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A N O 1 – N º 1 – J U L HO / D E Z E M BR O D E 2 0 2 0

R O Ç O S : R E V I S TA D E P E N S A M E N T O R A D I C A L , B E L O H O R I Z O N T E , A N O 1 , N . 1, J U L . / D E Z . 2 0 2 0 .
(DES)TROÇOS: RE VI ST A é uma publicação
DE P ENSAMENT O RADICAL
semestral do grupo de pesquisa O estado de exceção no Brasil
contemporâneo: para uma leitura crítica do argumento de emergência no
cenário político-jurídico nacional da Universidade Federal de Minas
Gerais, com registro no Diretório de Grupos de Pesquisa do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq):
http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/41174

Esta publicação conta com o apoio institucional do DIT – Departamento


de Direito do Trabalho e Introdução ao Estudo do Direito da Faculdade
de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais

ARTE S DA CAPA E CONTRACAPA: Desali (http://www.desali.com.br/)

EDITORAÇÃO E DIAGRAMAÇÃO: Thiago César Carvalho dos Santos

CONTATO:

Departamento de Direito do Trabalho e Introdução ao Estudo do Direito


(DIT) – Faculdade de Direito e Ciências do Estado
Universidade Federal de Minas Gerais
Avenida João Pinheiro, n. 100, 9º Andar, Edifício Vilas Boas, Bairro
Centro
Belo Horizonte, Minas Gerais, CEP 30130-180
Brasil
E-mail: revistadestrocos@gmail.com

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CATADORAS DE (DES)TROÇOS

EDITOR-CHEFE

Andityas Soares de Moura Costa Matos

EQUIPE EDITORIAL

Ana Clara Abrantes Simões


Ana Suelen Tossige Gomes
Bárbara Nascimento de Lima
Igor Campos Viana
Joyce Karine de Sá Souza
Jailane Devaroop Pereira Matos
Lorena Martoni de Freitas
Thaisa Maria Rocha Lemos
Thiago César Carvalho dos Santos

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CONSELHO EDITORIAL
Andreas Philippopoulos-Mihalopoulos
(University of Westminster, Londres, Inglaterra)

Angelica de Freitas e Silva


(University of Westminster, Londres, Inglaterra)

Barbara Peccei Szaniecki


(Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil)

Berenice Alves de Melo Bento


(Universidade de Brasília, Brasília, Brasil)

Chiara Bottici
(The New School Welcome Center, Nova Iorque, Estados Unidos da América)

Daniel Arruda Nascimento


(Universidade Federal Fluminense, Macaé, Brasil)

Djalma Thürler
(Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil)

Dolores Aronovich Aguero


(Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Brasil)

Edson Luis de Almeida Teles


(Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, Brasil)

Eduardo Viveiros de Castro


(Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil)

Elettra Stimilli
(Università degli Studi di Roma “La Sapienza”, Roma, Itália)

Fabian Ludueña Romandini


(Universidade de Buenos Aires, Buenos Aires, Argentina)

Felipe Araújo Castro


(Universidade Federal Rural do Semi-Árido, Mossoró, Brasil)

Flávia Souza Máximo Pereira


(Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, Brasil)

Francis Garcia Collado


(Universitat de Girona, Girona, Espanha)

Frédéric Neyrat
(Universidade de Wisconsin-Madison, Madison, Estados Unidos da América)

Giuseppe Mario Cocco


(Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil)

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Jonnefer Francisco Barbosa
(Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil)

Joyce Karine de Sá Souza


(Nova Faculdade, Contagem, Brasil)

Júlia Ávila Franzoni


(Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil)

Júlia Otero dos Santos


(Universidade Federal do Pará, Belém, Brasil)

Laura Bazzicalupo
(Università degli Studi di Salerno, Fisciano, Itália)

Marcelo Maciel Ramos


(Universidade Federal de Mina Gerais, Belo Horizonte, Brasil)

Marco Antônio Sousa Alves


(Universidade Federal de Mina Gerais, Belo Horizonte, Brasil)

Michele Spanò
(Università degli Studi di Salerno, Fisciano, Itália)

Murilo Duarte Costa Corrêa


(Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, Brasil)

Patricia Peterle
(Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil)

Paulina Tambakaki
(University of Westminster, Londres, Inglaterra)

Priscilla Wald
(Duke University, Durham, Estados Unidos da América)

Rita de Cássia Lucena Velloso


(Universidade Federal de Mina Gerais, Belo Horizonte, Brasil)

Rita Fulco
(Università degli Studi di Salerno, Fisciano, Itália)

Silvio Luiz de Almeida


(Universidade Presbiteriana Mackenzie, Rio de Janeiro, Brasil)

Thanos Zartaloudis
(University of Kent, Canterbury, Inglaterra)

Vinícius Nicastro Honesko


(Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Brasil)

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SUMÁRIO
Editorial
Mais uma revista de filosofia? ..............................................................................8
Andityas Soares de Moura Costa Matos

Dossiê: Pandêmios Politiké


Pessoas em situação de rua e o fator pandemia: uma realidade marcada pela
exceção e pela inimizade .................................................................................. 10
Antonio Matheus Sardinha Santos
Sandra Suely Moreira Lurine Guimarães

Rede Convida: estendendo zelo e outros elos em tempos de pandemia ............ 24


Bruna Pinto Martins Brito
Elizabeth Medeiros Pacheco
Luana da Silveira

De volta à economia de merda .......................................................................... 42


David Graeber
Tradução por Fábio Tozi e João Lucas Xavier

Towards a bullshit economy .............................................................................. 48


David Graeber

Pandemia como laboratório de poder................................................................ 51


Marco Antônio Sousa Alves

Cartografia da vulnerabilidade: somos todos trans*? ........................................ 63


Rafael Leopoldo

Princípio responsabilidade ................................................................................ 75


Entrevista com Sergio Givone por Patricia Peterle

Projeto Krisis: tempos de COVID-19 .................................................................. 80


Patricia Peterle

Artigos
Desafiar los poderes constituidos: violencia, excepción y desobediencia civil .. 81
Andityas Soares de Moura Costa Matos
Joyce Karine de Sá Souza

Práticas jurídicas e sociais legitimadoras dos modelos econômicos liberal e


neoliberal de apropriação ................................................................................. 95
Bárbara Nascimento de Lima
Ricardo Manoel de Oliveira Morais

Direito, violência e polícia: divagações e radicalizações sobre a catástrofe


policial-penal brasileira .................................................................................. 113
Fernando Nogueira Martins Júnior

Tradução
O constituinte e o negativo, a biopolítica e a soberania: um diálogo entre Roberto
Esposito e Antonio Negri ................................................................................. 133
Tradução por Andityas Soares de Moura Costa Matos

NORMAS PARA SUBMISSÃO / SUBMISSIONS GUIDELINES ............................... 146

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EDITORIAL
Mais uma revista de filosofia?
Andityas Soares de Moura Costa Matos

É
a questão mais imediata que talvez possa ser feita diante da emergência da
(Des)troços: revista de pensamento radical. E como toda pergunta, ela parte da
própria pressuposição de uma resposta comportada e previsível, como se o
campo do pensamento tivesse que ser dividido em pequenas células a serem ocupadas
por um número limitado de orientações bem definidas (hegelianismo, marxismo, pós-
estruturalismo etc.) e rigidamente controladas por procedimentos ao mesmo tempo
autorreferenciais e simpáticos ao cânone universitário que, antes de tudo, reproduz na
maioria das vezes o mesmo. O mesmo e o tédio, para que fique bem claro. Diante
desse cenário, a revista que nasce agora se propõe irreverente, e isso no sentido de
que não precisa nem deseja prestar reverência a quem quer que seja, ancorada que
está em uma positividade do excesso em que o elemento verdadeiramente importante
da questão “mais uma revista de filosofia?” não é “revista” nem “filosofia”, e sim
“mais”. Um mais que se abre a todas as orientações, a todos os cantos e terras (firmes
ou não) e que pretende abrigar em suas páginas textos únicos, em especial textos que
seriam ou são recusados pela tradição das colmeias, das caixinhas, dos grupelhos que
jamais se comprometeriam com certos troços.

Não nos esquecemos, é claro, que a revista nasce do esforço conjunto de um grupo de
pesquisa criado e ativo dentro de uma Universidade Federal, o que para alguns já
seria suficiente para tornar vãs as palavras anteriores. Mas não nos percebemos assim,
seja pela pluralidade que sempre envolveu nossas investigações, seja pela ausência
de um programa formal a determinar os rumos das pesquisas, seja pela liberdade que
a ausência de vinculação desta revista a estruturas oficiais nos permite acolher.
Evidentemente, a tarefa do pensamento crítico não passa por um ingênuo abandono
dos locais institucionais, mas pela sua radicalização, por sua implosão e não explosão,
pois esta última só os fortalece. O que propomos é então um local de encontros
balizado por certa geografia dos afetos, por certa aposta na potência que, como tudo
que é real, parte de um plano dado em que a dimensão da radicalidade se mostra
como termômetro mais de uma intensidade do que de uma originariedade; ou melhor:
uma intensidade de uma originariedade que se abre a textos e criações gráficas que
se mostrem capazes de friccionar os nossos tempos profundamente marcados por
processos de subjetivação individualistas e maquinais. Queremos assim publicar troços
que lancem mão de estratégias teóricas e/ou estéticas que possam ir ao extremo e
não só denunciar, mas principalmente desconstituir, tornar inoperoso, destruir o que
separa, oprime, hierarquiza, dualiza, hominiza, embranquece, justifica, julga – em uma
palavra: impõe culpa. Para além de todas as políticas identitárias – fatalmente
condenadas a ocuparem uma gaveta (das debaixo) nos arquivos de aço dos gabinetes
do poder separado –, preferimos ser monstros mutantes que as usam como táticas e
preferem enxergar, para além dos ismos dos feminismos, socialismos, esquerdismos etc.,
os elementos incandescentes que lhes deram origem e hoje são objeto de uma
campanha de domesticação global que acabará transformando-os em disciplinas
obrigatórias em uma Faculdade de Direito qualquer.

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É assim que, no primeiro ano da peste que promete se tornar uma condição normal,
abrimos o primeiro número da (Des)troços com um dossiê voltado para a leitura crítica
da pandemia de COVID-19, da qual todos já estamos cansados. Infelizmente o vírus
não se cansou e deve continuar a ser objeto de nossa atenção, dado que é a partir
dele, como verdade de uma época, que se pode pensar tanto a libertação quanto, o
que parece ser mais provável, o aprofundamento das sujeições maquínicas, afinal a
pandemia – qualquer pandemia – é profundamente política, é profundamente ligada
a esse dêmos sem o qual não há política. Daí o título ambíguo do nosso primeiro dossiê,
Pandêmios Politiké, que será sucedido nas próximas edições por outros que planejamos
lançar em momento oportuno e que dirão respeito a temas como o antropoceno e seus
filhotes (viroceno? infoceno?), as outras vidas (o animal, o vegetal e o que há entre/além
[d]eles), as gramáticas da precariedade constitutiva, as várias desobediências (civis,
incivis, políticas, epistêmicas) etc. Ao dossiê temático se somam artigos de caráter geral,
sempre vinculados aos campos de força da revista que, se não estão descritos com
clareza cartesiana aqui ou alhures, vão se mostrando a cada número, além de resenhas
críticas, entrevistas e traduções de textos de autoras já consagradas não pelo seu
capital acadêmico, mas pela força de seu pensamento, que já terá passado pela prova
da realidade e seu enfrentamento, como é o caso neste primeiro número de David
Graeber, Toni Negri e Roberto Esposito. Queremos também que nossas capas
dialoguem – ou melhor: gritem – com os textos, e nenhuma obra seria melhor para isso
agora do que a de Desali, artista mineiro meio Basquiat, meio Banksy, meio ele mesmo.
Todas essas seções da revista – capa, dossiê, artigos gerais, resenhas, entrevistas e
traduções – estão abertas à colaboração de quem desejar fazê-lo, atendidos os
requisitos mínimos de nossa política editorial explicitada ao final destas páginas, eis
que, ao contrário do que pensa certa tradição anarquista cândida em seus simplismos,
a forma é decisiva, podendo e devendo ser revolucionária.

Apostando que o mundo não acabará com o surgimento da COVID-21, a previsível II


Guerra Civil Estadunidense ou o iminente autogolpe de Estado que se planeja em
Brasília, entregamos o nosso primeiro conjunto de troços, já devidamente (des)troçados,
às comunidades quaisquer que neles se vejam, marcando um próximo encontro lá na
segunda edição.

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(DOSSIÊ: PANDÊMIOS POLITIKÉ }

Pessoas em situação de rua e o


fator pandemia:
uma realidade marcada pela
exceção e pela inimizade
People in street situation and the pandemic factor:
a reality marked by exception and enmity

Antonio Matheus Sardinha Santos1


Sandra Suely Moreira Lurine Guimarães2

Resumo: Este artigo discute, de forma tomada de decisões que são, em parte,
interdisciplinar, como é possível, em um danosas a essa classe e cobertas por um
Estado Democrático de Direitos, existir véu falacioso de cuidado com este
formas de vida expostas às mais diversas contingente populacional. Para sustentar
possibilidades de violações de direitos e e desenvolver este artigo foi utilizada
garantias fundamentais, como as das uma metodologia de análise da situação
pessoas em situação de rua no Brasil. O no decurso do tempo aliada a pesquisas
objetivo deste artigo é mostrar como se bibliográficas. Apresentando, ao final, os
deu o início do problema das pessoas em resultados obtidos através das análises
situação de rua no país e como o Estado feitas.
brasileiro enxerga a problemática e, a
partir disso refletir como o contexto da Palavras-chave: Pessoas em situação de
pandemia fornece o cenário ideal para rua; pandemia; exceção; inimizade.
a implementação de medidas políticas Abstract: This article discusses, in an
que não visam a verdadeira proteção interdisciplinary way, how it is possible, in
desta classe de pessoas, mas sim a a Democratic State of Rights, to have life
aceleração do processo de sucumbência forms exposed to the most diverse
desses seres. Serão analisadas as possibilities of violations of fundamental
vicissitudes sociais que levaram à rights and guarantees, such as those of
formação do problema relacionadas às the homeless in Brazil. The objective of
medidas estatais implementadas em this article is to show how the problem of
torno da questão. Assim, se tratará a homeless people in the country started
hipótese de que as pessoas em situação and how the Brazilian State sees the
de rua, do ponto de vista do Estado, por problem, and from that to reflect on how
Este é um artigo publicado em
não habitarem o contexto político, the context of the pandemic provides the
acesso aberto (Open Access) sob econômico e social de forma efetiva não ideal scenario for the implementation of
a licença Creative Commons
Attribution, que permite uso, são tratados como seres sujeitos de political measures that do not aim at the
distribuição e reprodução em
qualquer meio, sem restrições direitos na ordem pública, o que legitima true protection of this class of people, but
desde que sem fins comerciais e
que o trabalho original seja
corretamente citado. 1 Graduando em Direito pela Faculdade Ideal. E-mail: a.matheussantos01@gmail.com
2 Doutora em Ciências Sociais pela UFPA, Mestre em Sociologia pela UFPA, Bacharel em Filosofia pela
UFPA e Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Pará. E-mail:
sandra.guimaraes@faculdadeideal.edu.br
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rather at accelerating the process of venezuelanos3 no país após a crise
succumbing to these beings. The social humanitária da Venezuela (estimativa
vicissitudes that led to the formation of realizada pelo IBGE em 2018)
the problem related to the state measures consequentemente, essas pessoas
implemented around the issue will be passaram a agregar o contingente
analyzed. Thus, the hypothesis that populacional existente nas ruas até
people on the street, from the point of então, ou seja, reforçando ainda mais a
view of the State, because they do not complexidade do problema.
inhabit the political, economic and social
context effectively, will not be treated as É seguro afirmar que as políticas públicas
beings subject to rights in public order, atuais que são voltadas para a
which legitimizes making decisions that mitigação da questão são extremamente
are, in part, harmful to this class and fracas, obsoletas e sem toda a
covered by a fallacious veil of care with complexidade que demanda o
this contingent population. To support and problema, mesmo que elas tenham sido
develop this article, a methodology for criadas após a emissão do decreto
analyzing the situation over time presidencial n. 7.053/2009, o qual
combined with bibliographic research estabelecia diretrizes para a política
was used. Presenting, at the end, the nacional para população em situação de
results obtained through the analyzes rua. Tal decreto contém pontos que não
made. são favoráveis, à luz da teoria das
políticas públicas, para a diminuição e
Keywords: homeless people; pandemic; solução do problema, o qual
exception; enmity. analisaremos mais detalhadamente à
frente, mas esta afirmação pode ser
visualizada de plano e de forma
Introdução
superficial através da apresentação dos
Atualmente no Brasil existem mais de 210 dados que demonstram a quantidade de
milhões de pessoas,1 segundo o Instituto pessoas em situação de rua antes e
Brasileiro de Geografia e Estatística depois da emissão do decreto. Estes
(IBGE), dentre as quais existem mais de dados revelam que, antes do decreto
100 mil pessoas em situação de rua,2 de existiam cerca de 30 mil pessoas em
acordo com o último levantamento feito situação de rua (dado divulgado pela
pelo Instituto de Pesquisa Econômica Revista Aprendendo a Contar, sob
Aplicada (IPEA), realizado em 2017. É orientação do Ministério de
importante frisar que, este número de Desenvolvimento Social e Combate à
pessoas que estão nas ruas inclui homens, Fome em 2009) e após ele o número de
mulheres, crianças, idosos, pessoas da pessoas nesta situação aumentou para
comunidade LGBT, ex-detentos, entre mais de 100 mil indivíduos (de acordo
outros tipos de pessoas com marcadores com o último censo feito pelo em 2017
sociais, os quais se encontram nesta pelo IPEA), ou seja, após a introdução de
situação pelas mais variadas razões. E uma estratégia governamental
ao que tudo indica, este problema social formulada unicamente para a tentativa
se tornou ainda mais acentuado quando de resolução do problema houve mais do
houve a entrada de mais de 30 mil que a triplicação do contingente

1 IBGE, Projeção da População Brasileira.


2 IPEA, 100 mil pessoas em situação de rua.
3 Cf. O SUL, O IBGE aponta que mais de 30 mil venezuelanos vivem no Brasil.

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populacional existente nas ruas em menos Nesse sentido, será posto em grau de
de uma década. Portanto, é fundamental reflexão, ao abordar o tema, as
investigar os processos que permitiram concepções de estado de exceção e de
que uma decisão estatal tivesse efeitos vida nua do filósofo político italiano
diametralmente diversos dos Giorgio Agamben e como esses ideais
pretendidos, as ações do Estado diante dialogam com o conceito de politização
desses efeitos e as consequências que da vida na sociedade. Assim, para que
estes erros produzem quando analisados seja possível tais pensamentos, se traçará
em uma crise sanitária. um caminho desde a dinâmica social que
produziu o fenômeno da população em
Tendo isto em vista, faz-se necessário situação de rua, passando pela análise
discutir, sob um viés interdisciplinar, das medidas implementadas pelo poder
baseado em análises bibliográficas e governamental diante do problema, até
dados estatísticos, frente a chegarmos ao contexto pandêmico atual
complexidade e a urgência da questão, como um fator que revela como o Estado
o seguinte apontamento: Como a brasileiro trata as pessoas em situação
pandemia interfere nos processos e de rua em suas decisões políticas.
visões que são produzidos pelo poder
público na tratativa da questão das
pessoas em situação de rua no Brasil? 1. O Estado e as pessoas em
Para isso, tem-se como objetivo situação de rua no Brasil
fundamental mostrar como se deu o início Com efeito, a quantidade de pessoas em
do problema das pessoas em situação de situação de rua no país deve ser
rua no país e como o Estado brasileiro encarada como algo demasiadamente
enxerga a problemática e, a partir disso inaceitável pela sociedade e como um
refletir como o contexto da pandemia problema de urgência primordial e
fornece o cenário ideal para a precípua pelo Estado. Haja vista que, o
implementação de medidas políticas que fato de existir seres humanos em
não visam a verdadeira proteção desta situações assustadoramente degradantes
classe de pessoas, mas sim a aceleração deveria ser enxergado com estranheza
do processo de sucumbência desses seres. pelas pessoas que participam da
Ao final do processo analítico exposto dinâmica social e como um fator social
acima, será importante, passível de vergonha por aqueles que
subsidiariamente, desmembrar e analisar detêm o poder estatal e que sustentam
as estratégias utilizadas na gestão da em seus discursos a primazia e o respeito
sociedade no decorrer da pandemia do pelo conteúdo estipulado na Constituição
Covid-19, especificamente as voltadas à Federal de 1988, a dita Constituição
população em situação de rua e suas Cidadã. Porém, o que se enxerga
reais implicações e consequências explicitamente no contexto político,
enquanto política de Estado, como por econômico e social atual é justamente o
exemplo, a retirada dessas pessoas (em oposto dessas concepções. Tem-se uma
diversos estados do país) do meio urbano sociedade que aparentemente age com
durante a crise pandêmica e a naturalidade perante a ideia de que
“acomodação” delas em locais sob seres humanos estão totalmente
responsabilidade do poder público e sob segregados e apartados de qualquer
o argumento de proteção desses seres contexto similar ao de bem-estar social,
contra o vírus. além de um Estado que permanece inerte
frente ao assombroso aumento do
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número de pessoas sem o mínimo Pessoas em situação de rua, pandemia e
existencial e sem a proteção das Direito. Logo, só assim se poderá
garantias fundamentais, como as pessoas enxergar na pandemia o contexto social
em situação de rua. ideal e fértil para a manifestação, desta
vez mais explícita, das verdadeiras
Portanto, é de total relevância políticas que foram e continuam a ser
compreender os fatores que flutuam em adotadas pelo Estado como resposta à
volta deste problema social, mas que, na problemática das pessoas em situação
maioria das vezes, são invisibilizados nas de rua no país.
discussões que correspondem ao tema.
Ou seja, é necessário entender que um
Estado que prega a primazia e a 1.1. A industrialização do país e as
pessoas em situação de rua
inegociabilidade dos direitos
fundamentais deve enxergar na É de suma importância ressaltar que o
sociedade sob a sua égide o principal principal elemento que pode ser utilizado
motor rumo a cristalização e afirmação para destacar um fenômeno social tão
de sua democracia, já que, é um contexto perceptível como este é a exclusão
social em que seus cidadãos são capazes econômica, assim, por mais que outros
de alcançar a materialização plena de fatores também influenciem na
seus direitos que fornece uma economia perpetuação do problema este acaba
estável, um desenvolvimento social sendo o ponto central. Portanto, pode-se
continuo e um regime democrático pleno. dizer que, no processo de formação das
Logo, fornecer as possibilidades sociais cidades é onde se encontra o vínculo
para que os cidadãos possam usufruir prévio para o aparecimento do
dos direitos previstos na Magna Carta fenômeno das pessoas em situação de
deve ser a principal preocupação rua e, consequentemente, este fator
daqueles que detém o poder agregado ao modelo econômico
governamental em uma sociedade adotado pelas cidades incorreu na
democrática. Consequentemente, a intensificação do problema. O processo
existência de pessoas em situação de rua de urbanização em países
é absolutamente inaceitável e subdesenvolvidos como o Brasil se dá
incompatível com esses ideais e essas através da industrialização das suas
concepções. cidades, contudo, adjunto desta
industrialização existe uma característica
Assim, para entender a dimensão que o bastante comum ao processo, que é
problema das pessoas em situação de mercantilização das terras que compõem
rua gera em uma realidade como a o espaço urbano, a qual acarreta a
brasileira é necessário perpassar pelos redução da possibilidade de acesso e
liames e processos que o fizeram surgir, usufruição destes espaços por aqueles
que o perpetuam e que o tornam uma destituídos de poder econômico.
questão central a ser resolvida em um
país que vislumbra a estabilidade de sua Desta forma, o aparecimento das
sociedade. Por isso, há a importância da pessoas em situação de rua se deu em um
análise da situação no decurso do tempo cenário urbano que decorre de um
aliada a pesquisas bibliográficas. Pois, é processo histórico que tem como motor
a partir desses passos que será possível segregações sócioespaciais, traduzidos
entender a simbiótica relação que existe na monopolização do espaço urbano
e que permeia os seguintes pontos: pelo modelo econômico vigente, o qual

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tem o intuito de controlar todas as dar conta do perigo que ela representa,
racionalizando algumas vezes uma
relações sociais e econômicas animosidade baseada em outras diferenças,
provenientes do processo de tais como as de classe social. 4
mercantilização das terras. E por
consequência desta monopolização dos Ou seja, este processo de
espaços urbanos, a rua se torna o único mercantilização das áreas urbanas, fruto
lugar acessível que o contingente da industrialização acelerada do país,
segregado pelo modelo econômico age como o fator principal da ação de
enxerga uma possibilidade de segregação sócioespacial, reproduzindo
sobrevivência e autossuficiência. Logo, então, como consequência, indivíduos de
dentro do curso de formação das cidades baixa renda monetária ou nenhuma que
e de seus modelos econômicos, não só as estarão suscetíveis a diversas
zonas em que ocorrem a maior parte das banalizações e violações de direitos
relações sociais de poder são negadas devido a sua posição de inferioridade
às pessoas com baixo poderio monetário dentro da estrutura de castas sociais, tal
mas a própria rua também se torna um como as pessoas em situação de rua.
local de disputa, entre o modelo Então, através de tais pontos é possível
econômico vigente e as pessoas que afirmar que a população em situação de
foram excluídas das áreas rua é um reflexo do modo de vida
mercantilizadas no processo de adotado pelo cenário urbano durante e
industrialização do país. após os processos de industrialização,
mercantilização e estruturação
Assim, proveniente deste sistema, econômica das cidades e do país como
acabam surgindo indivíduos cujo os meios um todo. Assim, é perfeitamente possível
de acesso básico a direitos fundamentais, dizer que, com esses processos, a própria
como saúde, alimentação, educação e rua se torna um lugar político, a partir do
moradia se tornam inviáveis, haja vista momento em que nela se manifesta as
que tais indivíduos são postos em uma concepções daqueles que estão detendo
zona de estigma na sociedade em o poder econômico e o de tomada de
decorrência deste processo competitivo decisões. Isto posto, a partir dessas
de monopolização dos espaços sociais decisões, poderá se dar vazão a uma
que os modelos econômicos implantados dinâmica social em que se reserva a
nas cidades introduziram. Portanto, é possibilidade de usufruição dos direitos
importante compreender a relevância fundamentais apenas àqueles seres que
que a imposição de um estigma tem na participam da dinâmica social (política e
tomada de decisões pelo poder público economicamente) e aos outros resta tão
e como ele influencia na oferta de somente a tentativa de sobrevivência
direitos para aqueles que o carregam. O nesta sociedade. E é neste último polo
sociólogo Erving Goffman pressupõe que se encontra os seres em situação de
que: rua.

Por definição, é claro, acreditamos que


alguém com um estigma não seja 1.2. As pessoas em situação de rua na
completamente humano. Com base nisso, visão do soberano
fazemos vários tipos de discriminações,
através das quais efetivamente, e muitas O artigo 6° da Constituição Federal de
vezes sem pensar, reduzimos suas chances de 1988 assegura que são direitos sociais a
vida: Construímos uma teoria do estigma; uma
ideologia para explicar a sua inferioridade e educação, a saúde, a alimentação, o

4 GOFFMAN, Estigma, p.8.


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trabalho, a moradia, o transporte, o influencia diretamente na perpetuação
lazer, a segurança, a previdência social, da questão; II) A divisão de
a proteção à maternidade e à infância e competências, em seu artigo quarto, das
a assistência aos desamparados, ou seja, estruturas dos poderes públicos
são direitos fundamentais que devem ser envolvidos, a qual enseja que os demais
8

materializados pelo Estado a todos os entes federados não possam adaptar as


cidadãos, dada a sua obrigação dentro políticas públicas as suas especificidades.
da relação vertical entre sociedade e Assim, pode-se associar esses pontos do
Governo.5 Dentro desses aspectos, o decreto como possíveis ferramentas de
Estado como um todo é o principal torque rumo ao aumento exponencial do
responsável por promover determinadas problema em um curto período de tempo.
ações para a concretização dos
dispositivos previstos na Carta Magna, e Como efeito, existe outra questão que o
o principal corpo responsável também Estado brasileiro aparentemente parece
por impedir que haja a violação dessas ignorar perante a implementação deste
disposições. decreto, qual seja o monitoramento de
seus efeitos. Efetivamente, é fundamental
Desta forma, sempre que problemas fiscalizar o desencadeamento da
sociais surgirem é de total implementação de qualquer política
responsabilidade estatal a elaboração e pública, a fim de comprovar se sua
implementação de métodos que sejam finalidade está sendo cumprida ou não.
destinados à resolução da problemática. Isto posto, se faz necessário refletir: Por
E é nesse viés que o decreto presidencial que o Estado, dado o explícito caráter
n. 7.053 de 20096 propõe diretrizes obsoleto do decreto no decorrer do
para a política nacional para população tempo, permanece inerte perante à ideia
em situação de rua. Configurando uma de que existe um número expressivo e
ação do Estado destinada ao crescente de pessoas em situação de rua
cumprimento de sua responsabilidade em no país? Para isso, a hipótese que se
prover a todos a possibilidade de argumentará é a de que pelo fato de o
usufruir de direitos, mais especificamente contingente populacional existente nas
a aqueles seres que se encontram nas ruas ser composto por indivíduos que em
ruas. Porém, é fundamental destacar que nada contribuem para o cenário político,
tal decreto contém disposições que são social e econômico do país, dada suas
inadequadas para o cumprimento desta hipossuficiências monetárias e de
finalidade, como por exemplo: I) No participação na ordem social, para eles
parágrafo único de seu primeiro artigo será suspensa a possibilidade de acesso
utilizar critérios subjetivos para a direitos. Agora, estes sairão da zona
identificação do problema, o que7 de estigma em que foram postos pelos
inviabiliza a percepção de que a processos de industrialização do país e
ineficiência de políticas em outras áreas passarão a ser vistos como vida nua e a

5 BRASIL, Constituição Federal.


6 BRASIL, Decreto presidencial n°7.053 de 23 de dezembro de 2009.
7 No referido parágrafo consta a seguinte redação: “Para fins deste Decreto, considera-se população

em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os
vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que
utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma
temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como
moradia provisória”.
8 Já que, trata-se do Governo Federal estipulando diretrizes a serem seguidas por Estados e Municípios.

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habitar um estado de exceção mediante como sujeitos de direitos na ordem social.
a inatuação do poder soberano (este Se tornaram verdadeiramente vidas nuas
aqui compreendido na figura do Estado, ou sacras, no dizer do filósofo político
ou seja, o detentor do monopólio político Giorgio Agamben,9 pois:
e material da força e das ações sobre a
É como se toda valorização e ‘politização’ da
vida dos atores sociais). vida (como está implícita, no fundo, na
soberania do indivíduo sobre a sua própria
existência) implicasse necessariamente uma
nova decisão sobre o limiar além do qual a
1.2.1. O estado de exceção, a vida nua e as vida cessa de ser politicamente relevante, é
pessoas em situação de rua então somente ‘vida sacra’ e, como tal, pode
Em Estados modernos as decisões ser impunemente eliminada.
governamentais têm mais do que um Logo, pode-se compreender que, na
caráter meramente de materialização do visão estatal se este contingente de seres
poder estatal, elas efetivamente detêm o não contribui para a sociedade a eles
condão de definir quem vive e quem não será conferido direitos. Na verdade,
morre, quem pode usufruir de direitos e eles passam a ser vistos, dada as
quem não pode. Este fator encontra condições degradantes a que estão
guarida na ideia de biopolítica, já que, submetidos, como uma ameaça a
como preconizou Michel Foucault no início estabilidade da ordem social (ou seja, a
do séc. XX, biopolítica se traduz na alta aqueles que contribuem política,
inserção da vida natural do homem nos econômica e socialmente para o país).
cálculos de poder do Estado. Assim, o ser Dito isto, e frente a ameaça que
humano passa a ser um elemento representam, eles podem ser eliminados
importantíssimo na visão estatal, durante da sociedade impunemente. Com efeito,
a gestão social. Com isso, é faz-se necessário salientar a forma pela
perfeitamente possível que o Estado qual o Estado fará esta eliminação, esta
brasileiro passe a equacionar as pode não ser posta em prática através
vantagens ou desvantagens que estão de métodos eminentemente físicos,
embutidas em certa decisão. Portanto, é contudo, é perfeitamente possível a sua
passível de se determinar que, em dado materialização em meios onde há um
momento o fato de que as pessoas em total afastamento da possibilidade de
situação de rua não contribuem na esfera acesso a direitos fundamentais. Agamben
política, social e econômica tenha se intitula esta zona de atividade
tornado uma questão decisiva para que governamental voltada a eliminação de
o Estado estabeleça se é interessante ou uma ameaça como estado de exceção,
não o esforço para a elas conferir pois é nele onde, através de algumas
direitos. medidas, a ameaça será identificada,
Dessa forma, a inércia do Estado segregada e eliminada impunemente,
brasileiro perante a triplicação do haja vista, a supressão de qualquer
número de pessoas em situação de rua já ordenamento jurídico. Portanto, em uma
demonstra qual deva ser o seu real exceção estatal a ameaça é sim
posicionamento perante esta classe, qual considerada como parte integrante de
seja, a indiferença. Feita esta análise, uma política de Estado, porém ela é
pode-se dizer que atualmente as pessoas considerada para que depois seja
em situação de rua não mais são tidas

9 AGAMBEN, Homo sacer, p. 146.


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desconsiderada e eliminada. De forma, qualquer direito materializado,
pressupõe Agamben: respeitado ou assegurado, como as
pessoas em situação de rua?
[...] é, neste sentido, a localização
fundamental, que não se limita a distinguir o
que está dentro e o que está fora, a situação Este questionamento só começa a fazer
normal e o caos, mas traça entre eles um limiar sentido quando se parte do ponto de
(o estado de exceção) a partir do qual interno vista biopolítico e do conceito de vida
e externo entram naquelas complexas
relações topológicas que tornam possível a matável, já que,este contingente
validade do ordenamento.10 populacional existente nas ruas
atualmente em razão de práticas
Nesse sentido, através desta análise, é
estatais, portanto, de decisões políticas,
fundamental refletir que as medidas que
principalmente durante a formação das
foram postas em prática, pelo Estado,
cidades. Ademais, o processo de
sobre a questão das pessoas em situação
urbanização e industrialização no Brasil,
de rua no país não tem o verdadeiro
gerou uma grande repartição social em
intuito de cuidado e a perspectiva de
castas e uma segregação socioespacial
seguridade para a usufruição de direitos
nas cidades. Consequentemente, uma
por esta classe, mas sim o oposto, são
resposta às necessidades e
voltadas a garantir a impossibilidade de
hipossuficiências das castas mais baixas
prática dos direitos fundamentais por
se tornaram, no decorrer do tempo, uma
esses indivíduos, o que claramente
grande cobrança em face do Estado
ensejará em seus desaparecimentos. E
(“soberano”).
mais, assegurar que, desta forma eles
deixem de ser uma ameaça a Porém, a comparação entre os dados
estabilidade da ordem social, logo, sobre o problema discutido, revela que
daqueles que verdadeiramente tanto no passado, quanto atualmente
contribuem para a sociedade. demostra que o Estado não está
verdadeiramente comprometido em
2. O Estado e a relação de chegar a uma resolução da questão. Isto
inimizade com as pessoas em porque houve mais do que a triplicação
situação de rua do número de pessoas nesta situação em
menos de uma década. É a partir desse
Como já afirmado, há preceitos ponto que devemos pensar na questão
constitucionais que preveem a das pessoas em situação de rua no Brasil
seguridade de direitos sociais aos sob a percepção do necropoder. Para
cidadãos, os quais necessitam da Mbembe,11 “o estado de exceção e a
atuação do Estado para serem relação de inimizade tornaram-se a base
materializados, a exemplo do artigo 6° normativa do direito de matar.”. É
da Constituição Federal. Isto imputa ao importante ressaltar que a eliminação de
soberano a necessidade de ações uma ameaça governamental dentro de
positivas que possam atribuir a todos os um estado de exceção não
entes sociais, sem discriminações, a necessariamente será o extermínio físico
efetividade dos seus direitos. Só que isto direto, tal como foi feito com os judeus na
leva a questionar o porquê ainda hoje
existem mais de 100 mil pessoas
ocupando uma zona da sociedade sem

10 AGAMBEN, Estado de exceção, p. 26.


11 MBEMBE, Necropolítica, p.16.
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Alemanha Nazista,12 mas pode ser sem de rua como uma espécie de inimigo
sombra de dúvidas um extermínio velado interno do Estado, o qual desestabiliza o
- materializado pela falta de políticas poder, e por isso, pode ser eliminada
públicas eficazes que cada vez mais impunemente (uma mera vida matável). E
segregam a “ameaça”. a sociedade, através da falta de
alteridade, compactua com esta política
O soberano estabelece esta relação de da morte, em que a ausência (intencional)
inimizade dentro da estrutura do fornecimento de meios para
necropolítica por diversos aspectos, e sobrevivência é dirigida às pessoas que
quando se trata da questão das pessoas se encontram nas ruas. Achille Mbembe,14
em situação de rua no Brasil podemos ressalta que:
considerar alguns deles: I) Os seres
existentes nas ruas configuram um grupo Mais radicalmente, o horror experimentado
sob a visão da morte se transforma em
de pessoas apartados das relações satisfação quando ela ocorre com o outro. É a
políticas, econômicas e sociais; II) A morte do outro, sua presença física como um
ausência desses indivíduos em polos cadáver, que faz o sobrevivente se sentir
único. E cada inimigo morto faz aumentar o
políticos, sociais e econômicos faz com sentimento de segurança do sobrevivente.
que aqueles que detém o poder
governamental não tenham interesse em O interesse do soberano em matar seus
protegê-los; III) O problema social inimigos não deve ser entendido como
decorrente da não proteção estatal a uma simples gama pela morte. É, antes
esses seres gera cobranças substanciais de tudo, uma característica inerente de
(abalando o status quo do poder) e; IV) um estado de exceção e da
Paralelamente, a inércia soberana frente necropolítica. A falta de uma verdadeira
a questão tem reflexos em como a política pública (eficaz) destinada às
própria sociedade trata esses indivíduos, pessoas em situação de rua pode ser
ou seja, a absoluta naturalização da entendida como a medida soberana
condição degradante a que estas destinada à morte política da ameaça
pessoas ficam submetidas. É como se as ao status quo. Esta é a relação de
pessoas em situação de rua passassem a inimizade estabelecida pelo Estado.
representar, agora, tanto uma ameaça “Matar é, portanto, reduzir o outro e a si
ao poder soberano quanto a seus pares mesmo ao estatuto de pedaços de carnes
sociais. Mbembe considera: inertes, dispersos e reunidos com
dificuldades antes do enterro”.15
a percepção da existência do outro como um Portanto, uma morte política.
atentado contra minha vida, como uma
ameaça mortal ou perigo absoluto, cuja
eliminação biofísica reforçaria meu potencial
de vida e segurança, é este, penso eu, um dos 2.1 A naturalização da condição de
muitos imaginários de soberania, vida matável
característico tanto da primeira quanto da
última modernidade.13 A condição degradante a que as pessoas
em situação de rua estão submetidas é
Então, pode-se dizer que, o soberano naturalizada em duas vertentes: I) o
começa a tratar as pessoas em situação

12 Cf. Hannah Arendt. Eichmann em Jerusalém. Nessa obra, a filósofa política Hannah Arendt esmiúça a
logística interna dos campos de concentração nazista. Acompanhando o julgamento de um dos mais
lembrados autômatos de Hitler (Eichmann), Arendt descreve como a máquina alemã de matar
funcionava.
13 MBEMBE, Necropolítica, p. 20.
14 MBEMBE, Necropolítica, p. 62.
15 MBEMBE, Necropolítica, p. 64.

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Estado, inerte diante ao assombro de rua de logradouros próximos a
número de indivíduos nessa condição, ao estádios de futebol, uma espécie de
implementar políticas sem eficácia, política higienista sendo posta em
naturaliza a condição social desses seres. prática. Mais recentemente, em agosto
É necessária a naturalização da de 2020, cinco pessoas em situação de
característica de vida matável no sistema rua morreram em decorrência do frio na
necropolítico, pois, com isso há “perda de cidade de São Paulo, de acordo com o
um ‘lar’, perda de direitos sobre seu Movimento da População de Rua do
corpo e perda de estatuto político”;16 II) Estado de São Paulo.19 Como pode ser
a naturalização realizada pelo Estado visto estes fatos, senão como as
faz com que a própria sociedade consequências da naturalização da
adquira um papel central na eliminação condição de vida matável imposto pelo
da ameaça interna. Mbembe diz: instrumento necropolítico do soberano?
Se o poder ainda depende de um controle O Ministério da Saúde confirma que,
estreito sobre os corpos (ou de sua
concentração em campos), as novas
somente entre 2015 e 2017, o Brasil
tecnologias de destruição estão menos registrou mais de 17 mil casos de
preocupadas com a inscrição de corpos em violência contra pessoas em situação de
aparatos disciplinares do que em inscrevê-los,
no momento oportuno, na ordem da economia rua,20 sendo São Paulo (a grande
máxima, agora representada pelo metrópole do país) onde registrou-se o
“massacre”. 17 maior número de casos, o número de
A política da inimizade estabelecida denúncias foi calculado com base nos
pelo soberano contra as pessoas em registros do Sistema de Informação de
situação de rua também terá guarida na Agravos de Notificação (Sinan). A
sociedade. O ódio, a indiferença e o visualização desse dado, com seu recorte
desejo de eliminação serão estendidos à de apenas dois anos de denúncias,
sociedade. No Brasil são vários e mostra quão nefasta pode ser as
lamentáveis os casos em que pessoas consequências que a imposição que a
nesta situação de vulnerabilidade são condição de vida matável acarreta.
vítimas das mais diversas formas de Ademais, este dado mostra que na
violência, inclusive, de homicídios, cidade mais industrializada e
praticados não só por policiais, mas desenvolvida do país a violência contra
também por pessoas da sociedade civil. pessoas em situação de rua é ainda mais
A exemplo, em Maceió - Alagoas entre alarmante, o que demonstra a força
2010 e 2012, 73 moradores de rua vinculante que o modelo econômico
foram assassinados.18 Em São Paulo, adotado detém para a sistemática de
durante a época da Copa do Mundo de eliminação e violência das pessoas em
2014, realizada no Brasil, o Centro situação de rua. É importante ressaltar
Nacional de Defesa dos Direitos que as violências são causadas não
Humanos da População em Situação de somente pela falta de amparo estatal,
Rua e Catadores de Materiais Recicláveis mas também pela visão higienista que
– CNDDH – recebeu denúncias sobre a acomete a sociedade. Isto pode ser
retirada forçada de pessoas em situação traduzido como o ódio e desejo pela

16 MBEMBE, Necropolítica, p. 27.


17 MBEMBE, Necropolítica, p. 59.
18 Cf. PIMENTEL et al., Mortes invisíveis.
19 Cf. BRASIL DE FATO, Frio intenso causa morte de cinco moradores de rua em SP.
20 Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE, População em situação de rua e violência.

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morte do outro. Agressões físicas são as Dessa forma, é esta politização da vida
mais comuns, elas aconteceram em 92% que possibilita que o ente soberano
dos casos e em 19% dos casos voltaram decida efetivamente, através de suas
a se repetir.21 Diante deste cenário, é políticas de Estado, quem será sujeito de
inegociável indagar: “Como tamanha direitos e quem não. Entendido isto, é
naturalização de um ódio tão mesquinho seguro afirmar que, por tais razões,
foi possível entre nós? Essa é a grande atualmente as pessoas em situação de
questão brasileira do momento”.22 A rua no Brasil estão alocadas em um
resposta para esse questionamento estado de exceção imposto a elas pelo
começa quando se entende o uso do poder governamental, a partir do qual
poder pelo soberano dentro do passam a ser tratadas como vidas nuas
paradigma do estado de exceção, no (sem direitos), portanto, podendo ser
qual o necropoder se instaura e se torna eliminadas da ordem social
a regra. impunemente. Tendo em vista que o
papel que elas detêm na sociedade civil
configura uma ameaça tanto a
3. Pessoas em situação de rua e o
estabilidade da ordem social quanto a
fator pandemia
usufruição de direitos fundamentais por
Nesse aspecto, ao analisar com rigor, já aqueles que efetivamente participam da
é possível afirmar que desde o início dos dinâmica social. Como Agamben
posicionamentos governamentais sobre a pressupõe, o estado de exceção serve
questão da população em situação de unicamente para a eliminação da
rua existe uma característica bastante ameaça que afeta, na visão do
nefasta, qual seja, a politização da vida soberano, a ordem da sociedade.
baseada na indiferença. Ao tal ponto
que, o mero fato de um grupo de pessoas Logo, a pandemia do Covid-19 fornece
ocupar, no contexto social, uma posição o contexto ideal para que o poder
que as impeça de contribuir para a estatal implemente nada mais do que
sociedade já é, por si só, uma questão, uma estratégia higienista, no que
na visão estatal, legitimadora para se concerne às pessoas em situação de rua
fazer os menores esforços possíveis ou no país. Pois, a pandemia compreende a
nenhum a fim de garantir direitos a esses justificativa perfeita para a retirada
seres. E é esse viés que envolveu não só desses seres do meio urbano e sua
a publicação do decreto presidencial acomodação em locais públicos
obsoleto e apartado de qualquer efeito fechados, como albergues, estádios de
positivo, mas também que fornece a futebol, Centros de Acolhimento e
explicação para a inércia do Estado prédios abandonados.23 É importante
perante o assustador aumento do número que se diga que, locais como esses são,
de pessoas em situação de rua no país. na verdade, ainda mais propícios a
proliferação do vírus. A tese levantada

21 REDE BRASIL ATUAL, Cresce violência contra população de rua no Brasil.


22 SOUZA, A elite do atraso, pp. 112-113.
23 Governos como os dos Estados do Pará, de São Paulo e do Rio de Janeiro, utilizando de sua autonomia

de gestão durante a pandemia, alocaram moradores de ruas em locais como Estádio de futebol, Centros
de Acolhimento e Hospitais de campanha. Sob a explicação de impedir que o vírus atinja essas pessoas
(Cf. AGÊNCIA PARÁ, Governo do Pará já abrigou aproximadamente 700 pessoas em situação de rua
durante a pandemia; OBSERVATÓRIO DO TERCEIRO SETOR, Como estão as pessoas em situação de rua
em plena pandemia?; UOL, População em situação de rua no Rio teme passar fome durante pandemia de
coronavírus).
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pelos governantes para tais decisões nefastas. Passando pela implementação
durante a pandemia é a de que assim de políticas ineficazes, indiferença
essas pessoas terão suas integridades perante os efeitos negativos de tais
físicas preservadas contra o vírus. O que políticas até chegar na clara desistência
soa estranho, pois, se o Estado estivesse na tentativa de conferir direitos a esta
realmente preocupado com a saúde classe de pessoas.
dessas pessoas, para tal teria agido,
exemplo: aumentando as ações das Assim, tem-se uma cabal interpretação
secretarias de serviço social nos estados de que o soberano (Estado) não apenas
com o fim de emitir documentos civis à declina da tentativa de conferir direitos
essas pessoas (o facilitaria a reinserção às pessoas em situação de rua, pelo fato
no mercado de trabalho e o acesso à de elas não contribuírem para a política
serviços públicos básicos) e o e para a economia, como também passa
reestabelecimento dos laços familiares. as enxergar como uma ameaça a
Portanto, como já mencionado, o usufruição de direitos por aqueles que
soberano enxerga esses seres como efetivamente, na visão governamental,
ameaças a ordem social e a seus devidos tem algo a oferecer para a sociedade
indivíduos, assim, deve-se interpretar civil. Instaurando-se, portanto, um
essas medidas postas em prática durante verdadeiro estado de exceção envolta
a crise sanitária como uma política de deste contingente populacional, onde
Estado com o único e determinado fim de haverá a supressão total de qualquer
impedir que esses seres que vagam pelas meio que as possibilite alcançar um
ruas do país sejam vetores de patamar de bem-estar social e onde dar-
transmissão da doença para aqueles com se-á sua eliminação. Com efeito, a
quem, aparentemente, o soberano se política de indiferença é o que mais
importa, os que participam política, traduz fielmente como o Estado
econômica e socialmente do contexto sob compreende a situação das pessoas em
égide do(s) governo(s). situação de rua no país.

Isto posto, é possível afirmar que, como o


4. Conclusão Estado já tem em suas estratégias a
concepção de que as pessoas em
Em suma, de fato a questão da situação de rua são meros seres vivos
população em situação de rua no país é descartáveis (vidas nuas/sacras) a
algo de altíssima urgência a ser pandemia age como um fator acelerador
solucionada, e em seu processo de da política de eliminação dessas pessoas
tratamento se conferir a devida do convívio social. Dando-se da seguinte
observação de sua raiz histórica vinda forma, retira-se esses seres do meio
da formação das cidades e urbano (onde já estavam em situações
industrialização do país. Já que o degradantes), os coloca em verdadeiros
estabelecimento de um verdadeiro campos de proliferação do vírus e cria-
Estado Democrático de direitos passa se uma narrativa falaciosa de proteção
pela seguridade de direitos dessas pessoas no decorrer da
fundamentais a todos os cidadãos, sem pandemia. E é desta forma que o
distinção. Porém, o fato de a composição problema das pessoas em situação de
dos Estados modernos abrir margem rua se dá no Brasil, desta vez, com o
para jogos de politização da vida faz Estado utilizando o fator do Covid-19
com que a temática das pessoas em como uma ferramenta de pujança e
situação de rua no Brasil adquira nuances
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21
aceleração de suas políticas nefastas de GRINOVER, Ada Pellegrini. ASSAGRAD,
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adania/2019/06/populacao-de-rua-
violencia-estudo/. Acesso em: 11 out.
2020.
SOUZA, Jessé. A elite do Atraso. Rio de
Janeiro: Estação Brasil, 2019.
UOL. População em situação de rua no Rio
teme passar fome durante pandemia de
coronavírus. Disponível em:
https://noticias.uol.com.br/ultimas-
noticias/deutschewelle/2020/03/25/p
opulacao-de-rua-teme-fome-durante-
pandemia.htm. Acesso em: 11 jul. 2020.

Recebido em: 29.10.2020


Aprovado em: 18.12.2020

( D E S ) T R O Ç O S : R E V I S TA D E P E N S A M E N T O R A D I C A L , B E L O H O R I Z O N T E , A N O 1 , N . 1, J U L . / D E Z . 2 0 2 0 .
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(DOSSIÊ: PANDÊMIOS POLITIKÉ }

Rede Convida:
estendendo zelo e outros elos em
tempos de pandemia
Rede Convida:
extending care and other links in pandemic times

Bruna Pinto Martins Brito1


Elizabeth Medeiros Pacheco2
Luana da Silveira3

Resumo: Este artigo compartilha o desdobramento da experiência


processo de construção e gestão do compartilhada a partir das intervenções
projeto universitário de extensão, que produzimos, movides pelo desejo de
pesquisa e ensino, a Rede Convida, que cartografar planos de afetação e
articulamos enquanto docentes e produção de subjetividade e saúde
discentes. Sua proposta surge na medida implicados com as situações prementes
em que somos convocades a traçar e com que nos deparamos em nosso
inventar modos de enfrentamento e processo formativo. Nesta urdidura, o
cuidado perante a irreversibilidade das presente artigo tem como objetivo
mutações que nos tornam demonstrar como a Rede Convida se
contemporâneos de uma turbulência tão articula a outras redes de pessoas e
inédita quanto globalizante: a instituições para enfrentamento da
vulnerabilidade de nossos corpos, de COVID-19, visando também fomentar
nossas vidas. Acreditamos que o ensino e saberes e práticas transdisciplinares nos
a aprendizagem se dão como efeito e planos da escuta clínica, assim como da

1 Professora Adjunta do curso de Psicologia de Campos dos Goytcazes da Universidade Federal


Fluminense. Doutora em Psicologia (Programa de Pós-graduação em Psicologia /UFRJ/Bolsa CNPq).
Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia/UFRJ (Bolsa Capes). Possui
graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2004). Membro do grupo de
pesquisa LAPSO (Laboratório de Psicanálise de Orientação Lacaniana/CNPq), Membro do GT da
ANPEPP Psicanálise em Redes, Membro da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme). Co-
coordenadora da Rede Convida. Coordenadora do Projeto de Pesquisa “Invenções de dispositivos
clínicos em tempos de pandemia”, Coordenadora do projeto de extensão universitária “Atenção, cuidado
e redes de apoio a mães em sofrimento psíquico: construindo estratégias de enfrentamento frente aos
impactos da COVID-19”. E-mail: brunapmbrito@gmail.com
2 Professora Adjunta do Curso de Psicologia da UFF Campos dos Goytacazes. Co-coordenadora da

Rede Convida; Doutorado-Núcleo de Estudos da Subjetividade - PUCSP, 2012. Mestre em Subjetividade


e Clinica - UFF, 2006. Graduação em Psicologia - UFRJ, 1977. Formação em Corpo-análise com Gerry
Este é um artigo publicado em Maretzki, entre 1980-1986. Formação em Orgonoterapia com Federico Navarro no Instituto de
acesso aberto (Open Access) sob Orgonomia Ola Raknes/IOOR, entre 1989-1992. Formação no Método GDS com Ivaldo Bertazzo, entre
a licença Creative Commons 1995-1998. E-mail: elzbietah.elizabeth@gmail.com
Attribution, que permite uso, 3 É Professora Adjunta do curso de Psicologia da UFF - Campos dos Goytacazes, onde desenvolve
distribuição e reprodução em
qualquer meio, sem restrições atividades de ensino, pesquisa e extensão com foco em saúde coletiva/saúde mental, políticas públicas,
desde que sem fins comerciais e instituições e coletivos. Co-coordenadora da Universidade Aberta à Loucura- UAL; co-coordenadora da
que o trabalho original seja Rede Convida; coordenadora do grupo de pesquisa-intervenção em saúde mental e justiça - GPISMJ;
corretamente citado. supervisora de estágio na RAPS. Possui graduação em Psicologia pela UNISC (1998), especialização
sob a forma de residência em Saúde Coletiva pelo ISC/ UFBA (2002), Mestrado em Saúde Coletiva -
ISC/ UFBA (2008), Doutorado em Psicologia Social na UERJ (2013). E-mail:
luanadasilveira76@gmail.com
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formação e de agenciamentos de redes Introdução
comunitárias e de solidariedade. Por se
Neste artigo, coloca-se em análise o
tratar de um projeto em andamento,
processo de criação e gestão de e/ em
nossas considerações finais versam sobre
rede frente às emergências atuais. A
alguns impactos desta iniciativa e os
Rede Convida nasce de uma iniciativa de
caminhos possíveis a seguir.
docentes do curso de Psicologia da
Palavras-chave: pandemia; práticas de Universidade Federal Fluminense (UFF)
cuidado; rede; vulnerabilidade. Campos, profissionais da rede atenção
psicossocial e de saúde pública de
Abstract: This article shares the process Campos dos Goytacazes-RJ,
of building and management of the profissionais liberais, inclusive egresses
university project for extension, research do curso e estudantes de psicologia,
and teaching, Rede Convida, which we visando promover ações educativas,
articulate as teachers and students. Its apoio a redes comunitárias e acolhimento
proposal arises to the extent that we are on-line de profissionais de saúde e
called upon to devise and invent ways of pessoas em situações de vulnerabilidade
coping and caring in the face of the frente à situação da pandemia da
irreversibility of technological mutations doença COVID-19. Apesar de este tema
that make us contemporaries of a ter sido exaustivamente debatido em
turbulence as unique as it is globalizing: diversos artigos recentes, em uma busca
the vulnerability of our bodies, of our na base de dados Scielo com as palavras
lives. We believe that teaching and “pandemia” e “COVID-19”, encontramos
learning take place as an effect and 21 artigos publicados por autores
unfolding of the shared experience from brasileires no campo da psicologia,
the operations we produce, driven by the porém, não encontramos nenhum artigo
desire to map plans of affectation and que relate atividades de extensão
production of subjectivity and health universtária1 voltadas para a pandemia
involved with the urgent situations that we da COVID-19 no Brasil. Desse modo,
face in our faculty process. In this warp, entendemos que este artigo traz
this article aims to demonstrate how Rede contribuições da extensão universitária
Convida articulates itself with other entrelaçadas com pesquisa e ensino às
networks of people and institutions to práticas em psicologia e saúde mental.
face COVID-19, also to foster
transdisciplinary knowledge and Este projeto surge logo no início da
practices in terms of clinical listening, as pandemia, em março, aprovado
well as training and management of enquanto extensão universitária em abril
solidarity and community networks. As de 2020, e logo se torna pesquisa e
this is an ongoing project, our final extensão com ações de ensino. Somos
considerations are about some impacts of convocadas a propor tal projeto na
this initiative and the possible paths to be medida em que estamos diante da
followed. suscetibilidade universal de contrair o
vírus Sars-Cov-2, porém com distinções
Keywords: pandemic; care practices; quanto à vulnerabilidade frente ao
network; vulnerability. mesmo e possibilidades de intervenção. É
o que nos alertam Akerman e Pinheiro2,

1 Disponível em scielo.org.br.
2 AKERMAN; PINHEIRO, Covid-19.
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a partir da diferença dos termos indígenas, efeito direto do racismo
epidemiológicos, posto que a estrutural que marca nossa sociedade.
vulnerabilidade frente à doença não é Nesse sentido, Passos4 nos aponta alguns
igual para todes devido às nossas dados que denunciam a alta
diferenças históricas de classe e gênero, mortalidade da população negra, fruto
acentuadas pelo racismo estrutural. do racismo estrutural, como anterior à
Desse modo, as medidas de isolamento e pandemia: óbitos maternos são mais
distanciamento social no Brasil altos entre mulheres negras do que em
evidenciaram situações de privilégio de não-negras, assim como de adolescentes
condições para tal. Para ilustrar, negros mortos por homicídios, entre
podemos recorrer aos dados do Índice outros. Nesse sentido, a autora afirma
de Isolamento Social, realizado pela que “essa marca étnico-racial molda a
Inloco que demonstra que o percentual sobrevivência e as condições da
chegou a 62,2% em 22 de março, população brasileira”.5
enquanto no último levantamento este
percentual é de 32,2%3. Frente à pandemia, essa situação se
agrava:
Para compreender a vulnerabilidade
No Brasil, em que pese a ausência das
distinta frente à COVID-19 (Corona Virus informações desagregadas por raça ou etnia
Disease 2019), podemos destacar alguns ou que quando coletada apresenta um
pontos. O primeiro deles se refere a preenchimento precário, sabe-se que negras
e negros irão sofrer mais severamente os
profissionais de saúde e de serviços impactos da pandemia e seus vários
essenciais enfrentando diariamente a desfechos negativos, considerando o histórico
de ausências de direitos. Aliado a isto, dados
pandemia, muitas vezes, sem condições nacionais têm apontado a maior prevalência
de segurança, como ausência de de doenças crônicas e negligenciadas entre a
equipamentos de proteção individual população negra, resultado da maior
vulnerabilidade social e econômica na qual
(EPI’s), o que também se torna vetor de ela está exposta e ao menor acesso aos
transmissão. Um segundo ponto a ser serviços de saúde. 6
explicitado diz respeito à
Diante da inexistência de equidade de
impossibilidade de todes realizarem um
condições socioeconômicas, deparamo-
isolamento e distanciamento social, como
nos com cenários muito distintos de
ocorre em favelas e comunidades
pandemia no contexto brasileiro. Nesse
periféricas em que muitas pessoas
sentido, podemos afirmar que “Não
partilham o mesmo espaço, locais
estamos no mesmo barco”, como pontuam
marcados pela ausência das mínimas
Akerman e Pinheiro7. Em referência ao
condições de higiene (devido à falta de
famoso naufrágio do Titanic, o texto nos
condições sanitárias básicas), facilitando
lembra que “o lugar que se ocupa na
o rápido contágio. Junto às questões
sociedade importa no seu risco de
distintas de classe, há ainda as questões
morrer”.8
implicadas ao racismo estrutural
considerando a população negra como a Neste contexto de pandemia com tantas
mais afetada, como também os povos desigualdades, iniquidades,

3 Dados fornecidos pela Inloco e disponibilizados em: https://mapabrasileirodacovid.inloco.com.br/pt/.


A última atualização visualizada pelas autoras é de 29 de outubro de 2020.
4 PASSOS, A carne mais barata do mercado é a carne negra.
5 PASSOS, A carne mais barata do mercado é a carne negra, p. 91.
6 GOES; RAMOS; FERREIRA, Desigualdades raciais em saúde e a pandemia da Covid-19, p. 3.
7 AKERMAN; PINHEIRO, Covid-19.
8 AKERMAN; PINHEIRO, Covid-19.

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vulnerabilizações biopsicossociais, como projeto se propõe a realizar atividades
fica a saúde mental? A Organização de pesquisa, ensino e extensão,
Mundial de Saúde (OMS) alertou considerando ainda a indissociabilidade
recentemente sobre os graves efeitos da entre formação e intervenção.
pandemia na saúde mental. Situações de Defendemos que a formação deve ser
isolamento social ou impossibilidade do considerada como
mesmo, o medo constante do contágio, a
o exercício prático de experimentação no
sobrecarga de trabalho de profissionais cotidiano dos serviços de saúde com os
de saúde e os processos múltiplos de luto, diferentes sujeitos que o compõem, como um
dentre outras situações, colocam as exercício indissociável da experimentação,
do convívio, da troca em situações reais, com
questões de saúde mental em cena. A a qualidade e intensidade desta troca que
partir disto, a OMS lançou um documento favorece processos formativos. O que requer
discutir o plano da clínica na sua
sobre a necessidade de políticas de inseparabilidade da filosofia, da arte, da
saúde mental frente a pandemia da ciência, e da política.11
COVID-19.9 Afinado a esta proposição,
o presente projeto encontra-se alinhado Desse modo, o compromisso ético da
com as recentes diretivas desta instituição psicologia nos conduz à proposição de
ao discutir e elaborar propostas de ação atividades de pesquisa-intervenção que
de promoção de saúde mental e fazer possibilitem interrogar e avançar em
clínico, considerando questões político- busca de modos inventivos de dispositivos
sociais, de classe e racializadas. clínicos neste contexto atual,
considerando o entrelaçamento de
Podemos afirmar que a Rede Convida é saberes, a pluralidade psi em um
convocada a um trabalho que considera contexto pandêmico. Para tal, é preciso
a vulnerabilidade distinta bem como a desvelar as desigualdades socio-
diversidade nos modos de existir e econômico-raciais e a insuficiência de
resistir a pandemia. Demarcamos que a políticas públicas que contemplem a
Rede Convida se estabelece como um complexidade desta crise sanitária que
projeto interseccional. A assola nosso país.
interseccionalidade nas palavras de
Akotirene, Ademais, é crucial nos atentarmos às
vulnerabilidades e vulnerabilizações
visa dar instrumentalidade teórico- psíquicas que a pandemia suscita e/ou
metodológica à inseparabilidade estrutural
do racismo, capitalismo e
acentua. Como propor isolamento e
cisheteropatriarcado – produtores de distanciamento social como segurança
avenidas identitárias em que mulheres negras sanitária àqueles com os quais vem sendo
são repetidas vezes atingidas pelo
cruzamento e sobreposição de gênero, raça e construídas políticas públicas e de
classe, modernos aparatos coloniais.10 cuidado, através de redes de apoio e
agenciamento, circulação e produção de
Lançar mão da interseccionalidade
autonomia como produção do cuidado
prevê, então, o compromisso com
de si e de outres? Partindo de princípios
práticas que enfrentem e acolham o
antimanicomialistas e antiproibicionistas,
sofrimento psíquico em tempos de
com dispositivos de acompanhamento
pandemia a partir das questões de
terapêutico e redução de danos, o novo
gênero, raça e classe. Por isso, este
imperativo de cuidado “isolamento/

9 WORLD HEALTH ORGANIZATION, Policy Brief.


10 AKOTIRENE, Interseccionalidade, p. 14.
11 BRITO; SILVEIRA, Entre nós e redes, p. 134.

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distanciamento” coloca o encontro como corpo no entre-corpos como modos de
“antiético” e ameaçador. Que efeitos no produção de saúde, colocando em cena
processo de subjetivação esse imperativo os processos de subjetivação que nos
produz? Que questões convoca à convidam a arriscar uma experiência de
Psicologia para repensar suas análise crítica das formas instituídas, o
intervenções sociais? O que pode a que nos compromete ética e
universidade pública no contexto politicamente a inventar e apostar.
pandêmico?

Deste modo, podemos afirmar que a Vírus mundo


Rede Convida se gesta na urdidura [...] e te mostrarei algo que não é a tua
dessas indagações, procurando abarcar sombra matinal andando atrás de ti nem tua
sombra vespertina vindo a teu encontro;
as situações prementes com que nos mostrarei teu medo num punhado de poeira.
deparamos em nosso processo formativo, T. S. Eliot, The waste land
enquanto estudantes e professores do
campo transdisciplinar da saúde mental. Apenas duas décadas atravessadas na
Para tal, temos articulado redes de virada de século XX-XXI e somos
pessoas e instituições para o arremessades para fora da medida
enfrentamento da COVID-19, como temporal de década ou século,
também temos fomentado saberes e arrebatades por uma urgência que nos
práticas transdisciplinares nos planos da remete à escala de eras.
escuta clínica, da formação e de Nada do que já pudemos circunscrever
agenciamentos de redes comunitárias e por nossas ciências como campo do
de solidariedade. conhecido, medido ou avaliado, nos
Tais intervenções corroboram com o oferece o domínio racional de tamanho
entendimento da universidade pública acontecimento; nenhuma das estratégias
como responsável pela produção de de guerra com as quais já estivemos
conhecimento em co-gestão com os submetidos a horrores e gloríolas nos
sujeitos concretos (alunes, profissionais, permitem enfrentar a pervasão de uma
usuáries) e suas diferentes demandas. O potência tão mais eficiente quanto
que implica em estarmos atentas à incapturável: Um vírus, CORONA vírus,
complexidade e à dinâmica da inumana realeza, anônima ironia.
pandemia e fazermos escolhas teórico- Impasse radical da antropocena que se
metodológicas que expressem e vê demolida de sua centralidade e
inventem um campo de interlocução entre convocada a restituir o plano de
os saberes, indissociados de um método, composição entre humano e cósmico, o
de um modo de fazer a formação12. que se apresenta como a noção de
Essas escolhas são sempre ético-estético- Mundo, muito mais complexa do que a
políticas. desterritorializada noção de Terra. Dizer
Assim, enquanto processo co-gestor de mundo implica abarcar a multiplicidade
constituir e se constituir em rede, de vidas e modos de existir e modos de
procuramos entrelaçar projetos das habitar, que vão além dos meios
docentes envolvidas, pelas bifurcações investidos por tropismos vegetais e
da clínica on-line, da atenção psicossocial instintos animais, vão até os extremos da
em novos territórios e pela potência do responsabilidade ética e política da

12 HECKERT; NEVES. Modos de formar e modos de intervir.


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invenção de mundos e modos de "O passado de outrem, que nunca foi
existência diversos. meu presente, me diz respeito, não é
para mim uma re-presentação. O
A dimensão pandêmica de contágio e passado de outrem e, de algum modo, a
letalidade que a atual ameaça configura história da humanidade, da qual jamais
se contrapõe à escala do ínfimo, do participei, à qual jamais estive presente,
invisível de seu agente - um vírus, como é meu passado".
tal, mutante, em exponencial
reprodução. Paradoxo entre - um mega Mas a essa convocação não
efeito de um micro mundo. Paradoxos respondemos todes com a mesma
nos convocam ao fora do representável, empatia. O horror com que racistas e
como desafios a percorrer em implicação fascistas continuam a oprimir toda sorte
plena. Paradoxos nos forçam a de coletivos e comunidades parece ter se
problematizar. multiplicado através das redes das
tecnologias da comunicação, com o
Essa dobra promovida pelas tecnologias agravante de ser também incentivado
da informação e sua política por violência de Estado que expõe as
comunicacional oriunda dos meados do populações de favelas e periferias a
séc. XX, veio a culminar num assédio policial.
tecnocentrismo digital e sua imagem de
mundo como aldeia global, capturada Contudo, é nesta emergência das redes
pelo capitalismo mundial integrado que somos surpreendidos pela
(CMI)13 como sociedade de comunicação ubiquidade não de nossos corpos, mas do
que exerce seu controle através de vírus que, na Pandemia, nos implica a
ampla rede linguística. Ocorre que este todes e qualquer um a estarmos lançados
ideal, onde supostamente estaríamos num mesmo mar - sendo que alguns de
todes conectáveis, se revelou por seu navio, outres de barco, outres ainda de
avesso: Estamos todes, e qualquer um, jangada e a maioria a nado. Se a
contagiáveis. O que nos remete à vulnerabilidade dos corpos nos colocaria
condição de "comum", portanto, não é o em igualdade perante o vírus, a
poder das tecnologias da comunicação, fragilidade das vidas não apresenta
mas o plano comum de nossa nenhuma similitude.
vulnerabilidade. A condição hegemônica
de sermos corpos, inextricavelmente Esta pandemia tem sido o melhor
implicados entrecorpos. analisador político de nossas diferenças
em relação às condições de viver e de
O terror cometido repetidamente por morrer, que produzem corpos mais e
racistas de toda sorte há séculos, como menos suscetíveis ao risco de contágio e
genocídio de povos ancestrais, o terror às chances de cuidado e salvamento
cometido por fascistas e nazistas e suas adequados. Aí moram as profundas
massas que levaram ao extermínio desigualdades, acentuando a
judeus, ciganos no séc. XX, convocava vulnerabilidade dos corpos cujas vidas se
nossa responsabilidade ética a incluir, encontram condenadas ao racismo de cor
como nossa, a dor e o passado de e de classe. Os epidemiologistas podem
outrem, mesmo não tendo feito parte de mostrar os resultados de pesquisas, cujas
nossa vida; nas palavras de Lévinas:14 estatísticas comprovam a repercussão do

13 GUATTARI, As Três Ecologias.


14 LÉVINAS, Entre nós, p. 157.
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comando sanitário unânime da OMS medida, que estamos convocades,
"fique em casa" e a cruel situação de enquanto professores e professoras,
moradia urbana em países como o Brasil, estudantes e profissionais da saúde, a
onde pelo local e pelas condições de indagar e, simultaneamente, construir os
moradia já sabemos a quais direitos as caminhos e as condições da educação
pessoas terão ou não terão acesso. para este momento intempestivo em seus
Grande parte da população habita em diversos domínios.
condições de extrema insalubridade e
concentração humana de modo a não ser O corpo não mente, e contraímos
possível manterem-se juntes todas as memórias dos afetos que perpassam
pessoas que habitam a mesma casa e nossos encontros alegres ou
garantir alguma resistência psíquica. O constrangedores, mantendo as marcas de
comando razoável para evitamento do toda situação vivida. Dizer saúde mental
contágio pelo vírus se torna inviável para não exprime a velha dissociação entre
manter os afetos no limite do mente e corpo mas, longe de alienar o
compartilhável. Além disso, "fique em corpo dos processos de subjetivação,
casa" é passível de ser respeitado para acolhe como diversos e inseparáveis
quem tem, minimamente, a garantia de ambos regimes de expressão: o psíquico
alguma condição financeira para e o corporal enquanto inscrições do
sobreviver sem sair de casa para socius.
trabalhar. Não é o caso da maioria da A abertura do ano letivo após as férias
população brasileira. O que afeta de verão deste 2020, paradoxalmente
sobretudo as mulheres, que estão em coincidiu com a suspensão de qualquer
diversas linhas de frente, com aumento atividade presencial quando, em 16 de
da sobrecarga em casa, com funções do março, foi decretada a quarentena pela
cuidado considerado como feminino, com evidência de uma pandemia. A partir de
o desemprego gerado pelo acúmulo de então, num primeiro momento
funções e com a perda de rede de apoio, atordoades pela urgência e incerteza de
tais como creches e escolas, fechadas na como proceder em tal situação extrema,
maioria dos municípios durante a nos organizamos por volta de estudar e
pandemia. Estima-se o retrocesso de uma pesquisar como e o que fazer para nos
década em relação ao mercado de cuidarmos e podermos também oferecer
trabalho, inserções e conquistas. cuidados. Constituímos a rede neste
Diante deste quadro alarmante de percurso de buscar o como e o que fazer
incapacidade política de responder às de modo a agenciar as diversas
exigências sanitárias desta pandemia, maneiras de pertencer e participar como
será preciso cuidar de não agravar a discentes, docentes, formandos, e outros
pressão cotidiana a que estamos espaços de pesquisa.
constritos. Este momento não supõe um Nessa perspectiva, as atividades da
depois, já que nos falta qualquer pesquisa O corpo sem alibi, se
parâmetro para sua superação e isto nos desdobram em uma articulação com a
remete à condição mais animal de rede convida, e com a rede
presentificação da vida. A vida no cabrucannabis a partir do momento de
regime do agora cotidiano. A vida no formação da rede convida, como uma
ritmo do sol a sol. Assim, não cabe às das modalidades de atendimento, em
instituições impor metas de futuro modo grupal, aberto, visando a
próximo ou a médio prazo. E é, nesta experimentação de práticas de si que
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possam acolher tensões, torpores, modalidade, semanal, aberta para
angústias pelo viés da memória dos estudantes da UFF participantes ou não
afetos inscrita nos corpos e repercutindo da Rede Convida, profissionais voltades
nos gestos, pedindo passagem para as questões da saúde e da vida no
expressiva. cotidiano anômalo impresso pela
pandemia. Ambas as modalidades se
Daí surgiu a proposta para nós, grupo de passam, com 2hs de duração, 80 minutos
pesquisa "sem álibi", (apelido do projeto de práticas e 40 minutos de espaço para
que se iniciou em set. 2014, junto aos compartilhamento das experiências entre
alunos de Psicologia da UFF Campos) participantes. A cada encontro, a
tomarmos a tarefa de inventar um tentativa está em nos abrirmos às
possível para nossas oficinas na práticas corporais, numa tentativa de
modalidade on-line, através desse grão desnaturalizar as marcas dessa
de convivência semanal compartilhada prontidão à ação e demandas que se
no regime remoto, explorando a inscrevem em nossos corpos convocados
invenção heterotópica do encontro, fora por relações, hábitos e contratos já
do regime da comunicabilidade social incorporados como sofrimentos
compulsória. Buscamos valorizar a inevitáveis ao modo de vida
potência dos afetos de estranhamento, contemporâneo. Não visamos nem
pois estranhar é não poder permanecer desempenho, nem treinamento por
o mesmo. Tal proposta está implicada ao exercícios físicos, mas ativações da
momento disruptivo provocado por esta escuta corporal que se voltam à pulsação
pandemia e procura manter o caráter de política e biofísica de nossos corpos,
dispositivo de acolhimento e de cuidado tornando unânime a vontade de
de si oferecidos através da Rede compartilhar as experiências, numa roda
Convida, em sua ampla abrangência. de conversa ao final: Tempo de
Desde 11 de junho de 2020, quando nos pensamento vivo - afinal afetos pensam
sentimos já mais situadas em relação ao e fazem pensar.
que já experimentávamos entre nós, O encontro é intenso, embora virtual, por
participantes da pesquisa "sem álibi", celular, ou por computador, mas todes
passamos a oferecer as oficinas e assim em tela, com inimaginável vontade de
pretendemos prosseguir, enquanto compartilhar as experiências vividas
vigorar a prescrição de recolhimento durante as práticas, sendo formada uma
durante a pandemia. Buscamos roda de conversa após o encontro. E é
favorecer a produção de afetos potentes fácil notar a leveza e energização após
contra o niilismo que nos assombra nestes cada encontro. Essa troca de
tempos de incerteza e privação das experiências corporais permite evocar os
formas de vida, considerando o afeto de conceitos produzindo, também,
confiança, um potente analisador, um conhecimento teórico; contudo, o
afeto valioso na dimensão ética de diferencial está em afetar alunes na
cuidado, para que se favoreça a produção de conhecimento a partir de
experiência efetiva de constituição de suas vidas em estado de reconstrução, na
novos territórios existenciais. maneira de se reterritorializarem na
Essas oficinas acontecem, em duas situação de emergência e suspensão
modalidades: quinzenal para atividades promovida pela pandemia, uma
lúdicas com mães de crianças atendidas operação de construir mundo com outres
pelo coletivo Cabruncannabis e outra em um cotidiano inusitado. Dessa forma
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temos podido partilhar relatos e criação do comum, de novos contratos
narrativas de quem frequenta as terapêuticos, em que as fronteiras entre
oficinas, como um valor e suas vidas e a vida pública e privada estão borradas
não apenas pertinente à vida e invadidas por sons, ruídos, olhares,
acadêmica. ambientes distintos das referências
tradicionais ou mesmo do atendimento
on-line pré-pandemia. Novos contratos
On-line enreda e enredos
forjam contatos possíveis, o que torna
A aposta na integralidade – princípio e diferente, nem menor nem igual ao que
diretriz do SUS –, e na formação- tínhamos como referência de trabalho e
intervenção implica a construção de de encontro.
redes que potencializem movimentos de
mudança por meio da problematização Cartografar processos em que estamos
dos modos instituídos de cuidar e gerir, e imerses, enredades pelas tramas das
na materialização da integração ensino- mudanças e convites a outras, deslocam
serviço-comunidade. Propicia modos de referenciais, derrubam fronteiras e criam
fazer a formação que se construam via a outras, alterando profundamente as
indissociabilidade entre cuidar, gerir e experiências com o espaço-casa,
formar em perspectiva transdisciplinar, espaço-rua, espaço-trabalho. A
pois como afirma Benevides:15 “é no experiência com o tempo também é
entre os saberes que a invenção alterada, ao se fundir tempo de trabalho
acontece, é no limite de seus poderes que e tempo livre, em que cessa a alternância
os saberes têm o que contribuir para um dos vários tempos sociais e surge a
outro mundo possível, para uma outra percepção do dia, onde praticamente
saúde possível”. falta a suspensão, especialmente para
aqueles que foram jogados para
A cartografia, enquanto método universo do homeoffice numa espécie de
escolhido em nossa pesquisa-intervenção, disponibilidade on-line full time.
se coloca como possibilidade de
acompanhar processos que exigem Como pesquisadores, as técnicas nos
invenção do cotidiano, produção de um afetam, nos transformam, em uma dupla
corpo individual e coletivo que possa conexão de vetores e forças, por um
lidar com as exigências de isolamento e processo de constituição recíproca.
distanciamento social, com o Depende de uma disponibilidade,
deslocamento do medo paralisante para engajamento, agenciamento e
a consciência sanitária do risco individual mobilização dos afetos, o que requer a
e coletivo. O que afeta a todes, de dissolução dos pontos de vista, em uma
modos distintos, mas é impossível passar relação intensiva de estar com e não
imune e impune a esse processo sobre, onde ninguém é o fundamento.
turbulento. o que nos convoca a efetuar a passagem do
lugar de um, enquanto sujeito único, ao lugar
Diante do caráter irreversível que a de um enquanto um modo: ao invés de uma
pandemia nos impõe, a virtualização dos dor, um modo de doer, de um desvario, um
modo de desvairar, de uma trajetória, um
modos de ensino e atendimento, modo de traçar - onde, então, podemos
expressa o paradoxo do limite da começar a vislumbrar a partilha de modos
que configuram a emergência de uma
segurança sanitária e possibilidade de subjetividade reverberando para além de

15 BENEVIDES, A psicologia e o sistema único de saúde, p. 4.


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uma pessoa, que se apresenta então como um solidariedade e responsabilidade
modo de sentir, pensar, agir e viver.16
coletiva.
Não sabemos o quanto podemos afetar
A Rede Convida, inicialmente constituída
e ser afetades. Criar dispositivos para
pelos Grupos de pesquisa-intervenção
acolhimento e atendimento on-line gera a
em Saúde Mental e Justiça, pela
abertura ao desconhecido, outras
pesquisa Corpo Sem Álibi, pela pesquisa
naturezas de encontro. Envolvides por um
“Invenções de Dispositivos clínicos em
jogo de afetações, somos convocades a
tempos de pandemia” e a extensão
refletir sobre o quanto a pesquisa é uma
universitária “Atenção, cuidado e redes
questão de fé e de confiança, portanto,
de apoio a mães em sofrimento psíquico:
exige que analisemos as expectativas, o
construindo estratégias de enfrentamento
papel da autoridade do pesquisador, o
frente aos impactos da COVID-19”, tem
papel dos eventos, que autorizam e
se articulado com: 1. UFF Campos: 1.1
fazem coisas virem a ser. Grupos de
Centro Acadêmico de Psicologia e 1.2.
whatsapp, lives, rodas de conversa on-line
Diretório Central de Estudantes- ação
ganham novos lugares de conhecimento
das cestas básicas e acolhimento
vivo, possibilidade de contato, contrato,
psicológico e 1.3. Pretas psi- acolhimento
encontros, enquanto um processo de
grupal; 2. Setor de psicologia do IFF
transformação recíproca, de
Campos e Cabo Frio: apoio à
pesquisadores e de pesquisades, de
comunidade quilombola e saúde mental
professore e de alune, da universidade e
institucional; 3. ADUENF- UENF; 4.
da comunidade, de terapeuta e usuárie,
Profissionais da rede de atenção
em um processo de afetação mútua.
psicossocial de Campos- apoio
Existir é variar em nossa potência de
institucional e matricial; 5. Nação
agir, entre subidas, descidas, elevações
Basquete de Rua- NBR- ações de redes e
e quedas.17
solidariedade e formação; 6. Coletivo
Perante a vulnerabilização suscitada Cabrucannabis: formação, orientação e
pela pandemia, que acentua encaminhamento para tratamento com
desigualdades, e os retrocessos das cannabis medicinal; 7. Coletivo de
políticas públicas, constituem-se redes mulheres Nós Por Nós- atendimento
comunitárias e de solidariedade como psicológico e apoio jurídico; 8.
saídas possíveis às crises, rompendo com Profissionais liberais/voluntáries de
o assistencialismo histórico e produzindo Campos, Macaé, Rio, Baixada, Salvador:
agenciamentos com pessoas, instituições atendimento psicológico, médico,
formais e informais. Diante do aumento psiquiátrico, terapia ocupacional e yoga.
da pobreza nos últimos anos, agravada
O processo de criação e gestão de
com a pandemia, ações de arrecadação
processos de ensino, pesquisa e extensão
e distribuição de cestas básicas, vakinhas
em rede, para nós enquanto autoras e
on-line, etc. se tornam emergenciais para
articuladoras de grupos e ações, tem
viabilizar a sobrevivência mínima e
colocado questões importantes tais como:
cuidado necessário de prevenção ao
o que é território de intervenção? Como
coronavírus. Tais ações deslocam a lógica
produzir encontros, oferecer presença e
da caridade, que mantém a piedade e
cuidado, incitar redes sem aumentar
racismo de classe, para a ética da
riscos? Acompanhar as discussões no

16 PACHECO, Dos poros ao sopro, p. 89.


17 DESPRET, The body we carefor.
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grupo de pesquisa “Invenções de tem como principal meio de atuação o
dispositivos clínicos em tempos de território, junto com usuáries, familiares e
pandemia” e as invenções do grupo de pessoas outres, em busca do processo de
saúde mental e justiça que se articulam desinstitucionalização como produção de
com a Rede Convida, nos fornecem pistas autonomia e saúde, convivência
importantes para tais questões. comunitária e ocupação da cidade.
Tendo que lidar com a suspensão e
Sobre o grupo de pesquisa “Invenções de limitação impostas pela pandemia, fora
Dispositivos clínicos em tempos de preciso a criação de outros modos de se
pandemia”, nossas discussões, em fazer presente e atuante. Atuando como
encontros semanais virtuais, são intercessor e articulador de redes de
pautadas nos desafios de práticas psi, a saúde, sociais e afetivas, na perspectiva
partir de estudos interseccionais. É uma da pesquisa-intervenção, o projeto
aposta em uma ferramenta cartografa e contribui para a formação
metodológica para compreensão do ética-política e de estudantes de
cenário pandêmico, entendendo este psicologia, para a indissociabilidade
como indissociado das questões de raça, entre clínica e política, para o
gênero e classe. Este espaço de estudo e compromisso social da universidade com
compartilhamento de práticas e afetos, as demandas das pessoas
tem se transformado em um potente vulnerabilizadas pelos marcadores de
espaço de formação de estudantes e sofrimento psíquico, gênero, raça e
profissionais, pautados em uma classe.
psicologia comprometida com as lutas
antirracista, antimanicomial e O decreto de uma pandemia é o evento
antiproibicionista. trágico que nos possibilita refletir sobre
o cuidado em liberdade para promoção de
Outra iniciativa, vinculada à Rede autonomia e expansão de redes como um
Convida, se refere a atualização e dos fundamentos de trabalho e cuidado
invenção de saberes e práticas do grupo e saúde mental. As ruas nunca foram um
de pesquisa-intervenção saúde mental e espaço seguro para usuáries de drogas
justiça da UFF Campos18 que acompanha e dos serviços de saúde mental,
pessoas em situação de sofrimento especificamente quando se trata de
psíquico grave que sofrem medidas usuáries pobres e negres. Na atual
judiciais, tais como a curatela e histórico conjuntura, a repressão policial se
de internação compulsória, intensifica sobre esses corpos. O que
encaminhadas pelo Ministério Público e representa usuárie negre de máscara
pela RAPS. Com a pandemia pela andando na rua? Pensar as ruas como
COVID-19, novos desafios surgiram para território (im)possível, estando em um
o acompanhamento terapêutico-AT, que contexto pandêmico, em que estas se

18 Este grupo existe desde 2015 como desdobramento do grupo de estudo criado em 2014 e do projeto
de extensão em desinstitucionalização, temos produzido novas tecnologias e dispositivos de cuidado
através do acompanhamento terapêutico (AT). Conforme Brito e Silveira (Entre nós e redes: experiências
de formação-intervenção para a saúde mental e atenção psicossocial) trata-se do acompanhamento de
usuáries de saúde mental através da atenção domiciliar e da articulação com os pontos de atenção da
rede, por meio da construção de um projeto terapêutico singular (PTS) com usuáries, familiares e
profissionais desde as resoluções cotidianas à circulação na cidade, fortalecendo os laços ao
conhecermos o território e seus itinerários terapêuticos (PALOMBINI, Acompanhamento terapêutico). Este
grupo tem problematizado os atravessamentos sobre a produção do “louca perigosa”, considerando o
controle e a dominação exercidos sobre estas, a partir do saber/poder psiquiátrico e jurídico na
execução de sanções como: medida de segurança, internação compulsória e interdição/ curatela judicial.
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tornam ainda mais perigosas pela precária e pequena para quantidade de
grande possibilidade de contágio do residentes caso alguém adoeça?
vírus, é pensar na saúde da população
mais vulnerabilizada. Como garantir que Entre acompanhades, a vulnerabilização
as andanças, circulação e encontros se social é um fator constante. Para a
deem de modo seguro? Como não cair na COVID-19, conforme apontam Karol e
armadilha do “Fique em casa” para Silva19, esse é mais um fator de risco. E
justificar o isolamento histórico a que assim, as vulnerabilizações e violências já
estas pessoas são submetidas em nome presentes no cotidiano das pessoas
do cuidado e em defesa da sociedade acompanhadas tomam novas formas, e
que os têm como essencialmente as medidas de controle do vírus
perigoses? Como reverter o sentido da disfarçam a necropolítica, a política de
experiência de isolamento como produção de morte e controle dos corpos
confinamento para afetiva e efetivamente considerados descartáveis20, como a
cuidado e proteção? Como orientar para população negra, comunidade Lésbicas,
que fiquem em casa, quando as relações Gays, Bissexuais, Transexuais/Travestis,
territoriais eram (e são) as apostas de Queer, Intersexo, Assexuais e mais
cuidado? Era urgente criar novas (LGBTQIA+), mulheres, idoses, pessoas
possibilidades justamente pela situação com sofrimento psíquico e usuáries de
emergencial e evitar riscos de contágio, drogas. Assim, fora preciso reafirmar
adoecimento, desassistência, entre garantias mínimas de proteção e acesso
outros. Portanto, pensamos em como a serviços para que essas pessoas não
ofertar presença à distância pela dupla fossem esquecidas devido ao
ou grupo de acompanhantes terapêutices sufocamento de tais serviços, diante da
(AT) e redutoras de danos, e mediada sobrecarga de novas e antigas
através de tecnologias, para contato demandas.
direto ou indireto via rede de apoio. Assim, desde março tem havido a
Nesse processo, esbarramos com intensificação na relação estabelecida
problemáticas anteriores, tais como não com os serviços de referência de cada
acesso a direitos básicos, bens e serviços. usuárie, que se tornou primordial para
Com a pandemia, a desigualdade social que a oferta de atenção pudesse se
escancara-se ainda mais, trazendo manter ativa, promovendo análises
questões urgentes, posto que pessoas já extremamente necessárias acerca da
em situação de vulnerabilidade social sobrecarga e precarização dos serviços
ficaram mais expostas aos riscos de e das práticas em saúde mental da
contaminação, visto o não acesso a cidade e ativar redes no território, já que
materiais e serviços necessários para a em sua grande maioria, são pessoas com
proteção. O que fazer quando a RAPS frágeis vínculos familiares e em intenso
não dá conta de cobrir todo seu sofrimento.
território? Como conversar sobre higiene
pessoal e prevenção ao vírus, quando Com o distanciamento e a presença nos
uma família inteira compartilha a mesma serviços substitutivos se tornando menos
toalha, única na casa? Como pensar frequente e mais pontual, sem a
isolamento social quando a moradia é convivência grupal, antigas e
importantes demandas puderam ser

19 KAROL; SILVA, Da geografia da população à necropolítica.


20 MBEMBE, Necropolítica.
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retomadas, como a de ter uma casa largos no Brasil e na cidade que
minimamente equipada, caso de uma das exercemos nosso trabalho.
pessoas acompanhadas. Por isso,
acredita-se que a pandemia é, Em meio à angústia e à insegurança
paradoxalmente, um momento de estar frente à imprevisibilidade do momento, e
ainda mais próximo, pois intervém o medo que atravessa a todes,
naquilo que gera a insegurança, solidão, possibilitar acesso a meios de
vulnerabilidade e outras. Questões comunicação como celulares e, entrar em
antigas se atualizam como a lógica da contato através dos mesmos àquelas que
periculosidade/ incapacidade que já o tinham, fora uma das estratégias
atravessa tais sujeites e o medo social, já possíveis para fazer-se presente, ofertar
que somos todes contagiáveis, o inimigo- escuta, orientações e mediar o acesso a
vírus se converte naquele considerade serviços e a políticas de assistência, como
incapaz de se cuidar e que oferece risco o auxílio emergencial, benefício instituído
de contágio social: inimigue-hospedeire. pelo Estado em tempos de calamidade,
para possibilitar garantias mínimas de
Dentre as dificuldades mais pungentes, vida diante do contexto.
conseguir contato com pessoas que
acompanhamos, posto que estas não Além disso, em algumas situações, devido
estavam indo ao serviço de referência e à demanda e possibilidade das AT´s, em
não possuíam telefone ou outro meio que diversos momentos fora preciso fazer o
viabilizasse o nosso contato, representou encontro presencial, com todos os
um dos nossos maiores obstáculos. Não cuidados necessários de distanciamento
tínhamos notícias de como estavam, se social e equipamento de proteção
tinham acesso à informação sobre as individual. Em meio aos protocolos a
medidas de prevenção ao COVID-19, se serem seguidos, sentimentos ambíguos
estavam conseguindo se cuidar e, se são despertados, o medo de ser vetor de
conseguiriam ter o mínimo de acesso a transmissão, medo de contaminar-se, em
itens básicos de higiene extremamente contraponto à saudade e à potência dos
necessários para proteção. A ausência encontros e dos abraços, que nesse
de contato por mais 20 dias com uma das momento, em prol do cuidado coletivo,
pessoas acompanhadas pelo grupo, fora de si e do outro, não é possível vivenciar.
uma das muitas situações angustiantes e A cada encontro, físico ou mediado pelo
marcantes que experimentamos. celular, sempre intensos, fora preciso
Impossibilitada de ir até o serviço de lidar com a ausência do toque e
referência e cuidado, sem condições de reinventar maneiras de tocarmos e
se alimentar, devido ao não acesso a cuidarmos distantes fisicamente. Modos
nenhum tipo de renda e sem possíveis de ser AT articulando, portanto,
possibilidade de moradia que ofertasse com a estratégia da Redução de Danos
recursos concretos para o cuidado e (RD).
higiene pessoal. Tal situação Em um conceito ampliado, a Redução de
representara algo quase intransponível Danos pode ser entendida como
para nós, principalmente, na medida em estratégia para atenuar os danos à
que a pandemia avançava a passos saúde em decorrência a comportamentos
de risco21. Em contexto pandêmico, a
atuação pautada na Redução de Danos

21 POLLO-ARAUJO; MOREIRA, Aspectos históricos da redução de danos.


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é fundamental, tanto para prevenir a inviabilizava os encontros físicos. Neste
COVID-19 como outros agravos e momento inaugural, nossa proposta se
problemas, e em caso de contágio, direcionava ao acolhimento de pessoas:
favorecer o tratamento no local de com suspeita, que estavam ou estiveram
moradia e tratamento na rede de saúde. com COVID-19; Idoses; Mães solo;
Nesse processo, entendemos que as Mulheres em situação de violência;
estratégias de Redução de Danos são profissionais de saúde e educação;
excelentes produtoras de oportunidade Adolescentes em conflito com a lei;
para a diminuição desse contágio, com Moradores de periferia.
práticas educativas, preventivas e de
cuidado, focando sobre a transmissão do É importante marcar que o acesso à
vírus, formas de diminuir a propagação internet não corresponde à realidade da
do contágio e, consequentemente, se população brasileira em geral, como
proteger, e deste modo, contribuindo demonstram os dados da Pesquisa
para a produção de autonomia e saúde, Nacional por Amostra de Domicílios
cruciais no processo Contínua – PNAD Contínua (2018), última
desinstitucionalizante. Processo que nos pesquisa divulgada pelo IBGE neste
inclui e constitui enquanto universidade ano.23 Apesar de não serem dados
formadora, alterando modos de relação referentes à pandemia, estes apontam
com a comunidade, entre professoras e que 74,7% da população tem acesso à
alunes, apostando que a assimetria não internet, sendo 98,1% de acesso via
se transforme na dureza da hierarquia, e aparelhos celulares, e 79,4% das
que estejamos construindo e aprendendo pessoas que tem acesso à internet se
juntas. encontram em zonas urbanas. Na divisão
regional do país, o Centro-Oeste
Outras iniciativas se somam a estas na (81,5%) e o Sudeste (81,1%) se
tentativa de buscar de práticas de encontram com maiores índices de acesso
cuidados e estratégias de apoio para e a região Nordeste (64%) com o menor
enfrentamento da pandemia. índice. No item “Rendimento real médio
per capita dos domicílios em que havia
utilização da Internet”, a renda de
Acolhimento on-line e redes de
apoio e solidariedade pessoas que acessam via telefone celular
é R$ 1.765,00.24 No que se refere ao
Neste cenário pandêmico, em que “O gênero, as mulheres (75.7%) possuem
tempo se encontra suspenso, ou pelo mais acesso do que os homens (73.6%).
menos está diferente. Ele parece se Vale lembrar que não encontramos
alongar, mas também se acelera”.22, dados referentes à raça nesta pesquisa.
como é possível realizar práticas de Podemos inferir que esses dados
cuidado e acolhimento? Quais soluções apontam, assim como nossa experiência
podemos inventar? No início da Rede na Rede Convida, que ainda há uma
Convida, o ponto de partida foi parcela da população sem acesso à
encontrar parcerias para composição de internet, provocando obstáculos às
uma rede de acolhimento gratuito e on- práticas de acolhimento no cenário da
line em virtude da pandemia que pandemia. Ainda assim, este projeto tem

22 CHIRIACO, Une fenêtre ouverte.


23 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, Acesso à internet e à televisão e posse de
telefone móvel celular para uso pessoal 2018.
24 Importante marcar que em 2018, o salário mínimo era de R$ 954,00.

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promovido acolhimentos, a partir de identificadas como negras são acolhidas
pedidos de ajuda via o perfil do projeto pelo coletivo PretasPsi, e mães pelo
no Instagram, via pessoas que conhecem grupo de extensão “Atenção, cuidado e
o projeto e participantes que nos redes de apoio a mães em sofrimento
contatam para encaminhamentos ou psíquico: construindo estratégias de
ainda via redes de solidariedade (de enfrentamento frente aos impactos da
que falaremos adiante). COVID-19” citado anteriormente. Este
último nos ensina sobre os modos de
Mas, retomando o percurso histórico do inventar o acesso às mães em situação de
projeto, rapidamente as demandas de vulnerabilidade social e intenso
pessoas em situações de sofrimento sofrimento psíquico. A partir de um
psíquico se diversificam, conduzindo a levantamento das mães incluídas no
uma abertura para o acolhimento dentro projeto de doações de cestas básicas,
da disponibilidade das participantes da nasceu a proposta de realização de
rede, em constante ampliação, assim rodas de conversa on-line quinzenais com
como a parceria com serviços, coletivos mães, majoritariamente universitárias, em
como PretasPsi e, mais recentemente, o situações de vulnerabilidade social e
projeto de extensão “Atenção, cuidado e psíquica. Essa rede de mães que se
redes de apoio a mães em sofrimento iniciou no segundo semestre de 2020 tem
psíquico: construindo estratégias de contribuído no acolhimento ao sofrimento
enfrentamento frente aos impactos da a partir da potência do grupo em
COVID-19”. Este, por sua vez, está compartilhar experiências e criar
diretamente ligado a uma das frentes da estratégias coletivas para questões
Rede Convida: o apoio às redes de maternas como a sobrecarga mental, a
solidariedade. Frente que considera o dificuldade do autocuidado e, ainda, os
cuidado e apoio como imbricados e que obstáculos ao ensino remoto impostos às
se fazem em várias direções, por estudantes mães.
sabermos que a vulnerabilidade social se
agrava com a pandemia, como Há outras atividades na Rede Convida
recentemente noticiado sobre o retorno que merecem nosso destaque. Na
do Brasil ao “Mapa da Fome”. Neste coordenação deste projeto, organizamos
cenário, é fundamental que a Rede reuniões periódicas com participantes da
Convida também se conecte a Redes de rede para discussão sobre a dinâmica da
solidariedade comunitárias, como a ação rede e os encaminhamentos das
de cestas básicas, iniciativa do projeto demandas. A partir destas discussões,
de extensão universitária “A UFF Campos surge a proposta de realização de
faz”. Destinada a pessoas da encontros para discussão dos casos em
comunidade acadêmica com atendimento num processo não-
vulnerabilidade econômica, essa ação hierárquico de super-visão, num encontro
articula cuidados preventivos da COVID- de contribuição, de inter-visão que
19, com distribuição de máscaras e colabora para o compartilhamento dos
álcool gel, como também encaminha desafios e impasses dos acolhimentos
pessoas que demandam acolhimento realizados.
psicológico a serem acompanhadas por
estudantes e profissionais da Rede O acolhimento on-line e a articulação de
Convida. Há ainda a possibilidade de redes se atravessam e partem da
acolhimento on-line em grupo, com compreensão da atenção psicossocial
marcadores de raça e gênero. Pessoas como indissociável da dimensão clínica-

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política de um fazer ético e inventivo, de destacar: oficinas semanais em
com produção de novos territórios e parceria com a pesquisa O Corpo Sem
dispositivos de intervenção e conexão. Alibi; acompanhamento terapêutico em
São ofertas que atendem a pessoas que parceria com o Grupo de Pesquisa
não se enquadram no perfil strictu sensu Saúde Mental e Justiça; encontro
de serviços oferecidos pelo SUS e SUAS, semanais com o grupo de pesquisa
e diante da suspensão de clínica-escolas, “Invenções de dispositivos clínicos em
como os serviços de psicologia aplicada tempos de pandemia”; acolhimento,
das universidades, não têm serviços acompanhamento e/ou encaminhamento
sociais e ou públicos para serem dos casos demandados em articulação
atendidas. Como também a oferta on- com as redes do território; realização de
line tem demonstrado a relevância de espaços de troca com os encontros de
possibilitar acesso a quem não buscaria inter-visão; coordenação de atividades
acompanhamento presencial por de formação como divulgação de
dificuldades de acesso, de informação ou informações sobre a pandemia através
mesmo como parte do sintoma. das redes sociais e realização de
Entendemos que mesmo com a minicurso na semana de psicologia da
reabertura e ampliação de serviços, a UFF-Campos.
modalidade on-line permanecerá por
apresentar possibilidades terapêuticas Por se tratar de um projeto em curso,
distintas, inclusive do modo como se dava algumas iniciativas ainda estão por vir,
antes da pandemia, como tem sido com como oferta de estágios, inclusão de
a reformulação dos estágios. práticas integrativas, e elaboração de
um documento digital com diretrizes e
estratégias para cuidados em saúde
Considerações finais mental em tempos de pandemia para
Muito são os desafios que se desvelam ampla divulgação.
nesta pandemia, mas há muita potência
em forma de rede. É nossa aposta neste
projeto que extrapola os muros, Referências
reforçando o compromisso social da AKERMAN, M.; PINHEIRO, W. R. Covid-
universidade pública. A partir desta 19: Não estamos no mesmo barco. Le
aposta, temos nos esforçado para Monde Diplomatique, 14 abr. 2020.
compor uma rede que convida a Acervo Online Brasil. Disponível em:
composição de elos e zelos em um https://diplomatique.org.br/covid-19-
momento tão delicado como este em que nao-estamos-no-mesmo-barco/. Acesso
nos encontramos. em: 26 jul. 2020.
Neste artigo, buscamos demonstrar como AKOTIRENE, C. Interseccionalidade. São
este projeto nasce da urgência Paulo: Sueli Carneiro. Pólen, 2019.
pandêmica e se entrelaça com projetos BENEVIDES, R. A psicologia e o sistema
de pesquisa-intervenção, ensino e único de saúde: quais interfaces?
extensão já existentes das autoras, bem Psicologia e Sociedade, Porto Alegre, v.
como a proposição de novas ações com 17, n. 2, pp. 21-25, ago. 2005.
a organização da Rede Convida e com
a participação de profissionais de saúde BRITO, B. P. M.; SILVEIRA, L. Entre nós e
e vinculação com instituições. Dentre as redes: experiências de formação-
atividades em andamento, gostaríamos intervenção para a saúde mental e

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Barbara Brader; CURI, Paula Land; https://biblioteca.ibge.gov.br/index.ph
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Psicologia em extensão: corpos à catalogo?view=detalhes&id=2101705.
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Janeiro: Gramma, 2018, pp. 133-156. KAROL, E.; SILVA, C. A. da. Da geografia
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https://www.un.org/sites/un2.un.org/fil
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Recebido em: 31.10.2020


Aprovado em: 03.12.2020

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(DOSSIÊ: PANDÊMIOS POLITIKÉ }

De volta à economia de merda 1

David Graeber2
Tradução por Fábio Tozi e João Lucas Xavier

Resumo: O texto discute as medidas de Abstract: The article discusses the


isolamento (lockdown) durante a lockdown during the COVID-19 pandemic
pandemia de COVID-19 como um as an exemplary moment to debate the
momento exemplar para debater o contemporary direction of the economy.
sentido da economia. O isolamento The lockdown proved that most of the jobs
provou que uma grande parcela dos that people do are useless and not
trabalhos que as pessoas desenvolvem necessary and could be considered as
são inúteis e não fazem falta, sendo, logo, bullshit jobs. At the same time, caring jobs
“trabalhos de merda” (bullshit jobs). Ao are essential, although they are among
mesmo tempo, os trabalhos que envolvem those with the lowest wages. This finding is
diretamente cuidar de outras pessoas se a risk to corporate and government
mostram essenciais, embora sejam bureaucracies designed to produce
aqueles de mais baixa remuneração. Essa private debt and which support bullshit
constatação é um risco à burocracia jobs. Therefore, it is necessary to restart
corporativa e estatal criada para “the economy” quickly, even if it is a
permitir uma apropriação privada da bullshit economy. Finally, it is asked
riqueza e que sustenta a existência dos whether the definition of the economy by
“trabalhos de merda”. Por isso, é the notion of productivity would not be an
necessário retomar “a economia” outdated idea.
rapidamente, mesmo que ela seja uma
economia inútil, ou de merda (bullshit Keywords: pandemic; bullshit economy;
economy). Finalmente, questiona-se se a productivity; caring economy; bullshit
definição de economia pela noção de jobs.
produtividade não seria uma ideia já
ultrapassada.

Palavras-chave: pandemia; economia de


merda; produtividade; economia do
cuidado; trabalhos de merda.

Este é um artigo publicado em


acesso aberto (Open Access) sob
a licença Creative Commons 1 Tradução de Fábio Tozi (Professor Adjunto no Instituto de Geociências da Universidade Federal de
Attribution, que permite uso, Minas Gerais) e João Lucas Xavier (Graduando em Geografia na Universidade Federal de Minas
distribuição e reprodução em
qualquer meio, sem restrições Gerais) a partir do original em inglês (também disponível nesta revista) de Vers une “bullshit economy”,
desde que sem fins comerciais e publicado originalmente no jornal francês Libération de 27 de maio de 2020 e disponível em:
que o trabalho original seja www.liberation.fr/debats/2020/05/27/vers-une-bullshit-economy_1789579. O texto original não
corretamente citado. possuía título, resumo, palavras-chaves e referências, que foram acrescidos pelos tradutores. A tradução
para o português foi autorizada por Nika Dubrosky, companheira de David Graeber, a quem os
tradutores agradecem pela gentileza e confiança.
2 Professor de Antropologia na London School of Economics and Political Science.

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No Reino Unido e nos Estados Unidos, expressão não significaria nada para
fala-se sem parar sobre a necessidade Lutero, Shakespeare ou Voltaire. Mesmo
de “reiniciar a economia”, para “fazer após a ampla aceitação de sua
nossa economia voltar a funcionar a pleno existência, a sua referência continuou
vapor”, entre outas frases semelhantes. mudando. Quando o termo “economia
Isso soa como se a economia fosse algum política” se popularizou pela primeira vez
tipo de imensa turbina barulhenta que foi no início do século XIX, por exemplo, a
temporariamente desligada e precisa ser ideia que ele trazia era muito próxima de
colocada novamente em operação o mais “ecologia” (à qual está etimologicamente
rápido possível. Somos frequentemente ligada): ambos se referiam ao que se
encorajados a pensar a economia dessa pensava serem sistemas autorregulados
maneira, ainda que nos tenham dito até que, se mantivessem seu equilíbrio
recentemente que ela era uma máquina natural, também produziriam algo a mais
que funcionava por conta própria; (lucro, crescimento, dádivas da
certamente não tinha um botão para natureza...) para os humanos desfrutarem.
“pausar” ou “desligar” e, se tivesse,
pressioná-lo seria instantaneamente Agora, ao que parece, chegamos ao
catastrófico. Mas o fato de tal interruptor ponto em que “a economia” se refere não
existir é certamente interessante. E a um mecanismo para prover
alguém poderia indagar: o que necessidades ou mesmo desejos humanos,
exatamente queremos dizer com “a mas, em grande medida, para aquele
economia”? Afinal, se uma economia é algo a mais adicionado ao topo: aquilo
simplesmente a maneira de manter as que cresce quando o PIB aumenta. Como
pessoas vivas, alimentadas, vestidas, acabamos de aprender com o isolamento,
alojadas e até mesmo entretidas, então isso é basicamente conversa fiada. Em
para a maioria de nós a economia ainda outras palavras, chegamos ao ponto em
estava funcionando perfeitamente bem que “a economia” é, em grande parte,
durante o isolamento. Se a economia não apenas uma palavra-código para a
é o fornecimento de bens e serviços “economia de merda”; é um excesso, mas
essenciais, então o que exatamente ela é? não um excesso celebrado por sua
própria inutilidade, como os aristocratas
Obviamente, existem muitas atividades puderam fazer anteriormente, mas um
da vida social – de cafés a pistas de excesso agressivamente promovido como
boliche ou universidades – que qualquer a esfera da necessidade, da “utilidade”,
pessoa razoável gostaria de ver da “produtividade” ou do realismo
funcionando novamente. Mas isso é o que obstinado.
a maioria das pessoas chama de “vida”,
não de “a economia”. Não é sobre a vida, Ora, o que estamos sendo solicitados a
definitivamente, que os políticos estão reiniciar quando reiniciarmos “a
falando. Mas já que eles estão dizendo economia” é precisamente esse setor de
às pessoas para arriscarem suas vidas merda, no qual os gerentes supervisionam
pelo bem da economia, é crucial entender outros gerentes, o mundo dos consultores
o que querem dizer com este termo. de relações públicas, operadores de
telemarketing, gerentes de marca, chefes
Muito embora seja hoje em dia tratada estratégicos e vice-presidentes de
como um fato natural, a própria ideia de desenvolvimento criativo (e suas legiões
que algo chamado “a economia” exista é de assistentes), administradores de
um conceito relativamente recente. Essa escolas e hospitais, aqueles que recebem

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consideráveis quantias para desenhar os lucros corporativos são cada vez mais
gráficos das ostentosas revistas baseados não na produção ou mesmo no
corporativas internas de empresas nas marketing de algo que foi produzido, mas
quais o operariado é acelerado, na aliança (interligada e cada vez mais
reduzido ou forçado a cumprir indistinguível) entre as burocracias
burocracias desnecessárias e corporativas e as governamentais
intermináveis. Todas aquelas pessoas cujo projetadas para produzir dívida privada.
trabalho é, em última instância, nos Para dar um exemplo do que isso
convencer de que a existência de seus significa na prática: recentemente, uma
empregos não é uma aberração. No amiga artista começou a produzir
mundo corporativo, mesmo antes do máscaras em massa para distribui-las
isolamento, grandes porções de gratuitamente aos trabalhadores da linha
numerosos trabalhadores já estavam de frente. Rapidamente ela recebeu um
intimamente convencidas de que não aviso de que não teria permissão para
contribuíam em nada para a sociedade. distribuir máscaras, mesmo gratuitamente,
Agora que quase todos eles estão sem ter solicitado uma licença muito
trabalhando em casa, são forçados a custosa. Isso, por sua vez, exigiria um
enfrentar o fato de que a parte relevante empréstimo; portanto, a demanda real
de seu trabalho pode ser realizada em não é apenas que ela comercialize sua
talvez quinze minutos por dia, ou mesmo operação, mas também que o sistema
as tarefas que realmente precisam ser financeiro receba sua parte de quaisquer
feitas presencialmente nas empresas onde receitas futuras. Obviamente, qualquer
trabalham (caso existam) estão sistema baseado na simples extração de
funcionando melhor na ausência deles. dinheiro terá que redistribuir pelo menos
uma parte da pilhagem para conquistar
O véu foi levantado. Os apelos para a fidelidade de determinadas parcelas
“fazer a economia funcionar de novo” da população: estas são, no caso, as
são, acima de tudo, vozes de políticos classes gerenciais. Por isso, os empregos
temerosos de que, se o véu permanecer de merda.
levantado por muito tempo, será
impossível esquecer o que foi vislumbrado Como a crise de 2008 revelou, os
por baixo. mercados financeiros globais são
basicamente apenas formas de
Essa questão é de importância crucial especulação sobre oportunidades futuras
para as classes políticas porque se trata, de extração de renda. Todo o sistema é,
em última análise, de uma questão de em última análise, fundado no poderio
poder. Todos esses exércitos de lacaios, militar estadunidense; em 2003, de fato,
preenchedores de caixinhas, tapa- Immanuel Wallerstein até sugeriu que era
buracos1 são mais bem compreendidos, disso que tratava o Consenso de
penso eu, como o equivalente Washington dos anos 1990: em pânico
contemporâneo dos servos feudais. Sua com o declínio de sua dominação
existência é a consequência lógica da industrial e com o avanço inexorável da
financeirização, de um sistema no qual os

1 Em Bullshit jobs (GRAEBER, 2018, sem tradução para o português), Graeber relata seu processo de
pesquisa: enviou, por redes sociais virtuais, sua proposta sobre os “trabalhos de merda” e recebeu
centenas de relatos de pessoas que consideravam seu próprio trabalho inútil. Então o autor organizou
as respostas em uma tipologia com cinco grandes tipos de “trabalhos de merda”: i) flunkies (lacaios); ii)
goons (paus-mandados); iii) duct-tapers (tapa-buracos); box-tickers (preenchedores de caixinhas) e task-
masters (mestres de obras). Traduções dessa tipologia foram propostas por FERNANDES, 2020.
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Europa, do Leste Asiático e dos BRICS boa parte do trabalho essencial é na
[Brasil, Rússia, Índia, China e África do verdade alguma variação do trabalho de
Sul], o império americano fez uma última cuidado: cuidar ou assistir a alguém,
tentativa para frear seus concorrentes ensinar, transportar, consertar, limpar e
insistindo em “reformas de mercado” cujo manter coisas, atender às necessidades ou
efeito principal seria impor aos seus fornecer condições para o florescimento
concorrentes o mesmo sistema de outros seres vivos. As pessoas estão
ridiculamente dispendioso de burocracia começando a perceber que, desse modo,
corporativa que existia nos Estados nosso sistema de remuneração é
Unidos. É esse tipo de pessoas que homens profundamente perverso, pois quanto
como Donald Trump ou Boris Johnson mais o trabalho de uma pessoa envolve
estão insistindo para que sejam levadas cuidar ou mesmo beneficiar outras de
de volta ao trabalho: não as pessoas que alguma forma direta, menor é a chance
produzem as máscaras, mas as pessoas de que ela seja paga por isso.
que concebem as taxas de licenciamento.
Pouco se nota o quanto o culto à
Obviamente, há muitos trabalhos “produtividade”, que opera
paralisados com os quais estaríamos principalmente para justificar tais
melhores se fossem retomados; mas há, arranjos, chegou, mesmo em seus próprios
talvez, ainda mais trabalhos que nos termos, ao ponto da autossabotagem.
fariam bem se não existissem mais – Tudo deve ser produtivo: nos Estados
especialmente se quisermos evitar uma Unidos, as estatísticas do Federal Reserve
catástrofe climática total (podemos [Banco Central americano] medem até a
refletir sobre quanto carbono foi lançado “produtividade” do mercado imobiliário!
ao ar e quantas espécies foram perdidas O que demonstra, no mínimo, que o termo
para sempre apenas para alimentar a tem sido usado como um eufemismo para
vaidade dos burocratas corporativos que “lucro”. Mas essas estatísticas também
preferem organizar seus subordinados mostram que a “produtividade” dos
em cintilantes torres de escritórios ao invés setores de saúde e educação está em
de permitir que trabalhem em casa). Se queda. Quando investigamos esse ponto,
tudo isso não parece extremamente a explicação acaba sendo que esses
óbvio, se a lógica de reabrir a economia setores de cuidados são os que mais estão
faz algum sentido para nós, é porque submersos em oceanos cada vez maiores
fomos ensinados a pensar nas economias de papeladas que servem, em última
em termos desta velha categoria do análise, para traduzir resultados
século XX, a “produtividade”. É verdade qualitativos em números que podem ser
inconteste que muitas fábricas (mas não lançados em planilhas de Excel a fim de
todas) estão fechadas. Eventualmente, os provar que esses trabalhos são, de
estoques existentes de geladeiras, alguma forma, “produtivos” – e, claro,
jaquetas de couro, cartuchos de tornando mais difícil ensinar, assistir ou
impressora, produtos de limpeza e afins fornecer cuidados aos que precisam. Uma
terão que ser repostos. Mas uma coisa vez que os fazedores de contas e os
que a crise trouxe à tona é que apenas especialistas em eficiência foram os
uma pequena proporção, até mesmo do primeiros a fugir de hospitais e clínicas
trabalho mais essencial, é realmente durante a pandemia, muitos
“produtivo” nesse sentido clássico – isto é, trabalhadores da linha de frente e
envolve a criação de um objeto físico que pacientes agora têm uma experiência
não existia anteriormente. Acontece que
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direta de como as coisas funcionam de it-jobs-david-graeber-work-service.
maneira muito mais eficiente sem eles. Acesso em: 30 set. 2020.

Os apelos para “reiniciar a economia” FERNANDES, Fábio (tradução). A


são, enfim, exigências de que corramos o ascensão dos empregos de merda: uma
risco de morrer para devolver os entrevista com David Graeber, Jacobin
fazedores de contas às suas baias de Brasil, 04 set. 2020. Entrevista concedida
trabalho. Isso é loucura. Se “a economia” a Suzi Weissman. Disponível em:
deve ter algum significado real, então https://jacobin.com.br/2020/09/a-
certamente ela deve se referir aos meios ascensao-dos-empregos-de-merda/.
pelos quais os seres humanos cuidam uns Acesso em: 20 set. 2020.
dos outros, de modo a permanecerem
vivos (em todos os sentidos do termo). O
Recebido em 31.10.2020
que significaria redefini-la nesses termos?
De que tipo de indicadores ela Aceito em 10.11.2020
necessitaria? Ou seria preciso se livrar
totalmente dos indicadores? E se isso se
revelar impossível, se o seu conceito se
provar saturado de falsas suposições,
então faríamos bem ao nos lembrarmos
que, não muito tempo atrás, não existia
algo como “a economia”. Talvez essa seja
uma ideia que já tenha chegado ao seu
fim.

Referências
GRAEBER, David. The utopia of rules: on
technology, stupidity, and the secret joys
of bureaucracy. New York: Melville
House, 2015.
GRAEBER, David. Dívida: os primeiros
5000 anos. Trad. Rogério Bettoni. São
Paulo: Três Estrelas, 2016 [2011].
GRAEBER, David. Bullshit jobs: a theory.
New York: Simon & Schuster, 2018.
GRAEBER, David. Vers une “bullshit
economy”. Libération, 27 mai. 2020. Trad.
Alexandre Pateau. Disponível em:
www.liberation.fr/debats/2020/05/27
/vers-une-bullshit-economy_1789579.
Acesso em: 06 set. 2020.
WEISSMAN, Suzi. The rise of bullshit jobs:
an interview with David Graeber, Jacobin,
30 jun. 2018. Disponível em:
https://jacobinmag.com/2018/06/bullsh
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Uma nota sobre David Graeber

Nascido em 1961, em Nova York, Graeber costumava se apresentar como um


antropólogo e um anarquista. No entanto, ressaltava que não era um “antropólogo
anarquista”, porque tal disciplina não existe. Graduou-se pela Universidade Estadual
de Nova York, realizou trabalhos antropológicos em Madagascar e obteve seu
Doutorado pela Universidade de Chicago. Foi professor versado em teoria social e
teoria do valor na Universidade de Yale quando, por motivações controversas, não foi
recontratado. Posteriormente, foi convidado a ser professor de Antropologia Social na
Universidade Goldsmith de Londres, onde passou, em suas próprias palavras, a viver
em exílio e com um trabalho integral em um cargo universitário compatível com suas
habilidades e seu ativismo.

Essa colocação advém do fato de que ele não era apenas um teórico. Participou dos
movimentos antiglobalização do início dos anos 2000 e teve fundamental importância
no Occupy Wall Street, sendo frequentemente creditado como o autor do slogan não
oficial do movimento: “Nós somos os 99%” (We are the 99%). Mas ele insistia que o
slogan – como tudo mais no movimento – foi um esforço coletivo. Nos últimos anos
dedicou atenção e se envolveu com o movimento revolucionário curdo em Rojava.

Entre suas obras mais importantes estão Dívida: os primeiros 5000 anos, The utopia of
rules: on technology, stupidity, and the secret joys of bureaucracy e Bullshit jobs: a theory.
Estes dois últimos convergem para a discussão do caráter social e da moralidade das
formas hodiernas do trabalho e da economia. Nessa proposta, que se mostrou
pertinente durante a pandemia de COVID-19, os “trabalhos de merda” sustentariam
esse tipo de economia, enquanto os trabalhos de cuidado (que em última análise seriam
o trabalho real) fomentariam a vida.

Graeber faleceu em 2 de setembro de 2020 em Veneza, aos 59 anos. Acabara de


concluir trabalhos ainda não publicados sobre ajuda mútua, solidariedade e origens
das desigualdades sociais. Uma série de palestras, workshops, performances, protestos,
leituras e conversas públicas ocorreu em 11 de outubro de 2020 como parte de um
“Carnaval Memorial Intergaláctico” organizado para celebrar a vida e obra de
Graeber, acessível em https://davidgraeber.industries.

Fábio Tozi
João Lucas Xavier

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(DOSSIÊ: PANDÊMIOS POLITIKÉ }

Towards a bullshit economy 1

David Graeber2

In the UK and America, there is constant the economy, it is crucial to understand


talk on the need to “restart the economy,” what they mean by the term.
to “get our economy up and running
again” and similar phrases. This makes it Much though it’s now treated as a natural
sound as if the economy is some kind of fact, the very idea that something called
vast whirring turbine that has been “the economy” exists is a relatively recent
temporarily shut down, and needs to be concept. The expression would have
brought back into operation. We are meant nothing to Luther, Shakespeare, or
often encouraged to think of the economy Voltaire. Even after its existence was
in this way, though previously we were widely accepted, the referent kept
told that it was a machine that largely ran shifting. When the term “political
by itself; it certainly didn’t have a economy” first came into common usage
“pause” or “off” switch, or if it did, in the early nineteenth century, for
pressing it could only be instantly instance, the idea was very close to
catastrophic. The fact such a switch exists “ecology” (to which it is etymologically
is certainly interesting. But one might linked): both referred to what were
further inquire: what exactly do we even thought to be self-regulating systems
mean by “the economy?” After all, if an which, if they remained in natural
economy is simply the way that you keep balance, also produced something extra
people alive, fed, clothed, housed, even (profit, growth, nature’s bounty…) for
entertained, then for most of us, the humans to enjoy. Now, it would seem, we
economy was still running perfectly well have reached the point where “the
during lockdown. If the economy is not the economy” refers not to a mechanism for
provision of essential goods and services, the provision of human needs or even
then what precisely is it? desires, but largely, to that very extra
added on top: that which grows when
Obviously, there are many aspects of GDP increases. As we’ve just learned
social life – from cafes to bowling alleys from the lock-down, this is largely smoke
or universities – that any reasonable and mirrors. In other words, we’ve
person would like to see up and running reached the point where “the economy” is
again. But this is what most people think largely a code-word for the bullshit
of as “life”, not the “the economy”. Life is economy; it is excess, but not excess
most definitively not what politicians are celebrated for its own uselessness, as
talking about. But since they are telling aristocrats might have once have done,
Este é um artigo publicado em people to risk their lives for the sake of but excess aggressively fostered as the
acesso aberto (Open Access) sob
a licença Creative Commons
Attribution, que permite uso,
distribuição e reprodução em
qualquer meio, sem restrições
desde que sem fins comerciais e 1 Original English text of Vers une “bullshit economy”, Libération, May 27, 2020, available at
que o trabalho original seja www.liberation.fr/debats/2020/05/27/vers-une-bullshit-economy_1789579. This original was
corretamente citado. published in Anthropology for all (Nika Dubrovsky & David Graeber), May 28, 2020. available at
https://www.patreon.com/posts/37626245. Originally untitled. Towards a bullshit economy was used by
David Graeber in his personal Twitter to translate the French title used by Libération.
2 Professor of Anthropology in the London School of Economics and Political Science.

( D E S ) T R O Ç O S : R E V I S TA D E PE N S A M E N TO RA DI C A L , B E L O H O RI Z O N T E , A N O 1 , N . 1, J U L . /D E Z . 2 0 2 0 .
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realm of necessity, “utility”, “productivity” increasingly based not in producing or
or hard-headed realism. even marketing anything, but by an
alliance of (interlocked, and increasingly
If nothing else what we are being asked indistinguishable) corporate and
to restart when we restart “the economy” government bureaucracies designed to
is precisely the bullshit sector, where produce private debt. To give an
managers supervise other managers, the example of what this means in practice:
world of the PR consultants, an artist friend of mine recently took up
telemarketers, brand managers, mass producing masks, to give away for
Strategic Deans and Vice Presidents for free to front-line workers. She recently
Creative Development (and their legions received notice that she would not be
of assistants), school and hospital allowed to distribute masks, even for
administrators, those who are paid free, without applying for a very
handsome sums to design the graphics for expensive license. This would in turn
glossy in-house corporate magazines in normally require borrowing; so the real
firms whose blue-collar staff are sped up, demand is not just that she commercialize
downsized, or forced to perform endless her operation, but that the financial
unnecessary paperwork. All those people system receive a cut of any future
whose job is ultimately to convince you proceeds. Obviously, any system based
the existence of their jobs is not insane. In on simply extracting money will have to
the corporate world, even before the redistribute at least a share of the loot to
lockdowns, large proportions of workers win the loyalty of a certain portion of the
were already privately convinced they population: in this case, the professional-
contributed nothing to society. Now managerial classes. Hence the bullshit
almost all of them are working from jobs.
home, and forced to confront the fact that
the meaningful part of their job can be As the crash of 2008 revealed, global
done in perhaps 15 minutes a day, or financial markets are basically just ways
even, that things that really have to be of speculating on future opportunities for
done at their enterprise (if any) are rent extraction. The whole system is
running rather more smoothly in their ultimately founded on American military
absence. power; back in 2003, in fact, Immanuel
Wallerstein even suggested that this is
A veil has been lifted. Calls to “get the what the Washington Consensus of the
economy running again” are above all 90s was ultimately about: a last-ditch
the voices of politicians terrified that if attempt by a US empire, panicked by the
the veil remains lifted too long, it will decline of America’s industrial
become impossible to forget what was predominance and rapid advance of
glimpsed underneath. Europe, East Asian, and the BRICS, to slow
It is of importance above all to the down its competitors by insisting on
political classes because this is ultimately “market reforms” whose principle effect
a question of power. All these armies of would be to inflict the same ridiculously
flunkies, box-tickers, duck-tapers are wasteful system of corporate
best conceived, I think, as the bureaucracy that existed in America on
contemporary equivalent of feudal its competitors. These are the people that
retainers. Their existence is the logical men like Donald Trump or Boris Johnson
consequence of financialization, of a are insisting be put back to work: not the
system where corporate profits are
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people making the masks, but the people even in its own terms reached the point of
designing the licensing fees. self-sabotage. Everything must be
productive: in the US, Federal Reserve
Obviously, there are many jobs that have statistics even measure the “productivity”
been put on hold which we’d all be better of real estate (!), which if nothing else
off seeing restored; but there are even demonstrates how much the term is being
more, perhaps, we’d would be better off used as a euphemism for “profit.” But
without – especially, if we want to avert those figures also show the “productivity”
total climate catastrophe (We might do of the health and education sectors is
well to contemplate how much carbon has declining. On investigation, the reason
been pumped into the air, how many turns out to be because its just these
species lost forever, just to feed the caring sectors that are most overwhelmed
vanity of corporate bureaucrats who’d by ever-increasing oceans of paperwork,
rather arrange their minions in glittering designed, ultimately, to translate
office towers than allow them to work qualitative outcomes into numbers that
from home.) If all this does not seem can be uploaded onto excel sheets to
screamingly obvious, if the logic of prove that their work is somehow
reopening the economy makes any sense “productive” of something – and, of
to us whatsoever, it’s because we are course, thereby making it more difficult to
taught to think of economies largely in teach, nurse, or actually provide care.
terms of the old twentieth-century rubric Since the bean counters and efficiency
of “productivity”. It is undeniably true experts were the first to run away from
that many factories (not all), are closed. hospitals and clinics during the pandemic,
Eventually, existing stocks of many front-line workers, and patients,
refrigerators, leather jackets, printer have now had direct experience of how
cartridges, cleaning fluids and the like much more efficiently things operate
will have to be replenished. But one thing without them.
the crisis has brought home is what a small
proportion of even the most essential Appeals to “restart the economy,” then,
labour is actual “productive” in this classic are ultimately demands that we risk
sense – that is, that involves the creation death in order to return the bean-
of a physical object that did not exist counters to their cubicles. This is insanity.
before. Most essential work, it turns out, is If “the economy” is to have any real
actually some variation of caring labour: meaning, then surely, it should refer to the
tending, nursing, teaching, moving, fixing, means by which human beings take care
cleaning and maintaining things, of one another, so as to remain alive (in
attending to the needs or providing every sense of the term). What would it
conditions for the flourishing of other mean to redefine it in these terms? What
living beings. People are starting to kind of indicators would it require? Or
notice that in this way, our system of would it mean getting rid of indicators
compensation is deeply perverse, since entirely? And if this turns out to be
the more one’s work involves caring for or impossible, if the concept proves too
even benefiting others in any obvious sticky with false assumptions, then we
way, the less one is likely to be paid for might do well to remember that, not so
it. What is less widely noted is how much very long ago, there was no such thing as
the cult of “productivity”, which operates “the economy.” Perhaps it is an idea that
mainly to justify such arrangements, has has finally run its course.

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(DOSSIÊ: PANDÊMIOS POLITIKÉ }

Pandemia como laboratório de


poder 1

Pandemic as a laboratory of power

Marco Antônio Sousa Alves2

Resumo: Crises sanitárias constituem sociedade digitalizada, controlada e


momentos propícios para a gerida eficientemente.
experimentação de novas tecnologias de
poder. Nesses contextos, velhas práticas Palavras-chave: pandemia; Foucault;
de governo são colocadas em suspenso poder; modelo da COVID-19.
e, em caráter inicialmente emergencial e Abstract: Sanitary crises are propitious
excepcional, novas táticas de controle e moments for the experimentation of new
organização social são ensaiadas. O technologies of power. In these contexts,
estudo desenvolvido neste artigo toma old governance practices are put on hold
por base a análise empreendida por and, in an emergency and exceptional
Foucault ao longo dos anos 1970, que character, new tactics of control and
distinguiu três ensaios nesse sentido, social organization are tested. The study
quais sejam, o modelo da lepra, da peste developed in this article is based on the
e da varíola, que estão associados a analysis undertaken by Foucault
diferentes mecanismos de poder, de tipo throughout the 1970s. He distinguished
soberano-legal, disciplinar e biopolítico three answers: leprosy, plague, and
ou securitário, respectivamente. Após smallpox models, associated with
uma apresentação da contribuição different mechanisms of power, namely,
foucaultiana, o artigo procura traçar sovereign-legal, disciplinary and
uma linha de atualização, dando biopolitical or security apparatuses,
prosseguimento ao projeto de uma respectively. After a presentation of
analítica do poder. O foco é então Foucault's contribution, the article seeks to
direcionando para o novo modelo da draw an update, continuing the project of
COVID-19 que emerge no presente, an analysis of power. The focus is then
marcado pela datificação da vida, pelo directing to the new model of COVID-19
uso de big data, pela vigilância ubíqua e that emerges in the present, marked by
pelo governo algorítmico, no seio de um the datification of life, the use of big
grande sonho tecnocrático, de uma data, the ubiquitous surveillance, and the
algorithmic government, within a big

Este é um artigo publicado em 1


acesso aberto (Open Access) sob Esse texto nasceu de uma apresentação feita no dia 23 de julho de 2020 no Ciclo de Conferências
a licença Creative Commons “Filosofia como vírus”, do Grupo de Pesquisa O Estado de Exceção no Brasil Contemporâneo, da
Attribution, que permite uso, Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Segue o link de acesso ao vídeo,
distribuição e reprodução em
qualquer meio, sem restrições disponível no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=J4ymei450Rk&feature=youtu.be. Agradeço
desde que sem fins comerciais e Emanuella Ribeiro Halfeld Maciel pela realização da transcrição. A presente versão foi revista e
que o trabalho original seja ligeiramente alterada pelo autor.
corretamente citado. 2
Professor Adjunto de Teoria e Filosofia do Direito e do Estado da Faculdade de Direito da Universidade
Federal de Minas Gerais. Doutor em Filosofia pela UFMG, com estágio de pesquisa na École des Hautes
Études en Sciences Sociales (EHESS/Paris). Coordenador do Grupo SIGA (Sociedade da Informação e
Governo Algorítmico) e do GFDP (Grupo Filosofia, Direito, Poder).
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technocratic dream, of a digitalized esforço de organização da nossa vida
society, controlled and managed em comum. É uma experiência
efficiently. permanentemente conflituosa, haja vista
que sempre existem perspectivas
Keywords: pandemic; Foucault; power; diferentes, concepções conflitantes de
COVID-19 model. como viver ou de como organizar a vida
social. Seguindo a concepção
apresentada por Foucault no curso Em
Introdução defesa da sociedade, proferido no
Collège de France em 1976, a
Para tratar do tema proposto neste experiência política pode ser vista como
artigo, Pandemia como laboratório de uma experiência de guerra permanente,
poder, proponho, primeiro, desenvolver na qual existem sempre vencedores e
uma reflexão bem geral acerca da também vencidos.1 Existem aqueles que
experiência pandêmica como uma ditam suas leis e aqueles que são
espécie de momento oportuno para oprimidos, aqueles que fazem valer seus
diferentes formas de experimentação e valores e aqueles que são silenciados,
para a emergência de novas tecnologias excluídos e até mesmo eliminados.
de poder. Ela age de maneira a
aprofundar, articular, reordenar e fazer Dentro dessa experiência conflituosa que
avançar em uma determinada direção é a construção de uma vida em comum,
certas práticas de governo, certas existe uma noção que os antigos
estratégias de dominação. O percurso conheciam muito bem: o kairós (καιρός).
deste texto começa abordando, em Por essa noção, entende-se uma espécie
termos mais gerais, a questão da de momento oportuno ou uma ocasião
oportunidade para novas experiências propícia para uma determinada ação
no campo da política (1). Depois, o foco política, para se investir ou avançar em
será direcionado para algumas uma determinada proposta ou direção.
reflexões desenvolvidas por Michel O domínio desse timing era, inclusive,
Foucault na segunda metade dos anos considerado uma grande virtude política.
1970, relacionando a emergência de Uma habilidade importante daquele que
novas tecnologias de poder ao se dedica à política consiste justamente
enfrentamento de doenças, mencionando em saber agarrar o kairós, ou seja, saber
justamente as experiências de diferentes aproveitar o momento oportuno para
epidemias ao longo da história (2). Por poder avançar em suas pretensões.
fim, o artigo se concluirá com algumas
linhas de atualização, para pensar qual Nesse sentido, os antigos também
a especificidade desse momento novo aproximavam, e isso é curioso, a arte
que nós vivemos (3). política da arte médica, porque também
no combate às doenças era preciso saber
agarrar o kairós, aproveitar o momento
1. Política, conflito e oportuno para poder debelar uma
oportunidade
doença, para enfrentar adequadamente
Começando por uma reflexão um pouco uma enfermidade. Como se pode ver, os
mais geral, podemos dizer, voltando aos antigos sabiam bem da importância
antigos, que a política é uma espécie de dessa virtude, tanto na arte política,

1
FOUCAULT, Em defesa da sociedade.
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quanto na médica. Doença, assim como a mas que adquirem, no novo contexto,
vida social, é algo movente, polimorfo, uma situação mais oportuna para que
que está em constante transformação. A sejam experimentadas de uma maneira
prática médica ou política deve agir de mais radical.
modo rápido, deve saber agarrar as
oportunidades em meio às mudanças. É Dito isso, gostaria então de colocar
preciso perceber o momento mais algumas perguntas, formuladas em
oportuno e atacar a doença no momento termos bem amplos: qual é a utopia
da crise. social que encontra agora seu momento
oportuno de realização, de
Nesse sentido, é interessante lembrar da experimentação? Afinal de contas, qual
figura de Édipo, na peça Édipo rei, de sociedade nós estamos sonhando para
Sófocles.2 Toda dinâmica da peça nasce nós hoje? O que nós estamos dispostos a
justamente do enfrentamento de uma experimentar? Quais pretensões
peste, de uma doença que se abate encontram agora seu kairós, seu momento
sobre a cidade de Tebas. Vemos ali, oportuno para avançar? E quais são os
como Foucault analisa nas conferências A vencedores e os vencidos nesse novo
verdade e as formas jurídicas (1973), uma projeto social, para o qual talvez
resposta de Édipo que é, ao mesmo estejamos caminhando?
tempo, terapêutica, de enfrentamento de
uma doença, e, também, do domínio da
2. Foucault: enfrentamento de
ação política e da investigação de um doenças e tecnologias de poder
crime, envolvendo novos procedimentos
judiciais.3 Nessa segunda parte deste artigo,
gostaria de retomar algumas análises
Pandemia, em suma, parece-me realizadas por Michel Foucault já faz
funcionar como um kairós: o momento mais de quarenta anos. O exemplo das
oportuno, em um certo sentido, para que epidemias é recorrente em seu
determinadas estratégias políticas pensamento, mobilizado justamente para
avancem, para que se testem medidas ilustrar momentos nos quais certas formas
que são emergenciais, que facilmente de funcionamento do poder foram
seriam rejeitadas em outras testadas ou ensaiadas. Podemos dizer
circunstâncias, mas que, agora, que esse é um exemplo clássico ou
encontram o momento oportuno para que paradigmático de Foucault.
sejam ensaiadas e experimentadas. A
ideia, então, é de que a emergência Quando Foucault desenvolve essas
sanitária funciona como um grande análises? A partir de meados dos anos
laboratório de poder. 1970, no seio do projeto de uma
analítica do poder, que nada mais é do
A pandemia funciona como laboratório que um esforço de análise e descrição de
nesse sentido: uma ocasião para se testar como o poder funciona. Não o que é o
algo mais radical, especialmente em um poder, mas sim como ele opera, como ele
contexto em que certos entraves e funciona, quais são suas táticas, seus
dificuldades são amenizados ou instrumentos, seus objetos. Uma descrição
retirados. É possível, assim, avançar em propriamente dita das tecnologias de
tendências que, muitas vezes, já existem, poder. O exemplo, então, da epidemia,

2
SÓFOCLES, Édipo rei.
3
FOUCAULT, A verdade e as formas jurídicas.
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aparece com frequência, ilustrando Se o modelo da lepra, segundo Foucault,
justamente contextos nos quais modos de é baseado em mecanismos legais, se o
funcionamento do poder são testados ou modelo da peste é baseado em
postos em prática. Eles ganham terreno e dispositivos disciplinares e se o modelo
tendem, muitas vezes, a normalizar-se, a da varíola se assenta em dispositivos de
adquirir certa hegemonia na sequência. segurança, eu diria que o modelo da
COVID-19 é baseado em dispositivos
Esse tipo de análise aparece, informacionais. Mas, antes de avançar
diretamente, ao menos em três textos do sobre isso, precisamos entender melhor a
Foucault. Em Vigiar e punir (1975), no natureza e os modos de funcionamento
capítulo sobre panoptismo, Foucault desses dispositivos de poder.
contrapõe o “modelo da peste”, que
exemplifica o modo disciplinar de Realizarei, em primeiro lugar, uma
controle social, ao “modelo da lepra”, exposição rápida desses modelos
que é visto como uma resposta medieval, pensados por Foucault, começando pela
de tipo soberano.4 Essa questão aparece lepra. A lepra é basicamente um modelo
também no curso intitulado Os anormais, baseado na exclusão do leproso, do
proferido no Collège de France no doente, daquele que é capaz de
mesmo ano de publicação do livro Vigiar transmitir alguma doença. É um
e punir, no qual Foucault traça a mesma procedimento medieval que está
contraposição entre a peste e a lepra na assentado na ideia de uma grande
aula de 15 de janeiro de 1975.5 Três divisão, na lógica da marcação e na
anos depois, em Segurança, Território, partição binária. É um poder que se
População, Foucault também retoma essa exerce sobre um território e fixa uma
distinção, incluindo, contudo, logo na clara fronteira: os leprosos só podiam
primeira aula do curso, proferida no dia circular fora dos domínios da cidade. É
11 de janeiro de 1978, um terceiro tipo uma lógica de exclusão por fechamento:
de enfrentamento epidêmico: o “modelo os leprosos são condenados ao
da varíola”.6 Essa inclusão do modelo da banimento. Isso faz nascer uma massa de
varíola, aliás, é bastante interessante, excluídos e uma série de práticas de
pois, naquele ano de 1978, Foucault rejeição, de separação. A lógica é de
tinha organizado um seminário no separar essas duas grandes massas
Collège de France que contou com a confusas: de um lado ficam os leprosos,
participação da filósofa e médica Anne- de outro a comunidade purificada. Há,
Marie Moulin, que defenderia portanto, nesse modelo da lepra, a
posteriormente uma tese sobre a história criação de um lado de fora, de um
da varíola e da vacinação.7 espaço exterior. Um conjunto de medidas
Aparentemente, Foucault incorporou isso é então tomado, tendo em vista a
nos cursos da época. proteção da cidade, como a edificação
de fortificações e de muros, no seio de
Primeiro, gostaria de apresentar esses uma lógica de segregação.
modelos analisados por Foucault para,
na sequência, pensar sobre o modelo que Nesse modelo da lepra são mobilizados
vou chamar de “modelo da COVID-19”. mecanismos basicamente jurídicos:

4
FOUCAULT, Vigiar e punir.
5
FOUCAULT, Os anormais.
6
FOUCAULT, Segurança, território, população.
7
MOULIN, Histoire du système immunitaire.
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decretos declaravam determinados Ao invés da exclusão e do fechamento,
indivíduos como leprosos e impunham a temos um controle de circulação no
eles uma série de proibições modelo da peste, uma vigilância dos
extremamente severas, que passavam comportamentos. A lógica consiste em
pelas vestimentas, pela obrigatoriedade evitar aglomerações, confusões, em
do uso de um capuz, de uma matraca, fazer diferenciações individuais. Ao invés
para avisar as pessoas da sua de criar o espaço do fora, como
aproximação, e de uma condenação à acontecia no modelo da lepra, o
errância fora dos muros da cidade, enfrentamento da peste vai envolver um
constituindo uma verdadeira sentença de espaço mapeado, esquadrinhado,
morte. Tudo isso era acompanhado por observado permanentemente. Ao invés
uma série de ritos religiosos de da fortificação dos grandes muros, temos
despedida, de súplica, todo um conjunto um panóptico, ou seja, uma estrutura
de condenações morais em relação a vigilante, um espaço que é todo ele
esses indivíduos acometidos pela doença. recortado, policiado exaustivamente. O
Por trás de tudo isso, dessas ações de que prevalece não é a opacidade do
separação, de segregação e de grande muro medieval, mas a
banimento, Foucault detecta um sonho transparência e a individualização em
político, que é o sonho da comunidade uma estrutura arquitetônica panóptica.
pura. Essa é a utopia que movimenta, Ao invés de instrumentos jurídicos, são
digamos assim, essas ações. mobilizados, sobretudo, mecanismos
normalizadores, do tipo disciplinar, como
O segundo modelo analisado por exames, contagens, relatórios, registros
Foucault é o da peste, marcado pela minuciosos e fiscalizações incessantes.
inclusão do pestilento. Ao contrário do
leproso, que era excluído, o pestilento Ao invés de os saberes envolvidos serem
não será mais banido da cidade. O de tipo religioso, com suas condenações
doente permanecerá no interior dos morais, novos saberes disciplinares
domínios da pólis e sob o olhar atento do emergem, assim como novas personagens
vigia. É um procedimento moderno, de normalizadoras, como médicos,
tipo administrativo, policial, que emerge magistrados e intendentes. O sonho
no século XVIII. Ele não é mais baseado político disciplinar afasta-se da utopia
em uma grande divisão, sobre quem está medieval da sociedade pura. Um novo
dentro da cidade e quem está fora. O sonho emerge: a sociedade
novo modelo é baseado em uma inclusão completamente disciplinada, bem
controlada do pestilento: a lógica da treinada, adestrada, dócil e
quarentena, na qual cada indivíduo tem completamente transparente.
o seu devido lugar. Cada um será
submetido a uma vigilância e a uma Temos ainda, em Foucault, um terceiro
correção individualizada dos desvios modelo: a varíola. Ele não se confunde
cometidos. É um poder que não se exerce com a exclusão do leproso, nem a
mais tendo por objeto privilegiado o inclusão disciplinar do pestilento. Entra
território, como era o poder soberano, em cena no combate à varíola no século
mas que se exerce sobre os corpos dos XIX uma nova estratégia: a gestão da
indivíduos, conformando um mecanismo epidemia. Qual a lógica desse novo
claramente disciplinar. modelo? Trata-se de um procedimento
econômico-calculista, de controle social.
As técnicas que serão mobilizadas agora

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não são mais jurídicas, nem propriamente de sequela etc. É preciso fazer uma série
disciplinares. São, acima de tudo, de levantamentos para realizar um
técnicas biopolíticas ou securitárias de cálculo de risco. Os mecanismos
gestão populacional. mobilizados não são mais os jurídicos,
como na lepra, não são mais os
Qual a lógica do combate à varíola? É disciplinares, como na peste, mas são
uma gestão populacional por meio da agora imunitários: práticas de
análise de uma série de acontecimentos inoculação, de vacinação.
prováveis. A doença passa a ser
pensada e enfrentada como um Emerge aqui a noção de “caso”. É
fenômeno global, submetida a um cálculo interessante o uso dessa palavra: “fulano
de probabilidades que faz uso de é um caso”. A referência a um caso é
instrumentos estatísticos. Nasce, nesse justamente uma maneira de
contexto, uma nova medicina, que é mais individualizar um fenômeno coletivo.
preventiva. Emerge também um poder Algo só é um caso dentro de um
que, ao invés de agir sobre um território, fenômeno global. Emerge também a
como no combate à lepra, ou sobre os noção de “risco”, de “perigo”, de “crise”
corpos individuais, como na disciplina, é e toda uma lógica de controlar a
um poder que age sobre um conjunto da aceleração do contágio, achatar as
população. Estamos, assim, diante de curvas. Esse vocabulário aparece
uma lógica biopolítica ou de dispositivos claramente no discurso da
de segurança. epidemiologia, nas curvas exponenciais
de desenvolvimento de doenças
Qual a característica de atuação do infectocontagiosas, em como controlar
modelo da varíola? Uma média do que essas curvas etc. Estamos, assim, no
é considerado ótimo ou aceitável é domínio da gestão populacional. Os
fixada e age-se no sentido de modular novos saberes mobilizados,
as curvas e as evoluções da diferentemente daqueles disciplinares e
contaminação. A estratégia é essa: uma dos ritos religiosos da lepra, envolvem
intervenção que visa eliminar as novas formas de intervenção: estatística,
tendências que são vistas como mais demografia, epidemiologia, economia
desfavoráveis entre as diferentes curvas etc. Novos instrumentos aparecem
normais, prováveis. Temos aquilo que também, como o cálculo de risco e todo
Foucault chamou de um jogo das um esforço de normalização, de lidar
normalidades diferenciais. Age-se com as diferentes curvas de
dentro das curvas possíveis, para fazer normalidade.
com que se realize a tendência
considerada mais benéfica. Em suma, E qual o sonho político desse modelo da
vemos um jogo da normalidade. varíola? Se o combate à lepra era
movido pelo ideal da comunidade pura
Aqui são mobilizados dispositivos e o enfrentamento da peste tinha por
securitários, que funcionam por meio de aspiração uma sociedade bem treinada
levantamentos estatísticos. É preciso e disciplinada, o sonho do modelo da
saber quantos contaminados temos, varíola reside na construção de uma
quantos mortos, qual a idade das sociedade segura, eficiente, com riscos
pessoas que morreram, qual a controlados. Essa fantasia emerge a
probabilidade de uma pessoa de partir do século XIX, encontrando sua
determinada idade, sexo, um histórico de expressão na governamentalidade
doenças anteriores, morrer, qual o risco
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liberal e, posteriormente, na de lidar com os perigos inerentes à
racionalidade neoliberal. organização humana, àquilo que é
considerado ameaçador a uma
Para finalizar esse ponto, algumas determinada ordem, a uma determinada
observações importantes. A doença atua, ordenação que consideramos que é
em geral, tanto em termos reais quanto melhor para a sociedade. Entram em
imaginários, como símbolo de uma cena as fantasias políticas. O sonho
desordem, de um desarranjo, de uma medieval, por exemplo, é o do grande
confusão que faz nascer a necessidade confinamento: tirar todos os impuros. O
de colocar as coisas no lugar, seja um sonho disciplinar moderno é o do bom
organismo, como no caso da ação adestramento, de um mundo no qual
médica, seja a sociedade, no caso da todos são dóceis, úteis e produtivos. Por
ação política. Por trás dessa vontade de fim, temos o sonho neoliberal e
colocar as coisas no lugar, de desfazer securitário, que é o da gestão eficiente
aquilo que ficou confuso, vários sonhos de todos os riscos. Temos, assim,
políticos são mobilizados. Sonhos de diferentes esquemas, mas que não são
organização social, a utopia de uma incompatíveis entre si.
sociedade bem ordenada. O que
verificamos é uma espécie de medo da Nesse ponto, gostaria de fazer uma
confusão, de temor do contágio. segunda observação. Esses modelos
apresentados não se encadeiam na
Esse medo do contágio pode assumir forma de uma mera sucessão: primeiro
outras formas, não apenas de uma vem o modelo da lepra, depois o da
doença. Os perigos não são peste, depois o da varíola. Não se trata
necessariamente de ordem sanitária. A de mera sucessão no tempo e Foucault foi
lógica securitária estende-se para bem claro sobre isso em vários momentos.
combater todas as ameaças. Elas podem Esses modelos se articulam entre si. Os
assumir a forma das revoltas, dos crimes, dispositivos de segurança, por exemplo,
da vagabundagem, da indisciplina, da envolvem uma inflação legal, ou seja,
errância, da libertinagem, das mecanismos jurídicos, assim como técnicas
contracondutas de uma maneira geral. de vigilância de natureza disciplinar.
Enfim, tudo aquilo que escapa ou desvia Esses mecanismos não são eliminados,
daquilo que consideramos normal ou eles são rearticulados no interior de uma
aceitável constitui uma ameaça. Essa estratégia hegemônica de tipo
lógica do sonho político não se limita ao securitária. Um modelo não toma
enfrentamento epidêmico ou de uma simplesmente o lugar do outro, não
doença. sucede ou passa a existir em seu lugar.
É em razão de medos variados que O que muda é o sistema de correlação
prendemos ou que fazemos várias coisas entre os diferentes modos de
em nome de uma sociedade, em defesa funcionamento de poder, ou seja,
de uma determinada organização social. determinadas técnicas ganham terreno,
Fazemos o que exatamente? se rearticulam e tendem a adquirir certa
Encarceramos, excluímos, hegemonia, mas sem excluir os outros
marginalizamos, banimos, matamos, modos de funcionamento do poder. Para
marcamos pessoas, vigiamos, ilustrar isso, cito uma passagem do curso
controlamos, gerimos populações, Segurança, Território e População: “A
calculamos riscos e por aí vai. São segurança é uma maneira de
maneiras diferentes de exercer o poder, acrescentar, de colocar em
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funcionamento, para além dos justamente dessas análises apresentadas
mecanismos propriamente securitários, as anteriormente neste artigo, afirmando
velhas armaduras da lei e da que a epidemia radicaliza e desloca as
disciplina”.8 técnicas biopolíticas:
As epidemias, por seu chamamento ao estado
3. O modelo da COVID-19 de exceção e pela inflexível imposição de
medidas extremas, são também grandes
Na última parte deste artigo, gostaria de laboratórios de inovação social, a ocasião de
uma reconfiguração em grande escala das
refletir sobre o novo modelo da COVID- técnicas do corpo e das tecnologias de
19 à luz, obviamente, desse esforço que poder.10
Foucault já fez de tentar pensar os
Importante destacar que o filósofo
modos de funcionamento do poder a
espanhol está falando também de uma
partir da modernidade. Minha
ocasião, de uma oportunidade para um
pretensão, portanto, é dar continuidade
“laboratório de inovação social” e de
a esse projeto de uma analítica do
técnicas de controle social. Preciado
poder, traçando uma linha de
descreve essas mudanças em curso como
atualização. Meu olhar será, então,
uma marcha em direção a uma
direcionado para o nosso tempo.
sociedade que será descrita como
Qual a natureza do novo modelo da ciberoral, digital, imaterial e fármaco-
COVID-19? Se o modelo da lepra era pornográfica. Cito:
soberano/jurídico, o da peste disciplinar A extensão planetária da internet, a
e o da varíola securitário, podemos dizer generalização do uso de tecnologias
que aquilo que está em jogo no informáticas móveis, o uso de inteligência
artificial e de algoritmos na análise de big
enfrentamento da COVID-19 é uma data, o intercâmbio de informação em grande
espécie de datificação da vida. Como velocidade e o desenvolvimento de
podemos compreender isso? Gostaria de dispositivos globais de vigilância informática
através de satélites são índices desta nova
fazer referência a quatro textos, gestão semiótico-técnica digital. Se as
recentes, que também estão pensando o chamamos de pornográficas é, em primeiro
lugar, porque essas técnicas de biovigilância
enfrentamento da COVID-19 na mesma se introduzem dentro do corpo, atravessam a
linha proposta aqui, ou seja, partindo pele e nos penetram, e, em segundo lugar,
das análises realizadas por Foucault e porque os dispositivos de biocontrole não
funcionam mais através da repressão [...], mas
procurando pensar a experiência através da incitação ao consumo e à
contemporânea. produção constante de um prazer regulado e
quantificável.11
O primeiro texto que gostaria de fazer
Quanto mais consumimos e quanto mais
referência intitula-se Aprendiendo del
saudáveis somos, mais facilmente somos
virus, do filósofo espanhol Paul Preciado,
controlados. Preciado percebe, também,
publicado no jornal El País em 28 de
que o enfrentamento da COVID-19
março de 2020 e incluído no livro
envolve tecnologias distintas, medidas
intitulado Sopa de Wuhan.9 Considero
que são disciplinares junto com outros
esse um texto bastante interessante, que
tipos de medida. Preciado compara,
me influenciou a pensar algumas
inclusive, o enfrentamento feito na Ásia e
questões atuais. Ele parte de Foucault,
na Europa, como ilustrações de

8
FOUCAULT, Segurança, território, população, p. 12.
9
PRECIADO, Aprendiendo del virus.
10
PRECIADO, Aprendiendo del virus, pp. 175-176, tradução nossa.
11
PRECIADO, Aprendiendo del virus, p. 172, tradução nossa.
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estratégias diferentes de enfrentamento ineficiente. Mas, por outro lado, Han
da COVID-19. percebe que, em função da comoção
causada pelo vírus, corremos o risco de
Em suma, também Preciado vê nesse levar para a Europa um regime policial
período que estamos vivendo hoje, nessa e digital do tipo chinês. Apesar de louvar
crise sanitária, o momento oportuno, o o modelo oriental de enfrentamento da
kairós para a emergência de uma nova COVID-19, Han, aparentemente,
utopia de comunidade imune e uma nova reconhece que devemos ficar atentos a
forma de controle. Ele está atento para esse risco.
essas questões e termina seu texto com
um chamamento à resistência, propondo O terceiro texto, que na verdade é uma
um grande blecaute: desligar os apresentação, mais exatamente uma live
celulares e desconectar-se da internet. ou um web-débat, refere-se a uma
intervenção da filósofa do direito belga
O segundo texto que gostaria de fazer Antoinette Rouvroy no dia 12 de julho de
referência, mais rapidamente, foi 2020, tratando do tema da vigilância
redigido pelo filósofo sul-coreano digital e das liberdades fundamentais.13
radicado na Alemanha Byung Chul-Han Rouvroy aponta para o fato de que
e publicado também no jornal El País no vemos hoje uma nova maneira de
dia 21 de março de 2020.12 Nesse texto, cartografar o fenômeno epidêmico, que
Han defende que a psicopolítica digital é mais móvel e mais desterritorializada,
estaria sendo acompanhada de uma diferente das formas de
biopolítica digital, por um controle mais esquadrinhamento panóptico, como
próximo do corpo, envolvendo dados vemos no modelo da peste analisado por
biométricos como a temperatura Foucault. Rouvroy reconhece que nós
corporal e o nível de açúcar no sangue. temos ainda muita dificuldade para
Han chamará esse fenômeno de descrever esse novo modelo emergente,
“digitalização da vida”. Ele percebe que tendemos a ser muito maladroit, ou
também a existência de uma diferença seja, desastrado, estabanado, como se
nas formas de enfrentamento da não encontrássemos as palavras certas
pandemia nos países asiáticos e na ou precisas para descrever o que está
Europa, destacando que no oriente acontecendo.
percebe-se um modelo mais apoiado no
uso de big data. Nesse sentido, Han cita O último texto que gostaria de fazer
o CoronaApp, que é um aplicativo referência é de um filósofo brasileiro
utilizado na Coreia do Sul para rastrear chamado Rone Eleandro Santos,
e conhecer, com bastante detalhe, com intitulado Epidemia, controle e vigilância:
quem uma pessoa infectada se das quarentenas analógicas à quarentena
aproximou, com quem teve contato etc. digital, publicado em julho de 2020 na
Nesse texto, Han parece-me ambíguo, revista Voluntas.14 Rone tenta justamente
pois, por um lado, mostra-se mais descrever essa quarentena digital como
simpático ao modelo asiático, que é visto uma nova forma de enfrentamento
como mais eficiente do que o fechamento epidêmico, que ele compara com as
de fronteira realizado na Europa, formas que Foucault analisou
considerado uma técnica ultrapassada e previamente. O texto não analisa o

12
HAN, O coronavírus de hoje e o mundo amanhã.
13
WEB-DÉBAT..., s/p.
14
SANTOS, Epidemia, controle e vigilância.
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modelo da varíola, limitando-se à peste sociedade da informação, governada
e à lepra. Rone ressalta, nessa por algoritmos.
quarentena digital, a emergência de um
modelo baseado na hiperconexão do Nós conjugamos, portanto, diferentes
infectado, envolvendo monitoramento, estratégias políticas. Algumas dessas
rastreamento e registro de dados. estratégias são mais negativas, no
sentido de proibitivas, impositivas. Já
Para finalizar, gostaria de deixar outras são mais constitutivas, produtivas,
algumas questões claras. Meu ponto positivas. Quais são as nossas ações mais
principal é que o modelo da COVID-19, claramente negativas? Aquelas das quais
que é marcado por essa datificação da emerge um poder claramente
vida, implica em um rearranjo das formas autoritário, com uma lógica de saída da
tradicionais de poder. Todas elas democracia, de uma vigilância que é da
permanecem de alguma forma. Nós ordem banóptica, para usar um termo
temos algo do modelo de exclusão do cunhado por Didier Bigo para descrever
leproso, por exemplo, no isolamento, na a exclusão ou banimento misturada com
construção de zonas seguras, no uma estrutura panóptica.15
fechamento de fronteiras, na deportação
e no distanciamento social. Há algo do Há uma lógica também necropolítica, um
sonho da comunidade pura em jogo. poder de morte, de eliminação,
Além disso, remobilizamos também o mobilizado por um novo tipo de racismo,
modelo disciplinar da peste, através do de exclusão daqueles que são
controle da circulação, da vigilância considerados indesejáveis. Tem algo
permanente, dos registros minuciosos. Há dessa ordem, mas temos também uma
também algo da ordem de uma lógica mais positiva do funcionamento de
sociedade bem treinada, adestrada. poder, no sentido de constitutiva. Nesse
Além disso, reativamos também o modelo sentido, temos uma espécie de poder
da varíola, da gestão populacional, com mais insidioso, mais invisível, que é o
o achatamento da curva, as análises das poder dos algoritmos, a lógica de uma
tendências de desenvolvimento governamentalidade algorítmica, a
epidemiológico, os cálculos de risco, os instauração de uma vigilância mais
jogos de normalidades diferenciais. Há imperceptível e eficiente, a partir da
todo um sonho de uma sociedade bem extração de dados e do uso de big data.
gerida, com riscos controlados. Temos aqui uma produção biopolítica
misturada com a lógica do sujeito
Mas verificamos também algumas empreendedor de si mesmo, a lógica do
novidades. Essas novidades se dão, em coach, do fitness, do sujeito-empresa,
grande medida, em função das novas tudo isso também está em jogo nesse
tecnologias disponíveis de rastreamento, novo modo de funcionamento do poder.
como o CoronaApp na Coreia do Sul, e a
vigilância subcutânea (under skin
Considerações finais
surveillance), como a vigilância dos
dados biométricos. Por trás disso, um Em suma: qual o novo sonho político
novo sonho parece emergir, um sonho de contemporâneo que está aparecendo?
viés tecnocrático, a utopia de uma Qual a utopia social que está mais visível
agora, que está sendo testada, que está

15
BIGO, Security, exception, ban and surveillance.
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sendo experimentada no enfrentamento momento oportuno para avançar e
da COVID-19? Parece-me que é um tornar-se hegemônico.
sonho tecnocrático, um sonho de
modelização digital da realidade, a Precisamos, é claro, lutar contra o vírus,
utopia de colocar tudo em dados. Um esse é o desafio imediato. E precisamos
sonho de controle biométrico, sistemático, fazer isso com as melhores armas que
total. Um sonho de uma humanidade temos, em cair em obscurantismo ou
completamente transparente para si saídas milagrosas. Apesar disso, não
mesma, que acredita que se libertou dos podemos deixar que o controle da
mistérios e que agora tudo ficará epidemia implique em um controle
transparente, tudo será conhecido em permanente de nossas vidas. Não
seus mínimos detalhes e eficientemente podemos ignorar o risco de
gerido. Uma utopia social que emerge, normalizarmos a exceção. Não podemos
portanto, de uma sociedade ver o controle de nossas vidas, corpos e
digitalizada, visível, registrada, segura, comportamentos como um ideal de
confortável. Sonhamos em ser conduzidos organização social, como um remédio
para o sucesso, em termos uma direção para outras doenças e outros desvios.
eficiente de nossas condutas que promete Esse é, talvez, o grande desafio de nosso
eliminar aquilo que é indesejável, tempo. Um desafio duplo: não apenas
inoportuno, que prejudica a reprodução lutar contra o vírus, mas lutar também
do capital. contra um projeto social que vai
Há uma tensão aqui, que Foucault já encontrar agora um ambiente propício
havia percebido no curso Nascimento da para crescer e se normalizar. Trata-se de
biopolítica (1979), ao descrever a um projeto de viés autoritário e feição
racionalidade de governo liberal e neoliberal, que irá encontrar na
neoliberal.16 Trata-se da tensão inerente emergência sanitária e na manipulação
a ela, entre liberdade, entendida como de antigos e poderosos temores um
liberdade de mercado ou de terreno propício para avançar. Esse me
concorrência, e segurança, do Estado de parece um risco a também ser levado a
controle social ou Estado policial. Nós sério nesse contexto.
temos um Estado que produz uma
determinada liberdade, que é a
liberdade de empreender, de buscar
vencer na vida em um mundo
concorrencial e desigual, mas, ao lado
disso, para garantir essa mesma
“liberdade”, nós temos um aparato
policial: a vigilância disciplinar, o
controle biopolítico, a cultura do perigo,
a eliminação dos indesejáveis, a
necropolítica. Infelizmente, é esse o tipo
de sociedade que parece estar sendo
sonhada hoje: um projeto social que
encontra na pandemia o seu kairós, o

16
FOUCAULT, Nascimento da biopolítica.
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61
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2008. WEB-DEBAT (partie 3): surveillance
numerique et libertes fondamentales.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: Jean-Marc Desmet - MED-ICS, 12 jul.
nascimento da prisão. 36ª ed. Trad. 2020. 1 vídeo (23:16 min). Publicado
Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, por Jean-Marc Desmet - MED-ICS. D.
2009. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=7x1
HAN, Byung-Chul. O coronavírus de hoje IV27bv8s. Acesso em 23 jul. 2020.
e o mundo amanhã, segundo o filósofo
Byung-Chul Han. El País, 2020. Disponível
em:
https://brasil.elpais.com/ideas/2020- Recebido em: 26.08.2020
03-22/o-coronavirus-de-hoje-e-o-
Aprovado em: 23.01.2021
mundo-de-amanha-segundo-o-filosofo-

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(DOSSIÊ: PANDÊMIOS POLITIKÉ }

Cartografia da vulnerabilidade:
somos todos trans*?
Cartographie de la vulnérabilité:
sommes-nous tous trans*?

Rafael Leopoldo1

Resumo: No presente paper, produzimos Résumé: dans ce paper, nous avons


uma relação entre a subjetividade produit une relation entre la subjectivité
moderna com a pandemia do SARS-CoV- moderne avec la pandémie SARS-CoV-2,
2, e a origem de uma cartografia da et la production d’une cartographie de la
vulnerabilidade trans*. No intuito de vulnérabilité trans*. Pour caractériser la
caracterizar a subjetividade moderna, subjectivité moderne, nous pensons
pensamos, principalmente, em René principalement à René Descartes et à une
Descartes e na ideia de uma épistémologie objectivante. Actuellement,
epistemologia objetivante. Na cette épistémologie prend forme avec le
atualidade, esta epistemologia toma concept d’anthropocène. L’anthropocène
forma com o conceito de antropoceno, que fait face à un nouveau régime climatique.
corresponde a um novo regime climático Ce nouveau régime climatique est le nom
e, por sua vez, é a denominação provável de notre dernière catastrophe climatique.
de nossa mais recente catástrofe Ce changement climatique engendre des
climática. Diante de tal mudança tragédies comme la pandémie actuelle et,
climática, diretamente responsável por au vu de cela, nous considérons notre
gerar tragédias globais, como a atual grand confinement et vulnérabilité trans*
pandemia, é igualmente crível pensar o comme la possibilité d’une forme de
nosso grande confinamento e a subjectivité solidaire.
vulnerabilidade trans* como
possibilidade de uma forma de Mots-clés: anthropocène; nouveau régime
subjetividade solidária. climatique; extrême droit troll; devenir
trans* ; solidarité.
Palavras-chave: antropoceno; novo
regime climático; ultradireita troll; devir
trans*; solidariedade.

Este é um artigo publicado em


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distribuição e reprodução em
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desde que sem fins comerciais e
que o trabalho original seja
corretamente citado.

1 Possui graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2012) e
Mestrado em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2015). E-mail: ralasfer@gmail.com
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O corpo como arma. A palavra como gatilho. Dentro do antropoceno retomamos a
Tertuliana Lustosa
questão não em sua generalidade, mas
citando as empresas e os políticos que,
Introdução: somos todos trans*? neste momento, são o exército de frente
do novo regime climático. Por outro lado,
A pergunta inicial do subtítulo de nosso temos o entendimento de que a pandemia
ensaio remonta a dois antropólogos. A está muito relacionada com uma
priori, o professor do Museu Nacional do determinada relação com a natureza,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, visto que a pandemia nos parece um
Eduardo Viveiros de Castro, e uma efeito colateral, mais ou menos calculado,
entrevista de 2016, para a France do desenvolvimento do capitalismo.
Culture, chamada “Vamos ser todos Agora, no contexto do covid-19, alguns
ameríndios?”. O segundo é o francês membros das classes dirigentes evocam
Bruce Albert e seu texto de 2020, “Agora tanto o negacionismo, quanto a
somos todos ameríndios!”, escrito para o necropolítica. O negacionismo é,
Le Monde. No primeiro texto, o cenário é sumariamente, uma necropolítica, posto
o final do ciclo progressista latino que, se não há uma ação governamental
americano com o impeachment de Dilma para mitigar os efeitos da pandemia,
Rousseff e o início de uma ultradireita no tem-se, necessariamente, uma gestão
Brasil. No segundo, a conjuntura é a daqueles que vão morrer, elegendo, de
pandemia e o primeiro caso de covid-19 antemão, os mais vulneráveis.
entre os Yanomamis. Neste pequeno
ensaio, o nosso contexto teórico Ao adentrar esta cartografia da
perpassará esses dois pontos, tanto o fim vulnerabilidade é que refazemos tanto a
do ciclo progressista latino americano, pergunta de Eduardo Viveiros de Castro,
quanto o surgimento de uma ultradireita quanto a resposta de Bruce Albert. Desta
troll brasileira, que lida com o surto do maneira, a tese ponderada desde as
coronavírus através de um negacionismo e primeiras palavras deste texto é: perante
de uma necropolítica. um momento de extrema vulnerabilidade
global seríamos todos trans*? É inegável
Assim, pode-se afirmar que a nossa seara que há, de fato, todo um devir trans* do
teórica percorre primeiro o que mundo1, visto que encontramos a
chamamos de subjetividade moderna. A vulnerabilidade e o medo compartilhado,
ideia de uma subjetividade moderna visto que a existência é agora
abarcaria uma gama de elementos, mas, apequenada. Porém, devemos enfatizar
enfatizamos uma determinada que a vulnerabilidade não é um atributo
compreensão do que é a natureza e a essencial, uma ontologia ou uma identidade
terra. Neste âmbito, a subjetividade trans*. Tem-se neste momento uma
moderna pensa a terra dentro de uma verdadeira minoração da experiência
epistemologia extremamente objetivante. trans*, mas, poderíamos compreender
Esta relação com a terra acarreta no que esta experiência como uma potência.2
conhecemos como antropoceno.

1 Sara York no seu Manifesto Travesti (no prelo) afirma que não existe uma única forma de ser travesti.
Assim, seria ingênuo pensar em um grupo trans* monolítico. Não obstante, pensamos aqui o devir trans*
levando em conta, por exemplo, que a expectativa de vida de uma travesti no Brasil é de 35 anos
(Lustosa, no prelo), mas, também, que existe toda uma potencialidade da experiência das
transidentidades.
2 AS..., s/p.

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Não obstante, mesmo diante da potência uma jubilosa possibilidade de mudança
da experiência transidentitária3 não social, a tentativa de criar uma revolta e
deveríamos esquecer que todos os um solo comum solidário.
ambientes da sociedade disciplinar e todos
os ambientes da sociedade de controle são Quando pensamos esse passado, estamos
mais letais para a população trans* no diante de uma determinada forma de
contexto biopolítico do covid-19. subjetividade constituída na
Todavia, num momento de crise e de Modernidade. Um dos filósofos
ruptura global, não somente os poderes considerados “o pai da modernidade”,
serão remodulados, mas, também, as René Descartes, tem um adágio
subjetividades, que sofrerão alterações importante na sua obra Discurso do
dentro deste tecno-capitalismo. É nesta Método, em que atesta que deveríamos
conjuntura que evocamos a ideia de ser mestres e possuidores da natureza.
solidariedade, a ideia de uma revolta e Descartes é aquele pensador que teve um
uma subjetividade solidária. passaporte livre para o mundo dos livros e
para o mundo da vida. Desta maneira, o
ego conquiro (“eu conquistador”) se
1. Os humanos e a asfixia global assemelha ao ego cogito (“eu penso”) e o
Poderíamos afirmar que diante do SARS- primeiro constitui a próto-história do
CoV-2 estamos asfixiados. Nós estamos segundo. Neste sentido, podemos
asfixiados seja pelos sintomas do compreender que a subjetividade
coronavírus, seja pela sensação moderna pensa a natureza como um
claustrofóbica do confinamento. Nós objeto passivo a ser violentado, seja pelo
conquistador, seja por uma epistemologia
estamos diante da κρίσις (“crise”) que nos
extremamente objetivante. É diante desta
remete a uma determinada ruptura e suas
relação com a natureza que podemos
consequências na organização do corpo
entender o que Paul Crutzen, Prêmio
social.
Nobel de Química, chamou de
Nesta conjuntura de incertezas antropoceno, ou ainda, o que Achille
encontramos uma questão que se repete Mbembe entende como a combustão do
e, por isso, resulta fortemente sintomática. mundo4 e o que compreendemos como um
Trata-se da pergunta: “O mundo será o novo regime climático.
mesmo depois do covid-19?”. Este
questionamento tenta englobar a O termo antropoceno (ἄνθρωπος,
dimensão da crise como ruptura e nos “humano”; καινός, “novo”) é mais um
assinala duas dimensões temporais: o nome que batiza a nossa catástrofe
passado e o futuro. Na dimensão do climática, agora tendo como referência
passado, haveria um mundo antigo cujo o principal uma nova era geológica. Esse
qual, supostamente, deveríamos sentir termo consiste em considerar o humano
saudades, posto que a pandemia teria como uma força geológica capaz de
encurtado as possibilidades de vida. Na reconfigurar a própria Terra. Esta
dimensão do futuro, encontramos tanto um megaforça geológica parece ter horror à
temor de viver num mundo onde se própria Terra. Ailton Krenak em seu livro,
espraiou o vírus e seus efeitos deletérios, Ideias para adiar o fim do mundo, nos fala
quanto compreender essa ruptura como que parte da humanidade vai se

3 AS..., s/p.
4 MBEMBE. Brutalisme.
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“descolando” da terra, enquanto outra societas humana se funda nesse não-
parte “agarra a terra”.5 Nesta mesma humano. Lembrando que, para os
toada, o antropólogo Bruno Latour pensa ocidentais, “a principal missão da
essa conjuntura como uma guerra de civilização, sua raison d’être real, é nos
mundos onde de um lado teríamos os defender contra a natureza”.9 Assim
Humanos e do outro os Terranos, isto é, sendo, a incerteza que paira neste
uma guerra entre aqueles que estão momento de peste global baseia-se em
descolados da terra e aqueles que estão como se dará a reorganização do socius
agarrados à terra. Eduardo Viveiros de e como ocorrerá a produção de um novo
Castro e Déborah Danowski tentam solo diante do covid-19.
caracterizar os Humanos e os Terranos
para além da generalidade do Não obstante, nós temos uma noção
pensamento de Latour, assim, ambos razoável dos efeitos deletérios dessa
nomeiam o exército de frente dos relação do Humano com a Terra. Em
Humanos, citando empresas como verdade, conhecemos tão bem esses
Chevron, Exxon, Gazprom, Dupont, efeitos que há todo um estudo sobre a
Syngenta, Bayer, Bunge, Vale etc., sendo ecologia das doenças em constante
que tais empresas agiriam em nome dos ampliação, buscando prever o efeito
Humanos. Os Terranos, por sua vez, colateral do expansionismo Humano.
Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Trata-se, primeiramente, de afirmar que
Danowski relacionam ao povo as epidemias não apenas acontecem,
ameríndio. No entanto, poderíamos dizer
6 mas, antes de tudo, são resultado da ação
com Krenak que eles são, sobretudo, humana. Nos Estados Unido há um projeto
aqueles que estão agarrados a terra. chamado PREDICT, cuja lógica, em linhas
gerais, é tentar predizer a próxima
A pandemia (παν, "todo"; δήμος, “povo”) doença que afetará o ser humano. A
que enfrentamos agora é, especialmente, premissa é que existe uma grande gama
produzida pelos Humanos, mas, trata-se de doenças zoonóticas, isto é, doenças
de uma calamidade compartilhada com que surgem da relação do ser humano
toda a população. Trata-se de uma com os animais. Em virtude disto, quando
reorganização7 do corpo social, uma o Meio Ambiente é degradado, quando
reorganização das vulnerabilidades. Em este é modificado por ações humanas
uma estranha inversão, Ailton Krenak (deliberadas, na maior parte das vezes),
aponta que “o vírus parece ter se cansado o que temos é uma modificação da vida
da gente, parece querer se divorciar da selvagem, que, por sua vez, gerará uma
gente como a humanidade quis se nova relação entre o homem e os animais
divorciar da natureza. Ele está querendo e uma possível doença que nos atingirá.
nos desligar, tirando o nosso oxigênio Na tentativa de antever a próxima
[novamente a temática da asfixia]”.8 A epidemia/pandemia, cria-se todo um
natureza desta inversão — mais do que catálogo de viroses mais prováveis antes
uma vingança de Gaia — tem uma da alteração do Meio Ambiente. Parece
característica política e nos mostra que a que a lógica do PREDICT realiza-se por

5 KRENAK. Ideias para odiar o fim do mundo; KRENAK. O amanhã não está à venda.
6 VIVEIROS DE CASTRO; DANOSWKI. Há mundo por vir?
7 Quando apontamos uma reorganização do corpo social se trata de pensarmos se diante do momento

pandêmico serão enfatizados políticas e revoltas que se fundam na solidariedade, ou ainda, se


encontraremos um aprofundamento das desigualdades sociais.
8 KRENAK. O amanhã não está à venda, s/p.
9 SIGMUND. O futuro de uma ilusão, p. 29.

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meio da chave da racionalidade foram eleitos via democracia
instrumental de abrir a Caixa de Pandora, representativa e muitos deles evocaram
seja em Wuhan, seja na Antártida ou na demandas populares, fato que angariou,
Amazônia, seja em qualquer espaço a posteriori, os votos dessas mesmas
ainda verde e possível de ser classes.
capitalizado. A abertura dessa caixa
pelos Humanos é o que conhecemos agora Pensando na conjuntura da formação do
na forma do grande confinamento, ou CP e sua relação com a natureza,
ainda, a nossa asfixia global.10 Diante deveríamos apontar tanto um contexto
deste apontamento mais geral nos cabe externo favorável, com os altos preços
agora pensar algumas especificidades do das commodities, quanto a utilização
Sul Global e, principalmente, da deste contexto para produzir uma
conjuntura brasileira composta por uma variedade de programas sociais. A crítica
radicalização da direita e um forte que fazemos ao CP, tendo em vista o
negacionismo. Brasil, engloba dois pontos: 1) o primeiro
trata-se de enfatizar que, no período
brasileiro deste ciclo, houve um
2. A ultradireita troll brasileira e verdadeiro pacto com o diabo quando
o negacionismo Lula estabelece uma relação forte com os
A postura política que coaduna com a grupos empresariais; 2) o segundo diz
noção de Humano é o negacionismo. respeito a salientar que grande parte do
Compreendemos esse negacionismo no que funda a possibilidade de uma
plural, já que na conjuntura brasileira de ampliação dos programas sociais foi
uma ultradireita troll existe uma tríplice possível, tão somente, diante de um do
negação: histórica, climática e político- extrativismo intensificado pelo
sanitária. Todavia, para entendermos neoliberalismo implantado no Sul, em
estes elementos é viável pensarmos alguns outras palavras, de políticas de destruição
elementos da passagem do fim do ciclo da terra. Não esquecendo os elementos
progressista latino-americano (doravante positivos dos governos progressistas
CP) e o surgimento da ultradireita troll brasileiros, é importante afirmar que
brasileira. Essa ultradireita troll ganha os houve também uma expropriação da
seus maiores contornos no momento em terra para a tentativa de uma mudança
que o baixo clero da política brasileira social, integrando as pessoas por meio da
chega realmente ao poder com a eleição produção de um cidadão consumidor.
de Jair Bolsonaro. Não obstante, quando acontece o
A respeito do CP, pode-se asseverar que esgotamento do CP com a vitória de
foi historicamente caracterizado a partir Maurício Macri, na Argentina, em 2015; e
da eleição de Hugo Chávez como o impeachment de Dilma Rousseff, no
presidente da Venezuela, em 1998; Lula, Brasil, em 2016, o que temos é uma
no Brasil, em 2002; Néstor Kirchner, na letargia no campo progressista e uma
Argentina, em 2003; Tabaré Vásquez, no reconfiguração da direita, uma retração
Uruguai, em 2005; Evo Morales, na gigantesca de políticas sociais e uma
Bolívia, em 2005; Rafael Correa, no relação violenta diante dos Terranos.
Equador, em 2006; Fernando Lugo, no Desta forma, após a desidratação do CP
Paraguai, em 2008. Todos esses governos

10 MBEMBE. Direito universal à respiração, s/p.


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ocorre uma guinada11 para a ultradireita fontes históricas. De modo semelhante, o
com Michel Temer e, posteriormente, com bolsonarismo também tem as suas
Jair Bolsonaro. Essa ultradireita abarca o práticas “revisionistas” da história
presidente Jair Bolsonaro como, também, brasileira, como a minimização do
um grande espectro do bolsonarismo. período ditatorial (1964-1985). Essa
Acentuamos desse último governo o que suavização do período de ditadura
Moysés Pinto-Neto compreende como um militar é correlata a toda a sua postura
regime discursivo troll12; o que Idelber diante das mulheres, dos negros, dos
Avelar caracteriza como partido dos índios e da população LGBT+. O hórrido
trolls13; e o que chamamos genericamente bolsonarismo produz um grande campo
de caos sócio-discursivo troll14. Esse caos de invisibilidade do cruor das minorias.
sócio-discursivo explicitado,
principalmente, nas plataformas digitais, No plano das mudanças climáticas e da
pode ser relacionado com o negacionismo atual pandemia, o bolsonarismo evoca um
bolsonarista e sua tríplice negação (a profundo anti-intelectualismo e uma
recordar, histórica, climática e político- imensa postura anticientífica. O
sanitária). negacionismo bolsonarista rejeita a
objetividade e afirma a subjetividade,
Quando pensamos o negacionismo na daí estar muito próximo de transformar
esfera da ciência15, o mesmo pode ser Jair Bolsonaro em uma seita, o que o
definido como a rejeição de conceitos teólogo Carlos Caldas nomeia
científicos básicos, o desprezo ao criticamente de bolsonarolatria com os
consenso produzido pela ciência e, seus fieis bolsonarólatras17. Porém, se há
taxativamente, uma postura situada a alguns negacionistas que desejam
favor de argumentos falaciosos, de ideias vincular-se “refinadamente” ao ceticismo
controversas e das teorias conspiratórias. filosófico, o negacionismo bolsonarista se
Além dessa definição, o termo associa ao caos sócio-discursivo troll (o
negacionismo ficou conhecido quando humor brutal). Moysés Pinto-Neto18 é
houve a tentativa de negar o quem caracteriza de forma mais
Holocausto.16 Os negacionistas do consistente esse humor brutal. Assim,
Holocausto rejeitam a existência desse vamos retomá-lo para pensarmos,
fato histórico ou minimizam-no numa especialmente, a temática negacionista.
espécie de revisionismo histórico sem

11 Enfatizamos que esta guinada da ultradireita não se apresenta tão somente por um enfraquecimento
das políticas progressistas. Desta maneira, seria necessário apontar todo um contexto internacional de
uma “direitização” que perpassaria, por exemplo, pelas políticas posteriores ao atentado de 11 de
setembro de 2001, nos Estados Unidos; a crise financeira de 2008 que tem os seus ecos na América
Latina; e, ademais, uma nova composição geopolítica com Trump, Boris Johnsom Edorgan e Putin.
12 PINTO-NETO. Do Populismo Reacionário ao Exterminismo.
13 Cf.: AVELAR. Eles em nós. Idelber Avelar propõe que compreendemos o bolsonarismo como a coalisão

de seis partidos: 1) partido do Boi; 2) partido da Polimilícia; 3) partido da Lava Jato; 4) partido do
Mercado; 5) partido Teocrata; 6) e, também, o partido dos Trolls. Se pensarmos esse mosaico do
bolsonarismo por meio da elaboração do Avelar nós trabalhamos, sobretudo, um aprofundamento do
caos sócio-discursivo do partido dos trolls.
14 Cf.: LEOPOLDO. A ultradireita troll, s/p. O intuito de mudarmos a nomenclatura de “regime discursivo

troll” para “caos sócio-discursivo troll” se trata de enfatizarmos a produção caótica do discurso (o humor
brutal) e a produção caótica do social (a ética invertida) do bolsonarismo.
15 Existem dois extremos com relação a ciência que deveriam ser vistos com determinada acuidade. Um

polo é o negacionismo da ciência; outro polo é a total credibilidade na ciência.


16 FERRÁNDIZ. Los negacionistas del Holocausto.
17 CALDAS. O “cristianismo positivo” tupiniquim.
18 PINTO-NETO. Do populismo reacionário ao exterminismo.

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Para essa caracterização trazemos à não que melhora bastante a nossa
baila algumas afirmações de Jair vida”.22
Bolsonaro que envolvem três diferentes
contextos: 1) o trato com alguns políticos; Por último, quando pensamos as
2) a relação com as mudanças climáticas; declarações de Bolsonaro a respeito do
3) e, por último, suas declarações sobre a covid-19, nos deparamos com falas
atual pandemia. negacionistas, como afirmar que o
coronavírus é uma “fantasia”, ou ainda,
Na abordagem com políticos, por quando o próprio presidente minimiza a
exemplo, podemos apontar tanto sua pandemia e a gravidade da doença, ao
afirmação sobre o ex-presidente alegar que é apenas uma “gripezinha”.
Fernando Henrique Cardoso, como a ex- Se o Bolsonaro da América (Trump)
ministra Maria do Rosário. A respeito do recomendou o uso de desinfetante para
primeiro, a declaração indecorosa, os afetados pelo covid-19, o Trump dos
afirmando que para mudar o Brasil ele trópicos (Bolsonaro) sugeriu,
começaria “matando uns 30 mil, deliberadamente, a droga
começando com FHC”19, ao passo que hidroxicloroquina, que não tem um
sobre Maria do Rosário a fala claramente consenso científico para a sua utilização.
misógina “não te estupro porque você não Sobre os números alarmantes de mortos
merece”20. no Brasil, a resposta de Bolsonaro foi “E
daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?
No que concerne, agora, às mudanças Eu sou Messias, mas não faço milagre”. Na
climáticas, seria interessante lembrar o gravação em que Jair solta esse discurso
caso Bolsonaro e Greta Thunberg. Na podemos escutar o riso-bolsonarista
época em que a ativista ecológica, de ecoando ao fundo, diante da afirmação
apenas 16 anos, postou em seu Twitter do presidente. Quem resumiu da melhor
que a população indígena estava sendo forma as consequências práticas desses e
assassinada por tentar proteger o seu outros negacionismos foi o filósofo
próprio território, tão logo Bolsonaro Vladmir Safatle, quando asseverou que
afirmou ser “impressionante que a “Bolsonaro se acha capaz de esconder os
imprensa dê espaço a uma pirralha dessa corpos.”23
aí”. A resposta de Greta foi uma
estratégia tipicamente queer21 de Agora, trata-se de observamos como
reapropriação do insulto. Assim, a essas declarações constituem um regime
militante contra o aquecimento global discursivo do troll. Desta forma, uma
mudou o seu status biográfico no Twitter primeira distinção que devemos fazer é
para “pirralha”. Outra declaração de que o caos sócio-discursivo troll se difere
Bolsonaro a respeito da mudança da produção filosófica do diálogo. O
climática e formas de mitigá-la foi primeiro discurso entra na esfera pública
responder para um jornalista o que se ou, mais especificamente, nas plataformas
segue: “só você fazer cocô dia sim, dia digitais como quem entra num ring virtual,

19 JAIR..., s/p.
20 “NÃO..., s/p.
21 Cf.: LEOPOLDO. O silêncio de Filebo. Um dos primeiros elementos estratégicos da teoria queer é a

positivação do insulto. Lembramos que a palavra “queer” era inicialmente um xingamento para alguém
“estranho”, “esquisito”, etc., porém, o mesmo termo foi apropriado de forma afirmativa, assim, o queer
se torna uma potência e perde grande parte do seu significado pejorativo (Leopoldo, 2020c).
22 PARA..., s/p.
23 SAFATLE. Bolsonaro se acha capaz de esconder os corpos, s/p.

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o importante é produzir um knockdown dogmática, pressupõe uma abertura
performativo; o segundo discurso tem sincera à conversa. Ele não poderia
como foco a procura da verdade, a forçar o outro às regras do diálogo
validade da argumentação, a coerência filosófico, pois seria uma forma de
e, ademais, características subjetivas violência. Por sua vez, a crítica mais
para a abertura de uma relação comum do politicamente correto é
dialógica. denunciar o polo da literalidade do
discurso. Porém, quando a literalidade do
Neste ring virtual das plataformas discurso é denunciada é pertinente dizer
digitais, o troll tem uma forma muito que o politicamente correto não entendeu
particular de produzir a violência. De o polo da comicidade. Assim, por meio
posse dela, ele ganha uma grande desta zona cinza, o troll diz o obsceno
capilaridade, criando uma “zona de dissimulado de piada. O troll expressa a
indecidibilidade entre o sério e o jocoso. violência e o crime dissimulado de
Eles conseguem canalizar a insatisfação brincadeira. Na atual pandemia, a
popular pelo magnetismo da piada que, parolagem bolsonarista não afirma o
torcendo a ordem séria do discurso, diz o status quo numa espécie de
obsceno”.24 Trata-se de um discurso que conservadorismo, ela, na verdade,
trabalha com múltiplas camadas: a trabalha ao lado de uma necropolítica
literalidade e o cômico. gerenciando a morte e, muitas vezes,
Entre as duas camadas, tem-se a parece chegar próximo de um amor pela
produção dessa zona cinza impermeável abolição, o estado suicidário.26
ao diálogo. Em todos os exemplos que
foram citados é possível enxergá-lo e 3. Sars-cov-2 e a vulnerabilidade
compreendê-lo ou em sua literalidade, ou trans*
em sua bruta comicidade. Dizer que se
Quando caracterizamos os Humanos e os
deve matar o ex-presidente FHC pode
Terranos evocamos a produção da
ser entendido como uma piada ruim ou
subjetividade moderna e o seu reflexo na
como uma ameaça de morte, defender
atualidade. Trata-se de compreendermos
que para mitigar a mudança climática é
não só filosoficamente essa subjetividade,
necessário fazer cocô dia sim e dia não
mas também de vermos o exército de
pode ser acolhido como um chiste de mau
frente dos Humanos encarnados nas
gosto ou como uma recomendação
ecológica do troll; manifestar que o covid- grandes empresas e, além disso, nos
projetos políticos. Não se refere mais a
19 é uma fantasia ou uma gripezinha
uma divisão política entre progressistas e
pode não passar de uma broma
irresponsável ou, quiçá, como uma reacionários, uma divisão política entre
esquerda e direita, pois, neste novo
indicação político-sanitária.
regime climático, o que encontramos é
Parece-nos que duas possibilidades de uma guerra dos mundos entre os Humanos
diálogo foram rompidas diante do troll. e os Terranos,27 cujo problema central, já
O discurso do filósofo, em geral, não devidamente enfatizado, seria o
entra em rings25. O filósofo pressupõe do antropoceno.
seu interlocutor uma atitude não

24 PINTO-NETO. Do populismo reacionário ao exterminismo, p.84.


25 ONFRAY. Contra-história da filosofia; LEOPOLDO. O silêncio de Filebo.
26 PINTO-NETO. Do Populismo Reacionário ao Exterminismo.
27 VIVEIROS DE CASTRO; DANOSWKI. Há mundo por vir?; LATOUR. Où Atterrir?

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Diante dos Terranos e dos Humanos, esse a vulnerabilidade extrema desse grupo,
último é mais fácil de caracterizar, uma linha dura estatal; 2) o segundo é
enquanto os primeiros teriam uma delinear a tentativa da criação de um
variedade maior. Esta facilidade de espaço comum, uma linha de
descrever os Humanos é oriunda deles solidariedade. A respeito destes dois
serem uma espécie de Midas que elementos podemos recorrer há alguns
moderniza tudo que toca. O Humano é pontos da pesquisa da antropóloga
modernizador e expansionista. Alessandra Mawu. A autora produziu o
Observamos, como já havia sido mais recente mapa latino-americano da
explicitado, que um dos efeitos do que situação trans* em seu trabalho intitulado:
estamos chamando de subjetividade La realidad de mujeres transexuales y sus
moderna é, cada vez mais, a espoliação movimientos sociales en Sudamérica en
da terra que é correlata a espoliação de tiempos de covid-19.
determinados povos, lugares e
subjetividades. Desta forma, torna-se Mawu elabora dois eixos em seu
mais comum o que considerávamos como trabalho, uma análise dos países da
“anomalias climáticas” como, por América Latina onde há ou não a
exemplo, ondas de calor, secas, furações, presença da lei de identidade de gênero28;
incêndios em larga escala, epidemias e e uma análise de vários ativismos, grupos
possíveis pandemias. O covid-19 é, tão populares, que visam várias políticas de
só, mais um efeito dessa relação cuidado da população trans*. Contudo,
destrutiva com a terra e consigo mesmo e antes de salientar estes dois eixos,
o seu caráter pandêmico refez toda uma sublinhamos que todos nós estamos
redistribuição da vulnerabilidade desamparados diante da pandemia.
humana. Pensamos, novamente, no devir trans* do
mundo. Porém, a cartografia desta
A respeito dos Terranos, Viveiros de vulnerabilidade é muito específica.29 Ela
Castro e Danowski, os relacionam, tem a sua distribuição de forma desigual,
sobretudo, com os ameríndios. Não já que nem todos têm acesso ao sistema
obstante, gostaríamos de fazer o vínculo de seguridade social, ou ainda, à
dos Terranos com uma gama de minorias, possibilidade de estar na quarentena.
ou ainda, com aqueles que anseiam por Com relação à população trans* sabemos
produzir políticas para manter a vida. Em que na pandemia somente agrava a
nosso caso e, focalizando este breve situação.
estudo, pensaremos a população trans*,
pois o devir minoritário é um devir trans*
4. Confinamento liberto e
do mundo. Com este devir trans* do mundo
solidariedade
pensamos um duplo, tanto a
vulnerabilidade quanto a potencialidade. Todos os espaços são mais perigosos à
população trans*, seja no confinamento,
Assim sendo, seguimos dois caminhos seja a céu aberto. Todos os espaços que
teóricos: 1) o primeiro ponto é explicitar Michel Foucault chamou de “disciplinar” e

28 A lei de identidade de gênero tem as suas variações em diversos países da América Latina. Contudo,
para a sua explicação mais concisa tomemos como exemplo a lei João W. Nery, no Brasil, aprovada em
2018. No seu primeiro artigo se trata de afirmar o reconhecimento da identidade de gênero. Por sua
vez, a identidade de gênero é definida como uma vivência interna e individual tal como cada pessoa
sente, vivência essa independente do sexo atribuído no momento do nascimento.
29 MAWU. La realidade de mujeres transexuales y sus movimientos sociales en Sudamérica en tiempos de

covid-19.
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que Gilles Deleuze chamou de “controle” de, nesse ambiente, produzir um espaço
são ultra letais diante da população de reelaboração dos afetos e uma
trans*. Neste sentido, lembramos dos subjetivação solidária.
arquipélagos carcerários, do espaço
disciplinar da casa, da escola, da
***
empresa, da prisão e dos hospitais.
Diante do surto de covid-19, o que temos O oximoro confinamento liberto nos
é uma maximização das vulnerabilidades convida a refletir acerca do isolamento no
em qualquer espaço. contexto da sociedade de controle. Por
este ângulo, quando voltamos à
Quando Mawu escreve uma espécie de elaboração de Deleuze sobre a sociedade
cartografia das vulnerabilidades latino- de controle, o que destacamos é que essa
americanas frente ao horror do covid-19, sociedade se dá numa “crise
trata-se de questionar o papel do Estado generalizada de todos os meios de
e dos grupos de apoio, políticas confinamento, prisão, hospital, fábrica,
institucionais e políticas não institucionais. escola, família”.30 O que surge com essa
Relativo ao primeiro eixo, são ressaltados crise do confinamento da sociedade
diversos países da América Latina que disciplinar são as “formas ultrarrápidas
hoje possuem a lei de identidade de de controle ao ar livre”.31 Desta forma,
gênero como, por exemplo, Uruguai ao mesmo tempo em que estamos em uma
(2009), Argentina (2012), Colômbia espécie de confinamento disciplinar,
(2015), Bolívia (2016), Equador (2016) e enclausurados no espaço familiar,
Brasil (2018); já concernente ao segundo estamos no controle ao ar livre, pois temos
eixo, é destacada uma multiplicidade de a possibilidade de, mesmo no espaço
grupos e ativismos que tentam dar conta fechado, nos conectar com outras pessoas
do que não é assegurado pelo Estado. e produzir uma solidariedade numérica.
É neste ínterim que ponderamos os dois Isto posto, teríamos que evocar, no
eixos como uma linha dura do estado e mínimo, duas possibilidades interessantes
uma linha da solidariedade. Na primeira diante desse controle ao ar livre: 1) a
linha, o Estado neoliberal, onde é primeira é romper o processo de controle,
bastante cabível recordar quando o parar com a comunicação no intuito de
próprio estado produz com violência, produzir algo diferente; 2) a segunda
codifica e essencializa as identidades que gira em torno de, mesmo diante das
gerencia via necropolítica ou por uma máquinas da sociedade de controle, a
biovigilância. No momento em que cibernética e os computadores, tentar
fizemos uma análise da conjuntura produzir outra forma de composição
brasileira, o que caracterizamos foi tanto subjetiva. Uma forma de composição que
uma ultradireita troll, com o seu caos sócio- pode abarcar os dois campos já
discursivo, quanto um estado salientados que devem ter uma
necropolítico, a beira de sua paixão pela interpolação, o campo “real” e o campo
abolição. A segunda linha remonta dois “virtual”.
dados importantes: 1) o primeiro é a
caracterização do que entendemos como É sopesando sobre a segunda
confinamento liberto na sociedade de possibilidade que retomamos a questão
controle; 2) o segundo é a possibilidade da solidariedade. O que se reconfigura

30 DELEUZE. Conversações, p. 224.


31 DELEUZE. Conversações, p. 225.
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nesta noção, no contexto da pandemia, é https://www.youtube.com/watch?v=aJvY
a proporção que ela poderia tomar. mXR7v8A&t=2990s. Acesso em: 22 nov.
Slavoj Zizek aponta a possibilidade de 2020.
uma solidariedade global e que não se AVELAR, Idelber. Eles em nós. São Paulo:
fundaria no idealismo da esquerda, mas, Editora Record, (no prelo).
sobretudo, na necessidade da própria
sobrevivência das pessoas e da CALDAS, Carlos. O “cristianismo positivo”
economia. Neste sentido, poderíamos tupiniquim. Unisinos, 2020. Disponível em:
lembrar da retomada da pauta a https://bit.ly/35jqDXZ. Acesso: 4 mai.
respeito de uma Renda Universal Básica. 2020.
No nível das relações intersubjetivas, a DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad.
solidariedade também poderia ser Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34,
compreendida como uma necessidade, 2013.
visto que a tentativa da quarentena, do
isolamento social e o uso de máscaras se FERRÁNDIZ, Teresa María Mayor. Los
negacionistas del Holocausto. Revista de
configuram como um cuidado não somente
Clases historia, n. 4, p. 5, 2012.
consigo mesmo, mas, com os outros.
FOUCAULT, Michel. Surveiller et punir.
Contudo, o que evocamos como uma París: Gallimard, 1975.
experiência de solidariedade estaria
fundada em outro elemento não JAIR Bolsonaro defendendo guerra civil,
apontado pelo filósofo esloveno. Trata-se fim do voto e fechamento de congresso
de pensar a composição da subjetividade [COMPLETO]. Thays Gianni, 10 abr. 2016.
solidária dentro do devir trans* do mundo 1 vídeo (35:38 min). Publicado por Thays
e de uma subversão queer. O devir trans* Gianni. Disponível em:
do mundo diz de uma situação https://www.youtube.com/watch?v=qIDy
insuportável e no momento pandêmico, de w9QKIvw. Acesso em: 29 nov. 2020.
alguma forma, generalizável; a subversão KRENAK, Ailton. Ideias para odiar o fim do
queer é tanto uma recusa de uma situação, mundo. São Paulo: Companhia das Letras,
quanto a afirmação da própria diferença. 2019.
A afirmação nos retira das nossas solidões
KRENAK, Ailton. O amanhã não está à
e protesta um valor comum, nos retira dos
venda. São Paulo: Companhia das Letras,
nossos dramas individuais e clama um solo
2020. E-book.
compartilhado. A afirmação como uma
revolta produz a própria solidariedade na LATOUR, Bruno. Où Atterrir? Paris:
peste coletiva. Éditions La Découverte, 2017.
LEOPOLDO, Rafael. O silêncio de filebo.
Sapere Aude, v. 10, n. 19. pp. 93-103,
Referências 2019. Disponível em:
ACOSTA, Alberto; BRAND, Ulrich. Pós- https://bit.ly/3dcoi3J. Acesso: 4 mai.
extrativismo e decrescimento. São Paulo: 2020.
Elefante, 2018. LEOPOLDO, Rafael. A ultradireita troll.
AS transidentidades e o sujeito da política Justificando, 2020a. Disponível em:
com o psicanalista Eduardo Leal Cunha. https://bit.ly/2KMBn7D. Acesso: 30 abr.
Lacaneando, 29 set. 2020. 1 vídeo (58:42 2020.
min). Publicado por Lacaneando.
Disponível em:
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LEOPOLDO, Rafael. Cartografia do PINTO-NETO, Moysés. Do populismo
Pensamento Queer. Bahia: Devires, reacionário ao exterminismo: yuppies,
2020b. neggers e trolls. Crise e Crítica, 2018.
Disponível em: https://bit.ly/2y351mG.
LUSTOSA, Tertuliana. Manifesto traveco-
Acesso: 30 abr. 2020.
terrorista. In: LEOPOLDO, Rafael; YORK,
Sara. (orgs). Manifestos do cu do mundo, PRECIADO, Paul. Testo junkie: sexo,
(no prelo). drogas e biopolítica na era
farmacopornográfica. Trad. Maria Paula
MAWU, Alessandra. La realidade de
Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1 edições,
mujeres transexuales y sus movimentos
2018.
sociales en Sudamérica en tiempos de
covid-19, (no prelo). SAFATLE, Vladimir. Bolsonaro se acha
capaz de esconder os corpos. Apublica,
MBEMBE, Achille. Brutalisme. Paris: La
2020. Disponível em:
Découverte, 2020a.
https://bit.ly/2SihuJM. Acesso: 30 abr.
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SIGMUND, Freud. O futuro de uma ilusão.
MBEMBE, Achille. Direito universal à Trad. José Abreu. Rio de Janeiro: Imago,
respiração. N-1 Edições. 2020b. 1997.
Disponível em: https://n-
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo;
1edicoes.org/020. Acesso: 30 nov. 2020.
DANOSWKI, Débora. Há mundo por vir?
MOURA, Maurício; CORBELLINI, Juliano. A Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2014.
eleição disruptiva: por que Bolsonaro
YORK, Sara. Manifesto Travesti. In:
venceu. São Paulo: Editora Record, 2019.
LEOPOLDO, Rafael; YORK, Sara. (orgs).
"NÃO estupro porque você não merece", Manifestos do cu do mundo, (no prelo).
diz Bolsonaro a Maria do Rosário. Istoé, 9
ZIZEK, Slavoj. Pandemic! Covid-19 shakes
dez. 2014. 1 vídeo (2:04 min). Publicado
the world. New York: Or books, 2020.
por revistaISTOE. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=LD8-
b4wvIjc. Acesso em: 22 nov. 2020. Recebido em: 29.08.2020
ONFRAY, Michel. Contra-história da Aprovado em: 27.11.2020
filosofia: as sabedorias antigas. Trad.
Monica Stahel. São Paulo: WMF, 2008.
PARA cuidar do meio ambiente, Bolsonaro
sugere fazer cocô dia sim, dia não. Poder
360, 15 ago. 2019. 1 vídeo (0:42 min).
Publicado por Poder360. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=WJ
VYVxCN7pM. Acesso em: 29 nov. 2020.

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(DOSSIÊ: PANDÊMIOS POLITIKÉ }

Entrevista

Princípio responsabilidade
Entrevista com Sergio Givone por Patricia Peterle

Sergio Givone (Vercelli, 1944) se formou “Nada será como antes!” Quantas vezes,
pela Università di Torino com uma depois de eventos catastróficos
monografia dedicada a Pascal e é escutamos repetir essa frase? Queria ser
atualmente professor titular da Università uma certeza, um augúrio, mas não era
di Firenze. Metafisica della peste, senão um exorcismo. As coisas, superada
publicado em 2012, é o título de um de a crise mais aguda, sempre retomaram
seus livros, que traz uma reflexão mais seu caminho. Como antes, pior do que
do que contemporânea. Como ele afirma antes. E como se nada tivesse ocorrido.
nas páginas iniciais desse volume, uma Entretanto... Entretanto, a atual
doença pode matar, mas também pode pandemia introduziu elementos de
deixar em seu rastro consequências novidade que parecem justificar alguma
piores como acontece quando deixa suas esperança, mesmo que seja uma
vítimas “apenas” vivas, ou seja, privadas esperança induzida pelo desespero. Em
de qualquer aparência de humanidade poucos meses, assistimos a uma autêntica
civil. Nessa entrevista, realizada entre mudança de paradigma. Antes da
maio e junho de 2020, Sergio Givone propagação global do vírus, dominava
trata do sentir-se vulnerável, da uma concepção das relações com o outro
globalização, da antropização e do que baseada no conflito e na recusa. Na
ele chama de “princípio Itália, por exemplo, mais de um partido
responsabilidade”, que seria uma político teve sucesso levantando a
espécie de terceira via para além do bandeira da italianidade e do “nós
estado de exceção e da imunidade de contra eles”. O que de resto já havia
rebanho. Essa entrevista é um encontrado apoiadores nos Estados
desdobramento do vídeo nº 27 do Unidos, nos mais altos escalões do
projeto Krisis: Tempos de COVID-19,1 governo. Depois o vírus, e com o vírus a
desenvolvido entre março e agosto de ideia de que nos salvaremos ou nos
2020. afundaremos todos juntos. Enfim, como se
diz: estamos todos no mesmo barco.
Assim, o paradigma solidário,
Já foi dito que a pandemia de Covid-19
poderia marcar uma virada, uma ridicularizado como forma de “bondade”
mudança radical em relação ao outro, à para as almas boas, substitui o
Este é um artigo publicado em
acesso aberto (Open Access) sob natureza, a um ritmo talvez alucinante. paradigma de sinal contrário. Mas
a licença Creative Commons
Attribution, que permite uso,
A partir do isolamento e, agora, com também se deve considerar um fato cuja
distribuição e reprodução em essa fase de reabertura, como vê esse importância só começa a ser avaliada
qualquer meio, sem restrições horizonte? Nada será como antes, mas
desde que sem fins comerciais e agora. Apesar de não termos ainda
que o trabalho original seja pouco mudará?
corretamente citado. provas definitivas, em muitos lugares já

1 Cf. a resenha do projeto publicada neste número da (Des)troços: revista de pensamento radical.
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surgiu a suspeita de que a propagação fato, a contenção da propagação do
do vírus tenha a ver menos com a vírus por meio da imposição de normas
globalização do que com a coercitivas por parte do poder central
antropização, ou seja, com aqueles tem sucesso somente se os indivíduos
fenômenos de apropriação violenta e adotam conscientemente os novos
desordenada do planeta por parte do comportamentos ditados pela situação e
homem, que podem até ameaçar a vida respeitam as normas não pelo temor de
na terra. Diante desse estado, como não sanções, mas pela confiança no pacto
tomar consciência de que já estamos num social, que faz com que cada um seja
ponto de não retorno? E como não pensar responsável por todos os outros. De outro
na necessidade de adotar medidas modo, o poder central, advogando para
extremas que ainda não foram tentadas, si os direitos em nome da saúde pública,
para evitar o nosso fim? revela seu semblante de Leviatã e suscita
nos cidadãos, desprovidos de tudo, com
exceção da vida, uma inevitável reação
Os últimos meses expuseram um lado
que é o da precariedade e da transgressiva e perturbadora. Daí a
fragilidade humana, mas também o do falência do estado de exceção. Um custo
cinismo, ou seja, o homem não aprende muito alto: de fato, a entrega à fúria do
com a história? Estamos naquele limiar vírus comporta um aumento da taxa de
extremo em que tudo é possível, para mortalidade, sobretudo nas faixas mais
lembrar seu livro Metafisica della peste
frágeis, até níveis insustentáveis. Também
(Einaudi, 2012), ainda inédito no Brasil?
não vale a oposição de que uma coisa é
Entre o sentido da nossa vulnerabilidade considerar essa insustentabilidade no
e o cinismo que normalmente o plano ético (em que os escrúpulos morais,
acompanha e com o qual se reage a este, como sempre acontece em caso de
há uma espécie de oscilação, um desastres e abalos inauditos, valem o que
movimento pendular que leva de um ao valem) e outra é considerá-la no plano
outro. Isso pode ser visto quando levamos político e social (em que triunfa o que
em consideração os dois modelos de Sloterdijk chamou de razão cínica). Na
tutela do vírus que foram evocados assim realidade, ninguém pode dizer quais
que o vírus se manifestou, mas que desordens políticas podem ser suscitadas
pertencem à história milenar do antigo por uma sensibilidade moral
flagelo comumente chamado peste. profundamente ferida, como é o caso de
Dividem o campo, mas são especulares, quem é obrigado a abandonar ao
ditadura e anarquia. De um lado a próprio destino os entes queridos. No
ditadura do estado de exceção, com a entanto, é certo que a única imunidade
supressão da liberdade de movimento, a que se possa esperar é a dada por uma
reclusão na própria casa, a obrigação vacina e, portanto, por sua vez, filha de
taxativa do distanciamento social, e um pacto social, e não do acaso ou da
assim por diante. Do outro, a anarquia indiferença. Qual lição tirar disso tudo?
da imunidade de rebanho, na convicção Uma única, sempre a mesma: não nos
de que deixar livre o vírus sem opor-lhe salvamos em detrimento dos outros,
barreiras induza a reações imunitárias na porque, ao contrário, nos salvamos
população e leve à extinção o próprio tomando conta dos outros. Quiçá,
vírus. Qual preferir? Na realidade, sacrificando a própria vida, como há
ambos os modelos, cada um a seu modo, quem o fez. Não podemos falar da peste
funcionam, mas só até certo ponto e com do século XX sem lembrar disso.
um custo muito alto. Até certo ponto: de
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extinguir. E há a culpa que, ao contrário,
Responsabilidade e solidariedade são é algo como um horizonte de
dois termos necessários hoje, sobre os
culpabilidade, um horizonte no qual eu
quais devemos refletir. O que muda?
Quais responsabilidades de agora em me reconheço e reconheço a todos os
diante tem cada indivíduo? outros o direito de me cobrar o motivo
das minhas ações. Justamente a peste nos
Em uma época como a nossa, quando no
leva a repensar o conceito de culpa em
primeiro plano de cena não estão
relação a responsabilidade e
certamente os indivíduos, mas sim os
solidariedade. A peste não pode ser
sistemas complexos, os grandes sistemas
imputada a ninguém como se fosse uma
anônimos, as forças mais ou menos
culpa. Contudo, a qualquer um pode ser
obscuras que ameaçam o mundo como
perguntado o que fez ou deixou de fazer
por uma transcendência sem Deus (a
para impedir que a peste fizesse dele um
COVID-19, a pandemia, enfim a peste,
culpado e ditasse a última palavra no
não são mais do que exemplos dessas
mundo.
realidades inapreensíveis e fugidias),
falar de responsabilidade e de
solidariedade pode parecer fora de Que relações podemos estabelecer
lugar ou fora do tempo. Contudo, vimos entre essa experiência extrema e
como justamente a pandemia nos obriga planetária com a ética?
a repensar conceitos muito A epidemia, desenvolvendo-se segundo
apressadamente colocados de lado. Não sua natureza, se torna pandemia, e eis
é a imposição do estado de exceção ou que não há mais lei, porque a única lei é
a pesquisa da imunização que descartam a da sobrevivência. Come se diz: a
ideias como responsabilidade, piedade já se foi. Somente palavras de
solidariedade, bem comum etc., porque ordem: salve-se quem puder. A peste
são exatamente essas ideias que dão sempre foi descrita assim: de Tucídides a
novamente significado e valor a práticas Camus, de Boccaccio a McCarthy.
de outro modo obsoletas, para não dizer Justamente esses autores, mesmo em
contraproducentes e falimentares. Mas contextos muito diferentes e de pontos de
também é preciso ter clareza sobre o que vista dificilmente comparáveis, mas
entendemos por responsabilidade e convergentes, observam como essa
solidariedade. Comecemos, então, espécie de destino, que é o retorno ao
lembrando que responsabilidade e estado de natureza, faz ressurgir aquele
solidariedade estão necessariamente imperativo do humano que recita: ame o
relacionadas com algo que poderia teu próximo como a ti mesmo, que pode
parecer, não menos do que elas, fora de ser tranquilamente traduzido no ditado:
lugar, como por exemplo a “culpa”. não fazer aos outros o que você não
Como é possível ser responsável senão gostaria que fizessem com você. Aqui, o
por algo que pode ser atribuído como princípio-responsabilidade e o princípio-
culpa, como delito, como crime? Porém, solidariedade se ligam para sempre ao
há culpa e culpa. Há a culpa que nada princípio-reciprocidade. Isso nos é dito
mais é do que uma dívida a ser em todos os modos por aquela que
reparada, ou seja, uma obrigação poderíamos definir como a lógica da
contraída com a sociedade em peste. A palavra-chave dessa lógica é:
consequência de um delito ou um crime contágio. Sabemos que a peste se
cometido contra a própria sociedade e transmite por contágio de indivíduo para
que somente a punição prevista pode indivíduo. Mas o que merece atenção é

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que o contagiado é ao mesmo tempo o dignidade que pode ficar escondida por
contagiante, e contagiante o é enquanto toda a vida, dado que a vida pode ser
contagiado. Paciente e agente, então, vil, insignificante e servil, mas que, sem
coincidem na mesma pessoa. Aquele que falta, se apresenta no rosto de quem
é exposto ao mal sofre, inerme, a ação morre, seja ele quem for. Não ter
potencialmente mortífera, é portador do conseguido dar aos entes queridos este
mal, é parte ativa em sua propagação. ato devido a todos, sem distinção social
Isso nos permite descobrir na peste uma ou moral, é a ferida mais profunda
espécie de código, uma cifra moral. causada pela pandemia ao sentir comum.
Enquanto fato da natureza, a peste nada Na solidão repleta de participação em
tem a ver com a ética. Mas enquanto tanta dilaceração não poucos viram um
violência exercitada sobre o homem (e perfeito ícone da condição humana no
pelo homem, mesmo se o homem não é tempo da peste. Justamente.
consciente de ser um “untor” e, de toda
forma, não o é intencionalmente!) pela
A crise da COVID-19 também teve e
peste e, a saber, pela natureza, vem ao terá ainda, na sua opinião,
homem um apelo, o mais peremptório consequências sobre a nossa relação
que se possa pensar, à responsabilidade. com a morte, com este momento da
Em que por responsabilidade se deve perda do outro? Que tipo de
entender não a obrigação de pagar o responsabilidade temos diante
daqueles que não estão mais aqui? Em
débito de uma culpa, mas sim o
relação a isso, o Presidente da
compromisso de responder a todos sobre República do Brasil, Jair Messias
tudo. Também daquilo que não era nossa Bolsonaro, quando se começou a ver o
intenção fazer ou que fizemos aumento das mortes, declarou: “E daí?
inconscientemente. Tomando como ponto O que quer que eu faça? Sou Messias,
de partida a experiência que a peste nos mas não faço milagres!”
obriga a fazer, houve quem, como A impotência diante de um fenômeno
Vattimo e Žižek, sugeriu que se voltasse devastador que no momento não pode
à reflexão sobre a ideia de comunismo ser combatido e vencido, nem mantido
como perspectiva em nada superada. sob controle, mas somente contido, induz
ao fatalismo. E isso é compreensível, mas
não justificável. Formas de controle da
Duas cenas particularmente chamaram
a atenção de todos. A primeira é a dos doença que sejam realmente resolutivas
caminhões do exército em Bergamo, ainda não foram encontradas. Não
que levavam os corpos. Um silêncio dispomos de remédios capazes de curar
duro, poder-se-ia dizer um grito- a infecção, nem de instrumentos que
silencioso. A segunda é a da Piazza San possam neutralizar a intensidade em sua
Pietro vazia, que talvez tenha deixado
fase mais virulenta, mas somente de
uma sensação de amor, de
solidariedade. São dois extremos suportes ao doente que luta para
complementares desse período? sobreviver (e estes também em medida
inferior ao necessário, sobretudo nos
Nada como a sepultura dos mortos, a
países mais pobres ou com maior
extrema saudação e a despedida falam
desigualdade de riqueza). O que
de nós e nos dizem não quem seremos,
objetar a quem encontra no fatalismo a
mas quem somos: somos aqueles que
sua última praia? No entanto, há modos
sepultam os seus mortos. Sepultando seu
e modos de entender o que é comumente
semelhante, o homem lhe reconhece o que
chamado de nosso destino. Que se trate
é essencial: a dignidade. Aquela
de um destino comum relativo à morte, é
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um fato. Todos vamos morrer. Se existe Mas seria muito mais sábio acolhê-lo
uma coisa certa, uma coisa verdadeira, é como algo que nos pertence intimamente
essa: a única coisa verdadeira, e foi dita e que é, aliás, o próprio objeto da nossa
por um poeta. Mas também a coisa mais vontade, a partir do momento em que é
equivocada que existe. Quando tomo exatamente o que nós queremos ou que
consciência de que todos vamos morrer e faríamos bem em querer? Seria mais
tiro a conclusão de que então tanto faz sábio, não somente porque, se o
se dispor a fazer algo ou a deixar que aceitarmos e o acolhermos
aconteça o que deve acontecer e assim espontaneamente, ao invés de padecê-
por diante, talvez sem me dar conta estou lo, nos parecerá mais leve de ser
usando expressões que não manifestam suportado. Mas mais sábio também
a minha passividade e a minha abulia, porque, nesse caso, cessará de nos
mas exatamente o contrário, porque parecer imperscrutável e até
dizem da minha tentativa de me escarnecedor, se tornando uma fonte
apropriar daquilo que me ameaça e de inexaurível de conhecimento.
me direcionar a algo que não quero Conhecimento de nós mesmos.
sofrer, mas experimentar e fazer meu.
Como sempre, a linguagem é um
desmascarador formidável dos
significados mais escondidos, uma antena
sensibilíssima que capta as vozes que
ressoam. Neste caso, nos faz entender
que, se a peste é o nosso destino, uma
coisa é colocar a ênfase em “nosso”, e
tirar a conclusão que ela coloca todos
juntos, e nos deixa todos responsáveis uns
pelos outros, e outra coisa é colocá-la
num “destino”, que por ser tal nos
autoriza a lavar as mãos nos
abandonando e, sobretudo,
abandonando os outros. Uma mera
questão de intensidade, irão dizer. Mas
que em geral é a questão mais
importante. E de resto, os antigos estoicos
já não haviam notado que o destino pode
ser sim vivido como um peso grande que
nos é imposto de forma imperscrutável.

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79
(DOSSIÊ: PANDÊMIOS POLITIKÉ }

Resenha

Projeto Krisis: tempos de COVID-19


Patricia Peterle

É depois do susto, do caos e ainda imersos cuidados, mas também chama a atenção a
nas diferentes crises provocadas que o forma, muitas vezes brutal, como o outro foi
coronavírus parece ameaçar um segundo tratado, como se lidou com a memória e os
tsunami – palavras recentes do presidente sentimentos. Como reagir, então, diante da
da Bélgica. Depois de um verão no lista quase infinita de medos que impregnou
hemisfério norte em que o “princípio o cotidiano de vidas de norte a sul e de leste
reponsabilidade”, discutido pelo filósofo a oeste do planeta? O que essa sensação de
Sergio Givone na entrevista publicada nesta ameaça contínua foi capaz de gerar?
revista, parece ter ficado um pouco de lado, Perguntas para as quais não é possível ter
diante da ânsia angustiada por uma mínima uma resposta única, mas sabe-se – inclusive
retomada dos hábitos e de certa rotina, por experiências passadas – o quanto o
Espanha, França, Itália, Reino Unido, humano é capaz de se tornar não-humano. É
Portugal e Israel já tomaram ou estão ingênuo pensar que o mundo possa se
tomando providências para frear uma endireitar, diz, por exemplo, Fabio Franzin
segunda onda, que já começa a abalar em Mundo torto.1 Contudo, como já dizia
algumas estruturas de saúde por lá. Por aqui, Primo Levi em relação à Shoah, é preciso
ainda estamos na contenção e vivendo as falar sobre essas experiências-limite. Como
indiscutíveis e nefastas consequências. afirma o filósofo Massimo Cacciari na
entrevista para Krisis, alguns processos que
Os vídeos do projeto Krisis: Tempos de já estavam em curso foram ainda mais
COVID-19 reúnem uma série de relatos, acelerados. Todas essas questões continuam
entrevistas e textos literários que tratam do em pauta, como também aquela do direito e
primeiro momento da pandemia, mas que liberdade de ir e vir, ou seja, até onde um
ainda são muito atuais. A globalização estado democrático pode ir. Quais são seus
permitiu, por um lado, que limites?
acompanhássemos em tempo real a
evolução da situação; por outro, facilitou a Os 50 vídeos com a participação de poetas,
veloz propagação de um vírus que não escritores, poetas, pensadores, filósofos e
pediu licença, que parece não ter feito uma historiadores tratam do impacto que a
grande seleção e que continua à procura de pandemia gerou, do silêncio que comportou,
um hospedeiro que possa abrigá-lo do embate com a responsabilidade pela
enquanto ele segue enfraquecendo seu vida do outro, da relação que é, enfim,
organismo. estabelecida com os seres (animados ou não)
que habitam o planeta. Em dezembro de
No quadro de um colapso em diferentes 2020, com o apoio do Istituto Italiano di
áreas, da economia à saúde e à esfera Cultura, foi publicado pela Rafael Copetti
social, essa crise devastadora também nos Editor o volume ilustrado que reúne todos
colocou diante de uma urgência: repensar a esses textos e outros inéditos.
relação com o outro. Ou melhor, trouxe para
o centro da reflexão um aspecto Todos os vídeos do projeto podem ser
fundamental que pode ser sintetizado na acessados pelo canal do YouTube do Núcleo
Este é um artigo publicado em palavra contato. De fato, esse termo implica de Estudos Contemporâneos de Literatura
acesso aberto (Open Access) sob
a licença Creative Commons
o reconhecimento da presença do outro, que Italiana (NECLIT):
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distribuição e reprodução em diversidade. Foi preciso, sim, tomar ontemporâneosLiteraturaItaliana/playlists
qualquer meio, sem restrições
desde que sem fins comerciais e determinadas providências e os devidos
que o trabalho original seja
corretamente citado.

1 Esse poema de Fabio Franzin faz parte do volume Vozes: cinco décadas de poesia italiana, organizado
por Patricia Peterle e Elena Santi, publicado em 2017 pela editora Comunità.
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(ARTIGOS}

Desafiar los poderes constituidos:


violencia, excepción y
desobediencia civil
Defying the constituted powers:
violence, exception and civil disobedience

Andityas Soares de Moura Costa Matos1


Joyce Karine de Sá Souza2

Resumen: Este trabajo propone la Palabras clave: desobediencia civil;


quiebra del pensamiento dogmático estado de excepción; estado de
acerca de la desobediencia civil. Hoy el excepción económico permanente; no-
estado de excepción económico se ha violencia; acción política.
hecho la regla y la emergencia cotidiana
de desastre instaurada por el Abstract: This paper proposes a rupture
capitalismo únicamente puede superarse, of the dogmatic thought about civil
más que por un nuevo nómos de la tierra, disobedience. Nowadays, the economic
por la desactivación que solo el rechazo state of exception has become the rule
radical del desobediente puede and the daily emergency of disaster
constituir. Así, la desobediencia civil, más established by capitalism can only be
que un mecanismo de autocorrección o overcome, more than by a new nomos of
incluso de auto-integración del derecho the Earth, by the deactivation that only
constituido, es un modo de escapar al the radical refusal of the disobedience
sometimiento total generado por el can constitute. Therefore, the civil
capitalismo tardío, cuando la disobedience, more than a mechanism of
subjetivación contempladora self-correction or even of self-integration
garantizada por la sociedad del of the constituted law, is a way to escape
espectáculo se justifica y se mantiene from the total submission created by the
conjuntamente con la violencia late capitalism, when the contemplative
legalizada e institucionalizada subjectivation guaranteed by the society
característica del estado de excepción of the spectacle is justified and
económico permanente. maintained together with the legalized
and institutionalized violence

Este é um artigo publicado em


1 Graduado en Derecho, Máster en Filosofía del Derecho y Doctor en Derecho y Justicia por la Facultad
acesso aberto (Open Access) sob de Derecho y Ciencias del Estado de la Universidad Federal de Minas Gerais (UFMG). Doctor en
a licença Creative Commons Filosofía por la Universidad de Coimbra (Portugal). Profesor Adjunto de Filosofía del Derecho y
Attribution, que permite uso, disciplinas afines en la Facultad de Derecho y Ciencias del Estado de la UFMG. Miembro del Cuerpo
distribuição e reprodução em
qualquer meio, sem restrições Permanente del Programa de Posgraduación en Derecho de la Facultad de Derecho y Ciencias del
desde que sem fins comerciais e Estado de la UFMG. Pos-doctorado en la Universitat de Barcelona. E-mails: vergiliopublius@hotmail.com
que o trabalho original seja e andityas@ufmg.br
corretamente citado. 2 Doctora en Derecho y Justicia por la Universidad Federal de Minas Gerais (Belo Horizonte). Profesora

en el curso de Derecho de la Nova Faculdade (Contagem). Su investigación esta orientada a temas como
derecho y violencia, espectáculo y alienación, crítica a los fundamentos del derecho y del Estado,
democracia, estado de excepción y derechos humanos. E-mail: joykssouza@gmail.com
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characteristic of the permanent economic sobre los gobernados. Por otro lado, la
state of exception. desobediencia civil es un concepto
complejo para la doctrina jurídica
Keywords: civil disobedience; state of tradicional por levantarse contra la
exception; permanent economic state of seguridad jurídica. Según Laudani,
exception; nonviolence; political action. “exaltada en el ámbito literario como
expresión trágica de un deseo de
autonomía radical [...], desde el punto de
Introducción vista político la desobediencia sigue
siendo, de este modo, un tabu, una
La Filosofia del Derecho considera sus actividad prohibida y escabrosa.”2
problemas teóricos acerca del fenómeno
jurídico bajo el prisma filosófico, Sin embargo, la situación en la que los
actuando en un campo de investigación Estados Democráticos de Derecho se
que busca formar una comprensión crítica encuentran inmersos hoy en día solo
del derecho. Por tanto, la investigación puede entenderse desde la perspectiva
filosófico-jurídica debe considerar sus de la excepción económica permanente,
problemas en torno de la decidibilidad, cuando la unión entre Estado, finanzas y
una vez que dicha cuestión es mercado se pone sobre la mesa y
fundamental para entender qué es el determina de facto la dirección
derecho. Al ser el orden jurídico un antipopular de las políticas estatales, la
sistema de decisiones, según Schmitt, se ilimitación del poder privado capitalista
hace complejo el abordaje del estado de y la pérdida de las conquistas históricas
excepción y de la desobediencia civil, de los movimientos de lucha por derechos
pues el estado de excepción se iniciados en el siglo XVIII y radicalizados
encuentra en una zona donde no opera por grupos obreros, negros y feministas,
un ordenamiento jurídico jerarquizado y entre otros tantos, durante los siglos XIX
los poderes estatales no están diluidos e XX.
por la separación de los poderes. Según
Agamben, “una de las características En este contexto, entender la
esenciales del estado de excepción ― la desobediencia civil solo como dispositivo
abolición provisional de la distinción de ajuste o corrección del poder
entre poder legislativo, ejecutivo y constituido significa negarle toda
potencia realmente transformadora y
judicial ― muestra aquí su tendencia a
democrática, viéndola como uno más de
transformarse en práctica duradera de
los tantos mecanismos técnicos que,
gobierno.”1 Ninguna Constitución
controlados y aprobados por el Estado-
consigue prever cuándo será necesaria
mercado, únicamente pueden
la intervención de un estado de
representar un papel retórico, indicando
excepción, dado que tal decisión es
y comprobando la supuesta normalidad
política y fáctica. Lo máximo que este
de un sistema de derecho que, en
documento consigue decir es que alguien
realidad, hace mucho que ya está
podrá ser investido para poder instaurar
agotado. De hecho, este sistema ahora
un estado de excepción. Tal situación
es inmune a cualquier reforma
escapa del carácter jurídico-positivo de
verdadera que ponga en juego los
limitación típico de la actuación estatal
fundamentos privados, egoístas e

1 AGAMBEN, Estado de exceção, p. 19


2 LAUDANI, Desobediencia, p. 12.
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individualistas en los que se apoya, tal ordenamiento jurídico, privándole de
como demuestra la crisis político-social vigencia de cara al mantenimiento y
que asola a Brasil actualmente, y esto preservación del propio orden, siendo
solo por poner un ejemplo de una instituido para la consecución de
situación que nos resulta cercana. determinados fines. Así, en el estado de
excepción hay una ampliación de los
Bajo esa doble paradoja se pretende poderes del soberano, ya que la primera
abordar la desobediencia civil frente al medida que se adopta para su
estado de excepción económico imposición es la suspensión del
permanente, proponiendo la quiebra del ordenamiento jurídico. Hay una
pensamiento dogmático acerca del tema. reducción de las garantías y derechos
Aunque la aceptación de tales teorías se constitucionales y queda abolida la
torne problemática al no hallarse en una distinción entre legislativo, ejecutivo y
zona genuinamente “jurídica” según los judicial, pasando a manos del soberano
modelos tradicionales o institucionales- el poder de decidir sobre el estado de
normativos, hoy urge pensar una política excepción, de manera que el soberano
contestataria y crítica que no aspire a ser concentra todo el poder que antes
simplemente una violencia diferente de estaba diluido a través de la separación
aquella monopolizada por el nómos de los poderes. Siendo investido por la
propietario. Este es el único modo de soberanía, el soberano llega a ser la
escapar al sometimiento total generado única instancia de decisión con la
por el capitalismo tardío, cuando la concentración total del poder político-
subjetivación contempladora jurídico, lo que le permite decidir sobre
garantizada por la sociedad del todas las situaciones que puedan surgir
espectáculo se justifica y se mantiene al en la excepcionalidad.
lado de la violencia legalizada e
institucionalizada característica del Según Schmitt, la situación excepcional se
estado de excepción. refiere a la violencia que excluye al
derecho para rescatarlo o instaurarlo. Es
la ultima ratio del poder soberano,
1. Estado de excepción y estado
de excepción económico correspondiéndole a la decisión
permanente soberana ser el eslabón capaz de unir el
estado de excepción al Estado de
Según Carl Schmitt, en su obra Teología derecho. En este sentido, la situación de
política, “soberano es quien decide sobre excepción permanece hasta que el
el estado de excepción”.3 Entendiendo el soberano decida cuándo está
estado de excepción como la suspensión establecida la situación normal de
del orden jurídico normal en situaciones seguridad y orden público para la
de emergencia, aparece a primera vista vigencia de un orden jurídico, o sea,
el carácter tridimensional de la hasta que decida cuándo está superado
afirmación schmittiana sobre la el estado de excepción. Por lo tanto, la
contigüidad entre soberanía, decisión y excepción no gravita en una “nada
intervención del poder en la suspensión jurídica”, sino que presupone la idea de
del orden jurídico. El estado de un derecho a realizar, a pesar de que
excepción se configura como la ello quede fuera del dominio de las
suspensión provisional de un formas positivas. La decisión sobre la

3 SCHMITT, Teologia política, p. 13.


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excepción ignora el derecho con el fin de derecho y normas de realización del
hacerlo efectivo: su realización resulta de derecho unicamente subraya y
un proceso de reconocimiento continuo de comprueba la función real del derecho:
la indeterminación social, cuya servir como gestor de violencia, esa
superación se da por la donación de ausencia omnipresente en su estrutura real
sentido gracias al momento superior y (constituida) o potencial (constituyente).
fundacional de lo político.4
El paradigma del estado de excepción
De ahí viene la distinción schmittiana según el pensamiento de Carl Schmitt es
entre normas de derecho y normas de retomado por varios autores, entre los
realización del derecho.5 Las normas de cuales destaca Giorgio Agamben. Según
realización del derecho anterior, centro Agamben, el derecho existe siempre en
de atención en el estado de excepción, la excepción y la excepción únicamente
no son útiles para la creación ―o para opera bajo revestimiento de fondo
la refundación― de las del nuevo jurídico para restablecerse o
derecho, lo que acarrea una ruptura (re)crearse. Así, “el soberano, que
8

entre la idea de ley y su pura puede decidir sobre el estado de


efectividad. Tal dualismo se resuelve en excepción, garantiza su anclaje en el
una unidad que solo puede ser violenta. orden jurídico”.9 Se puede decir que la
Como sugiere Carl Schmitt, la excepción decisión soberana, característica de la
no niega o destruye el derecho, sino que excepción, tiene por objetivo un orden
opera a su orilla para llevarlo, de nuevo jurídico, sea preservando o bien
y nunca, a su centro. Además de evitar el instaurando el derecho. Sin embargo,
“derecho normal”, la excepción se ¿cuál es la previsibilidad de coerción
relaciona con él de modo fantasmático. sobre el soberano si no cumple con el
Su espacio es performativo, expresando objetivo que él mismo se otorga? La
en su evidencia total la escena primaria respuesta es evidente: ninguna. En el
de la violencia de la que surgió lo estado de excepción no opera un orden
jurídico. Por lo tanto, se pude decir que jurídico positivo, o sea, no hay límites
la violencia es el medio absoluto del para los actos practicados por el
derecho. soberano en la excepcionalidad. Según
Agamben, ese núcleo problemático
En correspondencia con la experiencia
original de lo jurídico,6 lo que se refleja está en la relación entre anomia y derecho
[...] como la estructura constitutiva del orden
en la estructuración tanto del poder jurídico. [...] esta ambigüedad constitutiva del
constituyente como del poder constituido orden jurídico por la cual éste parece estar
siempre al mismo tiempo afuera y adentro de
es la violencia que pone y la violencia sí mismo [es] el dispositivo que debería
que conserva el derecho, conforme mantener unidos a los dos elementos
afirma Walter Benjamin.7 El hecho de contradictorios del sistema jurídico. El es, en
este sentido, aquello que funda el nexo entre
que la díada poder constituyente/poder violencia y derecho [...].10
constituido apunte directamente a la
distinción schmittiana entre normas de

4 SCHMITT, Teologia política, p. 27.


5 SCHMITT, Teologia política, p. 26.
6 GALLI, Genealogia della politica.
7 BENJAMIN, Para uma crítica da violência, p. 136.
8 AGAMBEN, Estado de exceção, p. 10.
9 AGAMBEN, Estado de exceção, p. 56.
10 AGAMBEN, Entrevista concedida a Flavia Costa, pp. 14-15.

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84
Además, el soberano es investido de buscar lo jurídico, se mantiene en la
autoridad para suspender la aplicación indeterminación.
de cualquier orden y restaurarlo o
instaurarlo cuando considere que está Agamben explica que el estado de
superado el estado de excepción. En este excepción es el momento en el que se
sentido, se hace necesario analizar la suspende el derecho para garantizar su
cuestión de la legitimidad de la continuidad y existencia. La excepción
autoridad, así como su reconocimiento, en permanente, por su parte, se ha
situaciones excepcionales. Según convertido durante el siglo XX en forma
Ferreira, en el pensamiento de Schmitt la no provisional y paradigmática de
“legitimidad [...] no resulta de una norma gobierno en las democracias
antecedente, sino de la existencia de la occidentales. La excepción permanente
unidad política y de su capacidad de alcanza um momento donde no solo tiene
decidir respecto a su propia forma de la función de restaurar o instaurar un
vida”, dado que “lo que convierte orden jurídico, o sea, dar vida al
efectivamente en última la decisión derecho, sino que pretende que la
soberana es su capacidad de imponerse unidad política permanezca bajo los
sobre las demás y conquistar el auspicios de una ideología que
reconocimiento público”.11 únicamente subsiste en cuanto violencia.
Según Agamben,
Como bien notó Agamben, las situaciones
El funcionamiento del orden jurídico se asienta
de excepcionalidad aliadas a la en última instancia, según la perspectiva
ampliación de los poderes schmittiana, sobre un dispositivo ―el estado
gubernamentales ―y se incluye aquí la de excepción― que tiene el objetivo de
volver aplicable la norma suspendiendo
desconsideración de los derechos temporariamente su eficacia. Cuando la
humanos fundamentales en cuanto excepción se convierte en la regla, la
máquina ya no puede funcionar. [...] La
jurídicamente vigentes y garantizados―, decisión soberana no es ya capaz de
son cada vez más comunes en el mundo desarrollar el deber que la Teología política
contemporáneo, convirtiéndose en le asignaba: la regla, que coincide ahora con
aquello de lo que vive, se devora a sí
paradigmas de gobierno. Según el misma.14
autor, la situación excepcional es un
espacio en el cual “lo que está en juego Como hemos visto, en tanto que
es una fuerza-de-ley sin ley”.12 De ese estructura original, la excepción no es un
modo, “el estado de excepción tiende movimento o un episodio vicioso que
cada vez más a presentarse como el cíclicamente se apodera del Estado de
paradigma de gobierno dominante en la derecho. De hecho, ella lo integra; sin la
política contemporánea”,13 una vez que excepción sería imposible la acción
es la forma más eficaz de eliminar normalizadora del derecho, que actúa
adversarios políticos, así como aquellos en un complejo y refinado juego de luces
que no se integran en el sistema político y sombras. De ahí se deriva un gran
dominante. Tal situación de problema: si la excepción es constitutiva
profundización del estado de excepción de la experiencia jurídica, ¿qué ocurre
origina el estado de excepción cuando deja de “jugar al juego” con la
permanente que, bajo el pretexto de normalidad y empieza a imponerse como

11 FERREIRA, O risco do político, pp. 120-125.


12 AGAMBEN, Estado de exceção, p. 61.
13 AGAMBEN, Estado de exceção, p.13.
14 AGAMBEN, Estado de excepción, p. 112.

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regla? En otras palabras: ¿el estado de existir, dado que excepción y
excepción permanente sigue siendo una normalidad se funden en una única
realidad jurídica? Estamos en un punto experiencia insostenible: la excepción
muerto no solo lógico ―cuando la propiamente permanente, que de la
excepción, a fuerza de repetición y excepción originaria obtiene el carácter
continuidad, se transforma en regla―, de la suspensión de lo habitual, y de la
sino político: si la excepción se ha normalidad el carácter de permanencia
convertido en permanente, la decisión e indefinida continuidad.
actúa indefinidamente en el tiempo, con
La excepción permanente establece una
lo que estabelece una situación ―real o
indeterminación de la indeterminación
potencial― de persecución ilimitada y profundamente no-relacional, en la cual
de decisionismo absoluto y, por lo tanto, lo político y lo jurídico no pueden actuar,
vacío, no delimitado por la posibilidad instaurándose un tiempo
de retorno a la normalidad. verdaderamente anómico, o mejor, un
Desde esta perspectiva, el término no-tiempo que se halla frente a la
estado de excepción permanente tiene un duración pura y simple de lo real. Su
doble significado. En un primer sentido, violencia constitutiva ya no está
la excepción es permanente y siempre lo moderada por ningún sentido social, ya
será por ser una manifestación de la sea este absoluto, relativo o crítico.
fuerza originaria presente en el derecho. Cuando la excepción concreta ya no se
Cualquier norma o acto jurídico, por más relaciona con un fin a alcanzar, con un
general, abstracto y regulado que derecho a ser creado o recreado,
parezca, lleva en sí el ADN de la cuando pierde su condición de medio y
violencia característica del estado de se convierte en un fin en sí misma, la
excepción. En este primer sentido, de distancia que limita excepción y violencia
carácter ontológico, decimos que la deja de existir.
excepción es permanente porque Al final de Legalidad y legitimidad,
constituye la experiencia jurídica real. Schmitt reconoce que el único elemento
Otro es el sentido cronológico del capaz de diferenciar la “ley normal” de
término, correspondiente exactamente al la “medida excepcional” es la
contrario de lo que acabamos de duración.15 La ley está hecha para durar,
afirmar. Si en el sentido ontológico son a diferencia de la excepción, situación
necesarios el juego y la comunicación de emergencia que tiene como misión
entre excepción y normalidad, el sentido lograr un fin específico; una vez
cronológico remite a situaciones en las alcanzado el fin, la excepción se retira
que deja de existir tal dialéctica, del escenario político-jurídico. Pero
extendiéndose la excepción en el tiempo cuando la excepción se convierte en
y en el espacio del derecho sin ninguna permanente, es precisamente ese
referencia significativa a la normalidad. aspecto el que acaba vulnerado.
En el sentido ontológico, la excepción Pretendiendo durar no solo
permanente convive, se mezcla y gana indefinidamente, sino por todo el tiempo,
concreción gracias a la diferencia la excepción asume el aspecto específico
instaurada en relación con la de la ley, dando lugar a un híbrido que
normalidad. Sin embargo, en el sentido solo puede ser nombrado por el
cronológico esa diferencia deja de

15 SCHMITT, Legalidade e legitimidade, p. 89.


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oxímoron excepción permanente: se trata en su originariedad de violencia. Gracias
ahora de una ley de excepción y no de la a la supremacía de lo económico,
excepción de la ley. desaparece el gobierno para que, en la
expresión irónica de Schmitt, las cosas se
En la excepción permanente asistimos a gobiernen a sí mismas. Y si queda algún
la pérdida de todo sentido social. En tal vestigio del derecho, se trata fatalmente
situación, no hay nada más allá de la de institutos desfigurados del Derecho
tutela de los cuerpos decididamente Privado ―nociones de contrato y de
individuales, perdiendo lo jurídico su
propiedad privada, por ejemplo.
carácter problemático frente a lo
político. En efecto, el derecho es Sin embargo, el elemento político
convertido en mera relación fáctica de permanece vivo aún en la excepción
fuerza, ya que no es posible, en virtud de económica, como si estuviera en
la excepción permanente, la creación de animación suspendida y listo para ser
narrativas sociales mínimamente reactivado. Porque, como señala
orientadas a horizontes normativos. En Derrida, “[...] si el cálculo es el cálculo, la
cuanto a lo económico, entendido como decisión no es del orden de lo calculable,
territorio de la pura violencia privada, y no debe serlo”.16 Lo que sustenta al
vemos su florecimiento. Aquí opera una soberano en cuanto tal en un estado de
de las paradojas intuidas por Schmitt: excepción económico permanente son los
por querer imponer en la realidad gobernados que obedecen las órdenes
político-jurídica estructuras de medición de él emanadas. Así, lo que posibilita la
matemático-mecánicas ―es decir, subsistencia de una excepción
calculadas de modo pretendidamente permanente son los proprios gobernados
objetivo―, la excepción económica que reconocen la autoridad como
permanente hace imposible cualquier legítima y le confian la misión de
ordenación significativa, franqueando las restaurar o instaurar el orden jurídico
puertas a la completa indeterminación suspendido, sometiéndose al poder
de la violencia original. La medida de lo excepcional. A medida que la unidad
social y de lo jurídico, dominios política que confirió autoridad al
intrínsecamente inconmensurables soberano económico no lo reconoce en
―exactamente por ello son suelos cuanto legítimo, el estado de excepción
fértiles para la fundación de proyectos se vuelve ilegítimo. Una vez que lo que
colectivos― solo ocurre en lo político, fundamenta el mantenimiento del estado
que presenta un carácter público y de excepción permanente no se adecua
excepcional-estabilizador. a los intereses de los gobernados, la
autoridad del soberano económico va
La excepción económica permanente, perdiendo el reconocimiento público,
siendo radicalmente privada, niega lo tornando posibles decisiones alternativas
político bajo el pretexto de medirlo, es al estado de excepción permanente
decir, categorizarlo en términos de impuesto. Los gobernados disminuyen la
pérdidas o ganancias, detri-mentos o predisposición a obedecer. La
lucros, déficits o superávits. Con esa obediencia deja de ser un puro hábito.
operación se obtiene exactamente lo
contrario a lo que se desea: carente de
mediación política, la sociedad se hunde

16 DERRIDA, Força de lei, p. 46.


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2. Desobediencia civil contra la desarrollan al tratar el tema en el
excepción económica contexto del poder constituido, tales
permanente como John Rawls, Hannah Arendt, Jürgen
Habermas y Ronald Dworkin.
La desobediencia civil es una forma
particular de resistencia que busca No obstante, incluso algunos teóricos que
oponerse a la violencia conciben la desobediencia civil como
institucionalizada, siendo distinta de expresión del poder constituido
otros tipos de conflicto ante los reconocen que esta puede, en situaciones
mandamientos estatales. extremas, llevar a cabo la crítica y la
Conceptualmente, la desobediencia civil tentativa de substitución de la totalidad
es una actuación ilegal, pública y no- de un sistema político-jurídico, tal como
violenta, algo diferente de la objeción se puso de manifiesto mediante las
de conciencia (que busca un tratamiento acciones de desobediencia
diferenciado del establecido en capitaneadas por Gandhi, las cuales se
determinada ley), de la huelga iniciaron con la mirada puesta en algunas
(abstención colectiva del trabajo), de la políticas discriminatorias del gobierno
desobediencia criminal (que teme la inglés y luego se transformaron en una
penalización) y de la anarquía (en la campaña contra el sistema colonial al
cual no está vigente ningun orden vertical que la India estaba sujeta.18
y jerárquico). Por tanto, la
desobediencia civil no es mera negación Esa situación demuestra que la
de una ley o de una orden, sino más bien desobediencia civil, más que un
una acción organizada y consciente que mecanismo de autocorrección del
contesta a la supremacía y a la validez derecho constituido, puede funcionar
de la autoridad en su totalidad o en como expresión de un poder
aspectos aislados, no temiendo, además, constituyente, excediendo así al derecho
la sanción estatal. positivo dado. Para que la
desobediencia civil cumpla ese papel, es
José Antonio Estévez Araujo preciso que estén presentes
conceptualiza la desobediencia civil circunstancias específicas que puedan
como una actuación ilegal, pública, no- estar adecuadamente fundamentadas en
violenta y efectuada con el objetivo de cierta idea del derecho que, bajo el
transformar una ley o política punto de vista asumido en este trabajo,
gubernamental.17 Según esa definición, presenta naturaleza democrático-
parece que la desobediencia civil solo radical. Nuestra hipótesis es que hoy
puede ser practicada dentro de los esas circunstancias existen plenamente
marcos de un sistema jurídico dado, al bajo la forma de un estado de excepción
cual, de manera general, se respeta. En económico permanente. Al parecer, hemos
este contexto, la desobediencia civil llegado a un punto de no retorno, gracias
sería utilizada únicamente con el objetivo al cual asistimos a la rápida
de modificar algunos de los aspectos desconstitución de los derechos y
específicos de dicho sistema. Esta es la garantías liberales que, pese a no haber
comprensión respecto a la desobediencia funcionado plenamente ―tal como
civil que varios autores liberales sucede con cualquier proyecto

17 ESTÉVEZ ARAUJO, La constitución como proceso y la desobediencia civil, p. 22.


18 ARENDT, On civil disobedience, p. 77 y ESTÉVEZ ARAUJO, La constitución como proceso y la
desobediencia civil, pp. 28-29.
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humano―, cumplieron un importante totalmente confundidas, es debido a la
papel histórico al insertar parcialmente irreflexiva e inmediata identificación
en el debate y en la vivencia política entre lo que es ―el derecho
estratos y grupos sociales antes capitalista― y lo que puede ser ―otras
explotados y oprimidos. formas de derecho. Si tomamos en serio
la invitación que hace Agamben a la
Es importante hacer hincapié en que la “generación que viene” para pensar un
desobediencia civil no es la única, así derecho en el que la violencia esté
como posiblemente tampoco la más desactivada, cabe destacar, entre las
importante estructura del poder diversas formas constituyentes de este
constituyente. Existen diversas formas, nuevo derecho, la desobediencia civil,
tanto pasivas ―la huelga general precisamente por su carácter no-violento
revolucionaria, por ejemplo― como que, en un lenguaje místico, no acumula
activas ―levantamientos, resistencias karma o, para ser más claros, no
armadas, revoluciones etc.― cuyo mantiene activo el mecanismo del
objetivo es la transformación total del derecho capitalista que siempre exige
cuadro político-jurídico-económico de la más violencia para fundamentarse y
excepción. Muchas de esas modalidades llevarse a cabo. Desde esa perspectiva,
de poder constituyente recurren a la desobediencia civil puede pensarse
métodos violentos que, no por ello, son como institución jurídica radicalmente
ilegítimos en sí mismos. No podemos argumentativa, o sea, mucho más que
olvidar las lecciones de Schmitt y cualquier teoría de la argumentación
Benjamin sobre la co-naturalidad entre ligada a los poderes constituidos
derecho y violencia. De hecho, la ―violentos por naturaleza― puede
normatividad que conocemos surgió de admitir.
actos originarios de toma de la tierra,19
los cuales pasaron a ser justificados Estévez Araujo sistematiza las
míticamente a través de metáforas concepciones tradicionales sobre la
moralizantes; a la vez, el sistema jurídico desobediencia civil afirmando que
monopolizó para sí el uso de la violencia, pueden ser entendidas como: 1) prueba
tenida como medio absoluto del derecho de constitucionalidad, cuando mediante el
y que, por lo tanto, no puede compartirse acto de desobediencia se cuestiona
con otras esferas sociales. No obstante, directamente la validez constitucional de
tampoco podemos olvidar el carácter determinada ley; o como 2) ejercicio
histórico y no ontológico de las tesis de directo de un derecho ya reconocido en la
Schmitt y Benjamin, ya que se refieren a Constitución, cuando, por ejemplo, la
una experiencia concreta de derecho autoridad niega el derecho a
―la occidental, surgida en Grecia y que manifestarse y los desobedientes hacen
hoy se presenta como derecho caso omiso a tal prohibición. El primer
capitalista-apropiador― y no a toda caso consiste en una postura más activa
experiencia jurídica posible o potencial. dirigida al Poder Legislativo, mientras
que en la segunda hipótesis los
Poder y normatividad ―y no violencia y desobedientes adoptan posturas de
jerarquía― son los elementos de carácter más activo y luchan contra las
cualquier experiencia jurídica. Si hoy en medidas y decisiones del Poder Judicial
día estas díadas se encuentran o Ejecutivo. Lo que importa, sin embargo,

19 SCHMITT, Der Nomos der Erde im Völkerrecht des jus publicum europæum.
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es que en los dos casos los desobedientes excluyente, jerárquico y violento,
cuestionan actos de ponderación de características que claramente se oponen
valores y principios efectuados por el a las de la desobediencia civil, la cual es
poder público ―ya sea al crear o pública, horizontal y pacífica. En el
aplicar leyes―, tratando de demostrar mundo imperial de la excepción
que ciertas opiniones, circunstancias y económica permanente, la producción y
puntos de vista no han sido lo la acción social son totales,
suficientemente considerados y ininterrumpidas e irreflexivas. Es por eso
sopesados.20 Se nota que tales teorías que cada resistencia violenta impuesta al
de la desobediencia civil se encuentran sistema lo fortalece, ya que lo lleva a
vinculadas a la necesidad de conmover o activar nuevos mecanismos de control y
activar la opinión pública, con el objetivo de subjetivación.
de modificar decisiones de las tres ramas
De hecho, en realidad el estado de
clásicas del poder soberano. Sin
excepción únicamente puede sobrevivir y
embargo, la naturaleza profundamente
prosperar en caso de ser justificado
antidemocrática de ese poder
constantemente por la resistencia que lo
permanece incuestionable en su esencia.
cuestiona y, de ese modo,
En un marco en el cual cualquier paradójicamente lo exige y lo mantiene.
transformación político-jurídica relevante A diferencia de lo que pensaba Foucault,
pasa por la mediación necesaria hecha la resistencia no es la otra cara del
por los poderes del mercado y del poder, sino el poder mismo. Resistir al
Estado-capital, la desobediencia civil estado de excepción, incluso haciéndolo
resulta fundamental para la constitución de modo justificado y con buenos
de derechos-que-vienen argumentos, se convierte en una manera
verdaderamente democráticos y no de activar a los arcanos del poder, que
fundados en el nómos propietario y descansan en la acción productora y
violento que hoy en día marca ―de reproductora de un mundo social
manera explícita o implícita― las escindido. Desde esta perspectiva,
experiencias posmodernas de “contra la excepción permanente no
normatividad. cabe rebelión, porque el no cesar de
rebelarse constituye el primero de todos
Resulta evidente la ineficacia de las los mandatos que tal excepción
concepciones que limitan la función de la impone.”21 Eso resulta claramente
desobediencia civil a escenarios perceptible en las luchas sociales
institucionales de normalidad, cuando sucedidas entre 2011 y 2018 en EEUU,
ella funciona como válvula de escape o, América Latina y Europa, cuando la
en el mejor de los casos, como mecanismo explosión de indignación popular fue
de autocorrección o incluso de auto- considerada en primer lugar como
integración del derecho. Nos parece legítima para en seguida servir como
inadecuado y contradictorio derivar la justificación para una profundización sin
fundamentación de la desobediencia precedentes ―al menos en los Estados
civil a partir de los principios de un autodenominados “democráticos”― de
sistema nómico-propietario que a lo la excepción, con la aprobación de
largo de su desarrollo histórico ha sido varias leyes y medidas administrativas

20 ESTÉVEZ ARAÚJO, La constitución como proceso y la desobediencia civil, pp. 144-145.


21 VALDENCANTOS, La excepción permanente, p. 156.
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que penalizan la objeción pública del reacción no tenga intensidad
orden capitalista, llegándose incluso al proporcional. De ahí la necesidad de
absurdo de vulnerar los principios valorar las potencialidades
básicos de presunción de inocencia y del desinstituyentes y constituyentes de una
debido proceso legal, así como el inacción como aquella propuesta por la
derecho a la información, a la desobediencia civil.
privacidad y a manifestarse, como
ocurrió en España gracias a la En la interpretación asumida en el
tristemente célebre Ley Mordaza. presente texto, la desobediencia civil,
considerada más allá de la
En Brasil el proceso se hizo interpretación tradicional liberal y
particularmente evidente al haber reformista, parece ser uno de los
irrumpido en junio de 2013 de manera mecanismos más adecuados para pensar
sorprendente, cuando una serie de y actuar desinstitucionalmente, y esto con
movimientos críticos acéntricos, una ventaja estratégica imprescindible:
horizontales y espontáneos tomaron las al quedar desprovista de violencia, la
calles de las principales ciudades desobediencia civil no está directamente
brasileñas. Tales resistencias dificultaron vinculada a las formas de acción del
tanto el espectáculo de la Copa Estado-capital, genéticamente marcadas
Confederaciones como el aumento de las por la necesidad de monopolización de
tarifas del transporte público. Pero la violencia.
despúes el poder excepcional ha podido
presentar a dichos movimientos como La no-violencia es un requisito
símbolos de la barbarie y el caos, absolutamente central para alcanzar el
construyendo estructuras de contención, éxito en las acciones desobedientes
intimidación y control raras veces opuestas al poder constituido, dado que
experimentada en el país, asegurando en muchas ocasiones las prácticas
así que la Copa del Mundo pudiera violentas de movimientos sociales
transcurrir sin mayores incidentes. movidos por causas justas se utilizan
Simétricamente, la aparente victoria como razones que justifican las
consistente en la retirada del Estado y de respuestas más implacables del Estado.
sus socios económicos en lo que se refiere La táctica de la no-violencia tiene por
al aumento de las tarifas del transporte objetivo no solo despertar el sentido
público en 2013 se revirtió a toda prisa moral del adversario ―como quería
en 2015, y en esta ocasión sin que el Gandhi―, sino también influir en la
espectáculo mediático se incomodase con opinión pública para así redirigirla
la extrema violencia policial mediante la contra el Estado y a favor de los
cual las protestas en São Paulo, Rio de desobedientes que pretenden la
Janeiro y Belo Horizonte fueron tratadas institución de nuevas estructuras político-
y, en pocos días, desacreditadas e jurídicas.22 A esta percepción táctico-
integradas a la narrativa triunfal que el argumentativa viene a sumarse el
orden proclama sobre sí mismo. En la aspecto institucional según el cual el uso
vida política como en la Física, toda de la violencia por parte de
acción genera reacción, aunque en el organizaciones de resistencia está
escenario de las luchas humanas la terminantemente prohibido en las
democracias constitucionales.23 Así, con

22 ESTÉVEZ ARAUJO, La constitución como proceso y la desobediencia civil, p. 26.


23 EBERT, Die Auswirkungen von Aktionen zivilen Ungehorsams in parlamentarischen Demokratien, p. 93.
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la estrategia de la no-violencia se decisión de desobedecer y de no
facilita la legitimación de la idea de cooperar con las órdenes del soberano
desobediencia civil en el contexto del en un estado de excepción económico
poder constituido que esta pretende permanente demuestra que el ejercicio
criticar y superar. de una acción político-jurídica no es
estático, ya que la desobediencia civil es
La excepción permanente es una una manifestación legítima de una
violencia institucionalizada y en este intención política en la medida en que
contexto la desobediencia civil es una pone en discusión el poder soberano.
táctica específicamente política que no
necesita de ley para garantizar su Tal como expone Costas Douzinas, el
ejercicio. De hecho, la desobediencia civil acto de desobediencia hace posible
es antijurídica solo frente al estado de desvincular las acciones, la conducta y el
excepción permanente que ella niega. comportamiento de las personas de la
Ahora bien, si en una situación de matriz económica capitalista centrada en
excepcionalidad el soberano se disfraza el consumo, en la deuda y en el juicio
en cuanto personificación del proprio moral impuesto a las capas populares,
orden, invistiéndose con el poder de llamadas a soportar indefinidamente los
suspender el derecho e, inclusive, de efectos nocivos de la crisis económica
suprimir garantías constitucionales, permanente en la que vivimos. Al
corresponde a los ciudadanos, en cuanto cuestionar el supuesto continuum entre ley
son los más interesados en una situación y justicia, la desobediencia deja de ser
donde sus derechos y garantías un acto individual de tipo moralizante y
fundamentales son parcial o totalmente se presenta como práctica social de
suspendidas, no reconocer la legitimidad carácter colectivo y emancipador,
de las órdenes emanadas, pudiendo constituir nuevas subjetividades
desobedeciendo al Estado-capital. Esto al retirar a los sujetos del circuito deseo-
viene a demostrar que el estado de consumo-frustración.24
excepción no es una situación que opera
libre de cualquer limitación, sino que
3. Consideraciones finales:
depende del reconocimiento público de desobedeciendo al poder
su autoridad y de la consiguiente constituido
legitimación por parte de los
gobernados. Teniendo en cuenta que se Actualmente se conserva tanto una
debe entender la desobediencia civil en fascinación por el Estado como un fetiche
cuanto acción política que niega el orden respecto al soberano como algo
impuesto por un estado de excepción inmaculado y absolutamente esencial
permanente, tal acción rescata una para la vida plena en sociedad.
subjetividad desobediente. Realmente, nada parece más sensato en
las sociedades posmodernas, complejas
Cuando lo político está totalmente vacío y híbridas que la existencia de un tercero
y se renuncia a cualquer relación con el que medie en las relaciones conflitivas,
derecho, corresponde a la asegurando la existencia del Estado y de
desobediencia civil abrir el debate sobre la democracia en momentos de grave
la falibilidad de un marco excepcional crisis. Pero el derecho no se resume en
que se ha convertido en permanente. La Estado y soberano, sino que va mucho

24 DOUZINAS, Crisis, resistencia e insurrección, pp. 175-176


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más allá. La desobediencia civil, por permanente y no una mera práctica
ejemplo, es antijurídica. Por supuesto, no subversiva, siendo antes un modo de
debemos cultivar una sumisión ciega a las crítica hacia los actuales Estados
órdenes de un soberano hasta tal punto “democráticos” en los cuales la excepción
que consideremos el fin último del se hace cada vez más presente en cuanto
derecho la suspensión del proprio técnica permanente de gobierno, es una
derecho. Este es un pensamiento típico de forma de llegar a la certeza de que
dogmáticos con horizontes intelectuales Estado y derecho no se encierran en el
estrechos. poder absoluto e ilimitado del soberano.

La presencia de la excepción económica Hay que se admitir, por tanto, la


permanente nos parece brutal porque relevancia de la desobediencia civil en
suspende el carácter “apocalíptico” cuanto actual fenómeno social, cultural,
―destructor, pero también revelador― político y jurídico, tratándose de una
de la excepción política, lo que nos sitúa forma de convertir en inoperables las
en una estructura en abîme que, incapaz órdenes del soberano en un estado de
de apuntar hacia la normalidad, excepción económico permanente. Y es
prepara continuamente la excepción de en ese campo de tensiones jurídico-
la excepción y la suspensión de la políticas, entre el poder soberano y sus
suspensión, sumergiéndonos en el puro gobernados, donde corresponde a la
movimiento ya no del poder ―que, a fin Filosofía del Derecho considerar la
de cuentas, precisa ser mediatizado―, desobediencia civil y el estado de
sino de la pura violencia. Es esta excepción permanente como campos de
disposición barroca ―auténtico trompe- investigación en su totalidad, pudiendo
l’oeil de la sociabilidad característica de volverse estática, vacía y envejecida al
la excepción permanente― que vuelve desconsiderar fenómenos que forman
difícil, quizás imposible, su asimilación parte de la construcción o deconstrucción
por los juristas. Estos anticuados de lo jurídico. Y eso porque, según
personajes intentan aplicar los viejos nosotros, el estado de excepción
matices del control al campo específico económico permanente debe criticarse
de la excepción, una tarea que resulta para que pueda detenerse.
siempre inútil.25 Del mismo modo,
fracasan los análisis y las tentativas de
control jurídico clásico frente a la Referencias
permanencia de la excepción concreta AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção.
instituida por lo económico, ya que “la Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo,
máquina no tiene tradición”26 y el 2004.
dominio económico privado ignora
cualquier noción que se aleje de la AGAMBEN, Giorgio. Entrevista
supuesta perfectibilidad abstracta del concedida a Flavia Costa. In: AGAMBEN,
sistema de trueques. Giorgio. Estado de excepción. Homo
sacer, II, I. Trad. Flavia Costa e Ivana
Reconocer que la desobediencia civil Costa. Buenos Aires: Adriana Hidalgo,
constituye una respuesta legítima al pp. 9-20, 2005.
estado de excepción convertido en

25 SCHMITT, La dictadura, p. 28.


26 SCHMITT, Catolicismo romano y forma política, p. 34.
( D E S ) T R O Ç O S : R E V I S TA D E P E N S A M E N T O R A D I C A L , B E L O H O R I Z O N T E , A N O 1 , N . 1, J U L . / D E Z . 2 0 2 0 .
93
ARENDT, Hannah. On civil disobedience. GALLI, Carlo. Genealogia della politica:
In: ARENDT, Hannah. Crises of the Carl Schmitt e la crisi del pensiero politico
republic. New York: Harcourt Brace, pp. moderno. Bologna: Il Mulino, 1996.
49-102, 1972. LAUDANI, Raffaele. Desobediencia. Trad.
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Org., apresentação e notas Jeanne Berlin: Duncker & Humblot, 1974.
Marie Gagnebin. Trad. Susana Kampff
Lages e Ernani Chaves. São Paulo: Duas SCHMITT, Carl. Legalidade e legitimidade.
Cidades/Editora 34, pp. 121-156, Trad. Tito Lívio Cruz Romão. Belo
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DOUZINAS, Costas. Philosophy and SCHMITT, Carl. La dictadura: desde los


resistance in the crisis. London: Polity, comienzos del pensamiento moderno de
2013. la soberanía hasta la lucha de clases
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(ARTIGOS}

Práticas jurídicas e sociais


legitimadoras dos modelos
econômicos liberal e neoliberal
de apropriação
Legitimating juridical and social practices of the liberal economic model of
appropriation

Bárbara Nascimento de Lima1


Ricardo Manoel de Oliveira Morais2

Resumo: Este artigo objetiva analisar as Palavras-chave: práticas jurídicas;


práticas jurídicas e sociais empregadas subjetivação; apropriação; legitimação;
pelas estruturas de poder que legitimam neoliberalismo.
a apropriação da produção. Parte-se
das reflexões d’A origem da família, da Abstract: This paper aims to analyze how
propriedade privada e do Estado, de global power structures’ social and
Engels, articulando-as com obras que juridical practices employed by the
atualizam o problema em análise: O capitalist model legitimize an
nascimento da biopolítica, de Foucault, appropriation of production. In this
Circuito dos afetos, de Safatle e A nova instance, this reaserch focus on The origin
razão do mundo, de Dardot e Laval. of the family, private property and the
Examina-se o surgimento de uma classe State, by Engels, articulating it with texts
social que, sem produzir, se apropria da that actualizes the problem: The birth of
produção e subjuga econômico e biopolitics, by Foucault, Circuito dos
politicamente o produtor. Após, Afetos, by Safatle, and The new way of
evidencia-se algumas decorrências da the world, by Dardot and Laval. This
consolidação da divisão social de research examines a social class that,
classes, como a tentativa de se without producing, appropriates the
“legalizar” a exploração econômica, production and, as the same time,
naturalizando-a, e, principalmente, as subdues the producer economically and
práticas sociais (estatais, discursivas, politically. At the end, we present some
morais e jurídicas) de subjetivação of the consequences of the establishment,
empregadas neste processo que resultam creation and legitimization of the division
no surgimento do modelo neoliberal. of social classes, as an attempt to
"legalize" an economic exploitation of
Este é um artigo publicado em
acesso aberto (Open Access) sob others, naturalizing a social body, and,
a licença Creative Commons mainly, as social practices (state,
Attribution, que permite uso,
distribuição e reprodução em
qualquer meio, sem restrições
desde que sem fins comerciais e 1 Doutoranda em Filosofia Radical e Teoria Crítica do Direito e do Estado pela UFMG. Mestra em Teoria
que o trabalho original seja do Direito e Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
corretamente citado. Coordenadora do grupo de pesquisa Teoria Crítica do Direito da PUC Minas. Advogada. E-mail:
barbara.nlima@hotmail.com
2 Doutor em Direito Político pela UFMG. Mestre em Filosofia Política pela UFMG. Graduado em Filosofia

(FAJE) e em Direito (FDMC). Professor. E-mail: ricardo_mom@hotmail.com


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discursive, moral and legal) of será examinado como determinados
subjectivity employed in this process dispositivos se constituem para, após,
which results in the creation of compreender seu funcionamento na
neoliberalism. sociedade.1

Keywords: juridical practices; Nesta investigação, primeiramente serão


subjectivation; appropriation; apresentadas as condições sociais e
legitimation; neoliberalism. econômicas que fizeram emergir a
estrutura do Estado e a partir das quais
surgiu tanto a divisão da sociedade em
Introdução classes quanto uma classe que, mesmo
não produzindo, detém a produção. Este
Este artigo tem por objetivo analisar caminho será guiado, em parte, pela
práticas e dispositivos de poder que obra A origem da família, da propriedade
legitimam a acumulação de riquezas nas privada e do Estado, de Engels, para
mãos de poucos e a apropriação da quem a história deve ser analisada
produção por entidades não produtoras, segundo o materialismo histórico: a
práticas estas empregadas por investigação do progresso da
estruturas globais de poder, tal como humanidade deve examinar como a
Estado e Mercado. Além disso, pretende- produção e a reprodução da vida
se compreender, ainda que imediata são decisivos. Isso porque ao
esquematicamente, quais consequências produzirem meios de existência
estas práticas e dispositivos podem (alimentação, habitação e instrumentos
trazer. Quando se fala em dispositivo, para tais fins) e do próprio homem (para
pensa-se na definição trazida por sua continuação enquanto espécie),
Deleuze em Qu’est-ce qu’un dispositive?, condicionam radicalmente a ordem social
que define um dispositivo como uma pelo grau de desenvolvimento do
espécie de novelo ou um conjunto trabalho e da família. “Quanto menos
multilinear complexo e composto por desenvolvido é o trabalho, mais restrita é
“linhas” de distintas naturezas, incapazes a quantidade de seus produtos e, por
de delimitar sistemas como homogêneos consequência, a riqueza da sociedade;
por conta própria, seguindo diferentes com tanto maior força, se manifesta a
direções e fazendo emergir processos influência dominante dos laços de
desequilibrados, nos quais as linhas se parentesco sobre o regime social”.2
aproximam e afastam umas das outras.
As linhas estão quebradas e submetidas Logo, analisar a família e o trabalho é
a variações de direção e derivação, e os essencial para se compreender a
objetos visíveis, as enunciações ideologia do progresso humano e os
formuláveis, as forças em exercício, os fatores que levaram ao surgimento de
sujeitos numa posição, são como vetores uma determinada ordem social, que,
e tensores nessa englobante rede. As três ainda que permeada de nuances e
grandes instâncias do saber, poder e particularidades intercambiáveis, se
subjetividade não possuem contornos mantém enquanto estrutura divisora e
definitivos, sendo espécies de cadeias de hierarquizadora de classes ao longo da
variáveis relacionadas entre si. Com isso, história. Em seguida, serão analisados os
efeitos concretos das práticas que o

1 DELEUZE, Qu’est-ce qu’un dispositive?.


2 ENGELS, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, pp. 2-3.
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capitalismo opera, especialmente em sua luta moderna por uma nova comunidade,
forma neoliberal. Este ponto da ou seja, por uma comunidade sem
investigação irá se embasar, classes, tema não apenas atual, mas
principalmente, no curso O nascimento da também imprescindível ao se discutir
biopolítica, de Foucault, e nas obras possibilidades alternativas ao modelo
Circuito dos afetos, de Safatle e A nova neoliberal.
razão do mundo, de Dardot e Laval. É
preciso ressaltar, contudo, que embora Uma vez que a ordem capitalista,
os autores acima sejam utilizados para a sobretudo em sua formulação neoliberal,
elaboração do presente texto, não há se instaura na sociedade, ela traz
nenhuma tentativa de constituição de consigo práticas e dispositivos de
uma linearidade teórica que ofereça o subjetivação que operam de modo a
sentido de continuidade entre suas obras. consolidar sua formulação global não
Ao contrário, os pressupostos e apenas de modo a reprimir os indivíduos
proposições de autores como Engels e para que eles produzam segundo as
Foucault apresentam aspectos, não raro, expectativas industriais, mas de modo
divergentes. A despeito dessas que, enquanto sujeitos “livres” e
incongruências, evidenciadas, por “soberanos de si”, tais indivíduos se
exemplo, pela contraposição entre o enxerguem no sistema de produção,
materialismo histórico-dialético e a passando a ter um sentimento de
genealogia foucaultiana, a opção de uso realização no próprio ato da produção
da obra de Engles se justifica pela sua em um movimento que vincula
função de base teórica para a diretamente a maneira com a qual o
apresentação das condições econômicas sujeito é governado com a forma pela
e sociais que proporcionam o surgimento qual ele próprio se governa.5 Nesse
tanto do Estado quanto do Mercado, contexto, o sujeito neoliberal
estruturas essenciais à análise do simultaneamente se constitui e é
neoliberalismo. Nesse sentido, o constituído enquanto animal competitivo
neoliberalismo, embora discrepante do por meio de uma nova lógica normativa
liberalismo no que se refere aos discursos derivada de práticas discursivas e
e práticas que constituem o sujeito, institucionais que produzem a figura do
comporta em si a divisão da sociedade homem-empresa.6 Logo, opera-se mais
em classes (embora a tente disfarçar sob que uma amenização do estranhamento
a máxima individualista do “eu- existente entre objeto produzido e
empresarial”), razão pela qual a já sujeito produtor – que era presente nos
citada obra de Engels se faz necessária modelos iniciais do processo do capital:
enquanto pressuposto teórico para a emerge uma noção de quase
primeira parte do texto. Da mesma identificação radical entre sujeito e
forma, tal como aponta Benjamin3, Engels produção.
descobre, a partir dos trabalhos de
Morgan4, a comunidade “primitiva”
como realidade histórica indissociável da

3 LÓWY, Walter Benjamin, e-book.


4 Lewis Henry Morgan foi um antropólogo americano cujos trabalhos acerca do materialismo cultural e
estrutura social influenciaram fortemente as obras tanto de Marx quanto Engels. Cf. MORGAN, Ancient
society.
5 DARDOT; LAVAL, A nova razão do mundo, pp. 332-333.
6 DARDOT; LAVAL, A nova razão do mundo, p. 322.

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1. O surgimento da classe desenvolvimento/subdesenvolvimento
comerciante cujo “[...] biologismo da expressão não é
senão a máscara furtiva da velha
Uma vez que para Engels a história deve
convicção ocidental, muitas vezes
ser analisada segundo o materialismo, a
partilhada realmente pela etnologia, ou
investigação do “progresso” da
ao menos por muitos dos seus praticantes,
humanidade, bem como do surgimento
de que a história tem um sentido único,
de estruturas como o Estado, deve levar
de que as sociedades sem poder são a
em consideração a produção e a
imagem daquilo que não somos mais e
reprodução da vida imediata, que são
de que a nossa cultura é para elas a
fatores decisivos na história. Isso porque
imagem do que é necessário ser. E não
a ordem social é condicionada pela
só o nosso sistema de poder é
produção dos meios de existência
considerado o melhor, mas chega-se
(alimentação, habitação e instrumentos
mesmo a atribuir às sociedades arcaicas
para tais fins) e do próprio homem
uma certeza análoga”, conforme explica
enquanto espécie, razão pela qual o
Clastres.8 Como efeito, a percepção do
grau de desenvolvimento do trabalho e
Estado enquanto destino de uma
da família são centrais. “Quanto menos
sociedade inferioriza, ainda que
desenvolvido é o trabalho, mais restrita
involuntariamente, outras configurações
é a quantidade de seus produtos e, por
sociais sob o estigma da falta a partir de
consequência, a riqueza da sociedade;
um patamar civilizatório eurocentrado.
com tanto maior força, se manifesta a
influência dominante dos laços de Outra crítica acertada ao marxismo
parentesco sobre o regime social”, razão evolucionista de Engels é aquela
pela qual analisar o grau de proposta por Benjamin9 que, a partir de
desenvolvimento destas categorias é suas intuições “antiprogressitas”, se
necessário para se compreender a afasta das “ilusões do progresso”
ordem social (presente ou passada).7 presente no trabalho da esquerda
alemã. Benjamin, em sua desconstrução
Em relação a obra de Engels, faz-se
do discurso do progresso, parte do
necessário destacar que, em que pese a
pressuposto de que a história é, na
importância do materialismo histórico
verdade, uma “forma heterodoxa do
para a análise das relações de
relato da emancipação”, permitindo que
produção e a consequente teorização e
seu trabalho se desenvolva enquanto
problematização da divisão social de
uma crítica à modernidade industrial e
classes, compreendemos a ideia de
capitalista a partir da análise das
progresso histórico enquanto um modo
referências culturais e históricas pré-
particular de percepção do tempo que
capitalistas, sem, no entanto, se aliar ao
negligencia outras possibilidades de
determinismo e ao tempo infinitamente
configurações sociais que não aquelas
vazio do progresso histórico.
pautadas pela estrutura do Estado,
relegando ao Outro um lugar de Para Engels, Morgan descobriu o
subalternidade ou, ainda, de barbárie. materialismo histórico na América
O conceito de progresso vincula-se provando que os sistemas de parentesco
perigosamente à classificação de e as formas de família a eles

7 ENGELS, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, pp. 2-3.


8 CLASTRES, A sociedade contra o Estado, p. 32-33
9 LÓWY, Walter Benjamin, e-book.

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correspondentes foram decisivos na Os modelos de família correspondentes
história. Já que o “progresso” humano seriam: a família consanguínea, modelo
acompanha o desenvolvimento dos meios familiar que exclui pais e filhos de
de produção, Morgan classifica seus relações sexuais recíprocas, onde os
estágios em: selvagem - os homens se grupos conjugais se definem por
apropriavam diretamente dos produtos gerações, isto é, irmãos são marido e
da natureza prontos para utilização, e a mulher, de modo que a reprodução da
produção artificial simplesmente família se dava por meio de relações
facilitava tal processo; barbárie - mútuas e endógenas; família panaluana,
aparece a criação de gado e a modelo em que se exclui relações carnais
horticultura, iniciando o incremento da entre irmãos, criando a categoria de
produção pela força de trabalho sobrinhos e sobrinhas, primos e primas,
humana a partir da natureza; civilização aparecendo uma forma de matrimônio
- inicia-se com a fundição do ferro e a por grupos típico das comunidades
invenção da escrita alfabética, onde se comunistas, as gens, que se distinguem na
complexifica a elaboração de produtos. mesma tribo; com a ampliação das
Morgan debate o surgimento da família, proibições relativas a casamento, torna-
da propriedade privada e do Estado: se cada vez mais impossível a união por
grupos, que são substituídas pela família
De acordo com a concepção materialista, o
fato decisivo na história é, em última instância, sindiásmica, em que há o matrimônio por
a produção e a reprodução da vida pares, embora a poligamia e a
imediata. Mas essa produção e essa infidelidade permaneçam direito do
reprodução são de dois tipos: de um lado, a
produção de meios de existência, de homem. Este modelo de família é o que
produtos alimentícios, habitação, e permite o desenvolvimento da família
instrumentos necessários para tudo isso; de
outro lado, a produção do homem mesmo, a
monogâmica.11 No contexto em que
continuação da espécie. A ordem social em reinava o matrimônio por grupos a tribo
que vivem os homens de determinada época dividiu-se em grupos consanguíneos por
ou determinado país está condicionada por
essas duas espécies de produção: pelo grau linha materna, as gens, que são grupos de
de desenvolvimento do trabalho, de um lado, consanguíneos por linhagem e
e da família, de outro. Quanto menos descendência que se unem por instituições
desenvolvido é o trabalho, mais restrita é a
quantidade de seus produtos e, por sociais e religiosas e formam uma
consequência, a riqueza da sociedade; com comunidade na qual é vedado o
tanto maior força, se manifesta a influência
dominante dos laços de parentesco sobre o matrimônio. Os homens de uma linhagem
regime social. Contudo, no marco dessa buscam mulheres dentro da tribo, mas
estrutura da sociedade baseada nos laços de fora da sua gens. Já que os laços de
parentesco, a produtividade do trabalho
aumenta sem cessar, e, com ela, desenvolvem- parentesco eram determinados pela linha
se a propriedade privada e as trocas, as materna, pode-se dizer que houve um
diferenças de riqueza, a possibilidade de
empregar força de trabalho alheia, e com
direito materno que precedeu o paterno.
isso a base dos antagonismos de classe: os
novos elementos sociais, que, no transcurso de Este artigo se detém no que se sucedeu à
gerações, procuram adaptar a velha fase superior da “barbárie”, e os índios
estrutura da sociedade às novas condições,
até que, por fim, a incompatibilidade entre
americanos são tomados como exemplo
estas e aquela leva a uma revolução da organização gentílica. A análise recai
completa.10 sobre os fatores que a fizeram sucumbir.
Com a divisão da tribo em gens houve o

10 ENGELS, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, p. 4.


11 ENGELS, A origem da família, da propriedade privada e do Estado.
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aumento populacional, e cada gens se comunitariamente e, ainda que não se
divide. Mesmo com as divisões, as saiba quando os rebanhos passaram a
antigas gens permanecem, e a gens-mãe ser patrimônio dos chefes familiares e
conservar-se como fratria, formando uma não mais da tribo, a aparição deles e
confederação de tribos aparentadas. das riquezas revolucionou a família: se
Essa era uma organização simples, providenciar a alimentação e produzir
espontânea e adequada às condições instrumentos para tanto havia sido tarefa
sociais, apta a dirimir seus conflitos do homem, logo a domesticação e a
internos. Os externos eram definidos em criação também; e se os instrumentos
guerras, podendo resultar na ruína da necessários às tarefas do homem
tribo, não em escravização. A ausência pertenciam a ele, o gado e a mercadoria
de escravidão era a altivez e a limitação proveniente da troca também. “Todo o
desta época, pois não havendo divisão excedente deixado agora pela
de classes, não se maximizava a produção pertencia ao homem; a mulher
produção pela exploração de mão de tinha participação no consumo, porém
obra servil. A divisão em classes não na propriedade. O pastor, com a
pressupõe uma divisão artificial do riqueza, relega a mulher para o segundo
trabalho, ao passo que a repartição plano”.14 Ainda que a divisão familiar
laboral deste período era do trabalho continuasse igual, fora da
“espontânea” , a partir do gênero: o
12 família as relações foram reformuladas
homem caça, pesca, busca matéria- quando o trabalho doméstico se torna
prima, produz instrumentos e guerreia; a menos importante que o produtivo (do
mulher cuida da casa. As tribos eram homem).
rodeadas de uma região de caça e de
bosques que as separavam, com uma Com o desenvolvimento de setores da
população dispersa, densa só no local de produção (criação e cultivo) a força de
residência. A economia era comunista trabalho se tornou apta a produzir cada
pois tudo era comum.13 vez mais, viabilizando a troca regular de
produtos entre as tribos. O principal
Em outros lugares (como na Ásia) artigo oferecido pelas tribos pastoris às
surgiram práticas pastoris e de vizinhas era o gado, que adquiriu a
horticultura que deram a estas função de moeda, sendo a mercadoria
sociedades destaque em termos pela qual se avaliava as demais15.
produtivos. A partir da domesticação de Surgindo formas de riquezas oriundas
animais como a búfala, aumentou-se e das trocas de produtos, aumentou-se a
periodizou-se a produção de víveres, quantidade de trabalho diário dos
lacticínios e carnes. A horticultura, membros da gens para elevar a
possivelmente desconhecida dos asiáticos produção e, com isso, a riqueza. Ainda
na fase inferior da barbárie, precedeu a assim, a necessidade de força de
agricultura. A terra era cultivada trabalho era crescente e foi resolvida

12 A despeito da perspectiva essencialista apresentada por Engels, compreendemos a ideia de gênero


enquanto categoria discursiva e, portanto, como construto social cujas caracterizações se dão por meio
de estruturas de diferenciação que inevitavelmente hierarquizam e oprimem. Nesse sentido, a atribuição
natural da divisão do trabalho produtivo à categoria homem e do trabalho reprodutivo à categoria
mulher acaba por reafirmar a ontologização de predicamentos decorrentes da sociedade patriarcal
em que vivemos. Cf. BUTLER, Problemas de gênero.
13 ENGELS, A origem da família, da propriedade privada e do Estado.
14 ENGELS, A origem da família, da propriedade privada e do Estado.
15 ENGELS, A origem da família, da propriedade privada e do Estado.

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pela guerra, que passou a escravizar (primeiro por tempo determinado e
prisioneiros para servir de mão de obra. depois permanentemente) devido à
Nesse processo ocorreu a primeira necessidade de acumulação individual
divisão de classes: senhor e escravo, de riqueza; 2) o aumento populacional
explorador e explorado. devido à necessidade produtiva
crescente, causando uma união interna e
O que se seguiu disso foi o domínio do externa das tribos e a fusão de seus
ferro que, somado a outras condições territórios; 3) a colocação da questão da
socioeconômicas, culminou na fase segurança como algo de primeira ordem,
superior da “barbárie”, momento em que pois se a riqueza individual passa a ser
os buscada irrestritamente, o acúmulo de
[...] povos civilizados viveram sua época uns leva à cobiça de outros; 4) a guerra
heróica; período da espada de ferro, mas passa a ser empreendida
também do arado e do machado de ferro. Ao
permanentemente visando o saque para
por este metal a seu serviço, o homem se fez
dono da última e mais importante das a ampliação da riqueza, não mais para
matérias-primas que tiveram, na história, um vingar uma agressão ou ampliar
papel revolucionário [...]. O ferro tornou
possível a agricultura em grande escala e a territórios.17
preparação, para o cultivo, de grandes
áreas de florestas; deu aos artesãos um Visto que a acumulação de riquezas
instrumento cuja dureza e cujo fio jamais passa a ser o telos; as riquezas dos
havia podido ter pedra alguma ou qualquer
metal.16 vizinhos viram alvo de cobiça; guerras
regulares visam a rapina: muralhas são
O rápido aumento da riqueza individual construídas ao redor das cidades e a
e o incremento da arte de tecer, do nova arquitetura interna passa a ser
trabalho com metais e dos ofícios definida por casas individuais de pedras
especializados, levou à variedade e ao ou tijolos. A segurança se torna
crescimento da produção, acarretando extremamente relevante, pois o seu grau
na valorização ainda maior da força de de efetividade proporciona um maior ou
trabalho. A escravidão, até então menor potencial de acúmulo de riquezas.
nascente e esporádica, se tornou Com isso, o chefe militar se torna um
socialmente indispensável. Houve funcionário permanente e se cria uma
também a divisão social do trabalho assembleia e uma democracia militar
entre artesanato e agricultura, surgindo egressa da antiga ordem gentílica. A
a produção mercantil (diretamente para organização das tribos para a
a troca) e o comércio amplo, não só no regulamentação de seus assuntos vira um
interior e nas fronteiras das tribos, mas aparato de saque e opressão de
por mar. Ainda, os metais preciosos se vizinhos, que são potenciais ameaças à
tornaram a mercadoria universal segurança e ao acúmulo de riquezas. Os
(moeda) e o objetivo último do homem. órgãos deixam de ser instrumento da
Essa nova divisão do trabalho leva a vontade do povo e se tornam
outra divisão de classe: além do livre e o independentes, dominadores e
escravo, passou a haver a distinção entre opressores. 18
o pobre e o rico. As consequências foram:
1) o fim do trabalho comum na terra e a Tudo isso só foi possível porque a cobiça
distribuição do solo entre as famílias dividiu os membros das gens em ricos e

16 ENGELS, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, p. 183.


17 ENGELS, A origem da família, da propriedade privada e do Estado.
18 ENGELS, A origem da família, da propriedade privada e do Estado.

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pobres, de modo que as diferenças no da civilização, posição de mais e mais
seio da mesma gens se transformou em destaque, logrando um domínio sempre
um antagonismo entre seus membros. As maior sobre a produção, até gerar um
guerras de rapina aumentaram o poder produto próprio: as crises comerciais
do chefe militar, que passou a ser periódicas”.19 Por meio do dinheiro-
transmitido hereditariamente, metal (mercadoria que encerra as
constituindo-se os pressupostos da demais), esse não produtor dominou a
monarquia. A consolidação das divisões produção.
do trabalho e o aumento do contraste
entre cidade e campo culminou na Ao lado da riqueza em dinheiro,
civilização. A sociedade antiga, que se mercadoria e escravos, aparece a
baseava em uniões gentílicas, se riqueza em terra. A posse, antes coletiva,
reorganiza devido ao choque das classes passa a ser hereditária (herança),
sociais recém-formadas, dando lugar a surgindo a propriedade plena e privada
uma sociedade organizada em Estado, do solo que permite sua alienação sem
cujas unidades inferiores já não são restrições, o que não existia na ordem
gentílicas e sim territoriais, ou seja, uma gentílica. A propriedade suprema da
sociedade na qual o regime familiar está gens é suprimida pela individual,
completamente submetido às relações de rompendo o vínculo outrora indissolúvel
classe e luta de classes, sociedades estas entre proprietário e solo, que passa a ser
que constituem o conteúdo de toda a mera mercadoria. A expansão do
história escrita até a atualidade. comércio e a progressão da
propriedade territorial, do dinheiro e da
Aqui ocorreu outra divisão do trabalho usura levam à concentração da riqueza
devido ao surgimento de uma classe que numa classe pouco numerosa, fenômeno
não se ocupa da produção, apenas da acompanhado do empobrecimento das
troca: os comerciantes. Se até então massas. Na Grécia por exemplo ocorreu
apenas a produção determinava a um enorme aumento do número de
constituição e a divisão das classes escravos, pois trabalho forçado se tornou
(diretores/executores ou a base do edifício social. Assim, a
grandes/pequenos produtores), a classe sociedade antiga se reorganiza a partir
comerciante não toma qualquer parte na do choque de classes, dando lugar ao
produção, apenas conquista sua direção Estado, cujas unidades inferiores já não
subjugando economicamente os são gentílicas, mas territoriais. Tal
produtores. Ela se coloca como o sociedade se define pela brutalidade do
intermediador indispensável entre os poder do dinheiro, que nenhuma
produtores sob o pretexto de poupá-los legislação é capaz de submeter. Ele se
da fadiga e do risco da troca, constitui como uma potência que produz
mostrando-se como um agente crises sistêmicas e as torna naturais ao
socialmente útil. Todavia, simplesmente corpo social.
explora os produtores ao exigir uma
compensação desproporcional por seus
2. Práticas de legitimação da
serviços (na realidade insignificantes), apropriação da produção
levando à rápida concentração de
riquezas e influência social em suas mãos, Com o surgimento de uma ordem cujos
ocupando, “[...] no decurso desse período antagonismos sociais não só são

19 ENGELS, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, p. 187.


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irreconciliáveis, mas levados a limites desdobramentos disso, dentre os quais as
extremos, consolida-se a divisão de práticas de subjetivação oriundas da
classes sob o domínio do Estado, apropriação da noção de liberdade,
organização esta apta a “resolver” os sendo este o processo social, político e
conflitos entre os grupos antagônicos que econômico que leva a colonização dos
a ordem gentílica não mais conseguia. sujeitos mais longe e de forma mais
Por mais que este regime tenha efetiva, por criar uma aparente
realizado mais coisas que o anterior, ele liberalização.
colocou em movimento os impulsos
humanos mais vis em detrimento de suas Com efeito, o neoliberalismo costuma ser
melhores disposições: a vulgar ambição pensado como uma simples doutrina
pela acumulação de riqueza individual econômica que, restringindo a
como força motriz da produção. O intervenção do Estado nas relações
modelo civilizatório ocidental, ao econômicas do mercado, que devem se
constituir como sua base a exploração de autogerir e regulamentar, leva ao
uma classe por outra, fez com que seu equilíbrio social por meio do exercício da
progresso fosse paradoxal: “Cada liberdade humana. Muitas vezes
benefício para uns é necessariamente um compreendida como uma simples
prejuízo para outros; cada grau de continuação do liberalismo tradicional,
emancipação conseguido por uma classe essa doutrina adota uma espécie de
é um novo elemento de opressão para a “tese antropológica” ou “metafísica” no
outra”. Se na barbárie não havia sentido de que o mercado e as relação
diferença entre direitos e deveres, na econômicas “naturais” seriam capazes de
civilização há um contraste evidente, “[...] equilibrar todos os processos sociais caso
atribuindo-se a uma classe quase todos o Estado não interviesse nesta realidade
os direitos e à outra quase todos os auto evidente. Logo, por mais que o
deveres”.20 neoliberalismo seja conjecturado como
mais uma escola, ele se torna muito mais
Não obstante retrocessos sejam do que isso, pois se arroga a posição de
evidentes, os exploradores se valem uma grade de inteligibilidade de todo o real
série de discursos que identificam, para a atuação estatal e, até mesmo,
retoricamente, seus interesses com os da dos agentes sociais (em um sentido moral,
sociedade, como se o seu progresso profissional, familiar, político),
equivalesse ao da sociedade. A classe analisando apenas a efetividade das
dominante se vê obrigada a encobrir os atuações ou abstenções estatais e
seus males com um manto de caridade, humanas em maximizar a produção pelo
elaborando uma “hipocrisia e no mercado sob o estigma da
convencional” capaz, inclusive, de negar competição, da absoluta individualidade
os seus males. Chega-se a sustentar que e da auto responsabilização. Como será
os opressores o fazem em benefício dos mais bem desenvolvido a seguir, uma
oprimidos e, “[...] se a classe oprimida determinada concepção de liberdade
não o reconhece, e até se rebela, isso, econômica se universaliza, atuando não
além do mais, revela sua mais negra (sic.) apenas de modo repressivo, mas,
ingratidão para com seus benfeitores, os sobretudo, através da produção de
exploradores”.21 Vários são os

20 ENGELS, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, p. 200.


21 ENGELS, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, p. 200.
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subjetividades, o que faz com que este funcionam como manifestações da
processo seja bem mais efetivo.22 verdade, devendo ser respeitadas
incondicionalmente. Ainda que essas leis
O liberalismo clássico se desenvolve a naturais não sejam passíveis de ser
partir do século XVIII baseado no inteiramente apreendidas, caso se tente
pressuposto de que a atuação e a alterá-las, acaba-se por desnaturalizá-
intervenção do governo deveriam ser las.24
limitadas tanto no campo econômico
como no que diz respeito às liberdades Esse discurso opera de modo a legitimar
individuais. Sob esse ponto de vista, o a apropriação e a acumulação de
governo liberal seria limitado por certas riquezas não tanto pelas suas
leis naturais que deveriam determinar as demonstrações teóricas, mas justamente
ações governamentais, sejam elas por tudo o ele se propõe a realizar (ou
políticas ou econômicas. Por meio de deixar de realizar) no âmbito das
técnicas utilitaristas, o governo liberal práticas sociais efetivas. Isso porque ao
objetiva alinhar os interesses individuais formular um ramo científico, com status
ao bem geral segundo as doutrinas do absoluto e que gera efeitos de verdade
direito natural e da dogmática do para além de seu objeto, o liberalismo
laissez-faire, tendo como principais sustenta que eventuais apropriações da
expoentes teóricos autores como Adam produção e acumulações de riquezas por
Smith, no que se refere ao mercado, John uma parcela da população levam, caso
Lock, em relação aos direitos e Jeremy não haja uma intervenção nos processos
Bentham, a respeito dos cálculos econômicos, a conquistas não somente
utilitarista.23 O liberalismo tem como dos ricos, mas de toda a sociedade. Ou
escopo apreender as leis “naturais” que seja, a liberdade econômica de agentes
regem o mercado, a lei da oferta e da econômicos que detém as condições de
demanda e, as relações humanas como possibilidade (o domínio sobre os meios
um todo, visando equilibrar todo o de produção) para usufruir e impor sua
aspecto social. Uma vez que os “liberdade” legitimam sua condição de
parâmetros limitadores propostos pelo não produtor e, ainda, sustentam que se
liberalismo estabelecem a existência de todos trabalharem para que eles
uma lei naturalizada de mercado, tal lei alcancem os seus interesses particulares,
não poderá ser atropelada pois, assim todos irão alcançar um estado de
como quando a natureza é atropelada eudaimonia econômica. Desse modo de se
surgem consequências negativas legitimar a apropriação da produção e
imediatas, o mesmo ocorre com o acumulação de riquezas através da
mercado e sua natureza própria. Tais leis apropriação da noção econômica de

22 Embora exista uma corrente de interpretação da história que tenda a considerar noções
potencialmente universalizantes (capitalismo, liberalismo econômico, relativismo) como “religiosas” –
tomando como exemplo o texto de Benjamin, Capitalismo como religião – Arendt, de forma bastante
coerente, rechaça estes argumentos. Segundo a autora, não se pode tomar uma concepção partindo do
pressuposto de que o que ela mesma afirma enquanto doutrina é uma mentira apara enganar aqueles
que dela discordam. Ou seja, não se pode tomar o comunismo como religião se o próprio comunismo
não se coloca neste local. Em suma, para a pensadora, tal empreitada não só pode levar a
interpretações forçadas de concepções teóricas, como corre o risco de esvaziar a experiência religiosa,
ao torna-la uma forma de ideologia (ARENDT, A dignidade da política). Com isso, parece ser mais
acertado classificar tais doutrinas como metafísicas, uma vez que pressupõem a existência de uma
dimensão que está para além da realidade visível, palpável e terrena, seja esta realidade o mercado,
seja ela uma divindade.
23 DARDOT; LAVAL, A nova razão do mundo, p. 34.
24 FOUCAULT, O nascimento da biopolítica.

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liberdade e da elevação social por meio estatal visando a realização de
do enriquecimento dos “comerciantes” interesses dos não produtores, que se
decorrem consequências, tais como a apropriavam da riqueza e da
promessa não cumprida de equilíbrio produção.26
social e os efeitos opressores disso.
O liberalismo econômico, na medida em
Quanto à promessa de equilíbrio, vale que adota como pressuposto um ideal
ressaltar que após décadas de acerca da realidade (que é o de que as
liberalismo econômico e a consolidação leis e processos econômicos sejam
absoluta da classe expropriadora do deixados livres para a sociedade
trabalho (os comerciantes) por meio da alcançar algo próximo ao que um grego
integração global do mercado, ocorreu chamaria de eudaimonia), carrega em
não o cumprimento da promessa, mas sua sua formulação uma “tese
radical distorção. Segundo um estudo antropológica”, uma concepção
recente da OXFAM Internacional, a essencialista do ser humano. Se as
riqueza acumulada por 1% da relações econômicas são relações entre
população mundial equivale à riqueza os indivíduos numa instância universal
detida pelos outros 99% das pessoas. denominada mercado que, por sua vez,
Além disso, as 62 pessoas mais ricas do possui leis próprias que devem ser
mundo (grupo que sequer chega a ser captadas pelos economistas (que são os
uma fração considerável) detém cerca analistas das leis universais da
de 50% de toda a riqueza. Ainda essa liberdade) de forma objetiva, essas leis
mesma entidade evidenciou que “Nos do mercado, por serem absolutas, devem
Estados Unidos o 1% mais rico acumulou necessariamente ter como pano de fundo
95% do crescimento posterior à crise de o dogma de que os indivíduos se
2009, enquanto os 90% mais pobres se comportam da mesma forma, com o
empobreceram ainda mais”.25 mesmo ânimo e de acordo com os
mesmos padrões.2728
No que diz respeito às condições
opressoras e brutais, sobretudo aquelas O neoliberalismo, por sua vez, não se
levadas a cabo pelo Estado, muitos são apresenta enquanto uma mera
os exemplos, tanto de práticas de poder continuidade do modelo liberal, sendo,
quanto de fatos passados. Pode-se, em verdade, uma nova racionalidade
sinteticamente, analisar o modo como governamental que faz do mercado tanto
todos os aparatos de Estado foram o princípio pelo qual o governo dos
apropriados na América Latina em homens se rege quanto o princípio do
grande parte do século XX para governo de si, desenvolvendo a lógica
viabilizar uma ordem social que buscaria liberal como lógica normativa
tão-somente a maximização dos generalizada que perpassa desde as
processos econômicos pelo aumento da estruturas do Estado até a mais
produção. Ainda que esta, no âmbito do particular subjetividade.29 Muito mais do
Estado Democrático, seja uma função que um conjunto de práticas políticas, de
estatal, o que ocorreu neste contexto foi uma ideologia e de uma nova
uma total apropriação da máquina reconfiguração das relações entre

25 MATOS, Filosofia radical e utopia, p. 111.


26 FOUCAULT, Ditos e escritos VIII.
27 PIZZORNO, Foucault et la conception libérale de l’individu, p. 236.
28 SAFATLE, Circuito dos afetos, pp. 193-200.
29 DARDOT; LAVAL, A nova razão do mundo, p. 68.

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economia e Estado, o neoliberalismo é empresarial de si”. Isso significa que os
uma racionalidade governamental que discursos liberais que a partir do século
modifica todos os aspectos domínio XVIII determinavam que o homem é o que
humano de acordo com uma perspectiva ele realiza, colocando-o em uma posição
bastante específica da economia, de animal simultaneamente produtivo e
fazendo com que toda ação se consumidor, já não são mais os mesmos
transforme em conduta necessariamente que, no século XX, passam a engendrar
econômica, ainda que não diretamente a figura do “sujeito empresarial”, cuja
monetizadas30 O neoliberalismo surge, centralidade se localiza no ideal da
conforme sugere Foucault, a partir de competitividade.33 Se a antiga
duas escolas diferentes: a ordoliberal (ou uniformização disciplinar causava um
Escola de Freiburg), uma reação ao conflito entre a necessidade produtiva
nazismo e ao fascismo cuja ênfase se exigida e o desejo recalcado,
encontrava na propagação da expressando tal sofrimento psíquico em
racionalidade formal do mercado, e a neuroses, regimes de gestão neoliberais
Escola de Chicago, cujo foco foi a realmente eficazes não permitem tais
expansão dos mecanismos neoliberais clivagens, pois expropriam todas as
concretos, sendo a principal distinção motivações que poderiam propiciar
entre o liberalismo e o neoliberalismo a experiências que não pudessem ser lidas
generalização do modelo econômico pela lógica produtiva. Tal expropriação
para além das fronteiras do mercado, foi possível pela socialização da lógica
em um movimento de colonização do econômica de modo que as pulsões não
corpo social por princípios empresariais, passassem pelas clivagens sob a forma
que se tornam uma nova arte de do recalque. Com a lógica empresarial
governar.31 de si, todos os afetos do sujeito são
colonizados e voltados à necessidade de
A necessidade de maximização da produção, pois o se dá gozo no processo
produção ressurge no contexto do produtivo em si.
neoliberalismo, quando não se podia
mais sustentar sua coesão e adesão A absolutização do “livre mercado”,
psicológica pelo recurso à ética do além de ter levado a desigualdades
trabalho. De modo a atender a tal substanciais, coloca problemas como
necessidade, o neoliberalismo foi muito pensar o homem estritamente como um
além de um “[...] simples conjunto de ser individual de “mão-de-obra”, por
condições para a internalização de meio de práticas de subjetivação que
dinâmicas repressivas capazes de levam à perpetuação desse modelo
determinar sujeitos em individualidades expropriatório. A frase “Economics are
rígidas e funcionalizadas, como vemos the method. The object is to change the
nas ‘sanções psicológicas’ da moralidade heart and soul”, dita por Margaret
própria ao espírito protestante do Thatcher, apresenta de forma bastante
capitalismo”,32 formulando-se num clara a profundidade do neoliberalismo
modelo generalizável e introjetável: o no horizonte moderno.34
dispositivo disciplinar do “ideal

30 BROWN, Undoing the demos, p. 31.


31 BROWN, Undoing the demos, p. 59-61.
32 SAFATLE, Circuito dos afetos, p. 197.
33 DARDOT; LAVAL, A nova razão do mundo, p. 322.
34 SAFATLE, Circuito dos afetos, p. 196.

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Este novo modelo de acumulação para a afetiva dos meios de produção,
extração absoluta da mais-valia pela acarreando a fusão dos repertórios de
internalização do “ideal empresarial de mercado com a linguagem do eu.
si” intensificou o desempenho no ritmo Recursos psicológicos de uma
exigido pelas relações liberais “engenharia motivacional” (cooperação,
hegemônicas ao operar a transformação comunicação, reconhecimento) se
da produção em gozo. Foi fundamental tornaram dispositivos de otimização
ao neoliberalismo a extensão dos produtiva. Além disso, tal processo é
valores de mercado à política, fazendo impulsionado pelo medo, pois, enquanto
com que a forma-empresa fosse instância psíquica de auto-observação,
generalizada no corpo social de modo faz com que o temor de não
que até os próprios indivíduos passassem pertencimento ao conjunto humano
a se compreender como empresas. Isso devido ao fracasso como sujeito
significa que, muito além de inserir os produtivo inviabilize a resistência à
valores do mercado no conteúdo da constituição psíquica. Ou seja, àqueles
democracia, o neoliberalismo subverte as que possam resistir, há a circulação
práticas, os princípios, a cultura, os incessante do risco da “morte social”,
sujeitos e as instituições da democracia pois aos Estados e indivíduos que não se
compreendida como governo no povo, submetem ao processo de transformação
transformando-os em elementos empresarial resta a ameaça de falência,
econômicos que devem se comportar a crise fiscal, crédito negado, queda na
fim de maximizar seu status competitivo avaliação e, até mesmo, perda de
e seu valor futuro. Consequentemente, legitimidade.37 Ainda, esse afeto se
indivíduos e Estados se tornam projetos funda em formas de medo que se
de portfólio e gerenciamento orientados reproduzem no interior da sociedade,
pela perspectiva de investimento dentro como a incessante insegurança de um
de um projeto econômico que substitui o estado constante de guerra interna,
ethos político.35 Os sujeitos passam a se como se não houvesse distinção entre
definir e explicar “racionalmente” pela guerra e paz.38
da lógica de mercado, compreendendo
tudo aquilo que os afeta como um No neoliberalismo os sujeitos racionais
trabalho sobre si visando sua otimização são aqueles capazes de organizar suas
produtiva, tornando possível a ações avaliando tanto sua produção,
racionalização empresarial do desejo, manutenção de seus bens e fruição de
fundamento para a internalização do prazeres privados quanto a ampliação
controle baseado na autoavaliação disso. São racionais pois colocam todo o
constante por critérios empresariais.36 seu mundo a serviço da utilidade
produtiva. O trabalho, mais que algo
A “psicologização” das relações de expropriável, é um processo de
trabalho, fundamental à generalização reconhecimento e constituição de
do ideal empresarial de si, criou uma subjetividades racionais. Para além da
zona intermediária entre as técnicas de compreensão do trabalho como
gestão e os regimes de intervenção alienação, a constituição neoliberal
terapêutica, levando a uma mobilização elimina as formas de estranhamento

35 BROWN, Undoing the demos.


36 SAFATLE, Circuito dos afetos.
37 BROWN, Undoing the demos.
38 SAFATLE, Circuito dos afetos.

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entre o sujeito produtivo e o objeto A própria liberdade política poderia ser
produzido, fazendo com que o sujeito se colocada como uma decorrência da
realize naquilo que produz, de modo que liberdade econômica, ou seja, se esta for
o trabalho se torna um dispositivo o assegurada, necessariamente aquela
moral que alcança a aparência de será alcançada. Sendo o capitalismo
autogoverno, pois por meio dele se competitivo a organização econômica
aprende a impor leis à vontade que que viabiliza a liberdade econômica,
serão reconhecidas pelo próprio sujeito isso significa que ela produz,
como sua expressão, aprendendo a necessariamente, a liberdade política,
relativizar exigências imediatas de na medida em que tal modelo seria
autossatisfação. Dessa forma, aqueles capaz de separar (não apenas em
que são capazes de trabalhar são vistos abstrato, mas no real) o poder
como autônomos, material e moralmente, econômico do poder político. Nos termos
pois são aptos a impor uma lei a si de Friedman, existem fortes evidências
mesmos que expressa “sua” própria históricas que demonstram que a relação
vontade. Ainda que a relação entre entre liberdade política e livre mercado.
trabalho e autoimposição de uma lei à Uma vez que o Ocidente vive em um
vontade na formação moral produtiva já estado de liberdade, as pessoas tendem
fosse explorada liberalismo, a a esquecer o quão limitado seria o
reformulação faz do trabalho não um espaço de tempo e a parte do mundo
abrir mão do gozo imediato para onde há liberdade política, sendo a
usufruir dos bens materiais tirania, a servidão e a miséria o estado
posteriormente, mas uma forma de gozo típico da humanidade. A liberdade
decorrente da aparente liberdade de política só emerge na
produzir como obrigação social.39 contemporaneidade (assim como
emergiu na era clássica e em Roma) e
Conforme Matos: efetiva a potencialidade liberal humana
Toda a discussão sobre o sistema político- com o mercado livre e o desenvolvimento
jurídico-econômico atual levada a cabo das instituições capitalistas.
dentro desse sistema e mediante seus
próprios instrumentos é não apenas inútil, mas Foucault expõe que é como se o ser
perigosa. Em especial, as supostas reformas e
melhorias que o capitalismo proporcionaria humano fosse marcado por natureza por
no contexto do trabalho não são mais do que uma essência de liberdade econômica, o
novas formas de dominação. Um exemplo
extremo se relaciona à reivindicação de mais
que é o elemento que deixa patente que
tempo livre e horas de descanso para os o neoliberalismo vai muito além de uma
trabalhadores, o que vinha antes da crise de mera doutrina ou corrente econômica. É
2008, inclusive com a efetiva adoção de
políticas de diminuição das horas diárias e como se a “natureza” tivesse querido que
semanais de labor. Mas para que servem o ser humano “[...] fosse entregue à
essas horas livres? Em uma sociedade atividade econômica que é a da
dominada pelo espetáculo e pela
especulação, a que se entregarão os produção e da troca. [...] a natureza de
trabalhadores em seus momentos de folga, certa forma lhe ditou por baixo do pano,
senão à contínua autopromoção dessa mesma
sociedade? Mais horas livres significa mais de certa forma deixou impressas nas
servidão [...].40 disposições das coisas, da geografia, do
clima, etc”.41

39 SAFATLE, Circuito dos afetos.


40 MATOS, Filosofia radical e utopia, p. 115.
41 FOUCAULT, O nascimento da biopolítica, pp.78-80.

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um governo preocupado com o bem-
3. Considerações finais: o estar social seria a de proporcionar aos
“avesso” das democracias seus cidadãos condições de
modernas possibilidade para que eles pudessem
Morais e Silva42 analisam, a partir das ser livres em termos substanciais, e não
reflexões foucaultianas sobre as ditas apenas em termos formais. Assim,
“democracias liberais”, aqui proporcionar certos tipos de “assistência”
compreendidas em seu sentido político e pela via estatal não seria, propriamente,
não enquanto modelo econômico, uma mudança de paradigma em relação
algumas das implicações e paradoxos à forma como o ser humano é
que se instauram a partir da compreendido “metafisicamente”, mas
naturalização das práticas legitimadoras de tentar atenuar alguns dos problemas
de um modelo neoliberal, sendo a que esta metafísica econômica impõe.
principal delas limitações radicais a Neste sentido, o objetivo das
qualquer tipo de liberdade que não seja intervenções estatais na “ordem
a econômica. Com efeito, explicam os econômica” ou a “constitucionalização”
autores que o liberalismo político, para de uma “ordem social”, mesmo que
que se legitime, cria elementos que vão tenham sido conquistas importantes,
muito além de uma simples ideologia podem ser situadas como uma forma de
econômica. Também como este texto intervenção visando não intervir mais, ou
tentou evidenciar, o neoliberalismo seja, intervir visando, tão somente,
acaba por se constituir como uma forma proporcionar mais liberdade a todos.
de metafísica, que coloniza Logo, o neoliberalismo enquanto
subjetividades para que consiga tornar o concepção metafísica se fez presente
modelo de espoliação (descrito e mesmo nas metamorfoses que o Estado
detalhado por Engels) não só aceitável, de Direito sofreu.43
mas como o único modelo defensável
Justamente por não ser o objetivo do
possível. Por conseguinte, o
neoliberalismo uma limitação das ações
neoliberalismo se transforma em um ente
de governo de modo a promover a
produtor de exercícios de poder que não
liberdade e a essência humana, mas um
apenas restringe, mas que produz
governar mais profundo e coeso das
subjetividades, fomenta uma razão de
sociedades modernas, Opitz e Kramann
estado moderna baseada em uma
analisam a questão do governo “liberal”
artificialidade soberana laica que
pelas práticas locais de segurança,
transfere a onipresença do Deus
expondo que o neoliberalismo, longe de
medieval para os pressupostos liberais e
propiciar mais liberdade, a subverte. As
teorias soberanas.
análises apresentadas pelos autores se
Necessário frisar que mesmo que noções dão no sentido de evidenciar as formas
e dispositivos como o “Estado Social” liberais de governo que, ao contrário do
tenham se interposto em meio às que se poderia colocar, restringem a
discussões levantadas, ainda assim a liberdade sob o argumento de aumentá-
preocupação estaria centrada na la, legitimando-se por meio de um
questão de uma essência privada e discurso que defende a natureza liberal
econômica do ser humano. A função de

42 MORAIS SILVA, O liberalismo econômico e as práticas de segurança, pp. 221-242.


43 MORAIS, SILVA, O liberalismo econômico e as práticas de segurança, p. 221-242.
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do homem. Para Opitz44, o Estado liberalismo burguês tenha sido possível
Liberal, e o neoliberal, assume o mesmo no nível das instituições, foi preciso, no
papel das teorias soberanas de outrora, nível do que chamo os micropoderes, um
sendo uma doutrina que, buscando se investimento muito denso nos indivíduos,
colocar como uma metafísica, intenta foi preciso organizar a grade dos corpos
legitimar certas práticas de governo que, e dos comportamentos. A disciplina é o
mesmo em total desacordo com o avesso da democracia”.47 Por essa
princípio norteador das instituições razão, Foucault conclui que, quanto mais
democráticas liberais (a liberdade), democracia há, mais disciplina há.
estão paradoxalmente a serviço delas.45
Assim, o poder disciplinar se articula com
Em um espaço de governo liberal em que as formas legais abstratas de uma forma
os princípios universais ditam que os tão refinada que, por mais que elas
indivíduos devem exercer sua liberdade tenham um modo de operar
frente ao Estado, que deve respeitá-la, aparentemente conflitante (pois uma
emergem uma série de discursos que produz corpos dóceis e a outra reprime),
chamam a atenção para uma essas realidades coexistem sem se
necessidade premente de segurança anularem, pois atuam em âmbitos
para que os indivíduos possam exercer a diferentes: a teoria jurídica legalista
sua liberdade, uma vez que sem atua em níveis formais, de modo a
segurança, a essência humana não conferir legitimidade às práticas
poderia encontrar um espaço para se punitivas “humanistas”, ao passo que o
manifestar plenamente. Opitz e poder disciplinar, ao impor vigilância
Krasmann46 citam vários exemplos: em perpétua, sanções normalizadoras e
2006 foi colocada em discussão uma saberes acerca do corpo, impõe práticas
proposta legislativa na Alemanha, nada humanistas, legitimadas pela
permitindo à força aérea abater soberania igualitária. Assim, as
aeronaves com civis a bordo, desde que modalidades de exercício de poder se
houvesse ameaça terrorista; o diretor do complementam e, ainda que exerçam
Escritório Federal Alemão para Proteção práticas de poder aparentemente
da Constituição, Heinz Fromm, declarou opostas, são capazes de coexistir sem
que informações advindas de fontes conflitarem. Este é uma das faces do
exteriores, mesmo extraídas mediante ideal empresarial de si como modelo de
tortura, devem ser utilizadas; prisões subjetividade que não apenas reprime,
americanas que encarceram e torturam mas produz subjetividades no modelo
sujeitos que ameaçam a segurança liberal, acoplando ao seu modo de
nacional. Emerge, em meio a este modelo funcionamento uma série de dispositivos
de “democracia liberal”, todo um que, por sua vez, tornarão viáveis o
aparado jurídico que é ajustado em emprego de práticas neoliberais.
torno do conjunto de práticas
disciplinares, direcionado principalmente Discursos de segurança apontam para
pela classe dominante e uma ilimitação e multiplicação das
democraticamente representada (a tecnologias de governo populacional,
burguesia). Assim, “Para que certo acarretando, com isso, uma erosão de

44 OPITZ, Govern unlimited.


45 MORAIS, SILVA, O liberalismo econômico e as práticas de segurança, p. 221-242.
46 OPITZ, Govern unlimited, p. 96.
47 FOUCAULT, Ditos e escritos VIII, pp. 38-39.

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110
distinções como legal/ilegal, instância, inverte-se dentro da máquina
privado/público, civil/militar. Assim, em soberana.
nome da proteção da liberdade
(atributo universal), inúmeras práticas
locais que a contradizem são Referências
empregadas. Logo, por mais que a
ADVERSE, Helton. Liberdade e
democracia liberal seja afetada por um
governamentalidade: Foucault e a
profundo paradoxo, como uma prática
genealogia do liberalismo. Revista
de governo que limita e possibilita o
Estudos Filosóficos, nº 12, 2014.
governo, a tese de Foucault é a de que
Disponível em
o neoliberalismo é uma prática refletida
http://www.ufsj.edu.br/portal2-
de governo que, como tal, governa a
repositorio/File/revistaestudosfilosoficos
população e não possibilita um espaço
/art2%20rev12.pdf. Acesso em 10 de
de não intervenção aos indivíduos em
agosto de 2014.
que eles possam se realizar enquanto
seres dignos e absolutamente iguais48 49. ARENDT, Hannah. A dignidade da
Em outras palavras, práticas de política. Trad. Helena Martins, Frida
segurança de governos liberais são o Coelho, Antonio Abranches, César
avesso da democracia, pois, ainda que Almeida, Claudia Drucker e Fernando
seus mecanismos sejam capazes de Rodrigues. Organização, introdução e
coexistir com os ideais modernos revisão técnica de Antonio Abranches.
democráticos (pois atuam em instâncias Rio de Janeiro: Editora Relume Dumará,
distintas), direitos e liberdades 2002.
fundamentais e individuais são BRÖCKLING, Ulrich, KRASMANN,
deturpados, visto que operam Susanne, LEMKE, Thomas.
mecanismos contrários ao direito Governmentality: current issues and future
igualitário50. challenges. Nova Iorque: Routledge,
Assim, se as práticas de segurança 2011.
intervêm, justificando-se no interesse de BROWN, Wendy, Undoing the demos:
possibilitar a liberdade, a neoliberalism’s stealth revolution. New
governamentalidade responderá a York: Zone Books, 2017.
questões como: quais práticas de
CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o
liberdade são desejáveis? Quais são as
estado. Trad. Theo Santiago. São Paulo:
consequências negativas possíveis? Há
Ubu, 2017.
medidas interventivas viáveis? Quais são
as fontes de perigo em potencial? Em que DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A
forma e até que ponto o perigo pode ser nova razão do mundo: ensaio sobre a
tolerado? Como ele pode ser sociedade neoliberal. Trad. Mariana
neutralizado? Vale a pena o custo da Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016.
neutralização? Na medida em que os DELEUZE, Gilles. Qu’est-ce qu’un
dispositivos de segurança são aliáveis à dispositive? In: Michel Foucault
expansão de modos iliberais de philosophe: Rencontre Internationale,
governo, a segurança, em última

48 ADVERSE, Liberdade e Governamentalidade.


49 PIZZORNO, Foucault et la conception libérale de l’individu.
50 MONOD, Foucault.

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112
(ARTIGOS}

Direito, violência e polícia:


divagações e radicalizações sobre
a catástrofe policial-penal
brasileira
Law, violence and police:
wanderings and radicalizations on the brazilian police-penal catastrophe

Fernando Nogueira Martins Júnior1

Resumo: O artigo tem como campo de Palavras-chave: polícia; direito;


estudo a criminologia, em sua interface violência; política.
com os demais saberes penais (direito
penal, processo penal) e com a política Abstract: The article has criminology as
(criminal e geral). Ele busca explorar o its field, in its interface with the other
tema do Estado Policial-Penal, seus criminal knowledges (criminal law,
cantos escuros e suas conexões com criminal procedure) and with politics
outros elementos, em especial aqueles (criminal and general). The article seeks
vinculados ao sistema penal, por meios to explore the issue of the Penal-Police
de divagações e radicalizações State, its dark corners and its conexions
analíticas, sucintas e fragmentárias. Traz- with other elements, especially those
se um breve diagnóstico da questão linked to the criminal justice system, by
policial-penal, para então se analisar a wanderings and analytical, succinct and
pena enquanto base para a ação fragmentary radicalizations. It is brought
policial e a operatividade do sistema a brief diagnosis of the penal-police
penal. Discorre-se sobre a violência como question, in order to analyze the criminal
estruturante do sistema policial-penal (e penalty as basis to police action and to
não uma mera desregulação acidental), the criminal justice system’s
a irracionalidade da pena enquanto operationality. It is discussed the violence
instituto e prática, a funcionalidade da as structuring element of the criminal
coisificação do humano para o exercício justice system (and not a mere accidental
da violência penal, o substrato arbitrário deregulation), the irrationality of the
e brutal de todo e qualquer direito e, criminal penalty as an institution and a
finalmente, alguns pontos cegos da practice, the functionality of the
discussão sobre polícia e sistema penal. reification of the human for the exercising
Nas (in)conclusões, apontam-se alguns of penal violence, the arbitrary and
Este é um artigo publicado em
acesso aberto (Open Access) sob caminhos de pesquisa a serem tomados brutal substract of every and any law
a licença Creative Commons
Attribution, que permite uso, futuramente. and right and, finally, some blind spots
distribuição e reprodução em regarding the discussion about police
qualquer meio, sem restrições
desde que sem fins comerciais e
que o trabalho original seja
corretamente citado. 1 Doutor em Ciências Criminais pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Adjunto de Direito
Penal, Direito Processual Penal e Prática Jurídica Real no Departamento de Direito – Faculdade de
Ciências Sociais Aplicadas – Universidade Federal de Lavras. Advogado criminalista. E-mail:
fernando.martins@ufla.br
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and criminal justice system. On the barrada” – por enquanto. Para tanto, a
(in)conclusions, it is pointed some argumentação se dá por meio de
reasearch paths to be taken in the future. fragmentos discursivos (prudentemente
tomados por “divagações”) e por
Keywords: police; law; violence; politics. debates que buscam ir mais fundo (ainda
que de forma sucinta), até a raiz –
“radicalizações”, por assim dizer.
Introdução
Eis aí a justificativa do epíteto de
As discussões críticas acerca do sistema “exploratória” para as considerações
penal – e do exercício do poder de aqui expostas. Trilharemos, um tanto
polícia em específico – na cena brasileira erraticamente, vários caminhos que
reiteradamente costumam se apresentar possam nos elucidar algo sobre a
de duas maneiras: ou a justa denúncia em catástrofe policial-penal que vivemos – e
enfrentamento (com maior ou menor sobre como poderíamos pensar sua
respaldo acadêmico),1 ou as superação. Cada tópico, construído sob o
circunvoluções atuariais e tecnocráticas alicerce de pesquisas, indagações e
sobre uma dada busca por eficiência no reflexões teórico-práticas sobre vários
“combate à criminalidade”.2 temas, são em si pontos a serem
desenvolvidos em trabalhos posteriores,
Ambas as abordagens se furtam de se consubstanciando desde já um
aproximar de críticas mais profundas, se fragmentário e multívoco protoprograma
perpassam por uma análise estrutural da de pesquisa que, passando ao largo das
própria dinâmica policial-penal, da insuficientes pautas sumamente pós-
vigilância e da ordem como fundações modernas das discussões acadêmicas,
do Estado contemporâneo, ou do modo possam tecer um quadro mais preciso e
de sociabilidade atual. E usamos o
objetivo na catástrofe policial-penal em
epíteto “policial-penal” pois entendemos que vivemos.
que o Estado neofascista contemporâneo
tem a repressão como um dos seus eixos
principais e, por sua vez, a polícia é o 1. Diagnose – ou “terra
“eixo principal do eixo principal”: é arrasada”
através do exercício do poder de polícia Em maio de 2006, em São Paulo, entre
que a abissal violência empregada pelo os dias 12 e 20, após uma onda de
Estado brasileiro cumpre seus desígnios. ataques do PCC,3 policiais e milicianos
É este artigo para avançar na supostamente mandaram um recado a
exploração de tais elementos, buscando seus familiares, a amigos, a conhecidos
a articulação transdisciplinar para “de boa índole”, e a outros lugares e
sustentar algo de lineamentos para uma pessoas: “ninguém sai de casa ou do
crítica mais avançada do estado de escritório: hoje o bicho vai pegar.”
coisas. Notar-se-á que a tal questão, Durante algumas noites centenas de
conforme a argumentação aqui pessoas foram executadas no meio da
apresentada, aparece em situação- rua, elevando a taxa normal de
limite, apresentando uma “aproximação homicídios prevista para o período a

1 KUCINSKI et al. Bala perdida.


2 LIMA, Revista Época.
3 Primeiro Comando da Capital, dita “organização criminosa” brasileira, de base paulista, mas cada

vez mais nacionalizada – e internacionalizada. Sobre a referida facção, cf. FELTRAN, Irmãos.
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índices exorbitantes.4 A grandessíssima como “indigente” no Instituto Médico
maioria estava apenas no lugar errado, Legal.
e na hora errada: muitos estavam
trabalhando no período noturno. Foi A resposta oficial, repetida o tempo
amplamente conhecido no Brasil e no todo: “isso foi um caso isolado. A
mundo que os principais suspeitos do Corregedoria vai cuidar do caso. O
massacre eram policiais. O PCC em seus Ministério Público e o Poder Judiciário
ataques matou 59 (cinquenta e nove) vão processar e eventualmente punir o
“alvos militares” (pessoal envolvido na culpado. Isso foi um caso isolado.
segurança pública do Estado de SP). Os Circulando... Circulando... Não há nada
tais executores (policiais? Com a ajuda a ver aqui...”
de civis envolvidos em grupos de
extermínio?) mataram 505 (quinhentos e 1.1. Do discurso da regulação
cinco) pessoas.5 Todas estas pessoas O “discurso da regulação” (“a regra não
atacadas indiscriminadamente – ou seja, é essa, é só uma desregulação
eram “alvos civis”. Em 117 (cento e contingente, temporária, algo fora do
dezessete casos) surgiram provas cabais normal, mas que será sanado, e tudo
de execução sumária.6 Na imensa ficará bem”), típico da posição liberal-
maioria dos demais casos os indícios de conservadora brasileira, é um discurso
participação de membros da polícia ideológico por excelência: ele tenta
paulista eram sólidos. Nenhum dos casos permanentemente mostrar a necessidade
foi devidamente apurado. como contingência, o permanente como
Além dos casos que não aparecem na efêmero, o objetivo como falha.
mídia, mas que são conhecidos por Talvez seja hora de (re)acionarmos a
advogados criminalistas e por militantes chave de interpretação já usada por
em Direitos Humanos de todo o Brasil. Michel Foucault e tantos outros7 para
Além dos casos de mesmo tipo trazidos à reconhecermos de uma vez por todas
luz pela mídia que são veiculados que a violência do policiamento ostensivo
inúmeras vezes. no Brasil é institucionalizada – não é erro,
não é falha, não é contingência: os meios
Além dos casos que não chegam ao concretos para a consecução dos
conhecimento de ninguém, e cujo único objetivos reais do sistema repressivo de
rastro que mostram é um corpo rotulado controle social verticalizado e
militarizado no Brasil passa pelo livre uso

4 “O número estimado de mortos por arma de fogo para 2006, continua o estudo, tomando como
parâmetro o ano de 2005, seria de 176 óbitos para o período de dez dias. No entanto, se fosse
considerada a tendência de redução do número de mortos, a estimativa seria de 135 mortos.
Considerando o número de mortos em maio de 2006, o estudo [Análise dos impactos dos ataques do PCC
em São Paulo em maio de 2006, datado de 2008] conclui que ‘esse número é três a quatro vezes superior
ao esperado em função dos anos anteriores’”. CENTRO DE ANTROPOLOGIA E ARQUEOLOGIA
FORENSE DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO, Violência de Estado no Brasil, p. 68.
5 Subtraindo-se deste número o quantum de vítimas fatais de arma de fogo esperado para o período –

176 – pode-se afirmar com alguma segurança que cerca de 329 (trezentos e vinte e nove) pessoas
foram alvos da sanha assassina que tomou São Paulo naquele período.
6 Para todos os dados, cf. o capítulo “Análise Quantitativa dos Crimes de Maio” de CENTRO DE

ANTROPOLOGIA E ARQUEOLOGIA FORENSE DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO, Violência de


Estado no Brasil.
7 Cf. FOUCAULT, Vigiar e punir. O autor usa essa chave interpretativa para pensar principalmente o

sistema prisional. Para o sistema penal como um todo e pelo viés materialista histórico-dialético, cf.
SANTOS, A criminologia radical.
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de violências várias e de força letal por nas ruas vigiando condutas; é ela que
parte principalmente da Polícia Militar segrega in loco os grupos sociais mais
contra grupos sociais bem definidos – vulneráveis através do tratamento
ainda que a violência estatal espirre vez violento, humilhante e ininterrupto de
ou outra para fora do âmbito destes largos contingentes de pessoas nos
grupos sociais. aglomerados, favelas e bairros pobres
de todo tipo; é ela que seleciona quem
Em outras palavras: o projeto de controle entra no processo de criminalização, e
social no Brasil seria em suma o controle que será levado ou a seus ulteriores
social hiperrepressivo das camadas estágios formais pelas outras
miseráveis ou mais vulneráveis supracitadas instituições (Judiciário, MP,
socioeconomicamente, que Sistema Penitenciário…) ou ao momento
necessariamente busca o de aplicação, direta e sem mediações
encarceramento em massa (onde a processuais, da sanção penal mais dura:
tortura, seja no momento da apreensão, a pena de morte imposta
seja dentro do cárcere, é onipresente)8 e, extrajudicialmente (em bom português:
nos casos mais recalcitrantes, a execução execução sumária).
extrajudicial (em bom português: o
assassinato de cidadãos por agentes do As agências que exercem o poder punitivo
são as policiais [...]. As outras agências as
Estado).9 influenciam, as limitam ou as estimulam, mas
não exercem diretamente o poder punitivo,
ainda que seus integrantes se iludam
1.2. Com Zaffaroni: por uma visão acreditando que o fazem. Não é o juiz que
realista da operatividade do sistema exerce o poder punitivo, pois ele se limita a
penal ordenar e, na prática, os executivos decidem
se cumprem ou não a ordem: sabemos que
Eugenio Raul Zaffaroni, penalista e uma ordem pode ser cumprida com relutância
criminólogo argentino, afirma algo a e formalmente, ou podem empenhar-se a
cumpri-la.10
nosso ver importante para um
entendimento mais profundo da questão Portanto urge ao analista do sistema
penal: o verdadeiro poder em um penal se voltar em profundidade para a
sistema penal não é o Poder Judiciário, Polícia Militar, para entendê-la,
com sua canhestra ritualística de denunciar seus vícios e oferecer
celebração do poder do Estado, nem é o pontuações e construções que possam
Ministério Público e a assunção de seu transformar a operatividade do nosso
mister apenas pelo viés de Acusação – sistema penal em algo mais alinhado às
esquecendo de sua função como custos aspirações democráticas plenas – o que,
legis (fiscal da lei), nem o massivo em última instância, poderia levar a sua
complexo carcerário. O verdadeiro completa extinção nos termos como o
poder num sistema penal é a polícia, em conhecemos.
especial a ostensiva, pois é ela que está

8 TV PUC SÃO PAULO, Encarceramento em massa.


9 ZACCONE, Indignos de vida.
10 ZAFFARONI, A palavra dos mortos, p. 420. Ainda sobre o tema: “este exercício de poder [o poder

configurador das polícias, agências não judiciais do sistema penal] em nossa região marginal [a América
Latina] é enorme. As agências não judiciais de nossos sistemas penais encontram-se militarizadas e a
burocratização das agências judiciais permite que operem com inteira discricionariedade. Como regra
geral, os órgãos judiciais preferem não entrar em conflito com as agências não judiciais, uma vez que
as reconhecem como mais poderosas. Além disso, esses conflitos implicam, em geral, enfrentamentos com
outros setores – particularmente com o político – que os órgãos judiciais preferem evitar”. ZAFFARONI,
Em busca das penas perdidas, p. 126.
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1.3. Auto de resistência e etc.: a inviolavelmente uma situação fática que,
blindagem institucional da polícia por vezes, é fictícia.12
militar
Caco Barcellos, em seu livro “Rota 66 – Mas não é só isso que existe no aparato
a história da polícia que mata”,11 mostra de blindagem policial.
como o documento chamado “auto de Seja o Judiciário, sejam outras instâncias
resistência” se presta a resolver todo e de investigação e processamento levam
qualquer imbróglio de sangue no qual sempre com o máximo de peso a palavra
um policial se envolve. O criminoso atirou do policial. É a chamada “fé pública”
em você e você revidou? Auto de elevada à enésima potência – ao ponto
Resistência, e tá tudo certo. Você de se tomar, corriqueira e
espancou sem motivo alguém, apenas nacionalmente, a palavra de um policial
pelo fato deste ter questionado num caso onde ele participou da
verbalmente a sua ação como policial? apreensão de alguém como se fosse a
Auto de Resistência, e tá tudo certo. Você palavra de uma testemunha – ou seja, de
torturou alguém para conseguir uma pessoa desinteressada na
informações? Auto de Resistência, e tá condenação do réu que ele mesmo
tudo certo. Você resolveu executar apreendeu. Ora, se o policial apreendeu
alguém, porque ele se atreveu a trocar um cidadão, ele tem o maior interesse na
tiros com você, ou porque ele não te deu condenação deste cidadão: uma
a parte da propina prometida, ou absolvição é um atestado de que ele
porque você não foi com a cara dele, ou prendeu a pessoa errada (prendeu um
porque você estava entediado e não inocente) ou prendeu alguém de forma
tinha mais o que fazer? Auto de tão frágil faticamente, que nem o mínimo
Resistência, e tá tudo certo. de provas para a condenação surgiu no
O peso do Auto de Resistência como processo. Portanto ele deveria ser ouvido
exonerador da responsabilidade do em juízo como alguém diretamente
policial é impactante: a partir do interessado no caso, ou seja, como um
momento em que se preenche tal informante. Deixa-se a simples lógica de
documento, nem mesmo um laudo pericial lado para se atender a intentos político-
mostrando lesões graves na vítima é criminais que aviltam o devido processo
levado, de facto et de iure, em conta; o legal.13
Auto tem o condão de firmar (quase)

11 BARCELLOS, Rota 66. Caco Barcellos teve que sair do país após ter publicado este livro, ameaçado
de morte que estava por membros da PM de São Paulo.
12 ZACCONE, Indignos de vida. Uma medida para fins de enfrentar a querela dos Autos de resistência

foi o que fez a Secretaria Estadual de Segurança Pública de São Paulo no dia 08/01/2013: proibiu-
se a lavratura de Autos de Resistência, renomeando as situações para “morte decorrente de intervenção
policial” e “lesão corporal decorrente de intervenção policial”. Ainda, proibiu-se que policiais façam o
socorro de vítimas, obrigando o agente a chamar o SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de
Emergência): a justificativa de “prestação de socorro” era rotineiramente usada por policiais para retirar
cadáveres de pessoas assassinadas, desfigurando assim a cena do crime e dificultando as investigações
para se determinar quem causou a morte e como ela se deu. Cf. SÃO PAULO, Diário Oficial do Estado
de São Paulo.
13 “A principal consequência dessa ‘presunção de veracidade’ se dá na dimensão probatória. Em razão

de se reconhecer como verdadeiras as declarações dos agentes públicos (presunção relativa) têm-se o
fenômeno da inversão do ônus probatório: cabe a quem alegar que a declaração não é verdadeira,
ou apresentar versão contrária, comprovar a mentira. No processo penal, portanto, se os depoimentos
dos policiais confirmam a imputação veiculada na denúncia (e, não raro, a acusação foi formulada com
base exclusivamente nas declarações prestadas por essas mesmas pessoas em sede policial), não há
alternativa à defesa, a quem caberá provar a inocência do réu. Não há dúvida possível diante do teor
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Além do que, quem investiga a PM é ela torturas físicas e psicológicas etc. Fazem
mesma, através de IPMs (Inquéritos como se faz no Exército e nas demais
Policial-Militares).14 São os próprios Forças Armadas.
policiais que investigam seus amigos, seus
colegas, seus parceiros, seus Pergunta-se: para quê?
subordinados. O corporativismo no A hierarquia e a disciplina, pilares da
desenvolvimento de IPMs, para quem vida militar, são compreensíveis nas
tem contato com tais peças, é notório em Forças Armadas: elas são treinadas para
muitíssimos casos. atuarem em estados de extrema
emergência e de extrema “anomia”,
1.4. A militarização do policiamento quando uma Força Armada estrangeira
ostensivo invade o seu país, num verdadeiro ato de
No “Grito dos Excluídos” – manifestação guerra, onde as leis internacionais que
dos movimentos sociais no dia 07 de regulam as relações interestatais e as leis
setembro –, em sua edição de 2010 em intraestatais que regem o cotidiano das
Belo Horizonte, o autor deste texto, pessoas já não surtem mais efeito
jovem advogado popular criminalista, considerável.
notou algo que era e é patente em tais
Nestes termos pode-se entender um
situações (quais sejam, aquelas onde há
corpo armado e treinado para agir
o emprego de forças policiais em
prontamente, sem questionamentos
manifestações e protestos políticos): em
maiores, com o máximo de rigidez
meio a crianças, jovens e idosos
volitiva e de violência para rechaçar a
presentes na manifestação, estavam
ameaça externa, o inimigo que invade o
soldados da ROTAM15 com escopetas
país.16
gigantescas em punho, cara fechada, e
atitude hostil para que chegasse perto Seria esta a mesma lógica a ser
deles. Por que tanta hostilidade? Ali empregada na segurança pública? O
havia algum inimigo? policial deveria ser treinado para lidar
com cidadãos, em relações interpessoais
Pois havia. Por mais que não houvesse.
de alta complexidade social e carga
No treinamento dos oficiais da PM existe emocional, as quais podem chegar a
algo chamado “acampamento”, onde o situações atritivas, agressivas. O policial
policial segue para uma área rural, deveria saber tratar tais crises com o
dorme em barraca, rasteja na lama, máximo de tato. Mesmo se tais crises são
corre cantando canções militares, sofre tão sérias quanto um crime. Entre

das declarações dessas ‘testemunhas acreditadas’. Presumir a veracidade das declarações de uma
testemunha (aquela comprometida, em linha de princípio, com os fins da persecução penal) significa
conferir a esse relato um valor superior aos demais. Correlata a essa presunção de veracidade há,
ainda que velada, uma presunção de desconfiança em relação às demais testemunhas”. CASARA,
Mitologia processual penal, p. 150-151.
14 Conforme art. 9º ss do Código de Processo Penal Militar. A Polícia Civil costuma ter atribuição para

a investigação dos mesmos crimes, notadamente os mais graves (como os homicídios cometidos por PMs),
e por isso por vezes vemos fatos sendo investigados ao mesmo tempo pela polícia civil e pela polícia
militar.
15 Rondas Táticas Metropolitanas – um batalhão especial da PMMG, notório, como a ROTA paulista,

pela imensa brutalidade e letalidade.


16 E é exatamente esta característica da atividade militar que faz com que tais instituições não possam,

em nenhuma circunstância, ser empregadas em atividades de policiamento ou de segurança pública lato


sensu. Quando tal se dá, as mais intensas violências contra civis são consequência necessária. Para mais,
cf. SOARES, Desmilitarizar.
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cidadãos, as relações devem ser questão social é caso de polícia”.18 E
pautadas pela civilidade constitucional, “pau no lombo do cidadão” – com o
não pela dureza antidialógica da perdão do coloquialismo.
abordagem belicista militar.
Somado a isso vem a Doutrina de
Infelizmente isto não se verifica: a polícia Segurança Nacional da época da
é uma coisa, o corpo de cidadãos é Ditadura Militar de 64, de trágica
outra. Mesmo quem é entusiasta das memória, que destruiu qualquer resquício
ações da polícia nunca se porta como se do marco civil do policiamento
tais agentes fossem cidadãos como ele. ostensivo,19 e que elegia inimigos
São diferentes. Mais brutos, mais fortes. internos no corpo de cidadãos, e
Apartados da sociedade, das “pessoas declarava uma “guerra suja” contra
comuns”. Temíveis de algum tanto. eles.20

Por que militarizar a atividade policial?


Seria o cidadão infrator comparável com 2. Elementos para a discussão do
um inimigo, ainda que interno, contra o tema – I: Barreto e Zaffaroni – a
qual se deve ser implacável? postulação da desrazão penal
Para a compreensão mais adequada do
A militarização da Polícia estadual é
tema, vale a pena redirecionar o
algo antigo, que poderíamos remontar
tratamento do mesmo e entrar em outra
aos tempos coloniais,17 avançando para
seara fulcral: a pena enquanto
os corpos de proteção de Dom João VI e
consequência do delito, sobre a qual se
das oligarquias monárquicas (1809, com
sustenta o sistema penal in totum,
a fundação da Divisão Militar da
incluindo a força policial.
Guarda Real de Polícia no Rio de
Janeiro). Todavia, uma referência mais A pena, e a sua patente irracionalidade.
moderna seria a Força Pública,
verdadeiro Exército estadual, existente A acepção de que a pena é
nos idos da República Velha. Um dos completamente despida de qualquer
efeitos do federalismo brasileiro era a fundamento racional não é algo novo, ou
manutenção de verdadeiras forças mesmo algo de um discurso
militares a serviço das oligarquias irresponsável. Esta acepção é defendida
estaduais, que poderiam resolver há muito, e por grandes pensadores e
contendas de ordem pública ou mesmo juristas de variados carizes políticos, e
de natureza estritamente político- através dos tempos.
partidária, a tiros de canhões e obuses.
A título de mera ilustração, citemos dois
Em todos estes marcos (como
exemplos de argumentação neste
sinceramente disse Washington Luiz, a
sentido.
propósito da greve geral de 1917) “a

17 COTTA, Matrizes do sistema policial brasileiro.


18 “A agitação operária é uma questão que interessa mais à ordem pública do que à ordem social [...]”.
19 O policiamento no Brasil, até antes de 1964, tinha um marco relativamente civil (havia a Polícia

Judiciária, de investigação e similar à Polícia Civil contemporânea, e a Guarda Civil uniformizada, que
era ostensiva, trabalhava nas ruas); com o golpe militar, tal marco foi cada vez mais minado,
substituindo-se a Guarda Civil por policiais com o mesmo estrito treinamento que a tropa de guerra das
Forças Armadas recebiam. A chegada do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em dezembro de 1968, ensejou
a destruição de vez do marco civil: o ano de 1969 foi notório pela ofensiva militar aniquiladora do
policiamento ostensivo de índole civil. Cf. ZAVERUCHA, Relações civis-militares, pp. 41-76.
20 HUGGINS, Polícia e Política.

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Primeiramente, vale resgatar a natureza social, o que significaria que,
formulação de Tobias Barreto. Brasileiro, por mais que se esforce para se justificar
jurista filósofo, poeta e crítico literário, e se alinhar tais institutos com os
além de “imortal” – patrono da cadeira predicados da cultura do tempo de
38 da Academia Brasileira de Letras, Barreto, elas nunca deixam de ser o que
este pensador, nos idos de 1884, escreve sempre foram: “uma anomalia, uma
um apêndice para sua obra Menores e excrescência do corpo social, que aliás
loucos nomeado Algumas ideias sobre o não tem por si a razão da necessidade
chamado fundamento do direito de punir. imperiosa e fatalmente indeclinável”.22
Essas poucas páginas, alocadas ao fim
de um livro, são, a nosso sentir, um texto Sem pudores político-acadêmicos,
imprescindível para se compreender a Barreto ainda se dirige a seus colegas
questão policial-penal com alguma penalistas em tom de repreensão:
densidade. Os criminalistas que ainda julgam se (sic)
obrigados a fazer exposição dos diversos
Barreto, neste apêndice, e para defender systhemas (sic) engendrados para explicar o
o instituto da pena, nos fala que discutir direito de punir, o fundamento jurídico e o fim
racional da pena, commetem (sic) um erro,
a racionalidade da punição criminal é quando na frente da série colocam (sic) a
simplesmente irrelevante. vindicta. Por quanto a vindicta não é um
systhema (sic); não é, como a defeza directa
Logo depois de discorrer sobre o (sic) ou indirecta, e as de mais (sic) fórmulas
explicativas ideiadas (sic) pelas theorias
sacrifício e a vindicta (vingança) em absolutas, relativas e mixtas, um modo de
momentos anteriores da história, o autor conceber e julgar, de accordo com esta ou
aquella doutrina abstracta, o instituto da
afirma que pena; a vindicta é a pena mesma,
considerada em sua origem de facto, em sua
[a] idéia (sic) de vindicta, que vigorou no genesis histórica, desde os primeiros esboços
direito penal dos romanos, que estendeu-se de organisação (sic) social, baseada na
mesmo á (sic) tempos muito posteriores, não communhão de sangue e na communhão de
foi arredada, como costumam afigurar-se, paiz, que naturalmente se deram logo depois
pelas chamadas theorias (sic) do direito de do primeiro albor da consciência humana,
punir; teorias (sic) que, como todas do mesmo logo depois que o pithecantropo fallou... et
gênero, não fazem mais do que procurar homo factus est.23
prender ás (sic) leis da racionalidade
moderna uma velha cousa (sic) bárbara e Tobias Barreto então tomava a pena
absurda, posto que necessária, qual é a
pena, sem que d’ahi (sic) resulte a mínima como algo “bárbaro”, “absurdo”, mas
alteração na natureza do facto (sic).21 que segundo ele, mesmo assim teria uma
valia social.
Após, ele compara a pena com a
instituição da “realeza (castas Leitor de Barreto, Eugenio Raul
aristocráticas, monarquia)”, dizendo que Zaffaroni, através do seu “realismo
ambas têm “mais ou menos” a mesma marginal jurídico-penal”,24 avança

21 BARRETO, Estudos de direito, p. 138.


22 BARRETO, Estudos de direito, p. 138. Barreto neste momento trai o objetivo de sua obra, que seria a
sustentação da necessidade da pena. Nada mais compreensível: ao assumir a irracionalidade da pena,
a consequência última dessa linha de argumentação seria a destituição total do valor da pena como
algo válido socialmente – numa sociedade que fosse regida por um direito no mínimo razoável. Quando
Barreto, a despeito de suas próprias conclusões, faz a defesa da pena do jeito que ele faz, ele mostra
e reforça seu próprio argumento sem o saber, ao deixar claro e explícito que o próprio validar a pena
não é algo racional, não é algo juridicamente aceitável em si, mas é sim uma decisão política, sem
referência normativa ou lógica nenhuma.
23 BARRETO, Estudos de direito, pp. 138-139.
24 ZAFFARONI, Criminologia; ZAFFARONI, Hacia un realismo jurídico penal marginal. O realismo jurídico-

penal marginal é uma linha de pensamento que assume, sem reservas, a irracionalidade do sistema
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pontuações semelhantes. Em abolição total do instituto da pena
pronunciamento feito no Encontro vertical, unilateral e violentamente
Internacional La Experiencia Del aplicada.
Penitenciarismo Contemporáneo: aportes
y experiencias, ocorrido nos dias 26 e 27 A pena, fato político utilizado como mero
de julho de 1993 na cidade do México, instrumento de dominação e controle,
pronunciamento intitulado Que hacer con nunca deixa o sistema penal ocioso,
la pena – las alternativas a la prison, independentemente do regime político
Zaffaroni assim discorre sobre a função sob o qual tal sistema opera. Quando
da pena: trata da política de encarceramento
estatal, Zaffaroni afirma que
Se nesse momento tivesse que definir a função
da pena, o faria muito mexicanamente, com [...]devemos deixar de aumentar o número de
duas palavras: ni modo [ “sem chance”, ou presos, porque se temos prisões superlotadas
“sem possibilidade de fazê-lo”]. e construímos novas prisões, o que teremos
Efetivamente, todas as teorias da pena que serão novas prisões superlotadas. Talvez
se tem enunciado são falsas, e tudo o que nos possa haver alguma circunstância na qual
disse a ciência social sobre a pena nos mostra haja capacidade de ocupação livre nas
a sua multifuncionalidade, as funções tácitas prisões; isto é certo. Quando, por exemplo,
que não têm nada a ver com as funções cai uma ditadura que tem um nível de
manifestas que se lhe quiseram designar. De repressão muito alto, momentaneamente o
modo que a pena está aí, irremediavelmente, número de presos baixará. Mas
como um fato político, como um fato de paulatinamente, ao cabo de cinco, seis, oito
poder, como um fato que está presente e não ou dez anos, novamente subirá até alcançar
se pode apagar. 25 a mesma quantidade de presos. Ainda que
tenham mudado as condições, surgirão
Zaffaroni iguala a existência da pena à argumentos novos.26
existência de outro fato de poder, Zaffaroni é enfático em sua posição
facilmente reconhecível no seio de uma “realista marginal”, e repisa a
sociedade, qual seja, a guerra. Assim irracionalidade estrutural da pena
como a guerra, a pena é algo ilegítimo, criminal e a limitada possibilidade de
irracional, mas que de todo modo existe, atuação imediata do operador do
faz parte do contexto humano na sistema de justiça criminal orientado
contemporaneidade. E assim como a democraticamente: “Eu não sei para que
guerra sofre uma tentativa de serve a pena; tudo o que se disse sobre
regulamentação – como se vê nas ela é falso. Sociologicamente, tem uma
Convenções de Genebra, nos grande quantidade de funções múltiplas,
documentos da Cruz Vermelha
tácitas, que não conhecemos ou que não
Internacional e em outras normativas que esgotamos ainda, e por fim, porquanto
tratam de “direito da guerra” – também seja fato não legitimado, trato de
a pena deve sofrer um regramento, com
reduzi-lo”.27
o desenvolvimento da teoria penalista
constitucionalmente e Eis a desrazão da pena.
antropologicamente orientada, que teria
como função primordial conter o poder Mas a mera apresentação deste fato
punitivo, irracional, classista e racista do não nos desvenda qual o seu
Estado, rumo a uma quiçá possível fundamento, a sua razão de ser. Para

penal e tenta compreender tal fenômeno com uma visão estritamente latinoamericana, rompendo com
certos hábitos intelectuais colonizados, subservientes ao pensamento penal/criminológico europeu e
estadunidense.
25 ZAFFARONI, Que hacer con la pena?.
26 ZAFFARONI, Que hacer con la pena?.
27 ZAFFARONI, Que hacer con la pena?.

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isso seguiremos para outros campos, e Cabe aqui uma outra referência à obra
trataremos do assunto não só pelo de Zizek. No mesmo livro acima citado, o
direito, mas também pela filosofia, pela filósofo nos conta algo que ocorreu em
psicanálise, pela sociologia e pela 1922, na Rússia: o governo bolchevique
ciência política. decidiu expulsar do país alguns
intelectuais antiesquerdistas – filósofos,
teólogos, economistas, historiadores,
3. Elementos para a discussão do
etc.29 O navio que os levou da Rússia
tema – II: “a opressão nossa de
cada dia” – Zizek e a violência para a Alemanha ficou lembrado como o
sistêmica vapor da filosofia.

Slavoj Zizek, filósofo e psicanalista Um desses intelectuais expulsos, Nikolai


esloveno, conta, em seu livro intitulado Lossky, ficou abismado com a medida
Violência, uma velha anedota sobre um governamental, que o privou do
trabalhador suspeito de furtar no seu “confortável modo de vida da alta
trabalho:28 todos os dias, os supervisores, burguesia, com criados e amas de
quando o trabalhador saía da fábrica, crianças à disposição de sua família”.30
vasculhavam o carrinho de mão que ele Lossky tomava este acontecimento como
empurrava, na esperança de ali achar “indícios de um novo espírito
algum objeto furtado. Num belo dia incompreensivelmente malévolo”.31
estes supervisores descobrem o que
Zizek então pondera sobre esta
ocorria: o tal trabalhador furtava
incapacidade do pensador de
carrinhos de mão.
compreender a privação imposta pelos
Não seria esta uma metáfora para a bolcheviques:
forma como o penalismo contemporâneo
Embora Lossky fosse sem dúvida uma pessoa
aborda a operatividade do sistema benevolente e sincera, que se preocupava
penal? Vasculhando o sistema, nada realmente com a assistência à pobreza e
estava empenhado na tentativa de civilizar
acham de errado, a não ser um déficit de as condições de vida russas, esta sua atitude
eficiência que nada teria a ver com a trai uma insensibilidade arrepiante frente à
estrutura do sistema (tomando o violência sistêmica necessária ao conforto de
sua existência. Estamos a falar aqui da
encarceramento em massa e a violência intrínseca de um sistema: não só da
arbitrariedade dos juízes como algo violência física direta, mas também das
formas mais subtis de coerção que sustentam
casual, acidental, em nada ligado às as relações de dominação e de exploração,
necessidades do aparato penal, e que é incluindo a ameaça de violência. Os Lossky e
“corrigível”). os seus semelhantes de facto “nada de mal
tinham feito”. Não havia qualquer maldade
subjectiva nas suas vidas, excepto o pano de
E se na verdade o problema do sistema fundo da violência sistêmica.32
penal fosse o sistema em si?
Explanando melhor o conceito de
Daí perguntamos: qual o quantum de violência sistêmica, que é um tipo de
violência que é necessário para que o violência objetiva, Zizek diz:
sistema funcione?

28 ZIZEK, Violência, p. 09.


29 ZIZEK, Violência, p. 17. O fato histórico está detalhadamente registrado em CHAMBERLAIN, A guerra
particular de Lenin.
30 ZIZEK, Violência, p. 17.
31 ZIZEK, Violência, p. 18.
32 ZIZEK, Violência, p. 18

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[...]Há aquilo a que eu chamo violência artigos como o presente trabalho,
“sistêmica”, que consiste nas consequências
muitas vezes catastróficas do funcionamento concordamos e discordamos, voltamos
homogêneo dos nossos sistemas econômico e para casa para tomar o nosso leite
político. A questão é que as violências quente ou o nosso vinho fino – quantas
subjectiva e objectiva não podem ser
percebidas do mesmo ponto de vista: a pessoas devem ser violentadas ou mesmo
violência subjectiva é experimentada sucumbir para que o nosso espaço social
enquanto tal contra o pano de fundo de um chamado de “normalidade” se sustente?
grau zero de não-violência. Aparece como
uma perturbação do estado de coisas
‘normal’ e pacífico. Todavia, a violência As teorias penais alinhadas com o
inerente a este estado de coisas ‘normal’ é conceito de “sociedade de risco”, nos
precisamente a violência objectiva. A
violência objectiva é uma violência invisível
moldes do mostrado pelo penalista
uma vez que é nela que se sustenta a espanhol Jesús-Maria Silva Sanchez em
normalidade do nível zero contra aquilo que sua obra A expansão do direito penal35 e
percebemos como sendo objetivamente
violento.33 conforme o defendido e elogiado pelo
jurista alemão Günther Jakobs em tantos
O “grau zero” de não-violência, textos36 querem otimizar a busca dentro
notadamente na periferia do capitalismo do carrinho de mão pelos itens furtados;
– como o é o Brasil – importa em uma elas (as teorias) tomam por postulados,
quantidade gigantesca de violência – por axiomas indubitáveis as relações
dos mais diversos tipos, inclusive a letal – sociais atuais – prenhes de violência
empregada de forma capilarizada e sistêmica (competição, exploração,
cotidiana nos mais variados espaços indiferença com a vida e o bem-estar
sociais. As dezenas de milhares de das pessoas) – e consequentemente o
cadáveres – basicamente pretos/pardos sistema penal contemporâneo
e pobres –,34 além da multidão de correspondente, e daí tentam trabalhar
pessoas diuturnamente agredidas e em prol da efetivação dos objetivos
humilhadas pela superexploração do seu oficiais deste mesmo sistema.
trabalho ou pela exclusão social direta,
desenham o quadro social no qual o Mas e se o sistema penal contemporâneo
conjunto dos(as) brasileiros(as) vivem for feito exatamente para não funcionar
suas vidas. (nos termos de seu discurso oficial de
“pacificação social e proteção dos
Eis a pergunta a ser sempre feita: qual o direitos humanos”)? E se este sistema for
índice de violência necessário para que na verdade um sistema muito eficiente? E
tudo se mantenha do jeito que está? se o sistema se pautar não pelo discurso
Quantas pessoas devem ser subjugadas oficial (que serviria para mascarar, para
e brutalizadas para que as condições mistificar a situação real), mas sim por um
presentes, que nós chamamos de discurso subterrâneo de controle e
“normais” – onde vamos para a dominação de um ou mais grupos sociais
faculdade, discutimos coisas sobre os outros, mais vulneráveis?
“inteligentes”, escrevemos e lemos

33 ZIZEK, Violência, p. 10.


34 Para os dados sobre o sistema penal, cf. FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, Anuário
brasileiro de segurança pública; para a superexploração e outros elementos econômico-políticos, cf. LUCE,
Teoria marxista da dependência.
35 SANCHEZ, A expansão do direito penal.
36 P. ex.: JAKOBS, Ciência do direito e ciência do direito penal. Günther Jakobs é o propositor do “Direito

Penal do Inimigo” que – ainda que veladamente – resgata para a contemporaneidade as referências
e os argumentos do direito penal nazifascista vigente na Alemanha entre 1933-1945. Cf. RODRÍGUEZ,
Nacional-socialismo e antigarantismo penal (1933-1945), pp. 391-400.
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manifestação política do “Terceiro
4. Elementos para a discussão do Estado” – que na França significava
tema – III: quatro fatos sobre todos que não eram nobres ou
ordenamento jurídico e eclesiásticos, ou seja, o “povo”. Sieyès
violência rompia com a tradição jurídica
Em nossas reflexões sobre o fundamento centenária que validava o poder
– ou a falta de fundamento idôneo – do monárquico dizendo que sua condição
sistema penal como um todo (e, de validade vinha diretamente de Deus
notadamente, de sua “eminência parda”, Todo-Poderoso.
a polícia – ostensiva)37 chegamos a
Segundo momento: 1863, Prússia.
posições que nos indicavam que, ao fim
Ferdinand Lassale, advogado e militante
e ao cabo, a política embasa o sistema
socialista alemão, dá uma conferência
penal em todas as suas instituições, com
para intelectuais e operários, que
a instituição policial precipuamente
posteriormente seria vertida em texto e
fixando e revogando sua pauta para a
publicada sob o nome A essência da
ação.
constituição39 ou O que é a constituição,
Com efeito, certos elementos apontam obra de referência em Direito
para a verossimilhança da afirmação Constitucional. Nesta conferência Lassale
acima. Ao longo da história as diz que a Constituição escrita nada mais
construções intelectuais e os é do que “um pedaço de papel” quando
pronunciamentos oficiais e extraoficiais, negligenciar a verdadeira Constituição,
justificando ou não a validade de normas que é a constituição real, “as
jurídicas, mostram a origem arbitrária do verdadeiras forças vitais do país”. Em
direito. A título de exemplificação, suma, de nada adianta uma Constituição
vejamos quatro momentos na história do formal promulgada ou outorgada se ela
direito no qual a fundação política, não corresponde à balança de poder no
violenta, arbitrária da norma jurídica se Estado, ou seja, aos posicionamentos e
deixa entrever. tensionamentos de quem tem “o poder
dos canhões”.
Primeiro momento: 1789, França.
Emmanuel Joseph Sieyès, mais conhecido Terceiro momento: 1922, Alemanha. Carl
por sua posição eclesiástica (“Abade”), Schmitt, professor na Universidade de
publica uma obra chamada O que é o Bonn, escreve um ensaio de nome
Terceiro Estado38 na qual ele afirma, Teologia política40, cuja primeira frase é:
tomando os ensinamentos de John Locke “Soberano é aquele que decide sobre o
e Jean-Jacques Rousseau sobre o estado de exceção”. Para o pensador
“contrato social”, que existe um poder alemão, a soberania se manifesta
acima de todos aqueles ordinariamente claramente não na subsunção do fato à
constituídos, o qual é imutável e é o que norma pelos órgãos estatais, mas sim nos
legitima todo e qualquer Estado ou casos onde nenhuma norma jurídica dá
ordenamento jurídico: tal poder seria o conta da realidade: neste momento a
“Poder Constituinte”, que nada mais seria dimensão francamente política do poder
do que a “Vontade Geral”, se apresenta e, numa decisão sem

37 MARTINS JÚNIOR, Os bons executores da lei.


38 SIEYES, A constituinte burguesa.
39 LASSALLE, A essência da constituição.
40 SCHMITT, Teologia política.

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suporte em norma legal alguma, o 5. Elementos para a discussão do
soberano submete os fatos a sua vontade tema – IV: a construção do
mais ou menos “pura”. Soberano seria “universal concreto”, ou o
aquele que pode decidir sobre algo que quadrado lógico aristotélico e a
está além do direito – mas que, teoria das subculturas criminais
paradoxalmente, se constrói em Quanto à questão da mistificação do
referência ao direito. fundamento violento da norma e de
Quarto momento: 1934, Áustria. Hans como o sistema penal (e o sistema jurídico
Kelsen, jurista tcheco radicado em Viena, como um todo) opera sobre esta
publica a Teoria pura do direito41, onde mistificação, valeria a pena acionarmos
discorre sobre sua visão de tanto a filosofia clássica quanto a
direito/ordenamento jurídico, e algo criminologia sociológica para
mais. Ao montar sua hierarquia de elucidarmos alguns pontos interessantes
normas, assim coloca: as leis validam os Primeiramente, discorramos sobre a
decretos, a Constituição valida as leis. análise da questão criminal
Mas o que valida a Constituição? Aí contemporânea com o uso do quadrado
surge a Norma Fundamental lógico de Aristóteles.42
(Grundnorm). Mas o que seria essa
Norma Fundamental? Nada mais do que Pois bem, eis o quadrado lógico de
um pressuposto lógico, uma ficção, Aristóteles, exposto no Órganon43 (na
arbitrariamente colocada no alto do sua notação gráfica dada por Apuleio
construto teórico kelseniano para criar de Madaura, poeta latino):
um “efeito de validade” para a sua
pirâmide normativa; sem este
pressuposto, a validade de todo
ordenamento jurídico se desmancharia
no ar, e a natureza impositiva política
dos comandos normativos subiria à tona.

Com estes quatro fatos na algibeira (ou


no coldre), dissequemos agora como a
natureza arbitrária do direito – e,
enfaticamente, do direito criminal – é
encoberta.

44

41 KELSEN, Teoria pura do direito.


42 Uma breve advertência: sabemos que o instrumental filosófico de Aristóteles, no caso aqui tratado,
versa sobre proposições lógicas e suas interrrelações – sem que haja qualquer referência à empiria ou
a quaisquer dados propriamente sociológicos. Contudo, como a reflexão exposta a seguir veio, ainda
que de forma pouco rigorosa e estritamente “lógico-filosófica” em uma meditação sobre a formulação
aristotélica (cruzada, diga-se, com certos ensinamentos da psicanálise de perfil lacaniano), permitimo-
nos manter a “desajustada” referência à obra do Estagirita.
43 ARISTÓTELES. Organon.
44 ARISTÓTELES, Quadrado Lógico de Aristóteles.

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Neste quadrado, “A” seria a premissa Então, como transformar o universal
universal afirmativa (“todo X é Y”), “I” abstrato em universal concreto?
seria a particular afirmativa (“algum X é Negando, numa decisão além de
Y”), “E” seria a universal negativa qualquer normatividade, num ato de
(“nenhum X é Y”) e “O” seria a particular violência, a existência e a possibilidade
negativa (“algum X não é Y”). do particular negativo (tal processo tem
o nome de “fasis”, ao contrário da “lexis”,
Dentre todas as relações entre as onde não haveria ato violento algum,
diversas premissas, a mais forte – e a mas sim uma mera leitura das
que nos importa agora – é a de consequências lógicas na relação entre
contradição, na qual as proposições as premissas do quadrado lógico). O
diferem de quantidade e qualidade (as universal afirmativo, ao invés de ser
contrárias e subcontrárias diferem “todas as pessoas têm o direito à vida e
apenas na qualidade e as subalternas à integridade física e psíquica”, acaba
diferem apenas na quantidade). se tornando “nada de pessoas que não
Isto posto, tratemos da contradição entre tenham direito à vida e à integridade
a universal afirmativa (“todo X é Y”) e a física e psíquica!”
particular negativa (“algum X não é Y”), Para que isto seja possível, o que é
e de como que é nesta relação que o necessário fazer? Repitamos: negar o
universal concreto aparece. particular negativo, ou seja, negar que
Se nos dispusermos a transpor o acima “existam pessoas que não têm direito à
exposto para o campo da política, vida e à integridade física e psíquica”.
teremos que para que algo seja válido Como se faz isso concretamente,
para todos, a universal afirmativa deve mantendo a validade do universal
ser tomada como verdade (no direito, p. afirmativo? Negando o estatuto de
ex.: todas as pessoas têm o direito à vida “pessoa” aos seres humanos que o poder
e à integridade física e psíquica) e a político quer destruir ou brutalizar. Aí a
particular negativa como falsa de pronto premissa universal fica inatacada, e suas
(alguma pessoa não tem direito à vida e consequências acabam parecendo
à integridade física e psíquica). racionais (“Ah, estes aí têm seus direitos
negados? De forma alguma! Os direitos
Entretanto, a universal afirmativa são para pessoas; esses aí não são
tomada por si só é abstrata, é uma pessoas”).
expressão sem concretude alguma. Por
que ela é abstrata? Porque no dia-a-dia Na contemporaneidade do sistema
o poder político tem interesse em violar penal, como isso se dá? Na teoria do
os direitos de algumas (várias) pessoas, Direito Penal do Inimigo de Günther
e realmente os violam, tanto no Brasil Jakobs, que separa entre os seres
como no exterior (ou seja, na realidade, humanos os “cidadãos” e os “inimigos”, e
o particular negativo de fato existe). O nega expressamente a estes o próprio
universal abstrato, nas mais diversas estatuto de pessoa perante o Direito
sociedades, se choca com a concretude interno e internacional, não
das relações de dominação, e aquele, se reconhecendo a eles quaisquer direitos,
levado ao pé da letra, necessariamente mesmo os consagrados no “direito de
destituiria estas de sua validade e
legitimidade, desvelaria o fundo de
arbitrariedade e de opressão destas.
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guerra” (convenções de Genebra, etc);45 A culpabilidade normativa funda-se na
na aplicação desta teoria pelas Forças reprovação do comportamento do
Armadas estadunidenses, que usam este agente frente às exigências do
exato argumento (chamando as pessoas ordenamento jurídico-penal. Portanto é
que eles prendem, torturam e/ou culpável aquele que realiza um injusto
executam – em atividades de penal (ato típico e ilícito) sendo
policiamento planetário lato sensu – de plenamente capaz (ou seja, sendo
“combatentes inimigos” e não imputável), entendendo ou podendo
“prisioneiros de guerra”, e dispondo da entender o caráter ilícito do ato (ou seja,
vida e dos corpos destes “inimigos” como tendo consciência real ou potencial da
bem entende a “razão de Estado” ilicitude) e podendo efetivamente agir
ianque);46 na forma como as autoridades de outra forma que não a ilícita (ou seja,
brasileiras lidam na prática com a havendo no caso exigibilidade de
população carente e com os conduta diversa).48
encarcerados em cadeias e
penitenciárias, justificando – um tanto Mas toda essa conversa se sustenta em
veladamente, é verdade – as execuções um postulado: o conjunto de valores
extrajudiciais e o tratamento desumano sociais protegidos pela norma é único, só
dispensado com o “fato” de que quem é há um conjunto de normas sociais que,
criminoso – leia-se “preto e pobre que quando afrontado, dá origem ao delito.
caiu na rede de criminalização A teoria das subculturas criminais
secundária da polícia”47 – “é um animal”, derruba este postulado.
“é um monstro”, “é um câncer para a
sociedade”, “é um fardo inconveniente Nas palavras de Alessandro Baratta:
para o erário público e para os órgãos
[...] Nos interessa sublinhar o núcleo teórico
de segurança pública do país”. contido nessas teorias [as das subculturas
criminais], que se opõe ao princípio da
Mostramos então como se constrói o ideologia da defesa social acima
universal concreto na aplicação do denominado princípio da culpabilidade. Sob
esse ponto de vista, a teoria das subculturas
construto lógico aristotélico à política. criminais nega que o delito possa ser
Agora mostremos como se desconstrói considerado como expressão de uma atitude
este universal. Para isto usaremos a contrária aos valores e às normas sociais
gerais, e afirma que existem valores e normas
teoria da culpabilidade atual, dita específicos dos diversos grupos sociais
“normativa” e a teoria das subculturas (subcultura). Estes, através de mecanismos de
interação e de aprendizagem no interior dos
criminais, como exposta por Alessandro grupos, são interiorizados pelos indivíduos
Baratta na obra Criminologia crítica e pertencentes aos mesmos e determinam,
crítica do direito penal. portanto, o comportamento, em concurso com
os valores e as normas institucionalizadas

45 JAKOBS; MELIÁ, Direito penal do inimigo.


46 AMERICAN BAR ASSOCIATION, Enemy combatants.
47 Para a criminologia, a criminalização primária é feita pelo legislador, ao escolher condutas para

transformar em tipos penais; a criminalização secundária é a seleção feita pelos órgãos de segurança
pública de quem vai entrar no processo de criminalização que se inicia com a apreensão pela polícia e
termina com a prolação de uma sentença condenatória (duas observações: a criminalização secundária,
como é óbvio, recai sobre as camadas vulneráveis socialmente, e; as consequências desta criminalização
se estendem indefinidamente, com a estigmatização do cidadão que cumpriu sua pena como alguém
relativamente imprestável socialmente e apto a sofrer o processo de criminalização a qualquer momento,
por causa de sua “personalidade desviante”).
48 “Culpabilidade é o juízo que permite vincular pessoalmente o injusto ao seu autor, operando, pois

como o principal indicador oferecido pela teoria do delito para autorizar o exercício de poder punitivo
sobre ele e limitar a magnitude de tal exercício”. ZAFFARONI et al, Direito penal brasileiro, p. 160.
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pelo direito ou pela moral ‘oficial’. Não colocada às claras. Se muitas são as
existe, pois um sistema de valores, ou o
sistema de valores, em face dos quais o subculturas, cada uma com seus próprios
indivíduo é livre de determinar-se, sendo valores, então o que embasa o sistema
culpável a atitude daqueles que, podendo, penal é uma dessas subculturas apenas,
não se deixam “determinar pelo valor”, com
quer uma concepção antropológica da qual seja, a subcultura da classe
culpabilidade, cara principalmente para a dirigente, da classe de maior poder
doutrina penal alemã (concepção normativa, político numa determinada sociedade. E
concepção finalista). Ao contrário, não só a
estratificação e o pluralismo dos grupos aí se desvela o viés arbitrário, classista
sociais, mas também as reações típicas de do discurso jurídico-penal.
grupos socialmente impedidos do pleno
acesso aos meios legítimos para a consecução
dos fins institucionais, dão lugar a um
pluralismo de subgrupos culturais, alguns dos 6. Pontos cegos: direito e polícia,
quais rigidamente fechados em face do violência
sistema institucional de valores e normas, e
caracterizados por valores, normas e modelos Alguns pontos cegos da análise então se
de comportamento alternativos àquele.49 apresentam. O poder soberano – e sua
O universal concreto criado pelo discurso imponderável arbitrariedade, em suma,
jurídico-penal afirma que existe apenas surgiria diuturnamente, e de forma
um conjunto de valores, uma só cultura massificada, nas rotinas do sistema
que legitima as leis penais, e suprime penal, e em especial no exercício do
violentamente a mera ideia de que em mandato policial do Estado. A violência
uma sociedade complexa muitos são os surgiria não nas grandiloquentes
âmbitos normativo-culturais, muitas são manifestações da política corrente, mas
as “subculturas”, que têm os seus próprios na capilaridade oculta do exercício do
modi vivendi, e que inclusive constroem poder por cada soldado, cabo, sargento
para si diversas explicações e ou oficial da polícia ostensiva.
aproximações quanto ao fenômeno Neste caminho é Walter Benjamin no
criminal. opúsculo Para uma crítica da violência:
Para que o universal afirmativo do A afirmação de que os fins do poder policial
discurso jurídico-penal tenha semblante seriam sempre idênticos aos do direito
de validade, o conjunto de valores restante ou pelo menos ligados a eles, é falsa.
Na verdade, o “direito” da polícia é o ponto
específico de um grupo social dirigente em que o estado – ou por impotência ou
deve passar necessariamente como o devido às inter-relações imanentes a
qualquer ordem judiciária – não pode mais
conjunto de valores de toda a sociedade garantir, através da ordem jurídica, seus fins
– e o particular negativo, que diz empíricos, que deseja atingir a qualquer
respeito aos diversos valores dos preço. Por isso, ‘por questões de segurança’,
a polícia intervém em inúmeros casos, em que
diversos grupos sociais não-dirigentes não existe situação jurídica definida, sem
deve ser suprimido à força. Este falar dos casos em que a polícia acompanha
procedimento tem um nome muito ou simplesmente controla o cidadão, sem
qualquer referência a fins jurídicos, como um
preciso: construção de hegemonia.50 aborrecimento brutal ao longo de uma vida
regulamentada por decretos. Ao contrário do
Com a teoria das subculturas criminais, a direito que, na ‘decisão’ fixada no espaço e
no tempo, reconhece uma categoria
falha no discurso do direito penal é metafísica, graças à qual ele faz jus à crítica,

49 BARATTA, Criminologia crítica e crítica do direito penal, pp. 71-72.


50 Hegemonia, para o filósofo Antonio Gramsci (um dos formuladores mais conhecidos desta categoria,
seria algo como o “exercício ‘normal’ da hegemonia no terreno que se tornou clássico do regime
parlamentar […] caracterizado por uma combinação da força e do consenso que se equilibram”.
GRAMSCI apud LIGUORI; VOZA, Dicionário gramsciano, p. 722.
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a observação da instituição da polícia não de formação que num certo momento histórico
encontra nenhuma essência. Seu poder é teve como função essencial responder a uma
amorfo, como é amorfa sua aparição urgência. O dispositivo tem, portanto, uma
espectral, inatacável e onipresente na vida função eminentemente estratégica […]. Disse
dos países civilizados.51 que o dispositivo tem natureza essencialmente
estratégica, que se trata, como consequência,
Tal dimensão estruturalmente anômica de uma certa manipulação de relações de
força, de uma intervenção racional e
da polícia – mormente, no Brasil, a combinada das relações de força, seja para
ostensiva, que de fato se encaixa na orientá-las em certa direção, seja para
descrição do fenômeno indicado por bloqueá-las ou para fixá-las e utilizá-las. O
dispositivo está sempre inscrito num jogo de
Benjamin – é patente. O policial militar é poder e, ao mesmo tempo, sempre ligado aos
uma espécie de “guarda de fronteira” limites do saber, que derivam desse e, na
que vigia para que os “estrangeiros”, os mesma medida, condicionam-no. Assim, o
dispositivo é: um conjunto de estratégias de
“outsiders”, os “bárbaros” não perturbem relações de força que condicionam certos
significativamente o contorno do Estado tipos de saber e por ele são condicionados. 52
como ele está posto. Na sanha
A polícia participa desse plexo
conservadora que informa a própria
emaranhado e vultoso de elementos que
noção clássica de polícia, tudo vale, ao
agenciam as pessoas em estrato dos mais
fim e ao cabo, para que a ordem seja
básicos – qual seja, como seres viventes.
mantida. Lembremos: a ordem posta,
E, vale notar, se em geral hoje tais
hodierna, por mais inegavelmente injusta
dispositivos tendem a gerar um processo
e desigual que seja.
de dessubjetivação/desindividualização,
Algo não se mostra para além da vários outros deles (como o referencial
violência, sorrateira e espraiada, policial-social) ainda têm o condão de
arregimentando segundo uma interpelar o vivente no sentido de fazer
verdadeira “linha geral” a rede surgir uma subjetividade específica:
micropolítica, molecular de opressão- policializada, enquadrada, ordeira, “de
resistência nos diversos espaços sociais. bem” e, consciente ou inconscientemente,
Uma sofisticada direção se apresenta, amedrontada ou mesmo terrificada.
redirecionando a todo momento a rede
A análise – e o eventual enfrentamento –
de exercício ininterrupto de violência
da lógica policial-penal mostra-se ainda
para uma pauta que, grosso modo, pode
mais complexa do que se toma à
ser chamada de uma “Razão de Estado”.
primeira vista.
Michel Foucault chamou isso de
Aproximamos então de um fundo acerca
“dispositivo”. Segundo ele:
da polícia? O ponto de partida,
Aquilo que procuro individualizar por este limpando campo, para se pensar a
nome [dispositivo] é, antes de tudo, um polícia, a violência e o direito seria algo
conjunto absolutamente heterogêneo que
implica discursos, instituições, estruturas como bem coloca Agamben?
arquitetônicas, decisões regulamentares, leis,
medidas administrativas, enunciados El hecho es que la policía, em contra la opinión
científicos, proposições filosóficas, morais e común que ve em ella una función meramente
filantrópicas, em resumo: tanto o dito como o administrativa de ejecución del derecho, es
não dito, eis os elementos do dispositivo. O quizá el lugar em que se muestra al desnudo
dispositivo é a rede que se estabelece entre com mayor claridad la proximidad, la
estes elementos [...]. Com o termo dispositivo, intercambialidad casi, entre violencia y
compreendo uma espécie – por assim dizer – derecho que caracteriza a la figura del
soberano.53

51 BENJAMIN, Escritos sobre mito e linguagem, pp. 135-136.


52 FOUCAULT apud AGAMBEN, O que é o contemporâneo? e outros escritos, p. 28.
53 AGAMBEN, Medios sin fin.

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radical e destemido, que enfrente as
7. De uma (in)conclusão aporias e olhemos o abismo nos olhos.
Com efeito, “há algo de podre no reino Aqui, como dito no início, temos apenas
da Dinamarca”. O tratamento corrente divagações e certos arranques
dos temas “sistema penal” e “polícia”, radicalizados. Criemos, pois,
multívocos e carnalmente entremeados, destrutivamente as categorias que nos
mostra-se insuficiente quando expliquem o que é o sistema policial-
confrontado com situações limítrofes, com penal e, principalmente, o que podemos
padrões inafastáveis, com a violência fazer para obliterar o Estado e a
onipresente – e supostamente violência que daí surgem.
estruturante.

O campo de trabalho mais aprofundado Referências


sobre a questão policial-penal, então,
AGAMBEN, Giorgio. Medios sin fin: notas
permanece em aberto – e urgente. Se
sobre la política. Trad. Antonio Gimeno
alguns laivos de teoria mais fina (num
Cuspinera. Valencia: Pre-textos, 2010.
sentido pascaliano) são postos – como
Benjamin e Agamben, supracitados – AGAMBEN, Giorgio. O que é um
muito há de ser construído. A título de dispositivo? In: O que é contemporâneo? e
exemplos, para um programa de outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro
pesquisa por vir: a relação entre Honesko. Chapecó: Argos, 2009.
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espaços sociais a serem policiados); a Acesso em: 10 out. 2020.
(in)viabilidade da abolição do exercício
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crítica e crítica do Direito Penal:
é possível que o campo progressista – ou
introdução à sociologia do direito penal.
mesmo radicais revolucionários –
3. ed. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio
prescindam do poder de polícia?);
de Janeiro: Revan, Instituto Carioca de
A construção de um perfil radical Criminologia, 2002.
satisfatório do sistema penal e do poder BARCELLOS, Caco. Rota 66: a história da
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relativamente virgem” ainda, se Editora Record, 2008.
tomarmos em termos de um pensamento

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(TRADUÇÃO}

O constituinte e o negativo, a
biopolítica e a soberania:
um diálogo entre Roberto
Esposito e Antonio Negri 1

Tradução por Andityas Soares de Moura Costa Matos

I - Roberto Esposito representar adequadamente as atuais


dinâmicas políticas e socioculturais? 2)
Nesta intervenção – pronunciada no
consegue, sobretudo, enfrentar seus
festival da editora Derive Approdi – efeitos de maneira eficaz e realista?
tento dialogar com a ideia de Toni Negri
sobre o fim da soberania. Resumo Antes de tentar dar uma resposta
rapidamente sua tese de fundo. problemática a tais questões, gostaria
de iniciar com uma observação que,
Hoje estamos situados para além do neste contexto, pode parecer óbvia, mas
paradigma soberano em razão de uma que julgo ser justo tornar explícita. Negri
série de motivos que nos reconduzem ao é o único intelectual italiano, e um dos
horizonte biopolítico. São os seguintes: a) poucos da Europa, a ter um papel
a transformação do direito em máquina diretamente político no âmbito da
administrativa de governance na qual o esquerda radical – e assim ser capaz de
sistema das normas se torna atuar na realidade por meio de suas
preponderante em relação à ordem das ideias. Isso – essa importância objetiva –
leis na regulação dos conflitos sociais; b) não nasce só da sua biografia,
a transferência das estruturas jurídicas, profundamente inervada na história
articuladas em sistemas autopoiéticos, do destes últimos decênios. E nem só da
terreno estatal para uma série de força de mobilização que sua energia
dinâmicas sociais que possuem grau intelectual comunica. Mas nasce de
crescente de autonomia; c) a alguma coisa a mais, parte integrante do
interdependência global entre Estados e
seu pensamento e da sua linguagem
mercados que desestrutura o regime conceitual. Trata-se de uma atitude, ou
soberano, superando definitivamente o de uma tonalidade, que sempre o
modelo interestatal em favor de uma
manteve afastado do refluxo ao qual se
nova forma de coordenação infraestatal dirigiu a cultura de esquerda, italiana e
e ultraestatal. A partir de tal cenário, não só, inclusive uma grande parte da
busco concentrar as minhas
Este é um artigo publicado em tradição operaista. Diferentemente de
acesso aberto (Open Access) sob considerações em torno a duas questões:
a licença Creative Commons outros intelectuais que vêm da mesma
1) a perspectiva de Negri consegue
Attribution, que permite uso,
distribuição e reprodução em
experiência de Negri nos anos setenta,
qualquer meio, sem restrições
desde que sem fins comerciais e
que o trabalho original seja 1 O presente texto foi publicado na obra coletiva Effetto italian thought (org. Enrica Lisciani-Petrini e
corretamente citado. Giusi Strummiello, Macerata: Quodlibet, 2017) em duas seções, a primeira intitulada In dialogo con Toni
Negri (pp. 23-31), da autoria de Roberto Esposito, e a segunda In risposta a Roberto Esposito (pp. 33-
40), de Antonio Negri. O título e a presente tradução ao português, autorizada por ambos os autores,
é de Andityas Soares de Moura Costa Matos.
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133
ele nunca se dobrou diante de posições ao mesmo tempo normas e
teológico-políticas; nunca praticou um subjetividades, a soberania age por via
dualismo programático entre desespero negativa, seja mediante a lei, seja
e administração; não teorizou, com mediante a exceção que a suspende,
duvidoso realismo, a escolha pelo mal seja impondo proibições, seja
menor; não foi procurar velhos ou novos excedendo-as. A esse paradigma
katéchontes. Ao contrário, ele insistiu em soberano – ao seu poder negativo de
um princípio afirmativo que contrasta exclusão – Negri opõe a potência
radicalmente com tais pressupostos. afirmativa de uma subjetividade
Nesse sentido, é o intelectual italiano que horizontal, múltipla, radicada na vida
hoje mais do que qualquer outro deu um histórica e natural. Se o paradigma
sentido positivo àquilo que se define soberano nasce com Hobbes contra a
como italian thought. Se há alguma coisa natureza, aniquilando o estado natural,
que sempre caracterizou sua Negri incorpora história, natureza e vida
perspectiva, é exatamente essa opção em um único plano produtivo. A política
afirmativa, constitutiva, vital – não se origina do aniquilamento do
alternativa à dobra negativa na qual estado de natureza, e sim incorpora sua
toda teologia política, não só a italiana, potência energética ao canalizá-la em
ainda está presa sob a forma instituições sempre renovadas pela
katecôntica, escatológica ou messiânica. relação constituinte com a origem. Assim
Pensar de modo afirmativo e constituinte como para Maquiavel, o poder
significa não inferir o significado das constituído nunca se emancipa totalmente
próprias categorias na negação de seu do constituinte, mas a ele retorna para se
contrário – não buscar a liberdade no renovar radicalmente sempre que se
reverso da necessidade, a história no arrisca a secar. Considerando esse ponto
reverso da natureza, o comum no reverso de vista, relativo a essa opção anti-
do próprio. Não situar a vida no extremo teológico-política, estou de acordo com
da morte, como fazem todos os herdeiros ele e há tempos me movo eu próprio na
de Heidegger. Mas interpelá-la mesma direção.
diretamente, como fizeram Maquiavel,
Spinoza e Marx – para os quais a ação O que me convence menos é sua
precede a negação, não depende dela interpretação da situação atual. Se já no
nem a pressupõe. Nesse sentido, pode-se momento da publicação de Império se
ler a obra de Negri – desde os livros delineava uma distância entre a análise
sobre Descartes e Spinoza – como uma de Hardt & Negri e a realidade efetiva,
alternativa à filosofia política moderna a partir de 2001 me parece que essa
de Hobbes, Rousseau e Hegel. E também distância se alargou ainda mais, até
externa às “categorias do político” de constituir uma profunda fissura. E isso
Schmitt, ele próprio governado pelas tanto no plano internacional quanto
figuras negativas do inimigo e da naquele interno referente aos Estados
exclusão. singulares. Para onde quer que voltemos
os olhos, o que hoje encontramos diante
Tudo que Negri nos disse nesse último de nós é um grande retorno do
texto sobre o fim da soberania está “negativo”, em todos os sentidos que se
enquadrado nesse horizonte afirmativo. possa dar ao termo. Tal começa a partir
Como argumentou Foucault, a soberania da questão da soberania. Ela implodiu
é a categoria negativa por excelência. de verdade, como Negri sustenta,
Diferentemente do governo, que produz confirmando e aprofundando tudo que
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foi escrito na trilogia Império, Multidão e restabelecimento do controle soberano
Bem estar comum, ou está se até mesmo sobre a economia. Isso é bem
reestruturando naquilo que podemos difícil, mas não de todo impossível. E,
chamar de Leviatã 2.0? Estamos frente à ademais, quem salvou o sistema
realização da globalização ou diante de financeiro dos bancos, senão os Estados?
sua dramática inflexão? Mais ainda: a E isso para não falar da progressiva
maquina da soberania foi de fato militarização da questão migratória. Em
absorvida por uma política afirmativa, diversas partes do mundo a guerra
de modo a incorporar todo “fora” em um tende a se tornar o novo princípio
“dentro”; ou continua, ainda que constituinte, modificando as esferas de
diversamente, a produzir novos lugares influência exercidas por Estados
de poder? E o processo de soberanos como Rússia, Turquia, Índia e
desterritorialização efetivamente varreu China. O choque hegemônico desses
todos os confins territoriais em um mundo países com os Estados Unidos da América
já sem centro nem limites? A minha não passa mais apenas pela economia,
impressão é que os processos mas também pela política, ameaçando
desencadeados nos primeiros anos do se transferir cedo ou tarde para o plano
novo século na América, na Europa e na militar, dado que na história nunca houve
Ásia vão em direção contrária, como um verdadeiro poder soberano que não
todos os últimos eventos confirmam da fosse também militar. Enquanto isso
maneira mais evidente. renasce, sob outras formas, a tentação
neocolonial: os “grandes espaços” voltam
A globalização, ainda forte no plano a ser medidos pela conquista de
econômico e tecnológico, recua e se territórios desestabilizados por guerras
despedaça no plano político. Ao civis. Hoje se globaliza uma forma de
contrário do que se possa pensar, a crise nacionalismo muito distante do
que estamos experimentando é a paradigma aberto e inclusivo do
primeira das grandes crises políticas da “Império”. Se a Constituição – agora em
globalização. Diversamente de simples forte crise – da União Europeia já colidia
províncias imperiais, os Estados com tudo isso, a sua desarticulação
soberanos levantam novamente a “soberanista” transborda integralmente.
cabeça, erguendo novos muros nos O nómos da terra, para usar o léxico de
próprios confins, enquanto até mesmo o Schmitt, além de produzir e dispor, volta
terrorismo islâmico tenta se territorializar a repartir o mundo em uma nova
em um novo Estado soberano. Se os disposição geopolítica.
Estados Unidos de Trump ameaçam
fechar de forma cada vez mais O problema também pode ser visto por
hermética as próprias fronteiras, os meio de outro ponto de vista. Certamente
Estados europeus, a começar pelo Reino os Estados europeus perderam diversas
Unido, reivindicam, ao lado do débito, as de suas prerrogativas – começando por
outras prerrogativas soberanas. Longe aquela, decisiva, de emitir moeda
de se cancelar em uma independentemente das decisões da
desterritorialização generalizada, a União. Isso faz com que nenhum dos
linha de oposição dentro/fora se Estados singulares – nem mesmo a
aprofunda, entrando profundamente no Alemanha, ainda que o quisesse – possa
coração do Ocidente. A vitória das produzir sozinho uma verdadeira
forças nacionalistas, ameaçadora em mudança de sistema. Quando a Grécia
toda Europa, parece determinar o tentou levantar a cabeça, foi
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rapidamente obrigada a uma rendição difusão do general intellect, é capaz de
humilhante. Mas é também verdade que gerar por si mesmo as condições de sua
somente no interior de alguns Estados superação, assim como o mundo feudal
nasceram as únicas formas de resistência criou as condições para a gênese da
– rapidamente desqualificadas como sociedade burguesa. O pressuposto
“populistas” – ao modelo neoliberal otimista de tal hipótese é que os
dominante. O que se deva – ou se possa desdobramentos da produção imaterial,
– entender hoje por “populismo” uma vez livres das cadeias do capital e
permanece em larga medida dos vínculos imperiais, produziriam as
controverso. Mas é difícil continuar a condições para uma nova socialização
falar em democracia sem referência a encarnada na multidão.
um povo soberano. Uma vez que o
modelo liberal-democrático, hegemônico Mas isso pressupõe, por seu turno, uma
há décadas na Europa, se despedaçou, outra condição que é tudo menos
tendo em conta que o neoliberalismo se pacífica. Trata-se da neutralidade dos
generalizou em nível global, um resíduo meios de produção, dispostos a passar
de democracia parece possível só no do regime capitalista a um regime
interior dos Estados nacionais diverso com alto nível de socialização.
singularmente considerados. Neste Como notou Carlo Fromenti [em A
momento, somente ali podem ser variante populista], essa neutralidade
gerados conflitos políticos. E é somente está hoje muito distante. A tecnologia, em
ali que uma forma de direito público especial aquela de natureza informática,
pode se opor ao primado global do incorpora códigos e dispositivos de
direito privado. Não obstante todos seus comando que predeterminam suas
limites e dispositivos excludentes, neste modalidades e efeitos. O
momento o Estado nacional permanece desenvolvimento tecnológico não é
sendo o único sujeito de separável do comando capitalista que o
constitucionalização das relações dirige, orientando-o a seus próprios fins;
privadas que regulam, por seu turno, o e nem as novas formas de trabalho
mercado financeiro mundial. imaterial – que, ademais, dizem respeito
a categorias restritas de trabalhadores
Mas o desmoronamento do paradigma – liberam potencialidades capazes de
imperial elaborado por Hardt & Negri fazê-las entrar em um regime diferente.
determina também a erosão das duas Ao contrário, o trabalho intelectual, como
categorias que dele derivam o material, está cada vez mais
dialeticamente, quais sejam, “multidão” e condicionado pelos vínculos do mercado
“comum”. Tais categorias foram capitalista e da economia financeira. É
pensadas dentro e contra o horizonte do verdade que também mediante esse
império e em concomitância com o canal se geram novas formas de
crepúsculo da soberania política e a subjetivação. Mas elas não são livres,
mutação biopolítica do trabalho. Entre pois são forjadas por dispositivos
ambas as fenomenologias há uma neoliberais em termos de capital
estreita relação, já que a expansão do humano, assim como as competências são
trabalho imaterial está estruturalmente rigidamente parceladas e medidas por
conectada às dinâmicas de sistemas avaliativos orientados para a
desterritorialização. A hipótese sobre a maximização dos ganhos e dos lucros.
qual Negri trabalhou nestes anos é que Por outro lado, longe de ter modificado
o capitalismo cognitivo, baseado na o trabalho, a revolução digital o reduz
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continuamente, como mostram todos os sem limite. Mas, sendo sem limite, como
estudos sérios sobre o tema. Assim, temos se constrói a aliança política e contra
que nos perguntar: o trabalho e a quem? Quem são os amigos – ou ao
produção imaterial de fato liberam dos menos os aliados – e qual é o inimigo?
vínculos imperiais, dos vínculos do Os cartéis financeiros internacionais? As
comando capitalista e produzem novas classes dirigentes dos países
formas de sociedade e de socialização singularmente considerados? As
que deveriam ser encarnadas pela instituições europeias? Como diz Negri: é
multidão? preciso retomar o trabalho político. Mas
retomar o trabalho político significa
Tudo isso determina consequências individuar alianças possíveis e o inimigo
bastante problemáticas em relação à comum. É o que também sustenta Laclau
própria categoria de “multidão”, [em A razão populista]: a definição do
abrindo uma relevante questão política. adversário é determinante porque ele
Antes de tudo, quanto à sua composição nos identifica. Sem um adversário claro
– feita de segmentos diversos demais nós não conseguimos ter identidade
para constituir uma subjetividade de política.
algum modo homogênea ou ao menos
articulável em um todo unitário. Como A minha impressão é que, uma vez
juntar entre si pedaços de trabalho assumida como central a categoria
cognitivo especializado de alta econômica da produção – como faz
qualificação e mão de obra Negri –, ela tende a adquirir uma efetiva
marginalizada ou trabalho imigrante caracterização política e assim se
clandestino? Fazem parte de uma mesma transformar em categoria política. Como
subjetividade plural e singular definível sustentaram Dardot & Laval [em A nova
como multidão? E podem se somar, na razão do mundo: crítica da racionalidade
mesma categoria romântica de “êxodo”, neoliberal], a categoria sobre a qual
a migração dos diplomados, que mudam seria necessário se esforçar e trabalhar
de país em busca de trabalhos mais é a de instituição, mais interna ao léxico
rentáveis, com aquela de quem escapa jurídico-político. É como se, na
da guerra e da fome? Mas, antes de perspectiva de Negri, se alternassem ou
mais, como semelhante multidão pode se sobrepusessem um paradigma
adquirir conotação política, passar do hiperpolítico e um impolítico, sem nunca
âmbito social e ontológico ao político? O alcançar plenamente o plano do político.
que pode levar as singularidades de que A sua linha discursiva, que se pretende
é feita a se unirem em uma única frente mobilizadora, não se arrisca a produzir
de batalha? E contra quem? A que frente um resultado quietista? Se a
de batalha adversária deveriam se transformação já está agindo
contrapor? Por onde passa exatamente objetivamente nos processos de
a linha do conflito, necessária a toda modificação do trabalho – deveríamos
dinâmica política? Nesse ponto estou de nos perguntar –, por que intervir
acordo com as posições de Tronti: o politicamente? Em Negri, o caminho para
político requer a divisão amigo/inimigo. essa tradução conceitual do econômico
Também aqui retorna o discurso do ao político passa pela ontologia. Aqui se
negativo, de certo modo excluído do de sente a presença do modelo spinoziano
Negri – tão afirmativo, tão confiante na reelaborado por meio de fortes
potência imanente das coisas, que às referências ao plano da imanência de
vezes parece permanecer sem confins, Deleuze. A produção é interna a uma
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existência que reenvia a vida e natureza a de Deleuze – que Negri assimila talvez
juntas. Esta última é produção de vida, no facilmente demais. Foucault sabia bem
sentido subjetivo e objetivo da que o desejo, assim como o amor ou a
expressão. Produzida pela vida e felicidade, não é uma categoria política,
produtiva de vida. Mas a passagem da ao contrário do que Negri parece
ontologia para a política permanece entender; ou de qualquer forma não
problemática, assim como a referência bastam para determinar a política se
imediata a uma natureza que não passe não acertam as contas com o poder.
pelo artifício – isto é, por uma obra Sobre esse tema se abre o contraste
instituinte. De fato, enquanto uma entre Foucault e Deleuze no último
ontologia radicalmente afirmativa – diálogo de ambos, já que o desejo não
como aquela de Deleuze – é pensável, basta para criar uma conotação ou uma
para a política o discurso é menos perspectiva política – é necessária a
simples. Não se deve confundir o próprio determinação externa e a determinação
ponto de vista afirmativo – e digo isso interna: a divisão poder/resistência que
também confrontando a mim mesmo e põe em jogo a questão do negativo.
meu trabalho – com um cancelamento da
realidade do negativo. O negativo Sem dúvida, o poder constituído tem
existe. Ademais, de várias formas, ele sempre ao seu lado – ou a si contraposto
parece dominar o cenário – o poder constituinte, como Negri nos
contemporâneo. Claro, ele é enfrentado, ensinou em um dos livros decisivos do fim
gerenciado, derrubado. Mas não do século [O poder constituinte: ensaio
removido. Nem Spinoza – para quem sobre as alternativas do moderno], que
omnis determinatio est negativo – pode está na raiz do pensamento italiano
fazê-lo; não obstante sua induvidosa contemporâneo e também na fonte do
distância de Hobbes, assim como a partir italian thought. Mas o grande problema
do horizonte de Rousseau e de Hegel, ao político e teorético que esse texto
qual às vezes ele é aproximado, contém, longe de estar resolvido,
permanece a determinação ligada à permanece como o da sua articulação-
realidade do negativo. E isso para não distinção-oposição em relação ao
falar de Maquiavel – sobre o qual Negri paradigma soberano, com o qual divide
trabalhou longamente –, que conhece em a categoria da decisão. Como
toda sua intensidade o peso do negativo. diferenciar uma decisão constituinte em
O léxico de Maquiavel é inteiramente relação a uma soberana? Pode haver
ligado à realidade ineliminável do uma decisão includente que não seja, ao
conflito, do contraste, ao tema do limite mesmo tempo, também excludente de
– que, por outro lado, é excluído de um outra coisa? Pode-se decidir sem passar
discurso totalmente afirmativo da pura pela linha entre o “dentro” e o “fora”? É
imanência à la Deleuze. possível instituir um poder constituinte
expulsando a questão do “fora”? E o que
Nesse ponto há uma dificuldade – seria um mundo sem “fora” – como
prática e teórica – não só de Negri, mas aquele do Império? Uma imanência
de todos nós. De toda biopolítica privada de limites internos e externos?
afirmativa, de todas filosofias da Trata-se de um problema – uma vez
imanência. É inútil esconder isso. É uma mais, aquele da relação com o negativo
dificuldade que explica também as – que está longe de ser resolvido por
incertezas do último Foucault e o atrito todos nós. Mas tenho a impressão de que
jamais superado entre sua perspectiva e o “fora” não pode ser expelido, já que
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essa expulsão seria, em última análise, considerações quanto o positivo, sempre.
uma categoria negativa. O trabalho de É também caricatural dizer que o
Negri representou por algumas décadas, constitutivo se afirma linearmente sem
e ainda representa, um dos mais conhecer o negativo. Ao contrário, estar
potentes dispositivos filosófico-políticos e dentro do real significa estar sempre
teoréticos com o qual cada um de nós diante de alternativas, escolher entre o
precisa se confrontar. Medindo o seu, positivo e o negativo, entre ser e não ser.
mas sobretudo os nossos, limites. É por Para nos entendermos, nesse tema julgo
isso que, antes mesmo de discuti-lo, que estou mais próximo de Foucault do
devemos agradecer por ele. que de Deleuze, mais próximo da
descontinuidade histórica do que da
desterritorialização. Porque a espessura
II - Antonio Negri
histórica, o existir dentro dessa
Caro Roberto, agradeço pela sua materialidade complexa é o único milieu
intervenção, precisa como sempre. Não no qual o pensamento e a prática
resumirei as questões que você põe e não encontram sentido. Fazer política
quero sublinhar algumas inexatidões nos significa escolher – coletivamente – e é
pressupostos que você indica. Ao invés nessa luta pelo conhecimento que se
disso, vamos juntos ao fundo da questão: exprime uma prática do verdadeiro.
o que significa pensar de forma Porque o verdadeiro não é fixidez ou
afirmativa e constituinte? Nunca tendo nua correspondência com o real, mas
gostado muito do que chamamos de construção do comum.
“filosofia eterna” e tendo mais
frequentemente me dedicado às ciências Tomemos agora as três categorias das
sociais e históricas para averiguar a quais você vê o declínio: império,
verdade e a ação política de classe (ou multidão, comum.
seja, a favor dos explorados), para 1. Império. Quando falo da crise da
construir as minhas ações (foram soberania, falo da crise da soberania
importantíssimos para mim o jovem Hegel moderna – ou seja, da crise do Estado-
e o jovem Marx!), aprendi que os nação, na acepção do direito público
processos sociais são sempre europeu d’antan. Hoje me parece que a
contingentes e que a história é globalização deslocou a soberania
descontínua e só eventualmente nacional – no sentido de ter atenuado de
atravessada por tendências estáveis. maneira radical sua capacidade de
Assim, pensar de maneira afirmativa e decidir em matéria monetária
constituinte quer dizer entrar “ali dentro” (capacidade de configurar a ordem
e dispor o próprio pensamento para agir econômica) e cultural (capacidade de
– na contingência – em relação a essas comandar a comunicação). Essas
eventualidades e tendências. Para dizê- constatações parecem banais – a
lo sinteticamente: “pensar por soberania absoluta dos Estados-nação
dispositivos” (pensamento afirmativo) foi perdida. Nesse ponto devemos nos
buscando identificar tendências perguntar se essa crise (diminuição da
favoráveis à liberação da exploração soberania das nações) constitui uma
(pensamento constituinte). Dito isso, me tendência irreversível, se é favorável ou
parece bastante caricatural declarar não e se devemos usar nossas
que o pensamento afirmativo não pode capacidades constituintes para facilitá-
assumir problematicamente o negativo. la ou não. Em relação ao primeiro ponto,
O negativo está tão presente em nossas
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creio que essa crise seja irreversível, já e democracia no império). Dessa maneira,
que a globalização capitalista é o problema não é se a tendência à
irreversível. A leitura do terceiro volume globalização é irreversível: só é incerto
de Das Kapital é aqui necessário para quem a comandará. A luta pela
quem não teve tempo de estudá-lo. Por hegemonia em relação à globalização
outro lado, é verdade que certamente modificará algumas de suas
“globalização” não significa “império”, determinações (regras jurídicas ou
ou seja, ordenamento político global e governamentais, essencialmente), mas
consequente transferência das não sua natureza. Em todo caso, essas
soberanias nacionais a uma autoridade modificações não dirão respeito aos
supranacional. Mas é também verdade Estados-nação hodiernos, que estarão
que a globalização dos mercados (que sujeitos a uma ou outra potência global,
quer dizer a mundialização da produção talvez se tornando unidades
e da reprodução da vida, da administrativas ou mais provavelmente
financeirização e da extração social do simples expressões geográficas
valor) precisa de uma ordem. E no redefinidas pela logística global dos
sistema capitalista ordem significa mercados. O que vemos reemergir hoje
comando – assim, a globalização na Europa (sobretudo nos países ex-
capitalista requer o império. Essa lógica soviéticos do Leste agora integrados à
não é marcada por uma vontade União) e em outros lugares é o último
transcendental, mas imposta pela movimento de uma concepção de Estado
concretude das lutas. Por outro lado, a (de uma ilusória homogeneidade
luta em torno do exercício do poder nacional) que vem da modernidade e
imperial se desenvolveu continuamente que por vezes é retomada como se o
desde o século XIX – e se Braudel vê processo histórico fosse reversível. Não
precedentes em alguns outros séculos, de só não é, mas seria ingênuo pensar que
qualquer forma é a partir do século XIX sua irreversibilidade pudesse ser
que ela conheceu desenvolvimentos pensada como uma simples sucessão de
caracterizados por uma particular formas paradigmáticas (depois da
ferocidade, sobretudo no “século breve”. soberania, o império; depois do império,
Essa luta foi depois qualificada pelo o retorno à soberania). Aqui também
falido “golpe de Estado” dos Estados Foucault ensina: as formas não se
Unidos da América em relação à sucedem, mas se sobrepõem e se
globalização nos anos posteriores ao fim reformulam, e os resíduos soberanos são
da guerra fria e, nos anos 90, à primeira eles próprios produzidos e qualificados
guerra iraquiana, prolongando-se até a pela forma império. É desejável essa
crise de Wall Street em 2007. Tal luta diminuição soberana do Estado-nação?
pela hegemonia imperial está hoje Estou convicto que sim. Com efeito, penso
completamente aberta e parece se que as nações, os povos e as pátrias
configurar em uma perspectiva não representam o negativo – sempre capaz
multipolar, mas oligoplural (Estados de se transformar em fascismo – na
Unidos da América, China, talvez a civilização contemporânea. Não atribuo
União Europeia, talvez a Rússia...) de às nações apenas a tragédia das
todo incerta e perigosa. De fato, nos guerras europeias, as atrocidades do
encontramos expostos, na luta pela colonialismo, a mistificação do socialismo,
leadership imperial, à presença atual e à o conluio com os ordenamentos
eventualidade futura de guerras (sobre hierárquicos da igreja e do patronato,
isso, ver de modo geral Multidão: guerra mas também e sobretudo a construção
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de classes políticas e culturais incapazes que você, diante dessa constatação
de se adequar à globalização e determinista, não queira “usar a
responder às necessidades das carapuça” (como outros fizeram em
populações nessa perspectiva. condições análogas), deverá admitir que
é bastante tosco (e talvez uma opção
2. Diante de tudo isso, como dispor nossa totalmente ideológica) recorrer ao
capacidade constituinte? Não se pode determinismo tecnológico para eliminar a
dispô-la a não ser construindo uma potência produtiva do trabalho vivo e
multidão capaz de autogoverno. Para sua capacidade de determinar
você a multidão é uma “categoria resistência (constituinte). O fato é que,
dialeticamente ligada a de Império”. como tentei demonstrar em todos esses
Que seja! Para mim é uma categoria anos, o atual modo de produção, longe
ligada ao desenvolvimento do de totalizar a produção de
“operário-social”, à sucessiva definição subjetividade, revela sua “implicação
da hegemonia tendencial do trabalho paradoxal”: quanto mais ele explora a
imaterial nos novos modos de produção, força de trabalho (imaterial, intelectual,
à descoberta da singularização da social), mais se põe em jogo a
atividade laborativa, ao subjetividade, quanto mais ele normaliza
aprofundamento da análise do trabalho essa forma de exploração, mais
cognitivo – em suma, ao uso e à necessita de prestações singularizadas.
articulação da indicação marxiana do Além disso, a produtividade dessa força
general intellect por meio da análise de trabalho não nasce somente da
empírica das mutações tecnológicas e à implicação no modo de produzir
análise sociológica das transformações (tecnicamente definida como “trabalho”),
das “formas de vida”. Dito no jargon mas também das “formas de vida” nas
operaista: análise da “composição quais ela produz a si mesma. Que no
técnica” e da “composição política” da biopolítico se encarne sobretudo aquilo
classe trabalhadora. Pois bem, a partir que você chama de negativo, que o
da análise dessa nova força de trabalho, sofrimento do trabalho seja maior em um
acaba se fortificando a “duplicidade” trabalhador da IBM do que tenha sido
que Marx lhe tinha atribuído: força de para um minerador, pode ser que seja
trabalho sujeita ao capital e trabalho verdade, ainda que pouco crível:
vivo produtor de capital, força de todavia, em todo caso esse negativo não
trabalho dentro do capital e classe pode ser introduzido na ontologia da
operária contra o capital. Trata-se de subjetivação. A subjetivação é dada
uma duplicidade de todo elementar na pela potência produtiva que o trabalho
definição da força de trabalho e da luta vivo carrega em si e pela relação social
de classe (ademais, é uma formulação já cooperativa na qual se exprime – se ela
amplamente difundida entre os filósofos fosse anulada na produção, não haveria
da interpretação kojèviana de algumas produtividade, aumento de valor e nem
passagens da Fenomenologia hegeliana). mesmo capitalismo! É de fato possível
Mas agora você me lembra que “o que, lamentando a colonização do
desenvolvimento tecnológico não é trabalho, o sofrimento e a fadiga que
separável do comando capitalista que o dele derivam, não se queira entender a
dirige, orientando-o para os próprios potência produtiva desse mesmo
fins” e que “por meio desse canal se trabalho? O negativo é um obstáculo e
geram novas formas de subjetivação que não um destino; negativo é o comando,
são tudo menos livres”. Considerando mas ele não pode se dar sem resistência.
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Ademais, não é a você que devo lembrar passados, tentaram construir espaços de
que o capital é uma relação. Onde há vida comum; as grandes lutas operárias
comando, há resistência, e nisso Foucault contra as reformas liberais das leis
é inteiramente marxista (permito-me trabalhistas; as assembleias
aqui fazer referência ao meu Marx e democráticas em torno de Sanders e
Foucault). Toda determinação é Corbyn; os fluxos de demanda política
resistência. Nietzsche, leitor de Spinoza, que pressionam pela renda de
sabe bem disso. E é a resistência que cidadania... Nenhum vencedor? Se são
constrói o ser. Bon, postas essas assumidos parâmetros jurídicos e/ou
afirmações metafísicas entre parêntesis, políticos (por exemplo à la Dardot &
ainda assim me parece possível concluir Laval), certamente não – a demanda
aqui que é só na globalização que as instituinte que insiste na mediação (como
lutas do trabalho, que as lutas em instância externa ao comum) tolhe
relação ao welfare e à reprodução social qualquer possibilidade de qualificar a
podem se dar com eficácia, já que é direta “constituição” desses eventos.
nesse nível que elas podem conhecer a Então, nenhum vencedor? Sim e não.
inteira negatividade do comando Porque uma luta específica pode não
capitalista organizado. A multidão se vencer no terreno local, mas acumula
organizará para vencer o capital? dificuldades para a gestão do comando
Conseguirá construir instituições, global. Isso significa que não se deva
“empresas” capazes de lutar contra a lutar no terreno local? Que as lutas são
exploração social, global, e assim inúteis, destinadas à derrota? Ao
governar uma sociedade liberada (da contrário: cada luta singular é
exploração e, portanto, do trabalho)? imediatamente relevante no terreno
global. Entre outros, esse é um
3. É só quando analisamos o comum como ensinamento muito importante do
cimento da cooperação na qual as leninismo – daquele leninismo hoje muitas
singularidades se organizam para a vezes usado, de maneira desastrosa,
produção social, sendo assim não só o para reivindicar soberanismo e
munus da communitas como, por outro nacionalismo. Todavia, trata-se de um
lado, você vê, mas o produto de um agir ensinamento que nos reconduz à
comum – é somente agora que podemos ontologia afirmativa e constituinte, a
começar a responder a questão sobre Maquiavel caso se prefira, mas também
como agir para organizar a luta contra a todos os militantes pela insurreição do
o comando capitalista sobre a comum quando agem em relação a
globalização. Só se pode construir eventos que se adequam à tendência.
instituições capazes de se dirigir a esse Então, nenhum vencedor? Estejamos
objetivo quando a multidão se estende atentos: seria ingênuo pensar uma vez
sobre o comum, ou seja, consegue tecer mais que o enquadramento histórico dos
fluxos organizativos capazes de romper poderes registre apenas a tomada dos
as cadeias do poder. Posso dar milhares “Palácios de Inverno”: toda resistência –
de exemplo disso: limitando-os às últimas ainda que aparentemente derrotada –
notícias, posso citar os movimentos requalifica constitutivamente a inteireza
desenvolvidos a partir de 2011 na do desenvolvimento histórico. E não digo
Espanha, nos Estados Unidos da América, isso para nos consolar, mas como mau
no Norte da África, no Oriente Médio, no agouro para a leadership!
Brasil etc.; depois todos aqueles que,
ajudando os migrantes nos meses e anos
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Você reprova em meu discurso um você parece ter de pensar a
implante ontológico que impede a possibilidade dessa nova composição
passagem ao político. Não vejo por quê. dos diversos na multidão (enquanto nova
A ontologia não antecipa nada – o real composição de classe) me parece devida
é construído. Entre fevereiro e outubro de ao fato de que você continua a pensar a
1917 não há continuidade ontológica – unidade em termos hobbesianos (em que
ela é criada pelo risco e pela decisão o princípio de organização deve dar
política. É um atravessamento daquilo unidade ao diverso – e aqui me sinto
que você chama de negativo e que não verdadeiramente deleuziano ao frisar
lhe concede nada. Ao contrário, parece- essa crítica). Como fazê-lo? – você
me que admitir que haja um “fora” do pergunta. Só a militância organizada
campo no qual se desenvolve a luta tolhe pode dizê-lo, só o programa da renda
a possibilidade de fazer política. Uma universal garantida pode talvez nos
figura transcendental do comando (de ajudar a caminhar nesse sentido. Tendo
modo a ser necessária para cada sempre presente – aconselho-o a fazê-
expressão de vida social ordenada e lo! – que as dificuldades não
produtiva) ou um negativo ineliminável, representam impossibilidades: o
um bloco essencial, um mal radical: tudo negativo não tem consistência dialética,
isso só pode exigir um katéchon. Um mas simplesmente negativa. O negativo
pensamento da imanência, afirmativo e sempre existirá porque é o nada, ou
constituinte, que se implanta sobre uma seja, aquilo que não é construído pelo
ontologia do comum (é isso que falta em homem. Concluindo: você disse: “hoje há
você) é imediatamente político. Construir um grande retorno do negativo”, “a
o Príncipe da multidão significa dar voz guerra tende a se tornar o novo princípio
ao comum e força à cooperação: constituinte”, “o nómos da terra volta a
recomeçamos a fazê-lo há algumas fazer repartições” e conclui que “o
décadas nas praças graças a um Estado-nação permanece sendo o único
proletariado hegemonicamente sujeito de constitucionalização das
cognitivo, depois de termos assistido à relações privadas que regulam o
crise do movimento operário nas mercado financeiro mundial”.
fábricas. Transformar a hegemonia
tendencial do trabalhador cognitivo em Parece-me que você só pode dizer isso
potência atual, transversal a todas as esquecendo o ponto de vista constituinte
classes de trabalhadores, é sem dúvida e dando voz ao negativo. A sequência
a missão política de hoje. Duas que você indica é, de fato, aquela que o
observações sobre isso. A primeira: princípio constituinte abomina. Se
independentemente do que dizem os efetivamente assumimos que se vai em
populistas hodiernos, essa tarefa não diz direção da guerra para defender a
respeito a segmentos reduzidos da propriedade privada e que essa
sociedade, mas à sociedade inteira tendência privilegia as nações em
posta para trabalhar, a toda a relação à globalização, disso não deriva
produção social (em especial aquela que o negativo tenha retornado com
organizada em plataformas) na qual a força, mas simplesmente se explica a
extração de valor compreende e urgência de combater com mais energia
requalifica também a exploração aquilo que você chama de negativo e eu
(aquele velho taylorista industrial e chamo de propriedade privada e
aquele novo taylorista fordista). Estado-nação que conduzem à guerra. A
Segunda observação: a dificuldade que constatação nunca é neutra – a verdade
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é sempre parcial, e aqui a parte é o
comum. Trata-se então de lutar contra o
retorno do Estado-nação. E isso não só
porque a globalização deve ser
reconhecida como o terreno sobre o qual
o equívoco da liberdade dos mercados
permitiu de alguma maneira o exercício
do “direito de fuga” da miséria por
parte de milhões de homens e o resgate
da miséria em muitos países do Terceiro
Mundo para outros milhões de homens;
não só porque permitiu às novas
tecnologias (quaisquer que sejam as
formas de assujeitamento que
determinam) colocar a humanidade em
comunicação; não só porque perturbou
as relações de dominação global
trazendo à luz a mesma corrupção e a
homogeneidade da crise – mas porque
nessa maturação dos tempos é
finalmente pensável a revolução
mundial. Ou melhor, é possível ler os
nomes singulares da libertação na língua
do comum. E provavelmente sobre isso
estamos de acordo.

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NORMAS PARA SUBMISSIONS
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em formato Microsoft Word, - URLs for references were provided
OpenOffice ou RTF. when possible.
- URLs para as referências foram - The text must have line spacing of
informadas quando possível. 1.5 pt; font size 12 pt; italics instead
- O texto deve estar em espaço 1,5; of underlining (except URL
fonte de 12 pontos; itálico em vez de addresses); figures and tables shall
sublinhado (exceto em endereços be included in the text, not at the end
URL); as figuras e tabelas devem of the document in the form of
estar inseridas no texto, não no final attachments.
do documento na forma de anexos. - The text follows the style standards
- O texto segue os padrões de estilo and bibliographic requirements
e requisitos bibliográficos descritos described in Submission Guidelines.
em Diretrizes para Autoras. - In the case of submission to a peer-
- Em caso de arremesso a uma seção reviewed section (e.g. articles), the
com avaliação pelos pares (ex.: instructions available in “Ensuring
artigos), as instruções disponíveis em blind peer review” were followed.
“Assegurando a avaliação cega pelos
pares” foram seguidas.

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D I R E T R I Z E S P A R A AU T O R A S G U I DE L I NE S F O R A U T O R S

a) A (Des)troços só avalia e aceita a) (Des)troços will only accept


troços inéditos. unpublished papers.
b) Os troços deverão versar sobre a b) Papers shall be within the journal’s
linha editorial da revista e podem ser editorial line and can be forwarded
encaminhados a qualquer momento at any time through the website, with
pelo site, com a indicação do título, the indication of the title, authorship
autoria (máximo duas autoras) (maximum two authors) accompanied
acompanhada de até quatro by up to four academic qualifications
qualificações acadêmicas por autora, per author, in addition to full name,
além de nome completo, endereço mailing address, main and additional
para correspondência, e-mail email, institutional affiliation and
principal e adicional, filiação identification of the type of work,
institucional e identificação da which can be a scientific article,
modalidade do trabalho, que pode interview, essay, review or translation
ser artigo científico, entrevista, ensaio, (Exceptionally, we will accept
resenha ou tradução anonymous papers, or signed by
(Excepcionalmente, serão aceitos collective entities, research groups,
troços anônimos, assinados por social movements etc.).
coletivos, grupos de pesquisa, c) The author shall hold a PhD or a
movimentos sociais etc.). master’s degree; papers by PhD’s
c) A autora deve possuir o título de and master's students, authors with
Doutora ou Mestra, sendo aceitos only a undergraduate degree or
troços de mestrandas, graduadas ou authors without an academic degree
de autoras sem titulação, desde que will be accepted in co-authorship with
arremessados em coautoria com uma an author that holds an PhD. Co-
Doutora. Troços escritos em coautoria authorship papers shall meet all the
devem seguir todas as normas criteria defined above for each of
definidas acima para cada uma de their authors (In the face of
suas autoras (Constatada a existência exceptional articles, the journal’s
de troços excepcionais, as catadoras pickers may suspend such constraining
de (des)troços poderão suspender tais requirements).
exigências condicionantes). d) The editorial team will receive the
d) Os troços serão recebidos pelas papers and will send them, without
coletoras de (des)troços, que os identification, to the analysis of
remeterão, sem identificação, à anonymous reviewers for qualitative
análise de pareceristas anônimas assessment of its structure and content
para avaliação qualitativa de forma (double-blind peer review). The
e conteúdo (double-blind peer review). reviewers’ opinion may determine the
O parecer pode determinar o aceite acceptance for publication, the
para publicação, a sugestão de suggestion of amendments or the
modificações ou a recusa do troço. A paper’s rejection. Authors will have
autora terá acesso a todos os access to all opinions on their work,

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pareceres sobre seu troço, sem without identifying the reviewers.
identificação das pareceristas. Os Accepted papers that have been
troços aprovados e que venham a modified according to the reviewers’
sofrer modificações oriundas das suggestions shall be submitted again
sugestões das pareceristas deverão to (Des)troços. Papers can be written
ser novamente enviados para a in one of the following languages:
(Des)troços. Os troços podem ser Portuguese, English, Spanish, French or
escritos em um dos seguintes idiomas: Italian and shall comply with the
português, inglês, castelhano, francês following requirements (exceptional
ou italiano e devem observar os papers that subvert these
seguintes requisitos (podendo também requirements may also be accepted):
ser aceitos troços excepcionais que os
subvertam): 1. First page:
i) Title in the language in which the
1. Primeira página: paper is written and in English (if the
i) Título na língua de redação do texto text is written in English, it shall include
e em inglês (se o texto estiver a title in one of the other languages
redigido em língua inglesa, deverá mentioned above).
trazer título em um dos outros idiomas ii) Abstract in the language in which
citados). the paper is written and in English,
ii) Resumo na língua de redação do with a maximum of 200 words,
texto e em inglês (abstract) com, no including the field of study, objective,
máximo, 200 palavras, contendo o method, result and conclusion (if the
campo de estudo, objetivo, método, text is written in English, it shall include
resultado e conclusão (se o texto an abstract in one of the other
estiver redigido em língua inglesa, languages mentioned above).
deverá trazer resumo em um dos iii) 3 to 5 keywords in the language in
outros idiomas citados). which the paper is written and in
iii) De 3 a 5 palavras-chave na língua English (if the keywords are written in
de redação do texto e em inglês (se English, they shall also be presented in
as palavras-chave estiverem one of the other languages mentioned
redigidas em língua inglesa, deverão above).
ser apresentadas também em um dos iv) Beginning of the text.
outros idiomas citados).
iv) Início do texto. 2. Referencing Guidelines:
i) (Des)troços uses a footnote-style of
2. Citações: referencing, indicating the reference
i) As citações devem ser feitas em nota data according to the following
de rodapé, indicando os dados da example: AGAMBEN, The use of
fonte conforme o seguinte modelo: bodies, p. 167.
AGAMBEN, O uso dos corpos, p. 167. In books with subtitles, consider only
Em livros com subtítulo, considerar the title for the footnote citation.
apenas o título para a citação em ii) A list of references shall be
rodapé. presented in alphabetical order, at
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ii) As referências completas devem ser the end of the text, according to the
apresentadas em ordem alfabética, norms of NBR-6023 / ABNT and to
no final do texto, de acordo com as the following examples:
normas da NBR-6023/ABNT e Book: ESPINOZA, Baruch de. Tratado
seguindo o seguinte modelo: teológico-político. 3. ed. Trad.,
Livro: ESPINOZA, Baruch de. Tratado introdução e notas Diogo Pires
teológico-político. 3. Ed. Trad., Aurélio. Lisboa: Imprensa
introdução e notas Diogo Pires Nacional/Casa da Moeda, 2004.
Aurélio. Lisboa: Imprensa Book chapter: DELEUZE, Gilles. Les
Nacional/Casa da Moeda, 2004. plages d’immanence. In: CAZENAVE,
Capítulo de livro: DELEUZE, Gilles. Les Annie; LYOTARD, Jean-François (eds.).
plages d’immanence. In: CAZENAVE, L’art des confins: mélanges offerts à
Annie; LYOTARD, Jean-François (eds.). Maurice de Gandillac. Paris: Presses
L’art des confins: mélanges offerts à Universitaires de France, 1985.
Maurice de Gandillac. Paris: Presses Articles: KALYVAS, Andreas.
Universitaires de France, 1985. Democracia constituinte. Trad.
Artigo: KALYVAS, Andreas. Florência Mendes Ferreira da Costa.
Democracia constituinte. Trad. Lua Nova: Revista de Cultura e
Florência Mendes Ferreira da Costa. Política, n. 89, pp. 37-84, 2013.
Lua Nova: Revista de Cultura e
Política, n. 89, pp. 37-84, 2013. iii) Graphs, charts, and tables shall
have a title and its source shall be
iii) Diagramas, quadros e tabelas indicated in a footnote.
devem possuir título e ter a fonte
indicada em nota de rodapé. 3. Formal structure:
i) Paper size: A4.
3. Estrutura formal: ii) File format: word.doc, word.odt or
i) Tamanho do papel: A4. word.rtf.
ii) Editor de texto: word.doc, word.odt iii) Font: Times New Roman, 12.
ou word.rtf. iv) Margins: left, top, right and
iii) Fonte: Times New Roman, 12. bottom: 2.5 cm.
iv) Margens: esquerda, superior, v) Indentation, before and after
direita e inferior: 2,5 cm. spacing: 0 point.
v) Parágrafo, espaçamento anterior e vi) Line spacing: 1,5.
posterior: 0 ponto. vii) Alignment: justified.
vi) Entre linhas: 1,5.
vii) Alinhamento: justificado. 4. Length:
From 15 to 30 pages.
4. Extensão:
15 a 30 páginas.

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A S S E G U R A ND O A A V A L I A Ç Ã O E N S U R IN G B L I N D P EE R R E V I E W
CEGA PELOS PARES

(Des)troços’ follows the double-blind


A política de avaliação da model of peer review, that is, the
(Des)troços é “duplo-cega”, ou seja, reviewers do not know the names of
as avaliadoras não conhecem o nome the authors and vice versa. In order to
das autoras e estas, das avaliadoras. guarantee an exempt review of the
Como forma de garantir uma paper, the authors must follow the
avaliação isenta do artigo, as autoras following guidelines:
devem seguir as seguintes 1. Write the paper according to the
orientações: Submission Guidelines.
1. Escreva o troço segundo as 2. In this file, replace all the
Diretrizes para Autoras. information about the author (s),
2. Neste arquivo, substitua pela including institution, link, e-mail for
palavra “Autor(a)” todas as contact and mini resume, for the word
informações sobre a(s) autora(s), "Author". Likewise, review the text
instituição de vínculo, e-mail para and replace any mention of the name
contato e mini currículo que constam (s) of the author (s) or the link
da página de abertura. Da mesma institution (s) by the word "Author",
forma, revise o texto e substitua including footnotes, references and
qualquer menção ao(s) nome(s) da(s) citations by the authors themselves.
autora(es) ou à(s) instituição(ões) de 3. Delete the "Acknowledgments"
vínculo por “Autor(a)”, seja no corpo topic at the end of the paper, if it was
do texto seja nas notas de rodapé, entered.
incluindo referências e citações das 4. In Microsoft Office documents, the
próprias autoras. author's identification must be
3. Apague o tópico “Agradecimentos” removed from the document's
ao final do troço, caso tenha sido properties.
digitado. 5. Carefully observe the indications in
4. Em documentos do Microsoft Office, the Bibliographic References where
a identificação da autora deve ser there should also be no indication of
removida das propriedades do authorship.
documento. 6. Submitted papers that do not
5. Observar, com cuidados, as follow these guidelines will be
indicações nas Referências returned to the authors.
Bibliográficas onde não se deve ter,
também, nenhuma indicação de
autoria.
6. Troços submetidos à avaliação que
não seguirem estas orientações serão
devolvidos às autoras.

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D E C L A R A Ç Ã O D E DI R E I T O A UT O R A L COPYRIGHT NOTICE

Autoras que publicam nesta revista Authors who publish in this journal
concordam com os seguintes termos: agree to the following terms:
- As autoras mantêm os direitos - Authors retain their copyright and
autorais e concedem à (Des)troços o grant (Des)troços the right to first
direito de primeira publicação, com o publication, with the paper
(des)troço simultaneamente licenciado simultaneously licensed under the
sob a Licença Creative Commons Creative Commons Attribution License.
Attribution. Essa licença permite o This license allows sharing of work
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que sem fins comerciais. - It is allowed and encouraged that
- É permitido e incentivado que outros others distribute, adapt, and create
distribuam, adaptem e criem a partir from their papers, without commercial
do seus (des)troços, sem fins purposes, as long as they give it due
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capítulo de livro), com reconhecimento acknowledgment of authorship and
de autoria e publicação inicial nesta initial publication in this journal.
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- As autoras têm permissão e são encouraged to publish and distribute
estimuladas a publicar e distribuir their papers online after the editorial
seus (des)troços online após finalizado process for publication is finished, as
o processo editorial com a this can generate productive changes,
publicação, já que isso pode gerar as well as increase the impact and
alterações produtivas, bem como citation of the published work.
aumentar o impacto e a citação do
trabalho publicado.

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