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MARIA HELENA DA ROC HA PEREIRA

ES 'l'UDO S
DH HI S 'l'ÓRIA
DA CU LT U R A
CLÁ SS ICA
J volume I CULTURA GREGA

6. " Il I}lÇ ,\O

FUND AÇÃO CALOUSTE GULB E NK I AN 1 LI S BOA


II

OS POEMAS HOMÉRICOS

,
\
A Questão Homérica

Quem fala dos Poemas Homéricos não pode deixar de


fazer uma alusão, por breve que seja, à Questão Homérica,
ou seja, ao problema, insolúvel até à data, da sua autoria.
Na verdade, diversas incongruências c repetições levaram
a supor que deviam ter sofrido interpolações ou acrescentos.
Se a Antiguidade era firme e m acreditar na existência
de Homero I, no entanto, já na época alexandrina houve
quem atribuísse um autor diferente a eada um dos Poemas.
Desde o final do século XVIII que WOLF fu ndamentou
cient ificamente as dúvidas, e a questão tem prosseguido.
E o debate entre analíticos (que distinguem autores vários)
e unitários (que aceitam um s6) é constantemente enri-
quecido com novos argu mentos.
As dificuldades são, efeçtivamente. muitas. Uma está
na li nguagem, onde há forma s de d iversas épocas e
elementos de nada menos de quatro dialectos diferentes 2,

I A mais anli8a referência a Homero consta de um fragmenlo


de Calino, do ~c. Vt l ~. C. - que alias o dá como autor de
uma Tebarda!
l Iónico e eólico t, em muilo menor perccnlagem, arcado.
..cipriota e ático. À medida que se vão decifrando textos micénicos.
vcrifica·!IC que M lambém muitas relíquias desse dialecto, alguma5
das quais eram consideradas formas eólicas e. sobretudo. arcado.
..cipriotas.
50 51

descrito no Canto X da Ilíada, mais conhecido por


Dololleia. que linguisticamentc é dos mais recentes.
A própria data de composição orcrecc as maiores
dificuldades , pois os Pcemas decorrem na época micénica,
entl\! heróis micénicos. c ignoram a invasão dórica l,
Daqui o ter-se-lhes 8lribuido, a princípio. uma data muito
f"Ccuada,
Ilorém muitas descobertas. procedentes de diversas
áreas de sabi!r, têm vindo a modificar, sucessivamente.
,b teorias ncumuladas ao longo de tantos decénios.
Pelo lado litenírio , a revelação de mais notáveis
consequências decorre dos estudos do ameriellno M1LMAN
I'ARnv, publicados desde 1928, mas que só a partir
da década de 50 começ<Jram a exercer uma influêncin
dominan te', Partindo d<J observação directa dos processos
de composição de bardos jugoslavos. chegou 11 conchlsiio
de que os Poemus Homéricos assentavam numa técnica de
improvisação oral, que explicaria as repetiçõcs e pequenas

J A única referência aos Dórios é a de Odisseia, XIX. 177.


cm passo bastante SU&peilo. Em relação 305 heróis, h:m interessc
$Ill>erse que nomes como Aias. Akhitlcus. Glllukos. Hektor,
I'il. 11 - Fo I. MO 1)1, PRES ,\S OE JI\\'ALI .
Clom frequentes entre os Micénios, confonnc o demonstra a sua
De um u,muJo de MiC<'nu.
presença nas tabuinhas em Linear B (vide I . CHAOW 1CK. 10l/fllul
01 I /el/erlie Srudies 104 (1984) t92).
quer dizer. uma lingua :mificial . que niío deve num:a ler I Os principais são II tese L'cpitllclc Iradifiol1l1elle dal1.~
sido falada. Puta complicar a questão. passa-se outro lIomiYc, I'aris. 1928. e os artigos .Studies in the Epic Tecllllique
{Ir Oral Versc·Making,., Harvard Sludics iII Cfassical /'Izifolo/(y
tanlO no domínio da arqueologia, sem que haja concor· 11 (1l}30 ) 73·147 e 43 (1932) 1·50. Estes c outros trabalhos
duneia entre estratos linguísticos C' estratos arqueológjço~. cm:ontrum·se hoje reunidos sob o titulo Tlle Mukins 01 Honrer;!:
Um exemplo frisante é que o elmo de presas de javali V,mc , 'J'/w Colfectcd Papcrs of MUma!! Parry cditcd by ADAM
(Fig. II l. ornamento dos guerreiros micénicos. aparece IIUIt\ , Odord, 197 1.
52 53

incongruências da narrativa. Esta doutrina consiste . mui to Se O interlocutQr fo r Aquiles, basla substitu ir o
resumidamente, no seguinte : os Poemas Homéricos repe- segundo hemislíquio:
lem rrequcntcmcnte epítetos c até versos inteiros, porque Tôv ó'à.1trl.f.1E~!3ój.1tvOo; 1tpoaiqtT} 1tÓÓClÇ wxv\Õ 'A X~À.À.~
eram obra de improvisação oral, que necessariamente tem
Em resposla disse·lhe Aquiles de pés velozes
de ter pontos de apoio, frases armazenadas, que dêem (A 84)
tempo de pensar no verso seguinte. enquanto se vai can-
tando o anterior. Assim. por exemplo, quando o poeta Ou pode conservar este segundo hemi st íquio e variar
quer dizer que raiou o dia, tem um belo verso já prepa- o primeiro:
rado. como este: TOv ó'líp' v"1t6opa towv 1tpoO"ÉqtT} 7tóocxç wxv\Õ ' AX ~À.À.EV\Õ
Franzindo o sobrolho, disse-lhe Aquiles de pés velozes
.... HJ.lO~ Ô '1}p~yi\l!Ul rptiVJj Poooóá.n vÀ.oC; 'HWç (A 148)
Quando surgiu II Aurora de dedos róseos. filha dI! manhii
Os nomes dos heróis com os seus atributos ocupam
(A 4 77)
meio VCrSO (do começo até à cesura, ou d esta !lté ao fim) ,
Se quiser introduzir cm discurso di recto a resposta ou mesmo um inteiro, como é o caso dcste:
de um herói, pode dizer: i'lpwç 'A-tpEtono; EVPV xpEíwv 'Ayap.É!J.vwv
TO", ô'Q:;:almBóp.E\lO(, l':poaiqlTJ xptú..lv 'A YfX.\.lÉ{.1vwV u herói AInda, Agamémnon de vasto poder
(A 102)
Em resposI3 disse-lhe o poderoso Agamémnon
(A 130 = A 2851 t~nhllm que os Poemas Homéricos começaram logo por $Crem
elCritos. sem que, no entanto, a tradiçãtl o ral antenor possa
lano rar.se (c Mündlichkeil und Schriftliçhkeit im homeriKhen Epos_.
Este campo de cSlUdo veio depois a ser alargado a outros Gjfj(Jmmelle Schriltcl1. Bern, Françke Verlag, 1966. pp. 6J.7 1) .
povos, c,:omo os da Irla nda (er. K. O'Nou,,", «Homer and l rish O mesmo autor considera , de re$to, que o i mago da Ouestão
Herok Nartative,., Ctossical Ouorler/y (1969) 1·19, e os de Asia Homérica reside actualmente na re lação dos poemas que possui·
Central (ef. N. C" ~DWtCK and V. Z"tll~URSKY. Oral Epics 01 mo~ com o mundo da composição oral (Geschich te der grieehi-
Cerl/ral Asia apud ACj\TII~ TIIOIITO ", Home,'s fliad: ils Campositiorl ~h," Uleralur, 8em, Francke Verlag, )197 1. p. 34). Outros como
(lIId llre MO/ii 01 Supp/iCOlion, Gôningc: n , 1984, pp. 23-24). AliAM PAIIIIY (cHave we Homer', Iliad? _, Yalc Classical S/IIdics
Da dout rina de MIL.\l j\" PARRY outras deri var am já. O seu XX (1966) 117·216) aceitem decididamente o reçurso ao novo
cont inuador. A. B. loRD. defendeu, em 1953, a "tese do ditado-, proeello da e.cril" Outra tendencle hoje muito marçadll. e Ilão
isto é, de que um texto tão extenso pode conservar-se, mantendo IYleI'lOl frutuo •• , IObreludo delde os ealudos de ScHAI)f.WALDT t 1938).
00 mesmo t~""f11pO as ca racteríst icos da improvisação oral. porque COI'I,llle em .naU•• r • enrutur. do, Poemas de molde a evidenciar
Homero o d itou a quem já sab ia usar da escrita. Esta doutrina • ,xl.tlngl. de um plano, que prenupõe um aut or, e em descobrir
tem tido larga aceitação. embora helenistas como A. LtSKY man- c:onvenQOe. tfplclI na I UI maneIra de c,:ompor.
54 55

Estes epítetos (famados. geralmen te. por um adjectivo


composto, que quase sempre temos de traduzir por uma
perífrase) não são, porém, empregados ao acaso. Embora
condicionados pela métrica (mas não exclusivamente, como
alguns afirmam), a sua presença ajuda a caracterizar
o herói c a insistir sobre qualquer qualidade sua, que
naquele momento tem relevância especial. O verso 102
do Canto I da Ilíada, que acabámos de transcrever. evoca
na nossa frente a rigura do Rei de Micenas, com todo o
seu poder. na ocasião cm que ele vai deixar explodir
a sua cólera sobre a assembleia. Os epítetos de Aquiles
acentuam a sua superioridade física. Na Odisseia. o
herói principal do poema é qualificado de T.o).ÚI-l"Y'J't"~<; ou
1to).vl.Lnxil.VOç, (<<o dos mil artifícios») ou de 1toÀv'tÀ.aç
(<<o que muito sofreu,,). conforme a situação em que ele
se encontra. J:. frequente que cada herói. ou povo tenhu
os seus epítetos distintivos. OS quais, confonne a des-
coberta do Prof. PAGE s, ascendem. em grande parte. à
época micénica. de cuja tradição derivam. Assim. por
exemplo. os Aqueus são «de belas cnémides", «de brônzeas
flÍnica s" (Fig. 12) ou «de longos cabelos,,; os Troianos
são «domadores de cavalos» (pela razão adiante exposta);
Il citor é «de casco faiscante».

j /lis./Q')· uml /lIe UQmc,jç //jud, SaThcr Clas.sical I.cclUres.


Uni\'crs.ily of Califomia Press, 1959. A separação enTre CpíTCIOS
ge!ltr;cos, aplicáveis a qualquer herói (como ..d ivinolt. que apenas
IJudl a preencher um espaço méTrico. e cpíteTos específicOS ou I'j~ 11- ARMADURA DE BRONZE MICt;-.,C,\
dlttinTivos pro\'ém de Mi1man Parry. Os exemplos dados no TeltTO
perlencem. como é evidenTe, à $Cgunda calegoria. ENCONTRADA EM DENIlRA (l4l!S·r400 a. C.l
56 57

Estas observações conduzem-nos a oulro aspecto dil Tróia VI era uma cidade oputenta (Fig. 13), que acabou
questão, aqudc que se relaciona com a historicidade num tremor de terra, seguindo-se·lhe, sem solução de
da lfíoda, que desde o último quartel do séc. X IX se continuidade ne m de cultura, Tróia VIl a 7, que termina
discute de novo. Com efeito. o alemão SCHL1EMANN, fazendo por um viole nto incêndio. A Tróia V IU , que ainda se
escavaçõcs na colina de Hissarlik (na actual Turq uia, a lhe sobrepôs, apresenta solução de cultura, e é insignifi-
noroeste da Ásia Menor). encontrou diversas cidades cante. A T róia IX é muito tardia.
sobrepostas, nada menos de sete, a que o seu ajudante , A queda de Tróia Vila te ria sido depois dos meados
o arqueólogo OôRPFELD, juntou mais duas. Supôs a prin- do séc. X III , talvez cerca de 1230 a. C., o que daria uma
cípio que a mais antiga seria a homérica, mas acabaram diferença de poucos deçénios sobre a data tradicional da
por se inclinar para a T róia VI, que tinha reslos de guerra de Tr6ia (1184, segundo Eratóstenes).
cerâmica idênticos aos de Micenas c Tirinto, lugares onde Quer dizer, a Ilíada funde a opulência da Tróia V I
eles haviam procurado O rasto dos heróis homéricos. com a destruição da Tróia VJIa. Com a VI principiara
Estas escavaçõcs, tão brilhantemente iniciadas. têm uma civilização diferente da anterior, que trouxera con-
tido a colaboração dos mais ilustres arqueólogos mode rnos. sigo o cavalo (e os Troianos são o único povo que Homero
Em Miccnas. foi a Escola Arq ueológica Inglesa, sob a rrequenteme nte qualifica de «domadores de cavalosll); a
direcção de WACt, e, mais recentemente, a Sociedade Vila continua a mesma cultura; uma vez destruída a Vllb.
Arqueológica Grega, sob a de M AR INATOS e MVLONAS e :I solução de continuidade é definitiva .
outros. Em Tróia, as escavações concluíram-se sob a chefia A estas conclusões vieram juntar-se outras, prove-
de BLEGEN, da Universidade de Cincinnati, que em 1959 nientes da decifração de textos hititas e de dados arqueo-
publicou o quarto volume da sua obra monumental, Troy. lógicos, que, entre o final da década de 50 e a de 60
O mesmo B LEGEN, descobriu em Pilos, na costa ocidental tinha sido possível reunir. Assim, os registos daquele povo
do Peloponeso, o chamado palácio de lestor, destruído da Ásia Menor referiam-se ao ataque dos Ahhiyawa, que
por um incêndio no séc. X III a. C., c uja riqueza cm roram ide ntifi cados com os Aque us, a MilIawanda ,
tnbui nhas em Linear B excede a de todos os outros. que pareceu ser Mileto. a Wilusa e Tarwisa, que seriam,
Mas voltando à questão de Tróia (pois também houve
uma!), o quarto volume de BLECEN ~ demonstra que a

7 Mais recentemente, um artigo de M. L. Wr.ST (_Oreek


I'oelry 2000-700 B. C.IO. Classical Quartel)'. N. S. 23 (1973) 179- 192)
6 1J1.t;GtN TCsumiu as suas çonclusõcs por fonna mais accs· tenla demonstrar que a Tróia Vllb, destruída cerca de 11 00 a.C., é
tIve! no ti vro Tro)' and tlle Tro;alls, London. Thames and Hudson. que corresponderia à Tróia homérica. A este lese, porém. falta
1963 (Irad. porL: Tróia, Lisboll, Verbo. 1966). o imporumte suporte arqucológko.
l8 59

rcspcoctivamentc, lIion e Tróia '. Esse acontecimento situar-


-se-ia no séc. XIII a. C.. precisamente na época do grande
poderio de Micenas, c era anterior à queda de Piloso
Que não houve nunca unanimidade quanto 8 estas
interpretações, dcmonstra-o a discussão en tre M. J. FINLEY,
J. L. CASKEY, G. S. KIRK C D. L. PAGE, «The Trojan Want,
publicada em 1964 no f OI/mal of Heflelfic Studies 84,
pp. l-20, onde o segundo desses espedalislas, embora
negando as posiçõcs do primeiro, que coloca os aconteci-
mentos nos sécs. XI-X a. C., eS<:TCVC esta fr ase quase
profética: '«Se o saque de Tróia Vila vier li ser colocado
depois d<l queda de Micenus c Pilos, ou ao mesmo tempo.
leremos de rejeitar a maior parte da tradição homérica».
Ora a verdade é que esta alteração na cronologia
relativa dos sucessos se tem verificado nos últimos anos.
Por exemplo, encontrou-se em Tr6ia Vila uma pequena
quan tidnde de peças de cerâmica do Heládieo Recente III C,
que se supunham não serem conhec idas anteriormente a
Tróia Vl lb; tal facto, a confirmar-se devidamente, mocli-
fica quanto julgava saber-se acerca dos destruidores da
Tróia homérica_
Esta e outras questões foram discutidas num Colóquio
rl!alizado cm Li verpool em 1981 , com a participação de
diversos especialistas~. Puseram alguns deles em evidência

~
Na //juda parece não haver dislinção enlre Tróia c mono
n '. ~Ct:-l ~\lpõc.
no cnlamo (op. di .. p. II)), que Tr6ia designaria
\,rimilivamente a região, e llion a cidadela.
? As aClas foram publicadas por L. FOXH ... ~t. c I. K. DAVI!.!,
sob o titulo l'he l'rojan \Var. 'Is Hislorid/y alld Comexl, Bristol.
lQ1:!4.
60 6J

fi diferente reconstltulçao que hoje se faz da geografia artigos em revistas especializadas de diferentes países,
política do império hitita e sua cronologia. Outros reapre- que, por vias distintas. negam, todos eles, essa relaçüo lJ.
ciaram os três textos ex islcnles naquela língua que se A presença de elementos micénicos nos Poemas
referem aos Ahhiyawa, os quais não seriam identificáveis Homé ricoS tem, ela também, sido objecto de discussão.
com os Aqueus, nem sequer pertencentes à zona micén ica, Ente ndia-se. efectivamente, até há poucos anos, que eram
mas an tes localizáveis na Trácia; além de que a sua data micénicos:
não seri a o séc. Xl I I a. C., mas os começos do império
as figura s e seus epítetos;
hitita. Tão-pouco as equi valênci as de lopónimos seriam
a riqueza de Micenas (<<Micenas ri ca em ouro»);
de aceitar. Por outro lado, a vinda dos Povos do Mar,
a raridade do fe rro;
a que al udem alguns registos egípcios, não leria sido um
a noção de que &." 11; é mais do quc [3IlO'~).,EÚC; lJ;
movimento simultâneo. no qual se inscreveria a Guerra
o fausto dos fun erais de Pát roclo (embora ele
de Tróia, mas uma sucessão de destruiçõcs ao longo de
seja cremado, e não inumado, como os
vários anos. O fundamento histórico de alguns epítetos
Micénicos) ;
de Trói a c dos Troianos, que atrás referimos. e que é
a arquitectura dos palácios, nomeada men te a
mantido por especiali stas como ' . V. LUCE lO, é aí negado,
presença do mégaron ;
em favor da tese que vê neles uma simples remodelação
tardia, à imagem dos epítetos dos Aqueus.
A relação entre a sociedade micénica e a homérica,
11 O de O. T . P. K. DICIUNSON .... Homer. Poet of the Dario::
geralmente admitida, embora faltasse nesta a grande buro- Age_, Creec:e aml Rome 33 ( 986) 20-37. situa o mund o homé rico.
cratização e a abu ndâ ncia de escravos daquela, fica assim co nforme o título indica, na Idade das Tn:va.5. O de IAW MORRIS.
novamente cm causa. Posições semelhantes tinham sido ~Thc Use and Abuse o r Home r", Classical AnliquityS ( 1986)8 1-138,
tomadas antes e continuaram a sê-lo II. E signifi cativo que susten ta que nada há nos Poemas que não se reporte ao
no ano de 1986 tenham saído quase simuhaneamente três "c. V III tI.C. O de CISELE WIC KtKT-MICKNAT. _Die Frage/der
KontinuitiiL Bemerku llgen zum Thema Mykene und Homer.. ,
Cynlllllsium 93 (1986) 337·347, põe em dúvida, sucessivamente.
II proveniênch. micénica dc tod os os objcçtos considerados dessa
origem.
U wAvo.:!; ficará sempre como um te rmo poético, aplicável
10 /f(mler clI1d lh e H eroic Agc, l..ondon, 1975. p. 127. )obrtlUdo aos deuses, com o se nt ido de '5Obera no'. Bacnl.clc;
II Vcju.sr:. por c)\cmplo, o influente art igo de A. M. SI'lOOGRA5S. traduz·se por 'rei'. Como observa J. U.TAC'l., Homer. Eine Ein/Ü/l·
_A n I-listorica! Homerie Society? .. , lournal of Hcl/enic Studie5 !}4 rung. München, 1985, p. 60, não é por acaso que a segunda des tas
(\914) 114-125. e ainda A. G , GUlDES, ...W ho is Wh o in ' Homeric denominações. que em tempos micénicos designava o representante
Society'., Clu$sical Ouartely, N.S. 34 (1984) 17· 36, d(' poder central nas pequenas localidades, permaneceu como tllulo
62 63

danar 14, certos achados arqueológicos dos últimos decénios


podem lançar dúvidas sobre os outros. O caso mais
flagrante é o do Heroon de Lefkandi, na costa ocidental
da Eubeia, em local que parece ter sido próspero entre
I tOO e 750 8. C. Nesse heroon encontrou-se um túmulo
do séc. X a. C. que continha as cinzas de um guerreiro.
cnvohas num manto, e, perto delas , o esqueleto da sua
consorte, adornada com jóias de ouro, e os cavalos - o que
mostra a coexistência do ritual da inumação com o da
cremação e a riqueza do possuidor u. Quanto à arquitec-
tura dos palácios. a discussão reavivou-se sobretudo depois
dlls escavações de Zagora (publicadas na revislà Ergo'l
1967 e 1969). Por isso, para MARY O. KNQX Ib , os traços
gerais dos da Odisseia são, ao contrário do que era dc
esperar, da Idade do Ferro, embora certos pormenores,
Fi ~. 14 _ ADAGA OE BRONZE COM INSCRUTAÇOES
DE OURO E PRATA.
como a existência de corredores c de canalizações, sejam
Em cima Illlvcraol, um Ido" perwgui, gazelas. micénicos, Anteriormente, o fascículo com que H. DflERUP 17
Em 1),';.0 (anvcl'1O) . caçada lO leão. COntribuiu para a grande obra de conjunto que é Archaeo-
1).1 4. le"u(lur~ d o Circulo Tumular A de Micenu.
fogia Homerica tinha ido mais longe ainda, ao afirmar

objectos como o elmo de presas de javali, li laça


de Nestor. LI espada cravejada de prata de
Heitor, a técnica de incrustaçõcs. o escudo
de Ájax .
U G. S, KIRIi. The lIiad: A COlllmemary, Vof. J: IJO<Jk s J4,
l '.mhrltlgt University Press, 1985, pp. 8-9,
Se o mais recente c um dos mais autorizados comen- 1\ Cr. o artigo do DICKINSON, p. 24 (citado supro. nota 12).
tadores da Ilíada, G. S. KIRK, continua a rotular de inequi- • u I:ll'Iflulo que G . FOUEST esçrev\'u pata The Oxford IJ islory 01

vocamente micénicos todos os objectos acabados de mcn- "., ( '/u.u i('u/ \Vor/d, dirigida por 1. BoARDMAN, jA$l'ER GRIFPIIi' C
O."\,III M II II R~ \", Oxford University Press, 1986, p, 20 c foI. 24 .
I~ _Mcguro ns IInd Megara_. C/assica/ Ouarre/y. N.S. 2J (1973)
du pcrso,ua!idadcs de primeiro plano nos nobres senhores d;) 1·11.
epopclll It Orl'ch;sche Hmlkunsl iII grome/risc/ler Zei/. Géittingcn. 1969,
64 65

que todos os motivos arquitectónicos dos Poemas se preservar essa memó ria, bem como os nomes de muitas
encontravam nas construções de cerca de 800 a. C. cidades menores incluídas no Catálogo das Naus do
Que estamos longe de poder considerar decisiva qual- Canto II da Ilíada. Dizer, como G. WICKERT·MICKNAT:l)
quer destas interpretações, ptQva-o a severa crítica que q ue o el mo de presas de javali e a taça de Nestor podiam
um arqueólogo como H . PtoMMER dedicou a esta {dtima ser uma herança familiar, conservada no mégaron, que o
obra, aduzindo inúmeras provas em contrário e concluindo eamor descrevia, apom a ndo para ela , ou que a luccrna de
que não ficaram abalados «muitos dos argumentos. agora Atena também aparece na primeira metade do séc. VI I a.C.,
quase tradicionais, que relacionam Homero e Micenas . II em domínio grego, é inverte r os dados d a q uestão . Esta
O· aparecimento lado a lado de práticas c objectos última foi até julgada da época do ferro até q ut: se
que se supunham pertencer a períodos distin tos, como descobri u a sua presença num túmulo micénico 11. A prova
testemunham os achados de Lefkandi; a presença de mais segura de que a taça de Nestor não estava à vi sta
escudos em 8 a par com os redondos, em pinturas de do auditório é que ti descrição da Ilioda não corresponde
vasos; o modo de Hefeslas trabalhar o escudo de Aquiles, exactamente II do o bjecto e ncontrado e m Miccnas 12; di r-
forjando-o, como se fosse de ferro, em tempos do proto- ·se·ia que já somente se conse rva vam de me mó ria os seus
geométrico ou geométrico, mas fazendo-lhe inscrutaçõcs de truços mais salientes .
ouro, pra ta e bronze, à maneira micénica 19 (Fig. 14)-
todos estes factos devem pôr·nos de sobreavjso sobre li
interpretação histórica de uma obra que é essencialmente
literária. No entanto, as diversas teses apresentadas para
explicar a presença de figuras ou objectos que não podem
deixar de se r muitos séculos anteriores aos Poemas não

I
são convincentes. Micenas deixou de ser «rica em ouro~
na época do ferro, e só a transmissão oral contínua podia

lO No ~rt i go citado supra , no ta 12. respectivamen te nas


pp. 341 e 141.
I~ ~Shlldow)' Megarll,.. loumal o/ He-I/enic SluJies 97 (1977) 21 Vi de in/ru , p. 100. nOla t4 .
75 ·8j . u O h!Xl0 da J1iadu X I. 6:>2-637 riguru na Hélude. p. 29,
I~ ESIIl [I!tima observação foi feita pela primeira vez por junlamente com a fotografia da taça. Para um3 in terpretação
D. H. F. GII"-V, ~ M e tal · Working in Homer.., loumal 01 Hellenic diferente, vide a reçensão de A. H ~U B~CK ao li vro de G . S. K I ~ \{
Slud/er 74 (1954) 1·15. citado na 1I01D 14. in GIIO/llOII 58 ( 1986) 582 .
66

DIBLlOGRAFIA

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que não pode ser primitiva. O assunto é limitado: a có!era
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1963 (lrad. porl. : Tróia. Lisboa. Verbo. 1966). fune sta de Aquiles. Escolheu-se um tema que se desen-
volverá em algumas semanas apenas. O poema não conta
I. V . Lucr., lIuml!r uml lhe l /eroic Age. Londoll, Thumcs and li 8uena de Tróia desde o começo - ab ovo, como mais
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tarde diria Horácio I. Pelo contrário, a narração não chega
Ln; FOX IIALL lUld JOI\N K. O ~V IE S . edd .• Tlle Trajol! IVar. Il s 1·l i~l(). a descrever a morte de Aquiles - tantas vezes an un·
rid /)' lIIul COII/ex/. Bristol Chlssical Press, 1984. ciada - nem a queda de Won 2.
Depois de uma breve proposição e invocação, 5O.mos
G. S. Kuu.;, '('lIe .<';OllIlS of 1I0mer. Cambridge Univcrsity I' rcss. 1%2
(I rad . csp.: lAs /'ocmas de Homero. Buenos Aires, Editorial logo lançados. como também dissc Horácio. ir! medias res l,
Paidós, 1968). Ed. abreviada: /-I oltler und lhe Epic. Cambridge no meio dos acomecimentos: em breve vemos o sacer-
Univl'rsily Press . 1965. dote de Apolo. Crises, avançar até às naus dos Aqucus.
para implorar que lhe se ja I'Cstituída sua filha Criscida ,
pela qual oferece um esplêndido resgate. Todos os chefes
querem consentir. mas Agamémnon. a quem a jovem fora
. trl bu/da como cativa de guerra. responde desabridamente
ao .acerdote. Este . no regresso. dirige uma prece a Apolo,

I Arte I'o(llico. 147. Esta qualidade já tinha sido apontada .


• liA., por Aristóteles, Poética 1459a .
I E pela Odisseiu que sabemos C'lmo se ueu este acomeci·
tMIllt), por meio do famoso estratagema do cavalo de pau
(lV ,271 -189 e VIlJ.492-52Q).
J MIe Poélica, 148.
68 69

para que castigue os Aqucus. Dentro cm pouco, a peste ocupa o canto VlI , desta vez entre Ájax c Heitor. No
lançada pelo deus dizima os exércitos. Aquiles pede que VIII, Zeus rproíbe os de uses de intervi rem na contenda
se reúna a assembleia, para o uvir do adivinho a causa e começa então verdadeiramente a c umprir a promessa
destes males. Calcas declara que Apolo está irado COnl feita a Tétis, mandando grandes reveses aos Aqueus. Estes
o desrespei to pelo seu sacerdote. Mas Agamémnon , depois são tais que, no canto IX, Agamémnon envia a Aquiles
de uma azeda disputa com Aquiles, só aceita fazer a uma e mbaixada a solicitar a reconciliação, com ofertas
devolução da sua cativa desde que, em troca, receba riquíssimas, mas sem resultado. O X , a D%llcia, tira o
Briseida , a presa do rei dos Mirm idõcs. Este último seu nome de 0 610n, o espião que Hei tor mandara de
afasta-se do comba le, ferido na sua honra mil itar. Queixa-se noite, e que Diome des e Ulisses, que haviam suido com
a sua mãe, a deusa Télis, que lhe promete ir pedir a idêntico propósito, ma tam. No canto XI , sob ressaem os
Zeus que o desafronte , mandando reveses aos Aqueus. feitos bélicos de Agamémno n. No X II , os Troianos atacam
Crisei da é restitu ída ao pai, e a peste cessa. Po r sua vez, com êxito a muralha e trincheira defe nsiva dos Aqueus.
Télis obtém de Zeus o assentimento que pretende, para No X III , temos o combate ju nto às naus. No X IV, o
desagravar o filho . Logo que ela se retira , desenrola-sc a dolo de Zeus (ALOÇ à7tá't'll) : He ra consegue seduzir c ador-
este propósi to uma discussão no Olimpo, e ntre Zeus mecer Zeus de modo a desviar as suas atenções do campo
e Hera , que Hefestos, o filh o de ambos , a c usto consegue de batalha, para que Poséidon possa socorrer os Aqueus.
apaziguar. O canto tennina com um festim dos bem-ave n- Mas Zeus, uma vez desperto, continua a fa vorecer os
turados, a que não falt a o canto e a música de Apolo Troianos, segundo a promessa feita a Tétis , e o seu avanço
c das Musas_ é tal que se preparam para incendiar as naus dos Aqueus, o
No canto lI , Agamémnon tem um sonho enganador, que equivale a cortar-lhes a retirada (canto X V) , Perante
mandado por Zeus, para o induzir a atacar_ Faz-se a um tão iminente perigo, Aquiles consente, enfi m, q ue seu
enumeração ou catálogo das naus_ nmigo Pálroclo, revestido das suas próprias armas, vá
O canto III mostra-nos um duelo e nt re Pá ris e para o combate, à frente dos Mirmidõcs. O s feitos gloriosos
Menelau, destinado a pôr le rmo ao conflito através da e a morte de Pátroclo, às mãos de He itor, preenchem o
luta c ntre os dois principais in teressados. Mas um arquei ro canto XVI, por isso mes.mo chamado Pu/roeleia (na'tp6-
troiano dispara: Agamémnon passa em revista as tropas x)..wJ.). Segue-se a àpLO'"tE~a. de Menelau, para defender o
e a batalha recomeça (ca nto IV) . cadúver do amigo de Aqui les (XVII ). Fcrido profunda-
Devemos sali entar c m seguida os fcitos valo rosos mente pela triste notícia , Aquiles resolve ir vingar a morte
(v.pL<iuúx)de Diomedes (canto V) , a ida de Hei tor a Tróia. de Pátroc!o; para isso, o próprio deus Herestos, a pedido
paro pedir a Hécuba q ue fa ça oferendas a Atena, e a sua de Tétis, lhe fo rja umas armas de ouro (XV IlI) . No
despedida de And r6maea, sua m ulher (VI). Novo duelo canto X IX. efoctua·se a reconciliação com Agamémnon.
70 71

A lula titânica entre o maior dos heróis aqueus e o maior o processo (1) encontra-se largamente exemplificado
dos troianos ocupa os três livros seguintes. Depois de no canto I. O (3) aparece cm várias partes do poema,
diversos recontros em que Eneias se evidencia. no canto XX, para dar variedade à descrição de tantas mortes de guer-
temos, no XX I, o combate juntO do rio (em que o Esca- reirOS. atribuindo a cada um uma qualidade ou situação
mand ro, transbordante de guerreiros derrubados por especial. O (4) encontra-se, por exe mplo. no canto XV I.
Aquiles, inunda a planície. ameaça submergi-Ia e s6 é 843 ", O (5) está patente logo no começar da narrativa .
dominado pelo sopro ígnea de Hefeslas), e a morte de no canto I .
Heitor, depois de uma longa perseguição em volta das Deixámos para o final o segun do. porque representa
muralhas de T róia, no canto XXI I. Todo o livro XXI II uma das glórias d a Ilíada, como diz KIRK 7, O mesmo
é ocu pado pela cremação e pelos jogos cm honra de helenista define deste modo os símiles desenvolvidos I :
Pálroclo. No canto XX IV, o velho rei de Tróia. Priamo, «Servem para c ristalizar. numa esfera mais próxima
ousa ir à tenda de Aquiles. pedir-lhe, -com ricos presentes. do entendimento do ouvinte, um espectáeudo, som ou
a rest ituição do corpo de seu filho: o herói aceita e estado de espírito; c para aliviar da dureza c monotonia
concede umas tréguas de doze dias para se realizarem os potencial da guerra, apresentando bruscamente uma ccnn
fun erais de Heitor, acto com o qual termina o poema. direrente, pacífi ca, doméstica mesmo»,
Como se vê por este breve resumo, há um só fio Uma definição mais curta, mas não mcnos sugestiva.
condutor, uma só acção, que é retardada por diversos foi dada por HERMANN fRÃNKEL , o especi alista que mais
episódios. A narrativa é variad a, devido ao emprego de detida e proficientemente estudou os símiles homéricos~:
certos processos literários. O s princi pais s ão~ : ... A epopeia antiga só conhece a exposição linear,
(I) mudança da cena terrestre para o O limpo e o símile coloca uma nova linha paralela junto da narra-
tiva». [ ... ] «Os símiles alargam o horizonte, parando
( 2) sfmiles
momentaneamente a aeção que se precipita, para inter-
(3) breve biografia de uma vítima menor
ca lar uma imagem de conjunto da situação».
(4) variantes estilísticas, como a apóstrofe ou a
pergunta retórica (Ali AUicum, t.16,1), Modernamente. TI LMAN KMl scHo, f ormale
(;) hysteron pro/eron ou narrativa feita na ordem KOll venljo"en der homerischen Epik, Münehen, Beck, 197 1. p . 1J7,
inversa dos acontecimen tos s. propôs a expressiva designação de 'regressão épica'.
6 Hélade. p. 32.
Seguimos aqui, em parte. o esquema de G. S. KIRK . 1 The SMgs 01 Homer. p. ,46.

The Songs 01 Homer, p. 347. I l bidem, pp. 346-347.


S A expressão grega, já usada por Aristarco (Oxy. Papo 1086 9 DichlUI18 u"d Phi/osophie de~ !rühell Griechellllll1ls.
IId II 76:n . tornou,se familiar através de uma carta de CfcCfQ pp. 45 e 47.
72 73

Para além da com paração simples, como aquela que Também na Odisseia se encontra o processo, embora
está implícita numa expressão como . pastor de povos~, com menor frequência, como é natu ral , pois esse poema
aplicada a um rei, Icmos a mais extensa, que pode ocu par é, por natureza, mais variado 17. São exemplos seus a
alguns versos, introduzida por .assim comolt, e de novo comparação de Ulisses náufrago. nu e esfomeado, com
ligada ao contex to por *Ial como". Este é que é o verda- o leào das mon tanhas ", e o seu rejuvenescimento por
deiro símile, pois. como diz C. M. BoWRA , com para um a Atena com o trabalho do metalúrgico III.
acção compósita com oulra compósita !o, De um modo geral, os símilcs são tirados dos animais
Alguns exemplos apenas: de rapina, dos fenómenos ou elemen tos da natureza, da
No começo do canto I X, o desencontrado de opiniões vida dos paslOtCs c de outras actividades humanas. E mu itas
dos Aqucus. apavorados com as vitórias dos T roianos. é vezes nos fornecem, como tem sido notado, quad ros
como o mar encrespado pelo Bóreas (vent o Norte) c o muito ma is próximos da época e do ambiente do poeta
Zéfi ro (venlo Oeste). No canto X III, compara-se o avanço que os compôs do que dos herói s que e!e celebra .
dos Troianos com os ventos que encrespam o Oceano 11 . Se nos demorámos um pouco na referência aos
No can to V I , II linhagem humana é posta cm paralelo com processos da Ilíada, ê porque a sua infl uência foi la!
as folh as das árvores 11, fris, no canto XV, desce à terra que pode dizer-se que não houve. posteriormente, epópeia
como o granizo Il, No ca nto XV III , a dança das jovens é que os não imilasse e seguisse. o que torna esta anál ise
semelhante, no seu mov imento, ii roda do oleiro, que gira aplicável a qualquer das literaturas modernas.
com leveza 1', Nesse mesmo canto, o grito de guerra de Deve notar·se que podemos, além di sso, fala r de
Aquiles é com parado a uma trombeta ingente 13 , O canto IV, uma bem definida galeri a de figuras:
para acentuar bem a ordem c coesão do exército aqueu ,
em contraste com a indisci plina do troiano, compara Aqui les. o herói modelo. nobre e valente. mas
aquele com as vllgas marin has, e este com as ovelhas impu lsivo 20;
no redil , a balirem sem cessa r, enquanto aguardam que
lhes seja mungido o leite 16,
H "proporção nos dois poemas f: de 1 parI! 4 ,
Ig T,adition ali/I Veslg/J ;/1 lhe //iad. p. 116. 18 VI. 1l().136 (H elude, p, til).
II 79;.8l) 1. III VI. 2J2·2J 5 (fl élade , p. 64).
Il 144-149 (lU/ade, p. 24). !O Sobre a interpretação dest3 figura, veja·se 5 , " tll/MDnt.
I} 11().172 ( H é/ade, p , :ro). _Achilles and lhe lIiad _, Hcrm e5 9 1 {19631 1·16, e o nOSSO artigo na
" 6OQ.60 1 (I'f é/ade, p. 37) . EnciclOpédia V erb o. Mais recentemente. o li vro d e 51::TI1 L. SCIlEIlII,
II 2 19.221 (Hé/ade, p, 34). 'l'he M or/al Hero. Ali Introdw:t ion /0 H omer's //iod , Univcrsi ty
16 422.438 (H élade, pp. 21·22) . or Cali fornill Press. 1984. cap. 4 e 5.
74 75

Agamémnon, O comandante supremo da expedição, Nestor, velho rei de Pilos, que muito aconselha e
arrogante. prepotente, mas pronto a retratar-se quando gOSta de apaziguar os ânimos com as suas "r. . l... s harmo-
\
errou; é este o seu drama de chde . como agudamente niOSas". nem sempre atendidas; é ele quem sugere a
nolou C. M. BoWRA l I; e mbaixada a Aquiles, a pedir a Teoonciliaçâo. e quem
aconselha Pátroclo a pedir àquele he rói que o deixe ir
Ájax, o guerreiro fo rte e pcNjiste nte, mas que só vale para o comba te à frente dos Minnidõcs;
pela força física; o próprio escudo que traz, «alto como
uma torre,., o si ngulariza como um homem de annas pri- Uli sses é ao mesmo tempo o guerreiro va lente c o
mitivo ; é o «baluarte dos Aqueus», que caminha para a homem prudente e avisado, escolhido pata as missões
luta cam um sorriso no seu rosto aterrorizador ll ; de licadas, como a de restituir Criseid" ao pai e a de
chefiar a emba ixada a Aquiles ; é quem , no canto II.
Diomcdcs. que ataca os T roianos na fa lia de Aquiles.
impede os Aqueus de se predpitarem numa fuga desorde-
cavalheiresco, rorte no combale c «o melhor da sua idade nada, e a sua sensatez é por vezes comparada à de Zeus.
no conselho», é o herói que ousa medir-se com os deuses;
à sua valentia é consagrado o canto V; Do lado troiano, sobressai em toda a sua grandeza
a figura de Heitor, ao mesmo tem po heróica e humana.
Pátroclo . o amigo fi delíssimo de Aquiles, que se
revela um valente contendor no canto que tem o seu nome,
I! modelo de filho, de marido, de pai, de cidadão. Lu ta
pelo seu pa ís e pela sua família. não apenas para alcançar
apreciado por lodos pela sua bonçlade e doçura 23;
honra pessoal. como Aquiles. Este tratamento do herói
Menelau. o causador da exped ição; embora lhe caiba máximo da racção inimiga é a mai s an tiga prova da
um só canto para con tar os seus feitos de armas, no imparcialidade - direi mesmo. da su peri oridade moral
começo do canto VI I , os outros Aqueus julgam-no incapaz grega~ . Não será a última.
de se medir com Hei to r; c apaga-se com frequê ncia, na
sua submissão ii von tade de Agamémnon ; Com ele, oferece Páris um nítido cont raste: embora
seja capaz de se bater em duelo com Me nelau . é um
11 T,udf,iOIl ond D e$ign in IIle lliud. pp. 202·2Oj . lanto efeminado e acolhe-se de preferência ii protecção
l! Leill.sc princi palmente a descriçiio da soo pllnida para o das paredes do seu quarto.
combllte cm VI1. 20&-2 16.
Sobre esta figura, veja·se o anigo de WILLIA M WIlALLO:-:. li Quando ~I eitor morre às màos de Aquiles. c os Aqueus
.. The Shicld of Ajax_, Yu/c C/l1ssica/ Sludies 19 (1 966) 5·36. e o finalmente ousam aproximar-se para o verem de perto. o seu
nono na E"ddopülia Verbo. primeiro movimento é de admiração pela beleza Hsica do inimigo
lJ "Sempre afável .. é epíteto seu 1:m XIX. 300. (XX II.3 67·371- Hélade, p. 41) .
76 77

Príamo. o velho rei digno e respeitado, é convocado sua mulher e encontra-a na muralha , juntamente com o
como garantia dos juramentos que precedem o combate filho de te nra idade, que está ao colo da ama. Para se
singular de Menelau c Páris. E sofre a dupla tragéd ia despedir deste, porem, Heitor tem de tirar da cabeça o
- como pai e como chefe do Estado - de perder Heitor. elmo enfeitado com um penacho ondulante, pois a cria nça
tem medo do pa i e recusa-se a ir aos seus braços 116.
Temos ainda a di stinguir dois aliados dos Troianos: t «entre risos e lágrimaslt que Andr6maca observa esta
o príncipe lício Glauco e seu amigo Sarpédon, ambos curta cena.
jovens e cavalhei rescos. E assim alguns episódios famil iares ou pacíficos
alternam com os grandes quadros bélicos que ocupam
De galeria feminina só se pod~ fala r, como é evidente, a maior parte do poema .
do lado troiano. Aí destacam-se três figuras. Hécuba, Há um que em particular nos pennite vislu mbrar
mulher de Príamo. que sofre pesadamente a perda de os Aqucus cm tempos de paz: é a descrição do escudo
Heitor, para ela ma is pessoal do que nacional. Andr6maca. de Aqui les, que, para nós, é o resu mo de uma cul tura 27.
a mulher solíci ta e delicada, que superintende nos traba- Hereslos forja aí diversas cenas que nos most ram:
lhos de sua casa, que não se esquece de ter preparado (I) os conhecimentos geográficos C astronómicos
um banho quente para retemperar as forças do marido, da época: a terra plana e circundada pelo rio
qu an do regressar do combale - mesmo naquele dia fa lai Oceano; o Sol. a Lua c as constc laçõcs princi·
em que de repente a assalta o pressentimento trtígico de pais (sabendo já que a Ursa é a única de enlre
que tal cuidado já não será preciso. E Helena. a antiga essas que não ... mergulha » no mar 21)
rai nha de Esparta, <tue até os anciãos de Tróia admiram
pela sua beleza di vina, que têm como amplamente justifi- 16 482-493 (Hélode. pp. 25-26). Este episódio é gra ciosamenlc
comentado por J. I. ROU5StAU no emile ou De I'Éducatio".
cativa de tantos sorrime ntos 25, mas que todos surdamente
11 0 0$ numerosos eSludos consagrados a eSle epi:IÓdio. salien·
host ilizam, como causa dos seus males, e que perde em tomos os dois ma is recentes: o de W. MAMC. /fomer übcr die
Priamo e cm Heitor os seus únicos defensores. OichlU1I8. Der Schild des Achilleus, Münster. 2197 1. que idenlific.a
o trabal ho de Hefestos com a arte cri adora do poeta: c o de
Esta diferenciação de fi guras é , só por si, uma prova K. FlnscHEN. Der Schild dcs Achilleus in Archaeologia H omericu II.
da capacidade de análise psicológica. Mas esta atinge o GOUingen. 1973. que pressupõe a existência de modelos artísticos
cOnlcmporãneos, embora a organizaçiio das cenas sci~1 d o poeln.
máximo em certas cenas, como a despedida de Heitor
28 Maneira prática dc referenciar 11 5 chamados es trelas
e Andrómaca , no ca nto VI. Heitor, já armado. procura circum pola res. A s res tantes constelações aqui mencionadas nã o
o eram . Sobre o assunto. veja·se D. R. Dt cKs. Ear/y Greek
2S III. ]54-160 ( H élade. p. 20). A~l rallomy la A riSIOlle. London. 1970. pp. 30·3 1.
78 79

(2) a cidade em paz, com cenas notado 19. as «boas maneiras» · têm nesta sociedade uma
Imponllncia decisiva.
(a) de bodas. acompanhadas de música c dança
Entre essas normas observadas no convívio social.
(b) de um esboço de julgamento: anciãos sen- devem salientar-se as manifestações de respeito por um
tados em pedras polidas darão a sua opinião Igualou superior. Aquiles levanta:se, quando vê chega r
sobre um caso de homicídio. pelo qual o a e mbaixada que o procura 30. E a cortesia é transposta
acusado garante ter já pago à família da parll o plano divino: os deuses erguem-se, quando Zeus
vít ima a indemnização que o costume exigia; enlra no seu palácio no Olimpo J'; os Ventos põem-se
para o que proferir a melhor sentença, de pé, quando fri s tran spõe os umbrais da sua morada n .
ha verá um prémio de dois talentos de OUtO Outras nonnas de maior alcance são as que dizem
respeito aos suplicantes e hóspedes. Era de bom 10m
()) ci dade em guerra atender e defender quem implorava a protecção de outrem,
(4) ttllbalhos nos campos tomando a ati tude clássica da súplica: locar rom a dextra
na barba e a esquerda nos joel hos. E nessa atitude que, no
(,) lavra plano divino, encontramos Tét is no Oli mpo. pa ra oble r
(b) cei fa de Zeus o sina l de anuência ao seu pedido cm favor de
(c) vindimas Aquiles lJ. Na Odisseia, Ulisses abraça os joelhos da rainha
(d ) pasto reio Ateie, suplica ndo-lhe meios para regressar à sua terra.
(5) diverti me ntos: danças. e depois senta-se na cinza do mégaroff. à espera. J! então
que o mais idoso dos conselheiros feaces se dirige ao rei
Ale/noo, censurand.,o por tardar na sua resposta. O rei
Note-se a presença da música, lanto no trabalho acolhe o suplicante como seu hóspede.M. E desde então
diário, como nas ocasiões festivas, e a ausência de nave-
gação ou pesca, fac lO que se interpreta, desde HELBIC , 19 cr. GWR<õE M. C."LIIOUN. e polily and Sodc t y~ in A Com-
como prova de que as actividades marítimas ai nda não ponioll 10 Homer. editado por ALAN r. 8 . W AU and FRANK
podiam pôr-se a par das agrícolas. STUIUHNCS. 1-om.lon, Macmillan. t962. p . 45!.
lO IX . 193·195 (Hélade. p. 28).
Neste escudo de Aquiles há uma cena a que chamá-
l i I. 533·514 (Hé/ade. p. 17).
mos um esboço de julgamento. Mas lei positiva é coisa u XX IIl. 202.203 (Hé/ade. p. 42) .
que nlio existe ainda, nem tão-pouco uma ética depen- II 1. 500-502 (Hé/ade. p. 16). Esta ecoa encontra-se n:::prescn·
dente da religião, que a subst itua. Por isso, romo já foi toda no célebre quadro de Ingrcs. no Museu do Louvre.
)< VII . 141 -184 (lUlade. pp. 7().7]).
8. 81

ele passa a gozar dos privilégios inerentes a essa quali- Deve reservar-se um lugar à parte para o que se passa
dade: dá-se um banquete em sua honra e entregam-se-l he no último canto da Ilíada. Aquiles já malOu Heitor e
OS tepresentes de hospitalidadelt. E será reconduzido a dcctuau funerais grandiosos em honra de Pátroclo; porém
rtaca num navio. :. sua sede de vingança nâo está apaziguada. Todos os
Este caso exemplifica bem o processo pelo qual algué m dias atrela ao seu carro de cavalos o cadáver do inimigo
se IOrna hóspede de outro. E. se alguma vez as posi- c dá três voltas com ele em torno do túmulo de Pátroclo n.
ções se inverterem. iSlo é, se o hospedeiro passar pela Mas os próprios deuses se indignam com este procedi-
terra daquele que acolheu sob o seu tecto, receberá mento selvagem e mandam a Tétis que o advirta. Ao
idênticas regalias. Assim se cria um vínculo de ordem mesmo tempo, enviam fris a PTÍamo. O velho rei de Tróia,
moral ent re o que d á e o que recebe, que assume tal acompanhado unicamente pelo seu arauto ~, ousa en lrar
importância que prevalece sobre os deveres militares c na tenda de Aquiles - o herói que, sozinho, punha c
atravessa geraçõcs. a avaliar pelo que se lê num passo tirava a tranca da porta, coisa que só três homens juntos
célebre do canto V J da Ilíada l5: cDnseguiam fazer l'J _ para suplicar, abraçando os joe lhos
G lauco . príncipe aliado dos Troia nos, c Diomedes . e beijando as mãos «terríveis assassinas, que lhe mataram
rei de Tirinto, encont ram-se frente a frente no ca mpo de taOlos dos seus fil hos», que lhe restitua o cadáver de
bata lh a c prepara m-se para combater. Como era costume, Heitor, em troca de um avultado resgate. Ao ver o ancião
interrogam-se sobre 11 respectiva lin hagem. E por aí vêm venerável a seus pés. Aquiles lembra-se dos cabelos
a saber que um antepassado de Glauco fo ra hóspede brnncos de seu próprio pai , e comove-se. Manda que lhe
de um antepassado de Diomedes. Imedi atamente decidem entreguem Heitor, depois de arranjado à distância. para
abster-se de lut ar e , para da r público testemunho dos que o pai não o visse naquele estado. Oferece-l he de
seus sentimentos, vão até ao ponto de trocar as armas. comer c concede-lhe umas tréguas de doze dias, para
Pelo que o poeta acrescen ta ironicamente que decerto os celebra r os funerai s do filho.
deuses tiraram o senso a Glauco. que lrocou annas
de ouro por armas de bronze , <cO valor de cem bois por
nove apen as ~ ... .11>.
prcgos de praIa; o rei de Salamina , po r 5ua vel:o corn:spandc-Ihc
':0111 um cinto d e púrpu ra 003-30j).
11 XX t V. 12-18 (Hélade. p. 43) .
.IS V I. 212-215.226·236 (Hélade, pp. 24.25). Os arau tos eram uma espécie de embaixadores. c, como
li
16 Tambtm dois gue rrei ros que combateram com dcnodo ht1. mvioláveis. Mas ta mbém podiam executar trabalhos servis,
podem hom~nagen r·se mutuamcnte. quando II noite pÕ\! tcrmo 11 como ~e nOI" na descrição do esc udo de ,\ quiles (XV III . 558-559
luta. e o que aco ntece no canlO VI I quando Heilor é obrigado - 1·W ude. p.36).
II ~ u s "e nde r o seu duelo com Ájax e lhe oferece uma espada com l'J XXIV . 452-456.
82 8J

o
guerreiro de uma crueldade primmva, que fizera HIHUQGRAI'IA
sacrifícios humanos em honra de Pátroclo e rajara no pó
W. IA(CEII. I'uideiu, Band I. Berlin. De Gruytcr, J1954. ,ap. r e I I
o rosto do príncipe troiano, humaniza-se ante a impotência
(tr:".!. ingl., ital., cs p., franc.; Irad. port., também com o
de Príamo e entrega-lhe aquele troféu por que tanto mesmo título, Lisboa, Aster, 19(9).
lutara <lO, Caminha-se para um abrandamento de costumes,
de que este canto fornece o mais belo exemplo. ti, S KrIlK, Tire Songs 01 fl omer, Cambridge University I'rcss.
1%2 (trad. esp.).

II rIlANKf.L. Diclllllllg und Plri/Qsophie des Iriilre/l GriecfrcrrlulII$.


München. Ucd., J19&9 (trad. ingl.: Eorly Greek Poclry (111(1
Plrilo~oplry, Oxford. Blackwell, 1975).

C. M. BOI'.'IIA. Traditioll ulld Dcsign iII lhe lliar!. Oxford Univcrsit)'


I'ress, reimpr. 1958.
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ÁIlATIlf: TItOIlNTON, Homer's lliad: il~ Compo~ilioll aml lhe !\IOIil


af SUppliClllioll, GOttingcn. Yandcnhocek und Ruprccht. 1984

4(1 Toda esta cena foi finamente analisada e interpretada a


C~la IUl. pela primeira vez. por ScHA[)I:WALDT, Von Homers Weft
und Werk. pp. 332·35 1. Note-se que es te episódio nio foi colocado
nó! sua verdadeira perspectiva por Platão. que o çriticou à luz da
Clica do seu I<:mpo (República J19b), Mas Aris tóteles (fr. ]66 Roo!;)
já tentou c:IIplicá-lo, pondo.o em paralelo com os costumes tessálios
seus contemporâneos - mais um flIC to q ue mostra como a cons-
ciéncia histórica. que lentamente despertara entre os Gregos, se
acentua no Estagirita, Sobre estes dois passos, veja-se R. r FClrFEII.
1Ii~IQry 01 Cla~sical Sclrolarship. Oxford, 1968, pp. &9-70.
O sen tido de apOliguam~nlO deste canto foi posto em evidência
por K.l.RL DEtCltcllXBtR, Der letzte Gesang der lIias. Maim:, 1972,
que cscreve: .. A imp re ssão geral, de que todo o livro vive da
idcía de curniscta<;iio e hum ani tarismo. mostra-se exacta. ,om
a re5Crva de que esta ética tem as suas limitações_ (p. 9 1) .
85

c as de Ulisses. que s6 se encontram e se reconhecem no


canto XV I. Também há d uas cóleras d ivin as a perseguir
Ulisses: a de Poséidon e a de Hélios, que não se cruzam
nem interferem uma na outra. A proposição anuncia a
A «Odisseia» segunda , mas ignora a primeira , que aliás surgirá antes
delu na sequência do poema I. Mas vejamos qual n orde-
nação dos factos:

A Odisseia é, fundamentalmente, um poema de ClInlo f - O s de uses reunidos no Olimpo, na ausência


voo"t"oo;, ou seja , de regresso, um dos muitos que se com- de Posé idon, decidem q ue Ulisses regresse a !t ilca.
puseram, possive lmente o mais extcnso, e scguramente o O jovem rilho de Ulisses, Tc1émaco, aconsel hado por
melhor. Aquela palavra aparece logo na pro posição e invo- Atena . que lhe fal a disfarçada de Mentes, resolve parlir
cação com que abre a epopeia. em bu sca de novas do pai.
Est:lmos bastante afastados do le ma da Ilíada, embora
C.mlo II - Para isso, convoca a assembleia de li aca.
as figu ras principais conti nuem li gadas ao ciclo troiano.
a fim de solicita r dela um navio que lhe permita ir a
O alvo agora é a paz, e pode dizer-se q ue ti nostalgia
Pilas e a Esparta inq uirir de scu pai. Di sfarçada dI,:
da paz é a sua do minan te.
Menlo r , Atena promete-Ihe assistência .
A Ilíada é a glori fi cação do idea l heróico. A Odisseia
abre com a palavra que significa IC homem », c só vinte Canlo III - Recepção de Telémaco e Arena· Me ntor
versos ad iante o idenlifica; homem que muito sofreu e em Pilos. Nestor conta o rim de Agamémnon e aconselha
que muito aprendeu sobre os mai s va ri ados povos. e o Telémaco a visitar Menelau, para o que lhe dará por
poema das avcnturas , das múlti pl as hi stórias que excita m companhia seu filho Pisistralo.
a .1Icnção do ouvinte, c do espírito aberto a todas as
c uriosidades de « Uli sses dos mil artirícios», que vence
I Ao conl rário da da Ilíada, que define claramente o objtt-
todas as dificul dades gmçils ao seu enge nho. Nele podem 11vII (.ln epopeia. li proposiçiio da Odisseia é muito incomplelil.
ter lugar os gra ndes gestos de coragem e os rasgos de ]'mle d izer·se que s6 resume em parle o 3SSll n lO dos cantos V a XII.
hero ísmo, mas a narração osci la de preferênci a entre O ppllrente cOIT1"I:çar da narração , no verso II , preenche al gumas
o roma nesco, o u até o fantá stico, e também o que é tk~"I~ loclInas, introduzindo o mOlivo da cólera de Poséidon c
Mludin tlo II vingança de Ulisses (11-21). Das avenluras de Telémaco.
simpl esme nte nalUral.
I.]ue prind piam quase imedialamente. nada se refere. Desnecessá rio
Embora a acção sej a mais concentrada . tcmos dois I" IOfnll dizer que todos estes fac tos têm sido Illrgamente objecto
fi os condulores em vez de um: as aventuras de Telémaco dt dl.c ulsão na análise da estrutura e au toria do poema.
86 87

Canto I V - Na Lacedemón ia, os dois jovens são Canto IX - Ulisses reve la-se e, a pedido dos seus
recebidos por Menelau. c depois de se identificarem, hospedeiros, começa a contar as suas aventuras: com os
recorda-se O fim de Tróia e as circunstâncias do regresso Cfcones, os Lotófagos. o Ciclope.
do rei de Esparta . Entretanto, em lIaca, os pretendentes
Canto X - Continua a na rrativa: a il ha de f a lo, os
preparam uma emboscada a Telémaco.
Lestrfgones. a ilha de Circe.
Canto V - Os deuses reunidos no Olimpo deter-
Canto XI - Ulisses vai aos infe rnos consulta r O
minam que Ulisses regresse a fraca. pelo que mandam
tebn no Titésias sobre o seu regresso. Aí fala também com
Hermes ti ilha de Ogígia dar ordem à ninfa Calipso de
a mãe, com as heroínas c com alguns heróis do cerco de
deixa r partir o herói. Este constrói uma jangada c faz-se
Tr6ia, c avi sta Minas. Odon. Hércu les e os supliciados
ao mar. Mas Poséidon, que o vê, desencadeia uma tem-
divinos.
pestade que o faz nau fraga r. Salva-se a nado. graças a
um véu da deu sa marinha Leucoteia. Canto X I I - Narrativa dos episódios das Sereias. de
e il a e Caríbdis. das vacas do Sol.
Canto VI - Nausícaa, fi lha do rei dos Fcnces, devi do
a um sonho inspirado por Alen a, vai lavar roupa ao rio Ca nto XII I - Os mari nheiros rcaces deixam Uli sses
com as a ias. Aí e ncon tra Ulisses náufrago. a quem manda adormeci do na terra de flaca. O navio que o trouxe
vesti r c alimen tar, c ensina-lhe como há-de proceder para petrifica-se, por castigo de Poséidon. Uli sses escut a os
conseguir regressar ao seu país_ conse lhos de Atena sobre a vingança.
Canto V II - Ulisses apresenta-se como suplicante i. Ca nto XIV - Ulisses na cabana de Eumeu. guar-
rainha Atete_ O rei Alcinoo concede-lhe a hospitalidade dador dos seus porcos, que o não recon hece. é informado
c pro mete reconduzi-lo a ft aca. do estado de coisas em rtaca.
Canto V I I I - Prepara-se o navio e dá-se um grande Canto XV - Telémaco regressa c consegue evitar,
banquete c m honra de Ulisses . Este, ao ouvir o aedo (traçus a Atenu, a emboscada dos pretendentes.
cantar o seu glorioso passado, comove-se. o que faz sus-
Canto XVI - Na cabana de Eumcu , que os' acolhe, c
peitar Alcínoo da sua ident idade. Para o distrair , o rei
L' tl4lllllllo este vai prevenir Penélope do regresso do filho .
leva Ulisses a assistir aos jogos dos Feaces. O aedo canta
lll l~ses c Telémaco reconhecem-se e preparam um plano.
os amores de Ares e Afrodite, e mais tard..:, a pedido de
Ulisses, o estratagema do ca valo de pau. O rei de haca Conto XV I 1 - Tel émaco regressa ao pa lácio. Ulisses .
ouve, emocionado. • çumpanhado por Eumeu. apenas é reconheci do pelo seu
velho c!lo, c é mal recebido por todos.
88 89

Canto XV II I - Ulisses combate com o vagabu ndo ele e com Telémaco, lutam contra as famílias dos preten-
I tO C vcncc-o. Penélope sugere' aos pretendentes que dentes. Atena estabelece a paz entre os dois partidos.
mostrem (I sua dedicação ofcrtando-Ihe presentes. e não
dissipando os seus haveres. Este resumo, muito esquemático, aliás. podia redu-
zir-se ainda ao seguinte:
CantO X IX - Ulisses, sempre desconhecido, conta a
Penélope uma história que garante que o senhor da casa AvenlUras de Telémaco (I . I V)
está pres tes a aparecer. Euric1cia, a velha ama de Ulisses. Ulisses na ilha de Calipso (V)
ao lavar·lhc os pés, rcconhoce-o por uma cicatriz. Pené- No País dos Feaces (VI -V II I)
lope sempre na ignorância dos faclos. anuncia o seu plano Errores de Ulisses (IX-X li )
para escolher um dos pretenden tes. Repa triação de Uli sses e revelação a Telémaco
(XI II -XV I)
Canto XX - Durantc um agitado fest im dos preten- Vingança de Ulisses (X VII -XX IV).
d entes . Ulisses é maltratado c insuli ado.
Canto XX I - Penélope traz o arco de Ulisses, prome- Durante mu itos anos pensou-se que as aventurtls de
tendo u sua miio ao que for capaz de desfechar com ele Tclémaeo /,:onstitu íam um poema à parte. que fora incor-
uma seta que at ra vesse os buracos de doze machados em porado na Odisseia. Por isso se lhe c hamava a «Tdema-
fila. Todos fa lh am. Ulisses consegue experimen tar a sua quia». Hoje prevalecc a opinião de que elas são parte
habilidade. grtlças à intervenção de Pené lope. e acerta integrantc do poema.
11 prime ira vez. Este facto não impede de supor que se e ncontra
na Odisseia um grupo de histórias mais antigas. cheias de
Canto XX II - Ulisses revela-se e. com o aux ílio de
demen tos fantásticos. como os episódios dos Lot6fagos
Tdémaco. do porqueiro c do boieiro, os dois guardadores
c do Ciclope, no canto IX; da ilha dos Ventos e da ilha
de gado que lhe tinham ficado fiéis, massac ra todos os
de Circc, no X; a evocação dos mortos, no XI; as Sereias.
pretendentes e maus servidores. Apenas são poupados o
Ci la e Caribd is. a ilha onde pastam os rebanhos do Sol,
aedo c o arauto.
no X I I. Essas histórias opõem-se às decorridas na terra
Canto XX III - Pe nélope reconhece finalmente Ulis- dos Feaccs, cm Esquéria. que estão cheias de traços da
ses, depois de es te ter provado conhecer o segredo da realidade quotidiana.
construção do leito conjugal. € certo que os jardins de Alcínoo dão frutos uns
Canto XXIV - As almas dos pretendentes são levadas ~o brc os outros e que os navios dos Feaces and am
por Ilcnnes para o Hades , onde dialogam Agamémnon S07.inhos. sem nunca se perderem. Mas a isso chamare mos
c Aquiles. Ulisses visita seu pai Laertcs. l Ulltame ntt! com somente um exagero sobre as excepcionai s condições de
90 91

fcrtilidadt:: do clima mediterrâneo. num caso: e sobre presumivelmentc anterior ao período micénico, em volta
a extrema habilidade náut ica de um povo, no outro. da qual se concentraram inúmeras lendas - embora já na
No conjunto. os sucessos ocorridos cm Esquéria Jfíada estivesse entre os chefes aqueus·.
denotam uma cuidadosa c. por vezes, encantadora obser-
vação do real. ~ perfeitamente natural a vida no palácio A gllleria de figuras é ma is IImpla do que na Ilíada,
de A1cínoo, as relaçõcs entre os familiares, as ocupações a ou. pelo menos, as situações são mais variadas: maS, no
que se dedicam. conjunto, é menos nfl ida:
Esses elementos fantásticos de que há pouco faláva- A principal é. naturalmente. a de Ulisses, que se
mos devem provir. cm grande parte, de uma velha tradição define através dos dois e pítetos que mais constanlemente
poética. Estudando o conf uso itinerário dos crrores de lhe são aplicados: 1toÀv·r).. a.ç (<<o que mui lo suportou»)
UlisSl!s, K. MF.ULI , numa lese que ficou cé1cb re~. chegou c 1toÀvl-1T]'"t"~ç ou "itoÀul-1"IÍXrL\IOç (<<o dos mil arti rícios»). ~ o
ii conclusiio de que o modelo destas aventuras devia herói rorte, mas também astucioso, que se va loriza pelo
procurar-se nu m antigo poema perdido dos Argonautas. seu engenho c. ao mesmo tempo. prefere o regresso
aos quais tl figura de Circe estava ligada. junto de Penélope ii imo rtalidade que a ninfa Ca li pso
Efectivamente, há um grupo de hist6rias que decor- lhe prometia.
rem nos lugares o llde nasce o Sol (a própria ilha da
feiticeira, a das Sereias. Ci la e Caríbdis): é nessas paragens Penélope, o moddo de pe rseverança, de fi delidade,
ainda que os companheiros de Ulisses incorrem na cólera eternizada através do mito da teia 5, mas não menos
de Hélios; quando se rcrere à passagem en tre os terríveis astuciosa do que o marido (já vimos que no canto XV III
escolhos marinhos. acentua-se que até então só a nau sugere habilmente aos pretendentes que é com presentes
Argos os atravessara incólume (X I I. 70). Ao passo que que devem demovê-Ia: c, no canto XXI II, ela mesma põc
as restantes IIventuras decorrem no e:dremo ocidente.
De resto, o próprio Ulisses. fisicamente distinto dos
• Lendas do tipo de I'olifemo e Ninguém têm paralelos às
demais heróis de T róia (salvo uma excepção. é sempre uczenas noutros povos. Cr. DENYS l. PACto Th(' HOmeric Od)'sse)'.
de cabelos escuros l, c não loiro. como os outros) é talvez, Odord Univcrsity Press. 21966, para exemplos europeus; e l. A.
como já se tem pensado. uma figura da saga mediterrânea. S TtLLA. II/JQemíl di UIiS!le. Firenze. La Nuova Italio. 19S5, para os
ol ient ais. Sobre csta figura. I'eja-se W. U. ST/lN'OIID and I. V. LuC!,
: Od)'ssee wul ArgOlluuliku. Basel. 1921 (r~di\ado cm '".: Orll'~'1 for U/ysst's. London. Ph:lidon. 1974. c as reservas
IJtr.:chl. (974). n pressas por J. F . L "Z ENIIY. fOllm~1 of Hellellic 5wdics 97
l No entanto. ~ de notar que Zeus também tem cabelos (1'}7 7) 173.
Ci>Çuros. Tal dircrcllçll tcm sido interpretada (não sem alguma s XIX.J23.161 íHél~dl!. pp. 79-80). A história figura tumbém
flll·tllsill) como sip:nifieativa de uma idade mllis madura. no cunro 11.93·110 e no XX IV. 125-146.
92 9J

Ulisses à prova, fi ngindo ignorar o segredo de construção Os Preten dentes, entre os quais se distingue m Antínoo
do leito conjugal). De resto, esta figura talvez se te nha e Eurímaco, são fortes e fisicamen te belos. mas insole ntes.
complicado a través de sobreposições de versôes diferentes
do poema ó. Nausícaa, a jovem princesa, fi gura cheia de de liçadeza
e recato. em que' se adivi nha o velho tema do herói
Telémaco, que, do jovem timorato do começo do desconhecido, vindo de longes terras , que supera os
livro. se torn a no príncipe conscicnle da sua posição c príncipes rivais c desposa a filha do rei '; mas aqui
dos seus deveres - e isso graças à educação q ue lhe os dados foram mod ifiçados, porq ue Ulisses é casado, e a
é ministrada por Atena di sfarçada em Mentes Ou em fidelidade de Penélope é um dos fulcros da história.
Mentor 7, 11 ii un ica personalidade em formaçiio. e, por-
tanto, tem um interesse muito especial. O poema descreve·nos quatro ambientes pa lacianos
diversos, quer política quer soc ia lme nte, o que te m sido
b D tNU supOC. com razão,
I'M:C, T Il/! H Q/IIeric Odisse)'.
interpretado como referente a époeas disti ntas. Mas não
(c na esteira de WU."M OWITZ). que o canto X IX esttl cheio dcss3$
sobreposições. Efcc1iv:lrncntc. Euriclcia identifiça Ulisses pela precisamos de sa ir da históri a contemporânea, p.trU nos
cicatriz. ao Ja~ar·Jh l! os pés. c na sua perturbação. entorna II llgua certificarmos de que os mais díspares regimes pode m
da bacia: Penélope, que esta perto, de nada se apercebe. coexisti r lado a lado.
Depois. tt r:. inha propõe 3 prova do arco, que faria muito O que aparece como uma ve rdadeira sobrev ivcncia
Inais sentido. s.: fosse preparada de acordo com Ulisses. Haveria. dos costumes aqucus é o de Esparta (canto IV) . Pol itica-
pOrlanto. uma versão cm que o reconhcdmento por parte de
I'cnélopc sc da va nes te canto. e os do is esposos delineavam juntos
mente, Me nel au é um sen ho r absolu to. q ue pode dispor
a prova do llrco. que resolveria II questão da escolha. Natural. da vida dos seus súbditos. J! eom a maior na luralid,ldc
mcnte que esta interpretação. como todas quan tas se tt lll proposto que diz a Tc1émaco que podia despovoar uma das suas
para os Pocmas H om ~ricos. tem os seus contraditares. Veja-se. poor cidades, para nela instalar Uli sses e os seus vassa l os~.
exemplo. a colcctiinCII editada por CHARL ts H . TAYLOR. IR.• Essuy~' A vida na corte é faustosa, e não se processa sem
ali lhe Odys5e)'. Sef(!(.·led ,\Iodem Criticismo Bloomington . Indiam.
um grande aparato de servidores. A rainha Helena.
Univcrsity " reu, 1963. pp. 102-106. e, mais recentemente, H . Eust.
/Jeitrogc :um Verstimdtlis der Odyssee. Uerlin. De Cruytcr, 1972. quando e nl ra no mégarofl, ve m acompa nhada de um
pp. 72·97. pequeno séquito de cri adas. que pressurosamente a atende.
7 As provus desttt evolução Illuhiplicttm·se nos últimos cantos proporcionando-l he todo o conforlo: uma põe-lhe uma
d..) poema. O próprio Telémaco se mostra consciente dela cm
passos como este: Este lema popular - bem como outTOS do mesmo poema-
..... Pois já compreendo e vejo lUdo. foi posto em re lt:'vo por W. I. WOOI.lltOI}Sr. . Tlle CQmposiliOIl 01
o bom e o que é pior: dantes era ainda uma criança. I I ('mer's OdysSf!}'. Oxford . 19H.
(XX.309-}1O) 9 IV. 168·182 (Hélade. p. 53) .
.. os

cadeira, outra uma almofada, a terceira chega-lhe o açafatc rilha do rei , pede ao pai que lhe mande aparelhar um
onde repousava o seu trabalho; aos pés, fica o escabelo 10, carro de mulas, para ir com as aias ao rio lavar roupa I~,
O palácio é de uma riqueza que surpreende o própri o Quando está para partir. a mãe vem trazer-lhe, por
Tclémaco c o filho de Nestor. apesar de serem príncipes II, °
suas próprias mãos, famel 16 • De resto, a rai nha cost uma
Embora o pulento também I ~, o palácio de Esquéria estar no mégarotl , sentada a fiar com as suas aias. Quando
está cm nagrantc contraste com ele. quer sob o ponto de lIusícaa regressa, os príncipes seus irmãos é que desa·
vista social , quer politico. Efectivamente, o título de rei trelam as mulas do carro c levam a roupa pata dentro .7.
cabe não só a Alcínoo, como a mai s doze anciãos que Os outros dois palácios, °
de Nestor cm Pilos II
formam o seu consel ho ll: e o de Ulisses em !taea, pareçem ocupar uma posição
intermédia. Do primeiro, pouco se diz , pois O "elho re i
DOle são O~ reis cllçclsos 4ue governam este povo. encontra-se a fazer um sacrifício a Poséidon. quando
como cheres. Eu sou o décimo terceiro.
Telémaco lhe aparece ; mas, no dia segui nte, sen ta-se num
(V 11 1. :)90-391)
trono iI porta do palácio, rodeado dos scus filhos, que
Ouan do U1i sse~ se sen ta na cinza do mégaron, ti const ituem uma espécie de conselho.
espera de que seja aceite a sua súplica, é o mais velho A ludo quanto se diga sobre fra ca pode sempre
desses homens que lhe f31a em nome de todos 14: Opor-se que a situação na ilha é anorma l. Parece que cm
corrente, no Icmpo de Ulisses, convocar uma assembleia
A1cinoo. não é bonito. ncm te fica bem. dos Aqucus, porquanto, na ocasião em que Telémaco, no
dcilm r um hóspede SC nlad o no chão. à lareira, sobre !I cinza.
princípio do canto II , a rcílOe, a primeira fala , a de
Todos eSles se çonlêm. II es pera quç lu fales.
Egrpcio, é dc protesto:
(VII. 15<}.16 1)
Escutai agora. homens de ltaça. o que cu d isser;
A prioridade incumbe, portanto. a Alcinoo . Ele ê Jamais se rcalizou a nossa assemb leia ou çonse!ho.
aquilo que, cm história medieval , há·de chamar-se, à latina. desde que o divino lis$\'s partiu nas çônca v:t$ n:IUS.
primus itlter pares. (11.2 ).27)
Esta organização política tem seu paralelo na extrema
c surpreendente simplici dade de costumes. Nausícaa, a
10 IV . 120- 136 {lU/ade, p . 521.
II IV .65-15 (f/é/lIde. p . 51). 1\ V I. 5&-70 (Hé/ade. p. 59).
Il V 11. 81 -1 11 ( Hi'!/udc . p . 68). .~ V I. 71 -84 (/lrJIade. pp. 59-601.
I) lIi'!/adc, p . n. n VII. 1-13 (H ê/ade. p . 67).
I' H é/m/!!, p. 70. II Cllnlo 111.
o poder io de .Ulisses está longe de se r absoluto.
Depois de matar os p retendentes, tem de p restar contas
ao povo de h aea, e só a intervenção directa de Atena
consegue suster as host il idades.
Comparação tntrt os dois Poemas
.E no tório o respeito q ue todos tributam a Penélope.
E esta veneração pela mulher, sinal seguro de progresso
nos costumes, igualmente se evidencia no país dos Feaces.
a cuja rain ha, Arele , Ulisses se apresenta em primeiro
luga r como supl icante.
Se considerarmos a Odisseia em face da Ilíada - e
esse confronto impõe-se neeessariamente, quer admitamos
que ambos lêm o mesmo autor, quer não - muitas são
as semelhanças. mas as diferenças também não são des pi-
ciendas.
BIBLI OGRAF I A Entre as semelhanças, pode apontar-se que os con-
ceitos éticos_ as normas de convívio social. o respeito pelos
w . luca:". Paide;IJ. I. tScrli n. De Gruytcr. 31954, cap. I e II (t rad.
l upliclIlllcs e hóspedes são iguais. O fundo arqueológico
por!.).
e linguístico é parecido. Os processos literários são idên·
G. S. KIIIK. TI/e Songs o/ Homer. Cambridge Universi ty Prcss. tlcos; II ambos é comum a maneira quase visual de
1962 (trad. es p.).
deactevCr as mais simples acções 1.
D. L. P"(;E, T"e Honreril; OdysS/!y. Odord Universi ty P~ss. 1955, Mas há divergências (para além das que resultam
reimpr . 1976.
da dlversidllde de tema) que não podem deixar de se
.ulna lar. Essas são de carácter religioso, ideológico. arque·
lógico e linguístico.
Os deuses são, com efeito , os mesmos, mas o conceito
de divindade depurou·se, no sent ido de um progressivo
ar•• tarnento do humano. Porém. este ponto será tratado
de formu mais extensa no c~pítul0 sobre a religião
homérica .

1 Leiam-te. por exemplo. II descriçiio do reteSlH do arco de


I'Andaro, em /lIada. IV . 112-126 . .: a conrcc~lio da jangadll de
Ulissel, em Odisseia. V.243-26t.
98 99

Diverge o conceito de excelência, como veremos Ulisses ao bom governo, na sua fala com Penélope, no
também adiante, no capítulo sobre o homem homérico. canto XIX s, q ue expressamente lhe dá como condiçõcs
Temos na Odisseia, pela primeira vez, as noções corre- ° temor aos deuses e a obediência ao di reito. Que os
lativas de culpa c castigo e de justiça. Logo na p roposição deuses têm cura da justiça, deduz-se de um passo do
somos infannados de que os companheiros de Ulisses canlo XV II 6 , onde se lê que eles gostam de visi tar em
pereceram por haverem comido os bois consagrados ao fo nna humana as cidades dos mortais, para saberem
Sol, e por isso o deus os castigou, privando-os do dia de crimes, Inversamente , o Ciclope vive à margem de
do regresso. Os deuses agora são justiceiros. A inso- lodo o convívio e não quer saber de leis 7 .
lência (ü(3r:lLç) dos preten dentes, a quem fa lta a vergonha OUlra novidade é a presença de uma personalidade
(são áVaL5ELç), é punida 2, em desenvolvimento, que notamos em Telé maco.
Um passo mui to d iscutido do concílio dos deuses, O gozo na contemplação da natureza, revelado na
do canto I , põe na boca de Zeus a afirmação de que, descrição da ilha de Calipso 3 e dos Jardi ns de Alcínoo 9,
embora os homens imputem aos deu ses os males que é lambém novidade da Odisseia,
lhes sucedem. es tes ê que são os culpados, com os seus Podemos acrescentar-lhe o utra menor, mas bastante
desvarios 3, significativa, que é a evolução no trato com os animais.
A justiça parece eq uivale r ao temor dos deuses, a cerlo que já na Ilíada o cavalo é o companheiro do
segundo se deduz do passo do canto V I em que Ulisses homem, que pode se r possuidor de excelência . Um dos
pergunta a si m esmo se naquela terra desco nhecida haverá cavalos de Aquiles, e m dado momento, é dotado de fal a
homens violentos ou de espírito temente aos deuses e prediz-lhe a morte I~. Ambos os corcéis choram por
(6EOVÕ';C;) 4. Com eSle pode confrontar-se o elogio de

! X IV. 80-88 (lU/ade. pp. 76-77) . Para um po nto de vista n te conceito é muito complexo e continua cm discussào. Vejam·se
diferente. leia·se por exemplo. [. L. CARVALIIO . ... Reflexões sobre D' IrtigDS de M. S. R UIPtREZ. «Hisl6rin de eil-'-~c;. cn Homero» .
AspeclOs Civilizacionais da Odisseia». Euphros)'nc. N. S. 8 (1977) Bm,,/'" XXVIII, 1 (1960) 98-123. e bibliografia aí ci tada ; c
7·42. H I I NZ MUNDI1"G ... Oie Bewerlung de r Redtsidec ;n der Ilias ~ .
J 1. 26-43 (lNiade . p. 46). Este lexlO é. nu expressiva frase Phllologlls 105 (196]) 161-171.
dr [AEGER. «a mais antiga leodiceia grega~ ( ~Solons Eu nomie». ! 107-) 14 (Hê/Uli/!, p. 78) .
Si/:umgsberichfc der Preussi. Akudemie der IVissel1schallen. Phil.- ~ 485487. A noção está an unciada na Ilíada. XVI, 384-392.
-His!. Klasse , Bcrlin. 1926, XI. 69·85 = Scripla Minora. Roma 11111. num sfmile.
Edi:d oni di SIOTia c LCllcralUra. 1960. vo1. I. pp. 315·337 . espe· 7 IX. 187·192 (Hélade. p. 74).
cia lmente p, 321). ~ V. 43-80 (Héiude. pp. 54-56).
" VI. 120-121 (Héiade. p. 61) = VII I. 575-576 == IX. 175-176. ~ VII. 112·132 (lUiadi' , p. 69) .
O problema da justiça em Home ro e dos termos quc exprimem 10 X IX. 40!:l-417.
100
101

Pátroclo IL, Mas o cão, na Ilíada, é o animal selvagem, Sob o ponto de vista linguístico, salienta-se em
que dilacera os cadáveres juntamente com as aves de especial a presença de um maior número de abstractos,
rapina, como se lê logo na proposição 12, Na Odisseia, COIllOxpfjl-La. (<<coisa»). t),.1tú;. e iÀ.1tWP1Í (ocesperançalt)
porém, um episódio inesquecível do canto XV II U já nos - além de se nolar a preferênda por certas f6nnuJas e
mOStra o cão como compan heiro do homem: ao chegar su fixos IS,
ao seu palácio, ao fim de vinle anos de ausência, o único Tudo iSlo leva a aceitar a opinião de que os dois
ser vivo que recon hece Ulisses é Argos, que ele deixara poemas se distanciam no tempo cerca de meio ~ulo 16.
ficar à partida para Tróia, c que agora, ao vê-lo, apenas
pode abanar a cauda e baixar as orelhas, sem força para
se aproximar, e logo ca i morlO. O dono enxuga furti.
vamente uma lágrima, a fim de que Eumeu, que o
acompanha. não se aperceba daquele pequeno drama.

Quan to às di ferenças arqueológicas, a mais notória ,I


t! E doutrina corrcute, que deve manter·se. <I despeito dus
1c.'lIl1ltLvas de M. H . A. L. VAN DER VALI\: (citado na IlOtll seguinte)
é que o ferro é mais con hocido do autor da Odisseia l~.
para demonstrar Que a presença de tais abstractos sc relaciono
com o tom diverso do poema.
16 ,\inda hoje há grandes helenbtas que supõem a campo-
IlçAo aimultiinea das duas epopeias, cm partes dif.:rentcs do mundo
II XVII. 424-45'i.
ItelO, E~t/í neste caso PAÇE, Tlw lfomerk Od)'S5~)', pp. 149· 159,
I. 1. 4 (lU/ade. p. I). Cf. lumb4!m XV II. 2~·2SS e 272-273; e G. S. KIRK, Tlle Songs 0/ Homer. Outros ainda voltam a acei tar
XXII. HS-3')6 e 3-19; XXII!. 21 e 183.
• unidade de au toria, como ft:l M. H. A. L. VAI'( DER VALK, "Thc
Il 290-327 (Hêlade, pp. 77-78).
lormulllic charlletcr of Homeric Poetry and lhe relalion belween
I' Que não podemos 3poiar-n05 muito nelas, adverte.nos o lht lIiad IIml lhe Odyssev _, L'AII/iquité C/ossique 35 (1966) 5·70.
faeto de. !linda cm 1950. H . L. 1..oIlIMU. ao publicar a sua obra lrure 115 tenta liv3S de datação mais recentes. mencione-se a de
lund3mcntal lIome, and lhe M unumC/lls, apontar dois objectos ~ IA HkO, Homer. lfesiod and tlle Grt?eh, Canlbridgc Universil}
como de modo algum anteriores ao séc. V i la. C. _ a IvecTna de l'rllp, 19112 , que. com base em dados linlluisticos. aponta panL
Ateno (X IX. 34) e a fibula de Ulisses (X IX. 226-2Jl). Depois "I~n\ II. C. para a Ilíada e para 74j·723 para :1 Odisu!Í(,.
di~SQ. j á a luçcrna apareceu num lúmulo micénico. conforme nOIa I l ..\tAc1. /lomer, filie Ei/ljührulIg. München. 1985 . cap. 2 (cspe·
H. PFfElru. Ausgell'õllltc Sclt,i/lell. München, Betk, 1960. p. 3 II.lmentc pp. 77-85), depois de conjugar h!lbilmente toda a csp&:ie
e nOla S. Este exemplo mostra bem quanto há de casual c dc d~ tlm lu. d is poníveis (com maior ênfase nos já referidos aeh3dos
1'ri.'cário na recuperação de monumentos arqueológicos. Quanto d. I.orkandl, que mostram que o hiato cultural cutrc o período
11 Ubula de Ulisses, P. IACOBSTII.u.. Greek Pins. Oxford. 1956, mlll'nku e o séc. VIII a.C, é bem menor do que se supunha,
p. 141. apud KINK. Tlle SOllg! oj /fomer. p. 185. não encontra • oblorvonuo que é na segunda metade dcste último que S(:
par/lIdos IIdequado$ e reserva o seu juizo.
..dn.m de novo as condições políticas. económiçllS e sodais que
102

o que os antigos exprimiam 17, dizendo que Homero com-


pusera a Ilíada na juventude e a Odisseia na velh ice.

A Concepção da Dil'indade
DOS Poema.~ Homéricos
BIBLIOGRAFIA

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(Irad. por!. ).

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IC ~ original dos Poemas, se existia já. Se interrogarmos
G. S. KrIl K, Tire SOllgs 01 Homer. Camb ri dge Univer$ity Pre5$.
01 aulores gregos, eles mostrar-nos-ão que tinham Homero
1962 (Irad. csp.).
c Heslodo como os responsáveis pela invenção dos seus
l.. A. SnLLA, /I poema (fi Ulisse. Fircnzc. La Nuova [tal ia. 1955. deuses. eessa a conclusão que se pode tirar de um
D. P... c~. Tlle Nom eric Odyssey , Oxford University Press. reimpr. fragmento de um poeta e pensador do sé<:. VI, Xénofanes 1.
1976. °
n que o hisloriador Heródoto, no século seguinte,
D. P"-CE, Foikta/cs in ,-Iollle"$ Odyssey, Harvard Un íversi!)' Pres$, afirma expressamente 2. e
ainda, manifestamente. o que
1973 (Irad . iI.: Nnt:cQllti popa/arí lIelf'Odissco, Napo li . Liguor; , ponla Platão J.
1983). Mas que o panteão grego ascendia , cm grande partc.
H. DELEBEcQuE, CO/lSlrllffioll de I'Odyssée, Paris, les Belles Lemes. la micénico. era dedução brilhante de M. P. NILSSON '.
1980. que a decifração das tabuinhas em Linear B vai compro-
Vindo, pois os nomes de deuses ai encon trados coincidem.
em ge ral. com os já conhecidos 5.

Irll II Df~LS (Héfadf!, p. 121).


ILivro II. cap, 53 (H é!ade. p. 222) .
propiciam a criação e transmissão da ~ grandes epopeias. e a N~ crl1ica fei1a à milOlogia tradicionlll no l .ivTO II da
partir do século seguin te que começam II. surgi r remmlsccnciu H'I"IMim . especi almente em 377d.
homtricas nou1ros poe1as). chega, por outra via, a conclusões 1!1e MyC"enaean Ori8il1 01 Greek Myllw!08Y. 1932.
scmelhantcs. I Anim. os nomes de Zeus. Hera, Poséidon. Ártcmis. Ares.
17 De SI/b/imi. 9. 13. Atln •. Até 1t data. falta. surpreendentemente. o de Apolo. o que
'I}I '05

Se, porém, as histórias que Homero lhes atribui eram . upctlmivados 7. Por isso, M. P. N ILSSON afirmou que
antigas, continua a ser um problema em aberto, que como nbrirA m caminho à filosofia iónica I.
la1 temos de deixar 6. Se alguma vez houve teriomorfismo. tudo qua nto
Limitemo-nos, portanto, a tomar os dados que as resta em Homero não passa de possíveis vestígios. Entre
epopeias nos fornecem, pa ra tentarmos entender as reli- Cites figura m os epítctos de Atena ("(À.o.IJXW;cI4, I<de olhos
gião que nos apresentam. brilhamcs» ou «de ol hos de coruja ») e de Hera (~OW1t~~,
A primeira c mais evidcnlc característica destas divin- "de olhos grandes», que talvez fosse primilivamente "de
dades é serem luminosas e antropomórficas, o que, pondo o lho~ de vaca,.. característica a pôr em paralelo com a
de parte a religião hebraica, que é um caso único e sem dll dcma Hathor. no Egipto). Mas tudo leva a crer que
paralelo, representa uma superioridade incontest~vel sobre 115 sentidos primeiros destes adjeclivos já estari am obli te-
as demais da Antiguidade. rudos para os próprios aedos. Neste contexto podem
Em vez de potências ocultas e terríveis, temos formas ulnda incluir-se as metamorfoses de Atenu cm pássaro 9 .
claras. que se comporta m c reagem como seres humanos
Exceptuo·se Circl.'. que é um caso de magiu.
• Ceschicllll! der griechisdwll Religioll. Münchcn. Ik!.:k, I.
' IIJb7. p. 113. Sobre o papel clarificador de Homel'O nll confus.1
tl'udlçAo religiosa grega. veja-se W. IJ URKERT. Griechüche Rc/igioll
lIur urc!l(Iische" II/Id k/ussischcn Epocllc. Stuugart . 1977. p. 191.
talvez SCjll clI5ua l - embora não dC~'a esquecer-se que o deus cra O mesmo W . BUNKERT. Sfruefure and Hisrory ÍlI Crcck Myt/TOlogy
dd\'nsor dos Troianos. um/ lúlual. University of California Prcss. 197':1 . escreve; .. Assim.
Sobre o assunto. veja-se. entre outros. o artigo de W. K. C. enl face do fundo mais geral de contos e ri tua is. que constante-
G lJ tHRTE, ~Earl)' Greek Religion in lhe Lighl or the Dedphcrmcnt ntcntc eram transmi tidos e sobreposlo5 U'IS !l OS outros no
or Linear a_. Bulle/i,1 01 lhe /nsti/utc 01 C/assiml Sludies ( London) nlllndo <.:omutn do an tigo Próximo Orkntc e uO t-.kditerrâneo.
6 (1959) 35.-46. c A, H tU8~CK. Aus der lVe/t der jriihgriechischen • mitologia grega assume orna fonna perfeitamente individual.
Lilleartafeln. G ouinge n . Vandenhoeck und Ruprecht. 1966. p. 96. ~t.lI1\O que congehllldo nas suas próprias crislali:(a"ÕCs. O rac to foi
Na esteira de M~ULI (vide $upru. p. 90, nota 2). há já quem tob~ tudo devido li c\'olução da poesia épica oral no scntiuo de
pretenda f:u:er descender ee rlas crenças gregas 90 Palcolítico IImu .rte altamente espcciali'tada e li influêncin dominante que
\ W IJURKEIIT. Hom o Ne('UII$. 11172. trad. ingl. com o mesmo titulo. ~ IflUllu Ildquiriu. (p. 141).
Univcrsily 01 California Press, 1981). ~ OJIUI'1I1. I. 120. Embora o estudo de DIRI,.MtIEII. D ie
o Alguns autores têm procurado distinguir entre versões breves VIIIl"I/le~fUII Itom(',isch .., COIt*". Heidelberg. 19b7, pre tenda provar
e verWcs longas de mitos. considerando as primeiras trad icionais c 4ue JI~ I\l ~tamorroscs di,'inas não p~ssam de ~imi1cs. ii verdade
as segundas eriaçio homérica. Estão neste caso M. M. WILl.COCK .! \.jUC: "1111105 dos texlos em cau,a não 3dmitem essa inlerpretação.
(.. Mythological PlI.radiglll in the Iliad., Classica/ Quarter/y, N. S. A dlvc:r.lullde de situações foi posta cm relevo por H . BA:.tNERT .
14 ( 1964) 141-154) e B. K. BRASWELL (<<Mythological lnnovalion • Z\lr Vuae laeMa lt der Goth:r bei Homer". IY;"III" $Iudirm. N. r.
in th e IJiaU ... C/assim! Ouarlerly. N. S. 21 (1971) 16·26). I' (197.) 29-4 1.
106 107

cm águia marinha 10, em a nd o~i nha Jl, e da mesma deusa Misturam-se com os homens na Ilíada , e a lgumas
e de Apolo cm abu tres Il, vezes aparecem-l hes disfarçados, mas são reconhecidos .
Deve ain da notar-se que alguns deuses são fo rças COmba le m junto dos heróis que protegem e adve rtem-nos
da natureza , como Hélios, o rio de Tróia B. os Ventos '., dos perigos, como neste passo da Ilíada 1';
a sua quase totali dade. distinguem-se por uma
Então acercou·se de Heitor Febo Apolo e disse-lhe:
superlativação das qualidades humanas. São mais altos . "IIeitor. não lutes mais com Aquiles na fren te da batal hn.
mais fortes . mais belos (com excepção de Hefeslos, que recebe-o ames no meio da multidão e do fragor do combale:
é coxo); possuem em mais alto grau a á pE"n i e a "t"LI..rlllJ, quando não, ele pode atingir·te ou dar·te com a lanço _.
E sobretudo. são os q ue existem sempre (<<tÊ:v iÓvtE<;), Assim fal ou, e logo Heitor. ro:e050. mergulhou no tumulto
guerreiro. quando ouviu a voz do deus que lhe fa lara.
não con hecem a velhice nem a morte, e a sua vida é fáci l
(~(ta. l;,WO\l'tEÇ) 16, Con tudo. como a noção de e tern idade
Todo este canlo (o XX) nos mostra os deuses no
não c}[is tc a inda (56 aparece com Pl atão c Ari stóteles),
campo ue batalha, mo tivo por que os antigos o designa-
os deuses ncio tê m fi m. mas têm começo no tempo.
vam por Theomachia . E no canto V, Afrodite 13 C Ares
10 Odis~eiu. III. 372 (Hélade , p. 49).
tinham até sido feridos por Oiomedes. Contud o. é nessa
II Odisseia, XX I I . 239-240. mcsmll parte do poema que Apolo lembra aO fogoso
11 /lIoda , VI I. 58·61. guerreiro que a raça dos deuses é distinta da dos heróis.
ULembre-se o grandioso episódio do combate do fogo c dI! O verso 131 do ca nto XX afirma que «a vista de um
água. no Canto XX r da lIIada (em parle traduzido na Hé/ude, p. 40). deus é diHcil de suportar» I~ .
I~ Entre OUlr05 pusos. veja-se /liuda, XX IIJ. I92·221 (Hé/adc,
pp. 42-4J).
Este reivindicar de direi tos, esta afirmação de dis-
IS filai/a , IX , 49().498 ( H~lade. p . 28). Alguns passos sugerem lúnc ia parece uma necessidade subitamen te sentida no
ainda a exisltncia de uma linguagem diferenciada (cr. JENNY Cuy ,
«Dem85 and Audc: The Nature of Divine T ransformation in
Homer., Hermes 102 (1974) I 29-1J6). NOle-se que a mesma dife·
renciação se observa na comida , na bebida, no sangue - para os II.da num só \'erso em Odisse;o, V. 218, em que Ulisses opõe
q ua i~ os Poemas enconlra m equivalcntes que acentuam o carácter C.lipso e Penélope. q ue. apesar d isso. prefere:
transposili\'o da concepção da divindade. Uni. dos melhores
lia é sem dúvida mortal; tu não conheccs a velhice ncm a morte .
l'llfmplos figura em Ilíada v. 3H-J42 (Hélade, p. 22\
16 O faclo de não conh ~e rem a velhice nem a morte O ~Olllraste com 3 dureza da vida huma na pode ve r-se em
exprime-se numa fórmula. &.y1'}PIJ.oç xa,t &.&ciVIJ."\'oç. No mesmo //iado. XX I V.52 5-S26 (HI/ade. p. 44).
selll ido de busca da noçiio de ctcrllidadc se deve entender outro I' XX. 375·J80 (Hêlade, p . :>9).
e píteto dos deuses Cl~~y[vi"\' llç (" para sempre existen te_I. II 330-342, 353,358 (lN/ade. p . 22) .
A oposiçiio en tre deuses c mortais, daqui decorrente , está coneen· 19 Hllade. p . 39.
109
108

dJmento moral. Assim, no canto VI, a palavra eEO\)O'!Ír;,


meio da aparente confusão do plano humano com o divino.
Efectivamente, os deuses têm também os defeitos dos _temente IIOS deuses .. 2>, caracteriza o povo justo.
homens. No canto II da Ilíada, Zeus envia um sonho Existe, portanto, uma religião, embora não com
falso a Agamémnon; o canto XIV é conhecido desde a uma forma superior. Tudo está cheio de deuses e se
Antiguidade por o _Dolo de Zeus», porque nele o deus IU51ifica pela sua intervenção. Cada acto dos heróis é
ajudado por uma divindade :l6. Mas o facto em nada
supremo é ludibriado por Hera. Se, por um lado. há
diminui o seu valor: pelo contrário, o interesse dos deuses
um princípio de hierarquia, pois Zeus está acima de
todos lO, por outro, ele mantém a sua posição com uma
por um mortal é sinal seguro da sua superioridade. como
dificuldade 11. que encontra paralelo na situação de declara Nestor, ao perceber que Atena acompanhara
Agamémnon I.:m face dos oulros chefes aqueus ll, Telémnco ao seu palácio 71 :
Todos estes facto s. e muitos QUIrOS que poderiam Amigo. não creio que jamais venhas a ser vil ou covarde.
mencionar-se, levaram MAZQN a afirmar que não há poema tão novo ainda, já os deuses te servem de guia.
!)c.

mais irreligioso do que a Ilíada ZJ. E, contudo, isso não


é exacto. O que realmente sucede é que estamos habi· Do mesmo modo, a assistência directa que a deusa
tuados a que uma religião comporte' uma ética. E. na faz a Ulisses c Telémaco, iluminand"lhcs o caminho,
filada, as duas estão desligadas. Apenas pode falar-se enquanto eles retiram as armas do mégoron 23, não repre-
de rudimentos dessa relação, na medida em que Zeus senta uma ajuda supérflua e uma diminuição do préstimo
castiga os perjuros 2-1 e protege os suplicantes. Na Odisseia dos dois heróis, como já se tem escrito. mas é. pelo
já há mais do que isso: os deuses já não enganam os contrário. uma maneira de sublinhar o seu mérito.
homens e esforçam-se por lhes impor regras de proce· e a mesma deusa que censura Ulisses, por confiar
mais em débeis e ignoran tes seres humanos do que no
&eu auxílio:

)) mada, VII I. 1-27 t Hélade, p_ 26),


Eu que sou umll divindadc , que le guardo sem çessar
11 f/iada, XV, 197-199 (lléfade, pp. 30-31).
em todos os trabalhos ..................... .
!! Compare·se a alitude de Zeus em Ilíada. XXI. 385·390
(XX. 47·48)
(I/é/(lde. p. 41) com a de Agllmémnon cm Odisseia. VII. 72·82
(Hé/(Id(,. p. 72): situação idcnlica. semelhança flagrante na reacção
tio chefe. ~ VI. 121 (Héfade. p. 61).
II 1I1t,oducti(J/I ã {'Wade. Paris. Lcs Belles Lettres, 1948, 2<1 1/fa!la, XX.tl2·131 (Hi/ode, pp. 38,39).
p. 294: " La vérilé CSI qu'jl n'y eUI jamais poême moins religieux 17 Odisseia. \lI. 375-376 (fJélade, p . 49) .
que 1'[1iarle ...
a Odisseia, XIX. I-52.
14 E.~. mada. 111.276-280 (flélade , p. 21).
110 III

De reslo, a acção dos deuses é muitas vezes conjunta InllnlO, de um para outro poema jl. Na Ilíada são móbil
com a dos homens. No começo do canto IV da Ilíada . da Icçlo, como quando Atena, no canto I , desce do
os deuses, para invalidarem o resultado do duelo entre NU pira fazer embainhar de novo a espada a Aquiles,
Páris e Menelau, induzem Pândaro -a atirar sobre o rei que! te preparava para matar Agam.é mnon lZ. Na Odisseia
de Esparta. Pátroclo sabe que não foi SÓ Heitor que o 61110 mais distanciados, apresen tam-se de prererência em
atingiu morta lme nte, mas Apolo também 29. lon hos (como Atena a Nausícaa, no canto VI ll) o u disfa r.
Mais nftidos a inda são os exemplos da Ilíada, ambos çldo5 (como a mesma Atena , com a aparência de Mentes.
referentes a Aquiles: no canto I . ou de Mentor, nos cantos II e II I) e são
tutelares (protecção e guia da deusa a Te lémaco e Ulisses.
tu niio penses assim , nem um deus te volle la longo de todo o poema) ou então entidudcs perse-
esse lado ... " .....
auldoras, como H élios e Poséidon. Os conc íl ios dos deuses
(I X. 600·60 I) Já nAo siio lumultuosos c desordeiros. como no poe ma
o u ainda: mais antigo, mas calmos, hieráticos. Este progresso no

... " volta rá ao combate, qua ndo o ânimo


li SC HIILltWUDT vai ao ponto de considerar qut dentro da
cm seu peito o impelir c um deu s o indtar.
p~prl. Odissei(1 há duas crenças d islintas, d cnun ciativas de dois
(IX . 702·703) .utore. : a que supõe uma ordem dll5 coisas nat ural e imanen te .
qUI por veus se efectiva na acção conjunt a de home ns e deuses;
Como muito bem viu SNELL , a prova mais segura • o Imperalivo de um direi to 5upremo, que 05 deuses rep resen tam
de que não se trata de uma maquinaria di vina, como (_Der ProloH der Odyssee., Harvard Studies ;', Classical Philology
acontecerá nas epopeias erud itas, mas sim de uma c rença .1 (1958) 15·32).
religiosa bem definida, es tá no facto de muitas vezes a p.,. M 1'. N Il..SSON, a mOlivação divina e humana represen·
I.v.m origina riamente duas sé ries paralelas de explicaç6cs. que
acção divina ser supérflua para explicar o sucedido, o que
""II I.rde entraflOm em contradiçiio, e ii parle ~cn lral dll lliuJa
prova que e la não foi inventada ,para tirar o poeta de ..... nll nl condição de que Zeus dirige so~inho os acontecimenlos
difículdades JO. (O'lChfchll! der griechischen Religioll, München . Beck, I. Band ,
Efectivarnenlc. as di vindades intervêm sem cessar ' 1961, pp, 368·J69); $egue-Q A. lESKY, GOI/Ucll1! uml me"$c/r/khc
na vida dos homens. O modo de intervenção diverge. no MI)/h'alfoll mr Itomeriscltell Epos. Heidetberg. 196 1. o pondo·se 11
tC tc de B . SNF.LI•• de que a acção hu mana independen lc e, port an to.
re.pondvel. é novidade da tragédia (Aisch)'fos IlI1d dus Halll/el"
1m Drama. 1928). Parece·nos que em Homero não há mais do qUI!
1'1 XVI. 84J·850 (H é/rzdc. pp. 12.3J).
u'n de l pontar dessa noção.
JO Die EfJldeckufJ8 des Gcistes. cap. [I , especialmenle. n 19).222 (I'ié/ude, p . 7).
I'P. ~ 1 ·52.
U 13-40 (lU/adt'. pp. 51·58).
112
113

sentido da idealização vai reClectir-se na concepção da BIBLIOGRAFIA


morada das divindades. Em vez de ser uma monta nha
real, situada na Tessá lia , de muitos píncaros (7toÀuõ[ ~pciç) R. S:I/UL, lJie rl>lde,·kulIg des Ge;slt'S. Hamburg. Claasscn Ve rlag.
e alvo de neve (á.yá.vv~q>oç). o Olimpo passou a ser um 61986. cap. II ([rad. ingksa; Tlw lJiscover>" o, lhe Mil/d.
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deuses _a ete rna c segura man são .. J.l. Se alguma vez os 1'orino, Einaudi, 1963; trad. espanhola: tas 'uelltes dei
antigos epÍlelOs reaparecem para o classificar, é porquc pellSllmielllo europeo. Madrid. Ed ilOrial Razón y Fc. 1965).
se trata de f6nnula s que a tradição facilmente conservava. E. R. DODIlS, 1'IIe Gr<'i!ks aml lhe Irra/iollul. SHlncr Classical
Além disso, se aceitarmos como antigo o canto I da Lcclures, Univenity of Califomia Pn:ss. 1951, f\';mpr. 1963.
Odisseia, c as afirmações de Zeus ne le cont idas, co rrela- cap. J (Irad. esp:mhola: L os Criegos y lo lrruciollul. Madri d.
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cionando-as com a vitória final de Ulisses e o castigo
Paris. Aubicr. édilions Monlaignc. 19651.
dos pretendentes, le mos ai nda uma diferença muito mai s
I' C IIAN TR A!NE.Le Di l,in e/ les Dicux d/c: IIl)m(~re, in Emr(!fiens
profunda. como brilhantemente demonstrou W . KULLMANN:
de la Ponda/ioll I/ardI. Genêvc. IOme I, 1952 [ 19541 . pp. 45A4
na Ilíada , as paixões dos deuses determinam e explica m (,,;om dIscussão c bibliografia).
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11 5

estrangulamentos J. Ao passo que nos desenhos inrantis


se encontra O corpo como elemento central, ao qual se
adicionam a cabeça e os membros.
Diversos vocábulos empregados para explicar as
A Concepção do Homem nos Poemas Homéricos acções ou reacçôcs do home m podem ajuda r-nos a com-
preendê-Ia melhor.
O mais importante é OUl-lóc" palavra etimologicamente
relacionada com o latim lumus, que denota o inst into.
A primeira observação 11 fazer é que falta uma apet ite. ou mesmo alento 4 . O OUI-lÓc, tanto pode impelir
concepçiio unitária da personalidade. Falta a noção de o guerreiro a cometer acçôcs heróicas em combate. como
vontade. que é posterior e, ipso lacto, a de livre-arbít rio , simplesmente a executa r actos triv iais, como o de comer.
que só naque la pode origi nar-se I. falta a dist inção enlre E assim pode corresponder aos sentidos popula res de
o psíquico e o somático. que só mais tarde hã-de su rgir. i(vontade»' ou de «coração» 6.
Pelo contrário. um e outro interpenetram-se, e qualquer Um caso curioso ocorre na Odisseia (IX. 302).
função intelectual é considerada um «órgão», tanto como quando Ulisses, hesitanle no procedimento II seguir. o uve
um dos membros. por exemplo 2.
hEPOC, 8ul-Lóç, «um oulro aUI-Lóc,~ , que lhe dá um consel ho
Tem-se compa rado esta concepção do home m à que diferente.
nos revela a arle micénica: o corpo é formado por d iversas A vóoç cabe a função de entendi mento. espírito, bem
parles que se unem umas às OUlras por uma espécie de patente cm diversos passos dos Pocmas 7. O mais exp lícito
que pode aduzir-se é talvez aqucl\! do episódio de Circc
I Cf. E. I{. Doous. TI!!' GrCl!k s 1111// lhe Irralümu/, p. 20.
nOla 31. O problema foi eSludado por M. POIlLE~Z (V;e S/ou. I,
Gottingen . .\ ]971:1, c C,iedliscll<' rreiJrdl. Heidclbcrg. ]955). que 1 cr. 8. SNI::LL. Dil? Emdc('k1m/l! dl's Gei,les. pp. 2:i-24. que
data a noção dc linr·arbítrio do cSlóil;o Zenão de Chipre. por soa vez se baseia nos trabalhos dc KR'- IT MER. FigJlr ulld RaJlnl
••<\ decisão aparecc. não como umu acção livre, mas COfllO uma iII d." iigypfisdl('lI Imel griechisch.archuiscllen Kmu/. 28. Hallisches
dClerm inação proveniente do ex terior •. conForme observa CIIN. Wincke!mannsprogr~1Ilm, Halle, 1931.
VOIGT. Obl'rlt'JI./lllg /ll!cI E/T/sc/widut/g, p. ~6. • E. g. Ilíada. 1. 205 (lNlad.'. p. 7]: 1. 593 {lIéfade, p. 19f;
~ Cf. H. SSF,LL. Die ElTldeckw/lI. cll?s Gl?is/l?s, Cilp . I. espc- XX.121 (Hélad,'. p. 39), etc.
eiulrneme pp. n {qDiesc Seelcnorgane untcrschciden sich nichl 5 E.g. Ilíada. 1. 468 (I/é/ade. p. 15). ele.
prinzipiell \'on deu Kôrpcrorganen_\ e 34. c H. FIIX:->Kn. Dieh/ung ~ E.g. IIIUl/a. 1. 209 (Hélade. p. 7); 1.243 (Héludl? p. 8):
//Iul " hilosopllil? de$ Irühf'n Griec/leI1/IIIIIS, p. S5 (_Der honrcrischc 5&3 (lU/ade, p. tS), etc.
Mensch iSI nicht cinc Sunrme I'on I.clb und Secl.... sondem ein 1 F. /(_ Odisseiu. V I. 121 (lIé/udc. p. 61): V II. 77 (Héladl?
Ganzcso).
p. 7.1.), ele.
116
117

em que a reiticeira transforma os companheiros de Os dois vocábulos (j)rrnv


e Ovp.6ç aparecem combi-
Ulisses ': nados muitas vczes, como em Ilíada, XXI. 386 11 , e Odis-
Tinham já cabeça e voz, etnias e corpo de pon;os,
seia, IV. 1.20 11 •
mas conservavam o espírito (n6oS ) lal como dantes. Quanto a Wux"lÍ, a palavra d e tão brilha nte destino
em Iodas as línguas cultas modernas, onde vem a for·
Muito próximo deste conceito. a ponto de ser dirícil mar inúmeros compostos, com o sent ido clássico de
distingui-los. está o de !ppTjv (habitualmente no plural, «a lma» . em Homero significa flVida,. ou ~sopro vital».
<ppÉVEC;). que designa também o entendimento. No entanto. O herói às vezes tcm de lutar pela sua vida - pela sua
há um pa sso da Ilíada que parece localizá-lo na região tVvx"lÍ· Mas só se fala dela quando alguém morre, do
prccordial, quando descreve a queda de um guerreiro mesmo modo que - já os antigos notavam - também só
que uma lança 8lraVCSSOU nesse ponto 9, Mas o sent ido se e mprega O"Wl.11'1. para designar o eorpo do herói caído.
acima indicHdo é extremamente frcquemc lO, Logo na proposição da Ilíada se estabe\çee uma
cu riosa distinção, inversa daquela que nós hoje formulu -
damos, ao dizer que, devido à cólera de Aquiles, muitas
o,V UX:/IL ilustres de heróis foram para o Hadcs c eles
mesmos foram presa dos eães e das aves de toda ;.l
qualidade. Aqui, portanto, «eles mesmos» são os cadõ·
3 X.239-240 (lIé/ad". p. 74). ve res que ricaram no eampo de batal ha.
9 Em XV I 480·481. I~·se que Pálroc!o rcriu Sarp.:don «no Quando. portanto, o herói morre, a ~UX'; escapa-
lugar onde pl"'!IH:'5 cerçam o musc uloso coração,., M .o\Zo~ traduz -l,c·lhe pela boca ou por uma ferida. Qualquer destas
aqui a paluvu por «pericárdio_ , E logo 11 seguir. Quando o herói
noçõcs encontra fácil paralelo c m outros povos antigos,
re tira li la nça do cadáver do principe lido, é difícil decidir se
pllre"cs 11:01 um sem ido concreto ou se está usado para signirlCa r
ou nos que identificavam a vida com a respiração. ou
que rkou inconsciente, Inl como :icontece com a psyche do verso nos que a sit uavam no sangue.
seguinte , cujn perda equivale à da vida (SQ4-.505l:
Arrancou n I:mçn do corpo, e atrás dela ~cgu iram as plue"es:
ao meSmo tempo lhe tirou a ps)'che e a ponta da lança.

Tnmbém na Odisseia, IX. 30 1, Ulisses faz o pro;ccto dc Ires. II H é/w:/e. p. 41.


pa~sar ~om li espada o Ciclope «no ponlo em que pfmmes rodeiam II l/é/ade, p. 52. Um caso COIllO É') q>ptv!'J. (NIlO ') d:ylpthj,
\l figlldo ....
empregad o em Odisscw. V.458. para descre\'cr o despertar de
1(1 /fiada, IX. 186 (ll(-/ade, p. 28); XVI. 851 (Héladc. p. 331. Ulisses, parece sugerir o sacudir do lOrpor do sono. como que
Odi:>seia. III. 26 (lftiflldc. p. 4tH. etc. rtvita li:wndo a <pp,;v com novos alentos.
11 8 119

Um exemplo típico pode ler-se na descrição da crever as acções o u reacções humanas. A todos seria
morte de Pátroclo Il, cm fomlUlária, aliás. mais vezes fácil apontar excepções ou desvios. O que fica estabele-
repetido: cido, e que foi posto em evidência pelos estudos de DODOS,
SNELL e HERMANN FRÃNKEL M, é uma espécie de deno-
A estas palavras. envolvcu-o o lermo da morte.
minador comum de IOdos eles.
A ps)'chl' evoJa-se dos seus membros pata a mansão do HaJes.
geme ndo a sua sorte. ao deixar u força da juventude. Há ainda intervenções psíquicas. que o homem
homérico atribui a factore s que lhe são ex ternos . Está
Espcdalmcnte elucida tivo é o que ocorre no canto ncsle caso a a.TTj. desvario momentâneo mandado por
XX I II do mesmo poema. O fantasma de Pátroc lo aparcec Zeus, que leva a pessoa a cometer actos de q ue depois
cm sonhos a Aquiles H: se ar repende.
O exemplo mais célobre e mais nítido é o das des·
Mas eis que sur~w 11 ps)'che do miserando Pátrodo. culpas de Agamémnon, no canto XIX da Ilíada. O rei
cm ludo semelhante a elc. Iln estatu ra. nos olhos formosos
c na voz, o corpo envolvido nas mesmas 1'\,5I(,'S.
de Mi ce nas diz que foi I<essa divindade funesta, que tudo
leva a termo» que o induziu a desconsiderar Aquiles na
assembleia 17:
Aquiles tenta abraçá.lo, mas ele esvai-se como o
fumo. E o herói lamen ta-se 15: ..................... Niio sou cu o culpado
mas Zeus t: o Destino e li Erínia que caminha na sombra,
Ah! € enlão verdade que existe no mansão d o I-Iades quando n3 assembleia me lançaram no espírito o desvario
uma psyche e li ma imagem. que não tcm. contudo, p/mlll [selvagem,
[alguma! naquele dm em que 3rrcbatei o presenl~ d... honra de Aquiles.

Por conscguinw, H psyclre tem forma, a mesma da Na sua penetrante análise deste passo, DoDOS IS
pessoa quando viva, mas não possui consistência e nno mostra que Agal)lémnon nno pretende, com esta expli-
tcm plrrenes,
cação, fu gir às responsabilidades, pois en trega a Aquiles
Estes sào os faclOS principais que podem apontar.se uma avullada indemnização.
no meio da flutuante terminologia homérica para des. Também no episódio do recontro de Claueo e Di o-
medes. no canto VI da Tliada, o poela comen ta maliciosa-
Il lIí(l(lu. XVI.855·857 (Hélade, p. 13,. Cr. XXII. 361.163. me nte que «deccrlO os deuses tiraram o senso a Glauco~.
<?WlI1do desce 30 Hades. no cllnto XI da Odisseia. são as ps)'c1/f/i,
" Imll!lf;""n~ dO!; deruntos ~, que Ulisses enCOntra. Ió Cilados adiante, na bibliografia.
" llía(/a, XXIII. 65·67 ( H~/ade. p. 4\). 17 llía(la, XIX.86..s9 (Htlade. p. 38).
" mada, XX II I. I03·1~ lfIéladc, p. 42). 11 Tlle Greeks a/ld lhe Irra/iona/, cap. I. espcdalmenle pp. 2·3.
120
121

q uando trocou as suas armas de o uro pelas de bronze de OU 101L.', C J cste sentido deve te r passado, por eXlensâo,
Oiomedes ~.
" des ignar aquilo que a cada um cabe em sorte na vida,
A palavra IJ,ÉVOt; designa um estado de espírito em ou seja, o destino.
certa medi da comparáve l a este. E, como lhe cha ma O destino é fi xo e in amov ivcl, c nem os próprios
DODos~, «u m miste rioso acesso de energia», que fal sentir deuses podem alter.i·lo. Esta últi ma afi r mação, porém,
novas forç as ao herói li quem os deuses o insuflaram. é passível de uma restrição. porquanto, embora o pro-
O exemplo típico é o de muda, X III. 59-61 : blema seja muilO controverso. parece que Zeus pode, se
Disse. c. locand o..os com o bastão, o Senhor do solo.
quiser, modificar a moira. Um dos pontos de apoio desta
( o deu s que aba l:! " terra,
inlerprclação encon tra-se no canto XV I, q uando Zeus.
" nmbos cnçhcu de poderoSIl energia (menosl. ao contemplar a batal ha cm qu e :'C lI rilho Sa rpédon se
torn ando ágeis seus membros: os pés-depois, mais acilnn. enconl ra em má pos ição. pcrgunla n Hera se não será
(os braços. melhor retirá-lo. A deusa rica indignuda 2':

Mas a mesma condição nos aparece estaticamente consi. Cr6nida terrível. que p:l [avras s:'o as lLLlL ~?
derada quando a plicada, por exemplo. a Atcínoo l i, Um homem. que é manaI. h:í muito Ill ll rcado pelo destino,
~ lU qu eres tibertâ-[o da morl\! nefaSla?
O homem homérico depende, em ultima análise. do
Fá· lo. m:.s nós. os oU lros deu>~'s todos. não le louvamos.
destino, a jJ.otpa ou at(fa u, que ludo parecem dominar.
A palavra tJ,OLpa. é um substant ivo comum que s urge
Este mesmo passo lem servido para apoiar a opinião
inúmeras vezes nos Poemas Homéricos lJ. Significa parle
daque les que vêem aqui a completa submissão ao destino.
t~ V I. 234.236 (Héladc . p. 25). Mas Hera, apesar de escandal izada. l.Idmi tc a poss ibilidade
!9 O p. cit., pp. 8-9. de se retirar Sarpédon do combate. Pelo q ue logo passa [l
II Odisseia , V II. Ib7 e 178 (1M/ade. pp. 70-71).
apontar os inconvenienles que de um lal aClo resultariam,
12 As du~s pa[avr,IS siio sinónimos : c ambas são hoje ,:ollsi.
deradas provt:n ient es do micénico. \Lm dos dialec tos que en tram
pois oulros deuses quereri am proceder de igual modo
na eo nstituiçiio da linguagem homérica. Essa equivalência é nflida com os seus filhos .
em lliada. VI. 487-489, onde, no espaço de três versos, surgem as
duas com o mesmo sentido (lIélade, p. 25).
lJ E.8., J1iada, XV. 195 (/1é!Iade, p . 30).
~I Ilíada , XV I . 440-443 (Hélade , p. 32). Os Irês últi mos ve rses
Também aqui. o que vamos dizer ê uma espécie de denomi- repelem-se eXllelamenle em XXt l. 179-181, nu m diálogo seme lhame
nador comum pois. como bem observou A. W. H . ADKtNS (Meril entn:: Zeus c Alcna. a propósito da sa n e de Hei tor, NOIernos ai nda
(md Responsibilit)·, p. 23). " lhe implications of lhe language que o fllCIO de o v. 443 ser uma ró nnula, usada nOUITOS conleXIOS,
"ommonly uscd in Homer of gods and moira alike would. ir que só t~'m de comum co m este a discordância. lhe relira pane
drnw n out. furnish a defense va liel in practically an )' situation •. dl' seu volo r.
122 123

Também aqueles passos da lliada em que Zeus , num como em grego clássico, mas a excelência 11, a superio-
dia de batalha, pesa na sua balança de ouro os destinos ridade, alvo supremo do herói homérico. ~ dada por
dos con tendores l!I, para saber qual há-de sucumbi r, podem Zeus 2B e diminuída quando se cai na escravatura 2').
tomar-se como uma prova da especial relação existente I! sobretudo no campo de batalha que se revela, através
entre O deus supremo e a moira. da coragem e da força. Mas pode também exercitar-se na
A in aherabilidadc da moira está bem patente nestas assembleia, através da arte de persuadir. Dois versos muito
palavras de He ilo r lI'i: citados da Ilíada definem a IipülÍ de Aquiles, que lhe
foi ensinada por Fênix. seu velho preceptor 1(1:
Ninguém me lançarií ao Hades contra as ordens do destino!
GllronlO·te que nunl;8 homem algum, bom ou mau. Para isso file en\'iou. a fim de cu te I:Ilsin3r tudo isto,
escapou ao $eu destino. desde que nasceu! a sabl:r fazer discursos c praticar nobres feitos.

Em oposição a estes concei tos, a apE't"lÍ é qualquer E se, como foi moda durante muito tempo, persis-
coisa de conscientemente procurado. Denota não a virtude, tirmos em considerar tardio o canto IX, restam-nos ainda
estes versos do canto I, que descrevem o isolamen to de
.1.\Em VIII .66·ó7 (I/é/ade, p. 27), estão em causa Aqueus c Aquiles, depois da ofensa que lhe foi feita por Aga-
Troiano~. Em XX II . l08·2l3. Aquiles c HeilOr. A breve rderência rnémnon li:
dI: XIX. 223·224 (*/l honl cm que Zeus inclina a balança,.) ainda
dcha menos dú\'idas sobre a superintendência de Zeus. Por ino. Entretanto, sentado perto das suos râpidas naus.
au çontrário de AnK[~ S (Merit Ulrd Rf.'sponsabi/ity, p. 17). que estava irado o divino filho de Pelcu. Aquiles de pés velozes.
entenJc quI.' as balanças silo J istintas de Zeus. bem como a Nem frequentava a assembleia, que dá glória ao~ homens,
pesagcm. sem o que ela não leria sentido. vemos nelas, como ncm o combate. mas ali permanecia consumindo
escreveu GRUIII:. '-0 símbolo concreto de uma decisão _ (in Sludies o seu precioso tempo. com saudades do alar ido .... da luta.
NQrII'OQd, p. 4, apuc/ ADKI"'S . op. dt" pp. 27-28, no ta 9. onde se
cil:l '!lois bibl iografill sobre o assunto). O valor simbóliço da
pl.!sagem I lIm~m foi aceite por CltR. VOIGT, Oberlegung Ullc/ 11 r neste ~~ntido dt: I.!xcelência ou superiori dade que se pode
EnISc/leidulIg, pp. 82,86. fular ta mbém da ÓcPE'":"T) dos ca\·alos.
A noçiio pode ser muilO antiga. pois há um ~aso micénico, ~ lliaJa. XX. 242-243 (HéfaJe. p, 39),
ellcom rado cm Chipre. qu~ ilustra uma cena desta eslX'dc. Tanto !9 Odisseia. XVII. 322,323 ( H élade. p , 78).
a informação como a fOlogrdia do vaso se encontram em M. P. JO IX.442443 (Hélade. p. 28), Confronte-se o que. no mesmo
Nu.ssos. lIomer (lml M}'cenaf! . London. Methucn. 19B. p. 267 canto hcrsos 53-'i4l, SI.! afirma accn:a de Oiomedcs.
I.! fig. 56. Outra interpretação do vaso em I. WIESN!;H, ArcMo-
logische ,ulrrbüclter 74 (1959) 35 (apl/ri A. LESK)·. H omero5. T idida. no combate. és tu o mais possante;
SIIJl1gart. 1967, coI. 48). no conselho . o primeiro enlte todos os da tua idudc.
M Ilíada. V1.487,489 l/1 é/ade. p. 25). II 1.488,492 (lU/ade. p. 16\.
124 125

Es1a é a Ó:Pt't1] da Ilíada. A da Odisseia é um pouco .. notável pelo seu grito de guerra». O mesmo sucede a
mais ampla, como pode deduzir-se do comportamento do Menelau.
seu herói, Ulisses , que à força, coragem e eloquência, O contrário é aLaxpóç «vergon hoso», palavra que
junta a astúcia , a habilidade de se desenvencilhar, pela nos conduz à noção de «cultu ra de vergonha», como é a
finura do seu espírito, das mais intrincadas situações. da Ilíada ", O passo do canto VI atrás citado (.. a fim de
Podemos ainda delinear um terceiro tipo, a IÍPE'T1] não envergonhar a li nhagem paterna ») é bem caracte-
feminina, que em He lena e Penélope é a beleza 32, em rístico desse tipo de cultura.
And r6maca o cuidado com os trabalhos e ordenação de Estas são, portanto, as coordenadas cm que se desen-
sua casa ll. volve II actividade do homem homérico. adentro de unw
A palavra está etimologicamente relacionada com o sociedade aristocrata no puro sentido etimológico do lermo.
su perlntivo (iP~(1"to:; ( "O mais valente», «o mais concei- A convergência de honrarias e altos cargos sobre aqueles
tuado») c com o verbo ó:pltT't"Eúnv (<<comportar-se como que os merecem pela sua dedicação c valentia afirma-se
o prime iro »).w. Ambos os termos nguram neste passo do claramentt: nesta fa la de Sarpédoll a Glnuco. seu 31lligo
canto v r 3.'l: e companheiro, no canto XII da llíatla Jil :
,\-Iandou·me pina TrÓiu. recomendando-me com insistênçía Gtauco. porque nos cumulam de hOllt:lri:lS 1111 Ucilt.
que foue sempre valente e superior aos OUtros, com lugilres especiais, carnes e taças rcp tct a5,
li fim de n flO enve rgo nhar a linhagem paterna. porque olham para nós. como se fó~scmos deuses'!
a mais eoncl'ituad n em IÔfira na \'llsta Lida. Porque fruímos de um grande terreno. junto às mlli'l!cns
[do Xanto.
A este grupo veio ligar-se, não já pela etimologia. que é tâo bom pata ter um (}Omar e para II cultura do tr igo?
1>or i~ agora dC\'cmos estar entre us primeiros \'nn'ks
mas pera sen tido apenas, à,yctOó<;. Ser à,yaOóç é ler espe-
lda !.ida,
cia l força ou coragem ou habilidade para qualquer fim a tomar parle no ardor da batalha.
~uperior. Assim. Oiomcdcs é qualificado de Boi)\I ci.yaOóç J6, a fim de que qualq uer dos Lidos de forle çouraça diga assim:
_Não são homens a quem falte a glória. estes JlOSSOS reis.
que guve rnam a Lída. que comem as pingues ovelhas
Jl cr. //iada. 111. 146-160 (Hé/ade. p . 20) e adiueia. XIX.
124·126 (/lilude, p. 791. e bebem um vin ho escolhido. doc e ço",o O mr:l: ao (on trúrio,
}} lliada. VI. 490-49:> (//éladl'. p. 26). rsiío senhores
de uma nobre energi a. Jl'Ois çombatem cnU'e os Ucios 113
II E aind~ com a palavra post-homética Ó:"vndtt. que aparece
Lprimeirp fila. _
Lomo epigrafe IPrdia de certa s cantos: II áp~!J""tE!.a de Diomcdes é
o v da Ilíada. a de Agamémnon o Xl. a de Menelau o XVII.
}~ 207·210 (lN/allc, p. 24). li Cr. DODD.~ . 01'. cil., p. 17.
'" 1:./1. Ilíada. VI. 212 (Hélllde. p. 24). .lS 310.321.
.._- ------ ---------~~----

I
126 127

o
complemento natural desta axiologia é o horror Mais tarde, no canto XVIII. a escolha está feita, e
de se tornar desprezado pela sua cobardia. O mesmo ~ Aquiles que anuncia à deusa sua mãe O propósito de
Sarpédon, ao sucumbir às mãos de Pálroclo no canto XV I 'VIngar Pátroclo, mesmo sabendo que a sua própri a morte
do poema, ainda (az ao amigo esta recomendaçãol'l: te segu irá imediatamente à de He itor u:

Scrc:i para li d.:: fuluro causa de vergonha c de opróbrio. . ..... Mas agora quero alcançar uma nobre glória,
parI! sempre e cm todo O tempo. se acaso os Aqucus e que as T roianas e Dardân idas de bela cintura.
me despojarem das amlllS depois de cu sucumbir no enxugando com ambas as mios as lágrimas
[combale doo n3vios! nas tenras faces. solucem profundamente.
Resiste com todu a (orça c c'<.orta todo o teu povo. e se llpercebam de quanto tempo me abstive do combale.
Por muito que me ames. niio me afastes d:1 luta: não me
E, porque assim é, [I 'ttJ.l'lÍ é a mais alta compcnsaç~o [convencerás.
do guerreiro. E a honra que se presta ao seu valor <lO.
a grande motivo da queixa de Aquil es no canto I é preci- A resposta de Tétis aceita os mesmos valores oU:
samente O terem-lhe roubado o público reconhecimento Sim, meu filho, é verdade: não é vileza
da sua superioridade ~1, c é a restituiçiio dessa -rqní que l,fastar dos camaradas exaustos a ",orte ruinosll.
Tétis vai impclrar de Zeus.
€. ainda o amor da 'tq.ll) que leva Aquiles a preferir Todos estes aclOs adquirem o seu pleno significado,
a uma vida longa. mas apagada, a mor te gloriosa. Deste se soubermos qual o pensamento escatológico grego em
duplo destino que lhe fora anunciado por Tétis. dá conl" tempos homéricos. Que do morto não restava scniio n
no discurso tom que responde a Ulisses no canto IX 4~ : pS)'I:he. sem phrellcs nem consistcncia, vimo-lo llnterior-
Minha mãe mo dbse nlUit3s \C7.CS. Tétis de pés argênleos: mente neste capítulo, ao estudarmos o significado daquela
duplo ~ o destino que me le":I :10 lenno da morte: palavra. No mesmo episódio do canto XX I1I. a q ue
se fico aqui II lutar cm volta da cidade de Tróia. pertence esse passo, o fantasma de Pá troclo apar~cera a
perdido está °
meu regresso. mas II glór ia será imorredoura; Aq uiles. rogando-Ihe q ue não tardasse a dar-lhe sepultura .
mas se regressar a casa. 11 amada terra pátria.
a fim de que pudesse passar os portões do Hadcs, pois.
perdidn estará a min ha nobre glória. mas a minha \ida
será de longa dur:lçáO. c levará tempo ii quI;." me atinja cllqulInto o não fizesse, as outras psychai o impediam de
[o termo da morte . atravessar o rio e o obrigavam a andar errante. /I. míscra
con dição dos mortos no Hades é sublinhadn pela Odisseia
t~ 498-501.
'LI /líad!l. 1.27g (flélade. p. 9).
41 E.8 .. Ili(ld(l , I. 510 (Hélade. p. 17). .) 121·126 (Hélade. p. 33).
<I 41().416. ~ t28·129.
128 129

no canlo ~I. sobretudo na famosa cxclamaçãc de Aqu iles. Nilo neva. não há grande invernia, nem chuva.
Mas a~ brisas do Zéfiro sop ram sempre ligei ras.
quando Ulisses acaba de o felicitar pelr. sua posição régia
Y1I1das do Oceano, para refrescar os hOmens.
no reino das sombras 45: Isto. porque possuis Helena. e para eles és genro de Zeus.
Não me dogics a morte, Ó glorioso Ulisst"s!
Antes queria ser servo du gleba, cm casa Trata.se, porém, de um caso único, de um privilégio
de um homem pobre, que não liveS6c recu~os, outorgado ao genro de Zeus, como aí se afinna expres·
do que ser agora rei de quantos mortos pereceram! samente , c que nada faz prever venha a ser concedido a
t; . evidente que Aquiles é re i no Hades (tal como outros. A presença da figura de Radamanto (cujo nome
Minas é juiz e Oríon anda à caça), porque essa sobrevi- tem um sufixo minóico) no local sugere a origem cretense
v~ncia é imaginada como uma continuação incolor dll da lenda fi.
VIda que se levara sobre a lerra. Mas a amargura das A regra é, portanto, ter como destino último apre·
suas palavras traduz as saudades sem esperança do homem cária sobrevivência no Hades, sem consideração do valor
que abandonara a luz do dia. que distinguira as pessoas cm vida. uma vida que fo ra
E esta perspec tiva sombria. de aniquilamcllIo, que por sua vez transcorrida no meio do perigo. Efectiva·
\!spcra o herói homérico. I! certo que poderá apon tar.se mente, o homem é °
mais frágil de todos os seres sobre
~ma excepção. que, por isso mesmo que se encontra a terra; mas conforma·se com a sorte vária que Zeus lhe
Isolada nos Poemas, foi por muitos considerada uma inter. manda - diz Ulisses no canto XVII I da Odisseia 48.
polação: é o passo do canto I V da Odisseia em que Proteu O homem na dependência dos deuses - é precisamente o
anuncia fi Menelau um destino especial, ser arrebatado que vimos na parte final do capítulo anterior. Interfe·
pnra os Campos Elísios. lugar aprazível. dotado de clima rência (como é o caso da aparição de Atena a Aquiles
ideal "'6: no canto I da Ilíada) ou paralelismo (como na dC(;isão do
concilio dos deuses. seguida pelo desÍt."Char da seta de
A ti n50 te está de~tinudo. ó Menelau. vin do de Zeus,
morre r cm Argos crilldora de cavulo~ ncm encontrar o leu fim
Pândaro, no canto IV do mesmo poema), a acção da divino
Mus os imortais te millldariio pnm :I Planura Elísia. . dade é omn ipotcntc. Mas, por outro lado, como também
no extremo da terra. onde está o louro Radam3l1to. já vimos, o valor dos homens afere·se pelo interesse que
Ai se oferece aos homens uma vida mais fkil. por eles tomam os deuses.
'5 488·491 (Hélade, p. 75) . Um trabnlho recentc. o tiHO de
M"TIION~ EOWARI). Acflilfes iII lhe Odyswy. Kõnigstei n, Anton H ~in. .., A fundame ntaçiio das afinn açõcs aqui fei tas pode \·cr·se
19t15. vc neste e noutTOS passos uma eri[ie~ do autor da Otlisseiu na nossa obra COllcepçóeS Helénicas de Felicidade no Além, de
/lO da Ilíada, Homero a Pla/ão. pp. 2:>·27 e 105· 1n .
+) 561·569 (lI<'Iadc:. p. 54) . 41! !JQ.llS,
130
131

Paradoxalmente. este ser extremamente frági l é feito ~IBLIOGRArrA


para a luta, e scnte-se feliz por medir as suas forças
contra todos os obstáculos. Quer na guerra - nos inúmeros E. R [)ooos. The Grceks and the Irratlollul, Sathcr Classical
e sucessivos recontros da flíoda ; quer em período de Leclurcs, University of Califomia P~s, 1951. reimpr. 1963,
cap. I (I rad. espanhola : ws Griegos y lo Irracional. Madrid ,
tréguas - como na di spUla pelos prémios que Aquiles
Oocidc<lIC, 1960, lrad. fr:mccsa: Les Grces et "lrrQlionllel.
oferece aos vencedores dos jogos fúnebres em honra de Paris, Aubicr. éditions Montaigne. 1965).
Pátroclo. no canto XX II J do mesmo poema; quer nas
II. SNEI..L, Die EnldedwlIg des Geis/('S, Hamburg. Claassen Verlag.
múltiplas aven turas de Ulisses, quando se defronta com a
619a6. cap. I (trad . inglesa: The DjSçove;y 01 lhe Mind ,
perícia desportiva dos Feaces. no canto VII I da Odisseia, Oxford. Blackwcll. 1951. e New York, Harper. 1960: trad .
ou quando resiste aos perigos fantás ticos que cnchem os italiana: La cul/ura greca e le origin; dcl pcnsicro europeo.
mares do regresso - o espírito agónico grego oI'J não falta Torino, Einaudi. 1963; trad. espanhola: Las luentes de/
nunca. A ele se associa uma viva curiosidade pelo des- pcllsamienlo europeo. Madrid. Editorial Raron y Fe, 1965) .
conhecido. um interesse nunca afrouxado pelo mundo ARl'llUR W. H. AD"I~S. Merir and RespolISibi/i/y. 11 S/IIi/y iII Grl!ek
circundante - que não são menos característicos do homem Vu/ues, Odord. /II lhe Clan:ndon Press, 1960. cap. 11 c 111.
homérico.
ARTHUII W . H. ADKISS. ~ H onour and Punishment in lhe Homeric
Poems". Bullctill 01 lhe 1/lSlÍtule 01 ClaS$;ca/ Studies (London)
7 (1960) 2J.l2.

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wphy. Odord, Blac kw ell. 1975).

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Philologie, Heft 18, Meisenheim am Glan, Verlag Anton
Hain, 1968 .
o estudo dos Poemas Homéricos não limita o seu
ARTH U R W . H . AOKINS, FrOnl the Man)' la the One. A Stucly 01
interesse ao valor intrinseco dos me-S ffiOS. O seu lugar
Persullulity alld Views Df lIumatl Nature in the eOIl/ext
01 Andem Greek Sociely. Values anel Reliels. Lendon, é igualmente importante pela influência que exerceram , e
Constablc. 1970, ca p. II. que é tão grande que não pode compreender a cultura
grega quem deles não tenha algum conhecimen to.
Moral Values and Politicai 8 ehuviour in
AR'T IHJR W . H . AOl(IN 8 ,
Allci(ml GrL'e,'e, Iram H onrer
/O lhe Enel 01 lhe f ilth Cen tur)'.
Muito cedo começou a sua d irusão.
London, Chatto and Windus, 1972. ca p . 2. A princípio eram transmitidos oralmenle e escutados
em ocasiões festivas, de que a panegyris iónica cm Delos I,
C IIRI ST IAN VOleT , OberlegulIg und r:;nlscheidung . S /IIdien zur Selbsl-
auJftlssulIg des MCIIschen bei Homer, Mei5enhcim am Gla n , descrita no chamado H ino Homérico a A polo 2, nos dá
reimpr, 1972, talvez uma ideia.
CI/. . Vll1cu r 1.'1 m i!dioc ri t ~ da ns la perspective de I'lliade.,
M UC LlR ,
Revue de P/II'fologie, de Liltéralure 1.'1 d' fl isloire Âllcienncs Não vamos, no en tan to, tão longe como T . B. L. WUSTt:R,
52 (1978) 254-263. . F,om Homer to Mycellae. London. Methucn . 1958. pp. 268-271
e 191. t! O,eek Arl and Lileralure 700-530 8 . C .• Lolldon, MC lhucn.
DAI/I II B . CL.o\US, T oward the Souf. A.II I nquiry into the M eaning 1959. p. 3. que rorm ula a hipótese de a Odisseia ter sido compos18
01 Psyche beJore Plato. Ncw Hal/en, Va le University Press . para es$C restival (ao passo que a lliacla teria sido para a ceie·
198 1. 1.' e 2,' parte. bração pan-i6nica a Poséidon . no promontório ent re Efeso c Mileto.
/I que se alude cm XX. 403-405 ).
B. S NEL L • • Endspur1 des Odysscuu, Hermes 112 (1984) 129-1 36.
1 O passo estende-se de versos 146 a 155 Olélode. p. 90).
Chama.se HirlOs Homéricos a um a colecção de 33 pocmC IOS em
honra de vário5 deuses. composla em linguagem idéntica /I da
//Iada e d.::a Odisseia, e durante muito tempo atribuída a Homero.
No entanto. se o Hino a Apolo dev e ~r. pelo menos na primeira
parte. do séc. VIII a . C., há outros bem mais tard ios. e um atli
que é seguramente helen ístico (o Hino a Ares).
134 llS

Para isso, havia os aedas e os rapsodos. Di stinguir Este tipo de transmissão tinha apenas carácter
e ntre estas duas categorias é assaz difícil. A primeira ocasional.
palavra , à.o~óó.;, equivale exactamente ao português «can. Mas já no séc. VI a. C. um filho de Pisístralo , tirano
lOf». Com efeito, os aedos da Odisseia cantam, acompa- de Atenas, deu ordem de que fossem recitados integral-
nhando-se à cita ra . E cantam improvisando, como faz mente os Poemas, por rapsodos que se revezavam, no
Demódoco, no canto VI II , quando. a pedido de Ulisses. festival das Panateneias 6.
c para mostrar a sua mestria, celebra, no paládo de Podem ouvir-se em concursos, como se depreende de
Alcínoo, um episódio da guerra de Tróia - o estratagema um (ragmento de Heraclito 1 e do /on de Platão I, E são
do cavalo de pau. E fá·lo de maneira a deixar o herói aprendidos nas escolas, diz-nos Xenófanes 9, o mesmo
maravilhado ,. Também em fl aca há um , Fémio. que com pensador que, ao revoltar-se contra a sua influência em
o seu «canto inspi rado» recorda o regresso dos Aqueu s. mutéria religiosa, nos fornece um excelente testemunho
renovando assim a mágoa de Penélope 4, sobre a mesma KI. Xenofonte. no Banquete", põe em
A palavra rapsodo tem uma etimologia menos clara . cena um jovem ateniense, Nicérato, que sabia as Poemas
Se o segundo elemento está ligado à raiz de w~ó1) de cor, porque o pai lhos mandara fixar em pequeno, e
(<<canto»), o primeiro tem sido interpretado diversamente. que por isso se julgava capaz de ensinar e aconselhar os
Uns pensam na relação com o bastão (pliBoo<;) que traziam, out ros em qualquer matena, , que fasse " .
c que tão bem con hecemos das representações em vasos. Por tudo isto é que Platão, na República LJ, dá como
Outros prendem-no. e com mais razão, ao verbo pci"lt"t"w opinião corre nte no seu tempo que Home ro fora o edu,
(<<cose r»). Seria, portanto, aquele que sabia ligar versos cador da Grécia.
uns aos outros. Pa rece certo que já não cantava , mas Aristóteles declara na Poética I. que na i líada e
só recitava, c provável que não (Q!,'SC poeta , mas se limi- Odisseia está o embrião da tragédia , como no Margites
tasse a reproduzir o que a prendera 5.
• Pseudo-Platão. HiporcQ, 228b, (Héladc. pp. i84-385 ).
1 IX.2-11 (III/ade, p. 73). Oiógenes Laércio ( I. 57) atribui a medida II 56100. De qualquer
• I. 32>'355 (JUfade, p . 47). modo. permanecemos dentro dos limiles do séc. V t a. C.
~ Cf. KUIK. The Songs 01 H omer, pp. 312·315. e, mai~ recen- 1 Frg. 42 DIEU (Héfade. p. 124) .
temente. Ii . E ISlEN8ERGtR, . War Hesiod ein Rhapsod? ... Gynrnasium • 530a-531a (llé/ade. pp. 400(402 ).
89 (1982) 57·66. Deve notar-se que Homero só fala de aedos. ~ Frg. 10 DII:LS (H éfade, p . 120).
~ que rapsodo já aparece no Hino H omérico a Apolo. Por OU lro t(\ Frg. 11 DIELS (Hélade. p. \21).
bdo. Q frg. ;57 MtIlKEI.J,\cu·Wr;sr de Hesiodo. ao dizer ptiIj.lo.V·Hr; II III. 5-6 (llé/ade. p. 370) .
.io!.ólÍv. só complica a quesu"io. ~ inesquecível o TelralO. um lanto 12 IV.6 (lU/ade, pp. 370-37 1).
irónico. do rapsodo lon. fiO diálogo de Platão com esse nome 11 fi06e.6071l (!lê/ade . p. 408) .
tlléfude. pp. 400-402). l' 1448]).\4498 (Hêlade. p. 41 5).
136 ll7

(poema perdido, que era atribuído também a Homero) - poesia (são o modelo, directo ou indirecto.
eslava o da comédia. ESlrabão considerava que Homero de toda a poesia épica subsequente e
era o mestre de todos, mesmo em geografia IS, E Pausân ias. influem consideravelmente na lírica; os
no séc. J J, refere-se constantemente a ele como autori- processos literários que usam, como os
dade suprema em qualquer assunto 11', epítetos, os símiles, a apóstrofe, o lançar
O texto homérico servia até para apoiar reinvindi· a narrativa ;n medias res. precedcndo-a
cações territoriais, como no caso da pretensão de Atenas de proposição e invocação. não mais
sobre a ilha de Salamina, no séc. VI a. C. desaparecem das epopeias)
A partir dos Sofistas. a Ilíada e a Odisseia eram _ linguu (embora compostos numa linguagem arti-
consideradas uma espécie de enciclopédia. E os filósofos ficial, os termos homéricos podem sem-
e mestres heleníslicos (Porfírio. no séc. III a. C., c outros) pre encont rar-se em qualquer poeta de
caem no exagero de as interpretar alegoricamente. Por outro género, sobretudo no elegíaco e
exemplo, os crrores de Ulisses eram os trâmites por que lírico)
passava a alma humana. Por tal processo. acabam por _ costumes c ideias (o respeito pelas normas da
ver nas epopeias um manual de filosofia. súplica e da hospitalidade 17. que se
Deixando de parte estes excessos , temos de reconhecer man teve em toda 11 Antiguidade grega ;
que a sua influência sobre toda a cultura grega, donde
ê sabido que Alexandre, que Irazia sem-
passa à latina, c dcsta a todas as culturas ocidentais dela pre cons igo os Poemas Homéricos, numa
derivadas, é um facto que não é de mais sublinhar. boceta de oiro, queria imi tar Aquiles. e
O estudo da amplitude dessa influência tem dado assunto só lamentava não ler um cantor igual
a muitos livros, e não está talvez esgotado. Muito resu- para o celeb rar I'; o Télémaqlle de
midamente. diremos apenas que ele abrange os seguintes Fénclon é ainda uma homenagem do
domínios: século de Luís XIV ao jovem principe).
- religião (onde OS testemunhos já citados de
Xénofanes e Heródoto são bem eluci- 11 A Odisseia condensa estes ,'alores numa frase posta 118
dativos) boca Ile Alcínoo (VIII. 546-547):
Um hóspede e um suplicante valem como um irmão
IS Gf..>ografia. 1.1. 2 (Héfade. pp. 46(467). para Qualquer, por minguado que seja o seu cn tendimen to.
10 Em IV. 28. 8. depois de mencionar alguns estratagemas ()U II Desta aspiração é reminiscente o final de Os Lusladas.
práticlls de guerra Que se Hprcndiam na Ilíada, o autor condui: quando CAMUES diz a D . Sebastião que lerá quem o celebre
.. Efectivlmlente os ensin~ment05 de Homero vieram II ter utilidade de sorte que Ale xandro em vós se veja .
para os homens em todos os domínios ... scm li dita de Aquiles ter inveja.
138 139

A innuência nos idea is, propondo à admiração dos UIBLlOGR AFI A


ouvintes a coragem indefectível de um Aquiles, que sacri-
fica a vida à sua "t4-lT! , seguindo, como expressivamen te
w. l"-wu. Paideia, I, Bcrlin. De Gru ytcr, 31954, cap. 3 (Irad. porl.).

escreveu MA RROU, a «mora l heróica da honralt 19, ou a II. I. MAIIIIQU, HislOire de l'fduculjoll dons I'All liquilé, Pa ris,
gdi tions do Seuil, 61965, ca p. I (trad . porl.: História da
urbanidade do jovem Telémaco. que se mantém sempre
F.ducaçüo no Antiguidade, São Pau lo, Editora Herder, 1966).
ante a insolência <los pretendentes. é sem dúvida uma das
principais. Esse valor do paradigma, que Atena apon ta (j S. KIKK. Tllc SQlIgs 01 Homer, Cambridge Univctsiry Prcss.
1962, pp . 312·3 15 ( lra d. e-opanhoJa).
a Tclémaco na pessoa de Orestes, exercem-no os próprios
POCrnas sobre as gerações subsequentes . Acrescentemos H . SEIoU.V, _From I'hcmios 10 l on~. Re vue des f ludcs Greeques
a isto a ligação entre o elemento estét ico c o ético 1l,I, c 10 (1951) J]2·l55.
leremos as duas razõcs pri ncipais da peren idade do va lor V . EHRr.NBERG, Society oll d Civi/izotioll iII Greecc um} Rome, Ma rtin
de Homero. Classieal Leclurcs, vaI. XVI I I, Harvard Universit)' I' rcss,
1964. pp. 10-] 2.

M. H. ROCI/A (l 1: IlEI IIA, " O Concei to de Poesia na G«:!,;ia ArcaicaJt,


Human ilas XII I·X IV (196 1· ]962) 336-331, especia lmente
pp. 337·342 (2·1 da sepa rata).

19 Histoi,(, l /C I'lÔducatioll dO/IS I'A lltiquité. p. 41. Sobre "


" interpretaçiio estrita. radical c consistentemente heróica do
mundo,. apn!scnracla na lIiada. cm contraste com o que sabcm05
de outras cpopei~s antigas, veja·se o imercssante artigo de lASP!:1I
GIIIFYI/'i". «Th e Epie Cycle and the Uniqucness of Horncr,.. IOI/mul
QI Hc/iI'flic Sludit'S 91 ( I ~17 ) 39·53.
10 Esta observação foi feita por lAECF.II. Puideill. vol. l . cap. III .
espt:cialmcnte pp . 6)·64.

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