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AS IMAGENS DA INFÂNCIA E O LIVRO E SEUS LEITORES

Anelise Zimmermann
UDESC

Resumo

Nesse estudo, num primeiro momento, a partir dos textos de Ariès e Cohn, são
apresentadas "imagens da infância", ou seja, os diferentes conceitos de infância
elaborados através dos tempos. Essas imagens são moldadas por adultos e refletem
o contexto social em que estavam inseridas. Em seguida, são observadas algumas
das "imagens para a infância", ou seja, as imagens produzidas para a criança, no
caso, as ilustrações dos livros infantis. Considerando as informações que essas
podem nos fornecer, são fontes riquíssimas para os estudos sobre infância, pois nos
falam sobre nossos antepassados e a sociedade em que viviam; nos contam sobre as
crianças nos dias de hoje e como os adultos as vêem ou o que esperam delas; bem
como nos falam sobre a nossa própria infância, permitindo-nos revisitá-la e assim
conhecer um pouco mais sobre nós mesmos.

Palavras-chave: criança, infância, imagens, ilustração, livros infantis

A infância e suas imagens

Temos todos duas vidas: a verdadeira, que é a que sonhamos


na infância, e que continuamos sonhando, adultos num
substrato de névoa; a falsa, que é a que vivemos em
convivência com outros, que é a prática, a útil, aquela em que
acabam por nos meter num caixão.

Fernando Pessoa

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Florianópolis, 19/11/2009

Retomando uma idéia presente no artigo "A criança e suas imagens"


(ZIMMERMANN, 2009), considerando as possíveis interpretações que a
expressão “a imagem da criança” pode suscitar1, amplio essa discussão,
substituindo a palavra "criança" por "infância". Ambas, apesar de serem muitas
vezes empregadas como sinônimos, possuem uma considerável diferença,
percebida a partir de uma entrevista realizada com o ilustrador e escritor de
livros André Neves. Ao ser questionado sobre sua relação com seu público ele
diz não fazer livros apenas para crianças, mas sim para todas as idades,
trabalhando "plasticamente, características da infância". "Quero que agrade a
infância, a infância de todos" (ZIMMERMANN, 2008, p.104),
independentemente de suas idades.

Considerando a utilização das duas palavras, de forma geral,


encontramos no Dicionário Aurélio "criança - ser humano de pouca idade,
menino ou menina" (2004, p.574). Já a palavra "infância" faz referência a um
"período de vida que vai do nascimento à adolescência, extremamente
dinâmico e rico, no qual o crescimento se faz" (ibid, p.1101). Assim sendo, a
primeira diz respeito a "um ser" estático, enquanto a segunda a "um período da
vida" pelo qual passamos. Assim, a partir dessas duas definições, não
podemos literalmente, ou seja, fisicamente, "voltar a ser crianças", porém,
podemos sim "relembrar nossa infância", ou seja, reviver um período de nossas
vidas. Para isso podemos utilizar as imagens, como os álbuns de fotografias ou
as já mencionadas ilustrações dos livros infantis.

É então possível compreender a relação que André Neves faz entre


suas ilustrações e seu público, pois o que o autor deseja é que suas imagens
tenham algo a dizer tanto para o adulto, quanto para a criança, criando uma
identificação com a infância de ambos: uma infância a ser revisitada e uma
infância que está sendo vivida no momento.

1
"Ela pode se referir à imagem que se tem da criança, geralmente elaborada por adultos e sua
compreensão da infância. Outra possibilidade é referir-se às imagens produzidas pela criança, seu
entendimento do mundo e do ambiente que a cerca, manifestado, muitas vezes na forma de desenhos.
Por fim, pode ainda se referir às imagens produzidas para a criança, como por exemplo as ilustrações de
livros infantis, gibis, cartilhas escolares, desenhos animados, filmes, entre outras; imagens estas
construídas por adultos a partir de seu entendimento da percepção infantil." (ZIMMERMANN, 2009, p.01).

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Na mesma linha Ricardo Azevedo, também ilustrador (2009, p.01), nos


diz que, "se levada a sério, a noção de que existem dois universos líquidos e
certos separando crianças e adultos irá, fatalmente, nos levar a determinado
tipo de literatura infantil". Existe, porém, outra opção: "se considerarmos que
adultos e crianças compartilham, em linhas gerais, um mesmo universo, com
certeza teremos outra literatura infantil, a nosso ver infinitamente mais rica e
complexa e humana" (ibid).

E como isso pode ser feito? Estamos falando de uma mensagem única
para dois públicos? A ilustradora Márcia Széliga responde essa questão ao
dizer que, para que criança e adulto se encontrem em um mesmo livro "não é
necessário supervalorizar uma expressão primária nem subestimar uma
imagem e textos sofisticados que sejam considerados não capacitados à
compreensão daquelas ou dessa faixa etária, mas dar a chave que abre muitas
outras portas (SZÉLIGA, 2008, p. 182).

Mas a que levam essas reflexões sobre as palavras "infância" e


"criança" relacionando-as ao livro? Se pensarmos no livro infantil como o "livro
para a criança", restringimos o seu público, permitindo abertura para outras
delimitações, como o "livro para crianças de 6 a 7 anos". Já, quando falamos
do "livro para a infância" podemos estar falando de crianças e adultos, "a
infância de todos", como disse Neves (ZIMMERMANN, 2008, p.104).

Assim sendo, a partir dessas considerações e retomando a análise da


expressão "a infância e suas imagens" temos que esta pode despertar
diferentes interpretações, pois pode dizer respeito a "imagem que temos da
infância", ou seja, a concepção de infância dentro de seu contexto. Também
pode ser entendida como "as imagens produzidas para infância", tomando-se
aqui como exemplo as ilustrações dos livros infantis. Por fim ainda temos as
"imagens produzidas na infância", como os desenhos feitos pelas próprias
crianças. Nesse estudo serão abordados os primeiros dois aspectos: as
imagens da infância, a partir dos estudos de Ariès (1981) e Cohn (2005) e as
imagens para infância, a partir de um levantamento histórico das ilustrações de

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livros infantis destacando-se características de diferentes períodos da


ilustração e seus ilustradores.

As imagens da infância

Onde está o menino que eu fui?


Está dentro de mim ou se foi?
[...]
Por que andamos tanto tempo
crescendo para nos separarmos?

Pablo Neruda, Livro das Perguntas

A expressão "imagens da infância" se refere aqui às imagens elaboradas


pelos adultos nas quais se encontram representações de uma infância,
analisadas dentro de um determinado contexto histórico; imagens estas como
obras de arte ou ilustrações de livros infantis. É possível observar através
dessas obras a importância que a criança recebe dentro da sociedade em
diferentes épocas, assumindo ora um papel secundário, ora um papel central,
com importante participação na estruturação da família.

Ariès (1981), estudioso da infância e da família, estabelece relações


entre o homem social e as suas representações, principalmente na Europa,
analisando obras de arte, entre outras fontes. Segundo ele, até o século XII,
observando-se a figura de crianças em diversas obras, são percebidas as
semelhanças anatômicas com o corpo de adultos, como, por exemplo, a
presença de musculatura desenvolvida - os também chamados mini adultos.
Para distingui-los era usada como principal característica a diferença de
tamanho, o que sugere a inexistência de um conceito de infância até então,
sendo esta entendida mais como um período de transição do que como uma
etapa da vida. É no século XIII, e principalmente no seguinte, que a criança
começa a aparecer representada como personagem principal ou então com
papel secundário em muitas cenas, todas porém, relacionadas ao cotidiano de
adultos. Já no século XV muitos artistas são levados a representar crianças
"por sua graça ou por seu pitoresco" o que "coincidiu com o sentimento da

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infância engraçadinha" (ARIÈS, 1981, p.21). A criança, "por sua ingenuidade,


gentileza e graça, se tornava uma fonte de distração e de relaxamento do
adulto" (ibid, p.100), o que Ariès chama de "paparicação". Observando as
produções artísticas, é no século XVII que aparecem, finalmente, os retratos de
crianças sem a presença de pessoas mais velhas, o que mostra a importância
que estas foram adquirindo na sociedade. Um novo conceito de infância
começa a ser moldado a partir de doutrinas religiosas e fins pedagógicos, que
pregavam a moralidade e a inocência, condenando essa "paparicação" por
adultos. "A preocupação era sempre a de fazer dessas crianças pessoas
honradas e probas e homens racionais" (ibid, p.104). Ariès chama a atenção
para o fato de que, ao contrário do sentimento de infância existente até então,
que havia surgido junto ao meio familiar, esta nova visão da criança foi sendo
formada a partir de "uma fonte exterior à família: dos eclesiásticos ou dos
homens da lei" (ibid, p.105).

Posteriormente, no século XVIII, aparecem associados a essa noção de


infância, preocupações também relacionadas aos cuidados com o físico,
higiene e boa saúde, e a criança passa a ocupar um lugar central na família. A
escola é institucionalizada pela sociedade na Europa, provocando um
prolongamento da infância. A classificação das idades se dá não somente de
acordo com as características biológicas dos indivíduos, mas também em
função de suas atribuições sociais. Assim, tem-se a idade do brinquedo, a
idade da escola, a idade do amor, a idade da guerra e, por fim, as idades
sedentárias.

Quanto à classificação da criança na escola, por muito tempo não houve


diferenciação entre as idades. "Crianças de 10 a 14 anos, adolescentes de 15
e 18 e rapazes de 19 a 25 freqüentavam as mesmas classes" (ibid, p.115), o
que só começou a mudar no final do século XIX, indicando que, até então, essa
diferença não era considerada importante pelos adultos. Surge então a
categorização da criança por idade e classe, o que está presente em nossa
sociedade até os dias de hoje.

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A partir dessas considerações, percebe-se que o conceito de infância


não é estático e universal, e sim resultado de uma construção histórica e social
que "foi sendo elaborado ao longo do tempo na Europa, simultaneamente com
mudanças na composição familiar, nas noções de maternidade e paternidade,
e no cotidiano e na vida das crianças, inclusive por sua institucionalização pela
educação escolar” (COHN, 2005, p.21).

Falando a partir de uma visão antropológica da criança, Cohn (ibid, p.45)


nos lembra que esta "é um sujeito social pleno e como tal deve ser considerado
e tratado", pois não só sofre interferências do seu meio cultural, como também
colabora na construção deste, participando da formação e elaboração de
conceitos na sociedade em que convive. Por tal motivo, destaca-se a
importância do seu estudo dentro de seu contexto sociocultural. Isso não
significa desconsiderar a relevância do caráter biológico no desenvolvimento
infantil, mas sim lembrar que "cada cultura pensa o desenvolvimento da criança
a partir de seus próprios termos" (ibid, p.42), pois "não há imagem produzida
sobre a criança e a infância, ou pela criança, que não seja, de algum modo,
produto de um contexto sociocultural e histórico específico" (ibid, p.50).

Estas considerações são também parte da base teórica de Vygotsky


(1991), estudioso da psicologia e do desenvolvimento infantil. Segundo o
mesmo, a criança deve ser vista como um ser biológico e social, que se
desenvolve a partir da sua interação com as pessoas e com o meio, mediada
por sistemas simbólicos, num processo de constante inter e intra-relações com
o outro, com o meio, com a linguagem, com a cultura e com os símbolos com
os quais convive. A criança não é apenas um espectador nesse processo, e
seu desenvolvimento está fortemente relacionado ao seu convívio social,
fazendo assim, parte de uma "complexa trama interativa" (FREITAS, 2005, p.
112). Tais considerações nos mostram que todo conceito de "infância" não
pode ser dissociado de seu tempo, muito menos do "mundo dos adultos", pois
é a partir dele, e na interação entre adultos e crianças que todo conceito de
infância surge.

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As imagens para a infância

Ainda acabo fazendo livros onde as nossas crianças


possam morar.

Monteiro Lobato

A partir da proposta de Ariès, de analisar os conceitos de infância em


diferentes períodos através da presença e representação da criança em obras
de arte, é proposto aqui destacar, da mesma forma, a presença da criança, ou
do papel da criança nas ilustrações de livros infantis. Para esta análise, da
mesma forma, destacam-se os elementos históricos, associados a algumas
obras e ilustradores de maior popularidade em diferentes épocas.

É importante destacar, porém, como nos chama a atenção Zilberman


(2003, p.63) que, "embora seja consumida por crianças, a reflexão sobre o
produto oferecido a elas provém do adulto, que a analisa, em primeiro lugar, de
acordo com seus interesses e que, além disto, a descreve em comparação com
o tipo de arte posta à disposição dele", podendo haver, em muitos casos uma
assimetria na relação, entre o autor e o leitor.

Inicialmente, uma das primeiras referências que se tem nessa área é a


publicação Les Jeux et plaisirs de l' enfance2, de 1657, (Os jogos e prazeres da
infância) livro sobre jogos, ilustrado por Jacques Stella (BURLINGHAM, 2007).
Na ilustração da capa encontram-se imagens de "crianças" brincando, porém,
chamam a atenção seus corpos desproporcionais, ou seja, os chamados "mini
adultos", com pequena estatura e musculatura exagerada; cabeças de bebês
com expressões e postura corporal de adultos.

Posteriormente, no final do século XVII encontramos a publicação dos


contos de fadas de Perrault que para muitos, inaugurou o gênero da "literatura
infantil" através das fábulas. Suas histórias foram escritas a partir de
adaptações do folclore popular, até então contadas oralmente pelo povo,

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Este, apesar de não ser um livro infantil de literatura, é considerado um dos precursores do gênero
devido ao seu tema.

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fossem ao redor de fogueiras, por adultos, para todos que estivessem ao seu
redor, ou pelas "amas", não havendo diferenciação entre idades. Assim surge a
publicação Contos da Mamãe Gansa (1697), com histórias clássicas adaptadas
e recontadas até os dias atuais, como o Gato de Botas, Cinderela e A Bela
Adormecida. Suas ilustrações originais, em preto e branco, criadas por Gustave
Doré, apresentam grande dramaticidade, podendo hoje serem consideradas
por muitos, um tanto assustadoras, como uma das cenas em O Pequeno
Polegar, em que o Ogro, com olhos esbugalhados, se aproximada de uma das
crianças que está dormindo com um grande facão na mão, pronto para cortar-
lhe a cabeça. Junto à cama na qual dormem, aparecem pequenos esqueletos
de aves, um pedaço de asa com penas e um osso ainda na boca de uma das
crianças, representando a refeição recém feita apesar do sono profundo em
que se encontram. As crianças também apresentam corpos desproporcionais
para a suposta idade na história. Além disso, outro aspecto importante da obra
de Perrault, ressaltadas por Doré, é que muitos dos seus personagens
principais não são crianças, e sim adultos ou animais com características
especiais. Classificadas como fábulas, suas histórias tinham sempre um fim
moral, algo a ser aprendido ao final de uma jornada, como a vitória do "fraco"
sobre o "forte", o "pequeno sobre o grande, "a luz sobre as trevas",
características também destacadas através do exagero nas ilustrações.

Em contrapartida às fábulas, surgem publicações no século XVIII de


grande sucesso e com forte caráter religioso, como no caso de Songs of
Innocence (1789) de William Blake. Na ilustração da capa podemos ver uma
mulher, adulta, sentada em uma cadeira, embaixo de uma grande árvore, que
com seus galhos e folhas faz surgir o título do livro. A mulher tem sobre seu
vestido um livro aberto e logo à frente duas crianças observando as suas
páginas, sugerindo uma tarde ensolarada em que a "ama" conta uma história.
Apesar do movimento dado pelas folhas e grande número de elementos, a
cena sugere uma tranquilidade e uma "inocência" que provavelmente se
esperava das crianças, acompanhadas sempre de adultos para ampará-las.

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À medida que ilustradores de jornais e caricaturistas passam a ilustrar


também livros infantis, adicionam ao gênero uma grande dose de humor e
ação, sugerindo um público menos apático. É o exemplo do ilustrador George
Cruikshank, com o conto Os músicos de Bremen em German Popular Stories
dos Irmãos Grimm (1823). Em uma das imagens saltam o burro, o cachorro, o
gato e o galo eufóricos e valentes pela janela, voando cacos de vidro para
todos os lados, enquanto correm apavorados os ladrões com caretas de
assombro.

A década de 1860 se destaca por marcar a surgimento dos livros


classificados como nonsense, ou seja, que exploravam o fantástico, não
apenas nos textos, mas também nas ilustrações, como em Alice no País das
Maravilhas (1865) escrita por Lewis Carroll e ilustrada por John Tenniel; e em A
Book of Nonsense (1846) de Edward Lear. Nesse último encontramos, em uma
das imagens, um homem com um nariz tão grande que é possível servir de
descanso para um bando inteiro de pássaros. Já em outra página aparece um
senhor com uma barba gigante, irritado com uma família de corujas que fez ali
seu ninho. Outra característica dessas ilustrações é a sintetização dos traços e
estilo caricatural, mostrando um público não mais tão preocupado com o
realismo, capaz de entender abstrações.

Também com grande destaque nesse período, porém, dentro de um


estilo completamente diferente, estão os livros de Kate Greenaway, escritora e
ilustradora. Suas ilustrações em aquarela, bastante delicadas, têm como
personagens centrais a figura da criança, geralmente acompanhada somente
por outras crianças, compondo cenas do cotidiano e paisagens bucólicas,
exibindo vestuário e cenário detalhado. Em Under the Window (1878), em uma
das páginas, aparecem duas meninas em um jardim minuciosamente planejado
e ornamentado, ao redor de uma mesa de chá posta, com duas cadeiras ao
lado. Enquanto uma aparece educadamente sentada, usando um longo vestido
cheio de babados e laços, além das luvas, a outra serve o chá com extremo
cuidado e concentração. Sua vestimenta é ainda mais detalhada,
acompanhada da touca bufante (mob-cap), que acabou caracterizando as

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ilustrações de Greenaway. Apesar das imagens repletas de personagens


infantis, não se percebe movimento, mesmo em cenas de brincadeira de roda,
e muito menos, expressões alegres em suas faces. Segundo Carey (2003),
talvez isso se deva ao excesso e exagero de roupas que as crianças eram
obrigadas a usar na época.

Já as obras de Walter Crane, ilustrador da mesma época, destacam-se


pela comicidade sofisticada, pelo estilo mais geométrico; além da presença da
bidimensionalidade "forçada" nas imagens, representando espaços
tridimensionais. Segundo o autor "crianças preferem formas bem definidas e
cores vivas [...] elas não querem se preocupar com tridimensionalidade"3
(CAREY, 2003, p.16). Quanto a essa afirmação, cabe-nos perguntar se é
baseada em respostas de crianças ou apenas a interpretação que o ilustrador
fez de seu público.

Já dentro de outro estilo, estão as publicações com as ilustrações de


Richard Doyle, como The Fairy Ring (1846) e o Fairy Tales from All Nations
(1849), entre outras, que também obtiveram grande sucesso. Em suas imagens
aparecem duendes, fadas, seres mitológicos e criaturas fantásticas,
convivendo com animais da floresta em perfeita harmonia, criando um grande
clima de magia e paz. Suas ilustrações, como em In Fairyland (1870) se
caracterizam pela presença de cores em tons pastéis e contornos suaves,
criando uma atmosfera de sonho, de um mundo distante, de um mundo para
onde podemos nos transportar, saindo de nossa realidade, mesmo que por
alguns instantes; oferecendo à criança essa oportunidade de fuga. Em uma das
imagens de In Fairyland, aparece uma criança com pequenas asas nas costas,
sentada no cabo de uma folha gigante como que a guiando. A folha é puxada
por finos cordões presos a um bando de borboletas, com diferentes cores e
tamanhos. Logo acima junto à folha, sentada em uma flor, aparece uma
menina com cabelos longos carregados pelo vendo. A paisagem ao fundo é de
uma floresta, com montanhas e um rio enorme. Ao mesmo tempo em que
reconhecemos todos esses elementos e identificamos os vínculos com a nossa
3
"[...] children prefer well defined forms and bright frank colour [...] they don't want to bother with three
dimensions." Tradução nossa.

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"realidade" sabemos que não fazem parte do nosso mundo "real" e sim de um
"mundo criado" e "especial" para o qual somos convidados a entrar.

Outras publicações desse período que também merecem destaque são


as obras ilustradas por Randolph Caldecott, como os livros de rimas The House
that Jack Built e The Diverting History of John Gilpin, publicados em 1878.
Caldecott, que trabalhava também como ilustrador em revistas, destacou-se
pela forte presença do movimento em suas imagens, limpeza do seu traço e
humor diferenciado, conquistando não apenas o público infantil, mas também
adultos e artistas da época como Gaugin e Van Gogh. Alguns de seus
admiradores chegavam a dizer que suas ilustrações pareciam dançar nas
páginas. Diferente de Doyle, suas histórias se passam na realidade vivida na
época, sem "floreios", porém, com muito humor. Olhando-se atentamente para
algumas de suas ilustrações é possível perceber algumas brincadeiras que o
ilustrador fazia, usando para isso, inclusive o seu próprio retrato, instigando a
curiosidade de seus leitores. Como em uma das páginas de John Gilpin, no
detalhe do gato que aparece dormindo no canto inferior esquerdo, que, quando
girado verticalmente transforma-se no perfil do próprio ilustrador (RANDOLPH
CALDECOTT SOCIETY, 2007).

Já no início do século XX, destacam-se as obras de Beatrix Potter, que


inovaram ao apresentar como personagens principais as figuras de animais,
porém, com comportamentos humanos, minuciosamente vestidos,
representados por delicadas aquarelas, como em The Tale of Peter Rabbit
(1903). Segundo OLIVEIRA (2008), falando sobre a obra de Potter, "enquanto
houver criança no mundo, esses trabalhos serão eternos, porque não estão
limitados pelo tempo, pela história, nem pelos modismos. Representam a
eternidade divina e imutável da alma das crianças." As publicações de Potter
também apresentaram grandes mudanças quanto ao formato físico dos livros,
com páginas bem menores do que era o costume até então, medindo entre 10
e 12 cm de largura e altura. Este novo formato busca facilitar o seu manuseio
pelas crianças, demonstrando uma preocupação maior com o público,
reconhecendo também suas características físicas próprias.

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A partir da década de 1920 destacam-se as publicações de E. H.


Shepard, ilustrador e escritor, que cria como protagonista o carismático ursinho
Pooh. Este chama a atenção, não apenas por ser um urso, mas sim um bicho
de pelúcia que em alguns momentos deixa de ser brinquedo e ganha vida
(CAREY, 2003). Pooh traz aos livros a presença dos amigos imaginários,
comuns na infância de muitas crianças. O imaginário infantil passa a ser visto
por outro ângulo, a partir de uma visão da criança.

Também do início do século XX merecem destaque as diversas


reedições de clássicos como os contos dos Irmãos Grimm, Andersen, Carroll,
além das histórias oriundas de países nórdicos e oriente, ilustradas por Arthur
Rackham, Edmund Dulac, e Kay Nielsen, na chamada época de ouro da
ilustração inglesa, destacando-se pela riqueza de detalhes, forte influência do
estilo Art Nouveau e grande apelo à fantasia e ao imaginário. Para Oliveira
(2008, p.121-122) a principal característica das ilustrações de Dulac, bem como
de alguns outros ilustradores desse mesmo período, "independentemente de
ser o leitor uma criança ou um adulto, é que, em lugar de uma verossimilhança
ilusionista da realidade, esses artistas nos oferecem uma verossimilhança
mágica do universo real".

Posteriormente, fazendo surgir um novo estilo de livro infantil, em 1963 é


publicado Where the wild things are, escrito e ilustrado pelo americano Maurice
Sendak. Suas ilustrações obtiveram grande destaque tanto por seus
personagens, um menino que entra num mundo repleto de monstros, quanto
por seu estilo de desenho, com muitas hachuras e paleta cromática de cores
sóbrias e grande presença do preto. Por tais características seu livro foi
inclusive proibido de ser publicado em alguns países. Suas ilustrações foram
consideradas perturbadoras por muitos adultos, concluindo que poderiam
assustar às crianças. Mesmo com as críticas, o livro teve grande aceitação do
público infantil, não somente nos Estados Unidos, mas também na Europa,
ganhando diversos prêmios de literatura. Tal fato mostra que as crianças da
época de alguma forma se identificaram com esse "mundo sombrio", povoado

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por monstros, medos e inseguranças, um tanto longe do universo colorido e


doce de muitos outros livros infantis publicados até então.

O final do século XX é marcado pela grande variedade de estilos de


ilustração, estimulada pelo desenvolvimento tecnológico na área editorial.
Atualmente destacam-se, entre as publicações inglesas, traduzidas para
diversos países, os livros ilustrados e escritos por Quentin Blake. Suas
ilustrações, feitas em nanquim e aquarela, são tão cheias de movimento que
parecem dançar nas páginas, mostrando crianças cheias de energia e prontas
para "andarem de avestruz", "plantarem bananeira" ou "brincarem na lama"
(Quentin Blake's ABC, 1989). Além disso, há uma grande presença do
inusitado nessas imagens vistas, porém, com grande naturalidade, com uma
criança levando um dragão ao veterinário (ibid).

Outras publicações inglesas que recentemente conquistaram o público


infantil são os livros de Lauren Child. Entre seus personagens estão Charlie e
Lola que mostram o dia-a-dia de crianças e suas preocupações mais comuns,
como os vegetais que devem, porém, não querem comer na hora do almoço. A
essas preocupações são adicionadas doses de fantasia como as cenouras que
num instante se transformam em seres vindos de Júpiter, ou o amigo
imaginário com quem Lola brinca quando está sozinha. Quanto ao seu estilo de
ilustração, Child utiliza um traço, um tanto irregular, que lembra o desenho feito
por crianças, com a vista quase que sempre frontal dos personagens, outra
característica do desenho infantil, explorando também a colagem de diversos
materiais, texturas e fotografias de objetos presentes no dia-a-dia. Entre alguns
de seus títulos estão: Eu nunca vou comer tomate (2000) e Eu não quero
dormir agora (2005) chamando a atenção para uma criança que se coloca em
primeiro lugar, centralizando as atenções, sentindo-se no direito de fazer suas
próprias escolhas.

Também tratando de temas da atualidade, estão as publicações de


Babette Cole, ilustradora e escritora inglesa, que traz para os seus livros
assuntos como o nascimento dos bebês, sexualidade, homossexualismo,
separação de pais e morte, fugindo de um caráter didático e moralista. Vários

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de seus livros foram traduzidos para diversas línguas, sendo publicados em


muitos países, ganhando prêmios e muitos fãs. Estes livros dialogam com uma
criança interessada em conhecer o seu corpo, os relacionamentos na família e
na sociedade, mesmo que não a sua.

Focando no Brasil, o livro infantil ilustrado por profissionais brasileiros


começa a aparecer somente no século XX, pois até então eram
comercializados no país traduções européias ou edições portuguesas. Além
disso, os ilustradores brasileiros também por muito tempo procuraram imitar o
estilo de ilustração europeu, dificultando uma identificação de características
próprias da criança brasileira. É, segundo Zilberman (2005), somente a partir
do final da década de 1960 que o livro infantil genuinamente brasileiro ganha
destaque, explorando estilos próprios e fugindo de padrões estrangeiros. Uma
das obras que marca o início desse novo período é Flicts (1969), de Ziraldo, no
qual as ilustrações, compostas por grandes áreas de cores, assumem o papel
principal. Tais ilustrações destacam-se por seu caráter abstrato, exigindo uma
grande participação de seus leitores no desenrolar da história. Destacam-se
também as publicações seguintes do mesmo autor, como O Planeta Lilás
(1979) e O Menino Maluquinho (1980), que traz um personagem único, um
menino inquieto, desordeiro, incontrolável e ao mesmo tempo adorável por sua
tamanha criatividade e espontaneidade.

Atualmente, destacam-se diversos ilustradores brasileiros de grande


destaque entre o público infantil e com um considerável histórico na ilustração,
como Rui de Oliveira, Angela Lago, Graça Lima, Eva Furnari, Roger Mello,
Mariana Massarani, André Neves, entre outros.

Angela Lago, com diversas publicações de livros de imagens4, segundo


seus depoimentos, procura oferecer às crianças livros intermináveis e
dinâmicos nos quais o leitor é quem decide por onde começar ou encerrar a
leitura:

4
São assim chamados os livros que não possuem texto verbal, contando histórias a partir das ilustrações.

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O Cântico dos Cânticos é um poema, ou uma série de poemas,


onde dois enamorados se encontram e se perdem e
novamente se buscam em aproximações e afastamentos que
se sucedem. O ponto chave de concepção deste projeto, é, por
isto, o de tentar criar um livro sem final, funcionando como a
Banda de Moebius, numa construção ininterrupta. Um livro que
possa ser lido em qualquer direção, de cabeça para baixo, de
trás para frente. [...] Sonhando um livro circular, inesgotável,
corpo de segredos a serem descobertos, objeto de paixão, que
cada um reinventa à sua revelia (LAGO, 2007b, p.01).

Em uma das páginas desse livro aparece a ilustração composta pelas


gigantes escadarias e torres azuis de um suposto palácio, imagem que lembra
as obras do artista Escher, nas quais é possível se perder num sobe e desce
de degraus. De um lado está a princesa, como que percorrendo um labirinto,
do outro está o príncipe. Não é possível identificar quem está a procura de
quem, e as páginas, com os cantos dobrados, parecem sugerir um movimento,
o movimento do folhear, para que a história não pare aí, convidando o leitor a
interagir com a história.

Falando sobre a complexidade de suas ilustrações, e a relação com seu


público, Angela Lago (2007a, p.01) comenta: “não me preocupo com que a
criança entenda tudo, porque eu tampouco entendo tudo. Prefiro que ela se
perca, a que encontre um trajeto sem novidade ou surpresas".

André Neves quando comenta sobre a relação do seu trabalho com a


criança diz:

"é com elas que desperto minha imaginação", pois "fortalecem


minhas lembranças, porque o que faço hoje tem sempre
alguma coisa a ver com a minha infância [...] uma cena, uma
palavra, uma pergunta, me faz recordar algo no meu passado
que tinha apagado. Com as crianças eu me reescrevo com
fantasia" (citado em ZIMMERMANN, 2008, p.104).

Em ambos os discursos, de Neves e Lago, bem com de outros


profissionais da área atualmente, percebe-se uma identificação do ilustrador
com o suposto "público infantil" que acabam se misturando e se encontrando
nas páginas do livro.

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Fio da infância na trama do conhecimento

A partir desse estudo considera-se que as ilustrações dos livros infantis


são uma fonte riquíssima para pesquisas referentes à infância, que como
analisada, possui diferentes feições, modificando-se através dos tempos e
moldando-se em diferentes contextos. Considerando esses aspectos é
fundamental que esses estudos abordem variados ângulos e perspectivas de
observação, não ficando apenas nas "imagens da infância", mas também se
utilizando da análise das "imagens para a infância", que podem ir das obras de
arte às ilustrações dos livros infantis.

As informações que essas imagens nos fornecem podem nos dizer


muito sobre a infância e a vida de nossos antepassados, a estrutura da
sociedade em que viviam; a infância das crianças nos dias de hoje e como os
adultos as vêem e o que esperam delas; bem como algo sobre a nossa própria
infância, permitindo-nos revisitá-la, e assim conhecer um pouco mais sobre nós
mesmos, voltando a descobrir coisas que havíamos esquecido. É assim que se
torna possível um desejo do ilustrador André Neves: fazer ilustrações que
possam encantar a todos, "a infância de todos".

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Sobre a autora
Anelise Zimmermann possui graduação em Programação Visual e em Publicidade e
Propaganda pela Universidade Federal de Santa Maria, Especialização em Marketing
pela Universidade Paulista e Mestrado em Artes Visuais pela Universidade do Estado
de Santa Catarina (UDESC) desenvolvendo estudos sobre a Ilustração de livros
infantis. Dentro da mesma área participou do Curso Children's Book Illustration no
Central Saint Martin College of Art and Design - University of the Arts London,
Inglaterra. Atua como professora no Curso de Design da UDESC, também como
designer e ilustradora.

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