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A HISTÓRIA DE TAMAR: UMA MULHER, VIÚVA, PROSTITUTA E SUBVERSIVA!

Janaina de Fátima Zdebskyi¹

Resumo: Tamar é personagem de um mito hebreu que consta no capítulo 38 do livro de Gênesis no Antigo Testamento.
O mito em questão narra um episódio envolvendo essa personagem como protagonista, juntamente com seu sogro, o
patriarca Judá. Nesse episódio, Tamar se utiliza de uma prática que é considerada estrangeira e condenada pelos
hebreus, conhecida como “prostituição sagrada”. Tamar, que está no lugar de estrangeira e viúva, se coloca também no
lugar de prostituta sagrada como um estratégia para gerar os filhos que lhe eram de direito e de dever para garantir
posteridade a seu marido falecido. Mesmo em um contexto essencialmente patriarcal descrito no documento do Antigo
Testamento que tem uma narrativa extremamente masculinista, que invisibiliza as mulheres ou coloca-as no lugar de
pecadoras e impuras, Tamar é uma representatividade de resistência e subversão femininina, visto que é considerada
mais justa que o patriarca Judá, de certa forma, consegue fazer justiça e decidir por si mesma os rumos de sua história.

Palavras-chave: Antigo Testamento; hebreus; patriarcado; subversão.

Primeiramente, se faz necessário apresentar a história de Tamar para seguir com as


discussões que a permeiam. A fonte a ser discutida se encontra no Antigo Testamento, no livro de
Gênesis, capítulo 38, sendo a que segue:

Aconteceu que, neste tempo, Judá se separou de seus irmãos e foi viver na casa de um
homem de Odolam que se chamava Hira. Ali Judá viu a filha de um cananeu que se
chamava Sué, ele a tomou por mulher e se uniu a ela. Esta concebeu e gerou um filho que
chamou Her. Outra vez ela concebeu e gerou um filho, que chamou Onã. Ainda outra vez
concebeu e gerou um filho, que chamou Sela; ela se achava em Casib quando o teve.
Judá tomou uma mulher para seu promogênito Her; ela se chamava Tamar. Mas Her, o
primogênito de Judá, desagradou Iahweh, que o fez morrer. Então Judá disse a Onã: “Vai à
mulher de teu irmão, cumpre com ela o teu dever de cunhado e suscita uma posteridade a
teu irmão”. Entretanto Onã sabia que a posteridade não seria sua e, cada vez que se unia à
mulher de seu irmão, derramava por terra para não dar uma posteridade a seu irmão. O que
ele fazia desagradou a Iahweh, que o fez morrer também. Então Judá disse à sua nora
Tamar: “Volta à casa de teu pai, como viúva, e espera que cresça meu filho Sela.” Ele dizia
consigo: “Não convém que ele morra como seus irmãos.” Tamar voltou, pois, à casa de seu
pai.
Passaram-se muitos dias e a filha de Sué, a mulher de Judá, morreu. Quando Judá ficou
consolado, subiu a Tamna, ele e Hira, seu amigo de Odolam, para a tosquia de suas
ovelhas. Comunicaram a Tamar: “Eis que,”, foi-lhe dito, “teu sogro sobe a Tamna para a
tosquia de suas ovelhas.” Então ela deixou suas roupas de viúva, cobriu-se com um véu e
sentou-se na entrada de Enaim, que está no caminho de Tamna. Ela via que Sela já era
grande e ela não lhe fora dada como mulher.
Vendo, Judá tomou-a por uma prostituta, pois ela cobria o rosto. Dirigiu-se a ela no
caminho e disse: “Deixa-me ir contigo!” Ele não sabia que era sua nora. Mas ela perguntou:
“Que me darás para ires contigo?” Ele respondeu: “Eu te enviarei um cabrito do rebanho.”
Mas ela replicou: “Sim, se me deres um penhor até que o mandes!” Ele perguntou: “Que
penhor te darei?” E ela respondeu: “O teu selo, com teu cordão e o cajado que seguras.” Ele
lhos deu e foi com ela, que dele concebeu. Ela se levantou, partiu, retirou seu véu e
retornou as roupas de viúva.
Judá enviou o cabrito por intermédio de seu amigo de Odolam, para recuperar os penhores
das mãos da mulher, mas este não a encontrou. Ele perguntou aos homens do lugar: “Onde
está aquela prostituta que fica em Enaim, no caminho?” Mas eles responderam: “Jamais
houve prostituta aqui!” Ele voltou, pois, junto a Judá e lhe disse: “Eu não a encontrei.

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Também os homens do lugar me disseram que jamais houve prostituta ali.” Judá retomou:
“Que ela fique com tudo: que não zombe de nós, pois eu enviei o cabrito, mas tu não a
achaste.”
Cerca de três meses depois, foi dito a Judá: “Tua nora Tamar prostitui-se e está grávida por
causa de sua má conduta. Então Judá ordenou: “Tirai-a fora e seja queimada viva!” Quando
agarraram, ela mandou dizer a seu sogro: “Estou grávida do homem a quem pertence isto.
Reconhece a quem pertence este selo, este cordão e este cajado.” Judá os reconheceu e
disse: “Ela é mais justa do que eu, porquanto não lhe dei meu filho Sela.” E não teve mais
relação com ela.
Quando chegou o tempo do parto, parecia que tivesse gêmeos em seu seio. Durante o parto,
um deles estendeu a mão e a parteira, tomando-a, atou-lhe um fio escarlate, dizendo: “Foi
este que saiu primeiro”. Mas aconteceu que ele retirou a mão e foi seu irmão quem saiu.
Então ela disse: “Que brecha te abriste!” E o chamaram de Farés. Em seguida saiu o seu
irmão, que tinha o fio escarlate na mão, e o chamaram de Zara.

Os elementos presentes na narrativa do Antigo Testamento nos auxiliam a compreender as


regras sociais, as crenças, a organização das estruturas de famílias e o contexto da antiguidade entre
o povo hebreu. Para entender as regras explícitas no recorte apresentado acima, é importante
contextualizar que a obrigatoriedade de que Onã engravide Tamar, gerando uma descendência para
seu irmão falecido, está atrelada a Lei do Levirato - sendo levir derivado do latim, significando
“cunhado” -, que pode ser encontrada no Livro de Deuterônomio, capítulo 25:
Quando dois irmãos moram juntos e um deles morre, sem deixar filhos, a mulher do morto
não sairá para casar-se com um estranho à família, seu cunhado virá até ela e a tomará o
nome do irmão morto, para que o nome deste não se apague em Israel. Contudo, se o
cunhado recusa desposar a cunhada, está irá aos anciãos, na porta, e dirá: “Meu cunhado
está recusando suscitar um nome para seu irmão em Israel! Não quer cumprir seu dever de
cunhado para comigo! Os anciãos da cidade o convocarão e conversarão com ele. Se ele
persistir dizendo: “Não quero desposá-la, então a cunhada se aproximará dele na presença
dos anciãos, tirar-lhe-á a sandália do pé, cuspirá em seu rosto e fará esta declaração: “É isto
que se deve fazer a um homem que não edifica a casa de seu irmão”; e em Israel o
chamarão com o apelido de “casa do descalçado.”

Nesse caso, o primeiro filho – homem - gerado da relação entre a mulher e o cunhado é
considerado do defunto e recebe sua parte na herança, sendo que essa estrutura visava perpetuar a
descendência do patriarca falecido e assegurar a estabilidade da família, evitando também sua
fragmentação.
Ainda no sentido de contextualizar a fonte, se faz importante colocar que as cidades citadas
na história, sendo elas “Odolam, Casib e Tamna”, se localizavam na região à sudoeste de Jerusalém,
conforme pode-se observar mapa do apêndice I.

Metodologia – Uma história à contra pelo: Perspectiva feminista do antigo testamento

Se faz importante colocar que adoto uma perspectiva de análise feminista do Antigo
Testamento, para isso tenho como referência o livro “Introdução ao Antigo Testamento: Perspectiva

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Feminista”, de Alice L. Laffey (1994) no qual a autora denuncia que “o sexo feminino fora
efetivamente minimizado dentro do Antigo Testamento e mais ainda na sua interpretação” (p. 7), as
escrituras são repletas de androcentrismo e de uma maneira sexista de ver o mundo (MUSSKOPF,
2005, p. 25), logo, “qualquer crítica histórica dos texto precisa explicitar sua tendência patriarcal”,
sendo esta uma função da interpretação feminista (LAFFEY, 1994, p. 10). A respeito disso, a autora
problematiza o tema fazendo os seguintes questionamentos: “Quais são as heroínas que emergem
nos textos bíblicos apesar de...? Quais são as mulheres cujas imagens são distorcidas? Quais são as
mulheres anônimas que aparecem nos textos só por meio de seus maridos e filhos? Quais são as
exceções que sobreviveram, quais as que até são louvadas?” (LAFFEY, 1994, p. 12).
Na Teologia Feminista, o compartilhar das histórias invisíveis é o meio para sair da
escuridão e “iluminar” um mundo medido pela norma masculina. Recuperar o seu passado
de opressão e discriminação, curando profundas feridas deixadas por esse passado. Este
processo dá-se como um reescrever da história ao reconstruir imagens apagadas e borradas
que é o pressuposto epistemológico para este novo sujeito que emerge (MUSSKOPF, 2005,
p. 32-33)

Para além de uma perspectiva feminista, proponho também uma perspectiva de gênero na
discussão, visto que a história de Tamar não será discutida isoladamente, mas sim em sua relação
com Judá, Her, Oná e Selá, bem como em conexão com as regras e valores do contexto,
considerando que para Scott (1996, p. 14), o “gênero é um elemento constitutivo de relações sociais
baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, o gênero é uma forma primeira de significar as
relações de poder” (LEMOS, 2006, p. 86).
Nesse sentido, a discussão do tema se propõe como uma possibilidade de reflexão no
sentido de respirar utopias de vidas de mulheres que se recusam a ser administradas pelas
instituições patriarcais e teimam em fazerem-se presentes, abrindo alternativas de análise que
dialoguem com experiências semelhantes, construindo uma reflexão bíblica que expresse essa
“experiência gozosa e dolorosa de ser mulher na igreja e na teologia dos homens” (PEREIRA,
1997, p. 8).
Para acessar a história das mulheres em um documento tão patriarcal quanto a bíblia, uma
“terra dos direitos do HOMEM” (SCOTT, HÉBRARD, 2014, p. 121), na qual há uma hierarquia de
gênero na simbologia cristã identificada às figuras masculinas e à razão masculina (GEBARA,
2006, p. 139), que está ligada à um contexto igualmente patriarcal visto que a “história permanece
configurada pelo sistema no qual se elabora” (CERTEAU, 1982, p. 69), se faz necessário “escovar a
história ao contrário” (...), “ler os testemunhos às avessas, contra as intenções de quem – ou das
instituições que - os produziu” (GINZBURG, 2002, apud BENJAMIN, p. 43).

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Nesse sentido é que proponho uma leitura à contra pelo da bíblia como método
investigativo para compreender essa perspectiva de gênero na narrativa do Antigo Testamento e
visando destacar as histórias das mulheres que transgrediram as imposições do patriarcado e se
rebelaram à condição de subalternas, como o caso de Tamar.
Assim, a metodologia da presente discussão está em conexão com o objetivo de Carlo
Ginzburg (1991) em “História Noturna”, onde se propunha “investigar comportamentos e atitudes
de grupos subalternos ou pelo menos não privilegiados, como os camponeses e as mulheres” (p.
10), tendo como foco não somente as histórias desses subalternizados, mas suas histórias a partir de
seus pontos de vista, atentando-se às “atividades e aos comportamentos dos perseguidos” (p. 11)
daqueles e daquelas que situam-se nas margens da comunidade.
Diante do exposto, a história de mulheres subversivas e que se prostituem não deixa de ser
também uma história noturna, de mulheres perseguidas e marginalizadas. Manter viva as histórias
dessas mulheres é construir possibilidades de exercício de poder por mulheres marginalizadas hoje -
percebendo Tamar como uma personagem representativa, considerando essa representatividade
como as “formas institucionalizadas e objetivadas graças as quais uns “representantes” (instancias
coletivas ou pessoas singulares) marcam de forma visível e perpetuada a existência do grupo, da
classe ou da comunidade” (CHARTIER, 1990. p. 23) -, visto que “se aqueles que morreram
contribuíram positivamente para a autoestima e resistência das pessoas de hoje, a lembrança deles
os mantém e preserva vivos após sua morte, em outras palavras, na consciência histórica os mortos
continuam vivos” (RUSEN, 2009, p. 201-202).

Uma protagonista no livro dos patriarcas

Tamar é marginalizada no documento do Antigo Testamento, sua história se apresenta em


poucos parágrafos das dezenas de páginas do livro de Gênesis e em pouquíssimas outras referências
ao longo do documento. Assim, é preciso encontrar as histórias dessas mulheres subversivas sempre
nas entrelinhas e nos panos de fundo, pois essas personagens ficaram excluídas dos escritos que se
limitavam a abordar os grandes homens da história, como afirma François Hartog (2014)
o rei marca e as tradições reais, que têm seus especialistas, hábeis em manipular as
categorias da cultura, funcionam como referência, até mesmo como história para a elite.
Uma vez colocado e estabelecido esse quadro geral, o que acontece em relação aos súditos?
Os estudiosos ressaltaram muitas vezes sua própria ignorância quando interrogados sobre
“o costume” ou sobre a “história” desses sujeitos, como se esses vivessem aquém da
consciência histórica (...) elas (a história dessas pessoas) constituem os anais comuns dos
pobres. (p. 53)

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Porém, com o advento da história cultural, conforme coloca Roger Chartier (1990),
emergiram “novos objetos no seio das questões históricas” como as atitudes perante a vida e a
morte, as crenças e os comportamentos religiosos, os sistemas de parentesco e as relações
familiares, os rituais, as formas de sociabilidade” (p. 14), nesse sentido, o historiador faz um
“desvio para a feitiçaria, a loucura, a festa, a literatura popular, o mundo esquecido dos camponeses,
a Ocitânia, etc, todas elas zonas silenciosas” (CERTEAU, 1982, p. 80), assim como a prostituição, o
adultério, a sexualidade da mulher, dentre outros objetos que não tinham visibilidade nas pesquisas.
A importância de rebuscar histórias de mulheres em uma narrativa predominantemente patriarcal
consiste em dar visibilidade para as possibilidades de ação de mulheres em contextos de opressão,
considerando que
As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e
práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros,
por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios
indivíduos, as suas escolhas e condutas. Por isso esta investigação sobre as representações
supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de concorrências e de competições
cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação. As lutas de representações
tem tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos
quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que
são os seus, e o seu domínio. Ocupar-se dos conflitos de classificações ou de delimitações
não é, portanto, afastar-se do social — como julgou durante muito tempo uma história de
vistas demasiado curtas —, muito pelo contrário, consiste em localizar os pontos de
afrontamento tanto mais decisivos quanto menos imediatamente materiais (CHARTIER,
1990, p. 17).

Infelizmente, não é possível resgatar na íntegra a história dessas mulheres e de todos os


sujeitos que foram invisibilizados historicamente. Já pautava Johann Gustav Droysen (1808) que
Não conhecemos objetivamente o passado, mas podemos, por meio das fontes, produzir
dele apenas uma concepção, uma visão, uma contraimagem, e de que as visões e
concepções adquiridas e adquiríveis desse modo são tudo o que podemos saber do passado
(p. 42) (...) então ficamos a par do quanto são superficiais e suspeitas as nossas informações
acerca de tempos remotos, e de como a visão que podemos ter dos mesmos é
necessariamente lacunar e, em certos pontos, limitada (...) são resquícios do que aconteceu
(p. 43).

Sendo assim, o que as fontes nos possibilitam é trazer a tona vestígios dessas mulheres,
recortes possíveis de suas histórias que nos permitem conhecer sua existência – seja como
existência material, como mito ou representação popular - e estratégias de resistência, visto que “a
vida cotidiana do passado e os comportamentos individuais das massas pobres ou marginalizada
pela sociedade institucionalizada deixaram vestígios que podem se revelar desviantes” (LEVI,
2000, p. 97). Essa tarefa certamente se constitui de um desafio, considerando a falta de documentos
acerca da história de mulheres, como descreve Giovanni Levi (2000)
que a dimensão do papel feminino, a solidariedade entre as mulheres e a influência direta e
indireta exercida pelos maridos e sobre os filhos não deixaram muito mais do que

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fragmentos que podemos utilizar apenas como uma série de alusões a algo que, pelo menos
em nível de uma única comunidade, é difícil descrever e avaliar (p. 238).

Sob esse viés de análise, é importante levar em conta que genealogia da bíblia tem
linhagem patriarcal. Essa genealogia deve se lida como denúncia, pois ela faz a crítica dos
messianismos que se constroem na exclusividade dos homens como protagonistas em processos
históricos e sociais. Em contrapartida, essa genealogia também tem o lugar de anúncio da boa nova
que nasce do corpo da mulher jovem e pobre, mulheres estrangeiras, donas de seu corpo, que
assumem seus desejos e sexualidade e assim entram na história de seu povo como as transgressoras,
empobrecidas, mentirosas, sedutoras e atrevidas (PEREIRA, 1997).
Além de se apresentar com uma estrutura predominantemente masculina, a narrativa
bíblica busca justificar essa ordem social patriarcal e colocar a inferioridade das mulheres como
algo necessário para manter os padrões hierárquicos ainda vigentes nas relações de gênero. Sendo
assim, é preciso ler os discursos bíblicos com desconfiança e cuidado de análise, para encontrar nas
entrelinhas a história das mulheres antigas (FUCHS, 2000), para perceber o “não dito” que para
Certeau é “ao mesmo tempo o inconfessado de textos que se tomaram pretextos, a “exterioridade
daquilo que se faz com relação àquilo que se diz, e a eliminação de um lugar ou de uma força que se
articula numa linguagem” (1982, p. 68). Faz-se necessário então, subverter a história dos homens
para construir-se (sub)versões da história das mulheres na narrativa bíblica e, dessa forma,
reivindicar para todos e todas aqueles(as) que ficaram em segundo plano na história a voz que lhes
foi negada (EXUM, 1993).
Ao focalizar a história de uma mulher subversiva que faz justiça diante da injustiça de um
patriarca, proponho a construção de um “paradigma outro” de leitura do documento bíblico,
conforme propõem Walter Mignolo (2003). Essa proposta é válida, mesmo não se tratando de um
objeto de estudo específico da modernidade desde a colonialidade, conforme coloca o autor em suas
discussões para aplicação desse conceito. Visto que a modernidade e a colonialidade em conjunto
com uma perspectiva eurocêntrica e a sobreposição da cultura ocidental à oriental construíram uma
percepção estereotipada a respeito do povo hebreu, conforme coloca Edward Said (1990) de que “o
oriente era quase uma invenção europeia e fora desde a Antiguidade um lugar de romance, de seres
exóticos, de memórias e paisagens obsessivas, de experiências notáveis, estava agora
desaparecendo” (p. 13).
Ou seja, o orientalismo vem sendo construído “como um estilo ocidental para dominar,
reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente” (p. 15). Sendo assim, se faz necessário um
“pensamento outro” à luz de Kahtibi; “uma língua outra”, conforme coloca Arteaga; “uma lógica

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outra”, de acordo com Dussel, enfim, “um paradigma outro”, que para além de ser somente mais
um, sobretudo, seja uma perspectiva de pensamento crítico. (MIGNOLO, 2003, p. 27) a respeito da
narrativa bíblica, do oriente próximo e da história de Tamar.

Poder que não pertence ao patriarca: Exercício de poder por uma mulher protagonista da
própria história

Conforme é possível perceber na história desenrolada na fonte, Tamar é uma mulher que
aparece como marginalizada, sem direito de decisão sobre sua própria vida e seu destino. No
contexto que permeia a história, o destino de Tamar estaria nas mãos de Judá, um patriarca que
mesmo tendo consciência de estar sendo injusto com sua nora e de estar descumprindo a lei do
Levirato, ainda assim se coloca na postura de condenar Tamar à morte.
Tamar é marginalizada não somente por ser viúva e por se utilizar da prostituição, também
é marginal por ser estrangeira, “embora a narrativa bíblica não seja suficientemente clara sobre sua
origem, deixa transparecer que ela é cananéia, ou seja, filha do povo da antiga região da Palestina e
sem linhagem ou sangue dos patriarcas e matriarcas bíblicos que chegaram da Mesopotâmia”
(ANDRADEI, 2011, p. 2). Além de, possivelmente, ser de um povo considerado estrangeiro, Tamar
claramente é estrangeira à família de Judá, considerando que visivelmente não é considerada parte
da família do patriarca e que enquanto não tiver vínculos de casamento ou de maternidade com sua
família ela não tem o direito de permanecer em sua casa. Esse aspecto fica evidente no trecho da
narrativa bíblica em que Judá, após o falecimento de Onã, ordena que Tamar vá para casa de seu pai
e aguarde lá até que Selá tenha idade suficiente para engravidá-la.
A respeito da questão de Tamar ser estrangeira, é preciso ter em conta a presença de uma
menção a um culto estrangeiro aos Hebreus presente na narrativa da fonte, essa menção se expressa
no uso da palavra que o Antigo Testamento faz em dois dos versículos do capítulo 38 do livro de
Gênesis para se referir à prostituta no hebraico, a palavra é qedesha que se refere à “prostituta
sagrada”; diferente de zonah que seria a prostituta que não tem relação com culto às deusas da
fertilidade da mitologia cananeia. A qedesha seria então essa prostituta que “trabalha por conta de
um santuário” (CHOURAQUI, 1990, p. 135). Sérgio Aguiar Montalvão (2009) também afirma que
no caso da narrativa de Tamar, em gênesis 38, aparecem ambos os termos já citados, tanto qdshah -
nos versículos 21 e 22 -, quanto zonah - nos versículos 15 e 24 -, na perspectiva do autor, isso pode
indicar que o termo zonah, em algumas narrativas, pode estar ligado a questões cultuais e
ritualísticas.

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Especificando melhor a questão da prostituição sagrada, Stephanie Budin (2008) faz uma ampla
discussão a respeito do tema e suas diversas formas de expressão. Dentre outras questões, a autora
pontua que, de acordo com o “Anchor Bible Dictionary” a prostituição sagrada se refere àquela relação
sexual praticada com “estranhos” nos arredores do santuário. Essa prática tinha caráter de ritual,
tendo sido tolerada e organizada pelo sacerdócio, como forma de fomentar a fecundidade e
fertilidade, sendo que o dinheiro recebido por essas prostitutas servia de fundo para os templos. Já
no “Dictionary of the Ancient Near East”, podemos compreender as raízes dessa prática na
Mesopotâmia, onde Inana / Ishtar podia ser considerada como a deusa protetora das prostitutas e,
essa atividade estava organizada assim como outras tarefas femininas, bem como aquelas
desempenhadas pelas parteiras e enfermeiras.
Para a autora, a prostituição sagrada seria a venda do corpo de uma pessoa para fins
sexuais onde uma parte (se não todos) os fundos ou bens recebidos com essa prática pertencem à
uma divindade. No antigo Oriente Próximo, esta divindade é normalmente representada por
Inanna/Ishtar entre mesopotâmicos, ou Astart e Aserá entre os cananeus, já na Grécia é geralmente
Afrodite. Além dessa expressão, a prostituição sagrada também pode se expressar pela prática de
mulheres e homens que são prostitutas(os) profissionais e consideradas(os) propriedade de uma
divindade ou santuário ou ainda, quando se é prostituta por um período limitado de tempo antes do
casamento ou em determinados rituais (BUDIN, 2008).
De fato, percebemos que a existência de mulheres que serviam como sacerdotisas em
templos de deusas e deuses cultuadas(os) na Mesopotâmia tem registro numa fonte importante
atribuída a esse povo, mostrando que essa questão estava presente na organização social da
mesopotâmia, já que o Código de Hammurabi traz leis especificas sobre as condições do direito de
herança dessas mulheres:
§ 180 Se um pai não deu um dote à sua filha, nadῑtum de um gagûm ou sekretum, depois
que o pai morrer ela receberá dos bens da casa paterna uma parte como a de um herdeiro:
enquanto ela viver terá usufruto, mas sua herança é de seus irmãos.
§ 181 Se um pai consagrou a deus (sua filha) como nadῑtum, qadištum ou kulmašῑtum e não
lhe deu um dote de presente, depois que o pai morrer, ela receberá dos bens da casa paterna
1/3 de sua herança; enquanto viver, ela terá usufruto, mas sua herança é de seus irmãos
(BOUZON, 1992, p. 172-173).

Essas práticas de prostituição sagrada realizadas em culto a deusas estrangeiras – deuses


que não são Iahweh – foram muito combatidas entre os hebreus, porém nunca desapareceram
totalmente dentre eles e, inclusive, alguns hebreus são punidos por se envolver com prostitutas
sagradas (CHOURAQUI, 1990, p. 135). Fica evidente em diversos textos bíblicos, principalmente

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no livro de Oseias e em alguns trechos de Jeremias, a presença do culto a deuses e deusas cananeias
e mesopotâmicas entre os hebreus e a tentativa de combatê-los.
No caso de Judá, esse fator agrava sua situação, pois ao considerar que Tamar seria uma
qedesha ele deliberadamente se envolve diretamente com o culto a uma deusa estrangeira, atitude
esta que é enfaticamente condenada na crença hebraica que tem Iahweh por deus único. Já Tamar,
ao praticar um culto estrangeiro aos hebreus - mesmo que de forma análoga para conquistar seu
objetivo de fazer justiça diante de Judá – está desafiando a estrutura patriarcal local em dois
aspectos: no âmbito micro, do patriarca Judá, e no âmbito macro, do deus soberano Iahweh.
Para combater esses cultos estrangeiros entre os hebreus e principalmente perpetuar um
culto exclusivo à Iahweh – marginalizando assim as deusas da região - é que a identidade desses
hebreus passou por um processo de construção calcada em diversas regras de conduta e valores que
podem ser encontrados na narrativa do Pentateuco, essas leis e padrões não estão impostos somente
à Tamar e as demais mulheres, mas se impõem sobre todos os israelitas, visto que estão submetidos
às decisões de Iahweh por meio dos patriarcas das tribos do lugar. Esses padrões que são impostos
pelo convencimento e pelas crenças, mas também por meio da coerção e da ameaça de punição
podem ser observados também no recorte da história que fala sobre Onã, o cunhado de Tamar.
Sob diversos aspectos, a Bíblia nos revela a importância da perpetuação da espécie e do
aumento da prole para os patriarcas, logo, entende-se que práticas sexuais que não se enquadravam
neste contexto eram discriminadas, sendo que atualmente ainda observamos resquícios desse
dilema. A questão do pecado de Eva e a glorificação da maternidade de Maria, por exemplo, nos
leva a compreensão de que o sexo era – e considerando essas representações, ainda é – permitido
somente para a procriação (LEMOS, 2006, p. 99). Sendo assim, a eliminação do sêmen em práticas
sexuais que não obedeciam a este princípio fundamental tornou-se pecado mortal, conforme
observamos no ocorrido com Onã que foi castigado com a morte por derramar seu sêmen na terra
para não engravidar Tamar. É a partir desse relato que se origina o termo “onanismo”, utilizado pela
medicina no século XVIII para descrever um comportamento sexual inadequado, capaz de gerar
repercussões negativas e, inclusive, podendo ser considerado como patológico (GAI; ROCHA,
2013, p. 210).
Colocando em discussão a questão de a história de Tamar se passar em um contexto
patriarcal, é preciso compreender que “O patriarcado Clássico caracterizou-se por uma estrutura de
poder piramidial, onde os pais possuíam o poder de posse e decisão (leia-se: poder de vida e morte)
sobre as mulheres, os filhos, os servos, os escravos” (TOMITA, 2006, p. 150-151), isso fica claro

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na narrativa da história de Tamar e Judá, quando o patriarca ordena que queimem Tamar viva por
sua “má conduta” e somente depois de Tamar ter provado - ao mostrar o cajado, o selo e o cordão -
a legitimidade do que fez é que ela foi considerada justa. No caso de Judá, mesmo ele tendo
reconhecido sua atitude de má fé para com a nora, não há relatos de nenhuma punição a qual o
mesmo tenha sido submetido.
Fica claro na narrativa que o poder exercido por Judá sobre Tamar é dirigido ao corpo dela,
como já coloca Foucault (1987, p. 22) sobre “dar aos mecanismos da punição legal um poder
justificável não mais simplesmente sobre as infrações, mas sobre os indivíduos; não mais sobre o
que eles fizeram, mas sobre aquilo que eles são, serão, ou possam ser”. Nesse sentido, Tamar é
condenada a ter seu corpo queimado para ser punida, uma punição que envolve a humilhação, a dor
e a morte. Somente quando consegue provar ter sido justa, colocando em dúvida a própria
honestidade de Judá, é que ela livra-se da punição.
Os fundamentos do patriarcado clássico da antiguidade se estendem até os dias atuais, visto
que “as religiões de tradição judaico-cristã são conhecidas por exercerem uma moral sexual
rígida(...). O cunho patriarcal dessas religiões até hoje nos surpreende pela rigidez com que
procurou controlar o corpo e a sexualidade das mulheres” (TOMITA, 2006, p. 150). Além de que as
repercussões de marginalização das deusas da sexualidade e fertilidade - ocorrida nesse processo de
tentativa de construção de um monoteísmo Javinista – se estendem até a modernidade, em um
contexto onde nas religiões cristã, muçulmana e judaica não há referenciais femininos no sagrado e,
por conseguinte, as mulheres inseridas nessas tradições também vivenciam a marginalização a que
as deusas antigas foram submetidas.
Partindo para a discussão do fragmento que temos de Tamar, para compreender a
possibilidade de exercício de poder por uma mulher em uma sociedade patriarcal, é preciso dar
vistas, novamente, ao que coloca Michel Foucault (1987)
Ora, o estudo desta microfísica supõe que o poder nela exercido não seja concebido como
uma propriedade, mas como uma estratégia, que seus efeitos de dominação não sejam
atribuídos a uma “apropriação”, mas a disposições, a manobras, a táticas, a técnicas, a
funcionamentos; que se desvende nele antes uma rede de relações sempre tensas, sempre
em atividade, que um privilégio que se pudesse deter; que lhe seja dado como modelo antes
a batalha perpétua que o contrato que faz uma cessão ou a conquista que se apodera de um
domínio. Temos em suma que admitir que esse poder se exerce mais que se possui, que não
é o “privilégio” adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto de
suas posições estratégicas — efeito manifestado e às vezes reconduzido pela posição dos
que são dominados. Esse poder, por outro lado, não se aplica pura e simplesmente como
uma obrigação ou uma proibição, aos que “não têm”; ele os investe, passa por eles e através
deles; apóia-se neles, do mesmo modo que eles, em sua luta contra esse poder, apóiam-se
por sua vez nos pontos em que ele os alcança” (FOUCAULT, 1987, p. 30).

Ainda sobre a questão do exercício de poder, segundo Lagarde (1993, p. 154)

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o poder é a capacidade de decidir sobre a própria vida e também a capacidade de decidir
sobre a vida do outro, de intervir em fatos que obrigam, circunscrevem ou impedem. Quem
exerce o poder se arroga o direito ao castigo e ao postergar bens materiais e simbólicos.
Dessa posição domina, sentencia e perdoa. A afirmação de Lagarde sobre o poder
assemelha-se à de Weber (1999, p. 43), ao enfatizar que “poder significa a probabilidade de
impor a própria vontade, dentro de uma relação social, mesmo que contra toda resistência e
qualquer que seja o fundamento dessa probabilidade” (LEMOS, 2006, p. 85).

Nesse sentido, a atitude de Tamar de utilizar a prostituição como estratégia para gerar os
filhos que, em seu contexto, lhe eram de direito – e dever -, pode ser considerada uma forma de
“poder inédito”, ou seja, o poder “que não esperávamos”, “aquele que não é garantido por nenhuma
instituição e que traduz uma influência imprevista sobre a realidade social” (REVEL, 2000 apud
LEVI, 2000, p. 32). O sucesso de Tamar em seu intento de fazer justiça não é garantido por
nenhuma instituição, muito menos é previsto na realidade social do patriarcado Hebreu, é garantido
apenas pela astucia de Tamar que miraculosamente planeja cada detalhe de sua estratégia para
chegar a seu objetivo final sem sofrer nenhuma das punições a que estava sujeita, como a de ser
queimada publicamente por ter prostituído-se ou fornicado, logo, o exercício de um poder inédito
foi a recompensa de Tamar e a vergonha de Judá, visto que “o poder (ou certas formas de poder) é a
recompensa daqueles que sabem explorar os recursos de uma situação, tirar partido das
ambiguidades e das tensões que caracterizam o jogo social” (REVEL, 2000 apud LEVI, 2000, p.
33).
Tamar “coloca em xeque o poder patriarcal e permite uma leitura que mostra que a mulher,
apesar de toda a cultura opressiva, sempre conseguiu achar formas de chegar aos seus objetivos,
mesmo que à custa de sofrimento, luta e ardis” (GAI; ROCHA, 2013, p. 212), para além disso, “a
iniciativa de Tamar acaba sendo a salvação da genealogia de Judá, cujo maior temor era ficar sem
os filhos. Ao gerar gêmeos, a mulher que foi a ameaça da progenitura de Judá acaba sendo a sua
salvação” (GAI; ROCHA, 2013, p. 213).
Os elementos que aparecem na narrativa da história de Tamar também trazem uma
importante conotação e podem ser interpretados em sua representatividade simbólica (CHARTIER,
1990, p. 20) para demonstrar o exercício de poder por Tamar. Um dos significados do cajado
portado por Judá “é a liderança da tribo, podendo designar o líder que dirige seu grupo”, uma
representação do poder soberano (CHARTIER, 1990, p. 195) de Judá. Quando o cajado está na
posse de Tamar, o significado que ele adquire torna-se ainda mais eloquente: é como se, pelo prazer
sexual, Judá renunciasse sua liderança e a passasse para as mãos de Tamar (ANDRADEI, 2011, p.
5).

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Já no que diz respeito ao selo, este é empregado “para garantir e proteger o transporte das
mercadorias, vinhos, azeites, frutas cristalizadas, objetos manufaturados, acondicionados em jarras
ou caixas seladas com sinete da fábrica que os expedia por via terrestre ou marítima”
(CHOURAQUI, 1990, p. 111). Esse Selo, muitas vezes se apresenta “na forma de amuleto de
argila, faiança, metal ou pedra semipreciosa” e para além de imprimir a marca do patriarca sob
mercadorias também pode servir para “proteger seu portador das influências nefastas e
proporcionar-lhe o influxo das bênçãos divinas” (CHOURAQUI, 1990, p. 111). Nesse sentido,
Tamar exige de Judá os objetos que o identificam e simbolizam sua autoridade e, assim, ela garante
uma prova de acusação que aponte Judá como pai dos filhos que ela gesta ao mesmo tempo em que,
simbolicamente, se apropria de seu poder.
Considerando o exposto, por meio deste processo de “rebuscamento” da história, é possível
“dar à luz novas imagens, antes não vislumbradas por causa da intensidade de forças que desfocam
ou ofuscam suas formas” (MUSSKOPF, 2005, p. 36), trazendo Tamar para o protagonismo de sua
própria história e desvelando sua existência como símbolo de resistência, autonomia, de exercício
de poder e justiça.

Considerações finais

Revelar o protagonismo de mulheres no Antigo Testamento consiste de um grande desafio,


visto que encontramos apenas vestígios e recortes de suas histórias, as quais não são o centro da
narrativa e da perspectiva bíblica. A história de Tamar possibilita essa construção por, de certa
forma, narrar sua perspectiva e suas estratégias singulares de enfrentamento diante da situação que
lhe oprimia e ameaçava. É preciso considerar que a história de Tamar é representativa de diversas
outras que foram vivenciadas ao longo do tempo desde a antiguidade e de histórias que são
vivenciadas atualmente por mulheres que são julgadas e condenadas cotidianamente por valores
morais patriarcais e que visam dominar e reprimir seus corpos e sexualidades.
Tamar, personagem, mito e símbolo é representatividade de uma subversão inspiradora
para historiadoras, feministas e para todas as mulheres que buscam na história os vestígios de
resistência do grupo social com o qual se sentem identificadas. Contar a história de Tamar é escovar
a história a contra pelo e desconstruir as bases patriarcado em sua essência.
Por fim, penso que compreender as relações de poder é importante e necessário, entender
que o poder se dá sempre em relação e não pertence a um determinado sujeito ou grupo social que

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deliberadamente o exerce sobre outro grupo ou sujeito que está submetido a essa relação, nesse
sentido, mesmo que alguns tenham mais possibilidades e garantias de exercer poder do que outros,
esses outros também têm possibilidades e estratégias próprias que lhes permite criar condições de
lutar por seus direitos, efetivar seus anseios e transformar situações nas quais se encontram em
desvantagem ou injustiçados.
Espero que essa tentativa de desvelar a história de Tamar possa se constituir em uma
possibilidade e também em uma inspiração para tirar do silenciamento as vozes dos oprimidos do
passado, as vozes daquelas e daqueles que precisam contar a sua história por meio da história.

Referências

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The Story of Tamar: a widowed, prostitute and subversive woman!

Abstract: Tamar is a character from a hebrew myth that is present in chapter 38 of Genesis, in the
Old Testament. The said myth narrates an episode in which this character plays the protagonist,
along with her father-in-law, a Jewish patriarch called Judah. In this episode, Tamar uses a practice
considered alien and condemned by the Hebrews, known as “sacred prostitution”. Tamar, placed as
a foreigner and a widow, puts herself as a sacred prostitute as a strategy to bear the children that
were hers by right and duty to assure her late husband’s posterity. Even in an essentially patriarchal
context, described by the Old Testament in its extremely masculinist narrative, that makes women
invisible and puts them as sinners and impure, Tamar represents resistance and feminine
subversion, once she is more just than the patriarch Judah, and, in a certain way, she is able to make
justice and decide her own story’s ways.
Key words: Old Testament; Hebrews; Patriarchy; Subversion

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