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Coronel João Gomes e os desastres verbais1

Noelio Spinola

O Coronel João Gomes era de patente firme, não era desses da Guarda Nacional com título
comprado nos compadrios políticos, desde os tempos do Império. Era “troupier”, soldado de
carreira forjado nas casernas. Chegara em São Ludovico, para comandar o 24º Batalhão de
Caçadores do Exército Nacional, última etapa de uma carreira que poderia concluir com um
generalato ou uma elegante e confortável pijama. Estava mais para última, porque lhe faltava
alguns cursos que todo militar, para subir a general, precisa fazer e, além do mais, era uma
daquelas cavalgaduras que trazia a soldadesca em “corda curta”. Era temido por todos. Machão
e homofóbico radical, aplicou um tratamento de choque na pederastia local que, naquela
cidade, dava mais do que chuchu na cerca. Meteu a PE nas ruas, principalmente na Praça da
Alegria, um reduto “cult” frequentado por intelectuais, jornalistas, artistas, boêmios,
prostitutas e os militantes do LGBT que brindavam os circunstantes com “shows” escandalosos,
para não entrar em detalhes. Finais de semana e feriados festivos a praça lotava, virava uma
Sodoma ou Gomorra para ninguém botar defeito. Na praça existia uma igreja católica, uma joia
gótica, deixada pelo franceses quando dominaram a cidade que, inclusive, fundaram. O pároco,
Padre Vieira, escandalizado fechou a igreja à noite e suspendeu as novenas e rosários para
desespero das beatas que frequentavam o templo. Mas o padre, que era liberal, acabou
fazendo um acordo com o pessoal da LGBT; a igreja fecharia as portas as 20:00 horas (horário
do Reporter Esso) e a turma só começava suas funções depois desse tempo. O acordo foi
cumprido religiosamente pelas partes, para satisfação do governador e do comando da PM,
aflitos por uma solução “salomônica ,” porque de ambos os lados havia gente importante e
ninguém queria tomar partido, numa cidade pequena e essencialmente lúbrica. Aldo
Trancoso, conhecido “designer de moda”- como se autointitulava, um pederasta superativo
que voltara de Paris, onde fizera um curso de figurinismo e outros que tais , era o presidente do
LGBT, exultou com o acordo: “le monde c’est rose” proclamava. Aldinho Frou Frou, como era
conhecido na praça, fora contratado pela Maranveste, uma grande fábrica de confecções local,
com a missão de modernizar a linha de produtos masculinos. Quem não gostou da
“modernidade” foi o Armando, veterano vendedor da empresa que palmilhava os sertões do
estado e da região Norte vendendo as calças e camisas tradicionais. De repente, viu-se ele com
um mostruário diferente. Camisas masculinas esportivas, em cores chamativas (azul, vermelho
e rosa) estampadas com motivo florais e as calças boca de sino (padrão dos Beatles), apertadas
nos quadris e folgadas nos tornozelos. Aquele choque cultural quase mata o velho Armando.
Explodiu! Pediu demissão. Ele é que não iria, no fim da vida, vender roupa de “boiola”.
Raimundo, o dono da fábrica, teve de trocar toda a equipe de venda, colocando jovens
“espertos” como vendedores, e mesclando as linhas moderna x tradicional para minimizar o
trauma na freguesia. Mas, era tempo de mudanças. Os Beatles, no auge da fama já chegavam
nos confins do sertão. A moda pegou entre os jovens e só se via rapazes de camisa colorida e
calças balão. Para Aldinho era a glória. Para Armando a aposentadoria.
Nesse meio tempo chega na cidade e toma posse no comando do 24º BC o Coronel, da arma
de Infantaria, João Gomes Botelho de Albuquerque. O conhecido, no jargão militar, GP ( Gomes
Porradeiro, pela sua notória truculência). Machão, homofóbico, bruto e agora mais arrogante
por força do golpe militar de 1964.Dizem as más línguas que quando ele foi apresentado ao
governador, para puxar conversa perguntou: governador, o senhor fuma ?! e o governador,
frouxo que só ele, respondeu na tampa: fumo não coronel! Mas, se o senhor quiser começo
agora...!
Ele recebeu uma comitiva de padres que foram cumprimenta-lo e dar-lhe as boas-vindas à
diocese. Com o arcebispo a frente a conversa correu amena até que o Padre Vieira, pedindo a
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Proibida a leitura por menores de 18 anos.
palavra, narrou-lhe com detalhes o que ocorria às noites na Praça da Alegria. Ele ficou
escandalizado, tomou nota dos detalhes e prometeu aos padres que iria tomar providências. E
assim fez! Convocou ao QG a diretoria da LGBT que compareceu em massa. Aldinho a frente,
todo vestido de verde e amarelo. Ele recebeu a comitiva em pé, todo paramentado com
uniforme de campanha, um bruto 45 na cintura, não mandou ninguém se sentar e foi logo
dizendo: chamei vocês aqui em consideração a suas famílias ( o pai de Aldinho era
desembargador, o de Maria Sapatão, a vice-presidente, era deputado, e assim por diante)mas
vou logo avisando, a partir de hoje está terminantemente proibida qualquer aglomeração na
Praça da Alegria ou em qualquer outra da cidade. Nada de música, desfiles, festas, namoros e
confraternização, muito menos a venda ou consumo de bebidas alcoólicas. Vocês tem até as
18:00 horas para desarmar e retirar toda instalação que colocaram na praça, inclusive
barracas. Depois desse horário a Praça fica declarada território militar e sob a guarda da Cia.
de demolições e da Polícia do Exército. O trânsito fica restrito aos moradores na área que
deverão se identificar. Quem desobedecer será preso em flagrante delito. O comando das
operações será exercido pelo major Pedro Embiruçu. Muito obrigado pelo comparecimento.
Podem se retirar!
Perplexidade geral. Aldinho ainda balbuciou... isto é uma violência! No que recebeu um tapão
de um PE e ouviu do Comandante, você ainda não viu nada...
As 18:00 horas a Praça da Alegria parecia um palco de guerra. Dois blindados (Urutu) do
Exército. Soldados embalados para guerra. A PE armada com longos cassetetes. Um trator D6,
duas moto escavadeiras e várias caçambas que desembarcavam equipes de demolição. Dois
camburões.
Chegaram todos de uma vez e foram logo isolando a Praça com aquelas faixas amarelas usadas
pela polícia. Não havia presenças. Os usuários sumiram.
Aí ocorreu um brutal quebra quebra. Não ficou pedra sobre pedra. Só uma montanha de
entulho que foi retirada pelas caçambas.
Acabou a Praça da Alegria, virou da tristeza. Aldo desgostoso voltou para a França. O restante
da viadagem se dispersou. Os padres com suas beatas voltaram a orar. Deixe lá, com uma
pontinha de saudade do furdunço de antigamente...
João gomes, para quem não sabe, é uma plantinha também conhecida como
vinagreira(Hibiscus sabdariffa), medicinal e comestível, muito apreciada na fabricação do cuxá
um prato típico da Amazônia. Em São Ludovico é muito apreciado e a hortaliça é apregoada por
ambulantes nas ruas da cidade. O infeliz vendedor não sabia do Coronel, nem do nome dele.
Conhecia bem sua plantinha que vendia desde que se entendia como gente pelas ruas da
cidade. Nesse dia aziago, passa pela porta do sobrado onde vivia o coronel com a família – ele
não morava no quartel – e tome a apregoar a plenos pulmões: joão gomes pessoal ... vamos
comer joão gomes, tá fresquinho, gostosinho... vamos comer joão gomes pessoal, aproveitem
que ele está fresquinho... e aquela gritaria toda chegou aos ouvidos do Coronel que se
aprestava para ir ao trabalho. O homem que era novo na terra e não conhecia estas
mercancias, tampouco que tinha um xará que era comestível, levou o caso para o terreno
pessoal e saiu na rua atirando no pobre vendedor. Sorte que não era bom de pontaria e depois
de dar tres tiros na direção do ambulante que a esta altura se cagava todo, foi contido pelos
ordenanças que desesperados procuravam esclarecer a confusão. Segura a fera e desarmado,
não se deu por satisfeito com os esclarecimentos e mandou prender o ambulante por trinta
dias, além de aplicar-lhe uma saraivada de catiripapos. A cidade se deliciou com o episódio,
mas ficou vários meses sem comer o arroz de cuxá. O vendedor, logo que foi solto, pegou a
família e fugiu da ilha. Foi assim que o joão gomes virou vinagreira e sumiu do mercado.
Mas, o Coronel não tomava jeito. Ele era afeiçoado a pimenta e comidas picantes. Dizia, se
gabando, que era comida de macho! Ocorre que, com o uso abusivo e a idade, pegou uma
hemorroida severa que atrapalhava sua rotina. Já não podia praticar equitação, seu hobby
predileto, e era obrigado a usar fraldas enchendo o cú de todo o tipo de pomadas que lhe
receitavam. Era constrangedor, logo naquele ponto estratégico, que a sua dignidade de macho
não permitia expor. Suportou o vexame até onde pode, mas, após uma hemorragia, entregou
os pontos e cedeu aos apelos dramáticos da sua mulher, dona Etelvina e marcou uma consulta
com o Dr. Borô, um médico francês muito conceituado na especialidade. E foi, contrafeito,
acompanhado pela mulher e um ajudante de ordens. Estava “naqueles dias” o rabo ardendo
como se estivesse pegando fogo.
Chegou cabreiro ao consultório. Quem explicou o drama ao médico foi a mulher. Ele
mandou o ordenança sair. Aí o médico, com todo cuidado, pediu a ele para despir-se. Arregalou
os olhos e perguntou se isto era necessário. O médico, calçando umas luvas, disse que sim. Pois
ele precisava examinar o local. Relutante e desconfiado, despiu o tórax com a ajuda da mulher.
E parou ! O médico, pacientemente pediu-lhe que tirasse o resto. A calça e a cueca
(fralda). Resmungando ele obedeceu. Mandou que ele se deitasse na maca, de bruços e
fizesse um quatro. Depois de muita relutância e resmungos, com a ajuda da mulher e do
médico obedeceu. O médico examinou. O quadro era grave. O Coronel estava com uma
hemorroida grau 4 cabendo solução cirúrgica. Até aí tudo bem, mas o médico resolveu falar e
disse: Coronel, o senhor está com hemorroida tipo 4, a entrada do seu ânus está muito
violentada! Aí o velho explodiu, botou pra fora toda a humilhação que estava sentindo; pulou
da maca, garguelou o médico, gritando: entrada coisa nenhuma seu filho da puta, aí é saída,
nunca entrou coisa nenhuma! Foi um fuzuê , o médico caiu no chão, bandeja com
instrumentos foi para o espaço, D. Etelvina desmaiou, o ordenança e a atendente entraram na
sala para socorrer o médico, o Coronel nu, fazia um discurso. Até que, com a ajuda dos
atendentes, tudo se acalmou, o Coronel saiu do consultório puxando a mulher pelo braço e foi
embora pra casa. O médico se matriculou em um curso de língua portuguesa.2

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O Coronel, já reformado, acabou operado em um Hospital do Exército no Rio de Janeiro.

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