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GUATTARI, O PARADIGMA ESTÉTICO

Fernando Urribarri (F.U.): O que é o também no género estético e, portanto,


novo paradigma estético? o paradigma estético não coincide com o
mundo dos artistas.
Félix Guattari (F.G.): A ideia é que, na Então, no âmbito da psicanálise, da
sociedade atual, todos os focos de sin- psicoterapia institucional, das terapias
gularização da existência são recober- familiares, apresenta-se como impor-
tos por uma valorização capitalística. O tante e politicamente significativa a
reino da equivalência geral, a semiótica proposta de um paradigma de criação
reducionista, o mercado capitalístico estética, face ao paradigma científico,
tendem a achatar o sistema de valoriza- sistémico, estruturalista, que encontra-
ção. Além disso, há uma assunção, uma mos frequentemente nestas práticas.
aceitação deste achatamento. Digamos
que é a passividade que caracteriza a F.U.: Quais são as principais ideias
atitude pós-modernista. ou enunciados deste paradigma?
O paradigma estético de que falo se
apresenta como uma alternativa em re- F.G.: A ideia principal consiste no
lação ao paradigma científico subja- fato de que a essência da criatividade
cente ao universo capitalístico. É o pa- estética reside na instauração de focos
radigma da criatividade. É evidente que parciais de subjetivação, de uma subje-
o que estou querendo dizer com isso tivação que se impõe fora das relações
não é que se deva estetizar o mundo: intersubjetivas, fora da subjetividade
primeiro, porque esta ideia de paradig- individual. Trata-se de uma criatividade
ma implica colocar entre parênteses a existencial, ontológica.
noção de obra de arte e, certamente, as Então, o paradigma estético nos dá a
instituições artísticas, os mercados ar- possibilidade de nos unirmos a outras
tísticos; segundo, porque esta atitude de produções de subjetividade parcial, no
passividade pós-modernista intervém âmbito da psicanálise, da sociedade etc.

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F.U.: Por que você utiliza a palavra vas, e no qual se põe em funcionamento
'paradigma'? o autopoiético, em um duplo foco: o
foco que se instaura em nível desterrí-
F.G.: Geralmente não falo em paradig- torializado do universo de valores e um
ma e, sim, em 'universo de referência', foco de existência, que denomino ter-
mas, se falo de universo de referência ritório existencial ou foco de singulari-
com pessoas que leram Khun... temo dade.
que não me entendam bem. Na verdade, Em relação a este novo paradigma, o
não se trata de paradigma como o de que me parece importante é colocar a
Khun, mas de um universo, isto é, de problemática da enunciação ontológica
urna textura ontológica que posiciona de algo que eu chamaria de 'caosmose',
os existentes. isto é, a relação de imanência entre a
complexidade e o caos. O universo de
F.U.: Quais são os protagonistas e as valor se instaura como universo de
fontes deste paradigma? complexificação, de desdobramento de
sistemas de referência, de linhas de fu-
F.G.: Bem, vamos deixar de lado este ga, de linhas de posicionalidade especí-
termo paradigma. O 'objeto-sujeito' que fica, de repetição da complexidade. Po-
está em jogo, aí, ou melhor ainda, rém, ele possui, ao mesmo tempo, uma
aquilo que chamei de 'objeto ecosófi- autopertença, é autopoiético: trata-se de
co', não se dá só em coordenadas bidi- uma auto-afirmação ontológica em uma
mensionais, tempo-espaço, sistemas relação de captação da totalidade e de
maquínicos. Trata-se, antes, de um diferenciação, ao mesmo tempo.
agenciamento de enunciação, que traz à O novo paradigma subverte a pseudo-
luz esta produção que é estética mas, unidade do mundo de valores capitalís-
também, ética. Digamos, mais exata- ticos, uma vez que abre a possibilidade
mente, que é criacionista em sua essên- de recuperar a pluralidade, a multiplici-
cia. Podemos dizer que se trata da pos- dade do mundo. Só isto é que permite
sibilidade de refundar - não de recons- recuperar a dimensão ética. Só a partir
truir - utopias, mas sem nenhuma nos- do reconhecimento da alteridade é que
talgia, nem delirios paranóicos sobre o a ética é possível. E isto requer um re-
apocalipse tecnológico e, sim, com mi- conhecimento da complexidade do uni-
cropolfticas de intensificação das sub- verso, tanto em nível dos regimes polí-
jetividades, que são a única via capaz ticos, como dos territórios existenciais
de combater o fascismo, em todas as e da vida afetiva.
suas dimensões. Assim sendo, para sustentar esta
Situo-me, então, em um plano que imanência do caos e da complexida-
não tem somente dimensões discursi- de, é necessário sair das categorias de

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oposição distintiva entre um objeto e for, coloca-se entre parênteses a dimen-
outro objeto, de discursividade e lógi- são de criatividade específica, de posi-
cas conjuntistas, e, então, 're-situar' um cionalidade ontológica singular.
objeto-sujeito na relação de alteridade, Então, o fato de insistir no caráter
que pressupõe este duplo foco enuncia- criacionista, autopoiético, autofunda-
tivo, este foco caósmico de enunciação. dor, evidentemente recoloca o conceito
de compromisso ético, de responsabili-
F.U.: Que lugar ocupam estes paradig- dade.
mas no conjunto de suas preocupações?
F.U.: Quais são as implicações desta
F.G.: Sempre procurei conceber rela- perspectiva, qual é a pragmática no
ções de transversalidade entre práticas campo institucional ou terapêutico ge-
aparentemente antagónicas: relações de ral?
transversalidade entre a psicanálise, a
psicoterapia institucional, a ação no F.G.: Creio que, no campo das terapias,
campo social, em uma problemática precisamos deste conceito de objeto
estética. Mas hoje, face à queda das ecosófico, para sair da ideia de que a
grandes ideologias - a crise do marxis- ação da psicoterapia individual, da psi-
mo, do freudo-lacanismo, o triunfo do coterapia de grupo, da psicofarmacolo-
neoliberalismo e do pós-modernismo - gia, das atividades sociais etc, são âm-
mais do que nunca se coloca o proble- bitos separados. De minha perspectiva,
ma de uma refundação das práticas: das há um agenciamento em rede dos com-
práticas sociais, estéticas, psicanalíti- ponentes da terapia institucional, que
cas, políticas, aquilo que chamo de faz com que, por exemplo, uma muta-
práticas ecosóficas. A questão não é de ção subjetiva muito importante para um
se esconder em um ecletismo indiferen- psicótico possa acontecer fora do cam-
ciado, mas a de afirmar tanto a singula- po que engloba as relações de palavra
ridade destas práticas, quanto o seu ca- com um psiquiatra, com um saber etc.
ráter de transversalidade. Abre-se, assim, uma gama de compo-
nentes, que não são hierarquizados. A
F.U.: Quais são, especificamente, as categoria 'produção de subjetividade'
relações do paradigma estético e as substitui, para mim, a oposição entre o
questões da ética e da política? sujeito e o objeto. No estabelecimento
de dispositivos que, eventualmente,
F.G.: Quando se coloca a ênfase nas produzem focos de subjetivação — há
dimensões de sistema, nas dimensões uma apreensão pática deste surgimen-
de estrutura, nas referências científicas, to e, secundariamente, temos todo o
para abordar um objeto, seja ele qual sistema de metamodelização que vai

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posicioná-la — não existe a oposição F.G.: Temos que assinalar que as refe-
entre o mapa e o território. rências paradigmáticas da psicanálise,
ainda que sejam fixas, evoluíram consi-
F.U.: Você escreveu com Gilles Deleuze deravelmente. O paradigma do discurso
O que é a filosofia?. No marco do novo freudiano, a narratividade freudiana,
paradigma estético, gostaria de per- não era só científica, ela era, também,
guntar: o que é - para você — a psica- romântica.
nálise? Com o que poderíamos chamar de 'a
reforma', 'o luteranismo lacaniano',
F.G.: (Rindo) A h , muito bem. Que é a eliminou-se toda a dimensão de narrati-
análise? Com certeza não é algo como vidade literária e científica para fundar
o discurso da análise que estaria em uma topologia, uma espécie de mate-
mática estranha. Em todo caso, é uma
relações estruturais com o discurso da
coisa muito mais purificada, que suja
histeria, com o discurso do Senhor,
menos, mas muito fascinante, sobretudo
com o discurso universitário. É um dis-
na época da Aids, na qual os contatos
curso mutacional que pode deter-se ou
são sempre perigosos!
morrer ou, ainda, deslocar-se por outras
O que proponho é uma modelização
vias. Não é um discurso fundado sobre
muito mais abstrata porque, quando
maternas do inconsciente, nem sobre
falo de fluxo, de fenómenos maquíni-
universais da subjetividade. Então, o
cos, de universo existencial, de univer-
que caracteriza, afinal, o discurso da
so incorporai, de território existencial,
análise? É uma produção de subjetivi-
já não cabe falar de falo, de eu, de
dade, uma produção de sentido, a partir
grande outro etc. Trata-se de saber co-
de elementos de ruptura de sentido. Só mo as outras modelizações respondem a
que, hoje, surgiram outras mutações de esta problemática específica. Mas, ao
agenciamento de enunciação. Por con- mesmo tempo, há um quarto nível, que
seguinte, o problema que se coloca é o é o retorno do imaginário, o retorno da
de reinventar dispositivos de produção narratividade.
de subjetividade que respondam a essa No ponto em que o inconsciente es-
questão, não somente a partir de uma tava marcado pela dinâmica do recal-
relação de cura individual mas, tam- camento, pelo escalonamento de níveis
bém, em todos os âmbitos da vida hu- secretos, proponho algo que não se di-
mana. rija ao passado e, sim, em direção à
semiotização virtual; dizendo em outras
F.U.: Então, quais são as possibilidades palavras, ao futuro e ao pragmático. E a
de situar a psicanálise no interior deste entidade, por exemplo, a fixação, o
novo paradigma estético? trauma, o fantasma, o sintoma estão em

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contato direto e ativo com a repetição F.U.: Voltando à sua produção atual,
de um processo codificado no incons- me dá a impressão de que existem dois
ciente, coberto como chave de criativi- novos conceitos-chave: o de 'caosmose'
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dade pragmática. - que implica uma série de enunciações
ontológicas - e o de 'cartografia', mais
F.U.: Qual é a relação entre esta pro- ligado à praxis.
posta estética e a esquizoanálise? Ou,
se você prefere: qual o seu balanço do F.G.: Sim, está certo. Para mim, a car-
Anti-Édipo, vinte anos depois? tografia está ligada à preocupação com
a composição de novas práticas. O que
F.G.: A esquizoanálise, a ecosofia, a me preocupa é o antagonismo entre a
análise institucional — já que, lamenta- prática e a teoria. Há, para mim, uma
velmente, fui eu quem introduziu essa prática que implica, de maneira ima-
expressão — estão marcadas pelas épo- nente, a teoria. Há uma teoria que é
cas. São, não me atreveria a dizer contra- produtora de práticas, produtora da-
senhas, mas pontos de enlaçamento: quilo que chamo de 'focos existenciais'.
justamente minifocos autopoiéticos Mas a cartografia não é uma palavra
conceituais. E , uma vez que estas má- feliz; vemos que os sistémicos a empre-
quinas são propulsionadas na atmosfera garam muito. Poderíamos falar de uma
cultural, acontece o que acontece. Bem, construção de um 'corpo sem órgãos',
a esquizoanálise, para mim, é um dis-
uma construção de um território exis-
curso conhecido no mundo psi de uma
tencial.
certa época, de uma certa geração. É
a ideia de que se deve comportar-se Quanto ao 'caosmose', creio que o
com os neuróticos e as pessoas normais termo 'caosmos' foi usado pela primeira
como com os psicóticos e vice-versa; vez por James Joyce e, depois, retoma-
que o mundo da psicose está implicado do por Deleuze; mas eu lhe acrescentei
em entradas pragmáticas, entradas se- algo: o sufixo ose, porque quero conju-
mióticas muito mais ricas e, finalmente, gar as ideias de 'caos', 'cosmos' e 'os-
comprometido com uma responsabili- mose'. Quero dizer com isto que há
dade ético-micropolítica muito maior. É uma relação osmótica, de imanência,
evidente que esta história de esquizoa- entre a complexidade e o caos.
nálise não quer fazer do psicótico um Temos, então, a problemática da
herói dos tempos modernos; acontece enunciação individualizada, territoriali-
com o psicótico o mesmo que acontece zada e, por outro lado, uma enunciação
com o artista, que se encontra em posi- que se situa no plano do universo in-
ção de problematizar dimensões do corporai, fora de toda coordenada ex-
real, dimensões do universo, de modo trínseca, energético-espacial-temporal.
essencial. A questão >que muito me preocupa, é a

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seguinte: como a história se enuncia a também, outro mundo, e é isto o que se
partir de um indivíduo e, também, deve dizer com respeito ao neolibera-
a partir de mutações de universos de lismo: você tem este mundo, mas h á
valor. outros possíveis! N ã o é a ciência, não é
a essência das relações humanas que
F . U . : Você falou de uma nova suavida- implica aquele tipo de lógica. Então, o
de. Daria para estabelecer alguma rela- problema da construção de um universo
ção entre esta nova suavidade e o para-
da suavidade se coloca em termos com-
digma estético?
pletamente diferentes: a suavidade não
é uma sublimação em relação a uma
F . G . : Evidentemente que sim, porque
agressividade que estaria sempre aí,
no paradigma científico, das ciências
latente; não provém da educação, não é
humanas, sociais, jurídicas e t c , h á uma
um hábito, não provêm da sublimação.
lógica da interação, do conflito, do d i -
A suavidade é um dado imediato da
namismo — a tensão, a resolução da ten-
subjetividade coletiva. E l a pode con-
são —, da entropia; como há conceitos
sistir em amar o outro em sua diferença,
como o de uma agressividade intrínseca
ao espécimen, com uma etologia rea- em vez de tolerá-lo ou estabelecer c ó -
cionária. digos de leis para conviver com as dife-
O a perspectiva do novo paradigma renças de um modo tolerável. A nova
estético, ou melhor, do novo paradigma suavidade é o acontecimento, o surgi-
ecosófico, existe esse mundo de rela- mento de algo que se produz e que não
ções de tensão, de antagonismos, da é eu, nem o outro mas, sim, o surgi-
luta pela vida, do darwinismo. Mas há, mento de um foco enunciativo.

Notas

1. Entrevista realizada por Fernando Urribarri em novembro de 1991, na cidade de Buenos


Aires, com a colaboração de Suely Rolnik, Paulo Cesar Lopes e Oswaldo Saidon na ela-
boração das perguntas. Originariamente publicada pela revista Zona Erogena, Buenos
Aires, Argentina, 5(10), 1992. O texto foi traduzido por Arthur Hyppólito de Moura, re-
visado e reeditado por Suely Rolnik.

2. Esta última frase nos parece um tanto confusa. Como não dispomos do original em fran-
cês, optamos por mantê-la na tradução e por apresentar a versão da própria revista Zona
Erogena (p. 38): "Y la entidad, por ejemplo, lafljación, el trauma, el sintoma están en un
contacto directo y activo com Ia repetición de un proceso codificado en el inconsciente cu
bierto como clave de creatividadpragmática".

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