considerations about data related to violence against LGBT
population in São Paulo City, Brazil

Carmen Helena Seoane LealI, Maria Lucia Aparecida ScalcoII, Ruy Paulo D’Elia NunesIII,
Edriana Regina ConsortiIV, Beatriz Yuko KitagawaV

Resumo Abstract

A violência é um sério problema de saúde e a notificação é funda- Violence is a serious public health problem and notification is fun-
mental para a Vigilância Epidemiológica e para a definição de priori- damental for epidemic surveillance and definition of priorities and
dades e de políticas públicas. O presente estudo tenta caracterizar public policies. This study sought characterize the occurrence of
a ocorrência de violência na população LGBT a partir da informação violence in the LGBT population based on the database of SINAN
das notificações de violência do Sistema Nacional de Agravos de (National Offences Notification System). The LGBT Health Policy
Notificação (SINAN). A Política de Saúde Integral LGBT - MS trouxe a brought the need to include questions to identify violence against
necessidade da inclusão de campos e quesitos para identificação this population that are integrated in the form and system. São
da violência contra essa população que passam a integrar a ficha e Paulo City SP – Brazil. Year: 2017.
sistema. Município de São Paulo.SP. Período: ano de 2017.
Keywords: Violence; Notification; LGBT; Public policies.
Palavras-chave: Violência; Notificação; LGBT; Políticas públicas.

I
Carmen Helena Seoane Leal (chleal@prefeitura.sp.gov.br) é médica legis- IV
Edriana Regina Consorti (econsorti@prefeitura.sp.gov.br) é terapeuta ocu-
ta e especialista em Medicina do Trabalho pela Santa Casa de São Paulo pacional pela Faculdade Pontifícia Universidade Católica de Campinas (Puc-
(FCMSCSP), Mestre em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da -Campinas), com Especialização em Geriatria e Gerontologia pela FM/USP e
Universidade de São Paulo (FSP/USP) e atua no Núcleo de Doenças e Agra- atua no NDANT/COVISA/SMS-PMSP.
vos Não Transmissíveis (NDANT) da Divisão de Vigilância Epidemiológica da
Coordenadoria de Vigilância em Saúde da Secretaria Municipal Saúde de São
V
Beatriz Yuko Kitagawa (beatrizyuko@prefeitura.sp.gov.br) é médica veteri-
Paulo (COVISA/SMS-SP). nária e Especialista em Epidemiologia pela FSP-USP, Mestre em Saúde Cole-
tiva pela FCMSCSP e atua no NDANT/COVISA/SMS-PMSP.
II
Maria Lucia Aparecida Scalco (mscalco@prefeitura.sp.gov.br) é psicóloga
pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto Universidade
de São Paulo (FFCLRP/USP), com Especialização em Saúde Pública pela Fa-
culdade de Medicina de Ribeirão Preto – Medicina Social da Universidade de
São Paulo (FMRP/USP) e atua no NDANT/COVISA/SMS-PMSP.
III
Ruy Paulo D’Elia Nunes (rdelia@prefeitura.sp.gov.br) é médico psiquia-
tra pela Faculdade de Medicina da Fundação ABC (FUABC), Sanitarista pela
Universidade de Campinas (UNICAMP) e Epidemiologista pela Faculdade de
Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) e atua como Coorde-
nador do NDANT/COVISA/SMS-PMSP.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Introdução o idoso; quando classificada pelo ato ou pela

A
forma, em violência sexual, física, psicológica
história da vigilância de violências, no
ou tentativa de suicídio. Também podemos ca-
município de São Paulo, se inicia com a
racterizá-la a partir das relações desiguais de
construção do Sistema de Informação e
poder instituídas na nossa sociedade, como a
Notificação de Violências (SINV), em 2002. Pos-
violência racial, de gênero, intergeracional ou
teriormente, a partir de 2007, a notificação tanto
ainda, institucional3. Temos, então, que pensar
de violências como de acidentes (acidentes de
em diferentes formas de organização de proces-
trânsito, quedas e outros acidentesIV) tornou-se
sos trabalho com diferentes áreas da Saúde e
obrigatória e foi captada no município pelo Siste-
de outros setores para abordá-las.
ma de Informação para a Vigilância de Violência
A informação é essencial para a elaboração
e Acidentes (SIVVA)VII. No segundo semestre de
de políticas públicas de enfrentamento às violên-
2015, houve transição de sistemas, passando-se
a utilizar o Sistema Nacional de Agravos de Notifi- cias. A população de lésbicas, gays, bissexuais e
cação (SINAN)1 e o Sistema de Informação para a transexuais, incluindo os travestis e transgêneros
Vigilância de Acidentes (SIVA), desenvolvido pelo (LGBT), é particularmente vulnerável a diversos e
município para o registro de acidentes. sobrepostos tipos de violências.
Na questão da violência, a notificação ”A discriminação por orientação sexual e por
cumpre a obrigação de atender às leis munici- identidade de gênero incide na determinação
pais, estaduais e federais na defesa e garantia social da saúde, no processo de sofrimento e
de direitos, de obter informações para a com- adoecimento decorrente do preconceito e do
preensão desse fenômeno por parte do setor estigma social reservado às populações de
saúde, de apoiar a organização dos serviços e lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transe-
de apoiar a formação das redes intersetoriais. É xuais4” (p.18).
imprescindível, na dinâmica da atenção às situ-
No antigo sistema SIVVA, não havia infor-
ações de violência, a possibilidade de enxergar,
mação sobre a orientação sexual da vítima, nem
de dar visibilidade e de tornar público o fenôme-
sobre sua identidade de gênero. Assim, acredita-
no, visando a possibilitar a proteção, a preven-
mos que a nova estrutura da ficha SINAN, com
ção e a promoção da saúde. A organização da
campos específicos destinados à população
informação é uma das ferramentas e, muitas
LGBT fornece novas informações pertinentes.
vezes, uma das estratégias para trabalhar com
esse agravo. As alterações na ficha buscam atender ao dis-
Ao falarmos de violência, podemos dizer posto na Política Nacional de Saúde Integral de
que estamos nos referindo a vários agravos. Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexu-
Quando pensamos em ciclos de vida pode- ais4, ampliando o objeto da notificação e incorpo-
mos classificá-la em violência contra a criança, rando as violências por motivação homo/lesbo/
contra o adolescente, contra o jovem, contra transfóbica.

VI
Os acidentes de trabalho são captados por outro sistema, o Sistema de Métodos e fonte
Informação de Agravos de Notificação (SINAN).
A fonte utilizada para obtenção de dados
VII
Durante toda a sua vigência, até o primeiro semestre de 2015, o SIVVA,
em seu módulo de violências, captou mais de 140.0002. de violência contra a população LGBT foram

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Diversidade Sexual e de Gênero

as fichas do SINAN5, tendo como âmbito tem- Note-se que “ignorado” destina-se a quem
poral o ano completo mais recente de 2017. O não quis ou não pode responder (ex: indivíduos
SINAN inclui tanto as “violências autoprovoca- inconscientes naquele momento). Já o termo
das”, (que em 2017 representaram 14,5% das “não se aplica” se refere tanto a menores de 10
notificações) como “agressões por terceiros” anos, também as pessoas que têm a sua identi-
(85,5%). A ficha contém dois campos direta- dade de gênero de acordo com o sexo biológico
mente relevantes para a população LGBT, os de nascimento, o que abarca a grande maioria da
campos 36 e 37. As questões relativas a estes população (seria a alternativa “cisgênero” ainda
campos são perguntadas para as vítimas a par- não disponível no SINAN).
tir de 10 anos de idade; os menores de 10 anos
corresponderam a 11,5% das vítimas dos casos – campo 55 – motivação da violência:
notificados. Mostramos a seguir o detalhamen-
Um terceiro campo, o 55 – “Esta violên-
to desses campos.
cia foi motivada por”, especifica a motivação da
agressão por terceiros. As alternativas para es-
– campo 36 – orientação sexual:
te campo são:
As alternativas para este campo são:
1. heterossexual
1. sexismo
2. homossexual (gay/lésbica)
2. homofobia/lesbofobia/bifobia/transfobia
3. bissexual
8. não se aplica 3. racismo
9. ignorado 4. intolerância religiosa
5. xenofobia
Note-se que o “não se aplica” destina-se 6. conflito geracional;
apenas a indivíduos menores de 10 anos e o
7. situação de rua
“ignorado” a quem não quis ou não pode res-
ponder (ex: indivíduos inconscientes naquele 8. deficiência
momento). 9. outros (há espaço para especificar)
88. não se aplica
– campo 37 – identidade de gênero: 99. ignorado
As alternativas para este campo são:
1. travestiVIII Note-se que o “não se aplica” destina-se
2. mulher transexualIX às agressões autoprovocadas e o “ignorado” a
3. homem transexualX quem não quis ou não pode responder (ex: indi-
8. não se aplica víduos inconscientes naquele momento). A par-
9. ignorado tir destas informações, transferidas para o Tab-
net (sistema aberto e automático que permite a
construção de tabelas, com uma enorme possi-
VIII
Homem que se veste de mulher; segundo o Ministério da Saúde o termo
não incluiria mulheres que se vestem de homem6.
bilidade de cruzamento de variáveis), foi possí-
XI
Pessoa nascida biologicamente homem e que se sente mulher6. vel analisar dados de ocorrência das violências
X
Pessoa nascida biologicamente mulher e que se sente homem6. contra a população LGBT.

– vol. 19, n. 2 – dez. 2018.


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Diversidade Sexual e de Gênero

Resultados Há um grande número de “ignorados” e “Em


Quando examinamos quantitativamente o branco”, quase metade do total. O “não se apli-
campo 36 - orientação sexual, obtivemos (ver ta- ca” representa mais da metade do total, já que,
bela 1): por questões de definição do Instrutivo SINAN do
Ministério da Saúde6, essa classificação abarca
Tabela 1. Investigação de violência interpessoal/ a maioria da população. A somatória de ”travesti”
autoprovocada. + “mulher transexual” + “homem transexual” não
Nº de casos por orientação sexual. 2017.
chega a 1%.
Quando a informação sobre “orientação se-
Orientação Sexual n %
xual” (campo 36) foi cruzada com a “motivação da
em branco 19 0,06
violência” (campo 55), obtivemos (tabela 3).
heterossexual 13.268 44,00
Cerca de 40% dos casos notificados têm
homossexual(gay/lésbica) 531 1,76
motivação ignorada, percentual pouco inferior
bissexual 71 0,24
ao registrado como “outros”. Os casos motiva-
não se aplica 5.240 17,38
dos por “homofobia/lesbofobia/transfobia” cor-
ignorado 11.024 36,56
respondem a 101 notificações – 0,33% dos ca-
Total 30.153 100
sos notificados (destaque com cinza). Ressalta-
Fonte: SINAN NET Violências; 16/08/2018.
-se que nem sempre há correspondência entre a
orientação sexual “diversa” (homosexual, bisse-
Dentro das notificações do SINAN, a soma-
xual) e “homofobia/lesbofobia/transfobia”: entre
tória de “homossexuais” e “bissexuais” é de ape-
os 101 casos notificados, 27 (26,7%) teriam sido
nas 2%; está destacada em negrito. É muito gran-
entre heterossexuais.
de o número de ”ignorados” e “em branco”, mais
Tanto a alternativa “não se aplica” para a
de 1/3 do total.
orientação sexual, quanto a alternativa “não se
Quando examinamos quantitativamente o
aplica” para a motivação da violência são supe-
campo 37 - identidade de gênero, observa-se
(tabela 2): riores às esperadas (destaques em cinza). Na
primeira situação, o “Não se aplica” significa
5.240 casos, ou 17,4% do total; como foi dito
Tabela 2. Investigação de violência interpessoal/
anteriormente, crianças abaixo de 10 anos, às
autoprovocada.
quais esta alternativa corresponde, são apenas
Nº de casos por identidade gênero 11,5% do total. Na segunda situação que regis-
Identidade Gênero n % tra a motivação da violência, o “não se aplica”
em branco 19 0,06 estaria destinado às lesões autoprovocadas;
travesti 75 0,25 no entanto, embora elas representem apenas
mulher transexual 171 0,57 14,5% do total de todas as notificações, são
homem transexual 41 0,14 6.074 notificações com “não se aplica”, ou
não se aplica 16.896 56,03 20,14% do total.
ignorado 12.951 42,95 Quando a informação sobre identidade de
Total 30.153 100 gênero (campo 37) foi cruzada com a motivação
Fonte: SINAN NET Violências; dados obtidos em 16/08/2018. da violência (campo 55), obtivemos que (tabela 4).

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Diversidade Sexual e de Gênero

Tabela 3. Investigação de violência interpessoal/autoprovocada.


Nº de casos por orientação sexual e motivação violência. 2017.

Homofobia/ Não
Orientação Em Intolerância Conflito Situação
Sexismo Lesbofobia/ Racismo Xenofobia Deficiência Outros se Ignorado Total
Sexual Branco religiosa geracional de rua
Transfobia aplica
em branco 19 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 19
heterossexual 0 941 27 12 17 9 1.422 327 106 4.093 3.051 3.263 13.268
homossexual
0 31 41 2 0 0 54 15 2 142 75 169 531
(gay/lésbica)
bissexual 0 10 0 0 0 1 8 1 0 23 9 19 71
não se aplica 0 214 11 1 0 1 280 63 94 995 1.922 1.659 5.240
ignorado 0 231 22 6 2 1 432 264 38 1.631 1.017 7.380 11.024
Total 19 1.427 101 21 19 12 2.196 670 240 6.884 6.074 12.490 30.153

Fonte: SINAN NET Violências; 16/08/2018

Tabela 4. Investigação de violência interpessoal/autoprovocada.


Nº de casos por identidade gênero e motivação daviolência. 2017.

Homofobia/ Não
Identidade Em Intolerância Conflito Situação
Sexismo Lesbofobia/ Racismo Xenofobia Deficiência Outros se Ignorado Total
Gênero Branco religiosa geracional de rua
Transfobia aplica
em branco 19 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 19
travesti 0 2 5 0 0 0 7 3 0 26 4 28 75
mulher
0 9 5 1 2 0 13 9 0 51 30 51 171
transexual
homem
0 1 6 0 0 0 7 1 0 14 1 11 41
transexual
não se aplica 0 1.066 43 10 13 12 1.444 347 189 4.646 4.849 4.277 16.896
ignorado 0 349 42 10 4 0 725 310 51 2.147 1.190 8.123 12.951
Total 19 1.427 101 21 19 12 2.196 670 240 6.884 6.074 12.490 30.153

Fonte: SINAN Violências; 16/08/2018.

Há apenas 16 casos notificados de travesti adultos que se declarassem com identidade de


+ mulher transexual + homem transexual tendo gênero coerente com o sexo de nascimento (ho-
como motivação ”homofobia, lesbofobia e trans- mens e mulheres cisgêneros, independentemen-
fobia”, 0,05% do total de 30.153 casos (desta- te de sua orientação sexual), número que chega
cados com fundo cinza). Embora os números se- a 16.896, mais de 53% do total.
jam pequenos (ver destaque em negrito), a maior Coerente com a tabela anterior na mo-
parte dos casos teve como motivações referidas tivação da violência, o “não se aplica” estaria
alternativas “outros” ou “ignorado”. destinado às lesões autoprovocadas e, embo-
Nesses casos, o “não se aplica” para identi- ra elas representem apenas 14,5% do total de
dade de gênero é ainda maior, já que, segundo as todas as notificações, são 6.074 notificações
orientações do manual do Ministério da Saúde6, com “não se aplica” na tabela ou 20,14% do
esta categoria abrangeria tanto crianças meno- total. Em ambas as tabelas 3 e 4, é grande o
res de 10 anos, quanto todos os adolescentes e número de “ignorado” tanto quanto na descrição

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Diversidade Sexual e de Gênero

da orientação sexual, quanto na da identidade Conclusão


de gênero, superando 40%. Também supera os É preciso fazer ofertas de apoio específi-
40% a motivação “ignorada”. co aos profissionais, visando a melhorar a abor-
dagem da população LGBT e ampliando o co-
nhecimento sobre as questões da sexualidade,
Discussão
orientação sexual, identidade de gênero, gênero
O número de notificações de violência quem
e relações sociais e que discutam as vulnera-
têm informação que possam identificam a popu-
bilidades sobrepostas (LGBT e velhice, LGBT e
lação LGBT é muito baixo. Por outro lado, não há
adolescência, LGBT e transtornos mentais, etc.).
até esse momento parâmetros para determinar o
Também são necessárias várias ações no sen-
tamanho dessa população; mesmo a fonte que
tido da garantia do acesso à saúde de forma
seria considerada a mais completa em informa-
ampla, tanto no que diz respeito à prevenção,
ções, o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia
quanto ao cuidado. Neste contexto a falta de
e Estatística (IBGE), não traz ainda esses dados.
informação só amplia a impossibilidade de atu-
Para a transição aos sistemas SIVVA/SINAN
ação e as formas de violações de direitos que
foram realizados treinamentos para o uso do Sis-
essa população já sofre.
tema de Informação e Oficinas para a coleta de
O setor Saúde está organizando seus instru-
informações e preenchimento das fichas, mas
mentais para dar visibilidade às necessidades de
parece que essa ação não foi suficiente frente
saúde da população LGBT. A Secretaria Munici-
à complexidade do tema e à constante mudança
pal de Saúde de São Paulo criou o Comitê LGBT,
de recursos humanos nas unidades.
responsável pela revisão de protocolos e de ins-
Existe um grande problema no entendimen-
trumentos de informação em saúde, nessa área.
to do que seja a população LGBT, tanto na dimen-
Considera-se também basilar o fortaleci-
são de orientação sexual, quanto na de identida-
mento da representação dos movimentos sociais
de de gênero. Esses dois elementos são muitas
vezes confundidos. Os profissionais também não organizados da população LGBT nos Conselhos
têm entendido o uso da alternativa “não se apli- de Saúde, Conferências e demais instâncias de
ca”, demonstrado no levantamento pela incoerên- participação social para ampliar acesso à saúde.
cia numérica das respostas relativas à idade e Afinal, o monitoramento e a avaliação da política
lesões autoprovocadas. pública que ocorre no âmbito federal por meio
Nesse contexto, a informação quanto à mo- do Comitê Técnico de Saúde Integral LGBT do Mi-
tivação de violência termina por ser muito pobre nistério da Saúde4 se desdobram nas ações dos
e dificulta não só conhecer o perfil da vítima LGBT comitês municipais. Por isso, destaca-se que o
como impedir o desenho de perfis de vítimas com aprimoramento e o volume qualificado de infor-
vulnerabilidades cruzadas (ser negro e gay, por mações são essenciais para o fortalecimento
exemplo). dessa política pública.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Referências (NDANT). SINAN - violência instrutivo complementar. São


1. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS Nº 1.271 Paulo; 2017. [acesso em: 5 out 2018]. Disponível em: ht-
de 06 de junho de 2014. Define a Lista Nacional de No- tps://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/
tificação Compulsória de doenças, agravos e eventos de saude/Sinan%20violencia%20agosto%202018.pdf
saúde pública nos serviços de saúde públicos e priva- 4. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Es-
dos em todo o território nacional, nos termos do anexo, tratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão
e dá outras providências. Disponível em: http://portal- Participativa. Política nacional de saúde integral de lésbi-
ms.saude.gov.br/saude-de-a-z/acidentes-e-violencias/ cas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Brasília: 1a.
notificacao-de-violencia-interpessoal reimp. 2013. [acesso em: 5 out 2018]. Disponível em: ht-
2. São Paulo. Secretaria Municipal de Saúde. Coordena- tp://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacio-
ção de Vigilância em Saúde. Divisão de Vigilância Epide- nal_saude_lesbicas_gays.pdf
miológica. Núcleo de Doenças e Agravos Não Transmis- 5. Brasil. Ministério da Saúde. SINAN. Ficha de notifi-
síveis – NDANT. SIVVA. Notificações de violência. 2008- cação individual SINAN - violência (site). [acesso em: 5
2015. SMS/COVISA - TabNet SIVVA. (Site). [acesso em: 5 out 2018]. Disponível em:http://bvsms.saude.gov.br/
out 2018]. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov. bvs/publicacoes/viva_instrutivo_violencia_interpessoal_
br/cidade/secretarias/saude/tabnet/doencas_e_agravos/ autoprovocada_2ed.pdf
violencias_e_acidentes/index.php?p=12819 6. Ministério da Saúde. Instrutivo SINAN 5.0 – violência.
3. São Paulo. Secretaria Municipal de Saúde. Coordenação Brasília: MS; 2015. [acesso em: 5 out 2018]. Disponível
de Vigilância em Saúde. Divisão de Vigilância Epidemio- em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/viva_ins-
lógica. Núcleo de Doenças e Agravos Não Transmissíveis trutivo_violencia_interpessoal_autoprovocada_2ed.pdf

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Diversidade Sexual e de Gênero

Transfobia e racismo: articulação de violências


nas vivências de transI
Transphobia and racism: articulation of violence in the experiences of transI

Lincoln Moreira de Jesus MenezesII

Resumo Abstract

O artigo discute a articulação de violências de gênero e raça vivi- The article discusses the articulation of gender and race violence
das por trans negras, baseado em pesquisa realizada na cidade de experienced by black transsexual women and transvestites, based
São Paulo. Observa-se que a violência de gênero atingiu mais de on research conducted in the city of São Paulo. It is observed that
85,0% delas, além da violência racial vivida por 31,7%, em diferen- gender violence reached more than 85.0% of them, besides the ra-
tes espaços sociais como escola, trabalho, no trato de instituições cial violence experienced by 31.7%, in different social spaces such
públicas e privadas, autoridades, Polícia e até vindas da família. as school, job, in the treatment of public and private institutions,
Essas somadas à saída de casa mais cedo, a menor escolaridade authorities, Police and even family. Those added to leaving home
e renda e a exposição a relações sexuais mais cedo, promovem early, lower schooling and income, and earlier exposure to sexual
condições desvantajosas e violências sociais na vivência dessas intercourse promote disadvantageous conditions and social violen-
pessoas, estigmatizadas socialmente. ce in the lives of these socially stigmatized people.

Palavras-chave: Saúde; Violência; LGBT; Transexualidade; Racismo. Keywords: Health; Violence; LGBT; Transsexuality; Racism.

Introdução Principalmente, por meio de movimentos de

N
lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT),
o Brasil, as questões raciais, sexuais e de
negro e feminista, em suas diferentes linhagens,
gênero são temas cada vez mais pungen-
a questão da diversidade sexual e de gênero tem
tes no contexto contemporâneo, não ape-
ganhado notória expansão. Lutas pela conquista
nas por permitirem discussões e reflexões sobre
e ou garantia do direito à diferença (especificida-
diferentes realidades sociais, mas também por
des) e à igualdade (equidade), complementarmen-
enunciarem o advento da diversidade e seus de-
te, têm mobilizado múltiplas iniciativas em políti-
safiantes equacionamentos.
cas públicas e na sociedade civil. Mas, ainda há
vários segmentos sociais sem acesso a essas
políticas e em situação de extrema vulnerabilida-
de a violências de diversas ordens.
I
Esse artigo é um recorte parcial da pesquisa “Transfobia e Racismo: vio-
lências de raça e de gênero sofridas por mulheres transexuais e travestis ne- As transexuais mulheres e travestis negras,
gras” que está sendo realizada no curso de Ciências Sociais da Universidade
Federal de São Paulo – Campus Guarulhos, sob orientação de Valéria Men- ainda que distintas, se inserem no segmento so-
donça de Macedo do Núcleo Corpo Gênero e Sexualidade desta faculdade,
com coorientação de Regina Figueiredo, do Instituto de Saúde da Secretaria cial específico e particular do movimento LGBT,
de Estado da Saúde de São Paulo.
que se refere ao grupo T (trans). Cada vez mais,
II
Lincoln Moreira de Jesus Menezes (lincolnmj10@hotmail.com) é graduan-
do de Ciências Sociais na UNIFESP-Guarulhos, onde está sob orientação de esse segmento tem ganhado visibilidade, embo-
pesquisadores do Núcleo Corpo Gênero e Sexualidade, e é auxiliar de pesqui-
sa no Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. ra continue cercado de inúmeras controvérsias

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Diversidade Sexual e de Gênero

agravadas, no contexto brasileiro, quando inter- questionamentos presentes nos “guetos”, asso-
seccionadas com desigualdades raciais e ciações e comunidades alternativas desta época
socioeconômicas. atuaram visando à sociabilidade (e não necessa-
Em razão dos altos índices de violência e riamente à ação política) e promoviam atividades
situações de vulnerabilidade social e de saúde fí- de distribuição de jornais em bares, fã clubes de
sica e mental, as trans negras costumam integrar artistas e bailes de carnaval, agrupando a popu-
segmentos sociais que não têm acesso a direitos lação homossexual.
plenos de cidadania. Isso ocorre, não somente Na década de 1980, a eclosão da epidemia
por conta de seu gênero e sexualidade, mas em do HIV/aids mobilizou homossexuais masculinos
muitos casos também por sua cor. Daí a neces- frente aos casos de morte entre esse segmento,
sidade de pesquisas que se voltem para essas fortalecendo agrupamentos para exigir dos gover-
violências na perspectiva das vivências daquelas nos uma resposta à epidemia. Esse movimento
que as sofrem, enfatizando, inclusive, a maneira fez com que, na década de 1990, suas propos-
como a transfobiaIII e o racismo se articulam e tas começassem a ser associadas não apenas
mobilizam desafios cotidianos. ao combate à doença, mas também à luta pelos
direitos civis e ações contra discriminações e vio-
lências, provocando uma adoção do termo “orien-
A percepção das diversidades e identidades tação sexual”IV em oposição à “opção sexualV –
sexuais desconstruindo a ideia de que indivíduos escolhe-
No Brasil, a luta por direitos homossexuais, riam sua condição de homossexual. Essas duas
desde a década de 1970, motivou, junto a outros décadas, portanto, impactaram e solidificaram o
movimentos sociais, como o feminista, o início movimento homossexual, configurando a sua pró-
de questionamentos sobre a forma de perceber a pria identidade e de seus participantes. Devido
sexualidade. Segundo Facchini1, esses movimen- à atuação e ao agrupamento de diferentes seto-
tos eram formados por gays e lésbicas e desem- res, a diversidade sexual se expressou e ganhou
penharam um papel fundamental de embate às visibilidade e identificação de novas categorias,
maneiras de perceber a sexualidade apenas pela autodefinições e denominações, estabelecendo
concepção binária que determina a parceria se- a visibilidade de trans (Ts): travestis, transexu-
xual pelo sexo biológico. ais e transgêneros, além dos grupos bissexuais
Diferentemente, em uma concepção não que pleiteiam espaço no conjunto enquanto “tri-
binária, os indivíduos são encarados a partir de bos” com comportamentos e códigos de grupo
uma lógica de igualdade e as parcerias sexu- próprios4.
ais passam a ser definidas pelo que atualmen-
te se denomina a “orientação do desejo afetivo
e sexual” que se torna mais importante para
IV
Segundo a UNAIDS3, a orientação sexual refere-se à capacidade de cada
denominá-los do que as expectativas de dese- pessoa de ter uma profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indiví-
duos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim
jo e papéis sociais atribuídas às normativas do como ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas. Nesse sentido,
que é ser masculino e feminino1. Por isso, os existiriam, basicamente, três orientações sexuais preponderantes: pelo mes-
mo sexo/gênero (homossexualidade), pelo sexo/gênero oposto (heterosse-
xualidade), ou pelos dois sexos/gêneros (bissexualidade).
V
A explicação provém da constatação de que ninguém “opta”, e nem es-
colheria conscientemente a sua orientação sexual numa sociedade hetero-
normativa que o condenaria à discriminação, violência e até perseguição, da
III
Termo que vem sendo utilizado para designar o preconceito contra trans. mesma forma como o “heterossexual não escolheu essa forma de desejo”3.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Nesse contexto surge a Teoria Queer, procu- Unidas contra o HIV/aids (UNAIDS)3, transgênero
rando responder questões conceituais acerca da são as pessoas que transitam entre os gêneros
sexualidade, gênero e homossexualidade. Essa te- e que têm identidade para além das definições
oria pós-estruturalista, propõe formulações teóri- tradicionais de sexualidade, situação em que se
cas pós-identitárias2 e associa suas concepções encaixam os travestis e transexuais.
a um pensamento político articulado que propõe Nesse sentido, há um conflito e aproxima-
a análise histórica e um novo movimento social5. ção de identidades entre transexuais e travestis:
Apropriando-se das contribuições de Foucault6, a ambos se constroem e se identificam de maneira
teoria Queer denuncia a construção discursiva da a romper com a lógica convencional que conduz o
sexualidade que, através de instituições como as seu comportamento e sua performance enquanto
igrejas, o Direito, a Psiquiatria, a Sexologia, entre “homem” ou “mulher”. Barbosa11 e Leite Junior12
outros, vem normatizando as “espécies” e os “ti- afirmam que as diferenças que mais se sobressa-
pos” de sexualidade ao classificá-los, exercendo em entre travestis e transexuais brasileiras estão
controle sobre eles. Essa constante normatização, na relação que cada um tem com seu próprio ór-
segundo a Butler5, demonstraria a artificialidade gão genital e com o anseio do processo de trans-
da oposição binária e da heterossexualidade en- genitalização. Assim, ainda que não seja uma re-
quanto norma (uma vez que precisa ser sempre re- gra, as travestis10 seriam aquelas que comumen-
forçada), que formata a construção do sujeito e do te não desejam a mudança no órgão genital, em-
conhecimento sexual e gera hierarquias de classi- bora vivenciem papéis de gênero feminino; e as
ficação, dominação e rejeição7. A teoria Queer pro- transexuais aquelas que não se sentem confor-
põe pensar as diversas identidades sexuais e de táveis com seus órgãos e por isso desejam mo-
gênero em toda a sua fluidez, pluralidade e ambi- dificar o corpo com intervenções, inclusive cirúr-
guidade, além das formas tidas como “normais” e gicasVI, visando a adequá-lo à sua identidade de
“bem-comportadas” de identidade e de conheci- gênero13. Apesar disso, muitas travestis também
mento8; expõe o gênero, a identidade de gênero, modificam seu corpo, por meio de hormoniotera-
a sexualidade e os papéis sociais enquanto inscri- pias, aplicação de seios, cirurgias plásticas, etc.,
ções corporais impostas socialmente. Para Mora- fazendo com que essas definições se confundam.
es Silva9, a contribuição do conceito de gênero é Também existem pessoas que não se iden-
justamente diferenciar a grandeza biológica da so- tificam com nenhum gênero, abrindo espaço pa-
cial, transcendendo o feminino e o masculino para ra pensar diferentes transgeneridades e formas
o campo cultural, ou seja, a construção de diferen- de viver o gênero. É nesse âmbito que Jesus10
ças que definem os papéis sociais designados às propõe pensar a vivência do gênero como funcio-
mulheres aos homens, respectivamente. nalidade (caso das drag queens/transformistasVII
e crossdressersVIII) e como identidade (caso das
travestis e transexuais).
Especificidades trans
Segundo Jesus10, a pessoa que se denomi-
na transgênero ou trans, não se identifica com o VI
Algumas transexuais não desejam fazer cirurgias10 (p.16).
gênero que lhe foi designado pelo sexo biológi- VII
Artistas que se vestem de acordo com um estereótipo do gênero mascu-
lino/feminino para fim unicamente artístico ou de entretenimento.
co ao nascimento; ao contrário de cisgênero, que VIII
Pessoa que usa acessórios e maquiagem diferentes do que atribuído a
se identifica com ele. Para Agência das Nações seu gênero socialmente.

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Diversidade Sexual e de Gênero

No geral, todos esses segmentos sofrem da escola ou falta de apoio familiar. Por isso, na
opressões por performarem feminilidade e subver- maioria das vezes recorrem à prostituição, subme-
terem as normas regulatórias na ótica do binarismo tendo-se a situações de risco e perigos urbanos,
heterossexual compulsório, tanto do gênero, quan- como assassinatos, roubos, agressões físicas ou
to do sexo. Porém, há uma tendência de travestis verbais e todo tipo de ameaça à vida ou partem
serem sempre vistas como prostitutas, pobres, que para empregos informais que, mesmo não sendo
não têm acesso à informação, a ambientes acadê- diretamente degradantes, exigem muito trabalho
micos e ao mercado de trabalho; sua definição tem e pouca remuneração. Dados levantados pela As-
íntima associação com a classe social e o local so- sociação Nacional de Travestis e Transexuais (AN-
cial que ocupam. Já as transexuais são tidas com TRA), apontam que 90% das travestis e transexu-
certo grau de informação e que, portanto, mesmo ais utilizam a prostituição como fonte de renda16.
sendo vitimadas por opressões, conseguem se so- Especificamente quanto às travestis e mulhe-
bressair em detrimento às travestis, embora rece- res transexuais negras há uma vivência que une a
bam o estereótipo de depressivas e loucas10. discriminação de gênero à discriminação racial. Es-
Segundo Facchini1, desde 1990, as traves- sa interseccionalidade entre “classe”, “gênero”, “se-
tis são a parte mais aparente e evidenciada da xo” e “raça” vem sendo evidenciada por vários au-
comunidade LGBT, pautadas sobre o impacto da tores17-22 e são importantes para a análise das vul-
aids e o número alarmante de violência a que nerabilidades trans. Supõe-se que o fato de serem
estão expostas. As reinvindicações desse grupo negras se constitui enquanto desprivilegio, uma vez
incluem uma visão menos conservadora e mais que historicamente negros transitam nas camadas
propositiva com relação à prostituição, o fortale- socioeconômicas mais baixas da sociedade.
cimento do combate às violências e a garantia de
permanência na escola. Por outro lado, a grande
reivindicação das transexuais é a diminuição das Método
dificuldades de acesso às alterações corporais Este artigo apresenta dados de levanta-
para a adequação às suas identidades de gêne- mento de violência de gênero e de raça sofridos
ro. O que une ambos os grupos é a luta pela ade- por trans da cidade de São Paulo. Através de
quação da identidade jurídica, ou seja, a mudan- uma pesquisa quantitativa realizada com aplica-
ça de prenome oficial para o “nome social” em ção de questionário por telefone, foram entre-
seus documentos e nos atendimentos de servi- vistadas em 2018, trans cadastradas durante
ços públicos e privados, inclusive de saúde. ações de campo realizadas pelo Instituto Cultu-
Quanto à violência, de acordo com Marieta ral Barong em 2017IX, em diferentes locais fre-
Cazarré14, de meados de 2008 a março de 2014, quentados por este público, para situações de
foram registradas 600 mortes de indivíduos per- lazer e trabalho de rua; além de outros indiví-
tencentes ao grupo de travestis e transexuais no duos indicados por essas, numa estratégia de
Brasil – maior quantidade observada entre todos contato de “bola de neve”.
os países do mundo. A perspectiva de vida dessas
pessoas é de 35 anos, pois, quando não são as-
sassinadas, outras fatalidades lhes acometem. A IX
Organização não governamental (ONG) paulistana que promove saúde e
direitos sexuais e reprodutivos e que em 2017 estava desenvolvendo ações
Rede Trans15 revela que 82% abandonam o Ensino educativas e de promoção de testagem de infecções sexualmente transmis-
síveis (IST), incluindo hepatites, em diversos locais, com apoio da Coordena-
Médio entre os 14 e 18 anos por discriminação ção de DST/Aids do Município de São Paulo.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Os questionários abordaram o perfil pessoal Do total, 98,3% tem renda própria; apenas
(nome, idade, renda, local, fonte de renda e esco- uma pessoa não possui. Dentre as que disseram
laridade, etc.), além de situações de violência de ter renda, a ocupação de 33,3% é de cabeleireira
gênero e racial vividas por este público em diferen- ou maquiadora, 23,3% é profissional do sexo ou
tes espaços de sua vida, como família, escola, tra- acompanhante, 13,3% trabalha em comércios e/
balho, sociabilidade, vida afetiva e equipamentos ou serviços, 11,7% trabalha no meio artístico (co-
públicos, além de situações específicas relativas reógrafa; modelo; produtora, etc); 13,3% exercem
à vulnerabilidade sexual e de saúde, incluindo par- mais de uma atividade. Considerando o trabalho
cerias, uso do preservativo, realização de exames (independente de ser ou não a principal ativida-
de próstata, vacinação de HPV e hepatite B e si- de), 31,7% atuam na prostituição. Entre as tra-
tuação sorológica para o HIV. Para esse artigo, foi vestis, 3 (20,0%) afirmam exercer mais que uma
destacada apenas a discussão acerca da exposi-
atividade e das transexuais, 5 (16,7%), sendo que
ção à violência vivida por essas pessoas.
delas, 33,3% e 43,3% trabalham com prostitui-
ção, respectivamente.
Resultados Das que informaram a renda mensal, 8,3%
ganham até 1 salário mínimo, 41,7% de 1 até 2
Foram entrevistados(as) 60 trans durante o
salários; 21,7%, de 2 a 4; 16,7% de 4 a 7 e 10%
1º semestre de 2018. A maioria (45%) provenien-
não responderam (tabela 2).
te do município de São Paulo e outros 25% de
outras cidades do estado.
– cidadania e situações de violência:
Quanto ao gênero, dos 60 entrevistados,
Considerando as histórias de vida, 70%
71,7% responderam que se consideram femi-
afirmaram ter necessitado sair da casa da famí-
ninas; 13,3% masculinos e 15% com ambas as
lia: 86,7% das transexuais, 60% das travestis,
identidades de gênero. Quanto à forma como se
50% das transformistas e 42,9% das drag que-
apresentam, 50% se dizem transexuais, 25% tra-
vestis, 11,7% drag queens, 10% transformistas e ens. A saída ocorreu para 16,7% entre 0 e 14
3,3% outros. A porcentagem de travestis e tran- anos (todas negras, representando 22,6% deste
sexuais que se denominam femininas é de 93,3% grupo); para 33,3% entre 14 e 17 anos e para
igualmente. A maioria das drag queens afirmaram 40,5% entre os 18 e 25 anos (tabela 3).
se considerar masculinas (57,1%) e 28,6% variam Os motivos para essa saída foram para
entre os dois gêneros “quando entram no perso- 3,8% devido a serem expulsos (1 pessoa negra),
nagem”. Das que se autodesignaram transformis- 28,6% por não aguentar brigas, 21,4% por bus-
tas, 1 alegou ser masculina (50%) e 1 varia entre ca de liberdade/privacidade, 19% por casamen-
os dois gêneros (50%). to/união estável, 14,3% por conta de trabalho,
Acerca da cor, 36,7% se disse especificamen- 7,1% porque quis/por preferência. Do total en-
te parda e 35% preta (portanto somados 71,7% na trevistado, 23,3% já viveu em situação de rua,
categoria de negros) e 28,3% branca (tabela 1). principalmente as transexuais (36,7%).

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Diversidade Sexual e de Gênero

Tabela 1. Perfil dos/as Pesquisados

Travesti Transexual Drag Queens Transformistas Outro Total


(em %) (em %) (em %) (em %) (em %) (em %)

branc negr total branc negr total branc negr total branc negr total branc negr total

Proveniência

São Paulo 33,3 58,3 53,3 45,5 31,6 36,7 100,0 40,0 57,1 0 60,0 50,0 0 50,0 50,0 45,0
Gde S. Paulo 66,7 8,3 20,0 9,1 15,8 13,3 0 0 0 0 20,0 16,7 0 50,0 50,0 15,0
outros munic do
0 0 0 18,2 15,8 16,7 0 0 0 0 20,0 16,7 0 0 0 10,0
estado
outros estados SE 0 0 0 9,1 0 3,3 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1,7
Região NE 0 25,0 20,0 18,2 36,8 30,0 0 40,0 28,6 0 0 0 0 0 0 23,3
outras regiões 0 8,3 6,7 0 0 0 0 20,0 14,3 0 0 16,7 0 0 0 5,1

Identidade de Gênero

masculino 0 0 0 0 0 0 50,0 60,0 57,1 0 60,0 50,0 0 50,0 50,0 13,3


feminina 100,0 91,7 93,3 90,9 94,7 93,3 50,0 0 14,3 0 0 0 0 0 0 71,7
varia entre os 2 0 8,3 6,7 9,1 5,3 6,7 0 40,0 28,6 50,0 40,0 50,0 0 50,0 50,0 15,0

Cor

branco 100,0 0 20,0 100,0 0 36,7 100,0 0 28,6 100,0 0 16,7 0 0 0 28,3
preto 0 50,0 40,0 0 47,4 30,0 0 40,0 28,6 0 40,0 33,3 0 100,0 100,0 35,0
pardo 0 50,0 40,0 0 52,6 33,3 0 60,0 42,9 0 60,0 50,0 0 0 0 36,7
tot negr (pret + pard) 0 100,0 80,0 0 100,0 63,3 0 100,0 71,4 0 100,0 83,3 0 100,0 100,0 71,7

Idade

18 a 25 anos 0 50,0 40,0 27,3 36,8 33,3 0 20,0 14,3 0 20,0 16,7 0 50,0 50,0 31,7
26 a 35 anos 66,7 8,3 20,0 36,4 36,8 36,7 0 60,0 57,1 100,0 40,0 50,0 0 50,0 50,0 36,7
36 a 45 anos 33,3 41,7 40,0 18,2 26,3 23,3 0 20,0 14,3 0 40,0 33,3 0 0 0 26,7
+ de 46 anos 0 0 0 18,2 0 6,6 0 0 14,3 0 0 0 0 0 0 5,0

Escolaridade

até Fundam. 0 25,0 20,0 9,1 26, 20,0 0 0 0 0 0,0 0,0 0 0 0 15,0
Fund. a Med 33,3 66,7 60,0 54,6 42,1 46,7 0 60,0 58,2 0 60,0 50,0 0 100,0 100,0 53,3
Médio até freq.
66,7 8,3 20,0 36,4 31,6 33,3 0 40,0 42,9 100,0 40,0 50,0 0 0 0 31,7
Super.

Religião

católica 0 33,3 26,7 27,3 21,1 23,3 50,0 20,0 28,6 100,0 40,0 50,0 0 0 0 26,7
evangélicos 33,3 16,7 20,0 0 0 0 0 20,0 14,3 0 0 0 0 0 0 6,7
afro-bras. 33,3 16,6 20,0 45,5 26,3 33,3 0 60,0 42,9 0 0 0 0 50,0 50,0 28,3
kardecista 33,3 0 6,7 18,2 15,8 16,7 0 0 0 0 0 0 0 0 0 10,0
outra 0 0 0 0 5,3 3,3 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
não possui 0 33,3 26,7 9,1 31,6 23,3 50,0 0 14,3 0 60,0 50,0 0 50,0 50,0 26,7

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Diversidade Sexual e de Gênero

Tabela 2. Situação de Trabalho e Renda


Transexual Drag Queens Transformistas Outro Total
Travesti
(em %) (em %) (em %) (em %) (em %)
(em %)
branc negr total branc negr total branc negr total branc negr total branc negr total

Tem renda? 100,0 91,7 93,3 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 0 100,0 100,0 98,3
Atividade
cabel./maquiad./ 66,7 33,3 40,0 36,4 31,6 33,3 0 0 0 100,0 20,0 33,3 0 100,0 100,0 33,3
estilista/roupas 0 0 0 0 0 0 0 40,0 28,6 0 20,0 16,7 0 0 0 5,0
perform./coreogr. 0 8,3 6,7 9,1 10,5 10,0 0 40,0 28,6 0 20,0 16,7 0 0 0 11,7
comércio e serviços 0 16,7 13,3 18,2 5,3 10,0 50,0 0 14,3 0 40,0 33,3 0 0 0 13,3
saúde 0 8,3 6,7 0 5,3 3,3 0 0 0 0 0 0 0 0 0 3,3
prof. de niv. Sup. 33,3 0 6,7 9,1 5,3 6,7 0 0 0 0 0 0 0 0 0 6,7
exerce + de 1 ativ. 33,3 16,7 20,0 9,1 21,1 16,7 0 0 0 0 0 0 0 0 0 13,3
Trabalha com prostit. 100,0 41,7 33,3 18,2 57,9 43,3 50,0 0 14,3 0 0 0 0 0 0 31,7
Renda mens.
- 1 SM 0 8,3 6,7 18,2 10,5 13,3 0 0 0 0 0 0 0 0 0 8,3
1 a 2 SM 33,3 50,0 46,7 45,5 31,6 36,7 0 40,0 28,6 0 80,0 66,7 0 50,0 50,0 41,7
2 a 4 SM 66,7 8,3 20,0 27,3 21,1 23,3 0 20,0 14,3 100,0 20,0 33,3 0 0 0 21,7
4 a 7 SM 0 16,7 13,3 0 31,6 20,0 0 40,0 28,6 0 0 0 0 0 0 16,7
+ 7 SM 0 0 0 9,1 0 3,3 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1,7
não resp. 0 16,7 13,3 0 0 0 100,0 0 28,6 0 0 0 0 50,0 50,0 10,0

Tabela 3. Situação de Moradia


Travesti Transexual Drag Queens Transformistas Outro Total
(em %) (em %) (em %) (em %) (em %) (em %)

branc negr total branc negr total branc negr total branc negr total branc negr total

Precisou sair famil. 33,3 66,7 60,0 90,9 84,2 86,7 0 60,0 42,9 0,0 60,0 50,0 0 50,0 50,0 70,0
Idade que saiu
0 a 14 anos 0 16,7 22,2 45,5 26,3 19,2 0 0 0 0 0 0 0 0 0 16,7
14 a 17 anos 0 25,0 33,3 0 21,1 34,6 0 20,0 33,3 0 0 0 0 100,0 100,0 33,3
18 a 25 anos 33,3 16,7 33,3 45,5 26,3 38,5 0 20,0 33,3 0 60,0 100,0 0 0 0 40,5
26 a 35 anos 0 8,3 11,1 0 10,5 7,7 0 20,0 33,3 0 0 0 0 0 0 9,5
Motivo saída
expulsão 0 0 0 0 5,3 3,8 0 0 0 0 0 0 0 0 0 2,4
brigas 33,3 16,7 33,3 36,4 15,8 26,9 0 40,0 66,7 0 0 0 0 0 0 28,6
pq quis 0 8,3 11,1 0 5,3 3,8 0 20,0 33,3 0 0 0 0 0 0 7,1
liberdad./privacid. 0 0 0 27,3 21,1 26,9 0 0 0 0 40,0 66,7 0 0 0 21,4
p/trabalh 0 8,3 11,1 9,1 0 15,4 0 0 0 0 20,0 33,3 0 0 0 14,3
casam/uniu 0 16,7 22,2 9,1 21,1 19,2 0 0 0 0 0 0 0 100,0 100,0 19,0
não esp. 0 16,7 22,2 9,1 0 3,8 0 0 0 0 0 0 0 0 0 7,1
Viveu na rua 66,7 83,3 13,3 18,2 47,4 36,7 0 20,0 14,3 0 0 0 0 0 0 23,7

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Diversidade Sexual e de Gênero

a) violências sexuais: 83,3% drag queens e 75% transformistas; a vio-


A primeira relação sexual foi praticada pela lência física na escola foi sofrida por 19,2% das
maioria antes dos 17 anos: por 35% entre 0 a 14 transexuais viveram e 7,7% das travestis. No
anos; 55% entre 14 e 17 anos. Mais da metade trabalho, 61,5% das travestis alegaram ter so-
das travestis afirmaram ter tido sua primeira rela- frido violência verbal; chegaram a ser agredidas
ção sexual entre 0 a 14 anos (60,0%); transexu- fisicamente no trabalho 2 (15,4%) travestis e 1
ais (30%), drag queens (28,6%) e transformistas (3,8%) transexual. Na vida afetiva, 38,5% das
(16,7%). Para 63,3% isso ocorreu entre os 14 e
travestis e 15,4% das transexuais alegaram ter
17 anos; 26,7% das travestis; 57,1% das drags
sofrido algum tipo de violência verbal; chegan-
e de 66,7% das transformistas. Ou seja, traves-
do a violência física para 2 (15,4%) travestis e
tis iniciaram a sua vida sexual proporcionalmente
1 (3,8%) transexual. Na vida social, 92,3% das
mais cedo que os demais grupos.
travestis e 84,6% das transexuais alegaram ter
Quase ¼ do total, 23,3% alegou ter sofrido
violência sexual: 26,7% das travestis, 23,3% das sofrido violência verbal e 100% das drag que-
transexuais e 28,6% das drag queens. Essa vio- ens e transformistas alegram já ter sofrido; es-
lência ocorreu para 42,9% entre os 0 e 14 anos, sa chegou a ser física para 38,5% das traves-
para 50% entre 14 e 17 anos e para 7,1% entre tis e 30,8% e para 50,0% das drag queens. Em
18 e 25 anos; totalizando 92,9% dos casos de serviços públicos e privados, 57,7% das tran-
violência sexual ocorridas na fase da infância ou sexuais e 46,2% das travestis alegaram ter so-
da adolescência. frido violência verbal; 83,3% das drag queens.
Com relação à cor, a violência sexual atingiu Com autoridades e polícia, 53,8% das traves-
33,3% das brancas e 37,5% das negras na infân- tis afirmaram ter sofrido algum tipo de violência
cia; 33,3% das brancas e 25,0% das negras na verbal; 42,3% das transexuais, 33,3% das drag
adolescência; e 33,3% das brancas e 37,5% das queens e 50% transformistas; essas violências
negras na vida adulta. chegaram a ser físicas para 23,1% das travestis
e 7,7% das transexuais.
b) violências de gênero:
Sobre o perfil do agressor, 66,7% respon-
Quanto às situações de violência de gêne-
ro sofridas, 85% afirmou ter tido essa vivência, deu que são perpetuadas por homens e mulhe-
principalmente verbal, que atingiu: 86,7% das tra- res e provocaram sentimentos de dor, tristeza,
vestis e transexuais, igualmente; 85,7% das drag desconforto ou humilhação (para 56,9%); indife-
queens e 66,7% das transformistas (tabela 4). rença (referido por 31,3%), frustração e impotên-
As manifestações de violência foram sofri- cia (por 31,3%), rejeição (por 18,8%) e culpa (por
das na vida social em geral, mas também e prin- 12,5%). As formas de defesa frente a essas vio-
cipalmente na escola e no ambiente de traba- lências foram principalmente manifestações ver-
lho. Na família, 57,7% das transexuais e 38,5% bais (adotadas por 74,5%), mas também físicas
das travestis alegaram ter sofrido violência ver- (adotadas por 25,5% do total), além de abandono
bal de gênero; drag queens (33,3%) e transfor- do local de ocorrência (por 33,3%). Não reagiram
mistas (50%) também; a violência física na fa- 52,9% e 1 (1,7%) transexual entrevistada alegou
mília atingiu 11,5% das transexuais e 7,7% das ter tentado suicídio. Frente à violência 33,4% ale-
travestis. Na escola, 76,9% das travestis e tran- gou ter feito denúncias, 29,4% afirmando que es-
sexuais, igualmente, sofreram violência verbal; sas deram resultado.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Tabela 4. Violências de Gênero Sofridas

Travesti Transexual Drag Queens Transformistas Outro Total


(em %) (em %) (em %) (em %) (em %) (em %)

branc negr total branc negr total branc negr total branc negr total branc negr total

Sofreu violência
100,0 83,3 86,7 90,9 84,2 86,7 50,0 100,0 85,7 0 80,0 66,7 0 100,0 100,0 85,0
Gênero?
Sexo do agressor

homens 0 16,7 15,4 9,1 5,3 7,7 0 20,0 16,7 0 0 0 0 0 0 9,8


mulheres 0 0 0 0 5,3 3,8 0 0 0 0 0 0 0 0 0 2,0
Ambos os sexos 66,7 58,3 69,2 72,7 47,4 65,4 50,0 40,0 50,0 0 60,0 75,0 0 100,0 100,0 66,7

Tipo Viol.

verbal na escola 100,0 58,3 76,9 63,6 68,4 76,9 50,0 80,0 83,3 0 60,0 75,0 0 50,0 50,0 76,5
verbal na família 33,3 33,3 38,5 54,5 47,4 57,7 0 40,0 33,3 0 40,0 50,0 0 50,0 50,0 49,0
verbal trabalho 33,3 58,3 61,5 36,4 52,6 53,8 50,0 0 16,7 0 20,0 25,0 0 0 0 47,1
verbal na vida soc. 66,7 83,3 92,3 72,7 73,7 84,6 50,0 100,0 100,0 0 80,0 100,0 0 100,0 100,0 90,2
verbal na vida
33,3 33,3 38,5 27,3 5,3 15,4 0 0 0 0 0 0 0 0 0 17,6
afetiva
verbal em serv.
66,7 33,3 46,2 45,5 52,6 57,7 50,0 80,0 83,3 0 20,0 25,0 0 50,0 50,0 54,9
públi. e priv.
verbal c/autorid.
33,3 50,0 53,8 45,5 31,6 42,3 50,0 20,0 33,3 0 40,0 50,0 0 0 0 43,1
polícia
física na escola 33,3 83,3 7,7 27,3 10,5 19,2 0 0 0 0 0 0 0 0 0 13,7

física na família 0 8,3 7,7 9,1 10,5 11,5 0 0 0 0 0 0 0 0 0 7,8

física no trabalho 33,3 8,3 15,4 9,1 0 3,8 0 0 0 0 0 0 0 0 0 5,9

física na vida soc. 33,3 33,3 38,5 45,5 15,8 30,8 50,0 40,0 50,0 0 20,0 25,0 0 50,0 50,0 35,3

física na vida afet. 0 16,7 15,4 9,1 0 3,8 50,0 0 0 0 0 0 0 0 0 5,9


física em serv.
0 0 0 0 5,3 3,8 0 20,0 16,7 0 0 0 0 0 0 3,9
Públ. e priv.
física c/autoridades
0 25,0 23,1 18,2 84,2 7,7 0 0 0 0 0 0 0 0 0 9,8
/polícia
Outro tipo 33,3 8,3 15,4 9,1 84,2 3,8 0 0 0 0 0 0 0 0 0 5,9

Sensação

dor, tristeza, humilh. 33,3 50,0 53,8 72,7 47,4 65,4 50,0 60,0 66,7 0 20,0 25 0 0 0 56,9
raiva, revolta,
33,3 16,7 23,1 36,4 63,2 61,5 0 60,0 50 0 60,0 75 0 100,0 100,0 52,9
indignaç.
Outro sentim. 66,7 33,3 46,2 18,2 15,8 19,2 50,0 40,0 50 0 20,0 25 0 50,0 50,0 31,4

Reação

verbal 66,7 75,0 84,6 63,6 57,9 69,2 50,0 60,0 66,7 0 60,0 75,0 0 100,0 100,0 74,5

física 0 58,3 23,1 27,3 21,1 26,9 50,0 20,0 33,3 0 0 0 0 50,0 50,0 25,5

abandondo local 66,7 16,7 30,8 18,2 42,1 38,5 0 40,0 33,3 0 0 0 0 50,0 50,0 33,3

outra 33,3 8,3 15,4 18,2 10,5 15,4 50,0 20,0 16,7 0 0 0 0 0 0 13,7

Fez denúncia 0 25,0 23,1 18,2 36,8 34,6 0 60,0 50,0 0 20,0 25,0 0 50,0 50,0 33,3

Denúncia deu result. 0 0 0 0 15,8 33,3 0 40,0 66,7 0 0 0 0 0 0 29,4

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Diversidade Sexual e de Gênero

c) violências raciais: Relativo à defesa frente às inúmeras vio-


Das 60 entrevistadas, 31,7% declarou ter so- lências, 73,7% afirmou ter se defendido verbal-
frido violências raciais, 66,7% se refere às pessoas mente e 10,5% fisicamente. Verbalmente, 100%
pretas e 22,7% pardas (as duas categorias agrupa- das travestis e drag queens alegou ter se defen-
das nas tabelas enquanto pessoas negras). Nenhu- dido; 55,6% das transexuais e 50,0% das trans-
ma pessoa branca sofreu preconceito quanto à cor. formistas. Já fisicamente, 1 (25,0%) travesti e 1
Quanto à autodefinição, 47,4% das tran- (11,1%) transexual defenderam-se; 26,3% alegou
sexuais negras afirmaram ter sofrido racismo, ter saído do local (33,3% das transexuais, 25,0%
33,3% das travestis negras, 40,0% dos trans- das travestis e 50,0% das transformistas) e não
formistas e 40,0% das drag queens. O racismo reagiram 42,1%: 55% das travestis e 50,0% das
está presente em várias instituições sociais: na transformistas.
família, 5,3% afirmou ter sofrido violência verbal Das pessoas já sofreram racismo, 31,6% (1
por este motivo, mas nenhuma chegou a ter ex- transexual, 33,3%; e 1 transformista, 100%) ale-
periência de violência física; na escola, 52,6% garam ter denunciado a violência e ambas encon-
sofreu violência verbal e também não houve vio- traram resultado na denúncia.
lência física racial; no trabalho, 31,6% afirmou Com todas essas vivências, 93,3% dos 60
ter sofrido violência verbal devido ao racismo; entrevistados no levantamento declarou conside-
na vida social, 78,9% sofreu violência verbal por rar o Brasil um país racista (93,3% das travestis,
racismo e 10,5% alegou ter sofrido violência físi- 93,3% das transexuais, 85,7% das drags e 100%
ca; na vida afetiva, ninguém alegou ter sofrido das transformistas).
violência por racismo; em serviços públicos ou Além das violências motivadas diretamen-
privados, 21,1% sofreu violência racial verbal; te por questões raciais, a pesquisa comparou
e de autoridades e a Polícia, 15,8% sofreram as ocorrências quanto à cor, observando maior
violência verbal e 5,3% física. Essas violências regulamentação do nome social entre os ne-
suscitaram sentimentos dor, tristeza, descon- gros, apesar de terem menor escolaridade, ren-
forto ou humilhação para 47,4%, raiva, revolta da, mais do que o dobro de atuação na prosti-
ou indignação para 63,2% e outro sentimento tuição, saída da família de origem mais cedo,
para 26,3%, principalmente frustração e impo- assim como o início de vida sexual e a maior
tência (60%) e indiferença (40%) (tabela 5). vivência de morar na rua (tabela 6).

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Diversidade Sexual e de Gênero

Tabela 5. Violências Raciais Sofridas

Travesti Transexual Drag Queens Transformistas Outro Total


(em %) (em %) (em %) (em %) (em %) (em %)

branc negr total branc negr total branc negr total branc negr total branc negr total

Sofreu Viol. Racial 0 33,3 26,7 0 47,4 30,0 0 40,0 28,6 0 40,0 33,3 0 100,0 100,0 31,7
Cor do Agressor
branco 0 0 0 0 10,5 25,0 0 0 0 0 40,0 100,0 0 50,0 50,0 29,4
preto 0 0 0 0 10,5 25,0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 11,8
pardo 0 0 0 0 5,3 12,5 0 0 0 0 0 0 0 0 0 5,9
indiferent 0 25,0 100,0 0 15,8 37,5 0 40,0 100,0 0 0 0 0 50,0 50,0 52,9
Tipo Viol.
verbal escola 0 16,7 50 0 21,1 44,4 0 40,0 100,0 0 40,0 100,0 0 0 0 52,6
verbal família 0 33,3 0 0 0 0 0 20,0 50 0 0 0 0 0 0 5,3
verbal trabalh 0 8,3 25 0 15,8 33,3 0 20,0 50 0 0 0 0 50,0 50 31,6
verbal vida soc. 0 33,3 100,0 0 31,6 66,7 0 20,0 100,0 0 20,0 50 0 100,0 100,0 78,9
verbal vida afet. 0 33,3 0 0 47,4 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
verbal em serviços
0 33,3 0 0 10,5 22,2 0 0 0 0 20,0 50 0 50,0 50 21,1
públicos /privados
verbal autor/ políc 0 8,3 25 0 5,3 11,1 0 20,0 50 0 0 0 0 0 0 15,8
física na escola 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
física na família 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
física no trabalho 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
física na vida soc 0 8,3 25 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 50,0 50,0 10,5
física na vida afet 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
física em serviços
0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
públ. ou priv.
física autorid e
0 8,3 25 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 5,3
polícia
outro tipo 0 0 0 0 0 0 0 20,0 50,0 0 0 0 0 0 0 5,3
Sensação
dor, tristeza,
0 16,7 50 0 26,3 55,6 0 20,0 50 0 20,0 50 0 0 0 47,4
humilhaç
raiva, revolta,
0 25,0 75 0 26,3 55,6 0 20,0 50 0 40,0 100,0 0 100,0 100,0 68,4
indignaç
outro sentim 0 16,7 50,0 0 5,3 11,1 0 20,0 50,0 0 0 0 0 50,0 50,0 26,3
Reação
Não reagiu 0 16,7 50,0 0 26,3 55,6 0 0 0 0 20,0 50,0 0 0 0 42,1
Defesa verbal 0 33,3 100,0 0 26,3 55,6 0 40,0 100,0 0 20,0 50,0 0 100,0 100,0 73,7
Defesa física 0 8,3 25,0 0 5,3 11,1 0 40,0 0 0 0 0 0 0 0 10,5
abandonou o local 0 8,3 25,0 0 15,8 33,3 0 0 0 0 20,0 50,0 0 0 0 26,3
Fez denúncia 0 8,3 25,0 0 15,8 33,3 0 20,0 50,0 0 0 0 0 50,0 50,0 31,6
Denúncia deu result. 0 0 0 0 5,3 33,3 0 20,0 100,0 0 0 0 0 0 0 33,3

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Diversidade Sexual e de Gênero

Tabela 6. Diferença entre cor nas vivências trans praticamente uma articulação de ocorrências de
violência, que ora dobra a exposição de negros a
Negros
Brancos elas, ora triplica (gráfico 1).
(pretos + pardos)
(em %)
(em %)

Tiveram que sair da família de


64,7 72,1
origem
Discussão
Saída da família antes dos 14 anos 0 22,6
Pereira23,24 aponta as singularidades de ser
Residência atual com amigos 17,6 27,9
Ensino Superior Completo ou
Queer em um país como o Brasil, em que o con-
47,0 25,6
incompleto texto histórico e social é diferente do europeu,
Trabalho com prostituição 17,6 37,2 uma vez que envolve questões de raça, classe,
Profissões de nível superior 11,8 4,7
sexo e colonialidade, entre outras. Assim, os pro-
Religião evangélica 0 7,0
cessos de corporificação e subjetivação de mu-
Não possuem religião 11,8 32,6
lheres trans e travestis em nosso país são espe-
1ª relação sexual antes dos 14 anos 17,6 41,9
cíficos. Ao propor o conceito de colonialidade, Pe-
Sofreu violência sexual 35,3 18,6
reira14 aponta que o racismo se une ao sexismo
Violência verbal de gênero na vida
94,6 90,2 no processo de controle e estratégia para rebai-
social
Violência verbal de gênero na vida
13,5 17,6
xar populações e regiões do mundo, necessitan-
afetiva
do do processo de “decolonização” para a con-
Violência física de gênero na escola 8,1 13,7
traposição da lógica da colonialidade vivida em
Violência física de gênero no trabalho 2,7 5,9
Violência física de gênero na
determinada localidade e suas consequências.
50,0 29,7
vida social Segundo Kraiczyk25 (2014), considerar a
Violência física de gênero em
serviços públicos e privados
0 5,4 questão da raça/cor é fundamental para verifica-
Violência física de gênero por ção das vulnerabilidades vividas por transexuais.
14,3 8,1
autoridade ou policiais
O “2º Relatório Sobre a Violência Homofóbica”26
Fez denúncia da violência de gênero 14,3 40,5
aponta que negros e pardos totalizam 40,55%
Parceiros afetivos são exclusivamente
brancos branca
11,8 23,3 das vítimas de homofobia, seguido por brancos
Parceiros eventuais são
5,9 14,0
que somam 26,84% e que tais vítimas são prin-
exclusivamente brancos
cipalmente (61,16% dos casos) jovens entre 15 e
Travestis com vivência em situação
66,7 83,3
de rua 29 anos; ou seja, o perfil de incidência da violên-
Transexuais com vivência em
18,0 47,4 cia atinge transgêneros jovens e negros.
situação de rua
Assim, usar as categorias de cor/raça no
Brasil é, como afirma Moore27, dar acesso a um
Isso indica vivências distintas entre os gru- marcador social e estrutural que define e regula
pos de trans brancos e negros, demostrando as relações sociais, políticas, econômicas e cul-
que há uma situação de desvantagem para os turais entre grupos e que constituem historica-
últimos com relação à situação socioeconômica mente uma hierarquização e um estigma constru-
que se inicia pela saída precoce da família. Além ídos socialmente desde a escravidão28. Embora o
dessa violência inicial de desproteção familiar, uso da categoria raça tenha tido um enfoque ra-
sofrem mais violências físicas devido ao gênero cista no início do século XX21,29 para definir o “ser
na escola, no trabalho, em instituições públicas e negro” e “ser branco” e promover políticas de
privadas, do que os trans brancos. Isso acarreta branqueamento populacional, foi ressignificado a

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Diversidade Sexual e de Gênero

partir de 1978 pelo Movimento Negro Unificado28, prostituição, além de vivências posteriores, como
passando a servir como indicador e promover a terem estado mais em situação de rua.
luta política contra as desigualdades sociais e se Essa articulação entre racismo e sexismo,
contrapor à ideia de “democracia racial” proferida como constata Gonzales20, também produz efei-
por Gilberto Freyre30. tos violentos sobre a mulher negra. No caso das
Nesse sentido, verificar o racismo, confor- trans negras, a dimensão da violência sexista é
me Gomes21 é notar comportamentos de aversão transformada em transfobia. A objetificação se-
a pessoas devido à aparência física, cor da pele, xual do feminino, reduzindo a pessoa a partir
tipo de cabelo, etc., onde se pressupõe a ideia deste gênero, vivida fortemente pelas mulheres
de superioridade de uma raça (a branca) sobre a negras no Brasil, vai além, pois, como aponta
outra (negra). Essa manifestação, segundo essa Moira31, junto absorve o “cissexismo”X, invisibili-
autora, pode se dar na forma individual, incidindo zando as necessidades da pessoa trans, como
diretamente contra as pessoas, conforme obser- de usar banheiro feminino, ser tratada no femini-
vamos nos dados levantados entre as trans ne- no, ter sua identidade considerada e respeitada,
gras, mas também de forma institucional, quando exigindo-lhe cirurgias e adaptações do corpo para
se relaciona a práticas fomentadas pelo Estado ser enquadrada ao padrão binário, entre outras.
ou por seus representantes, como observamos Ou seja, mulheres trans são vítimas do sexismo
com relação a violências raciais sofridas junto a e do cissexismo por não se alinharem, em suas
instituições públicas e/ou autoridades, incluindo condutas e estéticas, ao seu papel de gênero.
a Polícia.
Se conectadas, as questões de raça, gênero
e classe possuem uma articulação indissociável Considerações finais
de opressões que incidem sobre vários segmen- Na vivência de uma trans negra, as experi-
tos sociais18. Isso não é diferente no segmento ências sociais e culturais se pronunciam em di-
de mulheres transexuais e travestis negras que mensões específicas que são permeadas pela
abordadas sob a ótica interseccional exibe sua transfobia e pelo racismo, enquanto fenômenos
maior vulnerabilidade. Reunindo discriminações, perpetrados não só pela sociedade, mas tam-
as trans e travestis negras vivem privações para bém pelo Estado. Neste contexto, fazer parte
se inserir no mercado de trabalho e no mundo desse segmento no Brasil é ter uma vida marca-
acadêmico; geralmente são rejeitadas pela famí- da por negações, tanto com relação à identidade
lia e não possuem apoio do Estado, da socieda- (poder ser quem é), como em relação ao acesso
de e da escola por conta de sua condição, uma a direitos básicos que deveriam ser, na prática,
vez que sua forma de ser e suas identidades de garantidos pela Constituição Federal, indepen-
gênero não são respeitadas, como demonstra a dentemente de raça, classe social e, também, de
pesquisa. Essa violência de gênero, somada à sexualidade e gênero.
violência racial se constituem como um fator de A articulação do racismo com o sexismo
agravamento, uma vez que as condições de vida produz efeitos nas trans negras, aliando-se à
iniciais também são mais desvantajosas do que
as vividas pelas brancas, visto que há maior ex-
pulsão de casa, o menor nível escolar e salarial X
Termo que denomina a ideologia predominante de cisgêneros, aqueles
que têm seus gêneros correspondentes ao sexo biológico, como socialmente
e o início mais cedo de relações sexuais, maior se espera na cultura normativa binária de sexo-gênero.

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Diversidade Sexual e de Gênero

expectativa do cissexismo dominante. Os pa- consolidadas enquanto mudança do destino des-


drões binários de cor e gênero constituídos his- sas pessoas, dando a oportunidade que mulhe-
toricamente na sociedade ocidental ainda se en- res trans negras sejam atendidas em suas espe-
contram vigentes inviabilizando a sua plena exis- cificidades e diferenças e inseridas social, cultu-
tência e cidadania. Assim, a estrutura de um país ral e politicamente, permitindo por fim a supera-
patriarcal e racista como o Brasil se sobressai ção do racismo, da transfobia e do cissexismo
como um componente de permanente violência existentes.
entre as trans negras. A violência da desvanta- Por isso, existir enquanto mulher transexu-
gem socioeconômica de que partem, somada à al ou travesti negra é resistir, é travar uma luta
grande violência de gênero e de raça que sofrem constante pela sobrevivência e pela expressão
durante a adolescência são cumulativas para a de seus corpos; é permanecer enquanto uma
exposição a violências vividas quando saem para afronta à norma de gênero e combater continu-
o meio social: violência verbal, física, psicológica, amente grupos sociais mais conservadores que
abusos sexuais, exposição precoce a uma vida lhes querem extinguir e, hipócrita e contraditoria-
sexual de riscos, prostituição, estupros, escola- mente, explorar suas vidas e seus corpos.
ridade e renda mais baixas, atingindo qualquer
possibilidade de plena cidadania.
Trazer essa discussão à tona é abrir cami-
nho para pensar identidades constantemente
Referências
violentadas e deslegitimadas, ainda que a sub-
1. Facchini R. Histórico da luta de LGBT no Brasil. In. Conse-
versão que fazem a esses modelos (enquanto
lho Regional de Psicologia de São Paulo. Caderno temático
indivíduo fora da “normalidade”) abra um leque
nº 11 - Psicologia e diversidade sexual. São Paulo: CRP;
de possibilidades de existência. É nesse senti- 2011. [acesso em: 19 abr 2017]. Disponível em: http://
do que os estudos Queer se fazem importantes www.crpsp.org.br/portal/comunicacao/cadernos_temati-
no contexto brasileiro, uma vez que permitem o cos/11/frames/fr_historico.aspx
questionamento de todas as ações que criam 2. Louro GL. (org.). O corpo educado: pedagogias da sexua-
normas e hierarquias, mantendo relações de po- lidade. Belo Horizonte: Autêntica; 1999.
3. The Joint United Nations Programme on HIV/AIDS (UNAI-
der e consequentemente as desigualdades.
DS). Manual de Comunicação LGBT. Genebra: UNAIDS;
Como modificar essa condição em que a fa-
2015.
mília e a escola – como instituições fundamen-
4. Greco D. Trinta anos de enfrentamento à epidemia da
tais para a formação dos indivíduos e com poder Aids no Brasil, 1985-2015. Ciência & Saúde Coletiva,
de determinar o início das relações de sociabili- 21(5):1553-1564, 2016.
dade e estratégias de sobrevivência a serem se- 5. Butler J. Corpos que pesam: sobre os limites discursi-
guidas – lhes são desfavoráveis, juntamente às vos do ‘sexo. In: Louro GL. (org.). O corpo educado: peda-
violências da sociedade mais ampla e, inclusive, gogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica; 1999. p.
151-172.
do Estado, que lhes determinam espaços sociais
6. Foucault M. A história da sexualidade 1: a vontade de
de existência informal e de prostituição?
saber. Ed 11. Rio de Janeiro: Graal; 1993.
A resposta está em políticas públicas e no
7. Seidman S. Queer theory - Sociology. Cambridge: Bla-
entendimento da existência dessas identidades. ckwell; 1996.
Políticas que, se realmente forem democráticas, 8. Silva RC, Schor N. As primeiras respostas à epidemia
devem percorrer um longo caminho até serem de aids no Brasil: influências dos conceitos de gênero,

– vol. 19, n. 2 – dez. 2018.


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Diversidade Sexual e de Gênero

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Diversidade Sexual e de Gênero

Da invisibilidade ao reconhecimento: experiência de roda


de conversa e validação da bissexualidade em São Paulo
From invisibility to recognition: experience of conversation and validation of bisexuality in São Paulo

Cinthya Giselle Coutinho Oliveira dos SantosI, Natasha AvitalII, Santiago de Paiva BernardesIII,
Wesley Torres Rodrigues FerreiraIV

Resumo Abstract

O presente artigo trata sobre a realização da “Roda de Validação This article discuss the “Circle of Validation of Bisexual Expe-
de Experiências Bissexuais” realizada em São Paulo durante oito riences”, that happened in São Paulo during eight months, and
meses, que se utilizou de técnicas de crochê como pano de fundo used crochet as a facilitator. The purpouse of the activity was to
para facilitação dos encontros. A roda de conversa surgiu com o in- initiate discussion of the lived experiences, needs, positive and
tuito de levantar uma maior discussão sobre as vivências, deman- negative aspects of participant’s experiences, besides allowing
das, aspectos positivos e negativos das experiências relatadas, union and strengthening of this population, in a place where they
além de proporcionar união e fortalecimento da população presen- felt welcomed and comfortable to freely expose individual as-
te em um espaço onde se sentissem acolhidos e confortáveis para pects, seen as the experience of each participant, but seeking
expor livremente aspectos individuais, entendidos como vivência to understand if there are and what are the social issues behind
de cada participante, porém buscando compreender se há e quais these moments.
são as questões sociais por trás destes momentos.
Keywords: Bisexuality; Validation; Conversation circle.
Palavras-chave: Bissexualidade; Validação; Roda de conversa.

Introdução identidades não monossexuais em um único ter-

U
mo, facilitando assim, a apresentação deste arti-
tilizaremos o conceito de “monodissidên-
go. Para os sujeitos que se identificam com cada
cia” – termo que surgiu dentro do ativis-
uma destas sexualidades, entende-se que a bis-
mo bissexual para definir as orientações
sexualidade é a atração pelo seu próprio gênero
que se atraem por mais de um gênero1 – para
e outros gêneros, enquanto que a pansexualida-
citar a “pan”V, “poli”VI, bissexualidade e outras
de é a atração por pessoas independentemente
de seu sexo ou identidade de gênero e a polise-
I
Cinthya Giselle Coutinho Oliveira dos Santos (psi.cinthyasantos@gmail. xualidade é a atração por múltiplos gêneros. O
com) é bacharel em Psicologia pela
II
Natasha Avital (jefreylidel@hotmail.com) é bacharel em Direito pela Univer- que há em comum entre estas três orientações é
sidade Católica de Santos (UNISANTOS), Técnica Administrativa na Procura-
doria da República em Santos e moderadora do coletivo Bi-Sides. que o sexo e a identidade de gênero podem, ou
III
Santiago de Paiva Bernardes (santiagodepaiva@gmail.com) é bacharel em não, ser um fator que discrimine o relacionamen-
Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP),
Psicólogo do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) de Campi- to com outras pessoas2.
nas e moderador do coletivo Bi-Sides.
IV
Wesley Torres Rodrigues Ferreira (wesleytorresr@hotmail.com) é bacharel
Por terem a característica de não se atrair
em Psicologia pela Universidade Paulista (UNIP), Psicoterapeuta em São Pau-
lo e integrante do coletivo Bi-Sides.
por apenas um gênero, os monodissidentes fre-
V
Pansexualidade é a atração afetiva e/ou sexual por todos os gêneros. quentemente sofrem preconceito por pessoas
VI
Polissexualidade é a atração afetiva e/ou sexual por vários gêneros e não tanto homo, quanto heterossexuais. De modo ge-
tem relação com o termo “poliamor”, que é a relação amorosa de duas ou
mais pessoas simultaneamente. ral, indivíduos monossexuais enxergam os pan,

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Diversidade Sexual e de Gênero

poli e bissexuais como pessoas em transição de do papel de afeminado apoiando-se no fato de


uma sexualidade para outra, ou como em bus- que não é necessário se assumir heterossexual
ca de aceitação social em função da atração por em um contexto heteronormativo5. Já as mulhe-
pessoas do sexo oposto. res bissexuais têm a sua sexualidade fetichizada
Este preconceito que bissexuais sofrem é até mesmo em estudos científicos, como os re-
denominado “bifobia”. De acordo com Oliveira, sultados da pesquisa publicada por Rieger e co-
Machado e Neves3, a bifobia, assim como a les- legas6, que apontou que todas as mulheres são
bofobia e a homofobia, é um conjunto de sen- bissexuais, apontando o tom machista da discus-
timentos negativos e medos irracionais que se são deste, uma vez que o corpo feminino se torna
tornam nítidos por manifestar desprezo, incômo- alvo de fantasias como o ménage à trois (relação
do, antipatia, e outras atitudes discriminatórias e sexual a três), em que se idealiza principalmen-
hostis. Especificamente falando sobre a bifobia, te o homem como dominador de duas mulheres
esta se apresenta também na forma de estereó- submissas.
tipos e julgamentos que consideram o indivíduo Também será explorada como a exclusão
que se identifica bi como promíscuo, portador/ e a invisibilidade dessa população bissexual se
vetor de IST (infecções sexualmente transmis- dá, não somente do ponto de vista do senso co-
síveis), indeciso e infiel. É comum que pessoas mum, mas também com profissionais. Nos aten-
evitem relacionamentos com os bissexuais por dimentos em Psicologia e Psiquiatria, por exem-
achar que serão traídos com pessoas do sexo plo, a bissexualidade ainda é muito confundida
oposto ou do mesmo sexo3. com bipolaridade, transtorno borderline e outros
Por conta do preconceito vivido, indivíduos diagnósticos relacionados a um senso instável
monodissidentes sofrem constantemente o apa- de identidade e comportamento sexual de risco.
gamento de suas experiências, sendo diminuídos Partindo desses pressupostos, este artigo
ou excluídos, mesmo dentro da comunidade lébi- visa elucidar de forma prática as contribuições
ca, gay, bissexual, trans, queer e outras sexuali- da “roda de validação de experiência para pes-
dades (LGBTQ+). Nela, existe uma prática homo- soas bissexuais”, cujo intuito de criação consti-
normativa em que os indivíduos que expressam tui-se em lutar contra a invisibilidade através da
desejo sexual por pessoas do gênero oposto so- legitimação desta sexualidade como uma orien-
frem exclusão, o que acaba reforçando a monos- tação válida e existente, trocar experiências de
sexualidade em detrimento da monodissidência apagamento a fim de reconhecer quando estas
dentro da comunidade4. Por exemplo, até certo ocorrem, criar vínculos de apoio entre os partici-
tempo, a sigla para representar pessoas não he- pantes, amenizar sofrimentos relacionados à pró-
terossexuais era “GLS” (gays, lésbicas e simpati- pria sexualidade e trazer temas pouco discutidos
zantes), sendo só depois incluída a bissexualida- dentro e fora da comunidade LGBTQ+.
de como uma sexualidade específica e não como
um meio-termo.
Conforme apontado por Machado, Alves e Método-Proposta
Dickson5, um dos aspectos da invisibilidade bis- A Roda de Conversa e Validação das Expe-
sexual está relacionado a alguns papéis de gêne- riências Bissexuais foi proposta por integrantes
ro. Por exemplo, os homens bissexuais são con- do coletivo Bi-sides e surgiu com a necessidade
siderados gays que não se assumiram para fugir de reconhecimento e validação das orientações

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Diversidade Sexual e de Gênero

sexuais monodissidentes, para que os participan- dos encontros. Isso tornou o espaço acolhedor
tes pudessem compreender sua própria orien- também para os que buscavam entender mais
tação como válida frente ao contexto social de acerca do assunto e expressar a sua experiência
apagamento e exclusão em que comumente está enquanto monossexual em proximidade com as
inserida. vivências monodissidentes.
Os encontros desta roda foram realizados Devido a esse tipo de funcionamento mais
quinzenalmente entre os meses de novembro de liberal, a roda de validação não contava com um
2017 e junho de 2018, no Centro Cultural de São número fixo de participantes por encontro. Em-
Paulo, das 14:00 às 17:30 horas. A divulgação bora não houvesse nenhuma restrição etária. Os
dos encontros era feita por eventos em redes so- participantes vinham de todas as regiões de São
ciais como o Facebook, através do site do coleti- Paulo, inclusive alguns da região metropolitana ou
vo Bi-Sides e por indicação de amigos. Para faci- cidades do interior, como Campinas, entre outras.
litar o reconhecimento do grupo, deixava-se uma O crochê foi utilizado como “pano de fundo”
bandeira bissexual no centro da roda. Apesar de para a troca de experiências, sendo que este não
ser chamada de “roda de validação das experiên- era um recurso obrigatório para a participação na
cias bissexuais”, a roda era aberta para qualquer roda. Quem não conhecesse a técnica poderia
pessoa monodissidente – ou seja, que se difere aprender a fazer com o material disponibilizado
da orientação voltada a apenas um gênero, caso (lã e agulhas), caso tivesse interesse. Em alguns
da homo e heterossexualidade. momentos, o crochê serviu como analogia para
A roda de conversa não precisava de inscri- as vivências ou como mecanismo para aliviar a
ção, nem de sinalização prévia dos participantes, tensão de alguns debates. Com o decorrer das
funcionando de “portas-abertas”, de modo que rodas, os participantes começavam a trazer su-
qualquer pessoa que se interessasse pudesse as próprias técnicas, como desenho, criação de
participar, porém sendo ressaltado que o espaço pulseiras, brincos e outras peças, tornando as
seria de troca e validação de experiências para atividades no grupo mais diversificadas.
pessoas monodissidentes, de modo que essas Nenhum dos participantes era obrigado a
se sentissem acolhidas e representadas, além expor suas vivências, visto que o pressuposto é
de livres para expressar suas vivências sem jul- que cada pessoa tem uma relação diferente com
gamentos morais ou preconceitos. as suas experiências e abordar certos assuntos
A princípio, a proposta foi que a roda de pode gerar sofrimentos. Dessa forma, quando as
validação fosse fechada com participação ex- pessoas sentiam-se confortáveis para falar e “se
clusiva de pessoas monodissidentes que não abrir” acerca de determinado tema, lhes era da-
pudessem pagar por um acompanhamento tera- do espaço para a discussão do tópico, além da
pêutico ou espaços semelhantes, porém no de- possibilidade de realizar, junto com o grupo, cor-
correr, decidiu-se que funcionaria em esquema relações com os prováveis motivos da ocorrência
aberto. Portanto, em alguns momentos houve a de tal situação, permitindo que fossem levanta-
participação de pessoas monossexuais que co- dos eventos semelhantes convividos por outros
meçaram a participar e se sentiram confortáveis integrantes que serviriam de contraponto ou não
nos encontros por enxergar ali um momento de para esclarecer e evidenciar detalhes e definir a
troca, sem apresentar comportamentos que pu- similaridade de vivências e situações às quais os
dessem interferir de modo negativo no objetivo bissexuais são expostos.

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O grupo tinha total liberdade para propor sem necessidade de inscrição, preenchimento de
assuntos a serem debatidos, porém, quando a formulários ou burocracia e sem o uso de uma
proposta temática não surgia espontaneamente linha teórica específica – visto que contou com
nos participantes, os mediadores dos encontros mais de um mediador – explicitando que técnicas
facilitavam a conversa propondo alguns temas. de manejo de grupo comuns podem ser aplicadas
Em um grupo como esse, o mediador tem a sem grandes dificuldades, independente das con-
preocupação de se ater a tais detalhes para poder cepções teóricas de seus organizadores, sendo
unir as semelhanças e diferenças do que for rela- portanto um projeto de fácil aplicação, reprodu-
tado e, de forma elucidativa e por vezes didática, ção e continuidade.
evidenciar se tais eventos podem ser desencade-
ados por um mesmo sintoma indicativo (como a
bifobia, a sobrecarga das expectativas dos pais Descrição
sobre os filhos, a relação entre machismo e a LGB- A Roda de Conversa e Validação das Experi-
TQfobia, entre outros). Além disso, verifica a pos- ências Bissexuais teve uma alcance notável, com
sibilidade de exemplificar sobre qual tema o as- momentos de participação de 6 pessoas, outros
sunto pautado se refere, nos diferentes contextos de 30 integrantes, numa média de 12 participan-
(relacionamentos amorosos, trabalho, estudos, tes por encontro, com idades de 20 a 40 anos
família, etc.) para esclarecer formas de lidar com – demonstrando o interesse de participantes de-
cada um desses contextos, em dadas situações e vido provavelmente à pouca existência de espa-
como cada um dos participantes da roda de con- ços que contam com a presença de profissionais
versa podem lidar com a mesma situação eviden- capacitados para falar de bissexualidade e mono-
ciando que não existe uma maneira certa de agir dissidência e a manejar as discussões de modo
e reagir, mas sim diversas maneiras, sendo todas que os preconceitos interiorizados e os eventos
caminhos possíveis que podem estar de acordo vividos de discriminação frente a essas práticas
com a necessidade e a vontade do indivíduo. fossem debatidos de maneira saudável, questio-
É necessário ressaltar que, no início da for- nando a forma como essa discriminação ocorreu
mação das rodas, é comum as pessoas não es- e foi constituída.
tarem dispostas a se expressar, principalmente No decorrer dos encontros foi possível cons-
por não conhecerem o ambiente e não saberem o tatar que a quantidade de assuntos abordados foi
que poderá ser bem visto ou não em tal espaço. crescendo gradualmente, devido à sensação de
Por este motivo, os mediadores buscam sempre conforto e acolhimento desenvolvido pelos inte-
trazer informações e vivências para impulsionar grantes, devido à continuidade de participações.
o restante dos participantes a pensar em experi- A cada encontro foram debatidos diversos temas,
ências pessoais, a respeitar as opiniões alheias muitas vezes pautados pelos próprios participan-
e/ou adversas e, em caso de discordância, expor tes que traziam suas de vivências pessoais, que,
com o cuidado de como o outro iria receber tal com o tempo, se sentiam impulsionados a refletir
opinião, de forma que o espaço não se torne tó- criticamente acerca de novas experiências vivi-
xico, além de possibilitar que as pessoas presen- das e relatadas.
tes pratiquem o acolhimento. O crochê enquanto facilitador de troca de
A roda foi uma iniciativa de baixo custo com experiências esteve disponível para os participan-
mediação voluntária e de funcionamento simples, tes, a quem quisesse fazer ou aprender. Mesmo

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Diversidade Sexual e de Gênero

não sendo o enfoque dos encontros, notou-se situações, pudessem se preparar para lidar com
que algumas pessoas tinham maior interesse em ocasiões semelhantes.
aprender e praticar essa arte, ao ponto de trazer
materiais já feitos para serem apresentados na
roda de conversa aos demais. Discussão
Os assuntos da roda de conversa sempre Por normalmente não serem aceitos e en-
giraram em torno da bissexualidade e monodissi- tendidos como uma sexualidade diferente da ho-
dência, permeando também temas como formas mo e heterossexualidade, os monodissidentes
de relacionamento e amor, papéis de gênero, convivem com uma presença muito forte do sen-
identidades de gênero, relações familiares, tra- timento de solidão, o que se acentua por não te-
balho e representações sociais. Na maioria das rem referência de encontros e grupos nos quais
vezes, foi marcante o relato da dificuldade de li- possam se comunicar com pessoas que têm ex-
dar com preconceitos e discriminações frente a periências semelhantes e que permitam a troca
outros contextos, estando nítidos como tais con- de vivências. As questões são vividas de forma
flitos são geradores de angústias. individual, quando na realidade são ocorrências
Observou-se que em alguns momentos, comumente enfrentadas por pessoas bi, pan e
quando alguém relatava uma situação conflitu- polissexuais, dentre outras identidades.
osa vivida, os demais participantes que haviam Frente a um contexto hostil de discrimina-
passado por situações semelhantes, sugeriam ção, negação e exclusão dentro e fora da comuni-
ao grupo maneiras de como enfrentar tais situa- dade LGBTQ+, o acolhimento e a empatia se mos-
ções. Isso proporcionava que, no final das discus- traram ser recursos fundamentais para a manu-
sões, todos pensassem em conjunto sobre as tenção dos encontros. O ambiente descontraído
formas de encarar a adversidade citada, visando com respeito e cuidado com o próximo se fez níti-
a mudar a situação. do em nível tanto individual quanto coletivo, como
As diversas maneiras de ação e reação por exemplo, a atenção em acolher a identidade
frente às experiências discriminatórias foram de gênero e o nome social dos integrantes – os
abordadas, proporcionando momentos de maior quais em diversos espaços são desrespeitados.
racionalidade e reflexão para lidar melhor com Esse acolhimento foi de fundamental importância
a situação e escolher a melhor atitude a ser to- para que os participantes se sentissem motiva-
mada, evitando ações baseadas apenas em rea- dos a irem aos encontros seguintes.
ções emocionais que podem ter consequências A relação dialógica estabelecida no grupo
mais sérias para quem está sendo discriminado pelos mediadores pode ser compreendida a partir
– principalmente quando a discriminação advém da teoria da Gestalt7, que pontua que a relação
de alguém muito próximo – uma vez que a vítima estabelecida nesses grupos pode ser descrita por
tende a, muitas das vezes, entender o ato como várias características, mas principalmente por: (1)
um ataque pessoal e não como uma questão so- presença; (2) confirmação; (3) inclusão; e (4) dis-
cial. Assim, o grupo pôde proporcionar várias re- posição para a comunicação aberta. A Gestalt
flexões acerca de diversos preconceitos instau- aponta que a presença está representada pela
rados na sociedade, facilitando que a vivência postura disposta por parte do terapeuta, do clien-
desses eventos fosse vivida maior preparo; além te (no caso, o participante) e do relacionamento,
de proporcionar às pessoas que não viveram tais sem fingir interesses. A confirmação é entendida

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pela postura de aceitação incondicional do outro, identidade. Isso se agrava porque também no
de que o outro é amado e valorizado independen- meio acadêmico e científico há reflexos dessa vi-
temente de concordar ou não com seus posicio- são distorcida sobre essa população e que não
namentos. Já a inclusão é entendida como a pos- tem acompanhado a demanda de saúde psicos-
tura de comunicar a empatia ao cliente, de forma social de que os monodissidentes precisam. Se-
que seja possível validar sua experiência. Por fim, gundo Teixeira-Filho e Rondini8, os adolescentes
a disposição para a comunicação aberta, significa bissexuais apresentam maior índice de ideação
propiciar um ambiente em que o outro se sinta e tentativas de suicídio em comparação com os
livre para dividir sua experiência7. monossexuais. Isso ocorre porque as pessoas
Na roda, mesmo se tratando de um conceito bissexuais são constantemente incompreendidas
bastante utilizado na clínica psicológica individu- devido a uma cultura sexual binária, que faz com
al, foi possível estabelecer uma relação dialógica que aqueles que se atraem por dois ou mais gê-
com os participantes da roda de conversa. Essa neros sejam lidos como “confusos”, “indecisos”
atitude permitiu que fosse possível sentir, expe- ou “imaturos”8.
rienciar e perceber o outro como uma pessoa e Machado e colegas5 (p.3), ao falar sobre a
não como algo. À medida em que os facilitadores bissexualidade e a necessidade de se assumir
adotaram essa forma de contato com o outro, ou identificar-se como bissexual, destaca que,
notou-se que os demais participantes também diante a tanta confusão e estereotipação existen-
procuraram uma postura mais genuína e franca te, por mais que haja o ideal da não-rotulação –
de estar na presença dos demais. Assim, com o uma vez que as pessoas de fato, não precisam
ambiente acolhedor e uma postura não discrimi- da autoafirmação o tempo inteiro –, o bissexu-
natória, foram debatidos diversos assuntos rela- al sempre necessita de explicação e definição,
cionados à monodissidência; muitos deles pau- justamente pelo fato de esse indivíduo não ser
tados em preconceitos do qual foram alvo e situ- identificado ou compreendido. Nesse sentido, es-
ações-problema vividas pelos participantes que sa “necessidade” de dizer, já surge como um ato
lhes atingiram negativamente, causando dúvida, político e de resistência para amenizar a invisibi-
constrangimento, mal-estar e sofrimento. Essas lidade existente5.
vivências puderam nortear o tipo de discussão Maria Leão de Aquino Silveira1, com outra
que seria plausível nos encontros seguintes, en- perspectiva quanto ao ato de se assumir como
volvendo a prevenção e formas de lidar com no- bissexual pontua que, diferentemente dos ho-
vas experiências desagradáveis, embora as con- mossexuais onde o ato de “sair do armário” sig-
sequências psicológicas causadas pelo sofrimen- nifica formar laços comunitários com redução de
to vivido ainda tivessem deixado suas marcas. sofrimento e estresse, a pessoa bissexual sofre
Por esse motivo, os integrantes do grupo sempre pressão quando se assume por supostamente
buscavam trazer mais situações para o debate, ter que “se decidir” quanto à própria sexualidade
evidenciando a necessidade que tinham de falar e ser cobrada a repensar o termo com o qual se
sobre o assunto. identifica. Isso faz com que seu sofrimento não
A experiência da roda de conversa mostrou diminua7.
que as pessoas monodissidentes enfrentam uma Carreiras9, em um estudo sobre autoestima
quantidade específica e significativa de precon- e nível de homofobia internalizada, realizado em
ceitos e estereótipos negativos ligados à sua Portugal com 89 participantes da comunidade

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Diversidade Sexual e de Gênero

LGBT, incluindo 32 bissexuais, mostrou que os orientam o trabalho dos psicólogos. Na Resolu-
indivíduos que se identificavam como bissexuais ção nº 1 de 1999, que estabelece como esse
apresentavam níveis significativamente inferiores profissional deve atuar com relação à orientação
de autoestima em comparação aos homens e às sexual, nenhum dos seis artigos mencionam ter-
mulheres homossexuais. A baixa autoestima es- mos relacionados à monodissidência e/ou bisse-
taria relacionada com a dificuldade das pessoas xualidade, sendo utilizado principalmente termos
bissexuais se assumirem e também por possu- associados à homossexualidade, com destaque
írem maior índice de preconceito internalizado, ao artigo 4º que menciona12:
o que causaria maior tendência aos distúrbios
“Os psicólogos não se pronunciarão, nem
psicossociais9.
participarão de pronunciamentos públicos,
Conforme esses autores, é percebida a gran-
nos meios de comunicação de massa, de
de necessidade de apoio profissional, de qualida-
modo a reforçar os preconceitos sociais exis-
de para o atendimento das demandas comuns e
tentes em relação aos homossexuais como
específicas da população bissexual. Porém, con-
portadores de qualquer desordem psíquica”
traditoriamente, muitas das vezes essa encon-
(artigo 4º).
tra mais discriminação dentro dos consultórios e
instituições de saúde. Em estudo realizado nos Portanto, na área de Psicologia, as resolu-
Estados Unidos com terapeutas, Firestein10 de- ções são contundentes no que diz respeito ao
monstrou que 16,7% dos entrevistados conside- impedimento dos psicólogos agirem de maneira
rava a bissexualidade como sintoma de doença homofóbica. Porém, ainda há uma permissivida-
mental, 7,0% haviam atuado tentando converter de, mesmo que indireta, à prática da bifobia. Por
pacientes bissexuais a tornar-se heterossexuais esse motivo, ainda existem casos onde o tera-
e 4,0% haviam tentado converter pacientes bis- peuta busca uma decisão do atendido acerca de
sexuais à exclusiva homossexualidade. Também sua sexualidade, considerando apenas a homo e
estudo realizado no Reino Unido por Mohr, Israel a heterossexualidade como alternativa e invisibi-
e Sedlacek11, demonstrou que terapeutas que es- lizando totalmente as identidades monodissiden-
tavam em treinamento tinham uma visão estereo- tes como aponta Leão de Aquino Silveira1:
tipada da bissexualidade, atribuindo a pacientes
“Em um mundo onde a heterossexualidade e
com essa condição problemas clínicos, indepen-
a homossexualidade representam polarida-
dentemente de suas crenças com relação a gays
des opostas, vivências que navegam entre
e lésbicas, e atribuíam mais problemas clínicos a
esses pólos e não se fixam em nenhum de-
clientes fictícios com histórico de relacionamento
les são vistas como agentes de contamina-
que envolvia um homem e uma mulher, em com-
ção” (p. 38).
paração com aos clientes fictícios com histórico
de relacionamento com apenas um gênero, apon- A bissexualidade, assim, ainda é vista por
tando o grande estereótipo na abordagem da vários profissionais da saúde como um transtor-
bissexualidade. no ou desordem, como a bipolaridade, transtorno
É preciso destacar que, no Brasil, o Conse- borderline entre outros diagnósticos relaciona-
lho Federal de Psicologia (CFP) não deixa claro dos a um senso instável de identidade e de com-
à inclusão da bissexualidade e de outras orien- portamento sexual de risco, onde se patologiza
tações não monossexuais nas resoluções que e discrimina pessoas que estão em busca de

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Diversidade Sexual e de Gênero

tratamento justamente por conta do sofrimento e monossexuais que vissem os encontros como
causado pelo preconceito. uma possibilidade de troca de experiências.
Também há uma forte associação da pro- A característica de uma roda aberta em que
miscuidade com as identidades monodissiden- todos pudessem dividir suas experiências e se-
tes, havendo a preocupação quanto à possibili- rem acolhidos de forma empática possibilitou
dade dos bissexuais serem entendidos como ve- que muitos dos participantes se sentissem con-
tores de algum vírus, como, por exemplo, o HIV. fortáveis para dividir suas vivências, mesmo para
Como mencionado por Seffner13, para as mulhe- falar de temas considerados mais dolorosos, co-
res bissexuais e lésbicas, a aids é uma sombra mo o preconceito, a exclusão e a invisibilidade de
difusa e de certa forma distante, que aparece sua orientação sexual. Dessa forma, se consti-
de modo pontual e que é evocada como parte tuiu como uma técnica que facilitou para que mui-
dos “perigos” do contato sexual direto ou indireto tos dos participantes pudessem perceber sua ca-
com homens. Já para os homens bissexuais e pacidade de lidar melhor com essas dificuldades.
gays, a aids é uma associação naturalizada, vista É evidente que as populações com necessi-
como quase que imanente às suas práticas se- dades específicas demandam dos profissionais de
xuais, sendo uma realidade que vitima diversos saúde um conhecimento maior acerca de suas vi-
membros de suas comunidades13. Isso explicita vências, para que esses possam estar incluídos
a noção antiquada e ainda persistente em nossa em completude com a prática profissional, ou se-
sociedade, de que há uma “ponte bissexual para ja, no encontro com um paciente não monosse-
as infecções sexualmente transmissíveis (IST)” xual. Quando o profissional expressa questões in-
enfatizando que as pessoas bissexuais exercem trínsecas à nossa sociedade, como papéis rígidos
papéis de “vetores” dos vírus, associando com- de gênero e uma cultura sexual exclusivamente
portamentos de promiscuidade e imprudência binária, de forma preconceituosa, pode impossibi-
sexual aos monodissidentes. Tais generalizações litar que pessoas com vivências monodissidentes
criam e reforçam situações carregadas de pre- consigam estabelecer um vínculo adequado para
conceitos também dentro da comunidade LGB- o andamento dos processos terapêuticos, que se
TQ+, dificultando a socialização e os relaciona- tornam desgastantes para o atendido, visto que
mentos, principalmente de homens bi, mas tam- muitas das vezes tais atendimentos serão gerado-
bém de mulheres bi que se veem responsabiliza- res de confusão, dúvida e angústia.
das pelas relações com estes homens. Atualmente existem poucos estudos sobre a
bissexualidade e suas especificidades, principal-
mente no Brasil, o que corrobora para que o tema
Considerações finais seja pouco explorado e difundido no campo aca-
A Roda de Conversa e Validação das Ex- dêmico nacional. Por este motivo, é de grande im-
periências Bissexuais foi uma proposta de bai- portância ressaltar a necessidade da iniciação de
xo custo com mediação profissional voluntária pesquisas voltadas para esse público possibilitan-
que possibilitou a construção de conhecimento do maior exploração e divulgação e fazendo com
juntamente com as pessoas que seriam contem- que profissionais da saúde, estudantes e pessoas
pladas por estes saberes. Apesar de usar o ter- monodissidentes entrem em contato com o ma-
mo “bissexual”, a roda foi constituída de forma terial estudado e possam utilizar desses saberes
aberta para todas as pessoas monodissidentes para reforçar práticas mais saudáveis.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Ainda é possível considerar que o vasto 4. Lewis ES. Eu quero meu direito como bissexual: a mar-
campo de estudo acerca da sexualidade, em ge- ginalização discursiva da diversidade sexual dentro do mo-
vimento LGBT e propostas para fomentar a sua aceitação.
ral, é pouco explorado, deixando inúmeras lacu-
In: III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade,
nas a serem preenchidas. Porém existem situa-
2012, Campinas: Universidade Federal de Campinas (UNI-
ções em que os riscos podem ser minimizados
CAMP); 2012.
no que tange a saúde pública de uma população 5. Machado J, Alves A, Dickson M. A invisibilidade bissexual
com demandas específicas, como por exemplo, na novela “O Outro Lado do Paraíso”. In: XVII Congresso de
a atualização das diretrizes dos conselhos regio- Ciências da Comunicação na Região Norte. Vilhena: Inter-
nais e federais de Psicologia, de modo que haja com – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da
uma maior proteção e respeito às pessoas com Comunicação; 2018.
identidades monodissidentes. 6. Rieger G, Bailey JM, Chivers ML, Savin-Williams RC. Se-

A possibilidade de um ambiente aberto e se- xual arousal and masculinity-femininity of women. Journ.
Person. Soc. Psych. 2016; 111(2):265–283. (on line).
guro para troca de experiências se fez como um
[acesso em: 10 ago 2018]. Disponível em: http://www.apa.
espaço de resistência e união entre pessoas mo-
org/pubs/journals/features/psp-pspp0000077.pdf
nodissidentes, uma vez que, mesmo dentro da pró- 7. Joyce P, Sills C. Técnicas em Gestalt: aconselhamento e
pria comunidade LGBTQ+, os bissexuais têm suas psicoterapia. 1ª reimp. Petrópolis: Vozes; 2016.
vivências negadas, resultando em um processo 8. Teixeira-Filho FS, Rondini CA. Ideações e tentativas de
de apagamento e invisibilidade. Atividades inclu- suicídio em adolescentes com práticas sexuais hetero e ho-
sivas como essas são, portanto, reforçadoras da moeróticas. Saúde e Sociedade. 2012; 21:651-667. [acesso
identidade dos sujeitos e dão contornos nítidos às em: 3 ago 2018]. Disponível em: https://www.scielosp.org/

várias sexualidades que são negadas e/ou enten- scielo.php?pid=S0104-12902012000300011&script=sci_


arttext&tlng=en
didas como um meio-termo entre monossexuais.
9. Carreiras LMC. Autoestima sexual, identidade LGB e ho-
mofobia internalizada numa população de lésbicas, gays e
bissexuais. (Tese). Universidade do Algarves. Faro; 2014.
[acesso em: 22 out 2018. Disponível em: https://sapientia.

Referências ualg.pt/handle/10400.1/8235

1. Silveira MLA. Os unicórnios no fim do arco-íris: bissexu- 10. Firestein BA. Becoming visible: counseling bisexuals across
alidade feminina, identidades e política no Seminário Na- the lifespan. Nova York: Columbia University Press, 2007.
cional de Lésbicas e Mulheres Bissexuais. [dissertação]. 11. Mohr JJ, Weiner JL, Chopp RM, Wong SJ. Effects of
Instituto de Medicina social. Universidade do Estado do Rio client bisexuality on clinical judgment: When is bias most
de Janeiro. Rio de Janeiro; 2018. likely to occur?. Journal of Counseling Psychology. 2009;
2. Harper AJ, Ginicola MM. Counseling bisexual/pansexual/ 56(1):164-175. [acesso em: 6 ago 2018 ago 06]. Disponível
polysexual clients. In: Ginicola MM, Smith C, Filmore JM. em: http://psycnet.apa.org/buy/2009-00624-007
Affirmative counseling with LGBTQI+ people. Alexandria: 12. Conselho Federal de Psicologia. Resolução nº 001/99.
American Couseling Association; 2017. p.171-182. Estabelece normas de atuação para os psicólogos em re-
3. Oliveira CAN, Machado FLBS, Neves, S. Amor parental (in) lação à questão da Orientação Sexual. Brasília: CFP; de 22
condicional: estudo sobre a influência da perceção da acei- de março de 1999. [acesso em: 3 ago 2018]. Disponível
tação/rejeição parental em homossexuais, lésbicas e bis- em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/1999/03/
sexuais. Coming-out for LGBT. 2012; 2(2):89-97. (on line). resolucao1999_1.pdf
[acesso em: 3 ago 2018]. Disponível em: http://www.aca- 13. Seffner F. Derivas da masculinidade: representação,
demia.edu/6472101/Amor_parental_in_condicional_Estu- identidade e diferença no âmbito da masculinidade bisse-
do_sobre_a_influência_da_percepção_da_aceitação_rejei- xual [tese]. Faculdade de Educação da Universidade Federal
ção_parental_em_homossexuais_lésbicas_e_bi-sexuais do Rio Grande do Sul. Porto Alegre; 2003.

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Diversidade Sexual e de Gênero

AMTIGOS – Ambulatório Transdisciplinar


de Identidade de Gênero e Orientação Sexual,
do IPq-HCFM/USPI: proposta de trabalho
com crianças, adolescentes e adultos
AMTIGOS – Transdisciplinary Ambulatory of Gender Identity and Sexual Orientation
of the IPq-HCFM/USPI: proposal of work with adolescents, children and adults

Alexandre SaadehII, Liliane de Oliveira CaetanoIII, Luciane GonzalezIV, Beatriz BorkV,


Desirèe Monteiro CordeiroVI, Cassiana Léa do Espírito SantoVII, Leandro Augusto Pinto BeneditoVIII,
Matheus de Cillo ArantesIX, Zoe BarossiX, Daniel Augusto Mori GagliottiXI, Saulo Vito CiascaXII,
Karine SchlüterXIII, Maíra Caricari SaavedraXIV

I
Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São VIII
Leandro Augusto Pinto Benedito (leandroapbenedito@gmail.com) é médico
Paulo. psiquiatra pelo IPqHCFMUSP, Especialista em Psicopatologia Fenomenológica
pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCMSCSP)
II
Alexandre Saadeh (alexandre.saadeh@hc.fm.usp.br) é médico, Mestre e
e colaborador voluntário do AMTIGOS.
Doutor em Psiquiatria pelo Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo (IPq-HC-FM/US), psicodramatista e supervisor pela IX
Matheus de Cillo Arantes (maharantes@hotmail.com) é psicólogo pela
Escola Paulista de Psicodrama (EPP),Coordenador do AMTIGOS-IPq-HCFM/USP, PUC-SP, com Aprimoramento em Orientação de Pais e Clínica Infantil pelo
Professor Doutor em Psicologia da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde Centro Paradigma – Ciências e Comportamento e atua como colaborador
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (FaCHS-PUC-SP) e membro da voluntário no AMTIGOS-IPq-HC-FM/USP.
Comissão para o Estudo da Transexualidade do Conselho Federal de Medicina
e da World Professional Association for Transgender Health (WPATH). X
Zoe Barossi (zoe@barossi.net) é psicóloga pela PUC-SP, psicodrmatista
III
Liliane de Oliveira Caetano (lili.caetano@hotmail.com) é assistente social pelo Hudson Valley Psychodrama Institute e colaboradora voluntária do AMTI-
e Especialista em Políticas Públicas e Gestão de Projetos Sociais pela Facul- GOS-IPq-HC-FM/USP e Coordena o Departamento de Psicologia Pós-Operató-
dade Paulista de Serviço Social de São Caetano (FAPSS) e atua no AMTIGOS- rio da clínica de feminização facial FACIALTEAM.
-IPq-HC-FM/USP, Conselheira suplente do Conselho Nacional de Combate à XI
Daniel Augusto Mori Gagliotti (danimori_medusp@yahoo.com.br) é médico
Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Tra-
vestis e Transexuais e membro da Comissão para o Estudo da Transexualida- psiquiatra pelo IPq-HC-FM/USP e atua no Grupo de Assistência Psicológica
de do Conselho Federal de Medicina (CFM). ao Aluno da Universidade (GRAPAL-FM/USP) e no AMTIGOS e é membro da
WPATH.
IV
Luciane Gonzalez (lucianegonzalezvalle@yahoo.com.br) é psicóloga pela
Universidade Paulista (UNIP), Pós-Graduada em Psicopatologia e Psicofar-
XII
Saulo Vito Ciasca (svciasca@gmail.com) é médico psiquiatra pelo IPq-
macologia, Psicoterapia Cognitiva e em Socionomia pela xxxx e colaboradora -HC-FM/USP, com formação em Psicodrama pela Instituto Sedes Sapientiae
voluntária do AMTIGOS e Membro da WPATH. e em Psicoterapia Psicodinâmica Breve pela Instituto Sedes Sapientiae,
atua como psiquiatra, pesquisador e supervisor no AMTIGOS e é membro
V
Beatriz Bork (beatriz.bork@gmail.com) é psicóloga pela UNIP, Especialista em da WPATH.
Dislexia pela Associação Brasileira de Dislexia (ABD), Especialista em Distúrbio de
Aprendizagem e Estimulação Cognitiva pela Research Center – Janna Glozman, XIII
Karine Schlüter (karineschluter@gmail.com) é médica pela Faculdade de
Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FM/UFRS), Especia-
de São Paulo, colaboradora no AMTIGOS-IPq-HCFM/USP e Membro da WPATH. lista em Ginecologia e Obstetrícia e Videolaparoscopia pela Federação Brasi-
VI
Desirèe Monteiro Cordeiro (desireds1@gmail.com) é psicóloga pela PUC- leira de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) e atua como médica voluntária
-SP, psicodramatista pela COGEAE-PUC-SP, Mestre em Ciências pelo IPq-FM/ e responsável pela terapia hormonal no AMTIGOS.
USP, atua como voluntária pesquisadora e supervisora no AMTIGOS-IPq-HC- XIV
Maíra Caricari Saavedra (mairacaricari@gmail.com) é fonoaudióloga e
-FM/USP e é Membro da WPATH.
Especialista em Saúde Coletiva pela PUC-SP, Especialista em Sexualidade
VII
Cassiana Léa do Espírito Santo (cassianalea@hotmail.com) é psicóloga Humana pela Sociedade Brasileira de Estudos em Sexualidade Humana
pela Universidade Plesbiteriana Mackenzie, Pós-Graduada em Psicodrama pela (SBRASH) e atua como fonoaudióloga responsável pelo atendimento dos pa-
PUC-SP em convênio com a Sociedade de Psicodrama de São Paulo (SOPSP), cientes do AMTIGOS e é membro da WPATH.
Especializada em Dependência Química pela Unidade de Pesquisas em Álcool
e Drogas da Universidade Federal de São Paulo (UNIAD/UNIFESP) e com forma-
ção como Acompanhante Terapêutica pelo Instituto Sedes Sapientiae, faz parte
da Diretoria Executiva da SOPSP e atua no AMTIGOS-IPq-HC-FM/USP.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Resumo Abstract

O artigo traz a experiência acumulada pelo Ambulatório Transdis- This article brings the experience accumulated by the Transdisci-
ciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto plinary Ambulatory of Gender Identity and Sexual Orientation from
de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina the Psychiatric Institute of the University of São Paulo’s Clinics
da Universidade de São Paulo (AMTIGOS-IPq-HCFM/USP), que atu- Hospital (AMTIGOS-IPq-HCFM/USP), which care is currently focu-
almente se volta para a atenção de crianças e adolescentes tran- sed at transexual children and teenagers, with a multidisciplinary
sexuais, com equipe multidispliciplinar que inclui atenção familiar, team that includes family care, psychological and psychiatric care,
psicológica e psiquiátrica, médica integral incluindo acompanha- integrate medical care including clinic accompaniment and hormo-
mento clínico e terapia hormonal, além orientação e realização da ne therapy, besides orientating and realizing transexualization pro-
transexualização e a atenção ao longo período de espera da cirur- cedures and giving care while in the surgery wait list. The article
gia. Apresenta como essa atenção em saúde vem contribuindo presents how this medical care has contributed to the welfare and
para o bem-estar e cidadania dessas pessoas e auxiliando seus citizenship of these people and has helped their families to integra-
familiares a integrá-los com suas necessidades específicas. te them with their special necessities.

Palavras-chave: Saúde; Adolescência; Infância; Transexualidade. Keywords: Health care; Adolescence; Infancy; Transexuality.

Introdução do conhecimento se tornaram convergentes em

O
Ambulatório Transdisciplinar de Identida- todos os aspectos, as diferenças continuaram
de de Gênero e Orientação Sexual do Ins- a ser respeitadas e valorizadas, embora haja a
tituto de Psiquiatria do Hospital das Clíni- unidade para as ações que gera o compromis-
cas da Faculdade de Medicina da Universidade so com a saúde integral das pessoas assistidas.
de São Paulo (AMTIGOS-IPq-HCFM/USP) foi for- Ainda hoje, os profissionais do ambulatório, em
mado em 2010. Inicialmente, como havia poucos sua maioria, são voluntários; isso, por um lado,
especialistas na área, grande parte da equipe foi favorece o desenvolvimento do trabalho, uma
composta por profissionais simpáticos à temáti- vez que quem atua tem interesse e disponibilida-
ca da transexualidade e identidade de gênero e de quanto à temática e, por outro lado, evidencia
que se prontificaram a desenvolver uma aproxi- a necessidade das políticas públicas em saúde
mação e o aprofundamento desse conhecimen- investirem nessa área.
to para desenvolver o trabalho. Com o tempo, o A atuação começou com o acompanhamen-
T da sigla AMTIGOS, inicialmente designando a to de adultos, mas hoje a prioridade é a dedica-
palavra “transtorno” – utilizada em seu surgimen- ção às crianças e adolescentes, futuros adultos,
to – foi substituída por “transdisciplinar”. Isso se realizando um trabalho preventivo e de validação
deu quando o ambulatório passou por mudanças de técnicas e orientação de encaminhamento e
significativas, tanto internas em relação às modi- atenção da população trans diretamente com as
ficações no campo da saúde, quanto na atuação crianças, mas também com seus familiares, es-
de seus profissionais, valorizando cada vez mais colas e instituições de acolhimento.
o trabalho em equipe e a busca por unidade co- Fomos os pioneiros nesse trabalho com uma
mum e ampla nas ações cotidianas. população tão jovem e, por isso, começamos a ava-
Inicialmente composta por profissionais de liar seus resultados. O que podemos dizer é que
Psiquiatria, Psicologia e Serviço Social, a equipe as famílias se modificaram e aceitaram seus filhos
atualmente conta também com áreas de Gine- como são e não como gostariam que fossem.
cologia e Fonoaudiologia. A premissa de um tra- Pensamos que essa já é uma mudança
balho transdisciplinar não significa que as áreas radical.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Disforia de gênero na infância que não são congruentes relatam a incompatibili-


A criança é um ser humano de pouca ida- dade que sentem com a genitália que nasceram:
de e sua infância é definida como um período da algumas meninas percebem-se diferentes e iden-
sua fase de crescimento que vai do nascimento tificam-se e sentem-se como se fossem meninos;
até a puberdade. Na infância, o tratamento pa- e alguns garotos concebem-se como garotas. Es-
ra crianças que apresentam manifestações que se fenômeno retrata a vivência de uma criança
apontam uma divergência de gênero com relação transgênero. A “disforia de gênero” ou também
a seu sexo biológico consiste, principalmente, na denominada “incongruência de gênero” afeta, as-
orientação e psicoterapia, que auxiliam a crian- sim, crianças que se identificam como transgê-
ça, tanto no bem-estar emocional quanto na sua nero e não se identificam com as características
percepção, ou não, da manutenção da questão sexuais com as quais nasceram e que, por isso,
de gênero, aliado ao trabalho de orientar pais e sofrem com essa contradição2. Nesse sentido, a
escolas. disforia de gênero só é diagnosticada se a crian-
Nenhum outro tratamento ou prescrição mé- ça vivenciar um sofrimento profundo por causa
dica endocrinológica ocorrerá até que a criança de sua transgeneridade e essa investigação for
entre na sua puberdade. Crianças de 3 a 5 anos feita e confirmada pelo profissional da saúde.
podem transitar sua autopercepção de identida- Uma criança que sofre de angústia como re-
de de gênero e nosso papel é o de permitir ex- sultado de sua identidade de gênero, especial-
perienciar todas as facetas da identidade com mente se é intimidada ou marginalizada, vivência
aquela que se identificam, sem forçá-las à con- maior risco para desenvolver quadros psiquiátri-
gruência ou não ao seu sexo biológico. Muitas ve- cos, como transtornos de ansiedade, depressão
zes, as crianças são imaturas, mas podem estar e abuso de substâncias, entre outros. Lodi e Ko-
muito inteiradas das situações. Quando a criança tlinski Verdade3, afirmam que suas pesquisas
começa a falar e a se expressar, demonstra a revelaram um dado preocupante para a Saúde
identidade de gênero com a qual se identifica de Pública: um aumento de três vezes a mais no nú-
diversas maneiras e é capaz de nomeá-la. Por mero de tentativas de suicídio em crianças com
volta dos 6 anos, percebe que o gênero não mu- disforia de gênero em relação à população que
da de acordo com a roupa que usa. não apresenta incongruência de gênero. Embo-
Nesse sentido, a noção de “gênero”, iden- ra tenhamos um quadro preocupante como esse,
tidade de gênero mais precisamente, difere da as crianças atendidas não sofrem nenhum tipo
concepção de “sexo”, macho ou fêmea, que se de intervenção cirúrgica, mas podem passar pela
refere às características psicológicas associa- transição social, com o uso de roupas, de nome
das e construídas em relação ao sexo biológico e pronomes que passarão a ser adotados para
do indivíduo. Para as crianças bem pequenas, se referir a elas e a apresentá-las em situações
os conceitos iniciais sobre gênero são bastante sociais adequadas à sua identidade de gênero.
flexíveis e elas experimentam todas as possibili- A transgeneridade se elucidará, na maioria dos
dades com tranquilidade e liberdade. Geralmen- casos, até o final da adolescência2.
te, as crianças têm a sua identidade de gênero As crianças podem transitar entre um gêne-
congruente com seu sexo biológico, mas não são ro e outro durante a infância toda, não há um tu-
todas que se identificam totalmente com as ca- torial para se identificar a criança transgênero. O
racterísticas sexuais do seu nascimento. Aquelas mais sensato a se fazer é questionar, considerar

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Diversidade Sexual e de Gênero

e respeitar o conteúdo do que ela relata com mui- tantos aspectos, realizamos encontros mensais
ta atenção; afinal, não existe ninguém mais ade- em que acolhemos e trabalhamos juntos o pro-
quado do que ela mesma para dizer quem ela é cesso familiar que é fundamental para que se
e qual é a sua identidade de gênero. Se, de fato, fortaleçam e entendam o processo, para cami-
existir uma questão de transgeneridade, mesmo nhar ao lado e dando amparo e suporte a seus
que ela transite, permanecerá ao longo dos anos filhos.
de seu desenvolvimento. Ao pensarmos em crianças, os pais ou cui-
Várias fases passam, mesmo que deixem dadores são importantíssimos, pois são os forne-
marcas na construção da identidade de qualquer cedores do afeto que elas precisam. As escolas
indivíduo. Considerando as faixas etárias, há va- têm também um papel fundamental na socieda-
riações, por exemplo: quando pensamos na crian- de e precisam entender o que as crianças com
ça de 3 a 5 anos, todos esses aspectos podem incongruência de gênero vivem, para saber como
se referir a fantasias ou brincadeiras criativas. A conduzir a educação de forma a auxiliar que a so-
partir dos 5 anos e com a persistência, consistên- ciedade seja mais compreensiva e respeite essa
cia e intensidade da criança, ficará mais claro e criança como ser humano cidadão.
evidente sua identidade de gênero. Quando essa
característica permanecer no discurso da crian-
ça até a adolescência, precisamos ouvi-la com Adolescentes transexuais
maior atenção e começar a supor que talvez não O período da adolescência é complexo e
seja mais apenas uma fase, mas sim algo intrín- envolto em confusão para a grande maioria das
seco à subjetividade daquele pré-adolescente. É pessoas. Isso porque, é exatamente nesse perí-
importante salientar que nenhum pai ou profissio- odo que o nosso corpo começa a experimentar
nal seria capaz de incentivar ou estimular a crian- as mudanças da puberdade e a apresentar ca-
ça a se debater com essas questões. Quando se racterísticas que associamos ao sexo biológico
trata de identidade de gênero, não há ingerência adulto, a se experimentar e descobrir conforme
externa para mudá-la. a orientação sexual. O corpo se manifesta, por
Também os pais merecem atenção e acom- conta da puberdade, com as espinhas, pelos pe-
panhamento pelo profissionais do serviço por so- lo corpo, seios, menstruação, aumento dos tes-
frerem com a condição de seus filhos. A princípio tículos e pênis, mudanças de timbre da voz, etc.
não conseguem compreender o fenômeno e se É um período de grandes transformações e ques-
lembram de situações vividas e de imposições tionamentos que transcendem o convívio familiar
feitas às crianças que lhe infringiram alto grau de e que se estendem também para outras esferas
dor – eram muitas vezes crianças apáticas e tris- sociais, como os círculos de amizades, relaciona-
tes. Referem-se a uma luta interna, fosse com mentos amorosos e vida escolar.
suas expectativas ou com conceitos e aprendiza- Na adolescência transexual, esse perí-
gens arraigadas há muito tempo, que remontam odo é muito intenso. É o momento em que o
suas histórias de vida. Relatam se perceberem corpo vai mostrar que não é do modo como a
em ebulições de sentimentos e sofrimento de pessoa se sente, se percebe; ou seja, o desen-
acusações de familiares, da sociedade e, em al- volvimento dos caracteres sexuais será incon-
guns casos, até de seus próprios genitores. Para gruente entre o seu gênero e o seu sexo, o que
que haja melhor compreensão e elaboração de gera um enorme conflito. É o momento em que

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Diversidade Sexual e de Gênero

a transexualidade se revela para o social. Nesse discriminatórias, preconceitos, xingamentos, bri-


contexto, o momento é delicado, pois o adoles- gas, etc., tanto no convívio social quanto familiar.
cente trans fica vulnerável e necessita se encon- Esses conflitos podem ser tão grandes, que
trar em outras referências: fazer parte, perten- a vulnerabilidade, que a adolescência já traz por
cer a um grupo de pessoas que tenham similari- si só, fica muito maior e algumas pessoas, mui-
dades, que estejam sentindo ou passando pelas tas vezes chegam a colocar em risco suas vidas
mesmas coisas na vida. por não suportar tantas questões, tanto sofri-
Nossa sociedade é dividida de forma binária mento, que parecem não ter solução. A taxa de
(homens x mulheres; masculino x feminino), ba- tentativas de suicídio nessa população e nessa
seada no sexo biológico e não na identidade de faixa etária é maior que na população geral. 30 a
gênero. Com isso, muitas das atividades sociais 40% dos adolescentes transexuais tentam suicí-
são divididas por sexo; a escola é um exemplo dio, enquanto na população geral de adolescen-
disso. E aí começam várias questões: Em qual tes, esse índice é de 14%2.
grupo um adolescente transexual se “encaixa”? Ter uma escuta acolhedora e capaz de fazer
Onde ele pode se sentir fazendo parte? Se re- com que este adolescente se compreenda, ape-
conhecer? Qual banheiro ele pode/deve frequen- sar de tudo e todos, é fundamental. É entender,
tar? A partir daí se instaura um grande conflito2. junto com esse adolescente, que tudo precisa
Outro conflito aparece em relação ao no- ser desconstruído e reconstruído inúmeras ve-
me, que, quando não congruente com o seu zes, até fazer sentido para ele. Um dos objetivos
sexo, expõe essas pessoas às condições mais desse trabalho de escuta é o de criar um ambien-
vexatórias, nas situações mais corriqueiras do te em que a resiliência e a autonomia possam ser
cotidiano. Passa a haver necessidade de um no- desenvolvidas, fazendo com que os adolescentes
me social com o qual o adolescente deseje ser transexuais possam dar respostas diferentes a
chamado de forma congruente com o gênero ao eventos diversos, gerando menos estresse.
qual se percebe e não em relação ao seu sexo Para os adolescentes, a psicoterapia facilita
(nome de registro). Além disso, é preciso incluir a reflexão sobre o processo de mudança físico-
os artigos, pronomes e terminações das pala- -emocional que enfrentam e ajuda no autoconhe-
vras que derivem no feminino e/ou masculino cimento e na gestão dos conflitos, permitindo
e/ou neutro, congruentes com como o indivíduo que tomem decisões pessoais e profissionais de
se reconhece, quando nos dirigimos a ele, pois forma mais consciente e madura. Este processo
visam a respeitar essas pessoas nas convivên- psicoterápico é necessário para o fortalecimento
cias com os outros. da psique frente às exigências que funcionam co-
Outro grande estressor na vida das pesso- mo pressão e que fazem com que esse adoles-
as transexuais é o nível de aceitação social ou, cente viva sensações e emoções novas, fortes,
como alguns adolescentes chamam, a “passabi- ambivalentes em alguns momentos, sendo, às
lidade”. É o quanto determinada pessoa passa vezes, potencialmente desorganizadoras.
despercebido(a) no gênero ao qual se sente e No AMTIGOS contamos com uma equipe
considera que alguém que passa como pertence transdisciplinar que, no trabalho com adolescen-
ao gênero que se sente sofre menos estigma e tes, se mostra fundamental para poder recriar
preconceito. Já a pessoa que não tem “boa pas- saberes e perspectivas sobre eles mesmos. A
sabilidade” acaba enfrentando muitas situações questão mais importante, quando falamos de

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Diversidade Sexual e de Gênero

adolescentes com questões de identidade de Hoje, em termos de critérios diagnósticos,


gênero, é estar próximo deles ou delas e saber há três referências importantes: o “Manual de
respeitar as características de cada um. O ado- Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
lescente transexual, assim como qualquer outro, nº 5” (DSM-5)6 , da American Psychiatric Associa-
tem a necessidade de se sentir pertencente a al- tion, a “Classificação Estatística Internacional de
gum núcleo, que pode ser o familiar, o de amigos Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde
ou o de alguma religião. Na nossa prática obser- nº 10” (CID-10)7, da Organização Mundial de Saú-
vamos que os adolescentes precisam se sentir de, e os “Standards of Care for Gender Identity
fazendo parte de um grupo, de algo que não en- Disorders”8 (7ª edição), da antiga The Harry Benja-
contram em outros espaços. O reconhecimento min International Gender Dysphoria Association e
de outras pessoas com questões similares e um atual World Professional Association for Transgen-
psicoterapeuta com escuta apurada são funda- der Health (WPATH). Em 2018, na CID-11 o termo
mentais neste processo, além do apoio familiar. “transtorno de identidade de gênero” – transexu-
alismo (F64) da CID-10 foi substituído pelo termo
“incongruência de gênero”9, sendo especificado
Psiquiatria e transexualidade se sua ocorrência se manifesta na infância ou
O cuidado clínico na realização do diagnóstico adolescência/adulto. Além disso, o diagnóstico
e elucidação dos diagnósticos diferenciais é uma foi retirado do capítulo de transtornos mentais e
etapa fundamental para o trabalho médico psiqui- incluído junto aos diagnósticos relativos à medici-
átrico, psicológico e social que se pretenda fazer, na sexual e de gênero.
pois a busca de um instrumento objetivo de eluci- Para os transexuais, a cirurgia de redesigna-
dação diagnóstica ainda não se mostrou frutífera. ção sexual ou transgenitalização é um processo
Expressões como “disforia de gênero”, que visa garantir ao indivíduo não só a harmo-
“transtorno de identidade de gênero”, “transtor- nização entre o sexo anatômico e o gênero que
no de identidade sexual”, transgênero, transexu- se identifica, mas também a inserção na vida so-
al, foram e ainda são utilizados como sinônimos, cial10, sendo a cirurgia um dos meios de garantir
designando um conjunto de características seme- uma maior compreensão social e ampliar as pos-
lhantes. O diagnóstico, nesse caso, diz respeito a sibilidades para a construção do gênero ao qual
uma opinião multiprofissional dentro do contexto se identificam. A importância da necessidade do
de demandas específicas dessa população, que procedimento cirúrgico vai variar de pessoa para
os levam a buscar serviços específicos de acom- pessoa, afinal não é para todos que ela repre-
panhamento e assistência em Saúde. senta o fim das dificuldades, da não aceitação
O indivíduo transexual possui uma identi- social e de sofrimentos11. Os motivos que levam
dade de gênero oposta ao sexo reconhecido ao o sujeito a desejar a cirurgia são diversos e estão
nascimento e por isso pode procurar fazer uma relacionados à individualidade e aos muitos con-
adequação/transição de seu sexo de nascimen- textos de vida de cada um.
to para o gênero desejado (sexo-alvo) por meio O acompanhamento e assistência de transe-
de assistência médica, psicológica e social, por xuais inclui a avaliação de equipe multidisciplinar
exemplo: tratamentos hormonais, psicoterapia, composta por médicos de diferentes especialida-
alteração de nome em registro civil e cirurgias des (psiquiatras, endocrinologistas e cirurgiões),
plásticas e de transgenitalização4,5. psicólogos, assistentes sociais e outras áreas da

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saúde. A assistência baseia-se em um tripé que nhamentos não contenham linguagem pe-
envolve: psicoterapia, tratamento hormonal e a jorativa ou estigmatizante;
cirurgia de redesignação sexual, obedecendo a • identificação de complicadores ou vulnera-
Resolução do Conselho Federal de Medicina e a bilidades sociais;
Portaria do Ministério da Saúde que institui e re-
• acompanhamento durante todo o proces-
gulamenta o Processo Transexualizador do SUS4.
so transexualizador.
O diagnóstico psiquiátrico precoce e corre-
to, que vise cuidado, atenção e proteção, é extre- Vale lembrar que muitos indivíduos transe-
mamente importante para a população transexu- xuais enfrentam barreiras importantes no que diz
al. Trata-se de passo essencial para o início de respeito ao acesso a serviços de saúde. Em estu-
um bom acompanhamento médico, psicoterápico do recente, Costa e colegas11 mostraram que as
e social tendo como alvo bons resultados futu- pessoas transexuais ou que não se identificam
ros. Sendo assim, é extremamente importante com seu gênero, sofrem altas taxas de preconcei-
que o psiquiatra esteja atento a: to, não respeito ao nome social, atitudes vexató-
• abordagem e diminuição do sofrimento fí- rias e discriminantes e, inclusive, desinformação
sico e psíquico; da equipe de saúde quanto aos cuidados neces-
• prevenção, diagnóstico e tratamento de sários e específicos que necessitam. Tais fatos
possíveis morbidades clínicas e psiquiátri- levam os pacientes à procura por clínicas clan-
cas, como depressão, ansiedade, ideação destinas e automedicação, com consequentes
e planejamento suicidas, automutilações agravos à saúde física e mental, reiterando a
e outras; necessidade de um acompanhamento médico
sensível às questões que envolvem a saúde das
• garantia de que os indivíduos em proces-
pessoas transexuais.
so de transição ou pensando em realizá-
-la, recebam aconselhamento de profissio-
nal qualificado e suas implicações físicas,
Comunicação e adequação vocal: atendimento
psicológicas e sociais, incluindo os po-
fonoaudiológico no AMTIGOS
tenciais benefícios e as potenciais limita-
O atendimento fonoaudiológico no ambula-
ções, riscos e complicações;
tório surgiu, num primeiro momento, da demanda
• orientação ao paciente e seus familiares das mulheres transexuais que queriam adequar
ou responsáveis legais quanto a todos os
a frequência da sua voz (em sua maioria grave)
riscos e benefícios dos procedimentos
à sua identidade de gênero feminina, com uma
médicos desejados;
voz em frequências mais agudas e suaves. Es-
• encaminhamentos a especialidades e ava- sa demanda deixou de ser apenas das mulheres
liações de elegibilidade para hormoniote- transexuais em pouco tempo, pois apesar dos
rapia e cirurgias; homens transexuais não pleitearem questões es-
• educação de familiares, empregadores e pecíficas com frequência, passaram a procurar
instituições sobre variações de gênero, in- intervenções para alterar a entonação e estabili-
cluindo a transexualidade; zação da voz.
• garantia de que documentações, incluin- O tratamento ao longo dos anos mostrou-se
do documentos, relatórios e en ca mi- mais uma troca de experiências, mediadas por

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Diversidade Sexual e de Gênero

técnicas fonoaudiológicas para suprir as ques- necessidades e barreiras de acesso à saúde no


tões em relação à frequência da voz. Ao compre- Brasil que atingem as pessoas trans. Apesar da
ender que a voz era grande parte dessa identi- assistência ser universal, isso na realidade não
dade de gênero e da expressão da mesma, a te- se dá nesse segmento populacional. Segundo o
rapêutica fonoaudiológica passou a ter um olhar estudo, mais de 62% das pessoas pesquisadas
para o “outro” e para as nuances da articulação (foram 626 cidadãos brasileiros com identidade
feminina e masculina, com o foco voltado tam- de gênero diversa) se sentiram desconfortáveis
bém para os movimentos corporais ao falar e ou muito desconfortáveis ao procurar assistência
expressar-se, considerando principalmente a in- de saúde13. Esse desconforto foi desencadeado
fluência sociocultural presente na comunicação por várias razões, entre as mais frequentes o não
de cada um. Não há, portanto, uma padronização uso do nome social no atendimento, o fato de os
de adequação vocal, por isso houve um trabalho profissionais relatarem desconhecer cuidados re-
caso a caso. lativos à saúde dessa população ou, até, uso de
Dentro do ambulatório, todo paciente pode linguagem ofensiva em relação às pessoas de gê-
solicitar o atendimento fonoaudiológico a qual- nero diverso. Foi identificado outro dado preocu-
quer momento do acompanhamento. Ele será pante: as pessoas que vivenciaram experiências
atendido individualmente, com a prática monito- negativas ao procurar serviços de saúde tem 6
rada de exercícios fonoaudiológicos e encontros vezes mais chance de não procurá-lo novamente.
semanais, ou quinzenais, conforme seu perfil de Isso significa cidadãos e cidadãs brasileiros de-
atendimento no AMTIGOS. sassistidos pelo SUS.
Com as crianças, a fonoaudiologia passou Nos serviços referenciados pelo SUS para
a ter um olhar diferenciado dentro do ambulató- o processo transexualizador habitualmente, a as-
rio, por entender que há, em alguns casos, sinto- sistência se inicia com o atendimento da equipe
mas na linguagem oral na infância associados às de saúde mental. Mas qualquer médico, seja qual
questões relacionadas à identidade de gênero. A for a sua especialidade, pode se deparar a qual-
proposta em relação a elas envolve um acompa- quer momento com pacientes que apresentem di-
nhamento longitudinal que se tem desenvolvido versidade de gênero. O atendimento dessa popu-
de maneira pioneira. lação não deve e não pode limitar-se aos centros
O trabalho fonoaudiológico com a aborda- de referência para o processo transexualizador,
gem adequada e crítica quanto às questões so- pois, além do fato de que tais centros atendem
ciais e subjetivas relacionadas à identidade de apenas a uma pequena parcela de pessoas com
gênero e correlacionadas aos aspectos técnicos incongruência de gênero do país, a maioria das
da comunicação e voz tem grande potencial para demandas, incluindo a terapia hormonal e seu
a promoção da saúde de pessoas transexuais12. acompanhamento em pacientes adultos, pode
perfeitamente ser realizada nas unidades bási-
cas de saúde.
Terapia cruzada de hormônios sexuais e A anamnese e o exame físico do paciente
atendimento clínico para pacientes adultos com incongruência de gênero demandam invaria-
Uma das queixas mais frequentes por parte velmente um tempo maior para que seja cons-
das pessoas trans é a inacessibilidade à serviços truída uma relação facilitadora do atendimen-
médicos. Em 2016, Costa e colegas13 identificam to. Perguntar ao paciente como ele define sua

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identidade de gênero já sinaliza que o médico Brasil, a droga antiandrogênica mais comumente
está aberto a sua resposta e pronto para ouvir o utilizada é o acetato de ciproterona nas doses de
que ele tem a dizer. É importante não pressupor 25 a 50 mg ao dia. Podemos utilizar também a
comportamentos sexuais. Precisamos perguntar espironolactona entre 100 e 300 mg ao dia, mas
como o paciente define, nesse momento da sua lembrando de monitorar nível sérico de potássio
vida, a sua orientação sexual e quais são as suas regularmente. Quanto aos estrógenos, o mais uti-
práticas sexuais habituais e preferências. Devem lizado no nosso serviço é o valerato de estradiol,
ser colhidas informações relativas a patologias nas doses de 2 a 6 mg diariamente15,16.
pregressas (incluindo doenças psiquiátricas, ten- Em relação à androgenização, utilizamos
tativas de suicídio, infecções sexualmente trans- testosterona intramuscular. A mais prescrita no
missíveis), antecedentes familiares (com foco em AMTIGOS é o cipionato de testosterona na dose
diabetes, trombose, tromboembolia pulmonar, de 150 a 200 mg intramusculara cada 2 a 3 se-
neoplasias e doenças cardiovasculares), tabagis- manas. O undecilato de testosterona 1000 mg in-
mo, consumo de álcool e drogas. tramuscular, a cada 3 meses, também pode ser
Além do exame físico habitual, deve ser re- prescrito14,15,16.
alizada avaliação de mamas, quando presentes, Também é muito importante ressaltar que o
e de genitais, inclusive com exame de citologia etinilestradiol não deve ser utilizado para terapia
de colo de útero nos homens trans ou de neova- hormonal de pessoas trans17,18,. Sua utilização
gina em mulheres trans já submetidas à cirurgia está associada a um risco cardiovascular 3 vezes
genital. maior, em comparação com a terapia estrogênica
Avaliação periódica de glicemia e hemoglo- com valerato de estradiol ou 17 beta estradiol19.
bina glicada fazem parte da rotina, além de lipi- O acompanhamento dos pacientes subme-
dograma, enzimas hepáticas, hematócrito, cálcio
tidos à hormonioterapia deve ser trimestral no
sérico, gonadotrofinas, esteróides sexuais e pes-
primeiro ano e a cada 6 meses a um ano, após
quisa de infecções sexualmente transmissíveis
esse período.
(IST), tanto na avaliação inicial, quanto no acom-
É importante salientar, com relação a ado-
panhamento dos pacientes14.
lescentes, que o Conselho Federal de Medicina,
Quanto aos exames de imagem, é preciso
desde 2013, já deu parecer específico favorá-
solicitar ultrassonografia pélvica para pessoas
vel da terapia hormonal para adolescentes trans
que utilizarão terapia androgênica e ultrassono-
e travestis20, visando à redução de agravos ao
grafia e/ou mamografia para quem apresenta
bem-estar físico e mental dessas pessoas.
tecido mamário são necessários antes da pres-
crição da terapia cruzada de hormônios sexuais
(TCHS)14 e, depois, anualmente. A aromatização Grupão: grupo de adultos do AMTIGOS
da testosterona leva à formação de estradiol que (espera cirúrgica)
pode agir sobre os tecidos com receptores estro- O Grupão teve início em 2014XV, com a fun-
gênicos. Também a avaliação de densidade mine- ção de facilitar o trabalho em psicoterapia com
ral óssea16 deve seguir os parâmetros utilizados pacientes que já tinham cumprido todo o percurso
no atendimento a pessoas cisgênero.
Existem vários esquemas possíveis para
a hormonização de mulheres trans adultas. No XV
Inicialmente coordenado pelo Professor Alexandre Saadeh.

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Diversidade Sexual e de Gênero

necessário, com, dois anos de acompanhamento outras ações dos usuários para melhorias no pro-
em saúde mental envolvendo psicoterapia grupal cesso transexualizador, como reuniões com a De-
e, se necessário, hormonioterapia, e que deseja- fensoria Pública e Ministério Público, etc.
vam e só aguardavam a cirurgia transexualizado- Atualmente o Grupão conta com cinco pro-
ra. O encaminhamento para a cirurgia é condicio- fissionais (sendo três psicólogos e um psiquiatra,
nado à participação no Grupão, com o objetivo de que atuam como terapeutas, e a participação de
propiciar um processo de avaliação continuada e uma assistente social) e participam cerca de 60
identificação precoce da necessidade de alguma usuários adultos, de diferentes classes sociais
intervenção médica (psiquiátrica ou não), psicoló- e idades, a partir de 18 anos de idade. Muitos
gica ou social que surja durante o tempo de es- usuários vêm de longe, até mesmo de outros es-
pera, sendo realizado, então, o encaminhamento tados e, além de horas na estrada, por vezes en-
apropriado. frentam também dificuldades relacionadas ao tra-
Esse dispositivo foi criado pelo AMTIGOS co- balho para poderem participar desses encontros.
mo um grupo de manutenção ou follow-up, com Essa demanda se constitui de pessoas com
frequência mensal e duração de duas horas. Ele vidas e características distintas, que têm em co-
é composto por dois momentos que favorecem mum a espera por cirurgias de redesignação sexu-
o cuidado de demandas de diferentes ordens: o al. Além de terem cumprido o tempo mínimo de dois
primeiro, possui duração de uma 1:30 horas e é anos de acompanhamento transdisciplinar, exigido
coordenado por quatro terapeutas, que se utili- pelo Ministério da Saúde antes das cirurgias, para
zam principalmente da abordagem Psicodramáti- então serem encaminhados ao Grupão, os usuá-
ca nos atendimentos, propondo sessões com co- rios não devem apresentar contraindicações psico-
meço, meio e fim no mesmo dia, podendo ocorrer lógicas nem psiquiátricas para tais cirurgias4. Vale
na forma do psicodrama “clássico”, sociodrama, lembrar que tais cirurgias são possíveis somente a
teatro espontâneo ou outras modalidades de tra- partir dos 21 anos de idade. Também podem par-
balho, respeitando-se sempre as demandas do ticipar do Grupão, pessoas que já realizaram tais
grupo – trata-se de um espaço terapêutico que cirurgias até doze meses após as mesmas.
permite que esses adultos compartilhem suas Transexuais e travestis ainda enfrentam um
variadas experiências de vida por meio da pala- longo tempo de espera pelas cirurgias; muitos as
vra, do olhar e do corpo, a depender da atividade aguardam há quase dez anos. Isso, somado à
proposta pelos facilitadores. Essas experiências mudança de terapeutas ao longo do processo, à
podem estar ou não relacionadas a questões de fila crescente, entre outros fatores, acaba geran-
gênero, afinal, sendo cis ou trans, somos todos do muita angústia, cansaço e estresse nos usu-
seres humanos e enfrentamos a difícil arte de ários, que não raro se apresentam resistentes à
viver a cada dia –; o segundo momento tem du- continuidade desse acompanhamento.
ração mínima de 30 minutos e é coordenado por Dirigir um grupo tão grande é um trabalho
uma assistente social, com o propósito de infor- desafiador, que exige conhecimento, técnica e
mar sobre direitos e aspectos relacionados aos trabalho de equipe, além de muita supervisão.
fluxos e trâmites para o acesso às cirurgias, co- Mas, maior ainda é a satisfação com essa expe-
mo a transparência da lista cirúrgica, de acordo riência profissional e pessoal de poder proporcio-
com as especialidades (ginecológica, urológica nar esse espaço, esse grande encontro, com o
ou plástica) – esse espaço vem desencadeando outro e com a equipe.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Público Atendido Gráfico 3. Número de adultos atendidos por


O AMTIGOS atendeu, até 2017, cerca de 400 idade.
pacientes; atualmente trabalha com 295, sendo
55% trans femininas e 45% trans masculinos.
São 76 crianças, 24% trans masculinos e trans masculinos (M p/ H)
12
76% femininas (gráfico 1): trans femininas (H p/ M)

4 2
10
12
Gráfico 1. Quantidade de crianças atendidas por 8 9 4
3 7
2 3 2 1
idade.
19 a 20 21 a 25 26 a 30 31 a 35 36 a 40 41 a 45 46 a 50 51 a 55
anos anos anos anos anos anos anos anos

trans masculinos (M p/ H)

trans femininas (H p/ M)
11 10 Conclusão
9 12
9 4 O AMTIGO é o trabalho de uma vida. Co-
3 6
1 3 3 3 3 meçamos com a população adulta, antes de
1 1 2 2 1 1
1997, ano da publicação da primeira Resolução
os

os
os
.
o..

s
no

no

no

no

no

no

no

an

an
an
en

do Conselho Federal de Medicina sobre o as-


3a

4a

5a

6a

7a

8a

9a

10

12
11
m

sunto21. Hoje trabalhamos focados nas crianças


que apresentam questões de gênero ou mesmo
Mais 150 adolescentes, 62% trans masculi-
aquelas com o diagnóstico de incongruência de
nos e 38% femininas (gráfico 2):
gênero.
Essa pesquisa com as crianças tem como
Gráfico 2. Número de adolescentes atendidos finalidade estabelecer que elas existem de ver-
por idade. dade (não são uma criação de mentes bizarras)
e que precisam ter voz, ser escutadas e acom-
trans masculinos (M p/ H) panhadas ao longo de sua vida. Muitas famílias
trans femininas (H p/ M)
11
17 já perceberam isso e são elas que confiam seus
filhos ao trabalho que propomos.
3
7
Com as crianças, nossa proposta é preven-
23 22
6
2
5 16 tiva, evitando o sofrimento e a exclusão que mui-
4 10 1
6 5 6
1 3 1 1 tos adolescentes relatam e adultos já passaram
12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22
anos anos anos anos anos anos anos anos anos anos anos e, seja essa exclusão social ou escolar – o famo-
so bullying – sofrimentos únicos e de uma inten-
sidade impossíveis de serem descritos.
Com os adolescentes, o trabalho é de dimi-
Além de 79 adultos, 32% trans masculinos
nuir problemas, pois muitos já tiveram seus cor-
e 68% femininas (gráfico 3):
pos modificados pela puberdade. Evitar a exclu-
são social, o bullying e a evasão escolar, além de
promover o entendimento familiar, faz parte de
nosso cotidiano com eles e elas.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Já com adultos, a proposta é reparadora. O 9. World Health Foundation. Classification of deseases


que poderia acontecer já aconteceu, com suas (ICD) 11. Genebra: WHO; 2018.

graves ou não tão graves consequências. 10. Bartolucci C, Gómez-Gil E, Salamero M, Esteva I, Guilla-
món A, Zubiaurre L, et al. Sexual quality of life in gender-
Mas o que justifica todo esse nosso empe-
-dysphoric adults before genital sex reassignment surgery. J
nho é poder desenvolver com toda essa gama de
Sex Med. 2015; 12(1):180-188.
pessoas o conceito mais básico de Saúde, que é
11. Bento B. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero
o de bem-estar biopsicossocial. na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond; 2006.
Se conseguimos isso, é devido ao empenho 12. Dantas AB. Relação entre a voz e a expressão de gê-
dessa equipe maravilhosa de profissionais que for- nero: a percepção de pessoas transexuais. (Dissertação).
mamos; que doam seu tempo, afeto e discussões Universidade de Brasília. Brasília; 2017.
ferrenhas ao acompanhamento da população com 13. Costa AB, Rosa Filho HT, Pase PF, Fontanari AMV, Cate-
incongruência desse país que carrega a fama de lan RF, Mueller A. Healthcare needs of and access barriers

ser o que mais mata transgêneros no mundo. for brazilian transgender and gender diverse people. J Immi-
gr Minor Health. 2018; 20(1):115-123.
Sem os transgêneros, esse mudo seria me-
14. Kreukels BPC, Steensma TD, Vries ALC. (eds.). Gender dys-
nos colorido, menos brilhante, menos resiliente.
phoria and disorders of sex development. Ed. Springer; 2014.
Sem essa equipe, o trabalho não seria possível.
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men and individuals with congenital or acquired absence of
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Artes Médicas; 1993. Revogada pela Resolução CFM nº 1.652/2002. Bra-
8. World Professional Association for Transgender Health. sília: CFM; 1997. [acesso em: 29 out 1997]. Disponí-
Standards of care for gender identity disorders (7th ver- vel em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/
sion). East Dundee; 2012. 1997/1482_1997.htm

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Diversidade Sexual e de Gênero

Ambulatório de Saúde Integral para Travestis


e Transexuais: desafios e realizações
Ambulatory of Integral Health for Transvestites and
Transsexuals: challenges and achievements

Maria Clara GiannaI, Ricardo Barbosa MartinsII, Emi ShimmaIII

Resumo Abstract
Este artigo narra a formação do Ambulatório de Saúde Integral This article narrates the formation of the Ambulatory of Integral
para Travestis e Transexuais no Estado de São Paulo, primeiro ser- Health Care for Transvestites and Transexuals in the State of São
viço de atenção a este público no país. A experiência de 9 anos Paulo, the first health care service to this public in the country.
permitiu a atenção cotidiana a esta população, considerando suas The 9 years experience allowed daily attention to this population,
necessidades e especificidades e promoveu a reflexão e a revisão considering their necessities and specificities and promoted the
de conceitos, condutas, fluxos e elaboração de novos protocolos e reflexion over and revision of concepts, conducts, fluxes and the
legislações voltadas a população travesti e transexual, no Brasil. elaboration of new protocols and legislations turned to the trans-
Entre eles o processo transexualizador realizado pelo SUS, além vestite and transexual population, in Brazil. Among them is the
do acompanhamento hormonal e a confecção de uma política de transexualising process made by SUS, besides the hormonal ac-
atenção a sua saúde integral e regulamentações acerca do uso do companiment and the confection of a new integral heallth care po-
nome social destes. licy and regulamentations over the use of their social name.

Palavras-chave: Saúde; Saúde Pública; Saúde Preventiva; Transe- Keywords: Health; Public health; Preventive health; Transsexuality;
xualidade; Travestis. Travestis.

Introdução população trans do país, o Ambulatório de Saúde

O
Centro de Referência e Treinamento DST/ Integral para Travestis e Transexuais com ênfase
Aids (CRT DST/Aids), da Secretaria da no processo transexualizador do Sistema Único
Saúde de São Paulo, foi inaugurado em ju- de Saúde (SUS)2. Ao longo de seus 9 anos de
nho de 20091. Em suas dependências, o primeiro existência, este ambulatório matriculou e acom-
ambulatório voltado exclusivamente à saúde da panha cerca de 2.000 usuários, sendo que 45%
deles provenientes de outras cidades e estados.
É importante ressaltar que com o surgimento
I
Maria Clara Gianna (mariaclara@crt.saude.sp.gov.br) é médica pela Fa-
culdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo e Diretora do Centro de da epidemia de aids, a partir de l982, um número
Referência e Treinamento em DST/Aids (CRT/Aids) da Secretaria de Estado
da Saúde de São Paulo (SES/SP). crescente de travestis e transexuais passaram a
II
Ricardo Barbosa Martins (ricardo.martins@crt.saude.sp.gov.br) é psicó-
logo pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Fiho (UNESP),
frequentar serviços responsáveis pela assistência
Mestre em Psicologia Clínica e Doutor em Psicologia Social pelo Instituto
de Piscologia da Univesidade de São Paulo (IP/USP), Professor do Centro
aos portadores do HIV e outras infecções sexual-
Universitário Capital (UNISP) e Diretor do Ambulatório de Saúde Integral para
Travestis e Transexuais do CRT DST/HIV/Aids da SES-SP. mente transmissíveis (IST). Até então, o acesso
III
Emi Shimma (emi@crt.saude.sp.gov.br) é psicóloga pela Faculdade de desta população a serviços públicos de saúde no
Ciências e Letras (UNIPAULISTANA), jornalista pelas Faculdades Integra-
das Alcântara Machado/ Faculdade Metropolitana Unida (FIAM-FMU), COM estado de São Paulo era muito aquém das neces-
Aprimoramento em Luto pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC/SP), Especialista e Instrutora pelo Programa de Mindfulness para Pro- sidades e ficava restrito à situações de urgência.
moção da Saúde pelo Centro Mente Aberta do Departamento de Medicina
Preventiva e Mestre em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo Isso se ampliou porque, o Programa Estadu-
(UNIFESP), e atua como Psicóloga Clínica e Vice-Coordenadora do Comitê de
Ética em Pesquisa no CRT DST/Aids da SES-SP). al de DST/Aids de São Paulo (PE DST/Aids-SP) vem

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Diversidade Sexual e de Gênero

adotando o respeito à diversidade sexual como ei- industrial entre as trans mulheres. Assim, o prin-
xo transversal na implantação de suas políticas, cipal diferencial do ambulatório foi a inclusão da
reconhecendo a discriminação da população LGBT população de travestis nos procedimentos de
e, especial, da trans feminina, como um fator de adequação a suas identidades de gênero e o
vulnerabilidade à infecção pelo HIV e por outras acesso aos homens trans ao processo transexu-
infecções sexualmente transmissíveis (IST). alizador, identificação que nem sempre se aplica
aos travestis.
O processo transexualizador, que prevê as
Criação do Ambulatório de Saúde Integral para cirurgias de trangenitalização para transexuais
Travestis e Transexuais foi instituído e regulamentado no SUS, pela Por-
Em 2009, o então secretário da saúdeIV, taria nº 1.707 de 20085 e, posteriormente com-
que sempre enfatizou o respeito à diversidade plementado por meio da Resolução nº 1.955 de
sexual nas políticas públicas de saúde, decidiu, 20106 do Conselho Federal de Medicina, regu-
com apoio das áreas técnicas da Secretaria Es- lamenta a cirurgia de transgenitalização do tipo
tadual da Saúde de São Paulo (SES-SP) e, em neocolpovulvoplascia e procedimentos comple-
especial, do CRT DST/Aids-SP – instituição iden- mentares. Segundo este documento, a seleção
tificada como a mais sensível e apta para incor- dos pacientes para a cirurgia deverá ser avaliada
porar esta tarefa neste momento inicial –, que por equipe multidisciplinar por dois anos, fixan-
as decisões da I Conferência Estadual de Gays, do a idade de 21 anos como a mínima para o
Lésbicas, Bissexuais e Transexuais (GLBT), reali- procedimento.
zada em 20083, fossem imediatamente postas A localização do ambulatório, dentro de um
em prática, o que incluiu a criação de um serviço serviço de HIV/aids, foi discutida com parceiros
de saúde específico para atenção a esse grupo. dos movimentos de lésbicas, gays, bissexuais,
Para a criação do Ambulatório de Saúde In- travestis e transexuais (LGBTT) estadual e nacio-
tegral para Travestis e Transexuais, a SES-SP le- nal, usuários do serviço, também com pessoas
vou em consideração a Carta dos Direitos dos físicas, associações de transgêneros, profissio-
Usuários da Saúde, instituída pela Portaria nº nais com experiência nesta área, etc., a fim de
675, do Ministério da Saúde4, em 2006. Este do- não reforçar a discriminação já existente. A maio-
cumento menciona, explicitamente, o direito ao ria se manifestou pela instalação do serviço den-
atendimento humanizado e livre de discriminação tro do próprio CRT DST/Aids, local conhecido por
por orientação sexual e identidade de gênero, a sua experiência em acolher esta população res-
todos os usuários do SUS. peitando a sua diversidade.
Várias medidas foram adotadas antes e du- Para regulamentar o atendimento específi-
rante o processo de implantação do ambulatório: co a travestis, no que diz respeito à adequação
o estabelecimento de parcerias institucionais pa- à identidade de gênero, foram realizadas discus-
ra garantir a ampliação do número de cirurgias sões com o Conselho Regional de Medicina de
de modificações corporais para adequação à São Paulo (CREMESP), o que culminou com a
identidade de gênero e a estruturação de referên- elaboração e publicação da resolução nº 208,
cia para procedimentos para retirada de silicone em 20097, que garante o respaldo ético e legal
junto à comunidade médica para o atendimen-
IV
Na época, Luiz Roberto Barradas Barata. to dessa população. A partir desta resolução, o

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CRT DST/Aids-SP publicou um protocolo de cui- Urologia, Saúde Mental (Psiquiatria, Serviço So-
dados à saúde integral para travestis (Portaria cial e Psicologia) – ofertadas, em especial, aos
nº a-1, de 2010)8. que desejam as cirurgias de redesignação sexu-
O processo transexualizador, que prevê as al, ou não – além de Fonoaudiologia.
cirurgias de trangenitalização para transexuais A equipe multiprofissional leva em conside-
foi instituído e regulamentado no SUS, pela Por- ração a complexidade do universo desta popula-
taria nº 1.707 de 20085 e, posteriormente com- ção, que para além do sofrimento psíquico causa-
plementado por meio da Resolução nº 1.955 de do pelo sentimento de inadequação entre o gêne-
2010 do Conselho Federal de Medicina6, regu- ro biológico e o anatômico, sofre também com o
lamenta a cirurgia de transgenitalização do tipo preconceito e rejeições familiar e social11,12. Nes-
neocolpovulvoplastia e procedimentos comple- te sentido, o acompanhamento psicológico tem
mentares. Segundo este documento, a seleção sido um suporte importante para elaboração de
dos pacientes para a cirurgia deverá ser avaliada processos internos de autoaceitação dos pacien-
por equipe multidisciplinar por dois anos, fixan- tes e necessário para sua inserção na sociedade
do a idade de 21 anos como a mínima para o e para a busca pelo direito de estar no mundo
procedimento. vivendo exatamente como é.
A criação do Ambulatório de Saúde Integral A totalidade de mulheres transexuais aten-
para Travestis e Transexuais (ASITT), veio ao en- didas no ASITT desejam tratamento hormonal e a
contro de orientações preconizadas pela Organi- mudança de nome para a melhor inserção social
zação Mundial da Saúde (OMS)9 e do Ministério e 90% desejam a cirurgia de redesignação sexual
da Saúde10, que consideram que a proteção do (retirada do pênis e construção da neovagina).
direito à livre orientação sexual e identidade de Além disso, demandam a colocação de prótese
gênero não é apenas uma questão de saúde pú- de mamas, a feminilização da face, o que inclui a
blica, mas envolve também questões pertinentes redução do pomo de adão. A parceria com o Hos-
à saúde mental e à atenção a outras vulnerabi- pital das Clínicas da Faculdade de Medicina da
lidades que afetam esses segmentos. Entre es- Universidade de São Paulo (HC/FM/USP) e com o
ses direitos, uma das principais estratégias para Hospital Estadual Mário Covas, em Santo André,
a garantia do acesso aos serviços é o combate a permite atender a demanda de redesignação se-
homofobia e a transfobia. xual. Entre 2009 e junho de 2018, foram realiza-
das 43 cirurgias transgenitalização feminilizante
(neovaginoplastia).
A atenção à saúde no Ambulatório de Saúde Encontram-se cadastrados no ASITT, cerca
Integral para Travestis e Transexuais de 480 homens trans. Desde 2016, a parceria
O serviço do ASITT dispõe de uma equipe com a Universidade Federal de São Paulo (UNI-
multiprofissional. No local, são oferecidas várias FESP) e Hospital Estadual Serraria, em Diadema,
modalidades de atendimento: acolhimento, acon- permite a realização de mastectomia (retirada bi-
selhamento (adoção de medidas de autocuidado, lateral das mamas) em homens trans. A histerec-
redução de danos em relação à hormonioterapia tomia total (retirada do útero, dos ovários e das
e ao uso de silicone), avaliação e acompanha- trompas de falópio), para interrupção da mens-
mento em várias especialidades, como: Clínica truação, é realizada pelo HC/FM/USP. Desde se-
Geral, Endocrinologia, Ginecologia, proctologia, tembro de 2016, o encaminhanto dos homens

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trans para cirurgias de mamoplastia está sendo onde as pessoas possam expressar-se de forma
realizado em 2 hospitais, o Hospital Estadual Ser- autêntica e coerente com seus sentimentos e
raria e o Hospital Guilherme Álvaro, em Santos. orientação de gênero.
De 2009 a junho de 2018, foram realizadas 57
mamoplastias masculinizadoras.
A procura pela neofaloplastia (construção Outros impactos do ambulatório
cirúrgica do pênis) é relativamente pequena. Os Serviços de saúde a exemplo do ASITT têm,
homens transexuais muitas vezes sentem-se sa- sem dúvida, papel decisivo na promoção da saú-
tisfeitos com a mastectomia e a pan-histerecto- de integral desta população, no atendimento de
mia (retirada total do útero), além do tratamen- suas necessidades adaptativas e no fortaleci-
to hormonal. Quando desejam alguma forma de mento pessoal, tornando-a menos vulnerável a
transgenitalização, preferem a metoidioplastia: comportamentos de risco.
procedimento cirúrgico que corta os ligamentos No que se refere ao Estado de São Paulo, é
que prendem o clitóris ao corpo, criando um pe- importante lembrar que a partir da criação do Am-
queno falo. Este pode ser aumentado por meio bulatório de Saúde Integral para Travestis e Tran-
de estimulação manual e concomitante uso de sexuais (ASITT) um canal de comunicação entre
hormônios13,14. a população usuária do serviço e as instituições
Demandas relacionadas à remoção de si- que possuem poder e responsabilidade sobre
licone industrial são encaminhadas para o Hos- a condução das políticas públicas de saúde foi
pital Estadual de Diadema. Até 2018, foram re- constituído e as demandas, até então dispersas
alizados 81 avaliações de queixas provenientes e pouco visíveis, puderam ser sistematizadas e
de sua utilização no ambulatóro. Isso é neces- encaminhadas para discussão e deliberação.
sário porque o silicone industrial pode acarretar Nesse sentido, decisões e normatizações
dificuldade de deambulação pelo edema causado surgiram em decorrência deste processo: a reso-
pela sua migração para os membros inferiores, lução do Conselho Regional de Medicina nº 208,
também dores devido à dificuldade circulatória de 200916 (que antecedeu a Resolução no 1.955
decorrente da migração do produto para outras de 2010) e que foi fundamental para oficializar e
regiões do corpo, além de úlceras, infecções, nó- normatizar o atendimento as populações transgê-
dulos e alterações significativas, tanto na colora- neros no ambulatório. Esta resolução consta de
ção quanto na elasticidade da pele. É importante cinco artigos, que asseguram a esta população
ressaltar que em casos mais graves, o silicone in- atendimento integral a saúde (médico, psicosso-
dustrial pode cair na circulação e provocar embo- cial, psiquiátrico, psicoterapêutico), além de no-
lia, como a pulmonar, com risco de morte15. me social nos serviços de saúde do estado de
Podemos constatar nos atendimentos rea- São Paulo, independentemente do nome em re-
lizados no serviço que o apoio familiar, suporte gistro civil; também o Decreto nº 55.588 de 2010
social e a estabilidade emocional dos indivíduos do governo do Estado de São Paulo17, que dispõe
são fatores de proteção e resiliência significati- sobre o tratamento nominal das pessoas transe-
vos no enfrentamento das adversidades e pre- xuais e travestis nos órgãos públicos do Estado,
conceitos que fazem parte da realidade dessa assegurando a população transgênero o direito à
população. Outro fator de proteção observado é a escolha do tratamento nominal nos atos e proce-
construção e manutenção de rede social estável, dimentos realizados no âmbito da administração

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direta e indireta do estado de São Paulo; a elabo- que surgirão ou mesmo na incorporação desta
ração e publicação de um protocolo de cuidados população naqueles serviços já existentes.
à saúde integral para travestis (Portaria CCD/CRT Mais recentemente e como desdobramen-
nº a-1 de 2010)8 propiciou respaldo para a ação to das deliberações da 2ª Conferência Estadual
profissional em saúde (principalmente no que se LGBT de 201119 e em atenção ao previsto na Po-
referia a prescrição de hormônios) e, ao longo lítica Nacional de Saúde da População LGBT, im-
dos anos, vem servindo de referência para profis- plementada em 201120, foi implantado no âmbito
sionais nos mais diversos serviços do estado de da SES-SP o Comitê Técnico de Saúde Integral da
São Paulo, bem como de outros locais do país, População LGBT da Secretaria de Estado da Saú-
que desejam iniciar um atendimento dirigido a po- de de São Paulo21, cujas atribuições passam por
pulação de transexuais e travestis. implantar a política nacional no âmbito do estado,
Paralelamente, a experiência concreta do elaborando propostas de intervenção que tenham
trabalho da equipe multiprofissional que compõe como base o princípio da equidade e que envol-
o ASITT vem proporcionando oportunidades de vam os diversos programas de atenção em saúde,
aprendizado contínuo, de reflexão sistemática e bem como os diferentes níveis de complexidade
de compartilhamento do conhecimento acumula- desse sistema (primário, secundário e terciário).
do com outros serviços da rede SUS, bem como Certamente as demandas e necessidades das tra-
com pesquisadores vinculados a diversas univer- vestis e transexuais merecerão atenção especial
sidades do país, além da troca com organizações neste espaço e a experiência acumulada no ASITT
não governamentais e associações de travestis e serão fundamentais e estratégicas para que esta
transexuais. articulação técnica, que iniciou trabalhos em abril
É fundamental ainda lembrar a publicação de 2014, consiga atingir seus objetivos e metas.
da Portaria no 2.803 de 201318, que redefine e
amplia o processo transexualizador no SUS. A
coordenação do ASITT participou ativamente do Considerações finais
processo de revisão da portaria anterior e a ex- O pioneirismo do ASITT – que ousou as-
periência acumulada no ambulatório pode servir sumir a responsabilidade de prestar serviço de
de base para algumas das decisões que foram atenção à saúde a uma população até então pra-
tomadas e que avançaram no sentido de ampliar ticamente invisível e desassistida em suas ne-
o acesso e melhorar a qualidade da atenção dis- cessidades específicas – tem possibilitado o acú-
pensada, agora não mais somente aos transe- mulo de conhecimentos e experiências concretas
xuais (femininos e masculinos), mas também as que certamente estão contribuindo para a cons-
travestis, nessa nova portaria. trução de um sistema de saúde mais acolhedor
O desafio do Estado de São Paulo passou para pessoas com identidades de gênero diver-
agora a ser a ampliação e o aprimoramento da sas do estado de São Paulo. A atenção cotidiana
rede de atenção à saúde e a elaboração de uma a esta população tem nos permitindo entrar em
linha de cuidado para transexuais e travestis. O contato com realidades e contextos de vida que
Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e requerem, a todo o momento, reflexão e revisão
Transexuais torna-se estratégico para a viabiliza- de conceitos, condutas, fluxos e elaboração de
ção deste processo, ou seja, para contribuir na novos protocolos. Trata-se de um processo dinâ-
formação dos profissionais de novos serviços mico e altamente motivador.

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Diversidade Sexual e de Gênero

O aspecto dinâmico deve-se, em parte, à às diferentes realidades regionais ou municipais.


convivência cotidiana com o novo, aliado ao de- Paralelamente, é preciso investir na sensibiliza-
safio da intervenção multidisciplinar – em que ção e instrumentalização da rede como um todo
várias áreas do conhecimento se encontram e no que se refere ao direito dessas pessoas de
apresentam olhares diversos sobre essa popu- terem acesso à uma atenção em saúde acolhe-
lação e suas demandas. O embate de ideias e dora, livre de preconceito, julgamentos morais ou
a busca por consensos é um desafio constante, práticas discriminatórias. O respeito ao nome so-
com enorme potencial reflexivo, transformador e cial e sua incorporação efetiva, tanto no âmbito
gerador de novos aprendizados. relacional, como nos registros internos dos equi-
Nestes 9 anos, o ambulatório tem cumprido pamentos de saúde, ainda necessita ser ampla-
e avançado em sua proposta de ser um servi- mente divulgado e a estratégia para sua implan-
ço de referência para a população de travestis e tação ser urgentemente definida.
transexuais no estado de São Paulo. Ao mesmo No nível terciário da atenção, o acesso às
tempo, tem acompanhado e protagonizado mu- cirurgias de trangenitalização (e todos os demais
danças significativas na proposição de políticas procedimentos previstos na portaria que regula-
públicas de atenção a esta população. Vale res- menta o processo transexualizador) é ainda bas-
saltar, entre essas, a inclusão do direito ao uso tante restrito e sabidamente insuficiente para
do nome social, a revisão do processo transexu- atender à demanda. A única referência cadastra-
alizador no SUS e o acesso ao acompanhamento da para esta função no estado de São Paulo aca-
hormonal através do serviço público de saúde. ba sendo sobrecarregada e insuficiente, devido à
Para os próximos anos, há enormes desa- escassez de referências no país, o que nos obri-
fios a serem enfrentados, que exigirão esforços ga a absorver um número expressivo de pessoas
concentrados e articulados nos três níveis da vindas de outros estados e municípios. Assim,
gestão (federal, estadual e municipal). Ao olhar
faz-se urgente buscar estratégias para ampliar
para um contexto mais amplo das políticas públi-
essas referências em âmbito estadual e nacional
cas de saúde no âmbito do estado de São Paulo,
e, concomitantemente, investir na formação de
temos, de um lado, a presença do recém-criado
novos quadros qualificados para atender a toda
Comitê de Saúde Integral da população LGBT e,
a demanda.
de outro, a necessidade de operacionalizar as de-
terminações da recente portaria ministerial que
regula o processo transexualizador no SUS. Pode-
-se assim considerar que há canais formais es-
tabelecidos e necessidades concretas que preci- Referências
sam e devem ser articulados para a continuidade 1. São Paulo. (estado). Secretaria do Estado da Saúde. Cen-

deste processo. tro de Referência e Treinamento em DST/Aids-SP. (on line).


[acesso em: 12 nov 2018]. Disponível em: http://www.saude.
Entre os desafios, ainda se encontra a ne-
sp.gov.br/centro-de-referencia-e-treinamento-dstaids-sp/
cessidade urgente de ampliação da rede de aten-
2. São Paulo. (estado). Secretaria do Estado da Saúde. Centro de
ção especializada, onde a experiência do ASITT Referência e Treinamento em DST/Aids-SP. (on line). [acesso em:
deve ser considerada, não apenas enquanto mo- 12 nov 2018]. Disponível em: http://www.saude.sp.gov.br/
delo único a ser replicado, mas como possibilida- centro-de-referencia-e-treinamento-dstaids-sp/assistencia/
de concreta de resposta que pode ser adequada ambulatorio-de-saude-integral-para-travestis-transexuais

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Diversidade Sexual e de Gênero

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alizador, a ser implantado nas unidades federadas, respei- ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2016.
tadas as conpetências das três esferas de gestão. Brasília; 15. Pinto TP, et al. Silicone líquido industrial para transfor-
18 ago 2008. mar o corpo: prevalência e fatores associados ao seu uso
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travestis, transexuais e pessoas que apresentam dificulda- 17. São Paulo. Decreto nº 55.587. Institui o Conselho Esta-
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São Paulo; 27 jan 2010. tos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
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Diversidade Sexual e de Gênero

A experiência de implantação da Política de Saúde


Integral para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
Transexuais (LGBT) no município de São Paulo
The experience of implementing the Comprehensive Health Policy for Lesbians, Gays, Bisexuals,
Transvestites and Transgenders (LGBT) in the city of São Paulo

Gabriela Junqueira CalazansI, Salete Monteiro AmadorII, Gláucia Renata BerettaIII,


Nelson Figueira JuniorIV, Ana Lúcia CavalcantiV

Resumo Abstract

Este artigo compartilha a experiência de implantação da política This article shares the experience of implementing the LGBT health
de saúde LGBT em âmbito municipal, com ênfase na oferta de policy at the municipal level with emphasis on the offer of hormone
hormonioterapia para pessoas trans, por meio do caso do municí- therapy for transgender people, through the case of the municipa-
pio de São Paulo. Buscamos caracterizar as estratégias adotadas, lity of São Paulo. We seek to characterize the strategies adopted,
bem como debatemos algumas das limitações deste processo, os as well as discuss some of the limitations of this process, the chal-
desafios e as perspectivas colocados para o futuro. lenges and perspectives for the future.

Palavras-chaves: Minorias sexuais e de gênero; LGBT; Equidade em Keywords: Sexual and gender minorities; LGBT; Health equity; Se-
Saúde; Orientação sexual; Identidade de gênero; Pessoas transgê- xual orientation; Gender identity; Transgender people; Hormone
nero; Hormonioterapia. therapy.

I
Gabriela Junqueira Calazans (gajuca@usp.br) é psicóloga pelo Instituto IV
Nelson Figueira Junior (nelsonfigjunior@prefeitura.sp.gov.br) é Bacharel
de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), Mestre em Psicologia em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),
Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Douto- Especialista em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de
ra em Medicina Preventiva pela Faculdade de Medicina da Universidade de Campinas (PUC- Campinas); Especialista em Saúde Pública e assessor técni-
São Paulo (FMUSP), pesquisadora do Departamento de Medicina Preventiva, co responsável pela Política de Saúde Integral da População LGBT da Secre-
Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo taria Municipal de Saúde de São Paulo.
(HCFMUSP) e foi Interlocutora de Saúde LGBT e IST/HIV/Aids na Coordena-
doria Regional de Saúde Centro da Secretaria Municipal de Saúde de São
V
Ana Lúcia Cavalcanti (alucia@prefeitura.sp.gov.br) é médica pela Faculda-
Paulo, no período de março a agosto de 2015. de de Ciências Médicas de Pernambuco (FCM-PE), Analista Transacional pelo
Instituto Gente, Pós-Graduada em Terapia Sexual pela Sociedade Brasileira
II
Salete Monteiro Amador (samador@prefeitura.sp.gov.br) é psicóloga pela em Sexualidade Humana (SBRASH), Especialista em Sexualidade Humana e
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Pós-graduada em Mestre e Doutora em Medicina nas áreas de Obstetrícia e Ginecologia pela
Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM/USP) e assessora
São Paulo (IS/SES-SP) e Interlocutora de Saúde Integral da População LGBT técnica responsável pela Política de Saúde Integral da População LGBT da
e IST/HIV/Aids na Coordenadoria Regional de Saúde Centro da Secretaria Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo.
Municipal de Saúde de São Paulo.
III
Gláucia Renata Beretta (grberetta@yahoo.com.br) é médica, Especialista
em Endocrinologia e Metabologia, com residências de Clínica Médica no Con-
junto Hospitalar do Mandaqui da Secretaria de Estado da Saúde de São Pau-
lo (CHM/SES-SP) e no Hospital Federal da Lagoa (HFL) e de Endocrinologia
Feminina, no Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia Luiz Capriglione
(IEDE) e atua como médica Endocrinologista na Unidade Básica de Saúde Dr.
Humberto Pascalli da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo.

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Introdução cunho individual e coletivas –, e da igualdade –


Desde as décadas de 1980 e 1990, o pa- com vistas a garantir equidade em saúde, com
ís experimenta um processo gradual de reconhe- fundamento na noção de justiça social7. Na déca-
cimento das iniquidades sociais relacionadas à da de 2000, foram estabelecidas políticas com
diversidade de orientações sexuais e de identi- vistas a fomentar a equidade em saúde para gru-
dades de gênero por meio da organização do mo- pos sociais historicamente discriminados. Foi as-
vimento social LGBT e de sua interlocução com o sim que demandas populares expressas no âmbi-
Estado1,2,3,4,5. Este processo levou à instituição, to do Conselho Nacional de Saúde, da 13ª Confe-
em 2004, do “Programa de Combate à Violência rência Nacional de Saúde8 e no Plano Nacional de
e à Discriminação contra Gays, Lésbicas, Trans- Promoção da Cidadania e dos Direitos Humanos
gêneros e Bissexuais (GLTB) e de Promoção da de LGBT9 resultante da 1ª Conferência Nacional
Cidadania Homossexual Brasil sem Homofobia”6, GLBT, contribuíram para a instituição, no âmbito
tendo como objetivo a equiparação de direitos, o do SUS, da “Política Nacional de Saúde Integral
combate à violência e à discriminação homofóbi- de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Tran-
cas e o respeito às especificidades de cada um sexuais” (PNSI-LGBT), em 201110,11.
desses segmentos populacionais. Esta política tem como objetivo geral a pro-
Este programa compunha-se por 53 ações moção da saúde integral da população LGBT, por
em onze áreas – que incluíam oito secretarias e meio da eliminação da discriminação e do pre-
ministérios, incluindo o Ministério da Saúde –, conceito institucional com vistas a contribuir para
sendo que três destas ações dirigiam-se à pro- a redução das desigualdades e para a consoli-
moção do direito à saúde: a) a formalização do dação do SUS como sistema universal, integral
Comitê Técnico de Saúde da População de Gays, e equitativo. Segundo tal política, compete aos
Lésbicas, Transgêneros e Bissexuais do Ministé- municípios implementar a PNSI-LGBT, por meio
rio da Saúde, com vistas à estruturação de uma da identificação de necessidades de saúde da
política nacional de saúde para essa população; população LGBT localmente; da inclusão de tal
b) o apoio à implementação de condições para política no Plano Municipal de Saúde e no Plano
produção e acesso ao conhecimento científico Plurianual setorial, em consonância com realida-
sobre saúde e outros aspectos da população GL- des; do estabelecimento de mecanismos de mo-
TB; e c) o apoio aos investimentos na formação, nitoramento e avaliação da gestão e do impacto
capacitação, sensibilização e promoção de mu- da implementação desta política; da inclusão de
danças de atitudes de profissionais de saúde no conteúdos relacionados à saúde da população
atendimento às populações LGBT, visando garan- LGBT, em seus distintos recortes, nos processos
tir o acesso igualitário e o acolhimento de suas de educação permanente para trabalhadores de
especificidades de saúde6. saúde; da implantação de práticas educativas na
O Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro é rede de serviços do SUS para melhorar a visibili-
produto de iniciativa de participação popular por dade e o respeito a pessoas LGBT; e do apoio à
meio da ação dos distintos grupos integrantes participação social de movimentos sociais organi-
do Movimento da Reforma Sanitária e funda-se zados da população LGBT nos conselhos munici-
nos princípios da universalidade – assegurando pais de saúde, nas conferências de saúde e em
o direito à saúde para todos –, da integralidade todos os processos participativos articulados à
– articulando medidas preventivas e curativas de gestão das políticas locais de saúde; de forma a

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contribuir para a melhoria das condições de vida Grupo de TrabalhoVI (GT)15 que tinha como objeti-
da população LGBT, em articulação com outros vo definir diretrizes e estratégias para a implanta-
setores de políticas sociais. ção da PNSI-LGBT na cidade de São Paulo. Esse
Este artigo compartilha a experiência de im- GT teve caráter intersetorial e articulou represen-
plantação da política de saúde LGBT em âmbito tantes da Secretaria Municipal da Saúde – sob o
municipal, por meio do caso do município de São comando do Secretário-Adjunto, incluindo a Coor-
Paulo. Buscamos caracterizar as estratégias ado- denação de Áreas Técnicas e Redes de Atenção
tadas, bem como debatemos algumas das limita- à Saúde, a Coordenação da Atenção Básica, a
ções deste processo, os desafios e as perspecti- Coordenação do Programa Municipal de DST/Ai-
vas colocados para o futuro. ds, a Área Técnica de Saúde Mental, Álcool e Dro-
gas, a Escola Municipal de Saúde e a Supervisão
Técnica de Saúde Sé da Coordenadoria Regio-
Processo de implantação de uma política de nal de Saúde Centro – e da Secretaria Municipal
saúde LGBT no município de São Paulo de Direitos Humanos e Cidadania (substituta da
A implantação de políticas voltadas à popu- SPP), sob o comando da Coordenação de Políti-
lação LGBT no município de São Paulo se iniciou cas LGBT (antiga CADS).
em 2005 com a criação da Coordenadoria de As- Com vistas a garantir as bases para a im-
suntos de Diversidade Sexual (CADS) no âmbito da plantação desta política, em consonância com as
Secretaria de Participação e Parceria da Prefeitura premissas da participação popular e do contro-
de São Paulo (SPP-SP), que veio a ser formalizada le social das políticas públicas, foram adotadas
em 200812. Ainda em 2005, foi instituído o Con- várias estratégias para assegurar a participação
selho Municipal de Atenção à Diversidade Sexu- dos diferentes atores envolvidos. Para identificar
al, assegurando a articulação com os movimentos as necessidades locais de saúde da população
sociais13. Em abril de 2008, a Prefeitura de São LGBT, o GT empreendeu análise das resoluções
Paulo realizou a I Conferência Municipal LGBT, co- da 2ª Conferência Municipal LGBT – realizada em
mo um dos eventos preparatórios à I Conferência 2011 – estabelecendo suas correlações com os
Nacional LGBT, convocada pela Presidência da Re- eixos da PNSI-LGBT. Em outubro de 2013, foi re-
pública e realizada entre os dias 5 e 8 de junho da- alizado o Seminário Municipal de Saúde LGBT
quele ano. Esta conferência teve saúde e direitos voltado a trabalhadores, usuários e gestores da
humanos como tema de um de seus grupos. saúde, assim como aos movimentos sociais, com
Por meio da ação do Conselho Municipal de a proposta de apresentar uma primeira redação
Atenção à Diversidade Sexual, foi elaborado, em da política municipal e incluir reivindicações da
2012, um Plano Municipal de Promoção da Cida-
dania LGBT e Enfrentamento da Homofobia para
Agradecemos ao Grupo de Trabalho Atenção à Saúde Integral da Popula-
o decênio até 2022, que não chegou ser insti-
VI

ção LGBT, integrado pelos representantes da Secretaria Municipal de Saúde


tuído como lei municipal, embora parte de suas de São Paulo: Iara Alves de Camargo (Coordenação das Áreas Técnicas),
Celso Ricardo Monteiro e Rosana Del Bianco (Programa Municipal de DST/
propostas tenham sido incorporadas no Plano de Aids), Clóvis Silveira Júnior (Coordenação da Atenção Básica), Maria Cíce-
ra de Salles (Assessoria de Gestão Participativa), Sandra Aparecida dos S.
Governo de Fernando Haddad, à época candidato Stalhauer, Maria do Carmo S. Monteiro e Jaqueline Alves Lopes Sartori (Es-
cola Municipal de Saúde) e Sonia Trassi (Coordenadoria Regional de Saúde
a prefeito do município. Centro) e da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania: Julian
Rodrigues, Alessandro Melchior e Belchior Torres (Coordenação de Políticas
Após a eleição municipal que deu vitória a para LGBT), pela elaboração do “Relatório do Processo de Implantação da
Política Municipal de Atenção à Saúde Integral da População LGBT”14, que
este candidato, no ano de 2013, foi instituído um nos permitiu recuperar tal processo.

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sociedade civil organizada. Foi realizada também, Visando a institucionalizar a política, o GT


entre outubro e novembro de 2013, “Investiga- elaborou três minutas de portarias para: a) a
ção sobre Saúde Integral da População de LGBT instituição do Comitê Técnico de Saúde Integral
na Rede Básica”16, com vistas a contribuir com a de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Tran-
avaliação dos processos saúde-doença-cuidado sexuais, da Secretaria Municipal de Saúde; b)
e da situação de saúde desta população, a partir a instituição da Política Municipal de Atenção à
do olhar das unidades básicas de saúde (UBS) da Saúde Integral da População LGBT no município
região centralVII, com foco na frequência de tais de São Paulo; e c) a implantação do Plano Ope-
populações nos serviços e na atenção integral à rativo 2014/201518 para a Política Municipal de
sua saúde. Esta investigação explorou questões Atenção à Saúde Integral da População LGBT.
como: acolhimento, humanização, procedimen- Fragilidades e instabilidades no âmbito das du-
tos, vínculos, relação com a comunidade, ações as secretarias municipais envolvidas impossibi-
extramuros das unidades e encaminhamentos in- litaram a publicação das mesmas, o que não
dicados. Os dados coletados das UBS foram ana- significou a paralisação do processo de implan-
lisados e, posteriormente, debatidos em devolu- tação de tal política.
tiva dada pelos integrantes do GT nas UBS envol- Em função da pressão do movimento so-
vidas, de forma a ampliar a interlocução com os cial e da centralidade dada ao processo tran-
serviços e os profissionais de saúde implicados sexualizador no âmbito das políticas de saúde,
no processo de implantação da referida política, foi instituído o Comitê Técnico para Implantação
bem como ampliar sua sensibilização e a legiti- do Protocolo de Terapia Hormonal19 na Secreta-
midade de tal processo. Em seguida, realizou-se ria Municipal de Saúde de São Paulo (SMS-SP).
uma Consulta Pública sobre a redação da Política Este comitê teve como objetivo elaborar um pro-
Municipal de Atenção à Saúde Integral da Popula- tocolo técnico para a oferta de hormoniotera-
ção LGBT (PMSI-LGBT) – entre dezembro de 2013 pia às travestis e transexuais, em consonância
e janeiro de 2014 – e uma Audiência Pública, na com os princípios do SUS e as necessidades
Secretaria Municipal de Cultura, em março de e especificidades de cada pessoa, com apoio
2014, de acordo com proposta da Defensoria Pú- multidisciplinar, para que fosse submetido ao
blica do Estado de São Paulo, para incorporação secretário-adjunto da saúde e subsidiar a com-
das propostas apresentadas. Foi, então, realiza- pra dos hormônios. Para sua consecução con-
da apresentação do documento em sessão ordi- tou com a colaboração de órgãos centrais e re-
nária do Conselho Municipal de Atenção à Diver- gionais da SMS-SP. Também foi central, neste
sidade Sexual e em reunião ordinária do Conse- cenário de instabilidades político-institucionais,
lho Municipal de Saúde de São Paulo (CMS-SP), para que a rede municipal de saúde ofertasse
plenário que aprovou esta política municipalVIII,17. a terapia hormonal nos equipamentos munici-
pais referenciados no âmbito do processo tran-
sexualizador pelo SUS20, o comprometimento de
VII
Região escolhida para desencadear a implantação da política no municí- técnicos e gestores envolvidos no processo e
pio, tendo em vista a tradicional presença das populações LGBT.
os compromissos assumidos pela Prefeitura do
VIII
Este foi um importante diferencial da experiência paulistana de implan-
tação da PNSI-LGBT: o envolvimento do secretário-adjunto da Saúde, que Município de São Paulo (PMSP) junto a travestis
assegurou a participação de diferentes áreas e a sua institucionalização no
âmbito da SMS-SP em articulação com o CMS-SP. e transexuais em situação de vulnerabilidade

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social beneficiários de seu programa social de agravos e de promoção da saúde, mostran-


“Transcidadania”IX 21,22. do sua vulnerabilidade. Surge nesse atendimen-
to, portanto, a oportunidade de se alcançar es-
sa população e integrá-la à rede de serviços. O
Hormonioterapia para as travestis e transexuais: papel do SUS é fundamental para promoção de
incentivo ao acesso à saúde e garantia de acesso, respeito e equidade no direito à saúde
equidade no SUS de pessoas trans.
Mesmo sem formalização no âmbito mu- Esta linha de cuidado buscou articular mé-
nicipal, foram organizados protocolo e linha de dicos generalistas, clínicos, psiquiatras e psicólo-
cuidado para assegurar a oferta do tratamento gos alocados nas UBS da CRS-Centro (UBS Sé,
hormonal para atender à demanda para o pro- Cambuci, Nossa Senhora do Brasil, Humaitá, Re-
cesso transexualizador no âmbito da Coordena- pública, Bom Retiro, Boracea, Santa Cecília, Cen-
doria Regional de Saúde Centro (CRS-Centro) tro de Saúde-Escola Barra Funda) e no Serviço
da SMS-SP, em conformidade com a Portaria nº de Assistência Especializada em DST/Aids (SAE)
2.80319, que redefine e amplia tal processo no Campos Elíseos (ofertando para soropositivos pa-
SUS. A hormonioterapia é uma necessidade em ra HIV em acompanhamento), para o encaminha-
saúde para pessoas trans que, em geral, dese- mento da demanda para o processo transexuali-
jam adequar características físicas à sua identi- zador à endocrinologista do serviço de hormonio-
dade de gêneroX,23,24. Falamos aqui, amplamen- terapia para as pessoas trans (quadro 1).
te, de pessoas trans, nomeando a experiência
daquelas que não se identificam com o sexo de- Quadro 1: Linha de cuidado do processo tran-
signado ao nascer – o que inclui travestis, tran- sexualizador - Coordenadoria Regional de Saúde
sexuais, pessoas com identidade não binária ou Centro (CRS-C) da Secretaria Municipal de Saúde
queer4 . Acompanhamentos clínico e endocrino- de São Paulo, 2015.
lógico são fundamentais neste processo, pois
visam o uso de hormônios com segurança, evi-
Etapa Local
tando agravos à saúde.
Demanda por cuidados em saúde
Muitas pessoas buscam o atendimento pe- e por tratamento hormonal para
transexualização por pessoa trans
la oferta dos medicamentos e hormônios ofereci-
dos, relegando a atenção à saúde geral a segun- 9 UBS da
Acolhimento realizado na recepção CRS-Centro e SAE
do plano. Várias nunca acessaram uma UBS, nem das UBS de referência Campos Elíseos
(no caso de pessoas
mesmo compreendem seu papel de prevenção HIV+ acompanhadas
Atendimento e avaliação médica
realizados por médicos generalistas no serviço)
e clínicos nas UBS de referência
IX
O programa “Transcidadania”, da Secretaria Municipal de Direitos Huma-
nos e Cidadania de São Paulo, ofertava benefício financeiro para que traves- Avaliação psicológica
tis e transexuais pudessem acessar o estudo formal, melhorando sua esco-
laridade, possibilitando recolocação profissional e promovendo a cidadania.
X
Tal como definido pelos “Princípios de Yogyakarta”24 – documento de prin- Avaliação endocrinológica
cípios que trata da aplicação da legislação internacional de direitos humanos e tratamento hormonal UBS Santa Cecília
sobre orientação sexual e identidade de gênero –, “identidade de gênero transexualizador
está definida como a profundamente sentida experiência interna e individual
do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído
no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por CER (Centro
livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médi- Avaliação e terapia fonoaudiológica Especializado
cos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimen-
em Reabilização)
ta, modo de falar e maneirismos.” (p.7).

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O protocolo de cuidados ofertado buscou ar- psicoterápico que poderá ser realizado individu-
ticular diferentes ações em saúde: almente ou em grupo. Elaborar um plano indivi-
dual de acompanhamento para as/os pacientes
– acolhimento: que desejam cirurgia, observando as exigências
Realizado no serviço de Atenção Básica pa- da portaria do processo transexualizador no SUS.
ra qualquer pessoa que se identifique como trans Avaliar e reencaminhar demandas para a Rede
e/ou que não se identifique com o sexo designa- de Atenção Psicossocial (RAPS) quando a neces-
do ao nascer; os serviços devem receber esta sidade da/o usuária/o não for decorrente de sua
população, identificar suas demandas, garantir identidade de gênero ou sexualidade, como, por
o acesso aos serviços de saúde com respeito exemplo, uso abusivo de álcool e outras drogas,
a sua identidade de gênero, utilizando o nome comorbidades psiquiátricas etc.
social, que deve constar nas etiquetas e na ca-
pa do prontuário. Quando for do interesse da/o – avaliação endocrinológica e tratamento hor-
usuária/o receber hormonioterapia, deverá ser monal transexualizador (hormonioterapia):
encaminhado para atendimento e avaliação mé- Acompanhamento por endocrinologista, ou
dica e psicológica que o qualifique para encami- médico generalista com formação adequada, da
nhamento ao endocrinologista. utilização de terapia medicamentosa hormonal
(estrógeno ou testosterona), que deverá ser dis-
– atendimento e avaliação médica: ponibilizada mensalmente e iniciada após avalia-
Consulta médica realizada por médico ge- ção da necessidade hormonal para adequação à
neralista da Estratégia de Saúde da Família ou identidade de gênero referida pela/o usuária/o
do Consultório na Rua e/ou por médico clínico do processo transexualizador. O tratamento tem
ou ginecologista no âmbito da Atenção Básica como objetivo diminuir o nível hormonal próprio e
para atendimento de demandas gerais e espe- aumentar os níveis hormonais compatíveis com o
cíficas e avaliação das condições de saúde da/o gênero de identificação, promovendo o surgimen-
usuária/o. Na anamnese e no exame físico serão to de suas características físicas e reduzindo as
investigadas questões gerais e específicas das características do sexo biológico.
pessoas trans, além de exames laboratoriais e
de imagem que devem ser solicitados na rotina – avaliação e terapia fonoaudiológica:
em virtude das necessidades singulares da/o Avaliação por parte de fonoaudiólogo espe-
usuária/o. cializado em voz e aparelho fonador e terapia pa-
ra auxiliar nas mudanças de voz para adequação
– avaliação psicológica: à identidade de gênero referida pela/o usuária/o.
Avaliação clínica por meio de entrevistas A terapia tem duração aproximada de 1 sessão
individuais, com média de três sessões, com semanal por, em média, 12 semanas.
foco nas questões de identidade de gênero e Em 1º de outubro de 2015, foi lançado ofi-
sexualidade e outras experiências de sofrimen- cialmente pela SMS-SP o serviço de hormoniote-
to psíquico decorrentes da transfobia para com- rapia para pessoas trans com idade de 18 anos
preender e compartilhar sua decisão de realizar ou mais, na UBS Dr. Humberto Pascale (conheci-
as mudanças corporais pretendidas. Avaliar e, da como UBS Santa Cecília). Este serviço com-
quando necessário, oferecer acompanhamento põe um dos eixos da PMSI-LGBT, conforme as

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diretrizes da PNSI-LGBT11 do Ministério da Saúde. as UBS Sé, República e Santa Cecília, mas a hor-
A hormonioterapia norteou o início dos cuidados monioterapia se concentra nesta última UBS por
em saúde para as pessoas trans, sendo uma ne- enquanto, com planos de expansão para as ou-
cessidade específica em saúde, que procura in- tras, principalmente para a UBS República.
centivar esta população nos cuidados de saúde Posteriormente, foram realizados grupos
em geral. A maioria das pessoas trans, até então, nas próprias unidades em que as/os beneficiá-
acessava os serviços de saúde somente em situ- rias/os do programa receberiam atendimento em
ações de urgência e emergência. Poucas tinham saúde e iniciariam a realização de exames do
vínculo com as UBS de sua referência, e eram protocolo. Notamos, nesta experiência, que co-
comuns relatos de discriminação e preconceitos. nhecer os profissionais da equipe de saúde e a
Em um primeiro momento, a hormoniotera- unidade de saúde facilitou o vínculo desta popu-
pia foi ofertada para 100 beneficiárias e benefici- lação e possibilitou o acesso às etapas de aten-
ários do programa “Transcidadania” – em parce- dimento, mesmo para aqueles com histórico de
ria com a Secretaria Municipal de Direitos Huma- preconceito em serviços de saúde.
nos e Cidadania de São Paulo – e, posteriormen-
te, para mais 100 pessoas do programa. Logo
em seguida, foi ofertada para as pessoas trans Qualificação dos profissionais de saúde da rede
de toda a cidade. de serviços para o acesso, acolhimento, atenção
Foram realizados seis grupos sobre ques- e cuidado integral à saúde da população LGBT
tões relacionadas ao uso de hormônios, coor- Para implantar a linha de cuidado do proces-
denados por médica endocrinologista (da UBS so transexualizador, foi fundamental sensibilizar
Santa Cecília), assessora técnica da CRS-Centro, os profissionais dos serviços envolvidos para as
fonoaudióloga (do Centro Especializado em Rea- necessidades de saúde desta população. Para
bilitação III SéXI) e por psicólogos e assistentes isso, foram realizadas oficinas de sensibilização
sociais do “Transcidadania”. Neles, essas/es em todas as UBS da CRS-Centro, em parceria
participantes recebiam dia, hora e local em que com os profissionais do Centro de Cidadania do
seriam atendidos por médico clínico geral ou ge- Arouche, atual Centro de Cidadania LGBTI (CCL-
neralista em uma das UBSs da CRS-Centro, mes- GBTI) Luiz Carlos Ruas. O objetivo foi atualizar o
mo aqueles que não desejavam realizar a hormo- conhecimento desses trabalhadores da saúde
nioterapia. Por se tratar de uma população com sobre a população LGBT, principalmente aqueles
inúmeras vulnerabilidades, o atendimento não que trabalhavam nas recepções, farmácias e se-
respeitou a questão territorial, pois se avaliou gurança, buscando a melhora no acesso e cui-
que isto dificultaria o acesso aos serviços de saú- dados em saúde desta população. Foram abor-
de. A porta de entrada para as/os beneficiárias/ dados temas, como identidade de gênero, orien-
os do “Transcidadania” foi predominantemente tação sexual, vulnerabilidades, direito ao uso e
registro no cartão SUS do nome social, direito à
saúde, homofobia, transfobia e foi apresentado o
XI
Centro Especializado em Reabilitação (CER) III é um ponto de atenção am- fluxo para hormonioterapia.
bulatorial especializado em reabilitação, que realiza diagnóstico, tratamento,
concessão, adaptação e manutenção de tecnologia assistiva, constituindo- Estas oficinas foram estratégicas para o
-se em referência para a rede de atenção à saúde da pessoa com deficiência
no território. Organizado a partir da combinação de no mínimo duas moda- acesso em saúde das pessoas trans e continuam
lidades de reabilitação (auditiva, física, intelectual), o CER III congrega três
serviços de reabilitação já em funcionamento25. a ser realizadas frequentemente nas unidades, já

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Diversidade Sexual e de Gênero

que surgem novas questões e há rotatividade de da População LGBT (NUDHES) da Faculdade de


profissionais nas equipes. A equipe dos profissio- Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e
nais do Ambulatório de Saúde Integral para Tra- a Maternidade da Santa Casa.
vestis e Transexuais (ASITT) da Secretaria de Es- As equipes de Consultório na Rua também
tado da Saúde de São Paulo (SES-SP), localizado são parcerias estratégicas no acesso e na assis-
no município de São Paulo no prédio do Centro de tência de saúde para as pessoas LGBT em situ-
Referência e Treinamento em DST/Aids (CRT-DST/ ação de rua, atuando também junto às pessoas
Aids), que possui ampla experiência nos cuidados trans em situação de rua e residentes em abrigos
em saúde e em hormonioterapia para as pessoas – como o Centro de Acolhida Florescer, da Secre-
trans, apoiou o município de São Paulo na implan- taria Municipal de Assistência e Desenvolvimen-
tação deste processo de trabalho. Isso se deu por to Social de São Paulo –, facilitando o acesso à
meio de capacitações da equipe multidisciplinar, hormonioterapia.
de supervisões clínicas e de reuniões técnicas O acesso das pessoas trans à hormoniotera-
mensais para profissionais de psicologia da saú- pia revelou outras necessidades em saúde, como
de e direitos humanos do município sobre o tema. a necessidade de acompanhamento das cirurgias
Para além da qualificação das equipes, o ASITT de redesignação sexual e mamoplastia masculini-
colaborou por meio do compartilhamento de docu- zadora, reguladas pelo ASITT e realizadas nos hos-
mentos, protocolos clínicos e medicamentososXII, pitais da Secretaria de Estado da Saúde de São
termos de consentimento livre e esclarecido, entre Paulo. Este acompanhamento é realizado por en-
outros – apoio técnico e documental fundamental docrinologista, psicólogo/a e psiquiatra, tanto na
para o município de São Paulo. UBS Santa Cecília, quanto em outras unidades de
saúde, como o Centro Saúde Escola Barra Funda
– que, por meio do Ambulatório de Generidades
Parcerias na construção das Redes de Cuidado
(AGE) da Santa Casa, realiza o acompanhamento
Recentemente, o trabalho na CRS-Centro
em saúde mental para a população LGBT.
ampliou-se, incluindo as equipes de Consultório
na RuaXIII, além de parcerias com outras Secreta-
rias e Instituições Hospitalares. Ampliação para outras regiões da cidade,
Na UBS Santa Cecília, o atendimento gine- com outras estratégias e fluxos
cológico e obstétrico dos homens transexuais de- O movimento gerado em torno da construção
mandou a ampliação dos cuidados e acolhimento da PMSI-LGBT e da implantação do serviço de hor-
para o parto – parceria com os Núcleos de Huma- monioterapia para as pessoas trans na UBS Santa
nização da Santa Casa e da SES-SP, com o Nú- Cecília possibilitou a qualificação de profissionais
cleo de Pesquisa em Direitos Humanos e Saúde médicos lotados em outras coordenadorias regio-
nais de saúde do município, além da expansão
deste serviço para estas regiões. Na CRS Norte,
XII
O município passou a realizar a compra de três medicações, sendo dois
hormônios, de acordo com os protocolos adotados pelo ASITT/SES-SP: cipro- a implantação do serviço de hormonioterapia ocor-
terona, estradiol valerato e undecilato de testosterona.
reu em agosto de 2016, no Ambulatório de Espe-
XIII
Segundo Departamento da Atenção Básica do Ministério da Saúde: “A es-
tratégia Consultório na Rua foi instituída pela Política Nacional de Atenção cialidades (AE) da Freguesia do Ó, seguindo as re-
Básica, em 2011, e visa ampliar o acesso da população em situação de rua
aos serviços de saúde, ofertando, de maneira mais oportuna, atenção integral ferências técnicas e organizacionais colocadas em
à saúde para esse grupo populacional, o qual se encontra em condições de
vulnerabilidade e com os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados”26. prática no serviço da região central.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Apesar deste novo serviço e da previsão Implantação do Comitê Municipal


de implantação de outros, a UBS Santa Cecília de Saúde LGBT
permanece como a principal referência municipal Para consolidar a PMSI-LGBT, bem como
para o atendimento de hormonioterapia para pes- o protocolo de atendimento do serviço de hor-
soas trans, dando suporte e retaguarda para as monioterapia praticado nas unidades de saúde,
demais regiões de saúde. Em 2018, em parceria foi organizado um Comitê Técnico em parceria
com a equipe do ASITT/SES-SP, foram envolvidas com a sociedade civil, com participação de to-
equipes multiprofissionais de todas as regiões de dos os segmentos LGBT e outras áreas técnicas
saúde nessa ação, permitindo o planejamento de da SMS-SP. Trata-se do órgão responsável pela
serviços de hormonioterapia em cada uma das proposição e definição de uma política ampla
seis CRS do município. de saúde da população LGBT no âmbito da rede
Iniciou-se o atendimento de hormoniotera- pública municipal, bem como por reunir e siste-
pia no AE Alto da Boa Vista (CRS Sul), com previ- matizar as demandas dessa população alocada
são futura de abertura desse serviço também em nas unidades de saúde. Como órgão propositivo,
Guaianases, no AE/UBS/CEO Jardim São Carlos compete a este comitê fomentar a construção de
(CRS Leste) e na AMA/UBS Perus (CRS Norte). novas políticas em prol da saúde da população
Particularmente, na CRS Oeste há um processo LGBT e revisar o plano de custeio anual, priori-
diferenciado de implantação do serviço de hor- zando ações segundo a realidade epidemiológica
monioterapia, organizado a partir da experiência e a reivindicação dos movimentos sociais e de
de profissionais de Estratégia de Saúde da Famí- outros setores da sociedade civil.
lia no atendimento às pessoas trans que, junto As proposições assim apresentadas deverão
às equipes multiprofissionais qualificadas na ca- estar articuladas com as CRSs do município, na
pacitação, irão receber e centralizar os insumos reformulação das ações de promoção da saúde,
na farmácia de uma das UBS e iniciar os atendi- prevenção de doenças e agravos e assistência à
mentos nesses próprios serviços, que são vincu- saúde, sempre numa visão de integralidade do cui-
lados à Supervisão Técnica de Saúde Butantã, dado, em consonância com as diretrizes das PNSI-
também seguindo as preconizações dos protoco- -LGBT e da PMSI-LGBT. O Comitê Técnico, portan-
los vigentes. Há, ainda, a previsão de implantar o to, atua na perspectiva de ampliar a compreensão
serviço em um ambulatório de especialidades da da saúde da população LGBT, sobretudo visando
CRS Sudeste, em definição. à hormonioterapia, promovendo ações que con-
Prestes a atingir a meta de implantação de greguem pessoas dos diferentes gêneros e gera-
um serviço de atenção integral à saúde das pes- ções, com distintas condições de vida, contextos
soas trans em cada uma das regiões de saúde, sociais, econômicos, políticos e culturais.
notamos que, na medida em que se expandiram
os serviços de hormonioterapia, novos profis-
sionais se sensibilizaram, oportunizando outras Considerações finais: limitações do processo,
perspectivas de atendimento além dos já plane- desafios e perspectivas para o futuro
jados e, dessa forma, ampliando paulatinamente A experiência desenvolvida até o momento
a quantidade de profissionais que dão acesso e nos mostra que é possível atender às pessoas
participam dos fluxos assistenciais necessários trans em UBS e implantar serviço de referência
aos usuários LGBT. para hormonioterapia no âmbito dos municípios.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Para tanto, é necessário fortalecer o vínculo das 2016; 47:e164717. [acesso em: 5 jan 2017]. Disponí-
pessoas trans com os serviços de saúde e seus vel em: http://w w w.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0104-83332016000200604&lng=en&nr
profissionais, além de enfrentar diligentemente os
m=iso
preconceitos institucionais – que se expressam
3. Facchini R. Sopa de letrinhas? Movimento homossexual
desde o desrespeito ao nome social às restrições e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de
para a adequação de rotinas que possam assegu- Janeiro: Garamond; 2005.
rar o acesso desta população (como a flexibiliza- 4. Gomes R, Murta D, Facchini R, Meneghel SN. Gêne-
ção de horários para coleta de sangue, etc.). ro, direitos sexuais e suas implicações na saúde. Ci-
ênc. Saúde Colet. [online]. 2018; 23(6): 1997-2006
Em relação à Portaria que institui o proces-
[acesso em: 13 set 2018]. Disponível em: https://doi.
so transexualizador20, seria importante assegurar
org/10.1590/1413-81232018236.04872018
o incentivo financeiro aos municípios engajados 5. Simões JA, Facchini R. Do movimento homossexual ao
com as políticas de saúde LGBT. No entanto, os LGBT. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo; 2009.
critérios de credenciamento são bastante exi- 6. Brasil. Conselho Nacional de Combate à Discriminação.
gentes – como, por exemplo, as categorias pro- Brasil sem homofobia: programa de combate à violência e
fissionais exigidas nos serviços ambulatoriais de à discriminação contra GLTB e promoção da cidadania ho-
mossexual. Brasília: Ministério da Saúde; 2004.
hormonioterapia –, dificultando este processo, de
7. Escorel S. Reviravolta na saúde: origem e articula-
forma que ainda não conseguimos credenciar a
ção do movimento sanitário [online]. Rio de Janeiro: Edi-
UBS Santa Cecília para receber esses recursos. tora FIOCRUZ; 1999 [citado em: 26 mar. 2018]. Dispo-
Outro desafio que se coloca é a criação de re- nível em: http://books.scielo.org/id/qxhc3/pdf/esco-
ferências para a realização de cirurgias de ma- rel-9788575413616.pdf
moplastia masculinizadora e histerectomia para 8. Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saú-
de. Relatório final da 13ª Conferência Nacional de Saúde:
homens trans na rede de saúde municipal.
saúde e qualidade de vida: políticas de estado e desenvol-
Por fim, é preciso avançar na implantação
vimento/Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Saúde.
do atendimento à saúde integral da população – Brasília: Editora do Ministério da Saúde; 2008.
LGBT em todas as unidades de saúde do municí- 9. Brasil. Presidência da República. Secretaria Especial dos
pio. Tanto no compartilhamento das ações para Direitos Humanos. Plano Nacional de Promoção da Cidada-
garantir o acesso e o tratamento hormonal pa- nia e dos Direitos Humanos de LGBT. Brasília: Presidência
ra pessoas trans, como no reconhecimento das da República; 2009.
10. Brasil. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Porta-
especificidades de lésbicas, gays, bissexuais e
ria nº 2.836. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde
intersexuais em relação à sua saúde e aos cuida-
(SUS), a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays,
dos a serem providos por profissionais de saúde. Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília; 1 dez 2011.
11. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Es-
tratégica e Participativa. Política Nacional de Saúde Integral
de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Bra-
sília: Ministério da Saúde; 2012.
Referências 12. São Paulo (cidade). Lei Municipal n° 14.667. Cria a Se-
1. Calazans GJ. Políticas públicas de saúde e reconheci- cretaria Municipal de Participação e Parceria - SMPP, bem
mento: um estudo sobre prevenção da infecção pelo HIV pa- como dispõe sobre seu quadro de cargos de provimento em
ra homens que fazem sexo com homens. [tese]. Faculdade comissão. São Paulo; 14 jan 2008.
de Medicina. Universidade de São Paulo. São Paulo; 2018. 13. São Paulo (cidade). Decreto n° 46.037. Institui o Conse-
2. Carrara S. A antropologia e o processo de cidada- lho Municipal de Atenção à Diversidade Sexual. São Paulo;
nização da homossexualidade no Brasil. Cad. Pagu. 4 jul 2005.

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Diversidade Sexual e de Gênero

14. Relatório do Processo de Implantação da Política Muni- Técnico para Implantação do Protocolo de Terapia Hormonal
cipal de Atenção à Saúde Integral da População LGBT. (mi- destinado à travestis e transexuais, na rede SUS do municí-
meo/online). São Paulo: SMS/SP; 2014. [acesso em: 11 pio de São Paulo. São Paulo; 28 mar 2014.
out 2018]. Disponível em: http://sms.sp.bvs.br/lildbi/doc- 20. Brasil. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Porta-
sonline/get.php?id=7628 ria nº 2.803. Redefine e amplia o processo transexualizador
15. São Paulo (cidade). Secretaria Municipal da Saúde. Ga- no Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília; 19 nov 2013.
binete do Secretário. Portaria n° 820. Institui o Grupo de 21. São Paulo (cidade). Gabinete do Prefeito. Decreto nº
Trabalho para instalação da Política Nacional de Saúde In- 55.874. Institui o programa TransCidadania, destinado à
tegral da População LGBT no âmbito do município de São promoção da cidadania de travestis e transexuais em situa-
Paulo. São Paulo; 10 mai. 2013. ção de vulnerabilidade social; altera disposições dos Decre-
16. GT Atenção à Saúde Integral da População LGBT. Anexo tos nº 44.484, de 10 de março de 2004, e nº 40.232, de 2
II: investigação básica – situação de saúde da população de janeiro de 2001. São Paulo; 29 jan 2015.
LGBT no contexto das unidades básicas de saúde na en- 22. São Paulo (cidade). Gabinete do Prefeito. Decreto nº
tão Supervisão Técnica da Sé. In: Prefeitura do Município 58.227. Confere nova regulamentação ao programa Trans-
de Saúde Paulo. Secretaria Municipal da Saúde. Secretaria Cidadania, instituído pelo Decreto nº 55.874, de 29 de ja-
Municipal de Direitos Humanos e Cidadania. Política Muni- neiro de 2015, bem como institui e inclui, no calendário
cipal de Atenção à Saúde Integral da População LGBT – re- de eventos da cidade de São Paulo, o “Mês da Visibilidade
latório do processo de implantação. São Paulo; SMS/SP; Trans”. São Paulo; 16 mai 2018.
2014. (online). [acesso em: 11 out 2018]. Disponível em: 23. Brasil. Ministério da Saúde. Cadernos de Atenção Bási-
http://sms.sp.bvs.br/lildbi/docsonline/get.php?id=7628 ca. Saúde sexual e saúde reprodutiva. Brasília, 2010.
17. Prefeitura do Município de Saúde Paulo. Secretaria Mu- 24. Princípios de Yogyakarta. Princípios sobre a aplicação
nicipal da Saúde. Secretaria Municipal de Direitos Humanos da legislação internacional de direitos humanos em relação
e Cidadania. Anexo III. Política Municipal de Atenção Saú- à orientação sexual e identidade de gênero. Tradução Jones
de Integral da População LGBT. (online). São Paulo; 2014. de Freitas. 2007. [acesso em: jun. 2015]. Disponível em:
[acesso em: 11 out 2018]. Disponível em: http://sms. http://www.clam.org.br/pdf/Yogyakarta.pdf
sp.bvs.br/lildbi/docsonline/get.php?id=7628 25. Ministério da Saúde. Reabilitação. (portal online). [aces-
18. Prefeitura do Município de Saúde Paulo. Secretaria Mu- so e: 11 out 2018]. Disponível em: http://portalms.saude.
nicipal de Saúde. Plano Operativo Municipal para Política gov.br/saude-para-voce/saude-da-pessoa-com-deficiencia/
LGBT de São Paulo. (online). São Paulo; 29 nov 2013. [acesso reabilitacao
em: 11 out 2018]. Disponível em: https://pt.slideshare.net/ 26. Ministério da Saúde. Departamento da Atenção Bási-
escolamunicipaldesaude/saude-integral-3-pop-lgbt-2013-1 ca. Consultório na rua. (online). [acesso em: 11 out 2018].
19. São Paulo (cidade). Secretaria Municipal da Saúde. Disponível em: http://dab.saude.gov.br/portaldab/ape_con-
Gabinete do Secretário. Portaria n° 705. Institui o Comitê sultorio_rua.php

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Diversidade Sexual e de Gênero

Ampliando o olhar para a população LGBT


em um grupo de discussão com trabalhadores
de saúde: potencialidade e desafios
Broadening the view towards the LGBT population in a discussion group
with health workers: potentiality and challenges

Marcelen Palu LonghiI

Resumo Abstract

O presente estudo trata-se de uma pesquisa-ação realizada com The present study is a research-action carried out with health
trabalhadores de saúde de um ambulatório médico de especiali- workers from a specialized medical outpatient clinic on the user
dade sobre o acolhimento a população LGBT. Apesar de avanços embracement of the LGBT population. Despite advances such as
como a criação da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, the creation of the National Policy for the Integral Health of Les-
Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, população LGBT, há prá- bians, Gays, Bisexuals, Transvestites and Transexuals, LGBT po-
ticas discriminatórias nos serviços de saúde. O objetivo deste arti- pulation, there are discriminatory practices in health services. The
go é analisar as discussões realizadas nestes grupos e seus pos- purpose of this article is to analyze the discussions held in these
síveis desdobramentos nas práticas saúde. Também convidamos groups and their possible developments in health practices. We al-
usuários que utilizam nome social para uma conversa, na qual fo- so invite users who use a social name for a conversation, in which
ram apontadas experiências que revelaram a discriminação social they pointed out experiences that revealed the social and family
e familiar que sofrem e a dificuldade de acesso ao processo tran- discrimination they suffer and the difficulty of access to the tran-
sexualizador. A discussão com os trabalhadores apresentou mui- sexualization process. The discussion with the workers presented
tas potencialidades para ampliação do olhar acerca da população many potentialities to broaden the view of the LGBT population and
LGBT e gerou desdobramentos, como a apropriação do histórico de generated unfolding, such as the appropriation of the history of
preconceitos, lutas e conquistas dos LGBT pelos trabalhadores de prejudices, struggles and achievements of LGBT workers, reflec-
saúde, reflexões sobre a vulnerabilidade deste grupo e reorganiza- tions on the vulnerability of this group and reorganizations in the
ções no processo de trabalho. Foram observadas algumas fragilida- work process. Some homophobic fragilities and feelings related to
des e sentimentos homofóbicos ligados a concepções culturais e cultural and religious conceptions that affect the professional per-
religiosas que afetavam a atuação profissional desses trabalhado- formance of these workers were observed. The discussions made
res. As discussões possibilitaram a reflexão sobre a necessidade it possible to reflect on the need to broaden the view of the LGBT
ampliação do olhar à população LGBT, fomentando a construção de population by encouraging the construction of health care that gua-
um atendimento em saúde que garanta seus direitos. rantees their rights.

Palavras-chave: Acolhimento ao LGBT; Grupos de discussão; Polí- Keywords: LGBT user embracement; Discussion Groups; Health
ticas de saúde. policies.

I
Marcelen Palu Longhi (marcelenlonghi@gmail.com) é enfermeira pela Fa-
culdade de Medicina de Marília (FAMEMA), Cientista Social pela Universidade
Estadual Paulista (UNESP) – Campus de Marília, Mestre em Saúde Coletiva
pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo
(EERP-USP) e atua no Ambulatório Médico de Especialidades (AME) adminis-
trado pela Fundação para o Desenvolvimento Médico e Hospitalar (FAMESP),
conveniado à Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo (SES/SP).

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Diversidade Sexual e de Gênero

Introdução Esta política surge como um reconhecimen-

A
to à noção de que saúde é um problema com-
s políticas de saúde têm avançado no sen-
plexo abrangendo a dimensão social e cultural.
tido da ampliação de sua abordagem, já
Almeja produzir ao menos três diferentes níveis
que a saúde, historicamente, vem se res-
de mudança:
tringido a um olhar biológico e naturalizador. A
partir da Reforma Sanitária, com a implementa- “a) produção de conhecimentos com base
ção do Sistema Único de Saúde (SUS), muitos nos espaços de trabalho, que sejam capazes
avanços foram conquistados em termos de direi- de modificar a natureza das práticas de saú-
tos e justiça social. de; b) produção de relações sociais mais ho-
A “Política Nacional de Saúde Integral de rizontais com potência de interferir nos pro-
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transe- cessos de subjetivação dos sujeitos envolvi-
xuais”1, população denominada LGBT, representa dos na produção em saúde; c) diminuição ou
uma conquista dos movimentos sociais ligados a modificação das relações sociais e culturais
questões de gênero e revela um alargamento dos marcadas por diferenças e subalternidade”¹
horizontes do SUS no sentido da equidade e da Contudo, os avanços das políticas de saú-
integralidade. Motta2 aborda que a integralidade, de não são acompanhados pelo desenvolvimen-
no caso desta política, obriga a pensar o outro na to das práticas nos serviços de saúde. Estudos
relação de produção em saúde, o outro como di- indicam que a população em questão apresenta
ferente, assinalando a diferença como potencial demasiada resistência à procura desses servi-
de criatividade e exercício de alteridade. O princí- ços, o que evidencia o contexto discriminatório
pio da equidade se instaura nesse lugar onde há, existente, organizado em função de uma hete-
notadamente, a presença de grupos vulneráveis, rossexualidade presumida, da falta de qualifica-
sendo que no campo da saúde as iniquidades ção e do preconceito dos profissionais de saú-
não se limitam às diferentes posições sociais de para atender a essa demanda. A população
das pessoas em uma hierarquia econômica, al- LGBT não tem suas necessidades de saúde con-
cançando também as determinações de gênero templadas por estar subordinada à homofobia,
e sexualidade. ou seja, à rejeição ou à intolerância irracional à
A “Política Nacional de Saúde Integral da homossexualidade4.
população LGBT” foi instituída pela Portaria nº Os problemas vivenciados em atendimento
2.836, de 1° de dezembro de 2011 e publicada na região de Tupã, município do estado de São
pelo Ministério da Saúde em 2013, seguindo as Paulo, mobilizaram a Comissão de Humaniza-
formulações das diretrizes do “Programa Brasil ção do Ambulatório Médico de Especialidades
sem Homofobia” que atualmente compõe o Pro- (AME) de TupãII, grupo de trabalho estruturado
grama Nacional de Direitos Humanos1. Tem como desde 2013, constituído por psicólogo, nutricio-
objetivo promover a cidadania de gays, lésbicas, nista, enfermeiros, técnico de enfermagem, ou-
travestis, transgêneros e bissexuais, a partir da vidor, oficiais administrativos de diversos seto-
equiparação de direitos e do combate à violên- res e gerente de enfermagem. A Comissão de
cia e à discriminação homofóbicas, respeitan-
do a especificidade de cada um desses grupos II
Nesse sentido, agradeço aos membros da Comissão de Humanização do
AME de Tupã pelo apoio na correção do artigo; em especial a Thais Bastida
populacionais3. Micheli e a Juliana Ribeiro Costa Girotto.

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Humanização trabalha neste ambulatório com de pesquisa empregada foi a pesquisa-ação. De


temáticas referentes à Política Nacional de Hu- acordo com Baldissera6, a pesquisa-ação impli-
manização (PNH)5. A PNH lançada, em 2003, vi- ca a participação da população como agente ati-
sa a colocar em prática os princípios do SUS no vo no conhecimento de sua própria realidade e
cotidiano dos serviços de saúde, produzindo mu- possibilita à mesma adquirir conhecimentos ne-
danças nos modos de gerir e cuidar5. Pauta-se cessários para resolver problemas e satisfazer
nos princípios da transversalidade; indissocia- necessidades. A pesquisa, por ser ação e a pró-
bilidade entre atenção e gestão; protagonismo, pria forma ou maneira de fazer a investigação da
corresponsabilidade e autonomia dos sujeitos e realidade, gera processo de ação das pessoas
coletivos. envolvidas no projeto.
A Comissão de Humanização do AME de Tu- A operacionalização desse tipo de pesquisa
pã integra os coletivos da área de abrangência é composta por vários momentos. Dentre eles, a
da Diretoria Regional de Saúde (DRS) de Marília, seleção de um cenário de trabalho, a recompila-
constituída por mais 2 AMEs: Assis e Ourinhos. ção de informações sobre este, a observação e o
Estes coletivos de Comissões de Humanização levantamento das características de sua popula-
realizam encontros periódicos, sendo coordena- ção; a seleção e a capacitação de “grupos estra-
dos por Articulador de Humanização regional e tégicos”; e a realização da pesquisa e devolução
articulador do Núcleo Técnico de Humanização da dos resultados6.
SES. No início de 2018, impulsionada por discus- O cenário de estudo foi o AME Tupã, que
sões nestes espaços, a Comissão do AME Tupã possui uma área de abrangência de, aproxima-
identificou a necessidade de intervir sobre a prá- damente, 250 mil habitantes, correspondente a
tica do acolhimento à população LGBT no seu ce- 19 municípios pertencentes à DRS de Marília. O
nário de atenção à saúde. ambulatório oferece a esta população o atendi-
Com este intuito foram realizados grupos de mento em diversas especialidades médicas, exa-
discussão com trabalhadores de saúde deste am- mes diagnósticos e procedimentos cirúrgicos de
bulatório, visando a problematizar o acolhimento pequeno porte.
e acesso à saúde à população LGBT e discutir Os sujeitos do estudo foram os trabalhado-
sobre a trajetória de lutas deste grupo social, in- res do ambulatório, num total de 92, envolvendo
cluindo a constituição da política de saúde para suas diversas áreas de atuação, como enferma-
esta população. gem, recepção, equipe multiprofissional, agenda-
Dessa forma, o objetivo deste artigo é apre- mento, telefonia, ouvidoria, dentre outros. Foram
sentar a análise das discussões realizadas com realizados 9 grupos de discussão, com média de
esses grupos de trabalhadores e seus possíveis 10 participantes por encontro, estando presentes
desdobramentos nas práticas de atenção à po- de 2 a 3 membros da Comissão de Humanização
pulação LGBT. para facilitação da discussão. A duração aproxi-
mada dos encontros era de 2 horas, realizados
no período maio a junho de 2018. Procurou-se
Metodologia mesclar os trabalhadores das diversas áreas de
Como a Comissão de Humanização do AME atuação na constituição desses grupos.
Tupã buscou promover a reflexão dos trabalha- A etapa seguinte da pesquisa consistiu na
dores de saúde acerca de suas práticas, o tipo elaboração de um programa pedagógico, dividido

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em diversos momentos: a) realização de grupos A avaliação de toda essa intervenção foi e


de estudos, b) irradiação/discussão da ação edu- ainda está sendo realizada no cotidiano de traba-
cativa, c) elaboração do projeto e d) execução e lho desses profissionais no atendimento à popu-
avaliação dos projetos de ação6. lação LGBT.
A partir do levantamento da necessidade de
trabalhar com o acolhimento à população LGBT, a
Comissão de Humanização do AME Tupã realizou Resultados e discussões
diversos encontros para discussão sobre aten- – diálogo com a população LGBT: vivências
ção em saúde ao LGBT, incluindo o estudo da no horizonte da homofobia:
Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, A conversa com usuários de nome social que
Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais1. frequentaram o ambulatório, dentre eles transe-
Na sequência, visando a contemplar e com- xuais e travestis, que contou com a participação
preender as vivências e dificuldades reais deste de 10 pessoas, foi um momento muito enrique-
grupo, a Comissão de Humanização fez um levan- cedor para o conhecimento de suas realidades.
tamento das pessoas que utilizavam nome social Neste encontro, os usuários compartilharam su-
e frequentavam o ambulatório, sendo as mesmas as vivências relevantes em serviços de saúde, si-
convidados para uma conversa. Compareceram tuação em que foram apontadas, principalmente,
usuários transexuais, travestis e, na conversa, in- experiências que revelaram discriminação social
cluímos trabalhadores homossexuais do próprio e familiar, a ausência do uso e respeito ao nome
serviço, com o objetivo de proporcionar maior ambi- social nos serviços de saúde; além de dificuldade
ência e aproximação no encontro. Nesta conversa de acesso ao processo transexualizador no SUS.
foi solicitado aos usuários que expusessem suas Em relação à discriminação social relatada pelos
vivências. As principais falas desses usuários fo- participantes da conversa, foram descritas situa-
ram agrupadas em um vídeo que foi transmitido ao ções vexatórias e de dificuldade de inserção no
grupo de discussão de trabalhadores do serviço. mercado formal de trabalho. Quanto às situações
A elaboração do projeto educativo para o que envolviam constrangimento, foi citado um ca-
grupo de trabalhadores teve, assim, como base a so no qual o usuário percebeu que dois funcio-
conversa com os usuários LGBT e o material es- nários de um supermercado comentavam sobre
tudado pela comissão. Foi feito um encontro com a pessoa e riam; nesta situação, o usuário que
o grupo de trabalhadores do AME, que, num pri- é transexual, referiu que se sentiu muito desres-
meiro momento, buscou-se problematizar acerca peitado e discriminado por essa atitude. Também
do atendimento à população LGBT e as falas dos foi abordado no grupo, que usuários transexuais,
profissionais foram acolhidas e discutidas no gru- mesmo possuindo curso superior, não conse-
po. Na sequência, foi transmitida uma videocon- guiam se inserir no mercado de trabalho: relatam
ferência da SES que aborda a história de lutas e que em entrevistas de emprego eram barrados
conquistas da população LGBT até a constituição quando se constatavam os seus nomes de regis-
da política nacional. Posteriormente, foi feita uma tro oficial, o que também ocorria quando aprova-
nova conversa e, por fim, foi apresentado o vídeo dos em concursos públicos, em que no final do
gravado com as falas dos usuários de nome so- processo não eram convocados.
cial. Ao final, foi solicitado que cada participante Freire7 discute que todos esses comporta-
avaliasse o encontro com uma palavra. mentos e reações podem ser considerados como

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Diversidade Sexual e de Gênero

homofóbicos, se constituindo como uma violên- não há serviço de hormonioterapia, obrigando a


cia que pode assumir dois sentidos: o físico, que este público se deslocar para a capital do estado
atinge diretamente a integridade do corpo do indi- para fazer este tipo de tratamento. Além disso, o
víduo; e o não físico, que se configura como uma tempo de espera para a cirurgia de transgenitali-
espécie de violência simbólica, composta por xin- zação, gira em torno de mais de 10 anos. Soma-
gamentos, tratamento diferenciado e impedimen- do a isso, o acesso ao processo transexualizador
to de participação em instituições. do SUS depende centralmente da obtenção do
O diálogo com a população LGBT do serviço, diagnóstico de “transtorno de identidade de gê-
trouxe à tona, além disso, discriminações reali- nero”. Esse cenário, no qual as possibilidades de
zadas no âmbito familiar. Os usuários expressa- conquista de direitos estão fortemente condicio-
ram, com muita tristeza, que sua orientação se- nadas ao poder médico, dá pistas da menor rele-
xual não é aceita pelos seus familiares, mesmo vância dada pelo movimento de travestis e tran-
quando a família está sob seus cuidados. Peruc- sexuais no Brasil à campanha internacional pela
chi, Brandão e Vieira8 apontam que a família é despatologização das identidades trans10.
a instituição por meio das quais valores e cren-
ças são perpetuados, se configurando como es- – potencialidade e desdobramentos: amplia-
paço no qual as regularidades da vida cotidiana ção do olhar e mudanças no processo de
passam a ser incorporadas por seus membros. trabalho:
Assim, como grupo, não está isenta ao funcio- A discussão com os trabalhadores do AME
namento da heteronormatividade, atuando, ao Tupã apresentou muitas potencialidades para a
contrário, como um eficiente dispositivo de repro- ampliação do olhar acerca da população LGBT e
dução e reiteração da norma e da repetição das desdobramentos no processo de trabalho, visan-
formas de discriminação e violência que podem do à melhoria do acolhimento. Neste sentido, a
ser visualizadas em contextos mais amplos da partir das falas dos trabalhadores, constatou-se
sociedade em geral. Neste sentido, a família ope- que houve apropriação do histórico de precon-
ra no micro contexto das relações de parentesco ceitos, lutas e conquistas dos LGBT, provocan-
e coabitação, reproduzindo modelos hierárquicos do reflexões sobre a vulnerabilidade deste grupo
e opressores. e a consequente reorganização do processo de
No encontro, foram relatadas experiências trabalho. Em relação à apropriação do histórico
em serviços de saúde nas quais não houve o uso de preconceito, lutas e conquistas LGBT, diver-
do nome social, situação muitas vezes comum sos trabalhadores relataram que desconheciam
e na qual não há respeito ou consideração por o processo de patologização e a medicalização
parte dos profissionais de saúde. As questões da sexualidade considerada desviante.
culturais advindas do padrão heterossexual nor- Na década de 1950, o homossexualismo
matizado pela sociedade influenciam de modo foi classificado como “transtorno de personalida-
subjetivo também na ação dos profissionais da de” e, posteriormente, adquiriu outras denomina-
saúde a essa população, que terminam por pres- ções, como “transtorno de identidade de gêne-
tar um atendimento de caráter discriminatório9. ro”. Somente, a partir de 1994, que a homosse-
Outro ponto exposto pelos usuários transe- xualidade deixou de ser considerada como doen-
xuais, foi a dificuldade de acesso às tecnologias ça mental, embora a transexualidade tenha sido
de transformação corporal. No interior paulista classificada como “disforia de gênero”, em 2013.

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Neste caso, defende-se que a incompatibilidade Ao se realizar buscas em base de dados co-
de gênero não é considerada um transtorno em mo Scielo (Scientific Electronic Library Online), em-
si, mas apenas quando há existência de sofri- pregando o termo LGBT, encontramos apenas 2
mento ou incapacidade significativa devido à in- estudos, no campo da Psicologia que utilizaram
congruência entre o sexo no nascimento (biológi- como metodologia o diálogo com grupos da so-
co) e a identidade de gênero. Assim, percebe-se ciedade acerca da violência que atinge a popu-
uma evolução no contexto brasileiro relacionado lação LGBT. Nesses estudos, houve debate com
ao grupo LGBT, que se refere à retirada do termo policiais, professores, ativistas, empresários e
homossexualismo das terminologias da saúde, profissionais de saúde11-12. Os estudos citados
dando clareza para o caráter não patológico das usaram grupos mistos, com o objetivo de colo-
relações homoeróticas4. car em diálogo os diferentes posicionamentos
Diversos trabalhadores, durante a discus- apresentados por pessoas LGBTs e pessoas de
são de grupo, apontaram que possuíam uma vi- diferentes áreas. Mocheta12 aponta que são es-
são restrita acerca da vulnerabilidade da popu- cassos esses tipos de estudo que visam a produ-
lação LGBT. O desconhecimento da história de zir estratégias interventivas decorrentes da desi-
violência e da dificuldade de acesso aos serviços gualdade, opressão e discriminação de pessoas
básicos, como a saúde e a educação, possibilitou LGBTs.
um maior conhecimento da realidade vivenciada Na ação realizada no AME Tupã, o intuito
por esse grupo social. De acordo com o Ministé- foi incluir profissionais de diversos setores e a
rio da Saúde, no período de 1980 a 2005, foram escuta do público LGBT. Neste sentido, Cardo-
assassinados 2.511 homossexuais no Brasil, so e Ferro9 destacam que uma postura reflexiva
sendo que a maior parte dos crimes ocorreu por frente aos padrões heterossexuais socialmente
motivos homofóbicos9. De acordo com o mesmo estabelecidos ajuda a prevenir a discriminação,
estudo, a população LGBT, devido à não adequa- afirmando incisivamente a necessidade iminente
ção de gênero com o sexo biológico ou à identida- da formação profissional no campo da saúde pa-
de sexual não heteronormativa, tem seus direitos ra ações frente às especificidades da população
humanos básicos agredidos e, muitas vezes, se LGBT.
encontra em situação de vulnerabilidade. Diante A apropriação da “Política Nacional de Saú-
dessa realidade, o Ministério da Saúde reconhe- de Integral LGBT” e reflexões realizadas pelos
ce que a identidade sexual e a identidade de gê- grupos possibilitaram estratégias de reorganiza-
nero são constituintes de um processo complexo ção do processo de trabalho com vista à melhoria
de discriminação e de exclusão, do qual derivam do acolhimento desta população. Muitos dos tra-
os fatores de vulnerabilidade aos grupos LGBT, balhadores desconheciam tanto a política como
tais como a violação do direito à saúde, à digni- a dificuldade de acesso aos serviços de saúde
dade, à não discriminação, à autonomia e ao livre enfrentada pelo público LGBT.
desenvolvimento. A garantia do uso do nome social foi uma
A iniciativa da discussão sobre esta temá- das questões mais debatidas tanto pelos profis-
tica foi elogiada por muitos profissionais, visto sionais, como no encontro realizado pela Comis-
que, muitos dos que já trabalharam em outros são de Humanização com usuários trans que ado-
serviços de saúde referiram nunca ter debatido tam nome social. Esses se expressaram sobre a
sobre a questão. importância em ser chamado por esse nome, que

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Diversidade Sexual e de Gênero

confirma suas identidades de gênero, a fim de da ficha, o sistema de prontuário eletrônico do


evitar discriminação. Carvalho10 aponta que ser ambulatório, já aparece o nome social destacado
chamado pelo nome social é uma das principais em vermelho.
demandas do movimento de travestis e transexu-
ais, além de servir para facilitar a escolha na alte- – fragilidades no olhar ao LGBT: marcas de
ração de nome e sexo no registro civil. A garantia uma cultura heteronormativa:
legal sobre o uso do nome social no Estado de Durante a realização dos grupos de discus-
São Paulo, começou a ser concedida a partir do sões sobre LGBT com os trabalhadores do AME
Decreto nº 55.58813 de 17 de março de 2010 e Tupã, foram observadas algumas fragilidades
na administração nacional foi instituída por meio conceituais e desatualizações quanto ao tema,
do Decreto nº 8.727 de 28 de abril de 2016, que como o uso do termo “opção sexual” ao invés de
advoga acerca do uso do nome social e o reco- “orientação sexual” e também a dificuldade de
nhecimento da identidade de gênero de pessoas abordagem e aceitação da expressão de senti-
travestis ou transexuais14. mentos homofóbicos, ligados a concepções cul-
Por isso, foram discutidas e criadas estra- turais e religiosas.
tégias para garantir o uso desse nome em todas Tradicionalmente, a orientação sexual tem
as áreas do ambulatório, já que o serviço está sido vista como uma questão de escolha, fato
organizado em diversos setores, da chegada do que também foi expresso nas falas dos profissio-
usuário até o seu atendimento: o primeiro con- nais. O grupo também demonstrou dificuldades
tato é a abordagem no balcão “posso ajudar?”, na compreensão das particularidades e diferen-
no qual o usuário identifica que compareceu ao ças entre os conceitos de orientação sexual e
serviço – foi acordado que neste momento, o de “identidade de gênero”. De acordo com Mace-
nome social já deveria ser inserido no sistema do15, orientação sexual define-se como a atração
de comparecimento –; posteriormente, o usuário afetivo-sexual por pessoas de mesmo sexo ou do
é chamado à recepção para fazer a atualização sexo diferente, por exemplo: heterossexualidade
de seus dados cadastrais e a confecção da ficha e homossexualidade. Já a identidade de gênero
de atendimento – na impressão dessa ficha há diz respeito a como as pessoas se identificam
um campo que destaca o nome social em uma sexualmente, como masculinas ou femininas.
caixa de texto, considerada, contudo, insuficien- Os trabalhadores apresentaram dúvidas em
te para a visualização deste nome, por isso, os relação a forma de abordagem ao usuário LGBT,
profissionais decidiram salientar o mesmo, que a fim de garantir seu direito quanto ao uso do
passou a ser preenchido e destacado com uma nome social, como por exemplo: se deviam ou
caneta grifa texto –; na etapa seguinte, o usuário não perguntar sobre o nome social ou deixar o
é levado para a sala de atendimento – estando o usuário livre para solicitá-lo. Neste sentido, ainda
nome social destacado na ficha, há menos pos- discutiu-se a dificuldade de alguns profissionais,
sibilidade de erro de chamá-lo pelo nome civil (do principalmente médicos, em chamar o usuário
registro oficial) que também aparece na ficha. Ou- pelo nome social, mesmo que essa designação
tra estratégia acordada foi avisar ao profissional esteja descrita na ficha de atendimento. A falta
de saúde que prestará o atendimento que o usu- de hábito de uso do nome social e o contexto
ário possui nome social, pois o profissional pode cultural heteronormativo acabam deixando as
não perceber e chamá-lo pelo nome civil. Além pessoas inseguras em questionar ao usuário se

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Diversidade Sexual e de Gênero

deseja fazer uso do nome social, com medo de Diante desses pontos de fragilidade, os
que ele se sinta ofendido. Contudo, acreditamos membros da Comissão de Humanização procura-
que as experiências com uso do nome social no ram conduzir as discussões buscando a reflexão
cotidiano do trabalho têm possibilidades de afas- sobre melhores práticas de acolhimento para a
tar o receio dos trabalhadores. população LGBT. Além da desconstrução de dife-
Outro aspecto observado durante os grupos rentes formas de preconceitos e discriminação,
de trabalhadores pode estar relacionado ao sen- inclusive as que não são explícitas, mas que po-
timento homofóbico presente em nossa socieda- dem interferir de algum modo ou em algum mo-
de, afinal, alguns trabalhadores permaneceram mento nos processos de trabalho. Os diálogos
em silêncio todo o tempo do grupo, não verba- fomentaram a discussão com os trabalhadores
lizando nenhuma palavra, enquanto alguns ou- sobre o atendimento a este grupo de usuários
tros relataram “não aceitar, mas respeitar” todos vulneráveis, possibilitando sua reflexão e amplia-
aqueles que manifestam a sexualidade diferen- ção de olhar para o outro, com vista a uma aten-
te da heterossexual. Esses profissionais referem ção à saúde mais ética e acolhedora.
não expor qualquer tipo de aversão em público ou
no ambiente de trabalho. Contudo, Costa16 advo-
ga que as respostas emocionais podem ser mais Considerações finais
fidedignas do que nossas palavras, já que, na A experiência das discussões com trabalha-
maioria das vezes, são expressões involuntárias dores da saúde e usuários desses serviços que
de nossas atitudes. Isso mostra necessidade de adotam nome social possibilitou a reflexão sobre
problematizar e realizar espaços de diálogo com a necessidade e ampliação do olhar a população
os trabalhadores da saúde em busca de descons- LGBT e fomentou a construção de um atendimen-
truir estereótipos que possam trazer prejuízos no to que garanta os direitos destes. Por meio da
cuidado aos usuários do SUS. pesquisa-participante e problematização, os tra-
Nota-se que os trabalhadores que permane- balhadores se viram como sujeitos desse proces-
ceram calados no grupo, ou que referiram não con- so, no qual foi possível dialogar sobre seus sen-
cordar com orientações sexuais que não seguem timentos, modo de ver o outro e criar alternativas
o padrão normativo, expressaram falas carrega- para um processo de trabalho mais humanizado.
das de concepções religiosas, tais como: “Deus Contudo, verifica-se que as concepções cul-
fez o homem e a mulher.” Essas falas são, assim, turais e religiosas que seguem o padrão hetero-
determinadas pelo contexto cultural e religioso normativo impõem barreiras e dificuldades que
presente na história de vida de cada pessoa. San- podem afetar o cuidado mais ampliado em saúde
tos17 afirma que a religião tem o papel de controlar aos usuários LGBT. Porém, a constituição de es-
a sexualidade e que a homossexualidade tem si- paços de desconstrução/desnaturalização de vi-
do, por isso, objeto de constantes e empenhadas sões estigmatizantes e a vivência de práticas de
tentativas de controle, contenção e posterior nor- cuidado éticas e acolhedoras, têm o potencial de
malização comportamental. Os homossexuais fo- modificar e ampliar os horizontes ainda pautados
ram, durante séculos, perseguidos e acusados de na homofobia.
imoralidade, depravação e corrupção, estigma que O diálogo com transexuais e travestis reve-
prevalece até o presente, ainda que sob formas de lou a necessidade de ampliar o acesso aos servi-
discriminação porventura mais sutis. ços de saúde da população LGBT, afinal, muitas

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Diversidade Sexual e de Gênero

vezes, esses não têm seus direitos básicos ga- 7. Freire L, Cardinali D. O ódio atrás das grades: da constru-
rantidos devido a práticas sociais discriminató- ção social da discriminação por orientação sexual à crimi-
nalização da homofobia. Sex. Salud Soc. 2012; (12):37-63.
rias, ficando mais vulneráveis ao adoecimento.
8. Perucchi J, Brandao BC, Vieira HIS. Aspectos psicosso-
Dessa forma, sua condição se caracteriza como
ciais da homofobia intrafamiliar e saúde de jovens lésbicas
um determinante social do processo saúde-doen- e gays. Estud. Psicol. 2014; 19(1):67-76.
ça e a saúde tem o compromisso ético e social 9. Cardoso MR, Ferro LF. Saúde e população LGBT: de-
de transformar suas práticas em direção à inclu- mandas e especificidades em questão. Psicol. Cienc. Prof.
são e cidadania dessa população LGBT. 2012; 32(3):552-563.
10. Carvalho MFL. A impossível pureza: medicalização e mi-
litância na experiência de travestis e transexuais. Sex. Sa-
lud Soc. 2011; (8):36-62.
11. Apostolo MVA, Moscheta MS, Souza LV. Discursos e po-
sicionamentos em um encontro de diálogo sobre violência a
Referências
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12. Moscheta M, Souza LV; Casarini KA; Scorsolini-Comin F.
tégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Par-
Da impossibilidade do diálogo: conversações públicas e os
ticipativa. Política nacional de saúde integral de lésbicas,
direitos LGBTS. Psicol. Soc. 2016; 28(3):516-525.
gays, bissexuais, travestis e transexuais. Brasília; 2013.
13. São Paulo. (estado). Decreto nº 55.588. Dispõe sobre
2. Motta JIJ. Sexualidades e políticas públicas: uma aborda-
o tratamento nominal das pessoas transexuais e travestis
gem queer para tempos de crise democrática. Saúde Deba-
nos órgãos públicos do Estado de São Paulo e dá providên-
te. 2016; 40(spe):73-86. cias correlatas. São Paulo: ALESP, 17 mar 2010.
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sem homofobia: programa de combate à violência e à dis- social e o reconhecimento da identidade de gênero de pes-
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2004. “Disponível em: <http://www.prsp.mpf.gov.br/prdc/ pública federal direta, autárquica e fundacional. Brasília:
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fobia.pdf>”. Acesso em: 12 maio 2018. 15. Macedo A. Identidade de género e orientação sexual na
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2013; 37(98):516-524. diversidade sexual: debate conceitual. Temas Psicol. 2015;
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Diversidade Sexual e de Gênero

Experiências de uma ONG na promoção de


direitos e saúde trans em São Paulo
Experiences of a NGO with promoting trans rights and health
care in São Paulo

Marta McBrittonI, Tadeu Di PietroII, Regina FigueiredoIII, Barry WolfeIV, Karen SchwachV,
Fernanda Peres GuidolinVI, Vera Luz de OliveiraVII, Welton Gabriel Lima dos SantosVIII,
Luiz Augusto Spanghero MacarenhasIX, Margarete de Jesus FernandesX,
Nadja de Figueiredo AraújoXI

Resumo Abstract

Este artigo procura expor as ações realizadas pelo Instituto Cultu- This article seeks to document the actions of the Cultural Institute
ral Barong junto à transexuais, visando à promoção de seus direi- Barong among transexuals, done with the intention of promoting
tos, incluindo o de saúde e prevenção de IST/HIV. São relatadas their rights, including health and STI/HIV prevention. The related
as estratégias de promoção de informações por meio do desenvol- strategies for promoting information through the development of
vimento de materiais educativos, exposições, ações de campo e educational materials, expositions, field actions and even courses
inclusive cursos produzidos para este público, procurando atender produced for this public, seeking to fulfill their needs, places of
suas necessidades, locais de circulação de trabalho ou sociabili- circulation, of work or of sociability, language and demands. The
dade, linguagem e demandas. As estratégias foram consideradas strategies were considered a success for their high adherence
de sucesso pela sua alta adesão e receptividade comprovada no and receptivity comproved within the reached public and the inte-
público atingido e ambientes integrados. grated spaces.

Palavras-chave: Saúde sexual; Prevenção; IST/aids; Transexualidade. Keywords: Sexual health; Prevention; STI/aids; Transexualityt.

I
Marta McBritton (martamcbritton@gmail.com) é graduada em Gestão de VII
Vera Luz de Oliveira (veraluz_oliveira@hotmail.com) é enfermeira pela FMU,
Projetos Sociais pela Universidade Nove de Julho (UNINOVE), Presidente e tem aperfeiçoamento em Atenção Domiciliar, Abordagem Familiar e Gestão
Coordenadora de projetos em saúde e direitos sexuais e reprodutivos do do Cuidado na Atenção Domiciliar pela Universidade Aberta do Sistema Úni-
Instituto Cultural Barong. co de Saúde (UNA SUS) e atua como enfermeira e agente de prevenção do
Instituto Cultural Barong.
II
Tadeu Di Pietro (tadeudipietro@uol.com.br) é ator e diretor teatral formado
pelo Teatro Escola Macunaíma, produtor cultural e membro e arteeducador VIII
Welton Gabriel Lima dos Santos (weltonlds@gmail.com) tem formação par-
do Instituto Cultural Barong. cial em Educação Física pelo Centro Universitário Italo Brasileiro (UNITALO)
e é agente de prevenção do Serviço Especializado em DST/Aids do M’Boi
III
Regina Figueiredo (reginafigueiredo@uol.com.br) é socióloga, Mestre em Mirim (SAE M’Boi) e do Instituto Cultural Barong.
Antropologia e Doutora pela Universidade de São Paulo (USP), Pesquisadora
do Instituto de Sa, membro do Comitê de Atenção Integral à População LGBT IX
Luiz Augusto Spanghero Macarenhas (barong.guto@gmail.com) fez Admi-
Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e membro consultivo nistração de Empresas pela UNINOVE e é assistente de campo do Instituto
do Instituto Cultural Barong. Cultural Barong.
IV
Barry Michael Wolfe (bmw@sosdignity.org) é bacharel em Direito pela Uni- X
Margarete de Jesus Fernandes (barong.margarete@uol.com.br) é bacharel
versity of Edinburgh, Pós-graduado pela Yale Law School e Mestre em Direito em Letras pela Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP) e Especializa-
Internacional pela Cambridge University e Criador do Projeto SOS Dignidade da em Direito Imobiliário pela parceria Fundação Armando Álvares Penteado
do Instituto Cultural Barong. e Faculdades Metropolitanas Unidas (FAAP-FMU) e atua como co-coordenado-
ra de projetos no Instituto Cultural Barong.
V
Karen Schwach (karen@sosdignidade.org.br) é graduada em Direito pelas
Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) e Coordenadora do plantão jurídico XI
Nadja de Figueiredo Araújo (nadjadefigueiredo@uol.com.br) é graduanda
do Projeto SOS Dignidade do Instituto Cultural Barong. em Psicologia na Universidade Paulista (UNIP) e agente de prevenção do
Instituto Cultural Barong.
VI
Fernanda Peres Guidolin (barong.fernanda@gmail.com) é graduada em Tu-
rismo pela Universidade Anhembi Morumbi e assistente de direção e campo
do Instituto Cultural Barong.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Introdução Vulnerabilidade trans

D
Segundo o Ministério da Saúde, a prevalên-
esde 2007 o Instituto Cultural Barong XII,1
cia em 2017 de HIV entre “homens que fazem se-
desenvolve o “Projeto SOS Dignidade”2
xo com homens” (HSH)4 – o que inclui as trans –
que iniciou associações com a população
no país é de 9,4% entre 18 e 24 anos e de 19,8%
trans (incluindo travestis, transexuais e transgê-
entre os 25 anos ou mais. Dados do Município de
neros). Essas ações envolvem a promoção de di-
São Paulo5 apontaram que a proporção de HSH
reitos dessa população por meio, principalmente,
notificados com aids havia aumentado de 37,6%
de sua defesa jurídica, iniciada em 2008 visando
em 2006 para 51,0% em 2014, com variação da
à mudança do nome social em documentos, vis-
taxa de 222,4% em 2005 na faixa etária entre
to que até 2017 essa alteração necessitava de
15 e 19 anos e de 95,1% entre 20 e 24 anos. Já
ações judiciais.
o estudo Sampacentro6, de parceria entre a Fa-
De 2011 a 2015 o SOS funcionou dentro do
culdade de Ciências Médicas da Santa Casa de
Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Tran-
São Paulo (FCMSCSP) e o Centro de Referência
sexuais da Secretaria de Estado e Saúde de São
e Treinamento em DST/Aids de São Paulo (CRT-
Paulo, na Vila Mariana, São Paulo, realizando mais
-SP), realizado em 2011-2012, apontou 16% de
de 300 processos de mudança de nome social e/
soroprevalência de HIV em HSH que frequentam
ou sexo em documentos civis de transexuais3. Esse
bares, boates e outros locais de sociabilidade no
trabalho foi seguido pela realização de diversas ex-
centro da cidade de São Paulo.
posições fotográficas, procurando não apenas visi-
A população transgênero, proporcionalmen-
bilizar o mundo das trans, principalmente travestis,
te, tem maior prevalência do que os outros gru-
mas também promover a autoestima das transXIII.
pos populacionais, a presença do vírus HIV en-
A partir do SOS Dignidade, o Barong desen-
tre travestis e transexuais testados é de 13.0%
volveu uma série de ações e projetos tendo em
e 6.4%, respectivamente4. Segundo Grandi7, em
vista atingir a população trans, principalmente
2000, 45,0% das travestis possuíam o HIV, 40%
em seus espaços de circulação, difundindo legis-
sífilis e 63,2% hepatites B e 15,5% hepatite C
lações e direitos já instituídos, criando plantões
(14.5%). Já em estudo mais recente realizado por
de esclarecimentos e promovendo a saúde sexu-
Ferreira e colegas8, (em 2014, no município de
al e reprodutiva deste público por meio de mate-
São Paulo, com 124 travestis e transexuais mu-
riais educativos, de ações de campo na Grande
lheres, a presença do HIV foi de 36,2% e 22,7%,
São Paulo e da realização de testagens para HIV,
respectivamente.
hepatite B e C e encaminhamentos para serviços
Quanto a outras IST, o Ministério da Saú-
públicos, inclusive o de saúde.
de, em 2017, apontou uma prevalência geral de
hepatites entre HSH no país de 0,75%, sendo
1,73% se considerarmos apenas as hepatites B
XII
Organização Não Governamental (ONG) criada em 1996 na cidade de São Pau-
lo, que atua na promoção da educação e da saúde sexual e reprodutiva, incluindo e C, além da sífilis que aparece com prevalên-
a prevenção das infecções sexualmente transmissíveis (IST) e HIV/aids, entre a
população em geral, dando ênfase à utilização de estratégias de comunicação cia de 14,0% entre esse público4 . Na cidade de
alternativa (folhetos, teatros, abordagens de campo, eventos, etc.)1.
São Paulo, em 2014, Ferreira e colegas8 cons-
Exposições do fotógrafo e co-autor deste artigo Barry Wolf, realizadas em
XIII

2007 no Conjunto Nacional, em 2008 no Conjunto Nacional, em 2008 no tataram 16,0% de travestis que haviam tratado
SAE Campos Elíseos; em 2008 no Museu de Arte Contemporânea da Univer-
sidade de São Paulo (MAC-USP), em 2009 no Congresso Brasileiro de DST/ gonorreia, 80,0% se tratado de sífilis e 4,0% de
AIDS e no Casarão Brasil, em 2014 no Centro de Referência e Dança de São
Paulo e em 2016 na Festa Terça Trans, realizada no centro de São Paulo. HPV; entre as trans, registraram um histórico

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Diversidade Sexual e de Gênero

apenas de tratamento de sífilis em 100% dos – folhetos trans – sistematizando direitos


pesquisados. civis:
Essa realidade deriva de uma série de ad- Em 2012, o Instituto Cultral Barong desen-
versidades que enfrentam devido à exclusão so- volveu o folheto “A Lei é Para Todos – conheça os
cial e à violência a que são sujeitos desde a direitos de travestis e transexuais”13, sistemati-
adolescência9, incluindo o não reconhecimento zando todas as legislações de direitos civis que
de seus direitos à educação, saúde, moradia, ir poderiam ser utilizadas pela população transexu-
e vir com segurança no espaço público, ao traba- al, para disseminação em pontos de concentra-
lho e o desrespeito à sua identidade de gênero ção deste público.
e seus nomes sociais10, situações cumulativas Nesse sentido, considerando que muitos
que os fazem abandonar a família de origem, trans desconhecem o seu direito – principalmen-
a escola, viver em condições de marginalida- te quanto a legislações recentes – e têm, portan-
de social, aderirem à prostituição e tornem-se to, dificuldade de reivindicá-lo, o folheto desen-
impedidos ao exercício da cidadania. Por isso volvido procurou disseminar informações sobre
estratégias de vulnerabilidade precisam ter en- as leis:
foque global em promoção de sua inclusão e
cidadania11. – cartilha de promoção da saúde integral
trans:
Em 2016, vislumbran-
Ações voltadas à população trans do a necessidade de pro-
Além do plantão jurídico pelo SOS para mover a saúde integral da
orientação de trans na mudança de nome social, população trans e orienta-
denúncias de discriminação e outras ações judi- ções sobre a recém-chega-
ciais, o projeto também englobou intervenções da PEP – profilaxia pós-ex-
na Políticas Públicas – uma vez que os membros posição para HIV, além de
do SOS passaram a ser membros do Comitê Es- serviços de saúde disponí-
tadual de Enfrentamento do Tráfico de Pesso- veis em São Paulo, foi ela-
as de São Paulo (CEETP), que vem atuando em borada a cartilha “A Vida em Transformação - guia
ações de prevenção e enfrentamento ao traba- trans de saúde sexual e direitos humanos”14.
lho escravo e ao tráfico de pessoas para fins de Esse material, mais ordenadamente por as-
exploração sexual no Brasil. O Barong também sunto, apresenta as legislações civis que podem
promoveu atividades visando a maior visibilidade ser utilizadas por esse público:
e o empoderamento de trans, por meio de exposi- • uso do nome social em documentos e
ções fotográficas temáticas e a inclusão de seus serviços públicos federais e do Estado
depoimentos pessoais de história de vida no Mu- de São Paulo - Decreto Federal nº 8.727
seu da PessoaXIV, em São Paulo12. de 201615 e Lei Estadual de São Paulo nº
Com relação a ações de campo e materiais 10.948 de 200116;
desenvolvidos foram feitos: • procedimento para mudança de nome em
documentos, sem necessidade de ter pas-
sado por cirurgia de transexualização - De-
XIV
O Museu da Pessoa é um museu virtual e colaborativo para pessoas que
querem registrar e compartilhar sua história de vida12. creto Federal nº 9.278 de 201817;

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Diversidade Sexual e de Gênero

• união consensual - Resolução nº 175 do públicos que disponibilizam esse serviçoXVI


Conselho Nacional de Justiça 201318; e a importância de nunca usar silicone lí-
• inclusão de parceiros como dependentes quido industrial;
previdenciários para fins de benefícios de • higiene íntima: orientação sobre o não
saúde e pensão - Portaria nº 513 do Mi- compartilhamento de “chucas” (enemas
nistério da Previdência Social de 201019; de lavagen anal);
• proteção à discriminação em geral - De- • prevenção de IST/HIV/aids: importância e
creto Federal nº 8.727 de 201615 – para gratuidade de uso de preservativos;
realização de denúncias de Tratamentos • sexo oral: importância da prevenção e es-
discriminatórios e telefones e locais para tratégias para reduzir riscos;
realizá-las; • sexo oral no ânus: importância da preven-
• proteção à discriminação no Trabalho - ção de IST e hepatite e dicas de uso de
Decreto do Estado de SP nº 10.948 de barreira;
200116, que protege discriminação no tra- • hepatites A, B e C: formas de infecção e
balho e concursos públicos; sintomas;
• uso do nome social em serviços de saúde • vacina para hepatites A e B: importância
- Decreto Estadual nº 55.588 de 2010, do das vacinas e serviços de saúde que a
Estado de São Paulo20; disponibilizam gratuitamente;
• moradia sem discriminação: Decreto Esta- • vacina de HPV e cuidado da próstata: im-
dual nº 10.948 do Estado de São Paulo16; portância e orientação de serviços de IST/
• uso do nome social em cursos, escolas e ais e exame de próstata para evitar cânce-
faculdades - Portaria nº 1.612 do Ministé- res em órgão sexuais e reprodutivos;
rio da Educação de 201121 e Deliberação • profilaxia pós-exposição sexual para o HIV
nº 125 do Conselho Estadual de Educa- (PEP): disponibilidade, situações e tempo
ção de São Paulo de 201422. em que se deve procurar, forma de uso e
locais em que está disponível;
E explicita orientações de prevenção à saú- • testagem de HIV, sífilis e hepatites – im-
de, principalmente da sexual e reprodutiva e os cui- portância da realização periódica da testa-
dados com infecções sexualmente transmissíveis gem de B e C e disponibilidade gratuita de
(IST). Assim são incluídas orientações sobreXV: testes rápidos;
• ambulatórios de atenção a Trans – divulga- • orientações para HIV positivos: informa-
ção do Ambulatório de Saúde Integral pa- ções sobre a importância do acompanha-
ra Travestis e Transexuais e Ambulatório mento de saúde, do incentivo à manuten-
Núcleo de Estudo, Pesquisa e Extensão à ção de qualidade de vida e da autoestima,
Pessoa Trans, endereços e as especiali- da adesão correta ao uso de antirretrovirais
dades que oferecem. e da continuidade de uso de preservativos;
• hormonioterapia: importância de fazê-la • álcool e drogas: informações sobre cuida-
com acompanhamento médico e serviços dos e redução de danos.

XV
Conteúdos e orientações revisadas pelo Programa Municipal de DST/Aids XVI
Em São Paulo: UBS e AMA Santa Cecília, UBS Sé, UBS República – todas
do Município de São Paulo. na região Centro da cidade.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Posteriormente, em 2018, durante revisão, (camisinha), “gravar” (sexo oral), “cuneti!” (sexo
foram incluídos na cartilha informações sobre a oral feito no ânus), “tia!” (HIV/aids), “batizada”
profilaxia pré-exposição para o HIV (PREP) – des- (com IST), “loka” (desnorteada, sem senso).
crevendo sua serventia, público que deve utili-
zá-la e serviços que a disponibilizam, conforme – campo em locais de trabalho e sociabili-
orienta a política estadual23 –, sobre implantes dade trans:
de silicone – procurando salientar os perigos do De 2014 a 2018, além da participação
silicone líquido industrial e orientar a sua reti- anual na Parada Gay de São Paulo, o Barong
rada para quem os utilizou –, a importância de concentrou-se em projetos que contemplassem
homens trans buscarem serviços de saúde pa- ações de campo voltadas a público trans, prin-
ra realizar a prevenção do câncer de mama, e a cipalmente mulheres trans. Essas ações foram
orientação uso de banheiros de acordo com a realizadas mediante 2 projetos financiados pelo
identidade de gênero, conforme a Lei no 10.948 Programa Municipal de DST/Aids de São Paulo:
do Estado de São Paulo de 200116 e a Resolu- projeto “Terça Trans” (desenvolvido de agosto
ção do Ministério da Educação de 12 de setem- de 2106 a julho de 2017) e o projeto “Rodas da
bro de 201724. Sexualidade e Arte” (de outubro de 2017 a se-
Diferentemente da cartilha produzida pe- tembro de 2018). O objetivo de ambos foi disse-
lo Ministério da SaúdeXVII para trabalhadores de minar entre as/os trans as legislações e normas
saúde que possui viés mais técnico e conceitu- que lhes garantem direitos de cidadania e pro-
al, essa cartilha voltada ao público trans, pro- mover a saúde sexual e reprodutiva e redução
curou adotar na sua construção uma estratégia de danos entre este público, integrando o con-
participativa e dialógica. Por isso, não apenas
ceito de prevenção combinada e o incentivo ao
foi testada entre este público, mas também re-
diagnóstico precoce de HIV e outras IST.
cebeu sugestões de inserção de temas e ne-
cessidade de seu cotidiano, além de procurar
adotar linguagem e visual facilitado e enxuto,
procurando dar informações claras e utilizar
expressões e códigos de comunicação (gírias)
típicos dessa população, de forma a servir co-
mo um “link” de identificação do material com o
seu público: “arrasou!” (foi/está incrível), “bofe
uó!” (homem ruim), “bafão!” (fofoca), “tá boa!”
(tudo bem), “dê seu close!” (apareça), “penosa”
(ficar sem dinheiro), “pintosas e monas” (gays
femininos e lésbicas), “bofes” (rapazes), “sem
armário!” (se assumir), “turbinar” (por silicone),
“amarração” (amarrar os seios), “chuca” (ene- Os locais selecionados para essas ativi-
ma), “no pelo” (relação sem camisinha), “capa” dades, foram os espaços de sociabilidade e/
ou trabalho onde essa população se concentra;
assim foram abordados geralmente no período
Cartilha “Cuidar Bem da Saúde de Cada Um – faz bem para todos, faz bem
XVII

para o Brasil”, produzida pelo Ministério da Saúde em 201625. noturno) festas, concursos de beleza, pontos de

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Diversidade Sexual e de Gênero

prostituição e bares – inclusive onde há uso de pontos de prostituição trans, como: Largo do
álcool e drogas –, e também locais de moradia Arouche, Parque do Carmo, Rua Bento Freitas
e circulação cotidiana dessa população – e que na República e bares (Muss Bar, na República;
servem como referência não só para as trans Capella Bar, em Santo Amaro; Chimus Bar, no
que vêm de outras cidades encontrarem sua “tri- Capão Redondo, Point da Villa, no Pirajussara).
bo”, mas também terem acesso a cabeleireiros,
manicures, lojas de roupas e uma “rede” espe-
cífica de consumo deste público. As atividades
envolveram a presença de unidade móvel (van)
com uma equipe multidisciplinar que ofertava
plantões de orientações e de testagem de IST
ou HIV/aids, a distribuição de cartilhas trans “A
Vida em Transformação” e de cartilhas de orien-
tação de prevenção combinada de IST/HIV e a
oferta de preservativos masculinos e femininos,
lubrificantes íntimos e “chucas” descartáveis.
Entre os vários pontos atingidos na cida-
de de São Paulo, teve destaque o Concurso da
Corte LGBT da União das Escolas de Samba
Paulistanas (UESP), que elegeu a Rainha Trans,
Rainha Drag, Rainha Transformista e Passista Ao todo, foram realizadas 24 ações de
para o Carnaval de São Paulo em 2017, no Clu- campo noturnas em pontos transXXI, atingin-
be da Vila Maria, e a festa “Terças Trans”XVIII do quase 3.000 pessoas, com distribuição de
– esta última uma das maiores concentrações 8.500 preservativos e 2.900 cartilhas trans e
periódicas da cultura transgênero da cidade –, folhetos de prevenção disponibilizados pelo Pro-
que acontece mensalmente há mais de 10 anos grama Municipal de DST/Aids, além de 2.000
na região do Centro, que concentra um público chucas descartáveis, 165 testes de HIV, mais
de cerca de 150 pessoas, formado por traves- 135 encaminhamentos para realização deste
tis e crossdressersXIX , transexuais, admiradores em COAS e CTAs, 83 testes de hepatites, 17 de
desses (t-lovers), além de drag queensXX, gays e sífilisXXII e mais outros 300 encaminhamentos
lésbicas. Também foram feitas ações em locais para realização de testes de IST, incluindo a sí-
de trabalho deste público, as que concentram filis nesses serviços:

XVIII
Organizada pela produtora trans Patty Delli, em local que varia de endere-
ço nas proximidades da Praça da República e Largo do Arouche.
XIX
Pessoa que, em geral, se identifica com seu sexo de origem biológica,
mas que “sente fortes impulsos de se vestir, comportar e sentir como al- XXI
Aqui estão registradas as ações do(s) projeto(s) dirigidos exclusivamente
guém do sexo oposto e que não se dizem travestis devido ao estigma que à trans, pois houve outras que também abordaram a população gay e que
esse nome tem por ser associado comumente à prostituição26. resultaram além da prevenção mais casos de detecção de casos de infecção
por HIV e hepatites virais.
XX
Artistas performáticos que se vestem com roupas femininas para apre-
sentações, independente da sua identidade de gênero. XXII
Iniciados em abril de 2018.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Quadro 1: Ações, Materiais e Testagens Realizadas com Trans de 2016-2018, de acordo com
cada projeto:

Terça Trans Rodas total

(outubro de 2017
(agosto de 2016 Nos
a setembro de
a julho de 2017) 2 anos
2018)*

quant. de ações trans 12 5 17

quantidade de público trans


2.000 900 2.900
acessado

cartilhas trans distribuídas 2.000 900 2.900

cart. prev combinada distribuidas 2.000 900 2.900

preservativos masculinos distribuídos 4.000 4.500 8.500

preservativos femininos distribuídos 400 não fornecida

“chucas” descartáveis distribuídas 2.000 500 2.500

lubrificantes distribuídos 2.000 2.700 4.700

realiz. suspensa pelo Progr.


testes rápidos de HIV realizados 165 165
Munic. DST/Aids

detecção e encaminhamento de HIV+ 6 - 6

adesão ao tratamento HIV XXIII 1 - 1

encaminh. p/ testagem HIV em


- 135 135
outros serv.
não autoriz. pelo Progr.
testes rápidos de hepatite B realizados 83 83
Munic. DST/Aids
não autorizados pelo Progr.
teste rápido de hepatite realizados 83 83
Munic. DST/Aids
casos de hepatites detectados e
0 - 0
encaminhados
ainda não
teste rápido de sífilis realizados 17 17
disponibilizado
casos de hepatites detectados e
- 0 0
encaminhados
encaminh. p/ testagem de sífilis em
152 45 197
serviços
encaminh. p/vacinação de hepatite B
152 135 287
em serviços

encaminh. de ssessoria jurídica 18 5 23

XXIII
Informação fornecida pelo serviço de IST/HIV/aids vinculado ao projeto e
para o qual houve orientação de encaminhamento imediatamente em segui-
da da realização da testagem de HIV.

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Diversidade Sexual e de Gênero

As ações de campo do Barong, muitas ve- Esses eixos desenvolvidos em oficinas con-
zes, utilizam técnicas artísticas como estraté- tribuem em efeito pessoal e social, na identifica-
gia de educação – o que facilita a atratividade, ção e fortalecimento de “quem comunica”, “o que
a interlocução e a compreensão de temas por se comunica”, “como se comunica” e o “para que
apresentá-los de uma forma lúdica e simbóli- se comunica”. Assim, parte-se da questão da iden-
ca27. Essa perspectiva se filia a uma pedagogia tidade (fundamental para os(as) trans que reafir-
de libertação proposta por Paulo Freire, que vi- ma o indivíduo frente à própria vida e à sociedade);
sa à construção de saberes para a mudança em seguida, se reforça a posição da pessoa como
social28. sujeito que produz pensamentos e estes poderão
ser racionalizados para a realização de uma comu-
– formações em comunicação para trans: nicação eficaz; por fim, essa melhor expressão fa-
autoestima e autonomia: cilita e reafirma o seu posicionamento social, além
Nesse sentido, inovando em ações, foi pro- da identificação com outros sujeitos que se encon-
posto cursos básicos de “comunicação interpes- tram em situação similar à sua, facilitando o lidar
soal” para transXXIV, vislumbrando não apenas a com a realidade, incluindo os preconceitos.
atualidade de expressão que vem sendo feita Obviamente, no caso das trans, esse tra-
através das redes sociais, mas também a im- balho visa à uma transformação da percepção e
portância do empoderamento dessas pessoas uso da realidade social: trans causam um estra-
para se colocar numa sociedade que normal- nhamento social (por serem uma minoria consi-
mente as estigmatiza e aproveitando o interes- derada “exótica”). Esse efeito pode passar a ser
se que as trans informam de gostar e querer compreendido por elas(es) como algo “natural”,
“estar bem frente as câmeras” e “falar melhor positivo e que pode deixar de causar sofrimen-
to e se transformar em ferramenta de mudança,
em público“XXV.
na medida em que seja percebido como algo que
A metodologia utiliza técnicas do Teatro Invi-
contribui para a sociedade visibilizar e integrar di-
sível, de Augusto Boal29, que, por meio da realiza-
versidades e noções de justiça e cidadania. Ao
ção de 4 encontros por turma, propõe dinâmicas
mesmo tempo, esse deslocamento de percepção
onde são trabalhadas interpretação, falas e ence-
e habilitação para a comunicação, gera nas(os)
nação para promoção de uma intervenção na rea-
trans, um poder de transformação, potencial dife-
lidade. Essas técnicas teatrais atuam na inibição
renciado que contribui para a própria autovalori-
e desbloqueio e são divididas em 4 eixos: 1) “eu
zação e autorrespeito.
sou” – identidade, personalidade e verdade inte-
A essas oficinas se somaram um grupo de
rior; 2) “eu me expresso” – pelo corpo, voz, co-
WhatsApp com dicas de exercícios e informa-
erência; 3) “eu comunico” – ideias, mensagens,
ções de interesse do grupo, além de 1 encontro
conteúdos, improvisações; 4) “eu emociono” – ra-
que é realizado para abordar e discutir os direi-
zão, emoção, discurso, estilos.
tos de cidadania gerais, pautados na Constitui-
ção30 e em leis e normatizações específicas que
beneficiam os transexuais, travestis e transgêne-
XXIV
A técnica, adaptada às necessidades das trans, foi desenvolvida por Ta-
deu Di Pietro – um dos autores deste artigo – que já as utiliza com outros ros. Até o primeiro semestre de 2018, 13 pesso-
públicos.
as já haviam realizado o curso, em duas turmas
XXV
Manifestações de trans registradas pela instituição durante gravação de
alguns vídeos durante eventos da “Terças Trans”. oferecidas.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Considerações finais os trans “passeiam” foi o aprendizado do Barong,


O Brasil fez vários avanços na área de direi- apontando que ações integradas funcionam e
tos LGBT, incluindo transexuais. Esses avanços têm boa receptividade entre essa população. Ao
se concentraram na proposição de legislações mesmo tempo, isso inspira novas propostas de
e integração de programas de promoção de di- trabalho em atenção à sua demanda, como o pro-
reitos civis e cidadania, como demonstrou Krai- jeto de comunicação.
czyk31, que ainda precisam ser ainda muito divul- A promoção de um empoderamento para
gados entre esta população, mas também entre o exercício de uma real autonomia e decisão de
o público em geral, para minimizar preconceitos. melhor condução de suas vidas são direitos dos
Avanços na área de Saúde ainda se concen- indivíduos trans, ainda tão renegados entre a po-
tram em raras capitais e serviços e principalmente pulação brasileira. Isso ainda é real para as mu-
no município de São Paulo – que vêm realizando o lheres trans e talvez mais ainda para os homens
atendimento às demandas específicas de transe- trans – tão difíceis de ser acessados.
xuais –, além, obviamente, da atenção promovida Todos esses aspectos devem ter atenção
por todos os municípios pelo Programa Nacional de especial frente a ameaças recentes de retroces-
DST/Aids, visando à prevenção das IST/HIV e he- so nas conquistas democráticas de nosso país,
patites entre essa população gravemente atingida. que se estiverem efetivadas em nível individual
ONGs, como o Barong, têm potencial de entre esses sujeitos, terão muita dificuldade de
promover espaços, estratégias e materiais que lhes serem retiradas.
penetram em ambientes específicos onde essa
população transita, permitindo a testagem e a
parceria em estratégias de promoção de direitos
e cidadania, inclusive do direito ao acesso e pro-
Referências
moção de saúde sexual e reprodutiva. Afirmar a
1. Instituto Cultural Barong. Sobre o Barong. (on line).
sua visibilidade, apoiá-la juridicamente, atingi-la [acesso em 14 out 2018]. Disponível em: http://www.ba-
com materiais especificamente produzidos e que rong.org.br
utilizem sua linguagem e interesses, além de pro- 2. Instituto Cultrual Barong. SOS Dignidade. (on line) [aces-
mover ações de campo são fundamentais no pro- so em 14 out 2018]. Disponível em: http://www.sosdignity.
cesso de ação e comunicação com trans. org/
3. Schwach K, Figueiredo R, Wolfe BM, McBritton M, Mar-
Ainda há uma grande quantidade de popu-
quezine IM. Mudança de nome social de pessoas transgê-
lação trans invisibilizados, uma vez que não par-
neras - identidade de gênero para além da biologia. Bagoa.
ticipam dos espaços e programas centrais da 2017; (17):318-339.
“tribo” da cidade; seja por falta de recursos, de 4. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilân-
distância de sua situação de moradia ou de uma cia em Saúde. Boletim epidemiológico HIV Aids 2017.
idade anterior ou posterior aos ambientes públi- Brasília; 1 dez 2017. [acesso em: 15 out 2018]. Dis-
cos de programas ou “baladas”. O isolamento, ponível em: http://w w w.aids.gov.br/pt-br/pub/2017/
boletim-epidemiologico-hivaids-2017
neste caso, representa um fator de maior vulne-
5. São Paulo. Secretaria Municipal de Saúde. Programa Mu-
rabilidade e menor acesso a informações de saú-
nicipal de DST/Aids. In: O município na luta contra a AIDS.
de e de direitos civis. São Paulo; 2009. p.7-18.
Penetrar em seus estilos de vida e espaços 6. Mello MLR, Santos NJS, Giovanetti MR, Tayra A. Aids em
noturnos, fazendo parte do cenário público onde homens que fazem sexo com homens – tópicos importantes

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Diversidade Sexual e de Gênero

da política pública de prevenção do HIV/aids para gays, Dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil,
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Diversidade Sexual e de Gênero

Gênero e diversidade: uma análise sobre os grupos de


pesquisa do CNPq e a população LGBT
Gender and diversity: an analysis of CNPq research groups and the LGBT population

Renato BarbozaI, Alessandro Soares da SilvaII

Resumo Abstract

Analisou-se a distribuição dos grupos de pesquisa do Conselho The distribution of National Council for Scientific and Technologi-
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), cal Development (CNPq) research groups was analyzed in terms
quanto à produção de conhecimento científico voltado à popula- of the production of scientific knowledge about the LGBT popula-
ção LGBT e à composição das lideranças dos grupos quanto ao tion and the composition of group leaders in relation to gender.
gênero. Realizou-se um estudo exploratório, descritivo de aborda- An exploratory, descriptive, quantitative study was carried out ba-
gem quantitativa, baseado no inventário de grupos de pesquisa sed on the inventory of research groups registered at CNPq until
cadastrados no CNPq até 28 de setembro de 2018. O universo September 28, 2018. The analysis universe consisted of 75 eli-
de análise foi constituído por 75 grupos elegíveis. As evidências gible groups. The evidence shows that 86.6% of the groups were
revelam que 86,6% dos grupos foram constituídos entre 2006 e constituted between 2006 and 2018, indicating that scientific
2018, indicando que a produção científica sobre LGBT é um tema production on LGBT is an emerging theme. Notwithstanding the
emergente. Não obstante o crescimento dos grupos aferidos no úl- growth of the groups verified in the last CNPq census in 2016, the
timo censo do CNPq em 2016, os grupos que abordam a temática groups that approach the LGBT theme, correspond only 0.19%
LGBT, correspondem somente a 0,19% do total do país. São majo- of the total of the country. Mostly of them are concentrated in
ritariamente, concentrados nas regiões Sudeste (44%) e Nordeste the Southeast (44%) and Northeast (26.7%) and linked to public
(26,7%) e vinculados a instituições públicas de pesquisa (82,7%). research (82.7%). The intellectual capital about the LGBT popula-
O capital intelectual sobre a população LGBT é oriundo, sobretudo, tion comes mainly from three main areas of knowledge: Humani-
de três grandes Áreas de Conhecimento: Ciências Humanas (56%), ties Sciences (56%), Applied Social Sciences (21.3%) and Health
Ciências Sociais Aplicadas (21,3%) e Ciências da Saúde (13,3%). Sciences (13.3%). In general, the groups are coordinated by wo-
No geral, os grupos são coordenados por mulheres (60%), contra men (60%), compared to 40% of men, showing a female leader-
40% de homens, evidenciando a liderança feminina nesse campo ship in this research field.
de investigação.
Key words: Scientific field; Gender; LGBT.
Palavras-chave: Campo científico; Gênero; LGBT.

I
Renato Barboza (renato@isaude.sp.gov.br) é cientista social, Doutorando II
Alessandro Soares da Silva (alepsipol1@gmail.com) é filósofo, Doutor
em Psicologia Social e do Trabalho pelo Instituto de Psicologia da Universi- em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
dade de São Paulo (IP-USP), Mestre em Saúde Coletiva pela Coordenadoria (PUC/SP), Livre-Docente em Sociedade, Multiculturalismo e Direitos pela
de Controle de Doenças da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo Universidade de São Paulo (USP), Professor Associado da Escola de Ar-
(CCD-SES/SP), Pesquisador Científico do Instituto de Saúde da SES/SP, Pes- tes, Ciências e Humanidades (EACH) e do Programa de Pós-Graduação em
quisador do Grupo de Pesquisa em Psicologia Política, Políticas Públicas Psicologia Social do Instituto de Psicologia (IP) da USP e Líder do Grupo
e Multiculturalismo e do Núcleo de Estudos para a Prevenção da Aids da de Pesquisa em Psicologia Política, Políticas Públicas e Multiculturalismo
Universidade de São Paulo (NEPAIDS/USP). desta universidade.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Introdução Assim como a inclusão de ações direcionadas à

O
população homossexual no “I Plano Nacional de
“Movimento Homossexual Brasileiro” da-
Direitos Humanos”, formalizado em 1996. Em
ta do final da década de 1970 e foi mar-
2004, a publicação do “Programa Brasil Sem Ho-
cado majoritariamente pela participação
mofobia” foi um marco fundamental para o de-
masculina e por uma presença reduzida de mu-
senvolvimento de políticas intersetoriais, volta-
lheres lésbicas1,2. Destaca-se, nesse período, a
das aos segmentos LGBT no país7,8.
atuação do Grupo Somos, reconhecido como um
A realização da “I Conferência Nacional de
dos coletivos pioneiros nas ações de incidência
LGBT”, em 2008, mobilizou um grande núme-
política e na criação e veiculação do Jornal “O
ro de representantes e de delegados do poder
Lampião da Esquina” no ano de 19783. Por outro
público e da sociedade civil, bem como se deu
lado, o movimento do segmento de lésbicas al-
durante o processo de organização das confe-
cançou visibilidade na segunda metade da déca-
rências estaduais realizadas em todas as unida-
da de 1990, quando passou a atuar na defesa de
des da federação9. No período recente, avanços
pautas específicas e de forma independente do
como a regulação do uso do “nome social” para
movimento feminista. A visibilidade das traves-
o segmento trans e o reconhecimento da união
tis e das transexuais e a militância do segmento
homoafetiva pelo Judiciário, conferiram visibili-
“trans” ocorreu posteriormente aos segmentos
dade social e a observância tardia dos direitos
de gays e de lésbicas. Um dos marcos políticos
LGBT10. Nessa perspectiva, destaca-se a publi-
se refere à realização, em 1993, do “Encontro
cação, no ano de 2011, da “Política Nacional
Nacional de Travestis e Liberados”, coordenado
pelo coletivo Astral - Associação de Travestis e de Saúde Integral LGBT”, que objetiva promover
Liberados2,4,5. a equidade em saúde e a eliminação da discri-
A fundação, em 1995, da Associação Bra- minação e do preconceito institucional11, e, em
sileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, 2013, da ampliação das diretrizes para o “pro-
Transexuais e Intersexos (ABGLT) ampliou o diá- cesso transexualizador” no âmbito do Sistema
logo e a articulação das agendas específicas em Único de Saúde (SUS)12.
prol da garantia da cidadania e dos direitos huma- O Conselho Nacional de Desenvolvimen-
nos das populações LGBT e do enfrentamento da to Científico e Tecnológico (CNPq) foi criado em
discriminação social e da violência por orientação 1951 e atualmente está vinculado ao Ministério
sexual e identidades de gênero. A ABGLT se con- da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunica-
solidou como uma rede nacional com um núme- ções. O CNPq tem por missão institucional:
ro expressivo de organizações filiadas, atuando “...fomentar a Ciência, Tecnologia e Inovação
também no âmbito internacional6,1. e atuar na formulação de suas políticas, con-
O enfrentamento da epidemia de HIVIII e ai- tribuindo para o avanço das fronteiras do co-
ds, sobretudo na década de 1990 conferiu visibi- nhecimento, o desenvolvimento sustentável e
lidade e inserção da população LGBT na agenda a soberania nacional”13.
política e programática do Ministério da Saúde.
Uma importante ação para o fomento e con-
trole da pesquisa nacional foi a criação do “Dire-
tório dos Grupos de Pesquisa no Brasil - Lattes”
III
Sigla em inglês do human immunodeficiency virus (vírus da imunodeficiên-
cia humana). (DGP). Ele é uma das bases de dados disponíveis

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no site do CNPq, possível de ser acessado por LGBT e a composição das lideranças desses gru-
meio da consulta à “base corrente” do DGP na pos quanto ao gênero.
funcionalidade “buscar grupos”, que permite
acesso a um conjunto de informações detalha-
das sobre os grupos de pesquisa e às suas res- Metodologia
pectivas linhas de pesquisa, certificados por uni- A análise apresentada é um desdobra-
versidades públicas e privadas e institutos de pú- mento do projeto de pesquisa “Sociedades
blicos de pesquisa. As informações constantes Multiculturais, Gênero e Diversidade: um es-
dos grupos de pesquisa que compõem o DGP po- tudo sobre a população LGBT nos Grupos de
dem ser atualizadas em tempo real pelos líderes Pesquisa do CNPq”, desenvolvido por pesqui-
desses grupos13. sadores do Instituto de Saúde da Secretaria de
Segundo o CNPq, o DGP possui três finali- Estado da Saúde de São Paulo (IS-SES/SP) e
dades principais: 1) propiciar o intercâmbio e a da Universidade de São Paulo14. Trata-se de um
troca de informações entre os membros da co- estudo do tipo exploratório, descritivo de abor-
munidade científica com eficiência; 2) disponibi- dagem quantitativa15,16, baseado no inventário
lizar informações atualizadas sobre os grupos de grupos de pesquisa cadastrados nas bases
da base de dados (base corrente), subsidiando de dados do CNPq.
a avaliação da produção científica e tecnológica, Para procedermos a identificação dos gru-
assim como o planejamento e a gestão da ciên- pos de pesquisa certificados na Plataforma Lat-
cia e da tecnologia no país; e 3) contribuir para a tes, segundo os “Diretórios de Grupos de Pesqui-
preservação da memória da produção científica sa do Brasil” constantes dessa base de dados do
brasileira, por meio do censo bianual das bases CNPq, utilizamos em uma primeira etapa como
de dados, incluindo as bases censitárias13. termo de busca para a consulta parametrizada à
No último censo dos grupos de pesquisa, sigla “LGBT”, indicando a seleção dos campos:
realizado pelo CNPq, em 2016, foram identifica- “nome do grupo”, “nome da linha de pesquisa” e
das 531 instituições produtoras de conhecimen- “palavra-chave da linha de pesquisa”.
to técnico-científico no país. Essas instituições Inicialmente, desconsideramos o campo de
são responsáveis por 37.640 grupos, perfazendo busca “repercussões do grupo”, cuja consulta re-
199.566 pesquisadores, sendo 129.929 douto- sultou na identificação de 35 grupos de pesquisa.
res. De acordo com o CNPq, comparado ao cen- Optamos por ampliar a consulta, incluindo esse
so de 2002, houve um incremento de 149% no campo de busca, perfazendo, assim, 62 grupos
número de grupos cadastrados e, em relação ao de pesquisa. Foram incluídos, nessa busca: 1)
inventário de 2014, o crescimento aferido foi de os grupos certificados e os grupos não atualiza-
6% no país. No último censo, constatou-se que o dos nos últimos 12 meses; 2) os grupos de todas
número de pesquisadores aumentou 11% e o de as instituições, unidades da federação e regiões
doutores 12%13. do país; 3) o filtro referente à “área do conheci-
Esse artigo apresenta a análise da distribui- mento”, incluindo os itens “grande área” e “área”,
ção dos grupos registrados na base corrente do segundo a opção “predominante do grupo”; e 4)
“Diretório dos Grupos de Pesquisa do Brasil – Lat- todas as subdivisões de anos de existência dos
tes” do CNPq quanto à produção de conhecimen- grupos (“menos de 1 ano”, “1-4”, “5-9”, “10-14”
to científico e tecnológico voltado à população e “15 anos ou mais”).

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Em uma segunda etapa da consulta para- conhecimento predominante e área de conheci-


metrizada, utilizando os mesmos campos de bus- mento específica, segundo a classificação ado-
ca e critérios/filtros da etapa anterior, utilizamos tada pelo CNPq. Os dados foram submetidos à
como termos de busca, separadamente, as pa- análise descritiva baseada em frequências abso-
lavras “gays”, “lésbicas”, “bissexuais”, “traves- lutas e relativas.
tis”, “transexuais” e “transgêneros”, resultando
na identificação de 12, 61, 1, 16, 15 e 6 gru-
pos de pesquisa, respectivamente. Após iden- Resultados e discussão
tificar e descartar os grupos em duplicidade da O primeiro grupo de pesquisa registrado
etapa anterior foram incluídos 24 novos grupos no CNPq que foca a população LGBT data de
de pesquisa referentes aos segmentos de “gays” 1995. O grupo denominado “Gênero, Religião
(n=7), “travestis” (n=10), “transexuais” (n=3) e e Política” (PUC-SP) é coordenado por pesqui-
“transgêneros” (n=4). Não foram encontrados sadoras da Pontifícia Universidade Católica de
novos grupos nos segmentos de “lésbicas” e São Paulo que atuam na produção de conheci-
“bissexuais”. mento na área das Ciências Humanas, com foco
Em consonância aos parâmetros adotados, na subárea da Sociologia. A Tabela 1 demonstra
o inventário de grupos de pesquisa cadastra- que a maioria dos grupos que contempla os seg-
dos nos “Diretórios dos Grupos de Pesquisa” do mentos LGBT em seus estudos foi criada mais
CNPq, até 28 de setembro de 2018, resultou na recentemente, no período entre 2011 e 2015,
identificação de um total de 86 grupos de pes- totalizando 37,3% dos grupos encontrados. As
quisa. Desse total, 71 estavam registrados co- evidências revelam que 86,6% (n=65) dos gru-
mo certificados pelas respectivas instituições; 4 pos foram formados no período compreendido
em preenchimento e 11 já haviam sido excluídos. entre 2006 e 2018, conferindo, assim, um ca-
Na presente análise foram descartados os gru- ráter de tema emergente17 à produção científica
pos classificados como excluídos nos Diretórios sobre LGBT no país (tabela 1).
do CNPq, perfazendo 75 grupos de pesquisa, os
Tabela 1. Frequência absoluta e relativa dos gru-
quais constituem o universo de análise discutido
pos de pesquisa LGBT (CNPq), segundo períodos
neste artigo.
selecionados.
Os dados coletados foram compilados em
um banco de dados em planilha Excel, conten- Período n %
do o detalhamento do registro das informações
1995 - 1999 3 4,0
de cada grupo de pesquisa identificado no inven-
2000 - 2005 7 9,3
tário. Para a presente análise foram definidas e
coletadas as seguintes variáveis: nome da insti- 2006 - 2010 15 20,0

tuição, caráter da instituição (pública ou privada), 2011 - 2015 28 37,3


localização da instituição (unidade da federação 2016 - 2018 22 29,3
e macrorregião), nome do grupo de pesquisa,
Total 75 100
ano de formação, situação do grupo no cadas-
Fonte: os autores.
tro (“certificado”, “em preenchimento” ou “excluí-
do”), nome do líder e vice-líder do grupo, área de

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Diversidade Sexual e de Gênero

Os dados apresentados na tabela 2 corro- Tabela 3. Frequência absoluta e relativa dos gru-
boram a emergência desse tema na agenda de pos de pesquisa LGBT (CNPq), segundo região e
pesquisa brasileira e revelam que 48% dos gru- tipo de instituição.
pos em atividade no país possuem até 5 anos de
Pública Privada Total
existência e 33,3%, entre 6 e 10 anos. Somente Região
n % n % n %
9 dos 75 grupos foram formados há 16 anos
ou mais. Assim, pode-se afirmar que 81,3% dos Centro-Oeste 5 8,1 0 0 5 6,7

grupos que tomam como objeto de investigação Nordeste 19 30,6 1 7,7 20 26,7
em suas linhas de pesquisa a população LGBT Norte 2 3,2 0 0 2 2,7
têm até uma década de atividade científica. Sudeste 25 40,3 8 61,5 33 44,0

Sul 11 17,7 4 30,8 15 20,0


Tabela 2. Frequência absoluta e relativa dos gru-
Total 62 100 13 100 75 100
pos de pesquisa LGBT (CNPq), segundo anos de
Fonte: os autores.
existência.

Anos de existência n % Não obstante ao crescimento dos grupos


1 - 5 anos 36 48,0 na última década, cabe destacar que no universo
pesquisado, o número de grupos que abordam a
6 - 10 anos 25 33,3
temática LGBT é muito pequeno quando compa-
11 - 15 anos 5 6,7
rado à totalidade dos grupos registrados nas ba-
16 anos ou mais 9 12,0
ses de dados oficiais. Segundo dados do CNPq,
Total 75 100 em 1993 o país possuía 4.402 grupos de pes-
Fonte: os autores. quisa, sendo 68,5% na região Sudeste, 15,7%
na Sul, 9,9% no Nordeste, 4,2% no Centro-Oeste
A partir dos dados disponíveis na tabela 3, e 1,7% na região Norte13. Os dados disponibili-
observa-se que a concentração da produção zados pelo censo do CNPq para o ano de 2016
de conhecimento se localiza na região Sudes- são: 42,5% para a região Sudeste, 22,9% para a
te, com 44% dos grupos. A região Nordeste fi- região Sul, 20,5% para a região Nordeste, 7,7%
gura em segundo lugar, com 26,7% dos grupos, para a região Centro-Oeste e 6,3% para a região
seguida da região Sul, com 20%, Centro-Oeste, Norte. No ano de 2016, o Brasil registrava junto
com 6,7%, e Norte, com 2,7%. É possível que ao CNPq 37.640 grupos de pesquisa13.
a relevância conferida ao Nordeste esteja rela- Impressiona que esse tema seja relevante pa-
cionada à repercussão das políticas de desen- ra apenas 0,19% dos grupos de pesquisa existen-
volvimento da pesquisa por parte do CNPq e da tes no país. Pode-se indagar que talvez esse núme-
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de ro seja ainda menor, pois o CNPq não disponibilizou
Nível Superior (CAPES). Entretanto, quando ob- os dados de 2018. Supondo um aumento da base
servamos globalmente, as regiões Sul e Sudes- de dados, essa percentagem deve ser ainda menor,
te – economicamente mais ricas e com maior considerando os 75 grupos encontrados até setem-
concentração populacional –, ambas concen- bro de 2018 no presente inventário. Apesar das
tram 64% da produção científica no campo de diferenças, é visível o crescimento da região Nor-
estudos lesbigays ou LGBT. deste que possui número muito próximo de grupos

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Diversidade Sexual e de Gênero

da região Sul, o que fortalece a hipótese de que estar concentrada majoritariamente em institui-
as constantes políticas do CNPq de fomento ao de- ções públicas e laicas. Nelas temos 82,7% das
senvolvimento científico em regiões mais pobres do agrupações de pesquisadores em torno da temá-
país podem ter contribuído para o crescimento dos tica LGBT, contra 17,3% das privadas. Isso leva a
grupos que investigam o tema LGBT. conclusão de que os cortes de gastos públicos
No que tange à classificação pelas unidades dos últimos anos na área das Ciências18 podem
da federação, os 75 grupos se distribuem em 16 afetar drasticamente a permanência dos grupos
estados e o Distrito Federal. Das cinco regiões do de pesquisa como produtores de saberes. Por ou-
país, apenas duas possuem grupos em todas as su- tro lado, a natureza muitas vezes confessional de
as unidades federativas: a Centro-Oeste, composta instituições privadas poderia ser uma razão pos-
pelos estados de Goiás, Mato Grosso, Matogrosso sível para a diminuta participação destas na pro-
do Sul e o Distrito Federal, e a Sul, composta pe- dução de conhecimento e fomento à criação de
los estados do Paraná, Rio Grande do Sul e Santa novos grupos dedicados a essa temática.
Catarina. No Sudeste, apenas o estado do Espíri- Nos grupos de pesquisa sobre as popula-
to Santo não tem grupos de pesquisa na temática ções LGBT, predominam os estudos conduzidos
LGBT, sendo identificados grupos em Minas Gerais, por pesquisadores das áreas de conhecimento
Rio de Janeiro e São Paulo. No Nordeste, dos nove alinhadas às Ciências Humanas e às Ciências So-
estados da região, apenas cinco possuem grupos: ciais Aplicadas, as quais respondem por 56% e
Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba e Pernambuco, não 21,3%, dos grupos respectivamente. No conjunto
das seis áreas de conhecimento identificadas no
havendo grupos nos estados do Maranhão, Piauí,
inventário, essas duas áreas concentram 77,3%
Rio Grande do Norte e Sergipe. Contudo, a região
dos grupos aferidos, seguidas pelas áreas das
Norte chama a atenção, pois aparecem dados po-
Ciências da Saúde, com 13,3%, e Linguística, Le-
sitivos apenas para o Amazonas e o Tocantins, não
tras e Artes, com 6,7%. A menor participação de
havendo grupos registrados nos estados do Acre,
pesquisadores dedicados às temáticas relaciona-
Amapá, Pará, Rondônia e Roraima. Portanto, dos
das aos segmentos LGBT se refere às áreas das
26 estados brasileiros não há grupos de pesquisa
Ciências Biológicas e das Ciências Exatas e da
informados no CNPq em 10 (38,4%) deles.
Terra, ambas com 1,3% cada (tabela 4).
A tabela 3 mostra a distribuição dos grupos
com temática LGBT, segundo a macrorregião e as Tabela 4. Frequência absoluta e relativa dos gru-
instituições públicas e privadas. Do total, apenas pos de pesquisa LGBT (CNPq), segundo a Área de
13 grupos (17,3%) encontram-se em instituições Conhecimento Predominante.
privadas, sendo que não há registros para as re-
Área do Conhecimento
giões Centro-Oeste e Norte. Para as demais re- n %
Predominante
giões, encontramos o seguinte: a região Sudeste Ciências Humanas 42 56,0
concentra 61,5% desse total, a região Sul, 30,8%, Ciências Sociais Aplicadas 16 21,3
e a região Nordeste, 7,7%. Em instituições públi- Ciências da Saúde 10 13,3
cas, aferimos 62 grupos distribuídos em todas as Ciências Biológicas 1 1,3
macrorregiões. A região Sudeste possui 40,3%, a Ciências Exatas e da Terra 1 1,3
Nordeste, 30,6%, a Sul, 17,7%, a Centro-Oeste, Linguística, Letras e Artes 5 6,7
8,1%, e a Norte, 3,2%. Porém, vale destacar como Total 75 100
relevante, o fato da pesquisa sobre temas LGBT Fonte: os autores.

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Diversidade Sexual e de Gênero

No que concerne às áreas de conhecimento de pesquisa no país sobre LGBT, apuramos que,
específicas, que delimitam o campo de inserção majoritariamente, esses grupos estão distribuí-
dos pesquisadores, averiguamos a existência de dos em quatro subáreas, totalizando 83,3% dos
vinte áreas no inventário. Ao examinarmos o ran- grupos. Verificamos que a Educação (26,2%, 11
que das cinco principais, notamos, em ordem de- grupos) é a principal subárea de atuação dos pes-
crescente, a presença das seguintes áreas: Edu- quisadores, seguida pela Psicologia (23,8%, 10
cação (16%), Psicologia (13,3%), Sociologia (12%), grupos), Sociologia (21,4%, 9 grupos) e Antropolo-
Saúde Coletiva (9,3%) e Serviço Social (9,3%). Ca- gia (11,9%, 5 grupos). Quanto às Ciências Sociais
be ressaltar nesse elenco que quatro áreas per- Aplicadas que concentra 16 grupos, a produção
tencem às grandes áreas de conhecimento das Ci- de conhecimento sobre LGBT é liderada pelas su-
ências Sociais e das Ciências Sociais Aplicadas, báreas do Serviço Social (43,8%, 7 grupos) e do
exceto a Saúde Coletiva, vinculada às Ciências da Direito (31,3%, 5 grupos).
Saúde. Nessa ótica, ao investigarmos as áreas es-
pecíficas voltadas à população LGBT, verificamos Tabela 5. Frequência absoluta e relativa dos gru-
que, atualmente, 50,6% dos grupos do CNPq estão pos de pesquisa LGBT (CNPq), segundo a Área de
circunscritos a essas duas áreas de produção de Conhecimento Específica.
conhecimento científico e tecnológico (Tabela 5).
Área do Conhecimento
n %
Vale sublinhar nesse ranque, a participação Específica
dos grupos que atuam na Saúde Coletiva, os quais Educação 12 16,0
representam 9,3% das 20 áreas de conhecimento Psicologia 10 13,3
encontradas. Da mesma forma, constatou-se nas Sociologia 9 12,0
três subáreas das Ciências da Saúde (Enferma- Saúde Coletiva 7 9,3
gem, Farmácia e Medicina), a existência de apenas Serviço Social 7 9,3
um grupo de pesquisa sobre LGBT em cada uma Antropologia 5 6,7
dessas subáreas, contra sete grupos vinculados à
Direito 5 6,7
Saúde Coletiva (tabela 5). Assim, como observado
História 3 4,0
em outros estudos é possível afirmar que, o caráter
Administração 2 2,7
interdisciplinar e a consolidação do campo da Saú-
Artes 2 2,7
de Coletiva no Brasil19,20, desde a década de 1970,
Comunicação 2 2,7
propiciou uma maior interface entre os estudos epi-
Filosofia 2 2,7
demiológicos e as Ciências Sociais e Humanas em
Letras 2 2,7
Saúde21, contribuindo para um maior envolvimento
Ciência Política 1 1,3
de pesquisadores engajados na produção de sabe-
Enfermagem 1 1,3
res e de práticas sobre o processo saúde-cuidado.
No período mais recente, os grupos de pesquisa da Farmácia 1 1,3

Saúde Coletiva têm desenvolvido pesquisas sobre Medicina 1 1,3

as necessidades de saúde das populações LGBT12 Parasitologia 1 1,3

na perspectiva da integralidade da atenção no Sis- Probabilidade e Estatística 1 1,3

tema Único de Saúde11. Teologia 1 1,3


No que diz respeito às áreas específicas das Total 75 100
Ciências Humanas, responsáveis por 42 grupos Fonte: os autores.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Dos 75 grupos mapeados, 45 têm duas li- Outros 23 (30,7%) grupos têm lideranças
deranças (60%) e 30 possuem uma única lide- mistas, sendo que 11 (47,8%) deles têm uma
rança (40%). No caso destes 45 grupos, quan- mulher como liderança principal e 12 (52,2%)
do analisamos a distribuição de gênero das duas têm um homem nessa posição. Vale notar que
lideranças, aferimos que 27 mulheres (60%) e o protagonismo feminino se destaca não ape-
18 homens (40%) ocupam a primeira posição e, nas quando olhamos para o total de pesquisa-
no caso da segunda liderança, 16 são mulheres dores, mas também quando observamos as po-
(59,3%) e 11 são homens (40,7%), evidenciando sições que elas ocupam na hora de liderar. Dos
a liderança feminina no campo de investigação 75 grupos, apenas 18 (24%) são compostos por
LGBT, bem como a carência de profissionais habi- homens na primeira e segunda posição, ao passo
litados nessa temática em muitas instituições de que 33 (44%) grupos são compostos exclusiva-
ensino superior. mente por mulheres na liderança, incluídos aqui
Na tabela 6, retirando os grupos com lide- os grupos com líder único para ambos os casos.
rança mista, verificamos que, nos grupos de li- Grupos mistos representam, portanto, um terço
derança única, 51,5% são coordenados por mu- do total de grupos analisados.
lheres e 68,4% por homens. Todavia, chama a
atenção que quando olhamos para os dados dos Considerações finais
grupos com liderança única e com dupla lideran- O caminho trilhado permitiu esquadrinhar a
ça, no caso das mulheres há uma situação equili- distribuição dos grupos de pesquisa certificados
brada, entretanto no caso dos homens a diferen- no CNPq, revelando quais são os grupos dedica-
ça é notável. A coordenação masculina de grupos dos à produção de conhecimento científico sobre
de líder único é o dobro, comparada aos grupos a população LGBT no país. As evidências demons-
com dupla liderança, 68,4% e 31,6%, respectiva- tram que, majoritariamente, se trata de uma pro-
mente. Nos grupos com duas lideranças, 48,5% dução ainda emergente na agenda de trabalho da
são coordenados por duas mulheres e apenas maioria dos grupos registrados e que os mesmos
31,6% têm dois homens liderando, evidenciando desenvolvem pesquisas há uma década. Não obs-
a relevância da presença feminina no universo tante o crescimento dos grupos de pesquisa, bem
investigado. como o número de doutores e de pesquisadores
aferidos no último censo do CNPq em 2016, regis-
Tabela 6. Frequência absoluta e relativa dos gru- tra que os grupos que abordam a temática LGBT
pos de pesquisa LGBT (CNPq), segundo número representam somente 0,19% do total de grupos
de lideranças e gênero. do país. Como apontam outras pesquisas1,4,5, é vi-
Homens Mulheres Total
sível que a temática ainda encontra resistência na
Lideranças academia, necessitando muito para se desenvol-
n % n % n %
ver. A despeito da presença de grupos em todas
grupos com 1 líder 13 68,4 17 51,5 30 57,7 as regiões brasileiras, os achados demonstram
que há uma concentração nas regiões Sudeste e
grupos com 2 líderes* 6 31,6 16 48,5 22 42,3
Nordeste e em instituições públicas.
Total 19 100 33 100 52 100 O capital intelectual sobre a população LGBT
* Não foram considerados os grupos com liderança mista (n=23). é produzido por pesquisadores vinculados sobre-
Fonte: os autores. tudo há três grandes áreas de conhecimento,

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Diversidade Sexual e de Gênero

circunscritas às Ciências Humanas, às Ciências 10. Gomes R, Murta D, Facchini R, Meneghel SN. Gênero,
Sociais Aplicadas e às Ciências da Saúde, sobres- direitos sexuais e suas implicações na saúde. Ciênc Saúde

saindo cinco áreas específicas: Educação, Psico- Colet. 2018; 23(6):1997-2005.


11. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM nº 2.836. Insti-
logia, Sociologia, Serviço Social e Saúde Coletiva.
tui, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a Política
É mister sublinhar a presença e o protagonismo
Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais,
feminino na condução dos grupos analisados. Por Travestis e Transexuais. Brasília, DF; 1 dez 2011.
fim, recomendamos a realização de outras pesqui- 12. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2803. Redefine
sas que ampliem a visibilidade da produção cientí- e amplia o Processo Transexualizador no Sistema Único de
fica e tecnológica voltada à população LGBT, com Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 20 nov 2013.
vistas a subsidiar a agenda de pesquisa e as polí- 13. Brasil. Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e
ticas públicas em curso no país. Comunicações. Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) - Diretório dos Grupos de
Pesquisa no Brasil – Lattes. 2018. (on line). [acesso em 28
set 2018]. Disponível em: http://lattes.cnpq.br/web/dgp
14. Barboza R, Silva AS. Sociedades multiculturais, gênero
Referências e diversidade: um estudo sobre a população LGBT nos Gru-
1. Silva, AS. Marchando pelo arco-íris da Política: a parada pos de Pesquisa do CNPq [projeto de pesquisa]. São Paulo:
do orgulho LGBT na construção da consciência coletiva dos
Instituto de Saúde, Universidade de São Paulo; 2018.
movimentos LGBT no Brasil, Espanha e Portugal. [tese]. São
15. Gil, AC. Métodos e técnicas de pesquisa social. São
Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2006.
Paulo: Atlas; 2008.
2. Carrara S. Discriminação, políticas e direitos sexuais no
16. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa
Brasil. In: Monteiro S, Vilella W. (organizadores). Estigma e
qualitativa em saúde. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec/
Saúde. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2013. p. 143-160.
Abrasco; 2004.
3. Macrae E. A construção da igualdade: identidade sexual
17. Marsiglia RMG, Spinelli SP, Lopes MF, Silva TCP. Das
e política no Brasil da “Abertura”. Campinas: Editora da UNI-
Ciências Sociais em saúde: produção científica de pós-
CAMP; 1990.
-graduação em Ciências Sociais. Ciênc Saúde Colet. 2003;
4. Silva AS, Barboza, R. Diversidade sexual, gênero e exclu-
8(1):275-285.
são social na produção da consciência política de travestis.
18. Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
Athenea Digital. 2005; 8:27-49.
(SBPC). Com cortes no orçamento, futuro da ciência brasi-
5. Silva AS, Barboza, R. Exclusão social e consciência po-
leira fica ameaçado. Notícias SBPC 01/02/2018. (on line).
lítica: luta e militância de transgêneros no ENTLAIDS. Cad.
CERU. 2009; 20(1):257-276. [acesso 4 out 2018]. Disponível em: http://portal.sbpcnet.
6. Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Tra- org.br/noticias/com-cortes-no-orcamento-futuro-da-ciencia-
vestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT). Missão, valores, -brasileira-fica-ameacado/
caráter e finalidade principal. (on line). 2018. [acesso em 26 19. Canesqui AM. As ciências sociais e humanas em saúde
set 2018]. Disponível em: https://www.abglt.org/historia na Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Cole-
7. Brasil. Brasil sem homofobia: programa de combate à vio- tiva. Physis. 2008; 18:215-50.
lência e à discriminação contra GLTB e promoção da cidada- 20. Nunes ED, Ferreto LE, Oliveira ALO, Nascimento JL,
nia homossexual. Brasília: Conselho Nacional de Combate Barros NF, Castellanos MEP. O campo da Saúde Coletiva
à Discriminação; 2004. na perspectiva das disciplinas. Ciênc Saúde Colet. 2010;
8. Simões JA, Facchini R. Na trilha do arco-íris: do homos- 15(4):1917-1922.
sexual ao movimento LGBT. São Paulo: Editora Fundação 21. Ianni AMZ, Spadacio C, Barboza R, Alves OSF, Via-
Perseu Abramo; 2009. na SDL, Rocha ATS. Os congressos brasileiros de Ci-
9. Mello L, Brito W, Maroja D. Políticas públicas para a po- ências Sociais e Humanas em Saúde da ABRASCO: um
pulação LGBT no Brasil: notas sobre alcances e possibilida- campo científico em disputa. Ciênc Saúde Colet. 2015;
des. Cad. Pagu. 2012; 39:403-429. 20(2):503-513.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Curso “A Conquista da Cidadania LGBT”


– uma experiência da Secretaria de Estado
da Saúde de São Paulo

Course “The Conquest of LGBT Citizenship” – an experience of the State


Department of Health of São Paulo

Deborah MalheirosI, Juliana de Souza FerreiraII, Vania Alessandra FeresIII

Resumo Abstract

Este artigo pretende descrever a experiência da Secretaria de Es- This article intends to describe the experience of the Secretary of
tado da Saúde de São Paulo na realização do Curso “A Conquista State for Health of São Paulo in the course “The Conquest of LGBT
da Cidadania LGBT: a política da diversidade sexual em São Paulo” Citizenship: the politics of sexual diversity in São Paulo” and its
e sua importância na disseminação entre os trabalhadores da saú- importance in the dissemination among health workers, between
de, no período de 2014 a 2017, sobre a diversidade sexual e os di- 2014 and 2017, on sexual diversity and the rights already acquired
reitos já adquiridos pela parcela da população LGBT. Pretende tam- by the LGBT population. It also aims to address the importance of
bém abordar a importância dos processos de ensino à distância, a distance learning processes, the experience of partnership and
experiência da parceria e o diferencial da mediação pedagógica e the differential of pedagogical mediation and tutoring in the speci-
da tutoria no curso em específico, bem como transcrever um relato fic course, as well as transcribing an account based on the expe-
a partir da vivência de uma tutora e dos relatos de alunos do curso. rience of a tutor and the reports of course students.

Palavras-chave: Capacitação de recursos humanos; Direitos huma- Keywords: Training of human resources; Human rights; GLBT.
nos; LGBT.

I
Deborah Bittencourt Malheiros (dbmalheiros@sp.gov.br) é psicóloga pelas III
Vania Alessandra Feres (vferes@saude.sp.gov.br) é Bacharel em Secreta-
Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), Coordenadora da Coordenação Ge- riado Executivo Bilíngue pela Anhembi Morumbi, Especialista em Saúde Pú-
ral de Apoio aos Programas de Defesa da Cidadania (CGAPDC) da Secretaria blica pela UNAERP, Especialista em Gestão do Trabalho e Educação na Saúde
da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo (SJDC-SP) e pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de Misericórdia de São
membro do Comitê Técnico de Ações de Saúde Integral da População LGBT Paulo e membro do Comitê Técnico de Ações de Saúde Integral da Popula-
da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES/SP-SP). ção LGBT da SES/SP pela Coordenadoria de Recursos Humanos da SES-SP.
Atuou como Tutora do Curso “A Conquista da Cidadania LGBT: a política da
II
Juliana de Souza Ferreira (juferreira@saude.sp.gov.br), é graduada em Pu-
diversidade sexual em São Paulo” entre os anos 2014 e 2016, atendendo a
blicidade e Propaganda no Centro Universitário Ibero Americano (UNIBERO),
seis turmas realizadas.
com Especialização em Gestão do Trabalho em Educação em Saúde pela
Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo
(FCMSCSP) e atua como Diretora do Centro de Metodologias de Ensino em
Saúde da SES-SP.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Introdução do tratamento nominal (nome social) de travestis e

O
transexuais pelos funcionários públicos, em todos
Sistema Único de Saúde (SUS) está base-
os órgãos da administração pública estadual, dire-
ado em um conjunto de princípios, entre
ta ou indireta; e já dentro da estrutura da Secreta-
os quais se destaca a universalidade, a
ria de Estado da Saúde (SES-SP) temos a criação
integralidade e a equidade, que asseguram a to-
do Ambulatório de Saúde Integral de Travestis e
dos, indistintamente, o igual direito à utilização
Transexuais em junho de 2009, vinculado ao Cen-
gratuita dos seus serviços. Faz-se necessário le-
tro de Referência e Treinamento em DST/Aids12,
var em consideração que a orientação sexual e
e o Comitê de Saúde Integral da População LGBT
identidade de gênero são fatores determinantes
da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo
e condicionantes da situação de saúde, não ape-
(SES-SP), em 201413.
nas por implicar práticas sexuais e sociais especí-
Frente a este contexto e considerando a im-
ficas, mas também por expor lésbicas, gays, bis-
portância do enfrentamento da discriminação e ex-
sexuais, travestis e transexuais (LGBT) a agravos
clusão da população LGBT dos serviços de saúde
decorrentes do estigma, dos processos discrimi- e da redução de suas vulnerabilidades, deve tem
natórios e da exclusão que violam seus direitos o papel, assim, de desenvolver estratégias que vi-
humanos e, em especial, o direito à saúde. Nes- sem à garantia do acesso à saúde de forma inte-
te sentido o desafio da atenção integral à saúde gral, de qualidade, de acordo com suas necessi-
para a população LGBT deve ser compreendido a dades e livre de discriminação para a população
partir das suas vulnerabilidades específicas. LGBT. Desde a criação do Comitê Intersecretarial
Observa-se que, no Brasil, vários avanços de Defesa da Diversidade Sexual, a SES-SP é
significativos foram alcançados pela população membro integrante e assim participou efetivamen-
LGBT na última década, dando resposta a direitos te da elaboração e execução do 1º Plano Estadual
historicamente negligenciados. No âmbito nacio- de Enfrentamento da Homofobia e Promoção da
nal a 1ª, 2ª e 3ª Conferência Nacional LGBT (res- Cidadania LGBT10. A partir do 2º Plano, em vias de
pectivamente em 2008, 2011 e 2016)1,2,3 e o 1º ser publicado, vem buscando, em conjunto com
Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direi- a Secretaria da Justiça, estratégias para ampliar
tos Humanos de LGBT (2009)4. Em âmbito do Es- o processo de sensibilização e instrumentalização
tado de São Paulo, temos: a Lei 10.948 de 20015 dos trabalhadores da Saúde para o desenvolvi-
que pune administrativamente os atos de homofo- mento de ações de promoção, prevenção e aten-
bia/transfobia; a realização de três Conferências ção à saúde da população LGBT e de redução do
Estaduais (2008, 2011 e 2016) 6,7,8; a criação da preconceito e práticas discriminatórias.
Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerân- Uma das estratégias consideradas de fun-
cia- DECRADI (2006); criação da Coordenação de damental importância para essa sensibilização e
Políticas para a Diversidade Sexual dentro da es- instrumentalização, diz respeito à capacitação dos
trutura da Secretaria da Justiça e da Defesa da Ci- trabalhadores que atuam no âmbito do Sistema
dadania (SJDC), e vinculada a ela o Comitê Interse- Único de Saúde (SUS) no estado de São Paulo,
cretarial de Defesa da Diversidade Sexual (2009)9; de modo a apropriá-los das singularidades relati-
1º Plano Estadual de Enfrentamento da Homofobia vas a esta temática, e promovendo a reflexão e o
e Promoção da Cidadania LGBT (2010)10; Decreto exercício de novas possibilidades de acolhimento
55.588/201011 que estabelece a obrigatoriedade das demandas desta população nos serviços de

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Diversidade Sexual e de Gênero

saúde existentes, bem como a criação de formas educativos dirigidos aos trabalhadores da saúde15.
de enfrentamento da homofobia e transfobia, vi- A partir da evidência de que as “capacitações” tra-
sando à plena cidadania do público LGBT. dicionais, organizadas de modo vertical e dirigidas
indistintamente a públicos diversos tinham baixís-
simo impacto, ou seja, produziam poucas modifi-
Estratégia de Promoção de uma formação LGBT cações nas práticas dos trabalhadores de saúde,
Para a realização de um curso que envolves- os processos educativos foram alterados.
se todas as problemáticas LGBT para os traba- Recomendou-se, então, que os processos
lhadores da saúde do Estado, foi selecionada a de qualificação profissional partissem das ne-
modalidade de Ensino a Distância (EaD). cessidades identificadas pelos trabalhadores em
A EaD é composta por um conjunto de méto- seus diferentes contextos, dialogando com seus
dos, técnicas e recursos, postos à disposição de conhecimentos prévios. No entanto, para esta
pessoas para que, em um sistema de autoapren- identificação é necessário um planejamento parti-
dizagem, possam colocar-se como estudantes cipativo, que possibilite a reflexão sobre os contex-
para adquirir conhecimentos ou qualificações de tos locais, com identificação de problemas e tam-
qualquer nível. Dessa forma, a opção foi feita pela bém de prioridades14. Essa perspectiva nasce da
SES-SP com o objetivo de que estaria não apenas percepção de que o homem está em permanente
oportunizando novas alternativas e novos planos, construção e que, em suas relações no cotidiano,
visando a suprir as necessidades de formação e sempre a produção de conhecimentos e saberes
atualização de seus profissionais, mas também que interferem no seu modo de conduzir a vida. O
otimizar recursos e ampliando o acesso desses saber científico é, assim, considerado apenas par-
aos conteúdos para o seu desenvolvimento profis- te desse universo de diversos saberes.
sional e pessoal, contribuindo para o processo de As pessoas buscam novos conhecimentos
Educação Permanente em Saúde. e se mobilizam para o aprendizado quando se de-
param com problemas que consideram relevan-
– Educação Permanente em Saúde e sua tes, para o trabalho ou para a vida. Assim, qual-
relação com o curso: quer processo educativo, deve ser desenvolvido a
A Educação Permanente em Saúde (EPS) é partir da identificação de necessidades de apren-
uma concepção deflagrada nos anos 1930, porém dizagem por parte destes “educandos” e precisa
mais efetivada nos anos 1960, com a iniciativa da dialogar com seus saberes prévios, sejam eles
aprendizagem de adultos nos momentos de rees- adquiridos sistematicamente por meios formais
truturação da força profissional premente e neces- (espaço educacional) ou por meio de sua experi-
sária na época, de diversos países. Havia, segun- ência cotidiana16,17.
do Merhy e Feuerwerker14, “... uma necessidade Ao reconhecer que os sujeitos não mudam
de reposição de grandes contingentes de pessoas porque os outros desejam e que os processos
no mercado de trabalho, em função da intensifica- formativos, como em qualquer processo de tran-
ção da industrialização e urbanização” (p.3-4). sição, necessitam de instrumentos que possibi-
Baseados nessa concepção educacional, a litem a transformação de paradigmas, o SUS se
Organização Panamericana da Saúde, nos anos depara com um enorme desafio a ser vencido,
1980, propôs a Educação Permanente em Saúde dentre tantos outros, para se tornar efetivo. Pois
como estratégia para a organização de processos para a efetivação da Educação Permanente em

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Saúde, o trabalho deve ser destacado como um as práticas de saúde e as práticas pedagógicas,
eixo do processo educativo, sendo ao mesmo é necessário que as várias instâncias assumam
tempo fonte de conhecimento e objeto de trans- um papel de indutor dessas mudanças. Para tan-
formação, uma vez que o processo de trabalho to, é essencial promover um trabalho articulado
em saúde é, ao mesmo tempo, gerador e confi- entre as várias esferas de gestão do SUS e as
gurador dos processos educativos nos serviços. instituições formadoras.
Ou seja, se constitui como proposta diferente da Por isso, o curso “A Conquista da Cidadania
educação continuada que se pauta por ativida- LGBT: a política da diversidade sexual em São
des de ensino após os cursos de graduação e Paulo” foi uma proposta ousada onde se mesclou
outras especializações visando à aquisição de os princípios da Educação Permanente em Saúde
novas informações e com duração definida e cen- e os da aprendizagem em EaD, modalidade essa
trada no desenvolvimento de grupos profissionais que vem se tornando cada vez mais uma opção,
específicos mediante pedagogia de transmissão. em detrimento das formações presenciais.
No Brasil, a Educação Permanente em Saú-
de, foi instituída pelo Ministério da Saúde na Por- – especificidades da EaD:
taria nº 198 de 200418 e complementada pela Os cursos de EaD são disponibilizados den-
Portaria nº 1.996 de 200719. O desafio propos- tro do Ambiente Virtual de Aprendizagem da Se-
to é a sua adoção como estratégia fundamental cretaria de Estado da Saúde de São Paulo (EAD/
para a recomposição das práticas de formação, SES-SP), que permite a seus servidores acessar
atenção, gestão, formulação de políticas e par- diversos cursos, de forma flexível e objetiva, inde-
ticipação da sociedade no setor da saúde. Para pendente da região em que atuem ou residam e
alcançar essas transformações os serviços de sem horários rígidos específicos preestabelecidos.
saúde devem, dentre outras ações, investir esfor- Esses cursos são estruturados como “Estações”,
ços no desenvolvimento da educação em serviço distribuídas em 4 eixos: Gestão, Assistencial, Ad-
como um recurso estratégico para a gestão do ministrativo-operacional e Vigilância em Saúde.
trabalho e da Educação em Saúde. Nessa pers- A gestão da EaD/SES-SP fica a cargo do Gru-
pectiva, será possível superar a tradição de or- po de Desenvolvimento de Recursos Humanos, da
ganizar um menu de capacitações, treinamentos Coordenadoria de Recursos Humanos, por meio
pontuais e promover o ordenamento formativo e do Centro de Metodologia de Ensino em Saúde
da educação permanente em saúde. Desta for- (CMES), responsável pelo desenvolvimento de téc-
ma, fazer Educação Permanente em Saúde exige nicas inovadoras de pesquisa permanente com re-
reflexão critica sobre as práticas de atenção, de lação a currículos, programas e projetos de ensino
gestão e sobre as práticas de ensino, buscando em saúde, além do desenvolvimento de pesquisas
processos educativos aplicados ao trabalho20,21. que buscam identificar e compreender a realidade
A construção da Educação Permanente em multifacetada do fenômeno educacional, bem co-
Saúde favorece, assim, a associação entre o de- mo estudar formas de atuar na realidade do SUS/
senvolvimento individual e organizacional, os ser- SP. Dentro dessa perspectiva o CMES planeja, or-
viços e a gestão setorial, a atenção e controle ganiza, coordena, avalia e estimula a difusão de
social, na perspectiva de desenvolver e fortalecer programas e projetos de educação à distância para
o próprio SUS. Assim, para transformar a organi- o trabalho em saúde e utiliza a plataforma Moodle
zação dos serviços e dos processos formativos, – software desenhado para auxiliar na organização

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Diversidade Sexual e de Gênero

e gerenciamento de cursos on line –, como ferra- entre aluno-professor-aluno) – cada vez mais fre-
menta de gestão para seus cursos EaD. quente e necessária. Para que isso ocorra é preci-
Alguns cursos a distância hospedados no so garantir a qualidade dessa mediação15.
Ambiente Virtual de Aprendizagem da SES/SP con- De forma geral, o papel de tutor sempre es-
tam com mediação pedagógica e tutoria. Em grego, teve ligado à figura de alguém que tutelava, prote-
mediação significa, em grosso modo, o que está gia alguém não independente, na administração
“no meio”, “o ponto médio”; e no latim significa “in- de seus bens até alcançar a maioridade. Porém, a
tercessão, intermédio”17. Ou seja, mediação são partir do século XX toma, no campo da Educação,
ações recíprocas que permitem a interação entre a concepção de orientador e acompanhante de
duas partes de um todo, um processo relacional. trabalhos acadêmicos. Atualmente, o tutor é re-
(Assim, quando juntamos o termo “mediação” e conhecido como peça fundamental do processo
“pedagógico” entende-se que às ações de coor- educativo e que tem como responsabilidades a
denação e tutoria EaD ocorridas nos cursos, via orientação dos alunos nos estudos relativos aos
plataformas virtuais de aprendizagem, são funda- conteúdos e disciplinas (dimensão pedagógica),
mentais para a relação com os estudantes. Será o o acompanhamento e gerenciamento dos cursos
recurso, dentro e fora dos ambientes virtuais, que (dimensão gerencial) e o processo de comunica-
promoverá a interação e as intervenções necessá- ção entre professor e aluno, associada ao contex-
rias ao processo de ensino-aprendizagem, onde o to social de aprendizagem propício ao desenvolvi-
mediador assume papéis de orientador, consultor, mento de relações interpessoais e seu fortaleci-
facilitador da aprendizagem, favorecendo o alcan- mento (dimensão social)15. Há ainda a dimensão
ce dos objetivos da ação pedagógica. do suporte técnico, que comumente é realizado
Essa posição de mediação apresenta uma por uma equipe específica, ou pela instituição for-
mudança de paradigmas em relação ao papel tra- madora, como no caso que estudamos15.
dicional do professor – cuja missão é transmitir Também é o tutor quem orienta o aluno, es-
conhecimentos dos quais domina. Na mediação clarece dúvidas, explica questões sobre os conte-
pedagógica, é preciso sair da zona de conforto údos e em geral também avalia o processo de en-
e transformar a prática pedagógica, onde este sino-aprendizagem. Mas, além disso, realiza ou-
“educador” se constrói e reconstrói. É na intera- tras atividades que reforçam a ideia da complexi-
ção aluno-tutor-aluno que se promove a intersub- dade deste papel, já que o tutor também questio-
jetividade e a transformação de ambos21,22. Por na, faz referência a outros modelos e exemplos,
isso, nos processos de EaD, a mediação peda- oferta conselhos e sugestões, promove autorre-
gógica e tutoria têm grande importância na cons- flexão no outro e em si mesmo, guia o processo
trução do conhecimento dos sujeitos das ações. de encontrar novas fontes de informações, soli-
Vários autores23-25 apontam que o crescimen- cita ao estudante a reelaboração de suas ideias,
to da educação a distância desencadeou maior dá feedback nas contribuições da discussão on
contato entre os participantes, principalmente en- line, atua como suporte na estruturação de tare-
tre professor e alunos, por meio de listas e fóruns fas cognitivas e ainda “costura” todos os comen-
de discussões, utilização de e-mail, salas virtuais, tários, fazendo associações e relações sobre os
webconferências, chats, etc. Essa comunicação conteúdos e os comentários produzidos.
pode se dar de forma síncrona (no mesmo mo- No curso “A Conquista da Cidadania LGBT: a
mento) ou assíncrona (em momentos diferentes política da diversidade sexual no Estado de São

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Diversidade Sexual e de Gênero

Paulo”, os tutores desempenharam todos esses não de tutoria (pagamento de hora aula), e meca-
papéis de forma respeitosa, alinhada à proposta nismos para aumentar a aprovação.
conceitual e de forma afetiva, despertando as re- A proposta foi de um curso dinâmico dividi-
flexões e afecções dos participantes e sua con- do em quatro módulos (um por semana) e com
sequente sensibilização para o tema, na perspec- fóruns de discussão abertos toda segunda-feira
tiva da mudança de práticas nos serviços frente e encerrados no domingo. Além disso, fazia-se
ao atendimento em saúde dessa população. Isto a oferta de estudo de casos, com feedback ora
se deve ao modo como a tutoria foi idealizada, da plataforma (padrão) ora do tutor, ampliando o
nos preceitos da Educação Permanente em Saú- diálogo e a reflexão, frente à situação problema
de e na capacitação dos mesmos, em atividade exposta.
prévia ao desempenho da função, bem como o Esta iniciativa pautou-se pela compreensão
acompanhamento pela equipe da coordenação de que há uma capacidade de transformação dos
pedagógica do curso. sujeitos, por isso investimentos em sua formação
A avaliação do curso foi feita por meio da e incentivo ao desenvolvimento de reflexão críti-
análise na participação dos alunos nos fóruns, ca, contribuiu substancialmente para o alcance
realização de testes e do estudo de caso. Para de parte dos objetivos e metas propostos no 2º
ser aprovado e garantir a certificação, as ativi- Plano Estadual de Enfrentamento da Homofobia
dades deveriam ser finalizadas com nota 7,0 em e Transfobia e Promoção da Cidadania LGBT29.
cada módulo. Entre 2014 e 2016 essa parceria realizou
8 edições do curso “A Conquista da Cidadania
LGBT: a política da diversidade sexual em São
Experiência do curso EaD em promoção de Paulo”, ofertando um total de 5.200 vagas, com
cidadania LGBT para trabalhadores da saúde 4.665 solicitações de inscrição (90% das vagas
do Estado de São Paulo preenchidas) e matriculados 4.118 servidores da
Nesta perspectiva, em abril de 2014 forma- saúde (88% do solicitado), sendo que 75% con-
lizou-se a parceria entre a Secretaria de Estado cluíram o curso. Esses trabalhadores, e consi-
de Saúde de São Paulo (SES-SP) e Secretaria de derarmos dados computados das turmas 2 a 8,
Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de eram em sua maioria mulheres (83,1%), na fai-
São Paulo (SJDC-SP) para a realização do curso xa etária de 26 a 55 anos (83%), trabalhadores
“A Conquista da Cidadania LGBT: a política da de órgãos de gestões municipais (46,9%) e que
diversidade sexual no Estado de São Paulo”. A atuam principalmente área assistencial (45,2%),
partir de 2015 o termo de cooperação previu a mas também de diversas outras áreas e institui-
oferta, em dois anos, de 4.500 vagas para traba- ções do Estado com as mais variadas formações
lhadores do SUS de São PauloIV, a serem dados e cargos, que se inscreveram por interesse pró-
na modalidade de Educação a Distância. prio no tema, ou por indicação de colegas ou de
Foi acordado com a equipe coordenadora do suas chefias.
curso (SJDC, CRT/DST-AIDS, EAD/SES-SP), que
após a oferta de 4.500 vagas deveria ser feita uma
avaliação dessa ação formativa. Nesta avaliação IV
Este curso, até então, era ofertado via Fundação para o Desenvolvimento
Administrativo (FUNDAP), para todos os servidores estaduais de São Pau-
seria analisada a continuidade desse processo, lo. Pensando em ampliar seu conteúdo, pensou-se em ampliar o conteúdo,
construiu-se um módulo de conteúdo específico para os trabalhadores da
possível reformulação do curso, necessidade ou saúde.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Tabela 1. Perfil dos Alunos Participantes do Curso, turmas 2 a 8.

turma 2 turma 3 turma 4 turma 5 turma 6 turma 7 turma 8 total

n n n n n n n n %

Sexo
feminino 482 703 539 369 231 709 350 3383 83,1
masculino 99 124 92 75 34 180 82 686 16,9
não resp. 0 0 0 1 0 0 0 1 0,0
total 581 827 631 445 265 889 432 4070 100
Faixa Etária
até 25 anos 36 62 56 35 23 78 33 323 7,9
26 a 35 anos 177 262 199 144 102 270 126 1280 31,4
36 a 45 anos 145 212 183 129 62 230 116 1077 26,5
46 a 55 anos 175 210 143 109 50 215 116 1018 25,0
56 a 65 anos 46 80 50 25 26 92 39 358 8,8
+ de 65 anos 2 1 2 2 4 2 13 0,3
não resp 1 1 0,0
total 581 827 631 445 265 889 432 4070 492,1
Escolaridade
Ens. Fundam. 4 7 3 66 6 6 3 95 2,3
Ens. Médio 131 176 117 161 57 199 81 922 22,7
Graduação 199 304 250 13 91 321 156 1334 32,8
Pós Grad./Esp. 226 308 237 1 98 304 174 1348 33,1
Mestrado 18 27 20 194 13 48 16 336 8,3
Doutorado 3 5 4 10 11 2 35 0,9
total 581 827 631 445 265 889 432 4070 100
Instituição
gestão Est. 103 218 223 82 69 287 90 1072 26,4
gestão Mun. 354 372 275 249 86 352 218 1906 46,9
hosp. univers 13 18 17 42 14 12 32 148 3,6
parceiros do. Est. 19 138 64 49 68 159 52 549 13,5
parceiros do. Mun 82 67 29 9 18 64 29 298 7,3
inst. privada 10 13 13 14 10 15 11 86 2,1
não resp 0 1 0 0 0 0 0 1 0,0
total 581 827 621 445 265 889 432 4060 100,0
Área Atuação
administraç 0 191 115 53 54 162 63 638 18,2
atenção/assist. 360 431 317 227 136 402 204 1717 45,2
controle social 1 3 4 7 3 11 6 34 1,2
educ. em saúde 57 38 34 32 19 36 34 193 4,0
gestão/gerência 98 118 87 63 29 124 55 476 13,9
outra 65 17 53 62 24 153 70 379 17,2
vigilancia 0 29 9 1 1 40 0,1
total 581 827 619 445 265 889 432 3477 100

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Diversidade Sexual e de Gênero

Na experiência do curso, as concepções outros profissionais foi um tema normal, devido


adotadas referiram-se principalmente em consi- à atuação profissional com esta população em
derarmos os saberes prévios dos alunos e tuto- específico e reconhecida militância na temática.
res sobre o tema, ao estímulo da reflexão crítica A participação dentro do curso, por meio dos
sobre o trabalho em saúde, análise do ambien- fóruns, sempre teve que ser muito estimulada e
te de trabalho e das diferentes instituições onde provocada pelo tutor, inclusive no espaço infor-
atuavam, o aprofundamento crítico no tema e a mal (“café virtual”), uma vez que a comunicação
proposta de mudança de prática a partir dos afe- inicial sempre era tímida, ganhando, aos poucos,
tos e da ressignificação do próprio trabalho e do avanços que promoviam a maior interação entre
“lugar” do trabalhador enquanto ser social. Essa alunos. Dois aspectos podem ser considerados
dialógica foi possível pelo uso dos fóruns, onde como dificultadores de relações via EaD: o aces-
alunos e tutor podiam colocar-se, trazendo su- so à plataforma e uso de todas as ferramentas
as concepções, percepções, opiniões acerca de disponíveis. Para tanto, uma equipe de suporte e
questões indutoras do próprio curso, bem como os próprios tutores ficaram atentos para resolver
de suas vivências enquanto trabalhadores e inse- entraves ao longo do curso, superando-os.
ridos nas diferentes instituições de saúde. Nesse Outro fator de dificuldade e de dimensão
sentido, a formação pedagógica dos tutores foi mais delicada é a exposição de ideias, de concei-
fundamental, pois trouxe entre a coordenação e tos, preconceitos, atitudes e valores por escrito.
o corpo de tutores a oportunidade de nos conhe- Diversas colocações dos alunos eram repetições
cermos, discutirmos o tema e aprofundarmos as de trechos dos textos do curso ou de outras fontes
concepções de mediação no processo de ensino de informação, com menos relato de experiências,
a distância e as premissas da Educação Perma- vivências e opiniões próprias sobre o assunto.
nente em Saúde20,21. Qualitativamente, os fóruns se mostraram
Diferentemente da experiência de tutoria de como a ferramenta mais potente do curso, embo-
outros cursos EaD, onde o papel de tutor se re- ra nem todos participassem.
sumia a dialogar os conteúdos e atividades do
“Também sou olhada de uma forma diferente
curso, no curso LGBT, o papel de tutor no curso
por gostar de atender a população LGBT e
“A Conquista da Cidadania LGBT” foi além e se
comprar a briga, principalmente porque tra-
colocou como um estimulador do conhecimento
balho em um CAPS infanto-juvenil e muitas
dos temas discutidos, bem como fonte de diá-
vezes tenho que defender os jovens de seus
logo com as experiências reais dos alunos en-
próprios familiares, emprestar a voz e gritar
quanto trabalhadores de saúde e no manejo de
por seus direitos” (Aluno M).
situações do dia a dia vividas em suas unidades
e nas próprias vivências pessoais. Alguns rela- “Oi gente, li os textos, muito interessantes, e
tos demonstram a insegurança que a inscrição assim como algumas pessoas responderam,
em um curso que abordava a diversidade sexual estamos engatinhando no assunto, desde os
causava, uma vez que provocava comentários de usuários até quem os atende e acolhe (duas
colegas não inscritos sobre uma possível “visibili- coisas bem diferentes ainda), pois infelizmen-
dade” deste aluno e que poderia provocar alguma te somos permeados pelas opiniões, crenças
associação do tema com suas próprias orienta- e valores que influenciam a forma de nos re-
ções sexuais, provocando maledicências. Já para lacionarmos com o outro” (Aluno N).

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Diversidade Sexual e de Gênero

“Sinto que vivemos tempos difíceis, pois se consigo, mais do que respeito à diversidade
por um lado as pessoas estão assumindo su- de identidades de gênero, novas imagens de
as condições, seus desejos e seus direitos masculinidade e de feminilidade, que aceita-
com mais facilidade e mais coragem, por ou- riam, por exemplo, que mulheres trans são
tro, parece que estamos vivendo uma regres- mulheres, independentemente de sua confor-
são moralista e conservadora, com a violên- mação genital ou de cirurgias” (Aluno W).
cia, a intolerância e o preconceito aumentan-
”Conviver em uma sociedade democrática é
do assustadoramente e vindo de diferentes
conviver com pessoas com diferentes gostos,
públicos...” (Aluno X).
costumes, culturas, respeitando sempre as
“Respondendo à provocação e ao foco da opções de cada cidadão, entretanto, muitos
pergunta original. Nunca fui à parada, sem- consideram a democracia como a aceitação
pre tive muita vontade e curiosidade, mas do que uma maioria decide como certo. Po-
confesso que ainda tenho receio” (Aluno P). rém, cada cidadão tem o direito de ir e vir e,
Claro que qualquer coletivo que vá para a rua portanto, também tem o direito de se relacio-
é uma manifestação política, mas no caso da nar com quem e como quiser e viver como
população que eu atendo, a minoria tem es- deseja. (...) Por isso, as lutas pelos direitos
sa consciência, talvez porque ainda estejam LGBT são importantes” (Aluno K).
se descobrindo, se aceitando e conseguir sair “Dentre as normas ou políticas de inclusão,
de casa para ir à parada já é o máximo de me chamou a atenção a de um banco, de
embate e confronto político que conseguem inclusão de LGBT, mulheres (em cargo de
enfrentar por hora” (Aluno Y). chefia), racial, programa sênior (para pesso-
“O ano passado participei e uma das pales- as acima de 50 anos) e pessoas com defici-
trantes comentou sobre a Parada ser o prin- ência. Uma das reflexões do seminário era
cipal instrumento de visibilidade LGBT. Duran- sobre a obrigatoriedade de existir cotas. Se
te a semana ocorreram várias atividades, a vivêssemos num mundo ideal, sem precon-
maioria delas com baixa adesão, mesmo ha- ceitos ou discriminação, não seriam neces-
vendo uma grande divulgação. Já a adesão sárias cotas, mas infelizmente, mesmo cami-
da Parada foi infinitamente maior sendo, mui- nhando lentamente contra, ainda estamos
tas vezes, o único momento de participação longe” (Aluno B).
escolhido pelas pessoas” (Aluno Z). Houve também quem trouxesse para dis-
Vários alunos fizeram contribuições impor- cussão depoimentos de experiências reais, posi-
tantes que geraram reflexões para o grupo, dan- tivas ou negativas, da vida real ou profissional.
do sentido a um novo olhar e uma nova forma de “Em 2014, tive o prazer de ser testemunha
abordagem à população LGBT em suas funções. na Primeira União Homo-afetiva no cartório
“É preciso, especialmente para os agentes do de ..., pude presenciar o respeito dos pro-
Estado que valorizam a democracia, estarem fissionais e a forma tranquila como foi fei-
atentos a violações de direitos fundamentais, to, também convivo com casais que mes-
decorrentes de estereótipos e preconceitos. mo optando apenas pela união estável tive-
Uma visão inclusiva das pessoas trans traria ram filhos biológicos, neste caso a primeira

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Diversidade Sexual e de Gênero

nascida antes da lei, teve apenas o nome da as ações da Comissão e da própria popula-
mãe que gestou no documento, a segunda já ção LGBT. (...) Estou citando tudo isso para
pode ser registrada no nome das 2. No caso vcs, colegas, para apresentar o avanço que ...
de adoção acredito que o pior sejam os pra- vem apresentando sobre as discussões dos
zos que naturalmente são longos, tenho um direitos LGBT e contra LGBTFobia que aliás o
outro casal de amigos que já estão a 5 anos tema da “V Semana da Diversidade Sexual -
na fila, porém foram aprovados em todas as 2016 “ é “Uma rede de Proteção contra LGB-
fazes de entrevistas e avaliações..” (Aluno O). TFobia “. As legislações vem sendo incansa-
“Estou aprendendo muito com esse curso, ja velmente discutidas e apresentadas através
vivenciei há alguns anos atras em uma unida- de capacitações nos diversos seguimentos
de de saúde que ei trabalhava fui fazer o aco- da nossa cidade, isso prova que estamos no
lhimento de um paciente chamei pelo nome caminho certo. Tenho muito mais coisa para
do prontuario que era um nome masculino e apresentar mais no decorrer no curso terei o
pra minha surpresa venho em minha direção prazer de contribuir” (Aluno F).
uma pessoa que pra mim parecia mulher fi- “No ... vem se discutindo vários projetos atra-
quei sem entender fi super constrangedor poi vés da ONG ABCD´S como BEE natural, Vi-
olhei para o paciente e disse novamente o sibilidade, Carnaval inclusão e Prevenção,
nome e ela me respondeu sim mas pode me Juventude (Projeto trás comunicação com a
chamar de “Bola “ meu apelido fiquei super linguagem do jovem para o jovem com en-
desconcentrada, ainda bem que ela a traves- contros mensais e prevenção da DST/Aids e
ti morava a muito tempo naquela area e nao
no combate a Violência Domestica e Urbana
ou pelo menos não demonstrou constragi-
contra a Juventude LGBT” (Aluno VV).
mento” (Aluno L).
Também sensibilização de mudanças nos
Relataram também conhecimento de movi-
trabalhos práticos e situações da assistência à
mentos locais para a promoção de direitos LGBT:
saúde:
“Na cidade de ..., nos últimos 5 anos, evoluiu
“No Centro de Testagem e Aconselhamento
consideravelmente em relação aos direitos le-
(CTA), o Serviço de Assistência Especializada
gais da população LGBT. Foi criado a Comis-
(SAE) e o Programa Municipal de DST/Aids de
são Municipal de Diversidade Sexual, ligada a
... - a coordenadora ... me informou que vem
Secretaria de Defesa da Cidadania da Prefei-
realizando o acolhimento mais humanizado,
tura de ..., dando inicio a uma estrutura que
pelo nome social e de acordo com a mesma
propicia um ambiente de discussões à cerca
no início deste ano a mesma começou de-
de diversos assuntos relacionados à popula-
senvolver um trabalho voltado a conscienti-
ção LGBT, assim como discutir realidades ,
zação das equipes de acolhimento da rede
deliberar ações e contribuir para a criação
de atenção básica do município ...” (Aluno A).
de politicas públicas do municipio. A Prefei-
tura criou também a Seção de Apoio a Diver- “No AME daqui de..., em contato com a co-
sidade Sexual, para como o nome diz apoiar ordenadora de atendimento ..., a mesma me
e ter como instrumento um canal direto com informou que o atendimento não é por se-
a Administração pública, isso facilitou muito nha, como está ocorrendo no AME de Santos,

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Diversidade Sexual e de Gênero

conforme comentou a ..., porém já vem reali- masculino, branco, ocidental, heterossexual,
zando o cadastro do nome social e o paciente jovem, magro e católico. Para todos os de-
é chamado conforme solicitado....” (Aluno R). mais que não se “encaixam” nesse perfil, al-
Só agora percebi que no recadastramento do gumas empresas disponibilizavam normas de
Estado tem uma variável sobre orientação se- inclusão ou cotas (nesse caso a lei as obriga)
xual (hetero, homo ou bissexual) e uma variá- (Aluno BB).
vel de Identidade de gênero (homem, mulher, Em certas situações as contribuições no
travesti e transexual). Acredito que essa pe- fórum e estudo de caso permitiram a visualiza-
quena iniciativa já é um ótimo começo. As- ção de falas em que se reproduzia preconceito,
sim como a oportunidade que estamos tendo desconhecimento do assunto e resistência à mu-
com esse curso de nos apropriarmos destas dança de opinião. Nesses casos, a tutora recor-
questões e de podermos ampliar nossos co- ria à orientação da coordenação pedagógica pa-
nhecimentos e de trazer essa discussão para ra contornar a situação. Essas situações geral-
os nossos locais de trabalho” (Aluno XY). mente estavam pautadas em situações pessoais
“Em relação a atenção Básica no nosso mu- particulares.
nicipio ainda não conseguimos atingir toda Mas uma coisa é clara nos adolescentes, es-
rede, mas as Unidades aqui chamadas de se é o dia de comemorar e a forma, infeliz-
Policlinicas ou Unidades Básicas vem sendo mente, é regada de muito álcool e “pegar to-
capacitadas da mesma forma que o AME, já- do mundo” (Aluno J).
ministramos a capacitação em algumas de-
las e para o próximo ano já estamos com a
agenda programada à partir de março esta- Considerações finais
remos reiniciando este trabalho, não só nas A experiência aponta o sucesso e interesse
Unidades básicas como também em UPAs e de oferta da formação de profissionais de saú-
Pronto Socorros, o que ainda temos muita di- de mediante uma estratégia de Educação Per-
ficuldade de conseguir chegar são hospitais manente em Saúde e utilizando a modalidade de
particulares...” (Aluno AB). EaD com relação ao tema da diverisdade sexual
e direitos LGBT. Ao capacitar mais de 3.000 pro-
Além de fazer avaliações positivas sobre o
fissionais de saúde em todo o estado durante 3
curso:
anos, aponta-se que essa estratégia tem largo
Este curso para mim tem sido de grande va- alcance, implica agilidade e produz capilaridade
lia, pois confesso que mesmo conhecendo al- a esse processo formativo dos trabalhadores do
gumas pessoas “assumidas” não tinha noção SUS.
de toda problemática enfrentada no dia a dia
Registra-se que essa modalidade educativa
e em sua vidas” (Aluno C).
implica na organização e planejamento de circuns-
“Sobre um dos vídeos que fala do padrão tâncias educativas diferentes das usuais, trazen-
dominante, lembrei de uma palestra em um do para o cenário educacional a discussão so-
seminário sobre Pessoas com Deficiência e bre novas práticas pedagógicas e suas relações
Mercado de trabalho. O candidato que o mer- com as tecnologias da informação e da comuni-
cado procura é do padrão dominante: sexo cação, implicando a motivação de um mínimo de

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Diversidade Sexual e de Gênero

autodisciplina e motivação dos estudantes. Ao Disponibilidade em: http://www.mdh.gov.br/informa-


mesmo tempo, permite uma interação de diálogo c ao - ao - cidadao/par ticipac ao - social/old/cncd - lg bt /
conferencias/anais-2a-conferencia-nacional-lgbt-1
entre os próprios alunos e entre alunos e tutor e
3. Brasil. Presidência da República. Secretaria Es-
uma relação de discussão permanente que sensi-
pecial de Direitos Humanos. Anais da 3ª Conferên-
biliza a todos os participantes e envolve de forma
cia Nacional de Políticas Públicas e Direitos Humanos
integral vários deles. para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transe-
Fazendo uma análise da experiência de tu- xuais (LGBT). Brasília; 2016. [acesso em: 31 out 2018].
toria no curso sob a ótica da aprendizagem re- Disponibilidade em: http://www.mdh.gov.br/informa-
flexiva, crítica e significativa, considera-se que a c ao - ao - cidadao/par ticipac ao - social/old/cncd - lg bt /
plataforma de EaD foi facilitadora de processo de relatorio-final-3a-conferencia-nacional-lgbt-1/
4. Brasil. Presidência da República. Secretaria Especial de
ensino, também na relação com a coordenação
Direitos Humanos. 1º Plano Nacional de Promoção da Cida-
pedagógica do curso e na observação da própria
dania e Direitos Humanos de LGBT. Brasília; 2009. [acesso
experiência profissional e pessoal de alunos e tu- em: 31 out 2018]. Disponível em: http://www.arco-iris.org.
tores frente à experiência. O papel da mediação br/wp-content/uploads/2010/07/planolgbt.pdf
pedagógica e tutoria no ensino a distância, a con- 5. São Paulo. (estado). Lei no 10.948. Dispõe sobre as pe-
cepção da Educação Permanente e dos princípios nalidades a serem aplicadas à prática de discriminação em
utilizados no curso em si e a experiência se mos- razão de orientação sexual e dá outras providências. São
traram ricos conforme o próprio relato de alunos. Paulo: ALESP; 5 NOV 2001. [acesso em: 31 out 2018]. Dis-
ponível em: http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/
A sensibilização quanto à importância da
lei/2001/lei-10948-05.11.2001.html
visualização da população LGBT e o seu direito
6. São Paulo. Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidada-
à saúde, favorece a reflexão sobre a prática de nia. I conferência estadual de políticas públicas e Direitos
trabalho, a comparação com experiências já vis- humanos de lésbIcas, gays, bissexuais, travestis e transe-
lumbradas pelos alunos em outras esferas gover- xuais. São Paulo; 2008.
namentais e discutidas pelo próprio Movimento 7. São Paulo. Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidada-
LGBT, permitindo a motivação de mudanças em nia. II conferência estadual de políticas públicas e Direitos

seus próprios locais de trabalho e funções. humanos de lésbIcas, gays, bissexuais, travestis e transe-
xuais. São Paulo; 2011. [acesso em: 31 out 2018]. Dispo-
nível em: http://www.justica.sp.gov.br/StaticFiles/SJDC/Ar-
quivosComuns/ProgramasProjetos/CPDS/PROPOSTAS%20
APROVADAS%20NA%20PLEN%C3%81RIA%20FINAL.pdf
Referências 8. São Paulo. Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidada-
1. Brasil. Presidência da República. Secretaria Espe- nia. III conferência estadual de políticas públicas e Direitos
cial de Direitos Humanos. Anais da 1ª Conferência de humanos de lésbIcas, gays, bissexuais, travestis e transe-
Gays, Lésbica, Bissexuais, Travestis e Transexuais (GL- xuais. São Paulo; 2016.
BT). Brasília; 2008. [acesso em: 31 out 2018]. Dispo- 9. São Paulo. Governo do Estado. Secretaria da Justiça e
nibilidade em: http://www.mdh.gov.br/informacao-ao- da Defesa da Cidadania. Coordenação de Políticas para a
-cidadao/participacao-social/old/cncd-lgbt/conferencias/ Diversidade Sexual. Diversidade sexual e cidadania LGBT.
anais-1a-conferencia-nacional-lgbt-2 São Paulo: SJDC/SP; 2014.
2. Brasil. Presidência da República. Secretaria Es- 10. São Paulo. (estado). 1º Plano estadual de enfrentamen-
pecial de Direitos Humanos. Anais da 2ª Conferên- to da homofobia e promoção da cidadania LGBT. São Paulo:
cia Nacional de Políticas Públicas e Direitos Huma- SJDC/SP; 2010.
nos para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transe- 11. São Paulo. (estado). Decreto nº 55.588. Estabelece a
xuais (LGBT). Brasília; 2011. [acesso em: 31 out 2018]. obrigatoriedade do tratamento nominal (nome social) de

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Diversidade Sexual e de Gênero

travestis e transexuais pelos funcionários públicos, em to- da Universidade de Brasília, orientação Prof. Dr. Lúcio
dos os órgãos da administração pública estadual, direta ou França Teles.
indireta; e já dentro da estrutura da Secretaria de Estado da 18. Ministério da Saúde. Portaria nº 198. Brasília; 13 fev
Saúde. São Paulo: ALESP; 17 mar 2010. 2004.
12. Gianna MC. CRT DST/Aids-SP implanta primeiro ambu- 19. Ministério da Saúde. Portaria nº 1996. Brasília; 13 fev
latório para travestis e transexuais do país. Bis – Bol. Inst. 2007.
Saúde. 2011; 13 (2): 182-189. 20. Calife KBB, Simões O, Harada J, Seixas P, Georgette J.
13. São Paulo. Secretaria de estado da Saúde. Co- Secretaria de Estado da saúde e COSEMS/SP. Documento
mitê de Saúde Integral da População LGBT. (on li- Norteador. Diretrizes para a implementação da Política de
ne). [acesso em: 31 out 2018]. Disponível em: Educação Permanente em Saúde no Estado de São Paulo.
ht tp://w w w.saude.sp.gov.br/centro - de - referencia - e - Texto sistematizado por representantes da SES/SP e COSE-
treinamento - dstaids-sp/humanizacao/comite-tecnico - MS/SP; 2007.
de-saude-integral-da-populacao-lgbt 21. São Paulo. Secretaria de Estado da Saúde. Plano esta-
14. Merhy, E. Feuerwerker, LCM. Educação Permanente em dual de Educação Permanente em Saúde. São Paulo: SES-
Saúde: educação, saúde, gestão e produção do cuidado. SP; 2007.
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Saúde: análises e experiências. Salvador: Editora da UFBA; meno da cibercultura. Actas do X Congresso Internacional
2011. v. 1, p. 5-21. Galego-Português de Psicopedagogia. Braga: Universidade
15. Silva LO, Diehl VRO, Neto VM. Narrativa escrita: relacio- do Minho; 2009.
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In: Anais do IV congresso internacional de pesquisa (auto) Associados; 2008.
biográfica - IV CIPA. Espaço (auto) biográfico: arte de viver, 25. Ramal AC. Educação na cibercultura: hipertextualida-
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Cortez, 2004. 26. Moran JM, Masetto MT, Behrens MA. Novas tecnologias
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funções do tutor na Universidade Aberto do Brasil. Bra- 29. Pires FCO. Dimensão da tutoria de Eduação à Distância:
sília-DF; 2012. Dissertação de Mestrado apresentada ao perfil e formação prática. (tese). Faculdade de Educação.
Programa de Pós Graduação da Faculdade de Educação, Universidade Federal de Juíz de Fora. Juiz de Fora; 2017.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Incursões sobre uma política de formação de educadores


no Estado de São Paulo: o curso “Gênero, Sexualidade
e Diversidade Sexual: desafios para a escola contemporânea”
Incursions about teachers’ education policy in State of São Paulo: the course “Gender,
Sexuality and Sexual Diversity: challenges for the contemporary school”

Thiago Teixeira SabatineI, Marina Matera SanchesII

Resumo Abstract

Este artigo analisa uma estratégia de formação continuada dos This article analyses the teachers’ continuing education of servers
servidores da Secretaria de Estado da Educação, por meio do cur- from Education Secretary of State of São Paulo, by means of the
so “Gênero, Sexualidade e Diversidade Sexual: desafios para a course “Gender, Sexuality and Sexual Diversity: challenges for the
escola contemporânea”, tomando como ponto de partida as dis- contemporary school”, with starting point discussions, contents
cussões, conteúdos e discursos lançados pelo curso, para pensar and speeches launched by the course, to think the way in which
o modo como o sistema educacional concebe a escola e o papel the educational system conceives the school and the role of the
do educador no âmbito das questões de gênero, sexualidade e educator in the questions about gender, sexuality e sexual diver-
diversidade sexual, considerando a iniciativa em perspectiva com sity, considering the initiative in perspective with the political and
as imbricações políticas e culturais mais amplas que informam a cultural imbrications that inform the insertion of this debate in con-
inserção desse debate na educação contemporânea. temporary education.

Palavras-chave: Gênero; Sexualidade; Formação de professores. Keywords: Gender; Sexuality; Teachers’ education.

Introdução conservadores, que têm provocado acirramen-

E
studar gênero, sexualidade e outros mar- tos em variados planos da política educacional,
cadores sociais da diferença, na Educação como aqueles concernentes aos currículos, à
Básica atual, é um grande desafio. Circu- produção de material didático e à formação do-
lam muitos equívocos e ideias recrudescentes cente, com ressonâncias nas relações cotidia-
sobre o tema na arena pública e diversas polê- nas entre os sujeitos que compõe e dão vida às
micas alimentadas especialmente por discursos escolas.
Analisaremos nesse artigo uma das estra-
tégias de formação continuada dos servidores da
Thiago Teixeira Sabatine (thiagosabatine@usp.br) é licenciado e bacharel e Secretaria de Estado da Educação de São Paulo,
I

Mestre em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia e Ciências da Universi-


dade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, em Marília (UNESP), Doutor em
Antropologia Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
por meio do curso “Gênero, Sexualidade e Diver-
Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), pesquisador do Núcleo de Estudos em
Marcadores Sociais da Diferença desta universidade (NUMAS-USP) e Professor
sidade Sexual: desafios para a escola contem-
de Sociologia da rede de ensino do Estado de São Paulo e autor e organizador
do curso “Gênero, Sexualidade e Diversidade Sexual: desafios para a escola
porânea”. A ideia é tomar como ponto de partida
contemporânea” da Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Professores do
Estado de São Paulo Paulo Renato Costa Souza (EFAP).
as discussões, conteúdos e discursos lançados
II
Marina Matera Sanches (marina.sanches@educacao.sp.gov.br) é licenciada pelo curso, para pensar o modo como o sistema
e bacharel em Ciências com habilitação em Ciências Biológicas pela Universi-
dade Presbiteriana Mackenzie, Mestranda em Ensino de Ciências e Matemática educacional concebe a escola e o papel do edu-
pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP),
Professora de Ciências da rede de ensino do Estado de São Paulo, Designer cador no âmbito das questões de gênero, sexua-
Instrucional e Gestora do curso “Gênero, Sexualidade e Diversidade Sexual:
desafios para a escola contemporânea” da EFAP. lidade e diversidade sexual.

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Diversidade Sexual e de Gênero

O curso, em sua primeira edição, foi ofere- marcadores sociais da diferença; o que influen-
cido a 6.002 servidores dos quadros do magisté- ciou na elaboração de outros planos, incluindo o
rio, de quadros do apoio escolar e da Secretaria do Estado de São Paulo de 2016 (Lei Estadual nº
da Educação, no primeiro semestre de 2018, na 16.279)6.
modalidade de Educação a Distância (EAD), pela Contudo, reações de diferentes campos do
Escola de Formação e Aperfeiçoamento dos Pro- ativismo, dos educadores, da academia e do pró-
fessores do Estado de São Paulo Paulo Renato prio poder público têm mobilizado setores das po-
Costa Souza (EFAP), em formato de estudos au- líticas educacionais a conceber os compromissos
tônomos (autoinstrucional). O curso contou com que outrora pareciam começar a se delinear para
carga horária de 90 horas, conteúdo baseado em a área. Cabe destacar também a judicialização e
videoaulas com intérprete de Língua Brasileira de o questionamento da legalidade das proibições
Sinais (LIBRAS), textos de apoio adaptados para em curso; especialmente, porque, a despeito das
leitores de tela, referências para sites externos, ambivalências e acirramentos, há uma legislação
questões de avaliação da aprendizagem e pesqui- nacional para a Educação que adota como princí-
sa de avaliação do curso. pio orientador a promoção dos Direitos Humanos,
Antes de avançarmos nessa proposta, ca- o reconhecimento das diferenças e o de cada
be destacar o contexto que informou a iniciativa. pessoa poder usufruir ambientes escolares mais
Estamos diante de um cenário que opera novas favoráveis e plenos à aprendizagem que garan-
linhas de força, estratégias dinâmicas e hetero- te integridade, participação livre, equalização de
gêneas, que provocam relativos espraiamentos oportunidades e responsabilidade de todos que
em torno das questões de gênero, sexualidade e se beneficiam desse processo na construção de
diversidade sexual no campo dos Direitos Sexu- uma sociedade ética e solidária.
ais e Reprodutivos e nas respostas públicas e do Essas perspectivas podem ser rastreadas
Estado1,2. Ainda que ocorra um flagrante déficit nas principais legislações e normas em vigência,
democrático em um contexto de recrudescimento partindo da Constituição de 1988, na Lei Maria
de discursos autoritários, também há um interes- da Penha (Lei nº 11.340 de 2006)7, nas diretrizes
se renovado que suscita novos olhares e novos e resoluções do Conselho Nacional de Educação
atores, que disputam e constituem um campo (CNE), como naquelas sobre a Educação Básica
que enreda um tipo de relacionamento do Esta- (resoluções nº 4 de 20108, nº 7 de 20109; nº 2 de
do, com a expertise de ativistas e especialistas 201210) e na que define o uso do nome social de
que torcem novas formas de pensar e conduzir travestis e transexuais no âmbito nacional (Reso-
políticas públicas3. lução 1 de 2018)11. No âmbito do Estado de São
Podemos tomar várias arenas para pensar o Paulo, cabe destacar: a Resolução do Conselho
modo como as questões de gênero e sexualidade Estadual da Educação (CEE) sobre uso do nome
têm adentrado as políticas educacionais. Nos úl- social (Deliberação nº 125 de 2014)12, a Resolu-
timos anos, têm se propagado discursos contrá- ção da Secretaria da Educação nº 52 de 201313,
rios à erroneamente chamada “ideologia de gêne- que define os perfis, as competências e as habi-
ro”4. No debate acirrado sobre o Plano Nacional lidades esperados dos profissionais assinalando
de Educação de 2014 (Lei Federal nº 13.005)5, questões de gênero, sexualidade e diversidade
esse debate fez com que fossem suprimidas as sexual no marco do respeito aos Direitos Huma-
estratégias sob a perspectiva de gênero e outros nos. Essas leis e normas poderiam ser cotejadas

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Diversidade Sexual e de Gênero

com as políticas de currículo, da produção do ma- recursos da web, referências web e bibliográficas
terial didático e da própria formação dos recursos e questões avaliativas.
humanos – tópicos que exigem análises minucio- O primeiro módulo “Gênero e Educação” é
sas, e que escapam ao escopo deste artigo. composto de seis aulas que abordam diferentes
A formação de professores e demais ser- perspectivas para explorar as relações de gênero
vidores da Educação, a despeito do recente es- e o modo como essas se manifestam na escola,
praiamento da discussão, ainda são frágeis e nos comportamentos dos estudantes, nos pres-
na maioria das vezes há um interessado silen- supostos das práticas pedagógicas e como os
ciamento da discussão14,15,16. Repertórios mais educadores podem contribuir para enfrentar as
consistentes foram construídos na área de for- desigualdades, as violências e inserir o tema em
mação docente a partir de 2005, no Centro La- sala de aula, cotejando-o com o currículo oficial.
tino-Americano em Sexualidade e Direitos Huma- O módulo enfatiza o conceito de gênero partin-
nos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro do de um diálogo entre o pensamento feminista
(CLAM-UERJ) que, em parceria com o governo fe- e das Ciências Humanas e Sociais, demonstran-
deral e o Conselho Britânico, criou o curso “Gêne- do as articulações existentes entre a produção
ro e Diversidade na Escola” (GDE)17. Esse curso do conhecimento contemporâneo e as lutas pela
passou a ser oferecido por universidades públi- ampliação do repertório de direitos, as conquis-
cas que participam da Universidade Aberta do tas e os desafios do presente.
Brasil (UAB), servindo de referência para outras Na primeira aula “O Conceito de Gênero e
iniciativas. os Processos de Socialização”, pesquisadoras
Focaremos adiante, o curso “Gênero, Se- do Núcleo de Estudos sobre Marcadores So-
xualidade e Diversidade Sexual: desafios para ciais da Diferença da Universidade de São Paulo
a escola contemporânea”, oferecido pela EFAP, (NUMAS/USP)III, apresentam o conceito de gêne-
analisando o modo como propõe a discussão de ro apoiadas em ampla literatura e, em um tour
temas de diversidade, gênero, sexualidade e re- de force destacam a influência do feminismo, em
lações étnico-raciais e os subsídios e repertórios suas diferentes ondas e a construção de cam-
que oferece para que educadores possam refletir po de investigações sobre gênero que passa por
e transformar suas práticas pedagógicas. Simone de Beauvoir18, Joan Scott19, Thomas La-
queur20, Judith Butler21, conferindo especial aten-
ção para as diferentes experiências que marcam
Incursões na proposta do curso as vidas de mulheres, passando pelo feminismo
O curso foi organizado em três módulos, negro, incluindo a obra de Gonzales22 e Carneiro23
com apoio de especialistas, ativistas, gestores, e do feminismo trans.
técnicos das Secretarias Estaduais da Educação, A aula introduz a questão: “o conhecimento
da Saúde e da Justiça, Promotores de Justiça do sobre gênero e suas diferentes articulações pode
Ministério Público Estadual e acadêmicos. Cada ajudar em nosso convívio e no trabalho diário nas
módulo conta com seis aulas, que consistem, ca- escolas?”. Após na ênfase na construção relacio-
da uma, em diferentes recursos, como videoau- nal e histórica do que é feminino e masculino,
las compostas aproximadamente de seis blocos
(totalizando 101 blocos de videoaulas com dura-
III
Nessa aula, representado por Isabela Nálio Ramos e Fernanda Kalliany
ção em média de dez minutos), além de textos, Martins.

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Diversidade Sexual e de Gênero

há destaque sobre o modo como hierarquias, es- ministrada por um profissional do NUMAS-USPV,
tereótipos, classificações de gênero circulam no junto a membro do Comitê Latino-americano e
ambiente escolar. Apoiadas em Vianna e Finco24, do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher
aponta-se para os processos de masculinização (CLADEM)VI, problematizam as mudanças sociais
e feminilização dos corpos que estão presentes decorrentes das lutas feministas e a ampliação
nas diferentes brincadeiras e incentivos ou nas dos direitos na segunda metade do século XX,
expectativas de comportamentos vistos como de no contexto brasileiro e internacional, buscando
meninas e meninos, no controle de sentimentos, responder às perguntas sobre as relações que se
movimentos corporais, desenvolvimento de habi- podem estabelecer entre o movimento feminista
lidades e que, portanto, no espaço escolar tam- e o Direito: “Quais as conquistas que podem ser
bém operam processos de socialização de gêne- consideradas como legado do movimento femi-
ro por meio das interações entre estudantes, do nista?”, “Quais as reivindicações atuais do movi-
ensino, do seu funcionamento e currículo. Por is- mento feminista no Brasil, especialmente em um
so, destaca que as práticas pedagógicas não são contexto de acirramentos e de disputas políticas
neutras e podem atuar para a promoção da equi- que se cristalizam na ideia de “ideologia de gêne-
dade ou reforçar as desigualdades de gênero. ro”?”. A aula apoia-se na leitura de Carneiro23 e
Na segunda aula “Gênero e Desigualdades”, Pinto26 sobre a história do feminismo e dos movi-
também pesquisadoresIV do NUMAS-USP proble- mentos de mulheres.
matizaram as questões de desigualdade, as posi- Na quarta aula “Educação e Violência de
ções desiguais ocupadas por mulheres e homens, Gênero”, são retomados trechos da Videoconfe-
tanto na esfera pública quanto na privada. Gêne- rência “Educação e Violência de Gênero” realiza-
ro também diz respeito às relações de poder, não da, em 7 de junho de 2016, nos ambientes da
meras diferenças, mas compõe desigualdades e EFAP/Rede do Saber27. Promotoras do Ministério
hierarquias. Tal temática fica especialmente la- Público do Estado de São PauloVII problematiza-
tente no que diz respeito ao acesso à Educação, ram com os coordenadores do curso as questões
às diferenças de sucesso e fracasso escolar en- relativas à violência de gênero, apresentando o
tre meninos e meninas, etc., chamando atenção modo como afetam as mulheres no mundo do-
para a questão das masculinidades, suas resso- méstico e público, bem como as questões rela-
nâncias em atitudes de não pertencimento, indis-
tivas à prevenção no contexto escolar. A ênfase
ciplina e violência escolar, bem como o inquie-
recai sobre os significados da violência de gêne-
tante fracasso escolar que atinge especialmen-
ro, o modo como atinge diferencialmente as mu-
te rapazes que estão abaixo das hierarquias de
lheres, considerando marcadores de cor e classe
classe e raça. Apoiadas em Carvalho25 mostra-se
social. Problematizam-se, também, os ambientes
que as discussões de gênero são centrais para
familiares como arenas da violência doméstica
a escola hoje, pois oferecem instrumentos para
e da violência sexual e os processos de silen-
enfrentar temas cruciais como aqueles relativos
ciamento das mulheres e meninas em casos de
à aprendizagem e à convivência.
Na aula seguinte “Os Movimentos Femi-
nistas e a Luta pela Conquista de Direitos”, V
Um dos autores deste artigo, o professor, propositor e coordenador do
curso Thiago Sabatine.
VI
A especialista Ingrid Leão.
IV
Renata Guedes Mourão Macedo, Karlene Bianca e Letizia Patriarca. VII
Valéria Scarance, Silvia Chakian e Fabíola Sucasas.

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Diversidade Sexual e de Gênero

violência. Por fim, se apresenta como as relações sinais de abuso e exploração sexual de crianças
violentas circulam nas redes sociais e expõem e adolescentes”30, disponibilizado pelo Ministério
as mulheres a diversas situações vexatórias e da Educação, e um artigo de Bandeira31 sobre vio-
constrangedoras como a divulgação da nudez, lência de gênero.
da pornografia de vingança. As promotoras pro- Na última aula do módulo “Gênero na Esco-
curam mostrar como os educadores podem lidar la e no Currículo”, o coordenador do curso apre-
com estas questões, cotejando o assunto com sentou as discussões sobre gênero presentes
os dispositivos legais de proteção das mulheres, no Currículo do Estado de São Paulo, bem como
como a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de problematizou as relações de gênero no cotidiano
2006)7 e os mecanismos e instituições de apoio das escolas, destacando as normas, regulamen-
às vítimas. Como indicação de leitura, são reco- tos que orientam o sistema de ensino público de
mendados a cartilha “Mulher Vire à página” do São Paulo, que definem a responsabilidade da
Ministério Público do Estado de São Paulo28 e o promoção de programas educacionais que dis-
próprio texto da Lei Maria da Penha. seminem valores éticos de irrestrito respeito à
Em seguida, na aula “Políticas Públicas pa- dignidade da pessoa humana, incluindo a pers-
ra as Mulheres”, uma representante do Conse- pectiva de gênero e de raça e etnia. A aula focou
lho Estadual da Condição Feminina (CECF)VIII e o no modo como o currículo aciona os conteúdos
coordenador do curso, apresentaram as políticas relativos aos Direitos Humanos, marcadores das
públicas para as mulheres de uma perspectiva diferenças, equidade de gênero e ao problema de
histórica, da redemocratização do Brasil, com a violência doméstica e familiar contra a mulher.
criação dos primeiros mecanismos de participa- Para apoiar os cursistas foram recomendadas
ção feminina como o Conselho Estadual da Con- publicações oficiais da Secretaria de Estado da
dição Feminina, em 1983, e da implantação, no Educação sobre o tema32,33.
mesmo ano, do Programa de Atenção Integrada O segundo módulo “Sexualidade e Educa-
à Saúde da Mulher (PAISM)29, em nível federal, ção” parte de uma perspectiva histórica e social
passando pela criação, pelo Estado de São Pau- para a problematização da sexualidade, analisan-
lo, da 1ª Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), do questões afeitas à subjetividade e articuladas
em 1985, até a ampliação dos serviços de aten- a uma compreensão de processos políticos e
dimento à mulher vítima de violência, enfatizan- culturais mais amplos. Colocando no centro do
do os mecanismos existentes atualmente para debate as preocupações que adentram as esco-
coibir as violências contra as mulheres e jovens, las, seja as questões relativas à saúde, a preven-
especialmente a violência sexual. A escola, no ção das infecções sexualmente transmissíveis
conjunto de iniciativas intersetoriais, torna-se, (IST) – incluindo o HIV/aids –, da gravidez, assim
nesse sentido, um espaço privilegiado para o de- como as questões da violência e o respeito às
bate e a construção de uma cultura de prevenção diversidades.
da violência de gênero e sexual contra crianças e Na primeira aula “A Sexualidade na Perspec-
adolescentes. Para apoiar a aula foram recomen- tiva Histórica e Social”, o coordenador do curso
dados a leitura do “Guia Escolar: identificação de tomou como ponto de partida a ideia de pensar
a sexualidade para além de uma questão indivi-
VIII
Na época, a Presidente deste conselho, Rosmary Correia (conhecida dual, mas como uma preocupação política e cul-
como Delegada Rose por ter sido a 1ª delegada de Delegacia de Polícia da
Mulher, em 1985). tural que merece uma análise mais criteriosa.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Seguindo as discussões feitas por Jeffrey We- cada pessoa de ver reconhecidos e respeitados
eks34 e Michel Foucault35 problematiza-se os es- o seu corpo, o seu desejo e o seu direito a amar,
sencialismos que explicam a sexualidade por uma são temas que remetem ao protagonismo e en-
suposta verdade ou essência, por meio de uma gajamento do movimento de lésbicas, gays, bis-
perspectiva que foca os significados que damos sexuais, travestis e transexuais (LGBT) no Brasil.
a sexualidade e o modo como são socialmente Por isso, na terceira aula “Movimento Social LGBT
organizados. Este tema ganhou estatuto cientí- Brasileiro e a Visibilidade de Novos Sujeitos Políti-
fico no século XIX, quando as questões relativas cos” um representante do NUMAS-USPIX, apoiado
aos corpos e ao comportamento sexual deixaram na leitura de Facchini e França42, apresentou a
de ser uma preocupação exclusiva da religião e história do movimento, suas conquistas e seus
da filosofia moral, tornando-se uma preocupação desafios, destacando os variados contextos po-
generalizada de especialistas: da Medicina, de líticos e estratégias utilizadas para a afirmação
profissionais e de reformadores morais, com uma do direito a expressão das sexualidades e das
disciplina própria a Sexologia, com base na Biolo- identidades de gênero.
gia, Psicologia e nas demais Ciências Humanas, Na aula seguinte “Travestis, Mulheres Tran-
que passaram a influenciar e definir os termos do sexuais e Homens Trans”, são retomados trechos
debate sobre o comportamento sexual. Exploran- da videoconferência “Tratamento Nominal de Dis-
do a atualidade desse debate, foram recomenda- centes Travestis e Transexuais”, realizada em 17
das as leituras de Altmann36 e Louro37. de novembro de 201443, que buscou orientar os
Na aula seguinte, são analisadas as experi- servidores da rede estadual de ensino público pa-
ências relativas às sexualidades contemporâneas, ra a aplicação do Decreto nº 55.588 de 201044,
o modo como são moldadas por acontecimentos da Deliberação CEE nº 125/201412 e da Resolu-
críticos situados no tempo – como os efeitos de ção nº 45 de 2014 da Secretaria da Educação de
novos dispositivos, como a pílula anticoncepcio- São Paulo45, que dispõem sobre o uso do nome
nal, a epidemia de aids, etc – , e a entrada no de- social e respeito a identidade de gênero de tra-
bate contemporâneo de novas linguagens e reper- vestis e transexuais. O coordenador do curso e a
tórios consagrados na ideia de Direitos Sexuais e primeira mulher transexual que se tornou diretora
Reprodutivos no contexto dos Direitos Humanos. de escola na rede de ensino de São PauloX pro-
Para tanto, a aula abordou as experiências da se- blematizaram as experiências de exclusão, atos
xualidade juvenil, cotejando aspectos que vão do de discriminação e as desigualdades vivenciadas
início da vida sexual do jovem brasileiro a partir por travestis, mulheres transexuais e homens
de pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e trans e os desafios para a garantia do direito à
Estatística (IBGE)38,39 e as diferenças geracionais educação, visando a assegurar a permanência
que acenam para mudanças relativas aos papéis escolar e a qualidade da educação com o reco-
sociais masculinos e femininos, além da constru- nhecimento das diferenças nas escolas. Como
ção de um direito democrático da sexualidade, que material de apoio da aula foi recomendada a lei-
implica noções como consentimento e respeito à tura do Documento Orientador no 15 de 201546
diversidade sexual1. Para leitura foram recomenda-
dos os textos de Rios40 e Sabatine e Magalhães41.
IX
Pesquisador Marcio Zamboni.
O direito a exercer a orientação sexual sem X
Paula Beatriz de Souza Cruz que se tornou diretora da Escola Estadual
sofrer discriminações ou violência, o direito de Santa Rosa de Lima, em 2005.

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Diversidade Sexual e de Gênero

da Secretaria da Educação, elaborado para sub- especialmente no que toca à saúde num contexto
sidiar a implantação da política. de epidemia de HIV/aids. Para tanto, foram reco-
A quinta aula “Direitos da População LGBT e mendadas as leituras de publicações institucio-
as Políticas Públicas do Estado de São Paulo” con- nais já disponíveis sobre o currículo oficial49,50.
tou com a participação do coordenador do curso O curso, em seu terceiro módulo “Diversi-
e do Coordenador de Políticas para a Diversidade dades, Diferenças e Desigualdades”, busca apre-
Sexual da Secretaria da Justiça e da Defesa da Ci- sentar uma visão mais abrangente sobre as dife-
dadania do Estado de São PauloXI. Os expositores renças de gênero, sexualidade e raça/etnia, par-
apresentaram a ampliação do reconhecimento do tindo de uma perspectiva não essencialista e da
Estado para as questões da população LGBT co- ideia de que as ações humanas são carregadas
mo direito humano, contextualizando as políticas de significados e relações de poder51. Aprender
públicas no cenário nacional e especialmente no sobre as diferenças, a partir da abjeção, do ve-
Estado de São Paulo, como os mecanismos cria- xatório, da desvalorização e da injúria, é um fator
dos pela Lei Estadual 10.948, de 200147, que pu- presente nas escolas e na sociedade quando se
ne a discriminação em razão da orientação sexual colocam em evidência marcadores sociais, como
e identidade de gênero, entre outros dispositivos de cor/raça, gênero e sexualidade52.
criados nas áreas da cultura, da saúde, da justiça, Esse módulo problematiza a construção das
da segurança pública e da educação que ampliam diferenças de gênero, sexualidade, raça/etnia,
os direitos LGBT. Para leitura foi recomendada a ressaltando o modo como são convertidas em
cartilha “Diversidade Sexual e Cidadania LGBT”48, processos de desigualdade que se sobrepõem,
que apresenta os principais marcos legais vigen- se reforçam mutuamente e direcionam diversas
tes em São Paulo e no país. práticas discriminatórias e preconceitos em nos-
Na última aula do módulo “Sexualidade na sa sociedade e na escola. O módulo visa a forne-
Escola e no Currículo”, o coordenador do curso, cer subsídios para a promoção de práticas peda-
juntamente à responsávelXII pelos projetos ligado gógicas com enfoque na garantia de direitos e na
ao Saúde e Prevenção na Escola (SPE) na Secre- valorização das diferenças.
taria da Educação do Estado de São Paulo proble- Na primeira aula “A Diversidade Cultural e
matizaram as relações de poder no cotidiano das o Aprendizado das Diferenças nas Escolas”, os
escolas, explorando como ela se constitui como pesquisadores do NUMAS-USPXIII apresentaram o
uma arena onde se expõem os conflitos ligados conceito de diversidade cultural, contextualizan-
ao reconhecimento das diferenças de gênero e se- do a ideia de cultura e suas variações ao longo
xualidade e focando no seu potencial de possibili- do tempo/espaço. Partem de uma perspectiva
dades de fornecer uma aprendizagem a partir das não essencialista para superar argumentos que
propostas presentes no Currículo do Estado de serviram historicamente para justificar a inferio-
São Paulo – que aponta para a aprendizagem em ridade e a desigualdade no acesso aos direitos,
termos éticos, do respeito à pluralidade, e para a especialmente o direito à educação, com base
promoção do autocuidado e cuidados dos outros, em marcadores como etnia, raça, gênero e sexua-
lidade. São debatidos conceitos antropológicos,

XI
Na época e ainda ocupando o cargo, Cássio Rodrigo de Oliveira Silva.
XII
A professora Eleuza Guazzelli. XIII
Paula Alegria e Bernardo Fonseca Machado.

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Diversidade Sexual e de Gênero

como etnocentrismo, racismo, sexismo e hetero- pela consideração atenta às diferenças. São re-
normatividade, à luz das relações de poder que comendadas leituras de textos de autoria de Car-
permeiam as interações nas escolas, a partir valho25 que remetem a esse debate61,62.
das leituras de Zamboni53 sobre os marcadores Na quinta aula “Práticas Pedagógicas: edu-
sociais da diferença, de Junqueira54 sobre as es- cação em sexualidade e saúde”, profissionaisXVI da
tratégias discursivas e os estados de negação da Fundação para o Desenvolvimento da Educação
discriminação por orientação sexual e identidade (FDE), do Centro de Referência e Treinamento em
de gênero nas escolas e de Guimarães55 sobre DST/Aids e da Coordenação Técnica de Saúde do
raça, cor, cor da pele e etnia. Adolescente da Secretaria de Estado da Saúde de
Na segunda aula “Gênero e Relações Étnico- São PauloXVII, e o coordenador do curso, apresen-
Raciais” e na terceira aula “Estereótipos, Sexuali- taram a importância da promoção da educação
dade e Discriminação Racial” uma pesquisadoraXIV, em sexualidade e saúde nas escolas, fazendo su-
do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e gestões de atividades norteadas por uma perspec-
Desigualdades (CEERT), analisa a articulação das tiva de enfrentamento às discriminações, à promo-
diferenças relacionadas a gênero e marcadores co- ção da saúde sexual e reprodutiva e cotejando-os
mo cor/raça, problematizando a exclusão e a desi- com os principais indicadores desta área sobre a
gualdade social, a fim de desconstruir pressupos- saúde do jovem. Para apoiar o trabalho dos educa-
tos racistas, especialmente aqueles que afetam dores foram recomendadas as leituras de guias e
meninas e meninos negros, a partir de uma refle- manuais elaborados pelo próprio sistema de edu-
xão comprometida com a equidade. Os marcadores cação e da saúde do Estado de São Paulo63,64.
de raça e gênero operam na produção de estereóti- Por fim, a sexta aula “As Práticas Pedagógicas
pos, hierarquias sociais, desejos, preferências e re- e as Diferenças” encerra o curso com o debate da
lações afetivas e sexuais. Para que os educadores prática escolar. Nessa aula, o coordenador do cur-
possam desconstruir as apreciações negativas em so, com aportes de Louro65, apresenta subsídios
função da cor/raça no universo da escola, foram para a promoção de práticas pedagógicas basea-
recomendadas as leituras de Santos56, Crenshaw57; das no reconhecimento das diferenças, enfatizando
Gomes58,59 e da Lei nº 10.639 de 200360. que a escola é, em conjunto com toda a sociedade
Na quarta aula “Gênero e Qualidade da Edu- e o Estado, um local de enfrentamento das discri-
cação”, o coordenador do curso e uma especialis- minações, preconceitos, estereótipos e local para o
ta em gêneroXV da Faculdade de Educação da Uni- aprendizado e valorização da diversidade.
versidade de São Paulo, analisam as questões
relativas à qualidade da educação, especialmen-
te os indicadores de acesso, de permanência e Avaliação e resultados
de desempenho escolar, para pensar as diferen- O Centro de Avaliação da EFAP elaborou a
tes trajetórias de sucesso e fracasso escolar de pesquisa de avaliação do curso a partir das dimen-
meninos e meninas, mostrando que a discussão sões: plano de curso, recursos didáticos, suporte
contemporânea de qualidade da educação passa ao cursista, resultados, autoavaliação e satisfação.

XIV
Giselle Cristina dos Anjos Santos. XVI
Edson de Almeida e Jurema Panza.
XV
A Professora Marilia Pinto de Carvalho. XVII
Respectivamente Ivone de Paula e Albertina Duarte Takiuti.

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Diversidade Sexual e de Gênero

O gráfico 1 demonstra que 99,17% dos pro- a importância desse debate e dos subsídios apre-
fissionais avaliaram que o plano de curso desen- sentados pelo curso. Outras questões também fo-
volvido favoreceu o alcance das metas e dos ob- ram apontadas em “Críticas e sugestões”. Entre as
jetivos estabelecidos no projeto do curso, 98,05% principais sugestões surgiram a possibilidade de
avaliaram que os Recursos Didáticos utilizados novas edições para os profissionais que não con-
no curso (textos, recursos interativos, vídeos, seguiram se inscrever, visto que as vagas disponí-
AVA-EFAP) favoreceram os processos de ensino e veis se esgotaram em poucas horas, e a possibili-
de aprendizagem, 99,49% avaliaram que o servi- dade de atendimento a toda comunidade escolar.
ço de suporte institucional prestou atendimento Como críticas surgiram a sugestão de espaços vir-
adequado às necessidades dos cursistas. tuais para troca de ideias entre os participantes, a
Em relação aos resultados, ficou evidencia- possibilidade de disponibilizar um tutor para acom-
do que para 98,53% os objetivos do curso foram panhar as turmas no AVA, a redução na quantida-
alcançados. No que se refere à autoavaliação, de de vídeos, a dificuldade de carregamento dos
98,93% se dedicaram e se engajaram com o cur- vídeos em algumas localidades e a possibilidade
so de formação. No que diz respeito ao Ambiente de realização de encontros presenciais.
Virtual de Aprendizagem, 82,02% manifestaram O curso atingiu 6.002 (seis mil e dois) pro-
satisfação com os recursos disponibilizados66. fissionais, majoritariamente do quadro do magis-
Não poderíamos deixar de notar em perspec- tério (83,92%), seguidos pelos profissionais de
tiva com o próprio entendimento dos cursistas, apoio escolar (14,21%) e da Secretaria de Educa-
quando solicitados à avaliação do curso, reforçarem ção (0,02%), com índice de aprovação de 86,95%.

Gráfico 1. Índices de satisfação nas dimensões avaliadas na pesquisa de avalia-


ção do curso “ Gênero, sexualidade e diversidade sexual: desafios para a escola
contemporânea”

Satisfação geral 97,73%

Recursos didáticos 98,05%

Autoavaliação 98,93%

Plano de curso 99,17%

Suporte ao cursista 99,49%

Resultados 99,53%

Fonte: Relatório Executivo de Avaliação. Gênero, sexualidade e diversidade sexual: desafios para a escola contem-
porânea - 1ª Edição/2018. CENAV/EFAP.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Considerações finais 8. Conselho Nacional de Educação. Resolução nº 4. Define


Há um longo caminho a ser percorrido, da- Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação
Básica. Brasília: CNE; 13 jul 2010.
dos os contundentes obstáculos que se asse-
9. Conselho Nacional de Educação. Resolução nº 7. Fixa Di-
nhoram da temática de gênero e sexualidade na
retrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental
educação básica no presente. Sem esgotar es-
de 9 anos. Brasília: CNE; 14 dez 2010.
se debate, nos parece fundamental aprofundar 10. Conselho Nacional de Educação. Resolução nº 2. Esta-
iniciativas nessa área que possam assegurar di- belece as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino
mensões ainda pouco problematizadas do pro- Médio. Brasília: CNE; 30 jan 2012.
cesso educativo. Afinal, está em disputa um pro- 11. Conselho Nacional de Educação. Resolução nº 1. De-
jeto de educação e uma responsabilidade que, se fine o uso do nome social de travestis e transexuais nos
esquecida, certamente ameaça tornar a escola registros escolares. Brasília: CNE/CP; 19 jan 2018.

menos habitável e menos generosa, pois sabe- 12. Conselho Estadual de Educação de São Paulo. Delibera-
ção o nº 125. Dispõe sobre a inclusão de nome social nos
mos que quando o Estado e a sociedade adotam
registros escolares das instituições públicas e privadas no
restrições no enfrentamento às desigualdades,
Sistema de Ensino do Estado de São Paulo e dá outras pro-
à violência, à garantia de direitos, os danos se
vidências correlatas. São Paulo: CEE/SP; 2014.
alastram para todas e todos. 13. São Paulo. Secretaria de Estado da Educação. Reso-
lução nº 52. Dispõe sobre os perfis, competências e habi-
lidades requeridos dos Profissionais da Educação da rede
estadual de ensino, os referenciais bibliográficos e de le-
gislação, que fundamentam e orientam a organização de
Referências
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Diversidade Sexual e de Gênero

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Diversidade Sexual e de Gênero

Orientação para escolas e educadores sobre


encaminhamentos em sexualidade, diversidade
sexual e saúde sexual e reprodutiva
Guidance for schools and educators on referrals in sexuality, sexual diversity
and sexual and reproductive health

Regina FigueiredoI, Letícia de Almeida Lopes CândidoII

Resumo Abstract
Mediante a experiência de elaboração de atualizações de 12 escolas Through the experience of elaborating the update of 12 schools
da Grande São Paulo em encaminhamentos sobre sexualidade, diver- located in the Great São Paulo about referrals in sexuality, sexual
sidade sexual e saúde sexual e reprodutiva, é discutida a importância diversity and sexual and reproductive health, it’s discussed the
de preparação dessas instituições para a atuação escolar visando à importance of preparing these institutions’ school performance
prevenção de vulnerabilidades de saúde e de violências que acome- seeking to prevent health vulnerabilities and violences that befall
tem alunos LGBT por parte de outros alunos e também de educado- LGBT students from their colleagues and also educators. The in-
res. A invisibilidade da atuação escolar sobre as ocorrências que aco- visibility of school performance on these occurrences that befall
metem a população LGBT possui diretrizes que já são explicitadas em LGBT students has guidelines already explicitated in legislations
legislações e normas nacionais e que vinham sendo implementadas and national norms and that have been implemented in educatio-
em planos de educação – que apesar de estarem enfrentando retro- nal plans - even though they face political kickbacks, they still are
cessos políticos, ainda se embasam nas noções de direitos humanos based in notions of human rights that need to be informed and
que precisam ser esclarecidas e conhecidas por esses educadores. known to these educators.

Palavras-chave: Escola; Adolescente; Sexualidade; Homossexuali- Keywords: School; Adolescent; Sexuality; Homossexuality; Sexual
dade; Saúde sexual e reprodutiva; Homofobia and reproductive health; Homophobia

Introdução Em 2009, Teixeira-Filho e colegas4, em levan-

O
ambiente escolar, juntamente com o fami- tamento sobre sexualidade realizado com 2.282
liar, se constitui como o principal ambien- alunos do Ensino Médio nas cidades de Assis, Pre-
te de construção de subjetividades, e po- sidente Prudente e Ourinhos, no interior do Oeste
de ser tanto um espaço de aprendizado como de Paulista, perceberam que, a respeito de diversida-
reprodução de padrões discriminatórios, contri- de sexual, 1,7% dos alunos se declaravam bissexu-
buindo para hierarquizações de diferenças, sejam ais, 0,5% se declaravam gays, 0,5% se declaravam
elas de classe, etnia, gênero ou sexualidade1-3. lésbicas e 2,1% se declaravam outras definições,
incluindo transexuais. Também foi observado que
1,0% dos alunos já haviam tido relações sexuais
I
Regina Figueiredo (reginafigueiredo@uol.com.br) é Cientista Social, Mestre com alguém do mesmo sexo e mais 1,3% já ha-
em Antropologia Social e Doutora em Saúde Pública pela Universidade de
São Paulo e Pesquisadora Científica do Instituto de Saúde da Secretaria de viam tido relações sexuais com ambos os sexos.
Estado da Saúde de São Paulo.
Similarmente, em levantamento amostral
II
Letícia de Almeida Lopes Cândido (leticia.alcandido@gmail.com) faz ba-
charelado em Ciências Sociais na Fundação Escola de Sociologia e Política representativo de escolas públicas de Ensino
de São Paulo (FESPSP) e é auxiliar de pesquisa e estagiária do Instituto de
Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Médio localizadas na Cidade de São Paulo que

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Diversidade Sexual e de Gênero

envolveu 4.929 alunos, Figueiredo e colegas5 pesquisa realizada em 2009, em eventos do Or-
apontaram que 1,2% afirmaram ter relações se- gulho LGBT de São Paulo9, quando 80,6% dos en-
xuais com pessoas do mesmo sexo. trevistados relataram ao menos uma situação de
Considerando os relacionamentos de alu- discriminação na vida, 39,9% vindas de profes-
nos homo e bissexuais nas escolas, em 2001, a sores/as ou colegas de escola e/ou faculdade.
Pesquisa Nacional Violência, Aids e Drogas nas Essas discriminações se expressaram enquanto
Escolas6, realizada com 16.422 alunos do Ensino agressões em 74,7% das vezes9.
Fundamental e do Ensino Médio, em catorze ca- Mais recentemente, a Secretaria de Educa-
pitais brasileiras, mostrou que 27% dos estudan- ção da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays,
tes participantes disseram que não gostariam Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) cons-
de conviver com homossexuais em suas salas tatou que 68% dos adolescentes e jovens LGBT
de aula, sendo 39,4% entre o sexo masculino e entrevistados já haviam sido agredidos verbal-
16,5% do sexo. Nesse mesmo estudo, os autores mente na escola por sua identidade e/ou expres-
levantaram que cerca de 25,0% dos alunos afir- são de gênero, 25% já haviam sido agredidos até
maram que não gostariam de ter um colega de fisicamente por esse motivo, sendo que 56% dos
classe que fosse homossexual, percentual que estudantes LGBT relataram ter sido assediados
varia entre as capitais, com máxima de 31% em sexualmente no ambiente escolar10.
Fortaleza, e mínima de 23%, em Belém. Esses dados apontam não apenas a violên-
Asinell-Luz e Cunha7, relatam que, em 2007, a cia, mas a dificuldade em tratar a questão da di-
partir do Censo Escolar, houve da Pesquisa Sobre versidade sexual e de gênero dentro das escolas
Ações Discriminatórias no âmbito Escolar, envol- brasileiras, havendo não apenas falta de orien-
vendo 15.087 estudantes do Ensino Fundamental, tações e condutas com relação a alunos agres-
Ensino Médio e da Educação de Jovens e Adultos sores ou vítimas desse bullying, mas também
(EJA) da rede pública, além de diretores, professo- esclarecimento sobre a conduta educativa que
res, funcionários e pais e mães de alunos. O levan- deveriam ter os próprios educadores frente às
tamento indicou um percentual elevado de estudan- questões que envolvem a sexualidade, inclusive
tes que presenciaram ou ficaram sabendo de ocor- quanto à homossexualidade, o combate à discri-
rências de humilhação (35,6%) ou agressão física minação e ao preconceito homofóbico, além da
(18,7%) contra homossexuais no ambiente escolar7. sensibilização para a importância dessas ocor-
No ano seguinte, em 2008, um novo levan- rências serem vistas como questões importantes
tamento com 9.937 alunos do Ensino Fundamen- no âmbito pedagógico e não fiquem relegadas co-
tal e do Ensino Médio no Distrito Federal apontou mo questões secundárias frente a outros temas
que 63,1% dos alunos já haviam observado ocor- da Educação. Assim, atualmente, a escola tem se
rências de discriminação homofóbica, e 27,8% apresentado como um espaço de reprodução dos
não gostariam de ter colegas de classe homosse- preconceitos sociais da cultura heteronormativa
xuais, sendo 44,4% dos estudantes sexo mascu- excludente, que além de não ensinar às crianças
lino e 14,9% dos do sexo feminino8. o respeito a diversidade sexual e de gênero, tam-
Essa ocorrência de discriminação observa- bém não promove a cidadania de todos, na me-
da na escola contra alunos lésbicas, gays, bisse- dida que se omite11, estigmatiza e, muitas vezes,
xuais, travestis e transexuais (LGBT) está refletida agride moral, verbal e até físicamente as crianças
também na vivência desta população, conforme e adolescentes que não se apresentam dentro

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Diversidade Sexual e de Gênero

do padrão de sexo-gênero majoritário4,11,12. Ao in- de difusão de legislações e encaminhamentos pa-


vés de promover uma prática pedagógica crítica ra educadores, escolas e para diretorias de ensi-
e reflexiva, se expressa uma pedagogia represso- no, principalmente de ocorrência de risco ligadas
ra que visa evitar as diversidades, principalmen- à violência ou vulnerabilidade sexual.
te a orientação sexual homossexual4,6 e outras a Foram envolvidos educadores de 12 escolas
ela associadas, como o travestismo e a transe- públicas da Grande São Paulo (pertencentes aos
xualidade. Abramovay, Cunha e Calaf8 e também municípios de São Paulo, Itapecerica da Serra,
Mello14 acreditam que isso invisibiliza as diver- Osasco e Embu das Artes), envolvidos no projeto
sidades nas condutas escolares e também nos “Adolescência em Ação: a nossa vez!” desenvolvi-
materiais didáticos, onde vem sendo suprimida. do pelo Instituto Cultural Barong, em 2017, e que
Nardi e Quartiero15 se depararam com um teve parceria técnica do Instituto de Saúde da Se-
distanciamento dos educadores da questão da cretaria de Estado da Saúde para a formação e ava-
diversidade sexual por meio de um “não-saber”, liação de educadores, de forma a desenvolver um
que retira também suas responsabilidades éticas, modelo de sensibilização, formação técnica e guia
pois, ao afirmar desconhecimento, afirmam não de encaminhamentos para as escolas, municípios
poder intervir. Desta maneira, por essas diversas e diretorias regionais de ensino para ser proposta
formas de se desviarem da questão e de invisibi- a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo.
lizar as pessoas LGBT, reforçam a desvalorização Para as formações foram agendados 2 encon-
dessas, contribuindo, mesmo que passivamente, tros de 2 horas em cada escola, com diferentes gru-
para a discriminação a que estão sujeitas, incluin- pos de educadores, permitindo uma sensibilizando
do a homo, lesbo e transfobia. Pode-se afirmar sobre a importância do tema da discriminação de
que nos relacionamentos escolares não há invisi- sexo/gênero e da adoção de posturas ativas além
bilização, mas sim um reforço aos padrões sociais de capacitação a respeito de fluxos e locais de en-
de condenação e discriminação e violência, explici- caminhamento de ocorrências escolares frente a
tando e reproduzindo a abordagem da forma como sexualidade. Esse conteúdo foi pautado em dados
as diversidades sexuais e de gênero devem e vem de saúde e violência do Ministério da Saúde16 e em
sendo enquadradas socialmente. legislações federais, como a Constituição Federal17
Mesmo as ações educativas realizadas e o Estatuto da Criança e do Adolescente18, nor-
e que visam aproximar os gestores e profissio- mas expedidas pelo Ministério da Saúde relativas
nais das escolas a essa discussão costumam se à saúde de adolescentes e/ou à população LGBT,
constituir enquanto projetos pontuais, de curto também do Ministério da Justiça, além de legis-
prazo e sem continuidade, muito mais de caráter lações do Estado de São Paulo e protocolos dos
preventivista à discriminação e nunca interventi- municípiosIII, procurando dar um enfoque científico,
vos frente a suas ocorrências, se mostrando in- legal e administrativo às informações.
suficientes para modificar a vivência do sistema
educacional quanto à questão da diversidade14.
III
Em fevereiro de 2017, a Coordenação da Área Técnica de Saúde da Mulher
Secretaria Municipal da Prefeitura de São Paulo, em parceria com técnicos do
Instituto de Saúde da Secretaria de Saúde Estado da Saúde de São Paulo, ela-
Metodologia boraram e regulamentaram o “Protocolo de Atenção Integral dos Adolescentes
em Saúde Sexual e Reprodutiva nos Serviços de Saúde do Município de São
O projeto apresentado propôs, além de fazer Paulo”19. Esse documento serviu para que outros municípios envolvidos no
projeto também estabelecessem seus próprios protocolos de maneira seme-
um levantamento das percepções e ocorrências de lhante, além de ter embasado a parte de saúde sexual e reprodutiva da “Linha
de Cuidado para a Saúde na Adolescência e Juventude para o Sistema Único
sexualidade nas escolas, realizar uma intervenção de Saúde no Estado de São Paulo”20, oficializada no final de 2018.

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Diversidade Sexual e de Gênero

– Descrição da apresentação da formação – • a Lei nº 10.948 de 2001, atualizada pela Lei


modelo de intervenção básico: nº 15.082 de 201324 e o Decreto nº 55.589
Parte 1: Indicadores de Saúde - a importân- de 201025, que dispõem sobre as penalida-
des a serem aplicadas à prática de discrimi-
cia de atuação/encaminhamento preventivo das
nação em razão de orientação sexual.
escolas em questões de saúde:
• dados sobre o perfil de práticas sexuais • a Lei nº 10.948 de 200124, que salienta
entre adolescentes, quantidade de rela- os direitos de proteção às pessoas LGBT,
ções e percentual de parcerias de diferen- inclusive adolescentes:
tes grupos: heterossexuais, bissexuais, “Será punida, nos termos desta lei, toda ma-
homossexuais nifestação atentatória ou discriminatória pra-
• dados de gravidez na adolescência; ticada contra cidadão homossexual, bissexu-
• dados de HIV, internações para cauteriza- al ou transgênero”.
ções por HPV entre adolescentes; Artigo 2.º - Consideram-se atos atentatórios e
• dados de violência homofóbica registrada discriminatórios dos direitos individuais e co-
em órgãos oficiais e Ministério da Justiça. letivos dos cidadãos homossexuais, bissexu-
Parte 2: Apresentação de protocolos de ais ou transgêneros, para os efeitos desta lei:
atenção em saúde sexual e reprodutiva de ado- I - praticar qualquer tipo de ação violenta,
lescentes em vigor - protocolos de atenção em constrangedora, intimidatória ou vexatória, de
saúde sexual e reprodutiva dos municípios de ordem moral, ética, filosófica ou psicológica;
São Paulo, Itapecerica da Serra, Osasco e Embu II - proibir o ingresso ou permanência em
das Artes, conforme a localidade da escolaIV: qualquer ambiente ou estabelecimento públi-
• o papel e a disponibilidade dos serviços co ou privado, aberto ao público;
de saúde público na atenção ao adoles-
III - praticar atendimento selecionado que não
cente e a importância da disseminação esteja devidamente determinado em lei;
desses direitos e da realização de enca-
(...) VIII - proibir a livre expressão e manifestação
minhamentos pela escola;
de afetividade, sendo estas expressões e ma-
• o respeito à autonomia de adolescentes
nifestações permitidas aos demais cidadãos”.
e o reconhecimento de suas práticas re-
ais, independente de questões de ordem • o Decreto nº 55.589 de 201025:
familiar e/ou cultural, dando respaldo à ci- “... fica assegurado às pessoas travestis e
dadania adolescente, tal como orienta o transexuais a qualificação, nos procedimentos
Ministério da Saúde21,22,23. previstos na Lei nº 10.948, de 5 de novembro
de 2001, pelos prenomes pelos quais são re-
Parte 3: Leis estaduais de garantia de direi-
conhecidas e denominadas por sua comunida-
tos LGBT em equipamentos públicos:
de e em sua inserção social (artigo 2)
• a importância do respeito à lei pelos servi-
Esses protocolos além de reforçar o papel de Unidades Básicas de Saúde
dores públicos para evitar sanções:
IV

(UBS) na promoção da prevenção de DST e gestações com oferta de preser-


vativos e contraceptivos, na realização de testagens e o papel dos serviços
de DST/aids na testagem e tratamento de DST, também dão ênfase ao direi- “Identificada a prática de possível falta por
to a essa prevenção/atenção diretamente aos adolescentes que devem ser
recebidos e consultados com direito ao sigilo e individualmente, independe servidor público estadual, a comissão es-
da presença de seus pais ou responsáveis, objetivando a criação de vínculos
e evitar a evasão, tal como orienta o Ministério da Saúde21,22,23. pecial comunicará o fato ao órgão em que

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Diversidade Sexual e de Gênero

o suspeito desempenhar suas funções e in- • apresentação de quadro contendo diver-


dicará as provas de que tiver conhecimento, sas situações escolares possíveis e os
propondo a instauração do procedimento dis- devidos locais de encaminhamento (com
ciplinar cabível” (artigo 1). endereços de referência respectivamen-
Parte 4: orientação de casos básicos e flu- te para cada escola), discutindo com os
xos para encaminhamento e disseminação de in- educadores dúvidas e enquadramento de
formações para alunos: situações:

Quadro 1. Ocorrências Escolares Posturas e Locais de Encaminhamentos


Ocorrências Orientação Local para encaminhamento
homossexualidade feminina Nenhum encaminhamento específico porque isso seria Resolução interna.
masculina, travestismo ou discriminatório, apenas ficar atento a possíveis bullying.
transexualidade entre alunos
relações afetivas ou namoros Ressaltar, de preferência em orientações grupais, a UBS (dispõem gratuitamente de
entre alunos, hetero, homo ou importância da prevenção de infecções sexualmente preservativos, pílulas e injeções
bissexuais transmissíveis (IST) com o uso de preservativo. anticoncepcionais e outros
Também ressaltar a importância da prevenção da contraceptivos).
gravidez com o uso de contraceptivos.
comentáriosV ou dúvidas de Ressaltar a importância da prevenção de DST com o UBS ou serviços de IST/aids (dispõem
alunos sobre IST e/ou HIV/aids uso de preservativo, além da vacinação contra HPV e gratuitamente de preservativos,
Hepatite B, disponíveis gratuitamente na UBS do bairro e vacinas contra HPV e Hepatite B).
comentários ou dúvidas de Ressaltar a importância do uso de preservativo e UBS ou serviços de IST/aids (dispõem
alunos sintomas IST e/ou encaminhamento, verificação de sintomas e tratamento gratuitamente de preservativos e
HIV/aids em caso de confirmação de IST. testes para sífilis, HIV, hepatite B e C e
assistência ao tratamento de IST/HIV/aids).
bullying homo, lesbo ou Educadores devem procurar intervir no bullying, Resolução interna: convocar famílias
transfóbicos realizados por apontando o preconceito e sempre defender e proteger de agressores para reunião caso seja
alunos contra outros o direito à diferença das vítimas. necessário.
violência física por motivos de Educadores devem intervir defendendo vítimas e Em casos de machucados graves, levar
homo, lesbo ou transfóbicos responsáveis pelos agressores, também devem a Serviços de Pronto Atendimento e
realizados por alunos contra comunicar a violência à Secretaria de Educação. fazer Boletim de Ocorrência.
outros Realizar a convocação de responsáveis por agressores
para orientá-los e contê-los.
violência sexual contra alunos Educadores devem intervir defendendo vítimas e Levar vítima para Serviços de Atenção
hetero, homo, bi ou transexuais responsáveis pelos agressores, também devem à Violência Sexual e levar aluno para
comunicar a violência à Secretaria de Educação. fazer Boletim de Ocorrência.
Realizar a convocação de responsáveis por agressores
para conter e dar orientação aos estudantes.
dúvidas e questões de Pais com dúvidas sobre a sexualidade dos filhos podem Instituto de Saúde da SES/SPVI.
familiares sobre filhos(as) buscar esclarecimento aprenderem a lidar com as
homossexuais ou bissexuais diversidades
dúvidas e questões de Pais com dúvidas sobre a sexualidade dos filhos podem - Ambulatório de Transtorno de
familiares sobre filhos(as) buscar esclarecimento aprenderem a lidar com as Identidade de Gênero e Orientação
transexuais diversidades Sexual do Hospital das Clínica da USP
(AMTIGOS);
- CRT/Aids do Est. São Paulo.
violência doméstica de Relatos e vestígios de violência contra crianças e/ou Notificação Anônima do Caso ao
familiares contra crianças ou adolescentes devem ser notificados por escrito à Secretaria Conselho Tutelar.
adolescentes, incluindo maus de Educação e de forma anônima ao Conselho Tutelar.
tratos devido à homofobia ou OBS: Sempre acredite na vítima e não convoquem os
transfobia familiares para que não punam ainda mais a vítima ou a
retirem da escola.

VI
As técnicas parceiras do projeto pelo Instituto de Saúde criaram plan-
tões mensais para o recebimento de pais com dúvidas sobre sexualidade
de filhos. De 2017 até 2018 foram realizados 4 orientações para familiares,
2 de pais de transexuais e 2 de familiares de lésbicas. Nessas orienta-
ções sócio-educacionais eram esclarecidas a transexualidade e lesbianidade
V
É importante salientar que adolescentes muitas vezes fazem comentários como diversidade sexual humana, discutindo o caráter de manifestação da
sobre outros alunos, conhecidos, ou até de pessoas fora da escola, situa- sexualidade na adolescência e orientando o tratamento não discriminatório a
ções em que podem ou não estar se referindo a ocorrências sobre si mesmo, esses adolescentes, dicas de cuidado em saúde e serviços públicos disponí-
mas que são significantes porque implicam em situações que eles mesmo veis para a orientação de transexuais, além de serviços de apoio psiológico
podem ter dúvidas ou se expor. para pais que se encontrassem angustiados ou “perdidos”

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Diversidade Sexual e de Gênero

– pré e pós-teste da formação: Embora tenha havido formações acerca de


Além da formação, os entrevistados respon- temas relativos à diversidade sexual, 78% dos edu-
deram a questionários de pré e pós-teste da for- cadores das escolas municipais e 70% dos edu-
mação realizada, permitindo não apenas visualizar cadores das escolas estaduais afirmaram possuir
as dificuldades, mas também a avaliação e avan- dúvidas. Os temas com mais dúvidas são princi-
ços proporcionados pela própria capacitação. palmente sobre subtemas relativos à diversidade
sexual: homo e bissexualidade (47,3%, sendo 58%
dos educadores das escolas municipais e 44,1%
Resultados
de escolas estaduais), transexualidade (50,5%,
– perfil dos educadores:
sendo 54% dos educadores das escolas munici-
Participaram das formações do projeto 269
pais e 49,4% de escolas estaduais) e violência se-
educadores. Deles, 220 (81,8%) responderam
xual (45,0%, sendo 52% dos educadores das es-
questionários de perfil, sendo 50 (22,7%) de es-
colas municipais e 42,9% de escolas estaduais).
colas que atuam com Ensino Fundamental e EJA
Essas dúvidas reafirmam dificuldades de
(municipais) e 170 (77,3%) de escolas que atuam
orientação frente a situações vividas na prática,
com 9º ano e Ensino Médio (estaduais).
visto que 68.6% (52,0% dos educadores de esco-
Os educadores são de faixas etárias varia-
las municipais e 73,5% das estaduais), ou seja,
das, a maioria se autodeclara branco(a) (61,8%),
a grande maioria, já se deparou com alunos ho-
são predominantemente católicos (47,3%), da
mossexuais e 33,2% já se deparou com alunos
área de Humanas (63,2%) e leciona no Ensino
transexuais ou travestis (24,0% dos educadores
Fundamental II (62,6%), que inclui geralmente
de escolas municipais e 35,9% das estaduais), e
adolescentes de 11 a 15 anos, e Ensino Médio
apenas 5,5% afirmaram ter orientado a busca de
(62,7%), que inclui geralmente alunos de 15 a 18
informações sobre homo e bissexualidade e 4,5%
anos – alguns acumulando aulas nas duas faixas.
sobre transexualidade.
– pré-teste – atuação com questões de Temas relativos às infecções sexualmente
sexualidade: transmissíveis (IST), incluindo o HIV/aids, tam-
Dos educadores, 22,7% (20% das escolas bém são apontados por cerca de mais de 20%
municipais e 23,5%, e das escolas estaduais) como de desconhecimento, inclusive a orienta-
afirmaram já ter tido alguma formação em temas ção sobre testes de IST/HIV e tratamentos de
de Sexualidade e/ou Saúde Sexual e Reprodu- IST (respectivamente por 26,4% e 21,8%), apesar
tiva, havendo 34,0% (20% dos educadores das de 26,8% já ter desenvolvido ações com alunos
escolas municipais e 37,5% dos educadores das abordando esses temasVII e apenas 8,2% (4,0%
estaduais) que a realizaram há menos de 5 anos. de escolas municipais e 9,4% de estaduais) en-
Quanto à realização de atividades na es- caminharam casos para testagem de IST/HIV. Da
cola com temas que envolvem Saúde Sexual e mesma forma, apesar de 31,8% dos educadores
Reprodutiva, 54% dos professores das escolas relatarem ter tido contato com casos de relatos
municipais e 52,4% dos professores das escolas de violência sexual, apenas 5,5% realizaram en-
estaduais já o fizeram, sendo que os temas mais caminhamentos desses casos.
trabalhados foram sexualidade (31,8%) e diversi-
dade sexual (30,5%), mas também violência sexu- VII
Cabe lembrar que o próprio currículo obrigatório de Ciências e Biologia do
Ministério da Educação, inclui orientações de IST como de responsabilidade
al, contracepção, etc. (tabela 2). dos professores dessa área que na pesquisa somaram 12,3%.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Tabela 1. Perfil dos Professores capacitados, por Tipo de Escola. São Paulo, 2017.
Ensino Fundamental e EJA 9o ano e Ensino Médio
Total
(municipais) (estaduais)
n n n
Idade
<25 anos 0 0,0 4 2,4 4 1,8
26-35 anos 14 28,0 39 73,6 53 24,1
36-45 anos 16 32,0 41 24,1 57 25,9
46-60 anos 19 38,0 77 45,3 96 43,6
>60 anos 1 2,0 7 4,1 8 3,6
não respondeu 0 0,0 2 1,2 2 0,9
total 50 22,7 170 77,3 220 100,0
Cor/Raça
branco(a) 31 62,0 105 61,8 136 61,8
preto(a) 8 16,0 21 12,4 29 13,2
pardo(a) 10 20,0 38 22,4 48 21,8
indígena 0 0,0 1 0,6 1 0,5
amarelo(a) 1 2,0 2 1,2 3 1,4
não respondeu 0 0,0 3 1,8 3 1,4
total 50 22,7 170 77,3 220 100,0
Religião
católica 23 46,0 81 47,6 104 47,3
não tem 12 24,0 39 22,9 51 23,2
evangélica não pentecostal 8 16,0 16 9,4 24 10,9
protestante 4 8,0 13 7,6 17 7,7
outros 2 4,0 17 10,1 19 8,6
não respondeu 1 2,0 4 2,4 5 2,3
total 50 22,7 170 77,3 220 100,0
Formação
Humanas/Artes 41 82,0 98 57,6 139 63,2
Biológicas 6 12,0 21 12,4 27 12,3
Exatas 2 4,0 44 25,9 46 20,9
mais de uma área 1 2,0 5 2,9 6 2,7
não respondeu 0 0,0 2 1,2 2 0,9
total 50 22,7 170 77,3 220 100,0
Atuação Escolar
Infantil 1 2,0 0 0,0 1 0,5
Fundamental I 17 34,0 2 1,2 19 8,6
Fundamental II 28 56,0 112 65,9 140 63,6
Ensino Médio 5 10,0 133 78,2 138 62,7
EJA I 8 16,0 6 3,5 14 6,4
EJA II 18 36,0 19 11,2 37 16,8
não respondeu 2 4,0 4 2,4 6 2,7
total 50 100,0 170 100,0 220 100,0

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Diversidade Sexual e de Gênero

Tabela 2. Formação dos Professores em Saúde Sexual e Reprodutiva, por Tipo de Escola. São Paulo, 2017.
Ensino Fundamental e EJA 9o ano e Ensino Médio
Total
(municipais) (estaduais)

n n n

Já teve alguma formação para Saúde


10 20,0 40 23,5 50 22,7
Sexual e Reprodutiva de alunos

Se sim, há quanto tempo?

até 5 anos atrás 2 20 15 37,5 17 34


há mais de 5 anos 8 80 25 62,5 33 66

total 10 20 40 80,0 50 100,0

Tabela 3. Nível de Informação e Prática de Educadores em Temas de Saúde Sexual e Reprodutiva, por
Tipo de Escola. São Paulo, 2017.
Ensino Fundamental e 9o ano e Ensino Médio
Total
EJA (municipais) (estaduais)

n n n

Já desenvolveu atividades para alunos sobre:


sexualidade 18 36,0 52 30,6 70 31,8
reprodução/aparelho reprodutivo 14 28,0 31 18,2 45 20,5
IST/aids 12 24,0 47 27,6 59 26,8
contracepção e métodos 11 22,0 39 22,9 50 22,7
diversidade sexual 17 34,0 50 29,4 67 30,5
violência de gênero/violência sexual 12 24,0 48 28,2 60 27,3
não realizou nenhuma destas atividades 23 46,0 75 44,1 98 44,5
não respondeu 0 0,0 6 3,5 6 2,7
total 50 22,7 170 77,3 220 100,0
Tem dúvidas sobre o encaminhamento de alunos(as):
ao posto de saúde 7 14,0 42 24,7 49 22,3
para buscar preservativo 3 6,0 25 14,7 28 12,7
a consultas ginecológicas 8 16,0 38 22,4 46 20,9
para obterem métodos anticoncepcionais 7 14,0 30 17,6 37 16,8
para fazer teste de gravidez 4 8,0 32 18,8 36 16,4
para fazer acompanhamento de gravidez 7 14,0 34 20,0 41 18,6
para fazerem testes de IST/HIV 12 24,0 46 27,1 58 26,4
para tomarem vacinas de HPV e hepatite B 6 12,0 39 22,9 45 20,5
para tratamento de IST 9 18,0 39 22,9 48 21,8
para orientações sobre homo/bissexualidade 29 58,0 75 44,1 104 47,3
para orientações sobre transexualidade 27 54,0 84 49,4 111 50,5
para serviços de atendimento à violência sexual 26 52,0 73 42,9 99 45,0
não respondeu 11 22,0 51 30,0 62 28,2
total 50 22,7 170 77,3 220 100,0

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Diversidade Sexual e de Gênero

Ensino Fundamental e 9o ano e Ensino Médio


Total
EJA (municipais) (estaduais)

n n n

Já se deparou com:
alunos com dúvidas sobre sexualidade 25 50,0 97 57,1 122 55,5
relatos de alunos em situação de prática sexual 13 26,0 82 48,2 95 43,2
alunas grávidas 30 60,0 142 83,5 172 78,2
alunos que tem filhos 22 44,0 115 67,6 137 62,3
alunas que já sofreram aborto 7 14,0 60 35,3 67 30,5
alunos com dúvidas sobre IST/aids 9 18,0 70 41,2 79 35,9
alunos relatando sintomas de IST 4 8,0 28 16,5 32 14,5
alunos portadores de HIV 7 14,0 31 18,2 38 17,3
alunos homossexuais 26 52,0 125 73,5 151 68,6
alunos transexuais/travestis 12 24,0 61 35,9 73 33,2
alunos relatando violência sexual 6 12,0 64 37,6 70 31,8
não se deparou com nenhum dos casos 9 18,0 13 7,6 22 10,0
total 50 22,7 170 77,3 220 100,0
já encaminhou alunos(as)
ao posto de saúde 8 16,0 40 23,5 48 21,8
para retirar preservativos 7 14,0 33 19,4 40 18,2
para realizarem consultas ginecológicas 3 6,0 29 17,1 32 14,5
para buscarem métodos anticoncepcionais 3 6,0 27 15,9 30 13,6
para realizarem teste de gravidez 1 2,0 27 15,9 28 12,7
para realizarem acompanhamento da gravidez 1 2,0 28 16,5 29 13,2
para realizar teste de IST/HIV 2 4,0 16 9,4 18 8,2

já encaminhou alunos para tomarem vacinas


2 4,0 20 11,8 22 10,0
de HPV ou hepatite B

para tratamento de IST 0 0,0 14 8,2 14 6,4


para orientações sobre homo/bissexualidade 0 0,0 12 7,1 12 5,5
para orientações sobre transexualidade 0 0,0 10 5,9 10 4,5
para serviços de atenção à violência sexual 0 0,0 12 7,1 12 5,5
nunca fez nenhum destes encaminhamentos 36 72,0 98 57,6 134 60,9
total 50 22,7 170 77,3 220 100,0

– pós-teste – avaliação e mudanças: “muito bom” para 69,49% dos educadores das
Dos 269 professores capacitados, 207 escolas municipais e 60,81% dos educadores
(76,95%) responderam ao pós-teste após a for- das escolas estaduais (tabela 4).
mação, sendo 59 (28,5%) de escolas que atu- Quanto ao conteúdo, os temas trabalhados
am com Ensino Fundamental e EJA (municipais) foram predominantemente considerados “muito
e 148 (71,49%) de escolas que atuam com 9º relevantes” por 72,88% dos educadores das es-
ano e Ensino Médio (estaduais), e a avaliação ge- colas municipais e 72,30% dos educadores das
ral do curso por eles foi predominantemente de escolas estaduais.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Tabela 4. Avaliação das Capacitações do Projeto, por Tipo de Escola. São Paulo, 2017.
Ensino Fundamental e EJA 9o ano e Ensino Médio
Total
(municipais) (estaduais)

n % n % n %

A formação de professores foi:


muito ruim 2 3,4 3 2,0 5 2,4
regular 1 1,7 1 0,7 2 1,0
boa 15 25,4 53 35,8 68 32,9
muito boa 41 69,5 90 60,8 131 63,3
não respondeu 0 0,0 1 0,7 1 0,5
total 59 28,5 148 71,5 207 100,0
Os temas abordados tem relevância para
atuar na escola?
mais ou menos relevante 0 0,0 5 3,4 5 2,4
relevante 15 25,4 33 22,3 48 23,2
muito relevante 43 72,9 107 72,3 150 72,5
não respondeu 1 1,7 3 2,0 4 1,9
total 59 28,5 148 71,5 207 100,0

Além disso, 88,14% dos educadores das Comparando o pré e o pós-teste realizados,
escolas municipal e 98,65% dos educadores das observa-se que os educadores ganharam maior
escolas estaduais se consideraram aptos a re- aptidão pela participação no projeto para a realiza-
alizar encaminhamentos nos subtemas de saú- ção de encaminhamento de alunos a orientações
de sexual e reprodutiva, principalmente a postos fora da escola, principalmente em casos de homo/
de saúde (76,3% dos educadores das escolas bissexualidade (50,8% dos educadores das esco-
municipais e 89,2% dos educadores das escolas las municipal e 58,1% dos educadores das esco-
estaduais), busca de preservativos (61,0% dos las estaduais) e transexualidade (44,1% dos edu-
educadores das escolas municipais e 79,7% dos cadores das escolas municipal e 56,1% dos edu-
educadores das escolas estaduais) e busca de cadores das escolas estaduais) e a serviços de
métodos anticoncepcionais (59,3% dos educado- atenção à violência sexual (64,4% dos educadores
res das escolas municipal e 73,6% dos educado- das escolas municipal e 62,8% dos educadores
res das escolas estaduais) (tabela 5). das escolas estaduais) conforme a necessidade.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Tabela 5. Aptidão para Realizar Encaminhamentos Adequados, por Tipo de Escola. São Paulo, 2017.
Ensino Fundamental e EJA 9o ano e Ensino Médio
Total
(municipais) (estaduais)

n % n % n %

Poderia agora fazer encaminhamentos

ao posto de saúde 45 76,3 132 89,2 177 85,5

para a busca de preservativos 36 61,0 118 79,7 154 74,4

para consultas ginecológicas 36 61,0 99 66,9 135 65,2

para a busca de métodos anticoncepcionais 35 59,3 109 73,6 144 69,6

para realização de testes de gravidez 27 45,8 90 60,8 117 56,5

para acompanhamento de gravidez 27 45,8 82 55,4 109 52,7

para teste de DST e HIV 28 47,5 96 64,9 124 59,9

para vacinação de HPV e Hepatite B 31 52,5 103 69,6 134 64,7

para tratamento de IST 26 44,1 81 54,7 107 51,7


para orientações fora da escola sobre homo/
30 50,8 86 58,1 116 56,0
bissexualidade
para orientações fora da escola sobre
26 44,1 83 56,1 109 52,7
transexualidade
a serviços de atenção à violência sexual 38 64,4 93 62,8 131 63,3

não faria nenhum destes encaminhamentos 7 11,9 2 1,4 9 4,3

não respondeu 1 1,7 0 0,0 1 0,5

total 59 28,5 148 71,5 207 100,0

Discussão tipo de discriminação e valorizando a traje-


Lins26 traz alguns marcos legais da edu- tória particular dos grupos que compõem a
cação mostrando que o Estado tem atuado em sociedade. Nesse sentido, a escola deve ser
grande parte para a garantia de direitos da popu- local de aprendizagem de que as regras do
lação LGBT desde os anos 1990, principalmente espaço público permitem a coexistência, em
a partir da Lei de Diretrizes e Bases, de 199627, igualdade, dos diferentes”.
que aborda a questão da “igualdade de condi-
Em 2002, foi lançado o “Programa Nacional
ções para o acesso e a permanência na escola”
de Direitos Humanos II” (PNDH II)29, que apresen-
e o “respeito à liberdade e o apreço à tolerância”.
tava as demandas da população LGBT em diver-
Também os antigos Parâmetros Curriculares Na-
sos campos, como educação, saúde e trabalho,
cionais de 199728, afirmavam que:
que constituiu-se, em 2005, um grupo de traba-
“O grande desafio da escola é reconhecer a lho para a implementação do “Programa Brasil
diversidade como parte inseparável da identi- sem Homofobia”30, visando garantir o direito à
dade nacional e dar a conhecer a riqueza re- educação da população LGBT.
presentada por essa diversidade etnocultural Infelizmente, em 2014, o Plano Nacional de
que compõe o patrimônio sociocultural bra- Educação31 foi substituído por um novo documen-
sileiro, investindo na superação de qualquer to que devido ao momento político do país de

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Diversidade Sexual e de Gênero

avanço de grupos conservadores ligados a igre- violência” (art. 2º, inc. X). Essas diretrizes, por-
jas evangélicas e católicos carismáticos, retirou tanto ultrapassam ações de sala de aula, impli-
e não explicita as questões de gênero e LGBT32. cando a própria postura da escola e de seus edu-
Esses segmentos vêm ganhando espaço na par- cadores na construção de uma cidadania ampla
ticipação política brasileira e que se diz ser con- e respeitosa para todos. Do ponto de vista do
tra o ensino nas escolas do que erroneamente funcionalismo público, esta noção está explicita-
qualificam como “ideologia de gênero”33, impor- da na Lei nº 10.948, de 200139, que penaliza prá-
tando intervenções de viés conservador que vêm ticas discriminatórias contra homo, bi e transexu-
sendo promovidas internacionalmente34. Isso fez ais “em qualquer ambiente ou estabelecimento
com que o novo Plano Nacional de Educação de público ou privado, aberto ao público” (art. I, inc.
2014 retirasse a explicitação dessa diretriz, nu- 2) e a ação ou omissão de “servidores públicos
ma tentativa de inviabilizar as questões LGBT e que, no exercício de suas funções e/ou em repar-
as diretrizes passassem a generalizar as ques- tição pública” (artigo VII).
tões de direitos civis em citações de promoção Como apontam Pereira e Bahia2:
aos Direitos Humanos, com a expressão “cidada-
“...a não discriminação não é somente um
nia e na erradicação de todas as formas de dis-
dever “geral” do Estado (e daqueles que, em
criminação”35. Nessa generalização, a atual Base
seu nome atuam), mas, no campo da edu-
Curricular Nacional de Ensino Médio de 201836
cação, é um dos particulares deveres da es-
prevê que:
cola – já que, como citado, “a discriminação
“...ao explorar variadas problemáticas pró- no [...] ensino constitui violação dos direitos”
prias de Geografia e de História, prevê que os humanos –, é dizer, a educação deve se pau-
estudantes explorem diversos conhecimen- tar pela promoção das liberdades e direitos
tos próprios das Ciências Humanas: noções assegurados naquelas Declarações, além da
de temporalidade, espacialidade e diversi- Constituição e leis nacionais. Os sistemas de
dade (de gênero, religião, tradições étnicas ensino não têm a escolha entre promover ou
etc.);” (p. 547). não os Direitos Humanos e, particularmente
aqui, a tolerância” (p.60).
O documento também assinala que a as
competências da área de Educação devem “... Por isso, segundo esses Pereira e Bahia2 a
negociar e defender ideias, pontos de vista e de- promoção da inclusão de direitos LGBT não se
cisões comuns que respeitem e promovam os di- restringe em promover a tolerância, que impli-
reitos humanos”37 (p.547). ca ainda se manter “um incômodo”, exige que
No Estado de São Paulo, o “Plano Estadual se promova um reconhecimento das diferenças
de Educação de 2016”37, ressalta em seu arti- e que se trabalhe efetivamente com elas para a
go 2º que “São diretrizes do PEE: (...) IX- promo- garantia de direitos. Por isso, a importância de
ção dos princípios do respeito aos direitos hu- planos de educação que destaquem a ênfase
manos...”; assim como o município de São Paulo na promoção da igualdade por orientação sexual
reafirma em seu Plano de Educação Municipal e que agora, por agora substituídas por razões
de 201538 que também é diretriz a “difusão dos moralistas tem sido ocultada como “erradicação
princípios da equidade, da dignidade da pes- de todas as formas de discriminação”, sem citar
soa humana e do combate a qualquer forma de quais os tipos de discriminação”35.

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Diversidade Sexual e de Gênero

Com relação aos transexuais, travestis e Dentro do “Programa Brasil sem Homofo-
transgêneros, ainda, o Parecer Homologado do bia” , que realizou diversas capacitações de pro-
30

Conselho Nacional de Educação, de 201840, fessores escolas em públicas, promovendo valo-


confirma a orientação de uso do nome social in- res de respeito e à não discriminação por orien-
formado pelos alunos, nos registros escolares tação sexual” nas escolas do Distrito do Distrito
internos (e identificação cotidiana, de forma a Federal, a informação de educadores pautada
evitar constrangimento a este público, atitude em concepções científicas acerca da sexualidade
confirmada também em nível do Estado de São fortalece, como aponta Santos e colegas1 “prá-
Paulo pela Deliberação nº125 de 2014 do Con- ticas protetivas de valorização à vida” (p.3). Os
selho Estadual de Educação de São Paulo41, de resultados das formações dadas nas escolas da
2014. Essa última assegura o respeito a identi- Grande São Paulo, também demonstram essa
dade de gênero sem qualquer constrangimento, percepção e aceitação pelos próprios educado-
o que assegura portanto, a forma de ser e se res e escolas envolvidos, salientando que o link
vestir e o uso de banheiros de acordo com essa atual para o trabalho escolar é a defesa da saúde
identidade. e dos Direitos Humanos, uma vez que a sexuali-
Mesmo que com leis, portarias, resoluções, dade, assim como os direitos sexuais e reprodu-
decretos, programas, planos e projetos, de diver- tivos são atualmente reconhecidos como Direitos
sas esferas governamentais, faz-se necessária Humanos42,43.
a continuidade de ações muito mais difíceis que
implicam fazer com que essas medidas cheguem
até as pessoas e produzam mudanças, mesmo Conclusão
que de pequeno alcance3. As escolas e educadores ainda precisam
Os professores são, mesmo que não como aprender a lidar com a frequente ocorrência da
primeira opção, muitas vezes abordados pelos diversidade sexual humana. É fundamental que
alunos para debater questões de sexualidade, enquanto as mentalidades pessoais não sejam
mas nem sempre os professores possuem essas estimuladas por formações amplas sobre essas
informações, principalmente no que diz respeito temáticas, explorando suas características e vul-
ao que se encontra fora da heteronormatividade4. nerabilidades, que saibam, ao menos, da existên-
Mais importante talvez que capacitá-los sobre o cia e dos conteúdos das legislações e normati-
assunto, é que os professores saibam para on- zações vigentes, para que possam realizar o en-
de encaminhar os alunos ou seus pais para que caminhamento de casos de sexualidade e risco
tenham um atendimento adequado de suas dúvi- sexual ou de violência a serviços públicos já exis-
das, quando não se sentem suficientemente se- tentes, caso necessitem.
guros para esclarecê-las. A ocorrência rotineira de casos de homofo-
Frente ao despreparo do corpo docente pa- bia e exposição de risco às IST entre estudan-
ra lidar com as diversas formas de sexualidade, tes LGBT (e até de gravidez entre alunas hetero
também há uma necessidade de formar profes- ou bissexuais), juntamente à discriminação que
sores para encararem a diversidade e os alunos sofrem, demonstra que estão alheios a suas
que fogem de suas definições de “aluno padrão”, próprias funções de funcionários de instituições
sem os colocarem como estranhos, problemáti- públicas, da mesma forma que distante do pa-
cos, anormais2. pel de educadores e preparadores de crianças

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Diversidade Sexual e de Gênero

e adolescentes que vivem e viverão em uma so- 8. Abramovay M, Cunha AL, Calaf PP. Revelando tramas,
ciedade com diversidade sexual. A invisibilização descobrindo segredos: violência e convivência nas escolas.
Brasília: RITLA, Secretaria de Estado de Educação do Dis-
desses problemas e a não-ação com atitudes e
trito Federal (SEEDF); 2009.
encaminhamentos mínimos perpetua desigualda-
9. Facchini R, França IL. Convenções de gênero, sexuali-
des e preconceitos que a população LGBT enfren- dade e violência: pesquisa com participantes de eventos
ta socialmente e que têm grande vivência desde do Orgulho LGBT de São Paulo. 2009. Rev. Latitude. 2013;
a infância e adolescência dentro do próprio am- 7(1): 13-32.
biente escolar. 10. Calixto TG, França MHO. LGBTfobia no no ambiente
A abordagem da diversidade de gênero e escolar: desafios da prática docente. III Congresso Na-

a boa intervenção escolar contra preconceitos, cional de Educação (conedu). João Pessoa: Universida-
de Federal da Paraíba; 2016. [acesso em: 14 nov 2018].
portanto, não se constitui como um detalhe pe-
Disponível em: http://www.editorarealize.com.br/revis-
dagógico, mas como um ponto fundamental de
tas/conedu/trabalhos/TRABALHO_EV056_MD4_SA11_
educação quanto aos relacionamentos humanos, ID5735_12082016183610.pdf
proporcionando cidadania e a promoção de Direi- 11. Lins HHF. Entre o direito e a invisibilidade os LGBTs na
tos Humanos de todos. Política Educacional. (Trabalho de Conclusão de Curso). Uni-
versidade de Brasília. Brasília, 2017.
12. Pinho R, Pulcino R. Desfazendo os nós heteronormati-
vos da escola: contribuições dos estudos culturais e dos
movimentos LGBTTTI. Educ. Pesqui. 2016; 42(3):665-680.
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de professores como estratégia de intervenção. Seminário um kit anti-homofobia: políticas públicas de educação
Fazendo Gênero 8. (Anais Eletrônicos). Florianópolis; 2008. para a população LGBT no Brasil. Revista Bagoas. 2012;
2. Pereira GP, Bahia AGMF. Direito fundamental à educa- (7):99-122.
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ambiente de aprendizado livre, plural e democrático. Educ. safiando a moral sexual e construindo estratégias de com-
Revista. 2011; (39):51-71. bate à discriminação no cotidiano escolar. Revista Latinoa-
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pulação LGBT no Brasil. Revista Bagoas. 2012; (7):99-122. demiológicas e de morbidade. In. DATASUS. (on li-
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Paulo: estudo com estudantes de escolas públicas de Ensi- Adolescente (ECA). Brasília: Presidência da República; 13
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lidade. Brasília: UNESCO, 2004. Protocolo de orientação para atenção integral em saúde se-
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Diversidade Sexual e de Gênero

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para o sistema único de saúde no estado de São Pau- do avanço do conservadorismo do movimento “Escola Sem
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lescentes ee jovens - orientações para a organização de show/the-globalisation-of-anti-gender-campaigns-2761/
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al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2001/alteracao- Municipal de Educação de São Paulo. São Paulo: Gabinete
-lei-10948-05.11.2001.html do Prefeito; 17 set 2015.
25. São Paulo. (estado). Decreto nº 55.589. São Paulo: Pa- 39. São Paulo. (estado). Lei nº 10.948. Dispõe sobre as pe-
lácio dos Bandeirantes; 17 mar 2010. Disponível em: nalidades a serem aplicadas à prática de discriminação em
http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decre- razão de orientação sexual. São Paulo: ALESP; 05 nov 2001.
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27. Brasil. Ministério da Educação. Lei n 9.394. Lei de Di-
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fobia. Brasília: MS; 2004. fios. Rev. Educ. Pesq. 2015; 41(3):791-806.

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Diversidade Sexual e de Gênero

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O Boletim do Instituto de Saúde (BIS) é uma publicação se- maiúsculas e minúsculas.
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Saúde de São Paulo. Com tiragem de 2 mil exemplares, a
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previamente, além de outros artigos técnico-científicos, es- após o parágrafo.
critos por pesquisadores dos diferentes Núcleos de Pesqui- Transcrições de trechos dentro do texto: devem ser feitas
sa do Instituto, além de autores de outras instituições de
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Ensino e Pesquisa. A publicação é direcionada a um público
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devem ser colocadas entre parênteses.
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res, médicos e gestores da área da Saúde. Citação de autores no texto: deve ser indicado em expo-
ente o número correspondente à referência listada. De-
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Roman, corpo 10 (sem negrito e sem itálico) com nota de ro- acessada nos seguintes endereços:
dapé numerada informando sua formação, títulos acadêmi-
cos, cargo e instituição à qual pertence. Também deve ser Portal de Revistas da SES-SP – http://periodicos.ses.sp.bvs.br
disponibilizado o endereço eletrônico para contato (e-mail). Instituto de Saúde – www.isaude.sp.gov.br

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Diversidade Sexual e de Gênero

Orientação aos autores - Notas técnicas de Avaliação de obedecer a seguinte estrutura: Introdução que aborde o
Tecnologias de Saúde contexto de realização do parecer ou informe, o problema
estudado, e a tecnologia avaliada; Método com pergun-
ta de investigação estruturada, bases de dados de lite-
Notas Técnicas de Avaliação de Tecnologias de Saúde in- ratura, estratégias de busca de informações científicas,
cluem pareceres técnico-científicos e outros tipos de infor- critérios para seleção e análise dos estudos incluídos;
mes rápidos de avaliação de tecnologias de saúde (ATS), Resultados e Discussão que inclua uma apreciação so-
que possam contribuir para subsidiar a tomada de decisão bre as limitações do estudo, a interpretação dos autores
sobre incorporação e ou exclusão de tecnologias no siste- sobre os resultados obtidos e sobre suas principais im-
ma de saúde. Ensaios e reflexões sobre aspectos metodo- plicações e a eventual indicação de caminhos para novas
lógicos e sobre políticas relacionadas à ATS também são pesquisas. Recomendação que possa subsidiar uma to-
bem-vindos. mada de decisão por gestores nos diferentes âmbitos do
Tamanho do texto sistema de saúde.

• Deve ter até 2.000 palavras (excluindo resumo, tabela,


• Fontes de financiamento: devem ser declaradas todas
as fontes de financiamento ou suporte, institucional ou
figura e referências), no máximo uma tabela ou figura e
privado, para a realização do estudo.
até 10 referências. Sugere-se a seguinte distribuição das
partes do texto: Introdução (até 600 palavras); Método
(até 300 palavras); Resultados e Discussão (até 1000 • Conflito de interesses: deve ser informado qualquer po-
palavras); Recomendação (até 100 palavras). tencial conflito de interesse.

• O resumo não precisa ser estruturado e deve ter até 150 • Aspectos éticos: informar sobre avaliação por um comitê
palavras, e ser apresentado em português e inglês. de ética em pesquisa, quando pertinente.

Estrutura do texto • Colaboradores: devem ser especificadas as contribuições


individuais de cada autor na elaboração do artigo.
• Não há uma estrutura para apresentação de Notas Técni-
cas no formato ensaios e reflexões. • Agradecimentos: incluem instituições que de alguma for-
ma possibilitaram a realização da pesquisa e/ou pessoas
• As Notas Técnicas relativas a pareceres técnico-cientí- que colaboraram com o estudo, mas que não preenche-
ficos e outros tipos de informes rápidos de ATS, devem ram os critérios para serem coautores.

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