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O Processo - Franz Kafka

Franz Kafka, escritor theco nascido em Praga no dia 3 de julho de 1883, é


considerado um dos principais expoentes da literatura do século XX. Kafka nasceu
em uma família judia da classe média residente em Praga, até então pertencente ao
Império Austro-Húngaro, foi educado em duas línguas (alemão e tcheco) e cresceu
sob as influências de três culturas: a judaica, a tcheca e a alemã, tendo produzido
nesta última os seus escritos principais. Seu crescimento ficou marcado pela
presença rígida do pai, um abastado comerciante judeu, de forma que na obra de
Kafka a figura paterna passou a ser associada à opressão e à aniquilação da
vontade humana.
Formado em Direito, Kafka foi funcionário da companhia de seguros italiana
Assicurazioni Generali, pelo período de quase um ano. O campo jurídico por si só
nunca provocou demasiada empatia sobre o autor, porém, dada a ampla gama de
profissões as quais ele teria acesso, acabou optando por esta área, que se tornou
assunto regularmente abordado em sua obra, principalmente quando trata da
atomização que o indivíduo sofre por parte do aparato burocrático estatal. Teve vida
emocional conturbada, passando por vários noivados e amores infelizes; tais
circunstâncias acentuaram o sentimento de solidão e desamparo, amplamente
explorados em sua obra, através de características atribuídas aos personagens.
Ficou conhecido por explorar em suas obras as situações de absurdo
existencial, desenvolvidas em ambientes que mesclam sonhos e pesadelos, fatos
corriqueiros e acontecimentos de improvável realização, cujas tramas são marcadas
por extrema fuga da realidade e por situações que beiram à loucura. Kafka é um
autor de difícil enquadramento literário, ou seja, não se pode facilmente dizer que ele
pertence a determinada escola de pensamento da literatura, mas uma de suas
características é a exploração do complexo conceito do absurdo, raciocínio que
nega a ideia de que exista uma relação de causa e consequência entre duas
situações ocorridas, e que portanto demonstra a inabilidade humana de encontrar
significados para os fenômenos que presencia, apesar da tendência que as pessoas
têm de tentar fazê-lo. Ademais, nega o absurdismo que a acepção de divino
realmente faça parte da realidade, que existam objetivos na vida humana ou que
tenhamos nascido para cumprir com alguma finalidade específica escrita
previamente por uma entidade divina, ou seja, inexiste destino ou caminhos
estabelecidos ex ante, o que existe é a aleatoriedade e a falta de razão dos
acontecimentos. Tais assuntos são comumente explorados nas principais obras do
autor: A Metamorfose, O Castelo e O Processo, bem como na de outros escritores
renomados como o francês Albert Camus (em O Mito de Sísifo e no renomado O
Estrangeiro) ou o filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard, o qual, embora explore
temáticas típicas do absurdismo, adota um ponto de vista vinculado à religião e ao
reconhecimento de sua necessidade.
Afligido pela tuberculose, Kafka submeteu-se a longos períodos de repouso a
partir de 1917. Em 1922, largou definitivamente o emprego que tinha – depois de
uma série de pedidos de férias – e, excetuadas algumas breves temporadas em
Praga e Berlim, passou o resto da vida em sanatórios e balneários. Kafka morreu em
3 de junho de 1924, em Kierling, perto de Viena.
'O Processo' (KAFKA, Franz. O Processo. 1.ed. São Paulo: Martin Claret,
2002) foi escrito entre 1914 e 1915, tendo sido publicado postumamente e sem que
houvesse sido concluído, abordando aspectos individuais e sociais como a
alienação, o choque entre o indivíduo e a burocracia estatal, a brutalidade
psicológica e física praticada sobre as pessoas, imotivadamente ou sem que se
possa ter acesso aos motivos. A obra pode ser considerada um clássico para o
Direito pelo fato de que a vida do personagem principal está irremediavelmente
dependente da organização legal do país onde se passa a narrativa, sendo o
impacto inicial causado no personagem em decorrência da prática judicial de atos
legais, a progressiva pressão que recai sobre ele à medida que se desenvolve o
processo, a alteração de sua rotina devido à aflição sofrida e até mesmo os
momentos finais da narração encontram-se determinados pelas ações dos agentes
detentores do poder judicial, os operadores do direito. Isso traz um vasto campo de
interpretação da obra pelo ponto de vista jurídico: a análise dos limites toleráveis da
expansão do poder estatal (assunto de filosofia do direito), a razoabilidade ou não do
sofrimento causado ao réu pela mera existência de um processo penal (assunto de
criminologia), a existência ou não de abuso de poder por parte dos agentes públicos
que surgem no decorrer da obra (matéria de direito administrativo), a infração ou não
das liberdades negativas do indivíduo (direito constitucional), a nulidade ou
legalidade do processo em si e dos atos processuais praticados por magistrados e
agentes públicos (assunto de direito processual penal) etc.
O livro, originalmente escrito em alemão, é composto por dez capítulos:
Capítulo I - Prisão. Conversa com a senhora Grubach. Depois com a menina
Bürstner; Capítulo II - Primeiro interrogatório; Capítulo III - Na sala de reunião vazia.
O estudante. As repartições; Capítulo IV - A amiga da menina Bürstner; Capítulo V -
O verdugo; Capítulo VI - O tio – Leni; Capítulo VII - Advogado. Industrial. Pintor;
Capítulo VIII - O comerciante Block. K. Dispensa os serviços do advogado; Capítulo
IX - Na catedral; Capítulo X – Fim. Personagens: Joseph K., personagem principal;
Fräulein Bürstner, vizinha de Josef K. que aparece em algumas partes do livro e é
beijada por este; Frau Grubach, proprietária da pensão onde Josef mora; Tio Karl, tio
de Josef, que o indica um advogado e vai com ele procurá-lo; Senhor Huld, o
Advogado, profissional pouco eficiente que representa Josef durante o processo;
Leni, enfermeira do Senhor Huld que se torna amante de Josef; Rudi Block, outro
dos clientes do advogado Huld; o pintor Titorelli, pintor da corte de Napoleão; Sr.
Ross, religioso que encontra Josef na catedral e oferece ajuda.
Começa a obra com o episódio de detenção do personagem Josef K., que no
dia em que completa 30 anos, acorda vendo pessoas estranhas no quarto e na sala
do local onde se hospeda, e, quando tenta se livrar da presença de tais pessoas e
ausentar-se do local, é informado por uma delas que não podia sair pois estava
detido. Os guardas, como tais pessoas se apresentam, recusam em falar a Josef
qual seria o teor da acusação que pende sobre ele, limitando-se a dizer que corre
contra Josef um processo e que será ele informado de tudo na devida altura. Já
surge nas primeiras páginas da obra uma demonstração do universo
incompreensível que permeia os textos de Kafka, havendo também revelações
sobre aspectos jurídicos e sociológicos daquele local, quando se declara que o
personagem principal vive num Estado que se assentava no Direito e onde a paz
reinava por todo o lado, havendo também tutela jurídica do direito à propriedade,
quando os guardas propõem a Josef que deixasse com eles os bens de que
dispunha para serem colocados em depósito até que findasse o curso do processo.
Após os acontecimentos preliminares, o ambiente de contradições
permanece, com Josef tentando novamente saber por que havia sido detido e os
agentes públicos se negando a explicá-lo, limando-se a declarar que as autoridades,
antes de darem uma ordem de prisão, tiram minuciosas informações acerca da
pessoa a ser detida e dos motivos da detenção, não havendo possibilidade de
engano. Após, adentra a residência o inspetor da polícia responsável por
acompanhar o processamento do caso, porém, após entrevista na qual nada se
pôde elucidar sobre as razões da detenção, o que juridicamente afronta várias
garantias individuais que deveriam existir em um Estado Constitucional, declara o
inspetor que Josef ficaria liberado para voltar ao trabalho no banco, pois a detenção
não o impediria de cumprir com suas obrigações habituais nem alterava o curso de
sua vida.
Josef era empregado em um banco, ocupante de cargo relativamente
elevado, e até a quebra de rotina provocada pela notícia da detenção, que
contraditoriamente não previa o isolamento e a transferência do detido para uma
prisão, tinha o costume de frequentar uma cervejaria, visitar amigos e a seu chefe,
todos do quadro de pessoal do banco, o que demonstra certa limitação de contatos
e de espaço onde se concentram suas relações interpessoais, além das visitas
semanais a Elsa, jovem que se alternava nas funções de camareira e de meretriz. O
fecho do capítulo um dá-se com a volta de Josef do trabalho diretamente para casa,
onde entra em contato com as personagens Senhora Grubach e senhorita Bürstner,
a qual tem com Josef uma conversa sobre o ocorrido da manhã, que acaba com um
beijo tomado por Josef, além de ter ele tomado conhecimento da presença, na sala
contígua ao quarto de Bürstner, do sobrinho da Senhora Grubach, chamado Lanz,
que lá residia pois não havia outro lugar disponível.
A estranheza do primeiro capítulo, com a sucessão de atos policiais e judiciais
dos quais o investigado não pode compreender, demonstra parte da atmosfera
anormal característica dos livros de Kafka, aliado à sensação de inquietude e de
desconforto que é causada no leitor à medida que se desdobram os acontecimentos.
O segundo capítulo não se inicia de forma menos incongruente, sendo Josef
informado pelo telefone que deveria comparecer num dia de domingo em
determinado endereço para que se fizesse o interrogatório, sem que lhe fosse
passado o horário e a forma de chegar à sede física do tribunal de justiça.
Encontrado o local, tampouco se poderia considerá-lo como uma corte judicial, pois
na galeria, que quase chegava ao teto, amontoavam-se muitas pessoas que, por
falta de espaço, eram obrigadas a manterem-se curvadas e a baterem no teto com
as costas e a cabeça, e, na sala que seria do juiz de direito, havia uma pequena
mesa, e por detrás desta estava sentado um homem baixo e gordo (o magistrado)
que nesse momento conversava ofegante no meio de gargalhadas, com um outro
que se encontrava de pé, as pernas cruzadas e apoiando o cotovelo nas costas da
cadeira do seu interlocutor. Na mesa havia um livro de apontamentos que fazia
lembrar um velho livro escolar deformado à força de tanto uso. Tal era o livro onde
havia dados sobre o processo. Tal era o ambiente do Tribunal de Justiça...
Josef K., irritado o suficiente pelo processo e pela situação vexatória de ter
sido detido sem o conhecimento do porquê, assume no Tribunal a conduta de
insubordinação e de desacato a agentes públicos, desde os policiais e o inspetor até
o próprio juiz e à estranha sede do Tribunal, pois, embora não tivesse naquele
momento a liberdade de saber por qual razão era processado, sentiu-se livre para
injuriar o próprio juiz, o qual fora chamado de petulante e velhaco, à frente da
assembleia, sem que disso houvesse qualquer punição ou repreenda.
O terceiro capítulo demonstra um pouco mais do sistema jurídico surreal
vigente no país de Josef K. Este, no início do capítulo, percebe que não havia sido
comunicado sobre nenhuma nova audiência a que deveria comparecer. Decide,
portanto, ir por si próprio ao Tribunal para ver o que estava acontecendo e como
estava a seção. Na entrada, vê a mesma mulher responsável por uma interrupção
da audiência que teve naquele mesmo órgão dias antes, e, em conversa com ela,
descobre que, nas mesmas salas em que dias antes ocorriam as audiências,
interrogatórios e demais atos judiciais, agora havia camas, colchões e travesseiros,
pois, segundo ela, nos momentos em que não há expediente forense, a sede do
Tribunal é usada como dormitório de pessoas comuns, o que se dá não por
caridade, mas por falta de espaço para organizar separadamente cada ambiente.
Tal mulher permite a Josef adentrar uma sala onde continha alguns livros de uso
quotidiano do juiz, para que ele tivesse contato com normas jurídicas, pois até então
não lhe houvera sido permitido isso. Porém, a única coisa que pôde encontrar
dentro dos livros de doutrina eram desenhos obscenos e estórias de literatura, sem
nenhum tipo de texto que o remetesse a qualquer ordenamento legal. Isso expõe o
caráter insensato do modelo social dentro do qual o livro de Kafka fora concebido,
pois, vivendo em um Estado Constitucional, é retirado de um indivíduo, que está
sendo réu em um processo penal, o direito de saber o teor da acusação, de
defender-se adequadamente, de conhecer o ordenamento jurídico e de saber qual
conduta penal deve evitar. A irrealidade do livro realmente beira à loucura, pois em
nenhum regime dito constitucional e pacífico os direitos de um cidadão poderiam ser
tão amplamente cerceados.
Após, a mulher que o acompanhava, que era casada com o porteiro, passa a
insinuar-se para Josef, inclusive dizendo a ele que se compadece com a situação
deste e que o pode ajudar exercendo influência sobre os agentes públicos com os
quais ela mantém contato. Um elemento fundamental e amplamente explorado no
livro é a corruptividade da burocracia estatal, onde, não podendo uma pessoa
processada penalmente conhecer do processo para regularmente se defender,
consegue ela, se possuir contatos suficientes, convencer juízes e servidores
públicos a melhorar a sua situação processual, sem que isso seja tido por anormal e
prejudicial à legitimidade do estado. A corrupção, assim como o aparato burocrático
estatal e o desrespeito a direitos individuais, parece ser institucionalizada no livro de
Kafka.
Em certo momento, enquanto conversava com a mulher do porteiro, surge um
estudante de direito que passa a encará-la para que esta se despedisse de Josef e
fosse até o rapaz, que a iria tomar sexualmente e depois a entregar ao juiz de
instrução, o qual estava em outro local, uma repartição da justiça que se localiza em
um sótão, para finalidade que o texto não explicita. Aqui também se explicita a
corruptividade total e desenfreada do sistema estatal existente no livro. Tais desvios
de conduta não parecem ser mal vistos por ninguém: com ele são coniventes juízes,
servidores públicos, cidadãos comuns como Josef e mesmo jovens estudantes, os
quais dentro do sistema se aproveitam dos costumes ou mesmo são alienados de
seu caráter desumanamente prejudicial, como é o caso do próprio Josef. Após a ida
da mulher, chegou à sala onde Josef estava o marido da pessoa raptada. Este o
levou até as repartições da justiça e no caminho conheceram outros acusados, que
demonstravam as mesmas debilidades, inseguranças, alienações,
desconhecimentos e descrenças que Josef quanto ao sistema de justiça existente.
Ele acaba desistindo de chegar até o juiz, principalmente depois de ser atacado por
uma vertigem causada pelo ambiente estranho e asfixiante onde se encontravam, e
acaba sendo removido dali com o auxílio de outros servidores públicos.
No quarto capítulo mostram-se as tentativas de Josef em contatar a senhorita
Bürstner, porém sem sucesso. Após deixar para ela cartas e comunicados, e dizer
que a esperaria no domingo, recebeu de Montag, a amiga dela, um recado para que
se encontrassem no refeitório para tratar de assuntos relativos a Bürstner. Entrando
no refeitório, Josef e Montag apresentaram-se e esta lhe falou que deveria tratar
com ela os assuntos que tivesse para com Bürstner, pois esta estava indisposta e
não iria vê-lo. Josef preparava-se para sair do refeitório com Montag quando chega
Lanz e, parando para cumprimentá-la, acaba causando em Josef um desinteresse
pela conversa que teria com ela. Decide então sair sozinho do refeitório,
despedindo-se dos dois, e voltar imediatamente a seu quarto, mas no caminho,
como não havia mais ninguém no corredor, vai até o quarto de Bürstner e bate a
porta. Por não receber resposta e ficar irritado por estar sendo ignorado, empurra a
porta de uma vez e percebe que o quarto estava vazio, o que indica que Bürstner
havia saído silenciosamente enquanto Josef estivera no refeitório, opta ele
finalmente por voltar a seu quarto, mas percebe que Montag e Lanz o observavam
enquanto saía do quarto de Bürstner.
No quinto capítulo, enquanto Josef trabalhava em sua sala e quase não havia
mais ninguém no banco, ouviu barulhos provenientes de uma sala que até então
nunca tivera adentrado. Ao aproximar-se da porta, por continuarem os barulhos,
decidiu abri-la e viu os dois guardas que estiveram em seu quarto à época da
detenção sendo torturados por uma espécie de carrasco que se valia de um açoite.
Os policiais, ao virem Josef os observando, disseram que ali se praticava uma
punição pelo fato de Josef ter se queixado, para o Tribunal de Justiça, do
procedimento dos guardas no dia da detenção. Josef disse que não pretendia a
punição de ninguém, havia apenas se queixado rapidamente perante o juiz, mas não
com o fim de fazê-los ser torturados. Tentou por fim subornar o açoitador, o qual não
se submeteu e disse que a punição teria de ser aplicada. Saiu da sala para impedir a
entrada de outros funcionários que vinham atraídos pelos gritos. No entanto,
prometeu a si próprio trazer a coisa ainda à discussão e, na medida das suas forças,
castigar os verdadeiros culpados, os altos funcionários, dos quais nem um tinha
ousado aparecer. No outro dia tal fato ainda o perturbava no trabalho e o deixara
improdutivo. Esse cenário indica o quão distorcido e autoritário era o modelo de
estado existente no contexto criado por Kafka: funcionários sendo torturados sob
amparo legal, contratação de carrascos para praticar ações atentatórias a direitos
individuais após receberem ordem judicial para isso, desproporcionalidade brutal na
aplicação de punições e sanções. Além disso, a recusa do acoitador em aceitar
suborno, analisada paralelamente com a fácil submissão de altos funcionários (como
juízes e despachantes) ao recebimento de propina demonstra a contraditoriedade e
a concentração da corrupção em certas alas e sobre certos grupos do sistema
estatal. Apesar de descrever o país como pacífico e o modelo jurídico como
constitucional, a distorção de finalidade das normas e o peso da influência do estado
sobre a vida das pessoas comprovam a tendência de Kafka de preocupar-se com o
crescimento e com a burocracia do poder público, e como isso prejudica e condena
a liberdade do indivíduo.
No sexto capítulo, estava Josef ocupado em seu escritório quando nele
aparece seu tio, um pequeno proprietário rural chamado Karl, que chegou
solicitando uma conversa reservada com seu sobrinho, onde questionou já aflito a
existência do processo movido contra Josef. Pelo temperamento natural de tio Karl,
quanto mais este perguntava sobre o processo, mas nervoso ficava e mais alto se
expressava, de forma que suas perguntas já eram ouvidas pelos funcionários das
outras salas e Josef teve que sair do banco com ele para continuarem conversando.
Fora do banco, propôs Karl que seu amigo advogado Huld assumisse a causa, e
partiram os dois até a casa de tal jurista, tendo Josef declarado que aceitava a
representação e que não sabia que em tais casos o auxílio advocatício era possível.
Chegando à casa de Huld, os dois foram recebidos por Leni, a enfermeira.
Esta informou que Huld estava de cama, adoentado, o que não impediu Karl de ir
procurá-lo casa adentro até encontrá-lo em seu quarto reclamando de problemas
cardíacos. Os velhos amigos se cumprimentaram, falaram da doença e de Josef.
Huld aceitou representá-lo, mesmo não estando em condição física ideal para isso,
disse que permanece em contato com vários funcionários da justiça e que tal contato
pode vir a beneficiar seus clientes. Nesse momento, informou que tinha em sua casa
naquele momento uma visita, apontou para um local pouco iluminado de seu quarto,
de onde saiu um funcionário do setor de despacho do Tribunal de Justiça. Essa
pessoa era chefe da seção, vivia em contato com magistrados e demais juristas e
sua influência sobre o processo poderia beneficiar Josef. Depois de apresentado, o
servidor judiciário passou a dialogar com o juiz e com Karl, e, embora a situação de
Josef pudesse melhorar caso ele se empenhasse em demonstrar que compensaria
ser ajudado pelo chefe do setor de despachos, preferiu Josef ficar divagando e
desconcentrando-se da conversa, pensando na enfermeira, a qual, tinha ele
percebido, ficava a fitá-lo antes de sair do quarto e deixar os três conversando. Já
entediado com toda aquela conversa, Josef resolve sair do quarto, e, no corredor,
veio Leni a seu encontro e levou-o ao escritório de Huld.
Cada um deles demonstrava flagrante interesse pelo outro, e no escritório
reservaram algum tempo para comentar o retrato de um juiz de instrução, que se
encontrava fixado à parede, para então ficarem juntos na cadeira do advogado.
Após, Josef pegou com Leni uma cópia da chave da casa de Huld e saiu do local. Lá
fora, enquanto chuviscava, parou ao lado de Josef o automóvel de seu tio, que o
admoestou por ter desaparecido no meio da conversa com o chefe de despachos,
que poderia ajudar no processo.
Diferentemente do que se passava no ânimo de Josef nos primeiros capítulos,
demonstra o de número sete, que ele passou a ficar fatigado pela preocupação pelo
desenrolar da ação. O início do capítulo o descreve em seu escritório, sem que
conseguisse trabalhar em decorrência da aflição. Pensava em redigir ele mesmo
uma defesa processual, onde exporia todo o seu histórico de vida, pois, não tendo
acesso à acusação, talvez uma biografia que relatasse todas as suas principais
condutas ao longo da existência, com eventuais desculpas e explicações para
aquelas que pudessem ser consideradas ilegais, pudesse servir como uma
contestação eficaz para impedir um desfecho negativo do processo penal. A ideia do
processo já não o abandonava, e ia lentamente perdendo a confiança no advogado
constituído, pois este, nas reuniões com o cliente, limitava-se a ficar divagando, dar
conselhos inúteis ou não prestar contas adequadamente. Até aquele momento a
única atitude do defensor foi a de começar a escrever um requerimento, que
poderia, segundo ele, nem vir a ser lido pelo Tribunal, o que ocorria ocasionalmente.
Caso fosse lido, talvez causasse uma boa impressão um bom texto técnico, pois
essa seria a primeira manifestação do advogado nos autos e o curso do processo
poderia ser mudado, mas o efeito causado por tal manifestação ainda assim não
seria tão forte quanto aquele produzido no interrogatório, oportunidade desperdiçada
por Josef com insultos ao juiz e à legitimidade do Tribunal. Como não era
obrigatória a publicidade dos atos processuais, a importância do interrogatório
residia em explicitar, através das perguntas, o teor da acusação, o que muito
ajudaria o trabalho da defesa. No fundo, segundo o advogado, a lei inadmitia
inclusive a defesa, mas a tolerava em determinados momentos processuais.
Outras das características do sistema judicial foram sendo reveladas pelo
advogado, por exemplo, a justiça procurava anular o quanto possível a atuação do
procurador do réu, para que este ficasse ao seu próprio risco, de forma que o
defensor não tinha acesso às atas dos interrogatórios, nem sequer podia
comparecer neles junto de seus clientes. O que era realmente determinante na
atuação do defensor era as suas relações pessoais, tais quais aquelas com os
juízes, serventuários e demais agentes judiciais, isso por si mesmo poderia delinear
o fecho do processo. Censurou Huld a Josef por este ter tido tão pouca amabilidade
para com o chefe dos despachos dias antes, pois tal pessoa, por sua influência,
poderia ser de imensa utilidade para um desfecho processual favorável a Josef. Isso
comprova o hermetismo e a corruptividade do modelo judicial do livro, onde
garantias fundamentais são ignoradas e acertos pessoais determinam o destino dos
indivíduos. Além disso, demostra-se a alienação dos personagens para com os
vícios da pesada burocracia, a falta de transparência, o desconhecimento de seus
próprios direitos e as consequências nefastas de tal sistema na vida das pessoas
comuns. As temáticas da alienação, da burocracia e da incompreensão do mundo
moderno são, inclusive, bastante presentes no modo de escrever de Franz Kafka.
Josef ficava desesperançoso quanto à atuação de Huld no processo, o qual
não prestava contas satisfatórias sobre o que exatamente estava fazendo para o
deslinde positivo da ação, e se limitava a dizer que existiam progressos, sem que os
especificasse. Por isso, enquanto estava no banco em um dia de trabalho, resolveu
iniciar por si próprio a redação de uma peça de defesa. As dificuldades de fazer uma
resenha autobiográfica apareceram imediatamente, e Josef, em meio ao trabalho
bancário, não conseguia desenvolver a peça. Para piorar, aparece um cliente do
banco com o objetivo de fazer negócios, o que toma o tempo, prolata o início da
escrita e também dificulta a atenção ao que o cliente dizia, eis que o processo
perturbava a concentração. Percebendo o flagrante desinteresse, o cliente vai com o
vice-diretor do banco, rival de Josef, à sala dele para tratar com ele do negócio,
deixando este sozinho. Ao voltar, diz a Josef que sabe da existência do processo,
por causa de Titorelli, um pintor que faz obras para ele e para funcionários da
justiça, deixando com K. o endereço do artista, o qual poderia prestar ajuda valendo-
se de sua influência sobre expoentes do sistema judicial.
Como tudo na narrativa gira em torno do exercício de influências pessoais
mais do que na busca por justiça, Josef saiu do banco e foi atrás do endereço. No
local, em área pobre e de complicado acesso, entrou na minúscula morada do
pintor, reconheceu que fora ele quem pintou o quadro localizado no escritório de
Huld e, após alguma conversa para adquirir confiança, pediu informações sobre sua
situação. Disse Titorelli existirem três tipos de absolvição: a absolvição real, a
absolvição aparente e a dilação indefinida. A absolvição real não era possível de se
conseguir, pois com a mera influência não se poderia ter acesso a ela e não havia
julgados conhecidos pelo pintor que tinham declarado tal espécie de sentença, de
forma que apenas existia nas lendas que corriam. Na absolvição aparente, há na
sentença um atestado de inocência, mas permanece o procedimento judicial, com as
sucessivas tramitações do processo entre as repartições, enquanto o tempo vai
passando e o acusado fica em liberdade. O trâmite nunca cessa, mas, enquanto
algum juiz não determina a detenção, por entender que a acusação é procedente, o
réu fica em liberdade. Com uma nova detenção, o processo começa de novo e
apenas existe a possibilidade de, com muito esforço e exercício de influência, se
conseguir nova absolvição aparente. A dilação indefinida significava a manutenção
do processo em uma das fases iniciais, através de permanente exercício de
influência sobre o juiz de instrução. Interessante como o processo penal no cenário
do livro constitui meio escravizador do acusado, pois, inexistindo a figura da
prescrição, o curso do processo na absolvição aparente e na dilação indefinida é
eterno e a vida daquele uma vez processado, mesmo nunca vindo este a saber as
razões do processo e o delito cometido, fica permanentemente vinculada ao curso
da ação, com todas as perturbações e angústias que ela gera no réu por sua mera
existência. O único meio de ser decretada de vez a liberdade é via absolvição real,
porém essa apenas existe em lendas urbanas, e portanto uma vez sendo réu em
processo na narrativa de Kafka, tal situação perdurará eternamente. Com tais
informações, Josef despede-se de Titorelli e volta não muito otimista para o banco.
No capítulo oito, decidido a dispensar os serviços de Huld, K. vai até a casa
deste, onde, antes de poder falar com o advogado, conhece e passa a conversar
com Block, comerciante e outro dos clientes de Huld que também era réu em um
processo penal. Da fala dele, percebe-se o quanto a vida de um acusado fica
vinculada ao seu processo. O de Block já tramitava há cinco anos e ele teve que
paulatinamente despender uma parcela maior de seu tempo para protelar uma
situação mais grave e exercer influência sobre órgãos judiciais, sofrendo pela aflição
da sua situação indefinida. Discute-se na doutrina e na filosofia a razoabilidade de
submeter o réu a um estado de sofrimento decorrente do processo que,
independente do resultado deste, já equivaleria a uma pena. No livro de Kafka tal
sofrimento é real, mas os personagens dele não têm consciência, devido ao seu
estágio de alienação (um dos conceitos mais explorados na obra), e por isso vão se
tornando escravos do sistema e dele não podem escapar. No quarto, Josef é bem
recebido mas tem dificuldade para comunicar a Huld a sua dispensa da função. Em
determinado momento, o advogado chama Block ao quarto, o qual, pela fragilidade
psíquica que o processo o causou, demonstra debilidade e total submissão ao
defensor, que o controla totalmente pelo medo que este tem de ser desenvolvida
nos autos uma situação desfavorável. Franz Kafka não chegou a concluir tal
capítulo, portanto não se sabe o desfecho da conversa. Do capítulo se extrai a
situação de humilhação e desesperança que um processo penal pode causar em um
de seus acusados, independente da aplicação de uma pena concreta ou de uma
eventual sentença absolutória.
No capítulo nove, Josef é encarregado de levar um cliente italiano do banco à
catedral da cidade para que ele conhecesse das peças artísticas do local. No dia e
local marcados, o italiano não apareceu e Josef ficou sozinho na igreja, quando
surge um cardeal e chama pelo nome dele, sem que antes se tivessem visto. Tal
religioso declara que havia providenciado a ida de Josef à igreja, afirma que está a
serviço da justiça (pois era o capelão que trabalhava junto ao cárcere) e que o
processo caminha mal, pois consideram que existe culpa e que deve sair a
condenação. Após menciona o eclesiástico uma teoria sobre a natureza da justiça, a
qual depois comenta e discute com Josef. No fim, este, ao depedir-se, pergunta se o
cardeal quer alguma coisa dele. Por sua vez, diz o sacerdote que pertence à justiça,
portanto não haveria de querer nada de outrem, pois sua função é acolher aquele
que dela se aproxima e deixá-lo ir que se deseja.
No capítulo final, o início assemelha-se ao capítulo um. Um dia antes de Josef
K. completar 31 anos, às 21h da noite aproximadamente, chegam à sua casa dois
senhores vestidos de sobretudo, os quais foram mandados para buscar K., que
estava arrumado e à espera de uma visita. A rua já estava às escuras, e enquanto
Josef era levado pelos dois senhores, passou por ele a senhorita Bürstner, que
seguiu por um caminho e não foi mais vista. Os senhores levaram K. até uma
pedreira fora dos limites da cidade. Despiram-no e acomodaram a cabeça dele em
uma pedra. Este chegara a apresentar resistência, mas não com força suficiente
para livrá-lo do perigo. Depois, um dos senhores abriu seu sobretudo e dele tirou
uma longa faca de fio duplo e ficou passando ela ao outro senhor, que a devolvia por
cima do corpo de Josef. Este, enquanto tentava observar as coisas em sua volta,
visualizou uma pessoa próxima a uma casa a certa distância da pedreira. Não sabia
se era amigo, alguém para socorrê-lo ou para participar de seu martírio. Nesse
momento, um dos homens segurou-lhe o pescoço enquanto o outro lhe espetava
profundamente a faca no coração e lá a rodava duas vezes. Moribundo, K. viu ainda
os homens muito perto do seu rosto a observarem o desfecho. “como um cão”,
foram suas últimas palavras.
A trama de Kafta demonstra a preocupação acentuada do autor com a
questão do sufocamento individual efetuado pelo aparato burocrático estatal e
inexistência de lógica e coerência nos acontecimentos cotidianos da vida de uma
pessoa. Tais características permeiam a obra e, principalmente quanto à primeira,
têm relevância jurídica por se constituir como crítica e tanto nos dias de hoje quanto
à época de escrita do livro as temáticas abordadas são relevantes na prática, o que
torna recomendável a leitura do escrito para fins de aprofundamento e adoção de
paradigma de análise. Hoje em dia O Processo é considerado uma das principais
obras do autor, ao lado de A Metamorfose, e continuará sendo importante à medida
que os assuntos tratados ainda podem pressionar e gerar perplexidade nas pessoas
de nosso contexto atual.

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