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Artigo recebido em

15/03/2014
Imprensa e Golpe de
Aprovado em
29/04/2014 1964: entre o silêncio e
rememorações de fatias do
MARIALVA CARLOS
BARBOSA
UFRJ
Professora Titular

passado
de Jornalismo da
Universidade Federal
do Rio de Janeiro
(UFRJ) e Professora
Titular (aposentada) da
Universidade Federal
Fluminense. Doutora em Marialva Carlos Barbosa
História. Vice-Presidente
da INTERCOM. Resumo
Pesquisadora 1 do CNPq. O texto procura mostrar a atuação da imprensa no período ditatorial brasileiro
email: mcb1@terra.com.br inaugurado em 1964, no qual ações de cooptação conviveram, lado a lado, com
estratégias de resistência. Aborda as estratégias memoráveis dos jornalistas que, no
futuro, constroem enredos narrativos sobre a ação da imprensa de forma a produzir
uma memória comum do grupo, privilegiando determinadas imagens nas quais
se sobressaem os valores profissionais. Mostrando a complexidade das relações
entre imprensa e poder durante o período, enfatiza ainda que alguns processos
históricos de transformação do jornalismo brasileiro – exacerbação das estratégias
de modernização da imprensa e valorização do jornalismo interpretativo – têm
como momento deflagrador a adoção de novos critérios redacionais e editoriais
implantados em função da censura.

Palavras-chave
Imprensa, Jornalistas, Memória, Golpe de 1964.

Abstract
The text shows the role of the press in the Brazilian dictatorship period that opened
with the coup of 1964 in which shares of cooptation lived side by side with strategies
of resistance. Discusses the memorable strategies of journalists that makes narrative
about the action of the press to produce a common memory of the group in the future,
favoring certain images in which excel professional values. Showing the complexity
of the relationship between media and power during the period, emphasizes even
some historical processes of transformation of Brazilian journalism (exacerbation of
modernization strategies of the press and enhancement of interpretive journalism)
when starts to adopt brand new redactional and editorial discretion implemented
according to the censorship.

Keywords
Estudos em Jornalismo Press, Journalists, Memory, The coup of 1964
e Mídia
Vol. 11 Nº 1
Janeiro a Junho de 2014
ISSNe 1984-6924

DOI: http://dx.doi.org/10.5007/1984-6924.2014v11n1p7 7
O
objetivo desse texto é e o processo de modernização da
mostrar que, como um imprensa, exacerbados na década de 1960,
processo complexo, encontraram eco favorável em função dos
as ações da imprensa limites impostos ao jornalismo no período
no período ditatorial, ditatorial. A ênfase à ideia de que cabia ao
inaugurado com o golpe de 1964, não jornalismo, tão somente, narrar, de forma
foram nem apenas uma história de distante, o que se passava no mundo,
resistências dos jornalistas (e de algumas construindo uma pretensa neutralidade
empresas) às forças militares que tomaram pode ser interpretada, portanto, como
o poder em 1º de abril de 1964, nem uma uma brecha narrativa construída pelos
história de cooptações, materializadas pela jornais para continuarem a desempenhar
autocensura generalizada, pelo silêncio seu papel e sua função junto ao público.
que se produzia em relação às ações mais Ao mesmo tempo, longe das polêmicas
violentas da ditadura ou pela aproximação que sempre marcaram o jornalismo
com os detentores do poder. brasileiro no longo processo de construção
Com a exclusão dos temas políticos histórica de suas narrativas, cabia agora
da imprensa diária – que construíam no novo modelo incluir a função de
historicamente a lógica discursiva das revelador de um mundo que não seria
publicações desde o século XIX – e com o conhecido, não fosse a sua interferência
aparente divórcio do grupo dos jornalistas providencial. Constrói-se, assim, na
das esferas de poder houve uma série de esteira do afastamento dos temas políticos,
reconfigurações no mundo do jornalismo, a exacerbação do valor investigativo do
das quais a exacerbação do movimento de jornalismo, que, evidentemente, daria
modernização da imprensa, iniciado na à atividade e aos jornalistas um poder
década anterior, e a eclosão do jornalismo simbólico tão importante quanto àquele
investigativo fazem parte do mesmo de viver nas cercanias do poder.
processo. Se, no passado, pode-se observar a
Nas páginas dos jornais, sobretudo construção de um silêncio significativo em
após a edição do AI-5, quando alguns relação a diversos temas políticos que não
foram submetidos aos ditames da censura eram noticiados, em função muitas vezes
prévia, enquanto outros aderiam à da autocensura – como, por exemplo,
autocensura como forma de sobrevivência as prisões e a existência de torturas e
(e subsistência), observa-se, cada vez mortes que atingiam os que combatiam
mais, destaque às matérias da editoria (ou procuravam) combater o regime –
internacional e das temáticas locais. no futuro, percebe-se que os jornalistas
Narradas na perspectiva da impessoalidade constroem um discurso comum do grupo
e da valorização do fato bruto distante de para justificar algumas posições (inclusive
qualquer viés opinativo constituíam-se na o silêncio). Por outro lado, num processo
produção de uma textualidade possível, seletivo da memória em busca por uma
decorrente do afastamento compulsório verdade significada hoje, e não no passado,
das análises políticas e da tomada de há o movimento constante de produzir
posição clara a favor (ou contra) dos o grupo, naquele momento, como um
grupos do poder. Os padrões redacionais corpo homogêneo, no centro da luta
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pela liberdade de expressão, defendendo ser jornalista. O medo de deixar de ser
os valores da democracia, sem dúvida, jornalista teria sido responsável pela
o valor profissional mais duradouro na generalização das estratégias de silêncio.
construção da identidade jornalística no Ser jornalista, nessas construções
Brasil. memoráveis, fazia parte da vida. E perder
Na prática nem esse grupo existia a função de jornalista significava a morte
como um corpo homogêneo, nem as suas em vida.
ações no passado – que tem no silêncio Em segundo lugar, na concepção das
compulsório, paradoxalmente, a marca memórias futuras e que, de certa maneira,
mais gritante da acomodação diante das justificam de maneira subterrânea o
ações da ditadura – indicam a existência silêncio está a hierarquia da profissão. Para
dessa luta. os jornalistas cabiam aos donos dos jornais,
Chama também atenção no jogo de aos dirigentes máximos das publicações a
construção memorável, a produção luta pelas liberdades democráticas e não
de uma memória do grupo, na qual aos que ocupavam posições intermediárias
destacam as ações que faziam, de maneira e de menor importância nas redações. Por
individual, para burlar a censura, usando, outro lado, esse mesmo argumento imputa
sobretudo, as técnicas jornalísticas e o aos donos de jornais a responsabilidade
conhecimento dos meandros da profissão. solitária pelo alinhamento promovido
Assim, as textualidades (redacionais e com os governos militares. O restante dos
editoriais) teriam sido usadas muitas vezes profissionais apenas teria assistido, sem
para denunciar a existência da censura ou participar diretamente, desses jogos de
para burlar as regras de cerceamento da apoio.
liberdade de expressão. Em terceiro lugar, como produção
No discurso construído no futuro, três memorável do passado sobressaem
posições dominantes sobressaem. Em descrições de cenas, ações dos jornalistas
primeiro lugar, justificam a apatia diante que teriam se rebelado contra o regime
dos limites impostos à atividade porque, e, com isso, sofrido diretamente
para eles, o mais importante era defender a consequências perversas. A ação
sua posição como jornalista, preservando destemida (ou perigosa ou contrária
o emprego. Essa preservação não tinha às determinações dos altos escalões
motivação imediata e cotidiana (salário, das empresas jornalísticas), sempre de
posição, condições de sobrevivência, natureza individual, se constitui como
família, etc.), mas o valor simbólico do um enredo narrativo mostrando como
os jornalistas cumpriram com o valor

A arma utilizada deontológico da profissão de lutar pelas


liberdades democráticas exercendo o
para se insurgir que qualificavam como o papel mais

contra a ação direta


importante da imprensa.
A arma utilizada para se insurgir contra

da censura era, a ação direta da censura era, sobretudo,


o texto. Através de recursos possíveis
sobretudo, o texto na produção dos jornais – redacionais e
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editoriais – teriam revelado para o público S. Paulo de publicar espaços em branco
a existência da censura e os limites da denunciando a ação da censura ou cartas
liberdade de informar a que estavam dos leitores ou poesias nos lugares de
submetidos. onde as matérias originais foram retiradas
Entretanto, como eles mesmos admitem e as colunas em branco da revista Veja
no futuro, as mensagens cifradas muitas aonde apenas o símbolo da editora Abril
vezes não foram compreendidas. A se sobressaia também se constituem em
rigor, os jornalistas estavam construindo emblemas da resistência da imprensa,
documentos de memória da atuação do construídos não apenas para serem lidos e
grupo, mostrando que o texto e os recursos interpretados no passado, mas, sobretudo,
do que qualificavam como verdadeiro no futuro. Atestam pelo valor do
jornalismo poderiam ser utilizados como documento a ação da imprensa censurada.
armas possíveis, mas, sobretudo, como Assim, ao falarem desse tempo pretérito
documentos da sua insubordinação. destacam-se nas vozes dos jornalistas as
É nessa condição que as páginas das artimanhas que construíam para burlar a
publicações são lembradas no futuro: censura através das técnicas jornalísticas e
atestando o envolvimento imputado a do conhecimento profundo que possuíam
quase toda a imprensa (e aos jornalistas) da profissão. As estratégias editoriais e
de repudio à ditadura. As páginas das o conhecimento textual seriam, assim,
publicações se transformam em emblemas armas de luta.
históricos das épocas. Logo após o AI-5, o Jornal do Brasil viveu
um curto período de censura prévia (10
dias), adotando em seguida a autocensura.
Enredo 1: a ação destemida
Bilhetinhos e telefonemas informavam os
dos jornalistas, o texto temas que não poderiam ser publicados.
como arma Inicialmente a censura ficava a cargo
das Forças Armadas, mas num segundo
Quando o tema é a atuação da imprensa momento passou a ser de responsabilidade
brasileira no período ditatorial de vinte do Ministério da Justiça e, finalmente, da
e um anos inaugurado com o Golpe Polícia Federal. A censura à imprensa e
de 1964, algumas páginas dos jornais aos meios de comunicação perdurou, com
e as estratégias redacionais e editoriais intensidade variada, de 1969 a 1978.
dos jornalistas que construíram esses Falando do período da censura prévia
documentos memória do cerceamento no JB, Alberto Dines, então editor
das liberdades democráticas são quase do jornal, relembra com minúcias as
que naturalmente lembradas. A edição ações de produção do jornal que se
do Jornal do Brasil de 14 de dezembro de transformariam em emblema da tomada
1968, anunciando o AI-5, e a edição do de posição dos jornalistas contra a
mesmo jornal, de 12 de setembro de 1973, censura. O conhecimento que possuía dos
noticiando, sem manchete, o golpe militar processos produtivos (em contraposição
do Chile, são apenas dois exemplos (ainda ao total desconhecimento dos censores)
que dos mais marcantes). foi a brecha encontrada para que pudesse
As estratégias editoriais do Estado de publicar “coisas muito visíveis, dando a
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entender (para o público) que os jornalistas edição que é considerada histórica.
Lembram? A previsão do tempo
não estavam mais no controle”. Enfrentar
que ficou famosa: ‘Nuvens negras...
a censura, usando como arma o texto ’ Foi realmente espetacular (Alberto
aparece nas falas dos jornalistas como a Dines. Depoimento. In: ABREU,
LATTMAN-WLTMAN e ROCHA,
ação mais recorrente da imprensa, mas,
2003, p. 97).
sobretudo, aquela da qual eles mais se
orgulham.
Também Carlos Lemos, o subeditor
Vieram com muita educação, do jornal lembrado por Alberto Dines
fardados e desarmados. como tendo atuação direta naquela edição
Apresentaram-se e avisaram
que passariam a acompanhar a
que fora construída como emblema para
notícia (...). Eles recebiam cópias o futuro, relembra aquele momento,
das matérias e nós lhes levamos as destacando o orgulho por ter feito o
provas das páginas – naquela época
o jornal era composto embaixo, na que considera o bom jornalismo. Em
oficina, onde se tirava uma prova contraponto à fúria dos militares (refutada
para as revisões finais. Podiam com palavras, colocando-o em posição de
mexer, mas não executaríamos
as modificações pedidas, porque enfrentamento), a certeza de que tinha
não sabiam que se alterava a prova feito um belo trabalho.
na oficina. Descobriram isso 24
horas depois, fizemos o diabo. No No dia seguinte, 9 horas da
jornal inteiro, até nos classificados, manhã, eu volto para a redação,
publicamos coisas muito visíveis, e na sala do diretor Lywall Salles,
dando a entender que os jornalistas dois milicos me dizem: ‘O senhor
não estavam mais no controle. As nos enganou’. ‘Eu não, os senhores
5 h da manhã, dia claro, saímos eu assinaram todas as páginas. Se
e o Carlos Lemos, o meu segundo, alguém se enganou foram os
grande amigo e companheiro que senhores’. Ficaram quicando e,
comentou: ‘Fizemos uma edição em vez de oficiais do Exército,
histórica porque o Jornal do Brasil mandaram censores especializados
tomou uma posição’ (Alberto Dines, da polícia política do DOPS. Mas
editor do Jornal do Brasil, em 1968. essa foi uma página boa de fazer. Foi
Depoimento. In: Memória de bonito (Carlos Lemos. Depoimento.
repórter, 2010, p. 88). In: Memória de repórter, 2010, p.
89).
Em diversas entrevistas, Alberto Dines,
um dos responsáveis por uma das fases Outra página emblema de época – a
das reformas de modernização do Jornal do golpe militar no Chile, em 1973 – é
do Brasil iniciada na década anterior, lembrada com frequência como produto
relembra esse episódio. Algumas vezes é direto do enfrentamento realizado pelo
mais prolixo, como na declaração acima, grupo a partir das artimanhas textuais e
em outras é mais econômico nas palavras. das convenções narrativas da profissão.
Em todas, destaca o fato de ter conseguido
A qualquer momento eu não
enganar os censores a partir das resistiria. E isso aconteceu em
possibilidades narrativas do jornalismo. O setembro de 1973, na derrubada
texto passava a ser a arma do jornalista. do presidente do Chile, Salvador
E aí fizemos uma edição em Allende. Não tínhamos recebido
que enganamos os censores: eles nenhuma instrução e preparamos
diziam uma coisa, nós íamos à o jornal, evidentemente com a
oficina e fazíamos outra. E saiu uma manchete da morte dele. Estava uma

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boa edição. Fui para casa (...) ligaram Jornalistas de outras publicações, como
pra avisar de uma ordem da polícia
do Estado de S. Paulo que viveu um longo
proibindo o assunto do Chile na
manchete. Voltei (...). Estava presente período de censura prévia (de 1972 a
o vice-diretor Bernardo da Costa 1975), relembram também as estratégias
Campos, um homem de confiança
editoriais utilizadas para mostrar sub-
do Brito, nunca tinha se metido
com jornalismo, mas apareceu e repticiamente ao público que o jornal estava
estranhei. Falei que íamos cumprir sob censura. Se na época, poucos foram
estritamente o pedido. Pedi para
tirar a manchete: ‘Vamos fazer três os que entenderam o tom da mensagem,
ou quatro blocos, com o corpo maior no futuro as edições se constituem em
possível, contar essa história toda, exemplos que materializam a existência do
sem manchete, e essa história vai
servir de manchete’. No dia seguinte, regime de exceção.
bem cedo o Armando Nogueira,
da TV Globo, me ligou dizendo Quando a censura barrava,
que o jornal estava extraordinário, publicávamos outra coisa no lugar.
que o jornalismo brasileiro vivia o Não íamos comprometer a estrutura
seu melhor momento. Não esqueci da empresa. Minha primeira reação
os telefonemas e o impacto, não quando proibiram os espaços em
sobrou nada daquela edição. Mas o branco foi publicar cartas dos
Brito ficou chateadíssimo e assim leitores. Imaginei que entenderiam,
começou o fim (Alberto Dines. porque só publicávamos cartas aos
Depoimento. In: Memória de domingos. Mas não foi o caso, para
repórter, 2010, p. 92). você ver como nós, jornalistas e
intelectuais, não conhecemos bem o
público. Decidimos publicar poesia.
Em dezembro daquele mesmo ano, Qual foi a reação? ‘Muito bem, o
Alberto Dines seria demitido do Jornal do Estado agora difunde a cultura!’ Mas
continuamos. O Júlio Neto me dizia:
Brasil. Localizando as razões do que fora ‘Não adianta, eles não percebem. É
nomeado por Nascimento Brito, diretor preciso algo continuado’ (Oliveiros
Ferreira, secretário de redação do
geral do jornal, como “indisciplina”, no
Estado de São Paulo, de 1967 a
fato de produzir edições que mostravam 1978. Depoimento. In: Memória de
o descontentamento com o regime, o repórter, 2010, p. 84).
jornalista enfatiza, com orgulho, mais
uma vez, as edições emblemas de uma Mesmo os jornalistas que não ocupavam
época a partir de valores primordiais do cargos de direção relembram as estratégias
jornalismo. A arma que usara tinha sido as utilizadas para fazer das práticas
técnicas redacionais e editoriais, das quais jornalísticas armas de combate à censura.
se orgulharia no futuro. Percebi que só liam o começo
do texto. Dependendo do assunto,

Cabia aos liam tudo. Passei a escrever


matéria com a pirâmide invertida

proprietários dos ao contrário. O jornalista começa


com o mais importante, mas eu

jornais a decisão
abria com uma abobrinha e botava
o mais importante depois. Até que

de ser contra a
o cara percebeu (Ricardo Kotscho.
Repórter do Estado de S. Paulo, em
1968. Depoimento. In: Memória de
ditadura repórter, 2010, p. 83-84).

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Enredo 2: a luta deve ser baianinha muito valente, desceu
também. Fumava sem parar, deu
dos dirigentes bronca, etc. Nisso, saiu um tiro
que ficou muito tempo alojado
na entrada do prédio na Avenida
Se para os jornalistas a arma de luta Gomes Freire, 471. (Arthur Poerner.
contra a censura era a própria prática Depoimento. In: Memória de
repórter, 2010, p. 85).
jornalística, no discurso memorável
Apesar de frente à truculência muitos
enfatiza-se também a ação destemida de
terem calado, produzindo um silêncio que
algumas poucas publicações e, entre elas,
deixou ecos no futuro, destacam sempre
no caso do Rio de Janeiro, o Correio da
o orgulho de terem participado daquele
Manhã.
momento da história de um jornal que
O único jornal que dava uma defendia a democracia. Era a defesa de
ampla cobertura (do que acontecia
sob a ditadura) era o Correio da democracia que fazia deles verdadeiros
Manhã. A Ultima Hora também jornalistas.
dava, mas o Correio ia mais fundo.
A edição a respeito da Passeata Tínhamos a sensação de que
dos Cem Mil foi impressionante, todo o jornal e todas as editorias se
hoje nenhum jornal faria, seria empenhavam em criticar e derrubar
inimaginável. Os jornais hoje são a ditadura. O Correio da Manhã não
muito mais mercadoria. O Correio sentia medo, metia a cara. Enquanto
da Manhã se deu ao luxo de fazer sobreviveu teve dignidade. (...) Eu me
uma edição primorosa, com orgulhava de dizer: ‘Eu trabalho no
detalhes, e desempenhou seu papel Correio da Manhã. Sou do Correio
na luta pela democracia; isso era o da Manhã’. O jornal marcou bem
mais importante na época. Com uma a vida de muita gente. Os outros
Niomar Muniz Sodré era possível, não me marcaram mal, porque
porque ela tinha esse espírito eu não deixei. Não vesti a camisa
(Arthur Poerner. Depoimento. In: deles. Nos outros eu trabalhei; e no
Memória de repórter, 2010, p. 79). Correio da Manhã eu fui jornalista.
(Bertholdo de Castro. Depoimento.
In: Memória de repórter, 2010, p.
Assim, cabia aos proprietários dos 87)
jornais a decisão de ser contra a ditadura.
Os jornalistas apenas cumpriam ordens. A reação da imprensa (e dos jornalistas)
Portanto, a ampla cobertura do Correio foi, portanto, diversificada. Houve aqueles
da Manhã, a reação contra as prisões de que optaram por aceitar ordens que
alguns jornalistas, mesmo sob a ameaça chegavam à redação por meio de bilhetes
de ter a edição apreendida, era uma e telefonemas; houve os que de fato
prerrogativa dos quadros superiores da sofreram as consequências da censura
empresa, como no caso de Niomar Muniz prévia e houve aqueles que promoveram
Sodré, proprietária do jornal. um discurso de inclusão nas tramas da
Enquanto isso, policiais militares censura posteriormente a sua efetiva
invadiram o Correio da Manhã. existência. Para muitos jornalistas e
Dirigiram-se à redação, no terceiro para muitos jornais é mais interessante
andar. Peralva desceu para saber o
que acontecia, foi imediatamente construir uma história de destemor e lutas
algemado com as mãos para trás e do que revelar as aproximações que de fato
jogado num camburão. A Niomar,
alguns tiveram com o poder.
a dona do jornal, uma senhora
Havia censura da polícia e
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aquela que era feita através da A censura prévia exercida pelos censores
troca de favores. Os donos dos
enviados às redações foi aplicada de modo
jornais telefonavam para o governo
pedindo favores e assim também os pontual e, sobretudo, sem regras claras
governos se achavam no direito de (KUCINSKI, 2002, p. 534). Para o autor essa
telefonar para pedir que não fossem
falta de regras levou os jornais (e jornalistas)
publicadas certas notícias. É muito
importante estabelecer o seguinte: a adotarem cada vez mais a autocensura.
dos jornais diários brasileiros, Antecipando-se às ordens presumidas,
só quem teve censura prévia foi
a Tribuna da Imprensa que iria tentando adivinhar o que o regime não
completar 10 anos agora no dia 23 gostaria de ver publicado, jornalistas,
de outubro, o Estado de S. Paulo e editores e donos do jornal esmeraram-
o Jornal da Tarde por 20 meses.
Só, mais nada. Não houve censura se na autocensura, controlando de forma
prévia em nenhum outro diário antecipada e voluntária as informações
(Helio Fernandes. Depoimento
(KUCINSKI, 2002, p. 534-536). O exercício
(1978). In: MARCONI, 1980, p. 167).
generalizado da autocensura determina,
segundo o autor, o padrão de controle da
A apatia (ou a cooptação) fazia calar as
informação durante o regime autoritário,
informações sobre prisões, torturas e outras
sendo os demais métodos (censura
violações dos direitos humanos, sobretudo,
prévia e expurgos de jornalistas) muito
na fase mais aguda do regime ditatorial.
mais acessórios e instrumentais para a
Ainda que muitos argumentem que a
implantação da autocensura.
acomodação não se fazia por um processo
de introjeção da censura. Observa-se Tinha havido uma troca de tiros,
durante todo o período que mais violenta com a morte de uma líder (...) eu
fotografei o cadáver: era a loura dos
do que a censura (que não foi genérica, assaltos, procuradísisma. Ao lado,
nem atingiu indiscriminadamente todos havia um conjunto habitacional e
os órgãos de imprensa) foi a prática fui conversar com os moradores.
Encontrei uma senhora chorando.
voluntária da autocensura: seja por Davam-lhe água e ela me contou.
absoluto desconhecimento da amplitude ‘Moço isso é uma covardia,
trouxeram ela num carro, botaram
da exceção de um regime ditatorial que
aí e ela saiu correndo, gritando não
duraria vinte um anos, seja por desejar faça isso, não faça isso. Meteram bala
continuar dialogando e se aproximando e a mataram’. Eu escrevi tudo isso,
com depoimento de um e outro, de
do campo político. pessoas que viram tudo e entreguei
no jornal – não publicaram. Fui
Ficaram muito tempo no Estadão, conversar com o Carlos Lemos, o
em São Paulo. No Jornal do Brasil, subeditor, que disse: ‘Não, Jacob, um
o inspetor ligava e dava instruções. dia a gente vai fazer um livro e contar
Havia normas: o que não era proibido tudo’. Até hoje eu não vi. (Alberto
nós dávamos, algumas coisas muito Jacob, fotógrafo. Depoimento. In:
discretamente. O Jornal do Brasil Memória de repórter, 2010, p. 91).
não serviu ao governo militar.
Entretanto, não podemos considerar
Obedeceu as regras da censura.
Ninguém foi demitido. Alguns apenas como aderência voluntária ao regime
saíram porque fugiram, porque o medo prévio da censura. Buscando uma
quiseram e sofriam perseguição
explicação baseada na historicidade da
(Carlos Lemos. Depoimento. In:
Memórias de repórter, 2010, p. 90). constituição do jornalismo como prática
social e lugar de reconhecimento público,
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pode-se interpretar essa aderência de duas na área econômica, havia o esquecimento
formas: o valor atribuído ao exercício das perseguições, prisões, banimentos
da prática da profissão estar acima de e mortes dos que se colocavam contra o
regras deontológicas do grupo, como o regime. Mesmo hoje, o que os jornalistas
exercício livre do ofício e a obsessão pelos (e as empresas) rememoram como
valores democráticos; e a necessidade ação da imprensa são sempre histórias
(ou interesse) de continuar participando de luta e resistência num processo de
das esferas de poder, reproduzindo o enfrentamento aos ditames de um período
modelo de significação mais duradouro sem liberdades democráticas, como vimos
no jornalismo. Mas, ao ver apartado no item anterior.
de seu cotidiano os temas políticos, era No que diz respeito aos discursos
preciso produzir outro lugar simbólico de memoráveis dos jornalistas há uma
importância para a profissão: e esse lugar produção narrativa que ora enfatiza a ação
será, na década de 1980, a capacidade destemida de alguns, ora justifica a apatia
investigativa. e o silêncio em relação aos desmandos do
Mas no futuro, através dos jogos regime como forma de não ameaçar o seu
memoráveis, construindo uma lugar de jornalista. Qualquer ação que
imagem comum do grupo, dão outras pudesse significar deixar de ser jornalista
interpretações ao passado aonde sobressai era imediatamente rechaçada.
exatamente a luta indiscriminada em favor
dos valores democráticos, o bem simbólico Mas a atmosfera da redação
freia você, porque o jornalista é um
mais duradouro e mais reafirmado no jogo homem extremamente dependente
discursivo do jornalismo. do emprego. Não só do salário. É que
o jornalista é jornalista no fundo
A Passeata dos Cem Mil, por porque gosta, porque precisa ser
exemplo, na Avenida Rio Branco, jornalista. Ele tem um compromisso
parou na porta do Jornal do Brasil, com o imediato, com a ansiedade do
houve aplausos, e muitos jornalistas dia seguinte, com aquela ponte de
da redação participaram. O Jornal que falei, entre o ontem e o amanhã.
do Brasil tinha uma importância Ele vibra com aquilo, é como se
muito grande como veículo fosse uma atividade de arte dele.
democrático. O AI-5 é que foi Ele seria capaz de trabalhar até de
realmente duro, dramático (Alberto graça (Francisco Pedro do Coutto.
Dines. Depoimento. In: Memória de Depoimento ao CPDOC. Rio de
repórter, 2010, p. 79). Janeiro, CPDOC/Alerj, 1998).

O mesmo argumento também é


Enredo 3: é preciso apresentado por Augusto Nunes, jovem
repórter no início dos anos 1970, para
continuar sendo jornalista
justificar a aderência aos ditames da
Enquanto na Copa de 1970,
ditadura.
em pleno Governo Médici, os meios No primeiro momento, você se
de comunicação abriam espaços para considera o herói da resistência.
divulgar os resultados de um país que se Decide que vai escrever, e eles
cortam. O problema da censura
amalgamava sob o slogan “Brasil, Ame-o é que ela nos emascula, afoga na
ou Deixe-o” ou enaltecia os resultados de origem. Você escreve uma vez e
outra. Mas, quando vem a terceira
um “milagre” produzido de maneira irreal
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matéria com aquele lápis vermelho, é período da ditadura militar.
difícil continuar, vira teimosia. Não
Em depoimentos, edições
que se pratique a autocensura, mas
você se rende, não há nada que fazer comemorativas, entrevistas, dirigentes
(Augusto Nunes, repórter O Estado e jornalistas colocam em relevo as
de S. Paulo, em 1970. Depoimento.
perseguições, os ataques à liberdade,
In: Memória de repórter, 2010, p.
85). generalizando essas ações para toda a
Se do ponto de vista empresarial a imprensa. Há, em contraponto, silêncio
aproximação com os grupos políticos sobre muitos dos esquecimentos
(militares e civis) articuladores do golpe produzidos e sobre as ações de cooptação
representou, em muitos casos, ganhos ou, ao menos, de adaptação ao momento
econômicos e simbólicos, transformando de exceção em que se vivia.
empresas ainda incipientes em Há que considerar também os jogos
organizações que assumiriam a liderança construtores da memória, enquadrada,
no cenário midiático nacional (como silenciada, selecionada para produzir
foi o caso das Organizações Globo), ligas duradouras para um grupo social
para os jornalistas não falar no passado que, assim, edifica uma memória coletiva
e rememorar apenas fatias estratégicas comum, partilhando um passado
possui múltiplos significados. rememorado em uníssono e com marcas
Em primeiro lugar, mais importante que se repetem, se constituindo como
do que desempenhar o papel de vigilante grupo coeso e inscrito numa história
destemido das liberdades democráticas futura.
era para eles se adaptarem aos ditames Censura e autocensura
da época de forma a não colocar em risco
a profissão. Em segundo lugar, a marca Caracterizar a experiência ditatorial
identitária do jornalismo advinha de brasileira de maneira unívoca é produzir
sua aproximação com o campo político. uma interpretação equivocada do passado.
Historicamente, no Brasil, o jornalismo A alternância entre momentos de repressão
construiu sua importância e seu expressiva com outros em que vigorava
reconhecimento como lugar autorizado alguma liberdade decorria também do fato
pela simbiose entre imprensa e política, de ocupar o centro do poder determinados
de tal forma que os homens de imprensa grupos que disputavam o poder político nas
eram quase que naturalmente os homens Forças Armadas. A alternância entre esses
de poder. Não ter entre seus temas grupos (os que eram favoráveis ao extremo
dominantes as inferências e reflexões autoritarismo e aqueles que possuíam
críticas do mundo da política, significava pretensões democráticas) influenciou
perder a temática privilegiada, aquela que não apenas a força da censura frente aos
conferia a maior importância simbólica ao movimentos de expressão, como também
ser jornalista. produziu impacto na maneira como se
Portanto, a relação da imprensa com deu a transição do período ditatorial à
o campo político no caso brasileiro redemocratização (KINZO, 2007).
determinou, também, a forma como foi Da mesma forma, perceber a ação da
construída a memória futura da atuação censura durante o período militar significa
dos meios de comunicação durante o estabelecer nuanças em relação à forma
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como foi aplicada. Há que se considerar exerciam ao governo, aliada ao fato de
também que a memória construída sobre não estarem “informando e orientando
como se operacionalizava a repressão aos a população que os órgãos controlados
meios de comunicação é um trabalho pelos militares estavam empenhados em
de múltiplas significações, não apenas fazer frente à guerra revolucionária”, fora
referentes ao passado, mas, sobretudo, ao determinante para a mudança de rumo.
presente, com vistas ao futuro, como já O argumento frequentemente utilizado de
enfatizamos. que o país vivia uma guerra revolucionária,
Como lembra Aquino (2002), a censura da qual as manifestações estudantis e os
não foi nem unilinear, nem aleatória, nem atentados atribuídos a terroristas eram
atingiu da mesma maneira todos os meios as provas cabais justificava, na visão
de comunicação. Há que se considerar do governo ditatorial, toda a exceção
a idealização na forma como se percebe promovida pelo regime. Segundo a crítica,
a atuação da imprensa em períodos frequentemente repetida, a imprensa
de exceção e como a própria imprensa tratava de forma leviana temas explosivos
constrói posteriormente um discurso que eram expostos não de forma realista,
que prioriza a luta que empreenderam – mas “com exagero sensacionalista”
de maneira indiscriminada e genérica – (JOBIM, 1984).
contra a ação da censura. No contexto do final dos anos 1960, com o
Se no período logo após o Golpe a descontentamento diante das ações contra
forma de censura mais comum se fazia as liberdades democráticas, eclodiram
através de ordens expressas dirigidas diversos movimentos para expressar
às redações impondo a não publicação publicamente a oposição aos militares. O
de determinados temas, logo depois da ano de 1968 ficou marcado mais do que
edição do AI-5, em dezembro de 1968, como momento de contestação, como
passou a ser mais contundente, criando- marco de expressões múltiplas contra a
se mecanismos de controle que incluíam ditadura. Diversas manifestações tomaram
a censura prévia a algumas publicações. as ruas, sobretudo, nas duas maiores
O olhar discriminatório recaiu com mais cidades do país: a Passeata dos Cem Mil
intensidade sobre os jornais da chamada no Rio de Janeiro e a Batalha da Maria
imprensa alternativa1, enquanto poucas Antonia em São Paulo são instantes de
foram as publicações da grande imprensa visibilidade da contestação e que sofreriam 1- O nome imprensa
alternativa, também
que sofreram censura prévia. Além da dura repressão do governo, culminando chamada de nanica,
Tribuna da Imprensa, que esteve sob com a edição do Ato Institucional nº 5, era utilizado para
classificar mais
censura por quase dez anos, também os que instituiu poderes discricionários de de uma centena
jornais O Estado de S. Paulo e o Jornal da maneira generalizada em todo território. de publicações
que surgiram
Tarde ficaram sob censura entre 1972 e entre 1964 e 1980.
1975; A Notícia, de Manaus, entre 1975 e Opinião, Pasquim e
Isso é bom deixar claro Movimento foram
1978; e revista Veja em 1972 e entre 1974 e porque, para muita gente, já era a os periódicos mais
1976 (MAIA, 2002, p. 493-495). ditadura, mas nós nem tomávamos importantes entre
conhecimento. Pelo menos a minha esses jornais e
No depoimento de um dos mais revistas, muitas vezes
turma, a ala jovem do Estadão, não
importantes jornalistas do período, de periodicidade
se interessava muito pela política. incerta. Sobre o tema
Danton Jobim, a crítica que alguns órgãos Eu gostava mesmo era de sair à cf. Kucinski (1991).
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noite, naquela época de muita de fato houve muitos atos desumanos,
ebulição no Brasil. Tínhamos a
promovendo o extermínio sem tréguas dos
bossa nova, o Teatro de Arena, o
Teatro Oficina, os bares da Nestor opositores, como uma política deliberada
Pestana e o futebol. Eu adorava de Estado.
futebol. A ficha só caiu no dia 13 de
Há que se ter em mente também que
dezembro de 1968, quando estava
todo o mundo em volta do rádio, um regime político ditatorial só duraria
ouvindo um pronunciamento do vinte e um anos com o envolvimento e a
Costa e Silva. Pela reação dos colegas
mais velhos, eu vi que a brincadeira participação de múltiplas forças militares
tinha acabado (Ricardo Kotscho, e civis, nas quais a imprensa teve papel
repórter do Estado de São Paulo, em relevante. Não há possibilidade de um
1968. Depoimento. In: Memória de
repórter, 2010, p. 80-81). regime de exceção perdurar por tanto
tempo sem o respaldo social, que se
O movimento generalizado de consegue não apenas pela força, mas
autocensura na grande imprensa, da qual também pela criação do consenso.
participam não apenas os proprietários Nesse sentido, as sólidas relações e
dos jornais, mas também os jornalistas, apoios nos meios políticos, judiciários,
mostra que houve altíssimo grau de adesão empresariais, sindicais, universitários, da
dos meios de comunicação. A imprensa imprensa e das telecomunicações, como
foi complacente ou ignorou a sistemática remarca Marcelo Ridenti (2010, p. 289),
ação repressora, que resultou na morte foram decisivas para a manutenção do
de centenas de pessoas nas dependências regime. “Eis o tema-tabu que torna tão
militares do regime. Construiu também incômodo lembrar o período: uma parte da
em uníssono um discurso que destacava sociedade brasileira, por ação ou omissão,
os “milagres” econômicos do período e foi conivente com a ditadura” (RIDENTI,
negava o empobrecimento da maioria. 2010, p. 289).
Amplificou as glórias esportivas nacionais Os dados coletados pelo Projeto Brasil:
como se fossem de toda a população Nunca Mais e trabalhados de forma
(BARBOSA, 2007, p. 196). exaustiva por Ridenti (2010) mostram
que a ditadura nada teve de “ditabranda”.
Segundo o autor, levando-se em conta o
Considerações Finais total de processados pela Justiça Militar
por envolvimento com organizações
Nos últimos anos algumas interpretações de esquerda, estes teriam sido de cerca
equivocadas querem fazer crer que a de 800 pessoas. Já a soma dos mortos e
ditadura militar (ou civil-militar como desaparecidos por diversas atividades de
preferem alguns, ou ainda empresarial- oposição à ditadura chegaria a 396 seres
militar como preferem outros) não teria humanos, sendo que destes a maioria era
sido tão repressiva, se constituindo naquilo de jovens. A obra de Teles (2009) narra os
que o editorial polêmico da Folha de S. casos de 237 mortos e 159 desaparecidos
Paulo, de 17 de fevereiro de 2009, chamou políticos, num total de 396 pessoas. Faz
de “ditabranda”, numa alusão a não referência ainda a mais 30 mortes no
intensidade das ações repressoras. Essa exílio e outras 10 pouco antes do golpe de
interpretação não encontra justificativa: 1964, chegando a um total de 436 casos
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(RIDENTI, 2010, p. 293). são lembranças que devem permanecer
Esses números dão a dimensão do que encobertas. Lembranças para uns e zonas
representou a repressão aos que se opunham de sombra de não-ditos, como enfatiza
ao regime ditatorial. Por outro lado, há Pollack (1989), para outros, nesse caso os
que se considerar também que no período próprios jornalistas.
houve outras violências reais e simbólicas: O dito no futuro como memória revelada
dilapidação desumana das forças é o discurso comum de ações em favor da
produtivas, arrocho salarial, sindicatos liberdade de expressão. Mas no passado
sob intervenção, prisões arbitrárias, nível houve, sobretudo, o silêncio. O silêncio
degradante cada vez maior das cidades imposto pela censura, mas também pela
(ocupação desordenada do espaço urbano, autocensura e por normas que foram se
carências as mais diversas, do saneamento impondo (como a convenção narrativa em
básico à educação) e censura. torno do fato bruto, sem interpretações e
Portanto, nem a análise do período comentários) tiveram papel estratégico
ditatorial, nem a interpretação da relação para a prática jornalística. Mas como
da imprensa com os atores que assumiram também remarca Pollack (1989), os
a cena política são tarefas fáceis. Não silêncios são moldados pela angústia de
houve só resistência e nem só cooptação. ser punido por aquilo que se diz ou, ao
A rigor, houve as duas coisas. A imprensa menos, de se expor a mal-entendidos.
lutou e recuou. Alguns jornalistas se Assim, o silêncio imposto a
curvaram às ordens de silêncio, enquanto determinados temas no passado pelos
outros empreenderam lutas solitárias. Não jornalistas se transformam no futuro no
há um único movimento, nem uma única não dito. A fronteira entre o que é expresso
tomada de posição. como dizível apaga novamente o silêncio
Entretanto como um movimento que se do passado, construindo uma armadura
repete mais que é, de fato, pouco lembrado dupla para o esquecimento comandado
houve também conivência com a ditadura (RICOEUR, 2007). Além disso, falar hoje
por parte da imprensa. Mas essas ações do passado, recordando fatias daquele
precisam ficar sepultadas por camadas de tempo, é promover a construção dos
esquecimento. jornalistas como grupo coeso, portador de
A adesão ao silêncio no passado sobre o uma memória comum. Nesse caso, pontos
que de fato se passava no mundo próximo de referências são selecionados a partir dos
– com prisões, perseguições, torturas e valores mais duradouros. Para se construir
mortes; com presos enfileirados e com como grupo coeso e submetido aos
mãos na cabeça nos estádios de futebol, mesmos princípios éticos e profissionais
tal a quantidade após manifestações em é preciso esquecer fatias do passado. E
favor do restabelecimento democrático – produzir uma vez mais o silêncio.

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Referências bibliográficas

ABREU, Alzira Alves de; LATTMAN-WLTMAN, Fernando e ROCHA, Dora. Eles


mudaram a imprensa. Depoimentos ao CPDOC (2003). Rio de Janeiro: FGV Editora.
AQUINO, Maria Aparecida de. (2002). “Mortos em sepultura”. In: CARNEIRO,
Maria Luiza Tucci (org.). Minorias silenciadas. São Paulo: USP /Imprensa Oficial.
BARBOSA, Marialva (2007). História cultural da imprensa (1900-2000). Rio de
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KINZO, Maria D’alva G. (2007). A redemocratização brasileira: um balanço do
processo político desde a transição. Revista São Paulo em perspectiva. V. 15, nº 4, out/
dez. 2001.
KUCINSKI, Bernardo (1991). Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa
alternativa. São Paulo: Scritta.
KUCINSKI, Bernardo (2002). “A primeira vítima: a autocensura durante o regime
militar”. In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). Minorias silenciadas. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo/Imprensa Oficial.

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