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Não conheço hoje em dia um único esquerdista que consiga ler uma página inteira de Hegel, mas

na prática a conduta política e até pessoal de todos eles reflete a lógica do filósofo de Jena com
uma exatidão quase literal. O modo dialético de pensar se impregnou tão profundamente na
cultura do movimento revolucionário, que se transmite aos militantes, simpatizantes e
“companheiros de viagem” por impregnação passiva de hábitos, de símbolos, de reações
emocionais, de giros de linguagem, sem necessidade de aprendizado consciente nem possibilidade
de filtragem crítica.

Os adversários do esquerdismo, por sua vez, estão de tal modo habituados a esquemas
de pensamento lógico-formais, absorvidos seja das ciências naturais, seja da economia austríaca,
seja mesmo da formação escolástica no caso dos católicos, que tendem incoercivelmente a
explicar a conduta esquerdista em termos da coerência linear entre doutrina e prática, ou entre
fins e meios, e assim perdem de vista o que há de mais característico no movimento
revolucionário, que é justamente o aproveitamento sistemático das contradições. Só isso pode
explicar que seus repetidos sucessos no campo econômico e tecnológico sejam acompanhados de
derrotas cada vez mais espetaculares na cultura e na política.

Não posso aqui dar um resumo da filosofia de Hegel, mas há alguns pontos mínimos sem os quais
nenhuma compreensão da mente esquerdista é possível. Quem não tiver a paciência de aprendê-
los deve portanto conformar-se em ser vítima inerme e cega do processo revolucionário, sem
direito a sentir-se perplexo quando este o conduzir a um campo de trabalhos forçados ou à vala
comum dos “inimigos de classe”.

Desde que Platão enfatizou a separação entre o mundo dos entes corpóreos e o mundo das
“idéias” (ou mais propriamente “formas”), a distinção entre o absoluto e o relativo, entre o Ser e
os entes, entre o permanente e o transitório, entre estrutura e processo, se incorporou às raízes do
pensamento filosófico e científico no Ocidente ao ponto de que não é exagero resumir todo o
esforço intelectual de dois milênios e meio na busca dos fatores estáveis por trás dos fenômenos
em mudança. A idéia mesma de “leis científicas” é isso e nada mais.

O empreendimento de Hegel consistiu em introduzir nesse sistema de distinções uma confusão


profunda, geral e aparentemente insanável. Partindo da observação milenar de que o mundo dos
fenômenos é uma aparência ou manifestação do fundamento absoluto, ele dá um giro de cento e
oitenta graus na relação entre os dois mundos e reduz o absoluto ao conjunto das suas
manifestações relativas. Diz ele que o Ser, considerado em si mesmo, é idêntico ao nada; só a
sucessão das suas manifestações temporais lhe dá alguma consistência; logo, o tempo é a
substância da eternidade, o devir é a única realidade do ser. Já expliquei em outro lugar por que
essas teses são absurdas e por que não acredito que Hegel as tenha emitido por mero engano, e
sim por vigarice consciente (v. O Jardim das Aflições , São Paulo, É Realizações, 2004, pp. 168-169 e
176-179). Mas o que interessa aqui é mostrar as conseqüências metodológicas que ele tirou delas,
pois foram essas conseqüências que acabaram por moldar a mentalidade do movimento
revolucionário.

Se o devir é o Ser e se o único processo autoconsciente no conjunto do devir é a história humana,


esta se torna automaticamente o campo por excelência da auto-realização do Ser. O Espírito, o
Absoluto ou Deus é uma potencialidade inconsciente de si, que só se conhece e se realiza no
processo histórico tal como Hegel o compreende (o que implica, naturalmente, que Hegel em
pessoa seja o ponto mais alto da autoconsciência divina, modéstia à parte). Como no curso do
processo todos os momentos altos e baixos são igualmente necessários, todos eles são igualmente
portadores da verdade. A diferença entre a aparência e a realidade, que para o pensamento antigo
coincidia com a fronteira entre o transitório e o permanente, é assim sutilmente deslocada para
dentro do terreno do próprio transitório: a única verdade de cada fenômeno é o lugar que ele
ocupa no conjunto do processo (tal como Hegel entende o processo). O falso, o ilusório, é apenas o
que está isolado do processo, mas, como nada está isolado do processo, o falso não existe, é
apenas uma aparência de falsidade. A verdade, por sua vez, consiste apenas em estar inserido no
fluxo total, isto é, em ir para onde Hegel acha que as coisas vão.

Essa é a lei profunda que orienta e unifica o movimento revolucionário em todas as suas variantes
e modificações. Por exemplo, é notório que Marx ou Lênin jamais se preocuparam em descrever
como seria a futura sociedade socialista. Ao mesmo tempo, asseguram que todo o movimento
histórico vai na direção do socialismo. Mas como é possível saber com certeza que um certo
desenlace é inevitável, se não se sabe nem mesmo dizer que desenlace é esse? A resposta
implícita é a seguinte: não é a finalidade que determina o processo, mas o processo é que
determina a finalidade. Esta não é senão o processo mesmo considerado na sua totalidade. Isso
implica, naturalmente, que a finalidade conscientemente alegada em cada momento pode mudar
de figura um número infinito de vezes sem que se perca a unidade do processo. Por isso é que os
esquerdistas tanto mais se apegam à unidade do movimento revolucionário quanto mais os
objetivos pelos quais lutam em vários lugares e momentos são inconexos e contraditórios entre si.
Os militantes seguem a liderança com igual fidelidade quando ela os manda fomentar a economia
de mercado ou substituí-la pela estatização dos meios de produção; quando ela os manda
combater todo nacionalismo como expressão da obstinação reacionária ou, ao contrário, criar
movimentos nacionalistas; quando ela apóia o nazismo ou luta contra o nazismo; quando ela
condena a liberdade sexual como sinal da decadência burguesa ou quando ela fomenta a mais
extrema anarquia erótica contra o império do “moralismo burguês”. E assim por diante. O
observador alheio às sutilezas do esquerdismo vê nisso incoerências escandalosas que, a seu ver,
ameaçam a unidade do movimento revolucionário ao ponto de torná-lo inofensivo perante os
triunfos econômicos e técnicos do capitalismo. Mas é dessas incoerências que se alimenta o
processo – e o processo é tudo. Quando já no século XIX os revolucionários adotaram o uso de
designar-se a si próprios genericamente como “o movimento”, estava claro para eles que a unidade
desse movimento não estava na luta por objetivos definidos, mas na capacidade ilimitada de
comandar o processo total das transformações, pouco importando a direção para onde estas
fossem a cada momento. A ambigüidade, as manobras em zigue-zague, a incoerência mais
alucinante incorporaram-se não só à práxis do movimento revolucionário, mas à personalidade de
cada um dos seus participantes, tornando-as virtualmente incompreensíveis ao adversário que
desconheça dialética de Hegel.

Hegel acrescentou a essa concepção a idéia peculiarmente diabólica do “trabalho do negativo”. O


movimento deve reduzir ao mínimo indispensável o compromisso com objetivos definidos e
concentrar-se na destruição do existente. A destruição acabará determinando os objetivos em cada
etapa, pronta a trocá-los no instante seguinte se isto for útil à unidade do processo.

A mobilidade que esse modo de pensar confere à ação revolucionária desnorteia por completo o
adversário, que ao opor-se aos objetivos momentâneos da revolução nem imagina que pode já
estar colaborando com a próxima etapa do processo. Um dos aspectos mais perversos da mente
revolucionária é justamente que nela é impossível distinguir com clareza a ação profunda e a
camuflagem externa. O que num momento é mera camuflagem e pretexto pode se transformar em
objetivo real da ação no instante seguinte, e vice-versa. Quando o adversário imagina que
desvendou o ardil revolucionário, o ardil já se transformou no seu oposto. O governo militar
brasileiro, por exemplo, achou que perseguindo a “esquerda armada” e fazendo vista grossa às
ações aparentemente inócuas da “esquerda desarmada” estava dividindo e enfraquecendo o
movimento revolucionário. Mas a ala desarmada se aproveitou dessa mesma divisão para ir
tecendo em segredo a rede da hegemonia cultural gramsciana enquanto os soldados trocavam
tiros com Marighela e Lamarca. Quando o regime caiu, a esquerda que parecia vencida se levantou
como que do nada e rapidamente dominou o país, fazendo da derrota das guerrilhas uma vitória
política espetacular.

O movimento revolucionário, enfim, não obedece às leis da “ação racional segundo fins” conforme
as definia Max Weber e pelas quais o adversário procura em vão explicá-la. Na ação normal
humana, a distinção entre meios e fins é essencial ao ponto de que o predomínio dos meios serve
como prova de que os fins não foram atingidos. Quando, ao contrário, o objetivo é nebulosamente
indefinido e tudo quanto conta é a unidade profunda do movimento em si, os meios transformam-
se incessantemente em fins e os fins em meios e pretextos. Alguns estudiosos de Hegel disseram
que sua Lógica não é propriamente uma lógica, mas uma ontologia, uma teoria sobre a estrutura
da realidade. Acreditei nisso durante algum tempo, mas hoje vejo que não pode haver uma teoria
do ser quando se começa por dissolver a substância do ser na idéia do processo. A lógica de Hegel
é nada mais que uma psicologia, um estudo dos processos cognitivos que orientam (ou melhor,
desorientam) o movimento da história humana. Sob certos aspectos, é mesmo uma psicopatologia
– a lógica interna do desvario revolucionário.

É interessante, por exemplo, observar a imensa distância que há entre os critérios de veracidade
do revolucionário e os do intelectual ou homem de ação formado na tradição ocidental da lógica e
da ciência. Para estes últimos, a verdade é o pensamento confirmado pela experiência, de modo
que as verdades podem ser conhecidas uma a uma, articulando-se aos poucos em conjuntos
maiores. Para o revolucionário hegeliano, ao contrário, não existe a verdade dos fatos nem a
verdade do ser: a única verdade é a do processo histórico, isto é, a verdade da revolução. Cada
idéia ou proposição que se pretenda verdadeira deve portanto ser julgada tão somente pelo papel
que desempenha no conjunto do processo. Se ela o faz avançar ou fortalece, ela é verdadeira; caso
contrário é falsa, mesmo que coincida com os fatos. Vou lhes dar um exemplo local. Quando
começaram a espoucar os movimentos de protesto contra o governo Lula, a reação dos porta-
vozes petistas foi imediatamente atribuí-los às “elites”. Mas não era o próprio PT que, poucos
meses antes das eleições de 2002 e 2006, se gabava de ter (e tinha mesmo) o voto da classe mais
culta, portanto mais rica, enquanto os demais partidos exploravam a credulidade de uma multidão
de pobres analfabetos? É inútil, diante disso, acusar o petismo de hipocrisia. A hipocrisia
subentende a distinção entre a verdade conhecida e a falsidade alegada. Mas, na perspectiva
revolucionária, verdade e falsidade factuais são intercambiáveis, já que não existe verdade no nível
dos fatos e sim apenas no processo como um todo. Fortalecer o partido revolucionário é realizar a
verdade do processo, que abarca e transcende ou anula as verdades parciais e transforma as
falsidades em verdades. Ser o partido dos pobres é uma imagem que fortalece o partido
revolucionário, mas ser o partido das pessoas cultas também o fortalece. A ênfase do discurso
pode portanto recair num ponto ou no outro conforme as circunstâncias. Fatos e pretextos são
apenas a matéria plástica com que o discurso revolucionário molda a verdade do processo, isto é, a
sua própria vitória.

Outro exemplo. O mesmo movimento revolucionário que criminaliza a religião, lutando para
eliminá-la por meios que vão da propaganda ao genocídio, busca se traduzir numa linguagem
religiosa que o apresenta como a mais pura e elevada expressão dos ensinamentos de Nosso
Senhor Jesus Cristo. Novamente, a verdade não está nem na pregação anti-religiosa nem na
parasitagem do Evangelho: está no processo que se fortalece e se amplia pela força dessa mesma
contradição, absorvendo ao mesmo tempo a energia da crença religiosa e a do ódio anti-religioso.

Pessoalmente, já fui acusado por esquerdistas de ser um pobretão fracassado e de ser um afilhado
de poderosos, beneficiado por um fluxo abundante de verbas misteriosas. Não sou tolo o bastante
para denunciar isso como contradição. Se o processo tem de avançar seja pela afirmação seja pela
negação, seu adversário tem de ser acusado e destruído per fas et per nefas , como o cordeiro da
fábula. Isto pode nos parecer o cúmulo da canalhice, mas nenhuma canalhice em particular se
compara com a mãe de todas as canalhices, que é o movimento revolucionário em si. O militante
que o serve por meio de uma conduta moralmente impecável – segundo critérios “burgueses” de
julgamento – pode parecer mais aceitável aos observadores ignorantes do que o trapaceiro
compulsivo tipo José Dirceu ou Lula. Mas ele sabe perfeitamente que sua elevada moralidade é a
camuflagem com que o movimento encobre as ações dos embusteiros e vigaristas, tão necessárias
quanto as dele e unidas a elas por um nexo de solidariedade essencial. O “esquerdista honesto”, no
fundo, é o mais vigarista de todos. Onde o verdadeiro e o falso são intercambiáveis, também têm
de sê-lo o certo e o errado, o lícito e o ilícito.

Mas o abismo entre a mente revolucionária e a lógica do homem comum vai ainda mais fundo.
Este último acredita que pode conhecer verdades parciais por observação direta e inferência
simples, mesmo ignorando as verdades últimas e supremas. Não é preciso ser um sábio ou profeta
iluminado para distinguir a verdade e o erro nas situações imediatas. Qualquer que seja o sentido
último da existência, e mesmo supondo-se que jamais venhamos a conhecê-lo, os fatos são os
fatos, e eles julgam a veracidade ou falsidade das nossas idéias. Para o revolucionário, no entanto,
os fatos são aparências parciais ambíguas, cuja única veracidade está no “todo”, isto é, no conjunto
do processo revolucionário. É este que julga os fatos, sem poder ser julgado por eles. A diferença
de planos entre esses dois modos de apreensão da realidade é irredutível e imensurável. Os fatos
são conhecidos por intuição direta a partir dos sentidos. O “processo”, ao contrário, é uma
construção mental complexa, uma teoria. O homem comum, quando constrói teorias, as erige com
base nos fatos e testa sua veracidade pelos fatos. O revolucionário não pode fazer isso. Ele inverte
portanto a ordem racional do “dado” e do “construído”, do evidente e do hipotético, tomando este
último como verdade imediata e aquele como sinal algébrico cujo valor só a teoria, realizando o
processo num prazo incerto e por meios imprevisíveis, poderá decidir. Não há, pois, diálogo entre
o revolucionário e o homem comum. Este não entende a lógica daquele, aquele rejeita e destrói
pela violência da teoria e da práxis os critérios de veracidade em que este deposita toda a sua
confiança.

Esse abismo cognitivo revela-se, a todo momento, nas análises e previsões que os conservadores e
liberais inexperientes em estudos revolucionários insistem em fazer de um processo cuja lógica
lhes escapa no todo e nos detalhes. Eles se escandalizam, por exemplo, de que o partido líder das
campanhas moralizantes tenha se transformado no mais corrupto de todos os partidos tão logo
seu chefe chegou à Presidência. Apelam até ao adágio “O poder corrompe”, explicando o contraste
pelas más companhias, sem notar as únicas más companhias visíveis no horizonte são os
chamados “neoliberais”, isto é, eles mesmos, que assim aparecem no fim das contas como os
culpados dos crimes do partido governante, com grande regozijo para as facções de esquerda que
desejam se desvincular da imagem do PT conservando intacto o mito da santidade esquerdista.
Mas é claro, para quem conhece o assunto, que não há contradição objetiva nenhuma entre o
virulento moralismo petista dos anos 90 e o festival de devassidão governamental da década
seguinte. Ambos são momentos do processo, igualmente necessários, igualmente úteis,
igualmente meritórios do ponto de vista da moral revolucionária. Ambos fazem parte do “trabalho
do negativo”: a onda de acusações indignadas destrói a confiança pública nas instituições, a
corrupção desde cima desmantela a ordem legal para que o Partido se sobreponha ao Estado e o
neutralize.

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