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HISTÓRIA

CONTEMPORÂNEA

Professor Me. Rui Bragado Sousa

GRADUAÇÃO

Unicesumar
Reitor
Wilson de Matos Silva
Vice-Reitor
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de Administração
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de EAD
Willian Victor Kendrick de Matos Silva
Presidente da Mantenedora
Cláudio Ferdinandi

NEAD - Núcleo de Educação a Distância


Direção Operacional de Ensino
Kátia Coelho
Direção de Planejamento de Ensino
Fabrício Lazilha
Direção de Operações
Chrystiano Mincoff
Direção de Mercado
Hilton Pereira
Direção de Polos Próprios
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Direção de Desenvolvimento
Dayane Almeida
Direção de Relacionamento
Alessandra Baron
Head de Produção de Conteúdos
Rodolfo Encinas de Encarnação Pinelli
Gerência de Produção de Conteúdos
Gabriel Araújo
Supervisão do Núcleo de Produção de
Materiais
Nádila de Almeida Toledo
Supervisão de Projetos Especiais
Daniel F. Hey
Coordenador de Conteúdo
Priscilla Campiolo Manesco
Design Educacional
C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ. Núcleo de Educação a Yasminn Zagonel
Distância; SOUSA, Rui Bragado.
Iconografia
História Contemporânea. Rui Bragado Sousa. Amanda Peçanha dos Santos
Maringá-Pr.: UniCesumar, 2016. Reimpresso em 2019. Ana Carolina Martins Prado
245 p.
“Graduação - EaD”. Projeto Gráfico
Jaime de Marchi Junior
1. História. 2. Contemporânea. 3. EaD. I. Título. José Jhonny Coelho
ISBN 978-85-459-0206-5 Arte Capa
CDD - 22 ed. 901 Arthur Cantareli Silva
CIP - NBR 12899 - AACR/2
Editoração
Robson Yuiti Saito
Revisão Textual
Keren Pardini
Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário
João Vivaldo de Souza - CRB-8 - 6828 Ilustração
André Luís Onishi
Impresso por:
Viver e trabalhar em uma sociedade global é um
grande desafio para todos os cidadãos. A busca
por tecnologia, informação, conhecimento de
qualidade, novas habilidades para liderança e so-
lução de problemas com eficiência tornou-se uma
questão de sobrevivência no mundo do trabalho.
Cada um de nós tem uma grande responsabilida-
de: as escolhas que fizermos por nós e pelos nos-
sos farão grande diferença no futuro.
Com essa visão, o Centro Universitário Cesumar
assume o compromisso de democratizar o conhe-
cimento por meio de alta tecnologia e contribuir
para o futuro dos brasileiros.
No cumprimento de sua missão – “promover a
educação de qualidade nas diferentes áreas do
conhecimento, formando profissionais cidadãos
que contribuam para o desenvolvimento de uma
sociedade justa e solidária” –, o Centro Universi-
tário Cesumar busca a integração do ensino-pes-
quisa-extensão com as demandas institucionais
e sociais; a realização de uma prática acadêmica
que contribua para o desenvolvimento da consci-
ência social e política e, por fim, a democratização
do conhecimento acadêmico com a articulação e
a integração com a sociedade.
Diante disso, o Centro Universitário Cesumar al-
meja ser reconhecido como uma instituição uni-
versitária de referência regional e nacional pela
qualidade e compromisso do corpo docente;
aquisição de competências institucionais para
o desenvolvimento de linhas de pesquisa; con-
solidação da extensão universitária; qualidade
da oferta dos ensinos presencial e a distância;
bem-estar e satisfação da comunidade interna;
qualidade da gestão acadêmica e administrati-
va; compromisso social de inclusão; processos de
cooperação e parceria com o mundo do trabalho,
como também pelo compromisso e relaciona-
mento permanente com os egressos, incentivan-
do a educação continuada.
Seja bem-vindo(a), caro(a) acadêmico(a)! Você está
iniciando um processo de transformação, pois quan-
do investimos em nossa formação, seja ela pessoal
ou profissional, nos transformamos e, consequente-
mente, transformamos também a sociedade na qual
estamos inseridos. De que forma o fazemos? Criando
oportunidades e/ou estabelecendo mudanças capa-
zes de alcançar um nível de desenvolvimento compa-
tível com os desafios que surgem no mundo contem-
porâneo.
O Centro Universitário Cesumar mediante o Núcleo de
Educação a Distância, o(a) acompanhará durante todo
este processo, pois conforme Freire (1996): “Os homens
se educam juntos, na transformação do mundo”.
Os materiais produzidos oferecem linguagem dialó-
gica e encontram-se integrados à proposta pedagó-
gica, contribuindo no processo educacional, comple-
mentando sua formação profissional, desenvolvendo
competências e habilidades, e aplicando conceitos
teóricos em situação de realidade, de maneira a inse-
ri-lo no mercado de trabalho. Ou seja, estes materiais
têm como principal objetivo “provocar uma aproxi-
mação entre você e o conteúdo”, desta forma possi-
bilita o desenvolvimento da autonomia em busca dos
conhecimentos necessários para a sua formação pes-
soal e profissional.
Portanto, nossa distância nesse processo de cres-
cimento e construção do conhecimento deve ser
apenas geográfica. Utilize os diversos recursos peda-
gógicos que o Centro Universitário Cesumar lhe possi-
bilita. Ou seja, acesse regularmente o AVA – Ambiente
Virtual de Aprendizagem, interaja nos fóruns e en-
quetes, assista às aulas ao vivo e participe das discus-
sões. Além disso, lembre-se que existe uma equipe de
professores e tutores que se encontra disponível para
sanar suas dúvidas e auxiliá-lo(a) em seu processo de
aprendizagem, possibilitando-lhe trilhar com tranqui-
lidade e segurança sua trajetória acadêmica.
AUTOR

Professor Me. Rui Bragado Sousa


Possui graduação em História pela Universidade Estadual de Maringá (2011),
especialização em Filosofia e mestrado em História Social (2014) pela mesma
instituição. Tem experiência no ensino de História com ênfase em História
Contemporânea e História das Religiões. Atua na rede pública do estado
do Paraná como professor de História e no Ensino Superior, modalidade a
distância, pelo Centro Universitário Cesumar - Unicesumar.
APRESENTAÇÃO

HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA

SEJA BEM-VINDO(A)!
Estimado(a) aluno(a), é uma satisfação e ao mesmo tempo uma responsabilidade ofere-
cer a você um manual didático de História Contemporânea, seguramente um dos perí-
odos mais complexos, em que a humanidade evoluiu tecnologicamente, militarmente,
cientificamente; mas, concomitante à evolução da técnica, houve retrocessos inima-
gináveis, guerras que elevaram ao absurdo o número de vítimas militares e civis. Um
tempo que trouxe consigo o paradoxo evidente entre evolução econômica e retrocesso
social. Eric Hobsbawm definiu bem o século XX como a “Era dos extremos”, mas a deno-
minação poderia ser aplicada a toda contemporaneidade (cronologicamente abordada
de 1789 até o 11 de setembro de 2001).
A partir dessa visão não linear da História é necessário estabelecer um método de análi-
se que interligue as cinco unidades do livro, um roteiro didático para organizar critérios
de avaliação e estudo do período. Em síntese, vale a máxima de Walter Benjamin (1994),
de que todo documento de cultura é também um documento de barbárie. A evolução
da técnica traz consigo um índice reverso, o retrocesso da sociedade. É nesse ponto
que o Positivismo fracassa como metodologia histórica (a ilusão de conhecer o passado
“como de fato foi”), porque, na evolução da técnica, o positivismo só foi capaz de reco-
nhecer os progressos da técnica, não os retrocessos da sociedade. A estética social de
Benjamin, crítico da modernidade, será o pressuposto para analisar o período em ter-
mos dialéticos e culturais, seguindo a tendência dos grandes centros e da intelligentsia
antropofágica brasileira, que em outros tempos consumiu Lukács e Gramsci e, nos anos
noventa, Edward Palmer Thompson. Assim, acreditamos estar levando ao(à) aluno(a) da
Unicesumar o que está em destaque na historiografia nacional, aliado, é claro, à didática
necessária.
Partindo das premissas da história cultural e de uma citação magnífica de Hobsbawm
(1998, p. 87), de que “o historiador das ideias pode não dar o mínimo para economia, e o
historiador econômico desprezar Shakespeare, mas o historiador social que negligencia
um dos dois não irá muito longe”, busca-se compreender as questões materiais, as lutas,
as revoluções, as guerras, a fome como a produção cultural da era contemporânea, co-
nhecida também como o mundo das superestruturas.
Na apreensão da História Social (econômica e cultural), a concepção dos historiadores
da Nova Esquerda Inglesa (Hobsbawm, Thompson, George Rudé, Raymond Williams)
fornece conceitos valiosos. Tal como descrito por Harvey Kaye (1989), essa escola resga-
ta a memória dos chamados vencidos em uma perspectiva “de baixo para cima”, isso é
de vital importância para a compreensão de que os grandes protagonistas da História
são as classes trabalhadoras, em um sentido etimológico da palavra “classes”, enquanto
coletividade, como relações e processos históricos. Nesse sentido, as classes baixas tor-
nam-se ativas na formação da História, como sujeito e objeto histórico, mais que meras
vítimas passivas, protagonistas no sentido de “fazer-se”, de Thompson (1987). Espera-se
que assim surjam – nas palavras de George Rudé (1991) – os rostos na multidão, gente
de carne e osso, e não apenas os termos teóricos e metodológicos, ou grandes reis, mi-
litares e sacerdotes, como na metodologia positivista.
APRESENTAÇÃO

Na análise da cultura moderna, os conceitos de Edward Said (1995), em Cultura e Im-


perialismo, têm afinidade com a metodologia utilizada nesse trabalho. “Cultura de-
signa todas as práticas, como as artes de descrição, comunicação e representação,
que têm relativa autonomia perante os campos econômico, social e político, e que
amiúde existem sob formas estéticas” (SAID, 1995, p. 13). A cultura, nesse sentido, é
uma forma de identidade, “uma espécie de teatro em que várias causas políticas e
ideológicas se empenham mutuamente”. Concebida dessa maneira, a cultura “pode
se tornar uma cerca de proteção: deixa a política na porta antes de entrar” (SAID,
1995, p. 13-14).
O conceito de “circularidade cultural” formulado por Mikhail Bakhtin e consolida-
do por Carlo Ginzburg permite compreender a influência mútua entre as esferas
econômicas e culturais e assim verificar o desenvolvimento moderno por meio do
mito do Fausto, por exemplo. O Fausto representa, expressa e dramatiza o processo
pelo qual, no fim do século XVIII e início do seguinte, um sistema mundial especi-
ficamente moderno vem à luz, diz Marshall Berman (1994). De forma semelhante,
os poemas de Charles Baudelaire denunciam o caos e a desordem e consolidam a
expressão le modernité. Nesse processo, é importante verificar a marcha das utopias
e o seu revés, o cientificismo da segunda metade do século XIX, assim como a dege-
neração do darwinismo no esclerosado darwinismo social. No século XX, o cinema
e as novas formas estéticas modernas também serão abordados em sintonia com os
grandes eventos históricos, como a Primeira Grande guerra, a Revolução Russa, os
fascismos e o holocausto.
Para um leitor mais cético e crítico quanto a essa metodologia, podem-suscitar ain-
da os exemplos de Hiroshima e Auschwitz, maior e mais destacado campo de con-
centração nazista, como contrapontos à evolução natural e linear da história. A his-
tória progrediu? Caberá ao leitor e futuro(a) professor(a) a resposta a essa questão
dúbia e espinhosa. Boa leitura!
09
SUMÁRIO

UNIDADE I

A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À


PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848)

15 Introdução

16 A Revolução Industrial

22 Os Trabalhadores e a Formação da Classe Operária

36 Revolução Francesa

47 A Era Napoleônica e o Congresso de Viena (1814-1815)

51 Considerações Finais

UNIDADE II

MODERNIDADE E “PROGRESSO”(1848-1900)

63 Introdução

64 1848 – Da Primavera dos Povos ao Golpe 18 Brumário de Luís Bonaparte


(A História se Repete?)

73 Do Socialismo Utópico ao Socialismo Cientítico: do Manifesto Comunista


à Comuna de Paris (1848-1871)

87 Matrizes do Pensamento Moderno: Nacionalismo, Darwinismo,


Positivismo

100 Da Revolução Industrial ao Imperialismo

106 Considerações Finais


SUMÁRIO

UNIDADE III

DA GUERRA À REVOLUÇÃO: PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL E


REVOLUÇÃO RUSSA

115 Introdução

116 Das Luzes à Escuridão: Origem e Causas da Primeira Guerra Mundial


(1900-1914)

124 A Primeira Grande Guerra: O Teatro de Operações (1914-1918)

131 “A Revolução que Abalou O Mundo”: A Revolução Russa (1917)

140 Formação da União Soviética, do Socialismo E Suas Consequências

145 Considerações Finais

UNIDADE IV

TEMPOS DE BARBÁRIE: FASCIMO, NAZISMO E SEGUNDA GUERRA


MUNDIAL (1919-1945)

155 Introdução

156 Da Reconstrução ao Caos: O Pós-Guerra até a Crise de 1929

163 Ascensão do Fascismo: Autoritarismo e Totalitarismo

168 Nazismo: Hitler e o Grotesco Terceiro Reich

176 A Segunda Guerra Mundial (1939-1945)

185 Considerações Finais


11
SUMÁRIO

UNIDADE V

DA GUERRA FRIA AO “FIM DA HISTÓRIA” (1945-2001)

195 Introdução

196 A Guerra Fria e o Isolamento da URSS

205 A Guerra Fria no Terceiro Mundo

212 A Guerra Fria na América Latina

215 Globalização, Descolonização e Neoliberalismo

222 A Queda do Muro de Berlim e o Fim do Socialismo Real

230 Considerações Finais

237 CONCLUSÃO
239 REFERÊNCIAS
245 GABARITO
Professor Me. Rui Bragado Sousa

I
A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA
REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À

UNIDADE
PRIMAVERA DOS POVOS (1789-
1848)

Objetivos de Aprendizagem
■■ Analisar a profunda transformação qualitativa na transição do século
XVIII para o XIX.
■■ Avaliar os avanços e retrocessos da Revolução Industrial e Francesa.
■■ Compreender a motivação dos motins populares e a formação da
classe operária moderna.
■■ Verificar a ascensão da burguesia como classe dominante e os novos
valores da modernidade.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Revolução Industrial
■■ Os trabalhadores e a formação da classe operária
■■ Revolução Francesa
■■ A Era Napoleônica e o Congresso de Viena (1814-1815)
15

INTRODUÇÃO

Nesta unidade, estudaremos, em termos cronológicos, a primeira metade do


século XIX. Em termos históricos, denomina-se História Contemporânea o perí-
odo marcado pelas formas de produção capitalistas (consolidado com a Revolução
Industrial, no setor econômico, e com a Revolução Francesa, em termos polí-
ticos) que prevalecem até os dias atuais. O título é claramente uma paráfrase
do clássico de Hobsbawm que abre a coleção das “Eras” (Revoluções, Capital,
Impérios, Extremos). O que não significa que o único referencial será esse his-
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toriador e sua metodologia. Pelo contrário, nosso foco visa estabelecer diálogo e
discussão com as demais vertentes historiográficas e, sempre que possível, per-
mitir que o leitor retire suas próprias conclusões, com embasamento referencial.
Ainda, a título de introdução, é necessário definir o moderno conceito de
Revolução. Nesse quesito, a chamada “história dos conceitos”, que tem no ale-
mão Reinhart Koselleck seu maior nome, é bastante relevante. Há, em geral, uma
imprecisão conceitual da expressão por se tratar de um produto linguístico da
modernidade. Escreve Koselleck (2006, p. 62):
O conceito semântico de “revolução” varia desde os movimentos de
deposição e/ou golpes políticos e sociais até inovações científicas deci-
sivas, podendo significar tudo ao mesmo tempo, ou apenas um desses
sentidos exclusivamente.

Revolução significa, etimologicamente, o retorno ou mudança de trajetória, um


movimento cíclico para os antigos. Com Copérnico e sua obra sobre as revolu-
ções dos corpos celestes, o termo torna-se um conceito físico-político. A partir
de Condorcet (teórico e político francês), o conceito passa da ciência para a polí-
tica, com a obra da Revolução Francesa.
Para Karl Marx (2010, p 146), há um nível de coincidência e interdependên-
cia entre revolução política e social: “toda revolução desfaz a velha sociedade;
nesse sentido, ela é social. Toda revolução derruba o velho poder; nesse sentido,
ela é política”. Mas Walter Benjamin (2012, p 129), o crítico da noção de pro-
gresso, inverte as premissas meramente evolucionistas do termo: “Marx disse que
as revoluções eram as locomotivas da história. Mas talvez elas sejam um pouco
diferente. Talvez as revoluções sejam a mão da espécie humana que viaja nesse

Introdução
16 UNIDADE I

trem puxando os freios de emergência”. Ou seja, parar um desenvolvimento


catastrófico também não deixa de ser uma revolução.
Trata-se evidentemente de um conceito variável, mas, quanto aos obje-
tivos desta unidade, basta compreendê-lo como uma alteração, rompimento
com as antigas formas de produção econômica (Revolução Industrial) e polí-
tica (Revolução Francesa).

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL

O período de 1770 a 1848 marca uma transição, uma mudança súbita no padrão
da evolução social e política. Descreve Geoge Rudé (1991, p. 3):
Para mencionar apenas algumas inovações, as fábricas urbanas, as
ferrovias, os sindicatos estáveis, um movimento trabalhista, as ideias
socialistas, bem como a nova Lei dos Pobres e uma força policial na
Inglaterra, eram indícios de que uma nova era, longe de estar sendo
criada, já havia surgido.

No campo econômico, toda essa transformação, no que se convencionou chamar


de “modernidade” ou era contemporânea, deve-se aos impactos da Revolução
Industrial.
A definição conceitual de
Revolução Industrial varia de
acordo com a concepção de cada
intérprete do tema. Mas, em linhas
gerais, seguindo os passos de Paul
Mantoux (1994) em obra clássica
sobre o evento supracitado, tra-
ta-se de uma mudança radical na
forma de produção de mercado-
rias, mudança esta que acarreta
uma série de alterações na cadeia

A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848)


17

produtiva, nos modos de produção e de trocas. A primeira revolução indus-


trial abarca o período de meados da segunda metade do século XVIII, de 1770
até 1830. Essa fase restringe-se, em um primeiro momento, ao mercado têxtil,
à produção de tecido que, na Inglaterra, funcionava como uma espécie de mola
para o desenvolvimento da indústria moderna. A segunda fase da revolução
eleva as invenções da primeira em âmbito mundial, não estará mais restrita à
Grã-Bretanha e diverge também pela diversidade da produção, no mercado de
transporte, ferrovias, navios a vapor, na indústria bioquímica e física, na medi-
cina, nos motores à combustão e, enfim, ao desenvolvimento dos combustíveis
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fósseis, o petróleo. No século XX, há o que alguns autores chamam de Terceira


Revolução Industrial, no ramo bélico, nas telecomunicações e na informática.
Mas, para os limites deste livro, analisaremos como tudo começou, isto é, por-
que ocorreu na Inglaterra e em meados do século XVIII.
Paul Mantoux (1994) caracteriza a moderna indústria pelo fato de substi-
tuir a força muscular (manufatura) por forças motrizes inanimadas. A produção
deixa de ser privilégio da mão humana (daí o termo manu-fatura), dos mestres
de ofício e artesãos medievais e passa para as máquinas. As consequências que
essa mudança traz ao corpo e à consciência humana são notáveis e é o objetivo
geral desta unidade compreender esse processo no decorrer de dois séculos. Na
segunda unidade, analisaremos conceitos como o “fetichismo da mercadoria” e
a “coisificação do trabalhador”, em que as funções são tecnicamente invertidas.
Mas, por hora, basta dizer que tal mudança brusca levou no máximo um século
para ser consolidada, rompendo com a produção manual e o saber humano em
uma tradição de milhares de anos que vem desde o homo faber e as toscas fer-
ramentas de pedra do período paleolítico.
Essa mudança radical ocorreu primordialmente no mercado de tecidos.
Mantoux (1994) afirma que falar em Revolução Industrial é falar em algodão.
Eric Hobsbawm, em Da Revolução Industrial Inglesa ao Imperialismo, afirma
que, de 1750 a 1770, houve aumento de 76% das exportações de algodão, perí-
odo que o autor descreve como “a pista da decolagem industrial”. Enquanto o
mercado interno proporcionava a fogueira, o comércio exterior ateou fogo à cen-
telha da industrialização.

A Revolução Industrial
18 UNIDADE I

A origem da Revolução Industrial e os problemas a serem elucidados no


decorrer desta unidade são: por que ter sido a Grã-Bretanha a primeira “oficina
mecânica do mundo” e o motivo pelo qual essa revolução ocorreu em fins do
século XVIII e não antes ou depois? A Inglaterra ingressou preparada na indus-
trialização, na segunda metade do século XVIII. Nesse período, já era um país
desenvolvido, com acúmulo de capital e já havia feito a “reforma agrária” (o cer-
camento das terras comunais). A Inglaterra estava atrelada ao comércio marítimo
mundial, configurando aquilo que Hobsbawm (1994, p. 48) descreveu como “um
sistema de fluxos econômicos”, de comércio internacional, transferências de capi-

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tal em nível mundial. “O capital para o desenvolvimento industrial foi fornecido,
direta ou indiretamente, por mercadores, traficantes de escravos e piratas, cujas
fortunas tinham sido acumuladas no ultramar”, afirma Christopher Hill (2003,
p. 285), historiador das revoluções inglesas e contemporâneo de Hobsbawm.

Por “Cercamento dos campos” compreende-se o processo pelo qual as ter-


ras comunais, de uso comum na Idade Média, passam a ser ocupadas pela
“gentry” (nobres) e pelos “yeomen” (classe rica de pequenos proprietários).
Os novos proprietários que surgiram após a Revolução Gloriosa (1688) ex-
pulsaram os camponeses dos campos, criando ao mesmo tempo um valor
de produção para a terra e uma massa urbana utilizada pelos burgueses du-
rante a Revolução Industrial.
Fonte: o autor.

A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848)


19

Convém lembrar que a supremacia inglesa nos mares deve-se aos famo-
sos “Atos de Navegação”, de Oliver Cromwell, publicado em 1651. Essa foi uma
medida claramente protecionista, pois estabelecia que todos os navios a atra-
carem nos portos ingleses deveriam ser britânicos. A intervenção do Estado
britânico fortaleceu a iniciativa privada e o desenvolvimento da burguesia daquele
país; antes atrasado e suplantado pela Espanha e Holanda, doravante esses atos
tomaram a dianteira do comércio marítimo mundial. Essa medida causou atri-
tos com países como a Holanda, que tentou inutilmente revogá-la por meio da
guerra, sendo derrotada em 1654. A Inglaterra tornava-se soberana dos mares
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

e, com isso, do comércio marítimo. Segundo a visão de Hobsbawm (1994, p.


46), o governo britânico estava disposto a “subordinar toda a política externa a
objetivos econômicos”.
Quanto às causas naturais, fatores climáticos, geográficos e matérias-primas
(como o carvão mineral), Hobsbawm (1994, p. 52) afirma que tais fatores “não
atuam por si sós, mas apenas dentro de um dado quadro econômico, social e ins-
titucional”. O autor também ignora as questões exógenas (de fora para dentro),
como, por exemplo, o ouro das Minas Gerais, utilizado largamente por Portugal
para sanar as dívidas obtidas pelo intransigente acordo de Panos e Vinhos, o
famoso Tratado de Methuen, de 1703. O desastroso acordo da compra de tecidos
exclusivamente da Inglaterra em troca da venda de seus vinhos causou o faleci-
mento de sua já incipiente manufatura e a impossibilidade de industrialização.
Uma questão instigante é que Hobsbawm não aceita a Reforma Protestante
como impulso para o desenvolvimento da Revolução Industrial. Ele discorda
radicalmente da tese de Max Weber e de sua famosa obra A ética protestante
e o espírito do capitalismo. Embora não cite o sociólogo alemão, Hobsbawm
traz argumentos razoáveis para negá-lo. Trata-se de uma visão materialista (de
que a base econômica ou material sobrepõe-se sobre o desenvolvimento cultu-
ral, a matéria influencia – ainda que não determine – a produção imaterial) em
detrimento do mundo das ideias de Weber (de que o “espírito do capitalismo
surgiu anteriormente ao desenvolvimento material”). Trata-se de uma eterna
dialética da história, a tese materialista versus a antítese idealista, ou vice-versa.
No final da unidade, há um texto indicado como leitura complementar que dis-
corre sobre essa complexa questão.

A Revolução Industrial
20 UNIDADE I

Para Hobsbawm (1994, p. 42), as pré-condições para a industrialização


já existiam na Grã-Bretanha setecentista, ou podiam ser criadas facilmente.
Eram condições como o acúmulo de capitais e a abundância de mão de obra e
um mercado interno forte que resistiu à independência dos EUA e às guerras
Napoleônicas e seu “bloqueio continental”. “O enigma está entre a obtenção do
lucro e a inovação tecnológica”, ele completa. Certamente as inovações tecnológi-
cas contribuíram para a obtenção de lucros, e os lucros, obviamente, fomentaram
novas inovações. É consenso entre os especialistas que a produção têxtil deu o
impulso necessário para a revolução tecnológica, primeiro com o acúmulo de

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
capitais e, depois, com o desenvolvimento de novos métodos mecânicos. Mas a
passagem da manufatura para a indústria deve-se, também, à produção de fari-
nha de trigo e de cerveja, importantes pioneiros da modernização. A invenção
da tiragem de cerveja sobre pressão foi um dos primeiros triunfos de Henry
Maudslay, pioneiro da engenharia industrial.
As inovações e invenções foram, assim, o pano de fundo da industrialização.
Invenções na manufatura têxtil forneceram o impulso econômico e tecnológico
da Revolução. A antiquada roca de fiar foi suplantada pela lançadeira volante
(flying shuttle), criada em meados de 1730; o filatório (spinning Jenny) de 1760
permitia ao artesão trabalhar com vários fios de uma só vez; em seguida veio
o tear movido à força hidráulica (water frame), de 1769; finalmente, a “mula”,
patenteada por Arkwright na década de 1780, funcionando com água ou vapor.
A máquina a vapor de James Watt (1769) consolidou o ciclo de inovações e per-
mitiu que as indústrias fossem instaladas em qualquer localidade e não apenas
próximo aos rios, para aproveitar sua energia hidráulica. Naturalmente as grandes
reservas de carvão mineral na Inglaterra contribuíram para acelerar o processo.
Vimos, portanto, que apenas na Inglaterra havia as condições propícias ao
desenvolvimento tecnológico, permitindo que esse pequeno país em território
se tornasse “a oficina mecânica do mundo” e elevasse a Grã-Bretanha ao status
de maior império marítimo e comercial dos oitocentos; processo decorrente da
ampliação das trocas, da divisão do trabalho (ou racionalização do trabalho que,
posteriormente, ocasionou a linha de montagem, onde cada trabalhador faz ape-
nas uma ínfima parcela do produto final) e da adoção de novas técnicas. Essa é
a visão geral de Paul Mantoux (1994).

A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848)


21

CONSEQUÊNCIAS DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL

Uma vez compreendidas as causas desse processo, podemos enumerar as conse-


quências da Revolução Industrial: 1) Divisão do trabalho entre a população ativa
de empregadores capitalistas, os donos dos meios de produção, e trabalhado-
res que nada possuíam senão sua força de trabalho, que a vendiam em troca de
salários, ou proletários na descrição de Marx. 2) Os atos mecanizados e repeti-
tivos dos trabalhadores, a mistura de homem e máquina reduz o homem à mera
condição de “autômato”. Voltaremos a essa questão do autômato na unidade III,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

sobre a ascensão do fascismo por meio da leitura do filósofo e historiador da cul-


tura Walter Benjamin. Por hora, basta lembrarmos do filme “Tempos Modernos”,
de Charlie Chaplin, que traz uma crítica descritiva e satírica da transformação
do homem em autômato. 3) Dominação de toda a economia, de toda a vida,
pela procura e acumulação do lucro por parte dos capitalistas. 4) Transição do
campo para a cidade.
Mas qual o impacto dessa mudança brusca na mentalidade dos homens?
Como foi a adaptação da classe trabalhadora às inovações técnicas? A transfor-
mação dos modos de produção e consumo acarretou também numa mudança
cultural, na alteração da própria noção de tempo histórico, de temporalidade, de
experiência de vida. Basta pensarmos na transição do campo para a cidade, da
população vivendo de acordo com o tempo da natureza, no ritmo de trabalho
necessário apenas para a manutenção de seu sustento, daí em diante, condiciona-
dos ao ritmo da fábrica, na disciplina do relógio em vez do badalar dos sinos ou
do canto do galo. Enfim, as consequências foram brutais e escapam da compre-
ensão de Paul Mantoux, que viu a exploração do trabalho infantil, as jornadas de
doze horas ou mais como exploração pelos subordinados industriais “e não pelos
capitalistas”. Como veremos, tal processo é um tanto mais complexo e carece de
uma apreensão mais detalhada para ser compreendido.

A Revolução Industrial
22 UNIDADE I

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Figura 1: O trabalho de mineração é característico de regiões industriais na Inglaterra durante a Revolução Industrial

OS TRABALHADORES E A FORMAÇÃO DA CLASSE


OPERÁRIA

OS TRABALHADORES E A CONSCIÊNCIA DE CLASSE

Em artigo debatendo as obras e os críticos da obra de Thompson, Sidnei Munhoz


(1993, p. 163) acredita que sua tese principal é que o processo de constituição
de classe trabalhadora se dá “em decorrência do fato de as pessoas estabelece-
rem, em seu cotidiano, identidades e diferenças, sentindo-se como integrantes
de um mesmo grupo ou de grupos antagônicos”. Em suma, a consciência que se
produz no desenrolar da ação humana, em suas lutas e batalhas, propicia a for-
mação da classe, dotando-a de uma consciência, mesmo que embrionária, como

A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848)


23

sentimento de “pertencimento” a uma determinada classe distinta e antagônica


daquela dominante. Essa “experiência coletiva” é melhor analisada no clássico
A formação da classe operária inglesa, também de Edward Thompson, bem
como o papel de movimentos como o cartismo e o ludismo ou os “destruido-
res de máquinas”.
No processo de formação de uma “consciência de classe” que diferenciava
os trabalhadores urbanos da burguesia e da nobreza, esses motins tiveram uma
função efetiva e simbólica. Na tentativa de manutenção dos direitos tradicio-
nais, destaca-se um movimento que ficou conhecido como Ludismo e os motins
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

“Rebeca e Swing” [oscilação, balanço]. Rebeca e suas “filhas” vêm do livro de


Gênesis 24.61: “E abençoaram Rebeca e disseram-lhe: que a tua semente possua
a porta dos seus inimigos”. Os motins Rebeca no País de Gales, como os motins
nos condados meridionais na Inglaterra, foram originados por várias causas,
todas, porém, ligadas à dissolução dos velhos laços da aldeia. À medida que a
indústria e a agricultura capitalista se desenvolviam, tanto o camponês como o
tecelão do tear manual estavam inevitavelmente condenados. Os nomes dos heróis
lendários, Rebeca, Ned Ludd (daí decorre a denominação Ludismo) e mesmo
o Capitão Swing, viveriam e cresceriam, como Robin Hood, no folclore. Seus
efeitos, porém, não se repetiriam e não teriam maior futuro do que as classes
cujos protestos expressaram por um breve momento (RUDÉ, 1991, p. 161-178).
Uma contribuição significativa de Hobsbawm está relacionada à tentativa de
apreensão de como ocorreu o progresso político da consciência de classe. Nesse
aspecto, a obra Os Trabalhadores, especificamente o capítulo intitulado “Os
destruidores de máquinas”, é de vital pertinência. Nesse estudo, o autor rechaça
mais uma vez a ortodoxia marxista que insistia em ver nos protestos de enfren-
tamento e quebra de máquinas uma rebelião desorganizada, sem liderança e que
refletia a ignorância da multidão frente à mecanização inevitável. Hobsbawm
(1981, p. 21-22) demonstra que, inversamente à opinião convencional, “é evi-
dente que a luta deles não foi uma simples luta contra o progresso técnico com
tal”, mas sim uma tentativa coletiva de fazer pressão aos empregadores, traba-
lhadores extras e furadores de greve, além de garantir a solidariedade essencial
entre os trabalhares.

Os Trabalhadores e a Formação da Classe Operária


24 UNIDADE I

A organização dos motins e protestos, ainda que clandestina, pois os líde-


res, se descobertos, eram frequentemente condenados ao degredo ou mesmo à
morte, teve como desdobramento maior a organização da classe operária em
forma de partido, no movimento denominado Cartismo, derivado da Carta
dos Povos (People’s Charter). Por volta de 1830 havia instituições de classe soli-
damente fundadas, como sindicatos, sociedades de auxílio mútuo, movimentos
religiosos, organizações políticas, periódicos. A esse processo, Thompson cha-
mou de “fazer-se da classe operária” (making of).
Apenas em 1824 os trabalhadores conquistaram o direito de livre associa-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ção. A partir daí as chamadas trade-unions se estenderam por toda a Inglaterra e
a união trouxe as armas da luta necessária, como a greve ou breves paralisações
do trabalho (turn-out). Mas, em geral, essas associações eram constantemente
derrotadas pelos fura-greves e pela “lei de oferta e procura de homens”, isto é, a
massa de desempregados substituía os grevistas. Concomitante ao enfrentamento
aberto, ao incêndio de fábricas, aos motins, a classe trabalhadora organizou-se em
termos políticos, por meio da “Carta do Povo”, que reivindicara ao Parlamento
(Câmara dos Comuns) sua participação democrática. Em 1838, uma comissão
da Associação dos Operários de Londres, tendo à frente William Lovett, definiu
a Carta do Povo em seis pontos principais (THOMPSON, 1987):
1. Sufrágio universal para todos os homens adultos sadios e não condena-
dos por crimes.
2. Renovação anual do Parlamento.
3. Fixação de uma remuneração parlamentar a fim de que os próprios tra-
balhadores sem recursos fossem eleitos.
4. Eleições por voto secreto, para evitar a corrupção e intimidação pela
burguesia.
5. Circunscrições eleitorais para assegurar as representações equitativas.
6. Abolição da lei que permitia a eleição apenas por renda àqueles que tinham
propriedades de terras no valor de pelo menos 300 libras.

A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848)


25

Naturalmente, esses direitos poderiam pôr em desordem a estrutura da então


democracia inglesa. Uma frágil aliança com a burguesia – que se aproveitou
de uma insurreição cartista em 1842 para fazer aprovar a revogação da Lei dos
Cereais, uma tarifa alfandegária sobre a importação de cereais – causou o revés do
movimento. Mas sob o lema “O nosso meio é o poder político; a nossa finalidade
é a felicidade social”, o Cartismo persistiu na luta pela participação democrá-
tica, redução das jornadas (para 10 horas diárias) e manutenção dos salários e
empregos em tempos de crise. “Em suma, embora o Cartismo refletisse os seto-
res mortais de uma sociedade agonizante, foi ainda mais a expressão das dores
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

do parto de uma nova sociedade”, conclui George Rudé (1991, p. 207).


Ainda hoje, passados mais de duzentos anos dos primórdios da Revolução
Industrial, há uma controvérsia acadêmica acerca dos impactos e da explora-
ção sofrida pelos operários. Por outro lado, há diversos historiadores otimistas
e conservadores que afirmam que houve melhorias nas condições gerais dos
trabalhadores com a industrialização. Eles defendem essa tese sob o argumento
verídico de que a população praticamente duplicou em 50 anos nas cidades
industriais (Manchester, Birminghan, Yorkshire) e, posteriormente, em toda a
Inglaterra, bem como o padrão de vida do operário.
Outros autores, como Thompson e Engels, no entanto, afirmam justamente
o inverso, pautados nas jornadas de quatorze horas, no trabalho infantil e na
ausência de qualquer direito político, a não ser aqueles conquistados à força.
Engels compara o moderno trabalhador com o mito grego de Sífiso, a maldição
do trabalho repetitivo, do eterno retorno. Na mitologia grega, Sífiso foi conde-
nado, por toda a eternidade, a rolar uma grande pedra de mármore com suas
mãos até o cume de uma montanha, sendo que toda vez que ele estava quase
alcançando o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo até o ponto de
partida. Marx afirmou que o trabalhador tornou-se um mero “instrumento” ou
uma cifra qualquer. Veja a citação de Thompson (1987, p. 25) e reflita sobre as
reais condições de trabalho durante a Revolução Industrial:

Os Trabalhadores e a Formação da Classe Operária


26 UNIDADE I

O escravo negro das Índias Ocidentais, mesmo trabalhando sob um sol


tórrido, tem provavelmente uma brisa suave que às vezes o refresca, um
pedaço de terra e tempo para cultivá-lo. O escravo fiandeiro inglês não
desfruta do céu aberto e das brisas. Enclausurado em fábricas de oito
andares ele não tem descanso até as máquinas pararem, e então retorna
à sua casa, a fim de se recuperar para o dia seguinte.

MULTIDÃO, MOTINS E CULTURA POPULAR NA REVOLUÇÃO


INDUSTRIAL

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
“A cultura popular é rebelde, mas o é em defesa dos costumes”
(Edward Thompson, Costumes em Comum, 1998, p. 308).
A historiografia dos movimentos sociais evoluiu positivamente a partir das publi-
cações de autores anglo-saxões como Eric Hobsbawm, Christopher Hill, Perry
Anderson, Edward Thompson, Raymond Williams e do canadense George Rudé,
que, em meados da década de 1950, com a criação de revistas como a Past and
Present e, depois, a New Left Review,rompem com a ortodoxia marxista (vulgar)
baseada no determinismo econômico sem, no entanto, perder a “luta de classes”
de vista. Nas palavras de Ronaldo Vainfas (1997, p. 155), trata-se “de uma visão
marxista da história cultural”. De acordo com esse historiador, o campo teórico
da cultura popular em Thompson valoriza a resistência social e a luta de classes
em conexão com as tradições, os ritos e o cotidiano das classes populares, em
um contexto histórico de transformação. São inter-relações recíprocas entre os
dois universos culturais que, de certo modo, escreve Vainfas, aproximam-se do
conceito de circularidade formulado por Ginzburg. “Pois não existe desenvolvi-
mento econômico que não seja ao mesmo tempo desenvolvimento ou mudança
de uma cultura” (THOMPSON, 1998, p. 304).
Em Costumes em comum, ao analisar os motins populares do século XVIII,
Thompson (1998) afasta-se de interpretações tradicionais, nas quais as revoltas da
“multidão” ou da “turba” seriam manifestações inconsequentes e niveladoras da
“falta de consciência” da classe operária em formação. Defende a tese de que “a
consciência e os usos costumeiros eram particularmente fortes no século XVIII”.
Na verdade, alguns desses “costumes” eram de criação recente e representavam

A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848)


27

as reivindicações dos novos “direitos” (THOMPSON, 1998, p. 13).


Nesse processo de transição para a economia capitalista de mercado, a ênfase
da transformação recai sobre toda a cultura, a resistência à mudança e sua aceita-
ção também nasce da cultura, dos costumes tradicionais. “Essa cultura expressa
os sistemas de poder, as relações de propriedade, as instituições religiosas etc., e
não atentar para esses fatores simplesmente produz uma visão pouco profunda
dos fenômenos e torna a análise trivial” (THOMPSON, 1998, p. 288-289).
Thompson veria o século XVIII como um período de crescente confrontação
entre a economia de mercado inovadora fruto da Revolução Industrial, baseada
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

no Laissez-faire (conceito liberal que estudaremos ao final desta unidade), e uma


economia moral das plebes, fundamentada na tradição paternalista e no direito
consuetudinário. “O modelo paternalista existia no corpo da lei estatuária, bem
como no direito consuetudinário e no costume” (THOMPSON, 1998, p. 152).
É possível detectar em quase toda ação popular do século XVIII uma
noção legitimadora (...) defendendo direitos tradicionais; e de que, em
geral tinham o apoio e o consenso mais amplo da comunidade. De
vez em quando esse consenso era endossado por alguma autorização
concedida pela comunidade (THOMPSON, 1998, p. 152-155).

Esses motins ou rebeliões não tinham como objetivo a destruição de bens mate-
riais (como ocorre posteriormente com o Ludismo), eram um movimento coletivo,
pouco organizado, em que a ação principal não era o saque de celeiros nem o
furto de grãos de farinha, mas fixar o preço. Esse processo estava enraizado na
mentalidade das massas graças a uma construção histórica de longa duração,
baseada no Book of Orders, que, desde o reinado de Elizabeth, garantia o abaste-
cimento mínimo de cereais à população por meio de magistrados que regulavam
a distribuição, os estoques e até o preço dos grãos. Era, de fato, a intervenção e
o controle do abastecimento por parte do Estado.
As ordens de 1630 não autorizavam explicitamente os juízes a fixar o
preço, mas mandavam-nos cuidar do mercado e assegurar que os po-
bres fossem ‘abastecidos de cereais necessários [...] pelos preços mais
razoáveis que se pudesse obter por meio da persuasão honesta aos juí-
zes’. O poder de fixar o preço dos grãos e de farinha ficava, numa emer-
gência, a meio caminho entre a imposição e a persuasão (THOMP-
SON, 1998, p. 177).

Os Trabalhadores e a Formação da Classe Operária


28 UNIDADE I

No entanto esse modelo econômico baseado na regulamentação e no abasteci-


mento direto do produtor ao consumidor, sem a presença do intermediário ou
do atravessador, foi paulatinamente suprimido no decorrer da segunda metade
do século XVIII, concomitantemente à Revolução Industrial. O modelo pater-
nalista estava se rompendo em muitos pontos e a legislação contra a compra
de mercadorias antecipadas fora revogada em 1772. Nesse período, o modelo
paternalista tinha
uma experiência real fragmentaria. Nos anos de boa colheita e preços
moderados, as autoridades caíam no esquecimento. Mas se os preços

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
subiam e os pobres se tornavam turbulentos, o modelo era ressusci-
tado, pelo menos para produzir um efeito simbólico (THOMPSON,
1998, p. 160).

Esse debate que culminou com a revogação da legislação contra as compras


antecipadas assinalou uma vitória do laissez-faire, pois a liberdade ilimitada e
irrestrita do comércio dos cereais era também o que Adam Smith pleiteava. Para
Thompson (1998, p. 161), esse novo modelo econômico trazia consigo uma des-
moralização da teoria do comércio e do consumo:
Por ‘desmoralização’ não se sugere que Smith e seus colegas sejam
imorais, ou que não se preocupassem com o bem público. O que se
quer dizer é, antes, que a nova economia política havia sido limpa de
imperativos morais inoportunos (...). A operação natural da oferta e da
demanda maximizaria a satisfação de todos os grupos e estabeleceria o
bem comum. O mercado nunca era mais bem regulado do que quando
deixavam que se regulasse por si mesmo (grifo nosso).

Seguindo o mesmo raciocínio:


Em alguns aspectos, o modelo de Smith se adaptava mais acuradamen-
te às realidades do século XVIII do que o modelo paternalista; e, em
simetria e alcance de construção intelectual, era superior. Mas não se
deve deixar de perceber o ar ilusório de validação empírica que o mo-
delo contém. Enquanto o primeiro apela a uma norma moral – ao que
devem ser as obrigações recíprocas dos homens – o segundo parece
dizer “é assim que as coisas funcionam, ou funcionariam se o Estado
não interferisse” (THOMPSON, 1998, p. 162).

E prossegue Thompson (1998, p. 164) ainda no mesmo tom: “não apresentamos


esses comentários para refutar Adam Smith, mas simplesmente para assinalar

A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848)


29

pontos em que se deve ter cautela (...). Do modelo do laissez-faire, devemos dizer
apenas que não é comprovado empiricamente”.
Dessa maneira, a partir da análise cultural das mudanças estruturais e qua-
litativas que ocorreram na passagem do século XVIII ao XIX, ou da sociedade
agrária, paternalista, manufatureira para a sociedade industrial com economia
de mercado, pode-se compreender o entrechoque dialético que ocorreu no inte-
rior daquela cultura em transformação. De um lado, os valores morais, religiosos,
paternalistas, tradicionais embasados no costume de longa duração; de outro,
uma cultura em rápida transformação.
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A “economia moral” tinha como fundamento uma visão consistente e tra-


dicional das normas e obrigações sociais, das funções econômicas peculiares a
vários grupos na comunidade, às quais, consideradas em conjunto, podem dizer
que constituem a economia moral dos pobres. Ou, dito de outra maneira, por
economia moral entende-se a série de relações de trocas entre grupos sociais e
entre pessoas, nas quais o bem-estar e o mérito de ambos os interessados tem
procedência sobre outras considerações como o lucro de um ou de outro. Em
síntese, Thompson nega a associação vulgar e primária de que os motins foram
ocasionados unicamente pela fome ou falta de alimentos como o pão. Não se trata
de uma mera associação entre fome e revolta, falta de alimentos e revoluções;
relação meramente espasmódica e instintiva. Trata-se, antes, da luta pela manu-
tenção dos costumes tradicionais e resistência aos novos ares da modernidade.
Com os trabalhos do canadense George Rudé, houve um avanço teórico na
abordagem da multidão na história, da turba, enquanto organização consciente
das massas e extremamente eficaz na busca de seus objetivos imediatos. Em
A multidão na história, Rudé (1991) afirma que esses movimentos de massa
são uma transição entre a jacquerie camponesa e os movimentos milenaristas
do passado e a greve do futuro. Para Rudé (1991, p. 207), a forma específica de
protesto foi o motim da fome, uma “expressão das dores do parto de uma nova
sociedade”. Em suma,
O que vimos foi uma rica variedade de motivos e crenças, através dos
quais as questões econômicas e os apelos aos direitos consuetudinários
existiam, lado a lado com novas concepções do lugar do homem na
sociedade e a busca do milênio (RUDÉ, 1991, p. 252).

Os Trabalhadores e a Formação da Classe Operária


30 UNIDADE I

O motim, portanto, é a forma característica e frequente do protesto popular que,


ocasionalmente, se transforma em rebelião ou revolução.
Tanto na França como na Inglaterra, a velha prática da intervenção oficial
para proteger os pobres contra a alta dos preços e da fome tinha sido abandonada
recentemente e estava ainda presente na memória popular – e muitas autorida-
des ainda defendiam os velhos métodos. Narra George Rude (1991, p. 50):
Em 1768, quando, entre a multidão que cercou a Câmara dos Lordes,
havia pessoas que gritavam ‘que o pão e a cerveja estavam caros demais
e que tanto valia morrer na forca como de fome’. Isso, porém, ocorreu

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num ano de greves e perturbações gerais, nas quais os fatores políticos
tiveram um papel tão grande quanto a preocupação com o preço do
pão [...]. Muitos assados, muito pudim de ameixas e cerveja forte, com
3 horas de diárias de trabalho.

Essas eram as necessidades básicas pelas quais o povo lutava. Friedrich Engels
descreve ainda uma grande revolta contra o aumento do preço da cerveja na
região da Bavária, que durou quatro dias e obrigou o rei a revogar o aumento.
O objetivo era realmente fixar o preço do alimento, do pão, da cerveja e até
do dízimo. “Em muitas paróquias, o primeiro lugar visitado foi a casa do pároco,
onde o ocupante era solicitado com cortesia, mas com firmeza, a reduzir os
dízimos”. Em Sussex, os dízimos foram baixados de 1400 libras para 400 libras.
“Párocos da Igreja Anglicana foram advertidos para que abrissem mão de seus
dízimos” (RUDÉ, 1991, p. 174).
Se Thompson cunhou o termo “economia moral”, pode-se dizer que Raymond
Williams trabalha na “fronteira da moral”, entre o campo e a cidade, o contraste
entre a urbes e o rústico. A moral aqui apresentada está embasada no contexto
da cultura, na série de valores e costumes que perpassam as mudanças históri-
cas e demoram para se adaptarem aos novos horizontes culturais e/ou religiosos.
Contudo, ainda há em Williams um engajamento que o leva a ver as transfor-
mações abruptas do século XVIII com certo estranhamento, tendo em vista
sua origem em uma Grã-Bretanha rural. É o olhar do observador surpreso e às
vezes pasmo de que lembra Friedrich Engels em “A situação da classe trabalha-
dora na Inglaterra”.

A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848)


31

Por meio da metodologia que Williams chama de “retrospecção” ou escada


rolante, ele compara diversas épocas literárias, de Homero a Aldoux Huxley, sem,
todavia, perder o século XVIII de vista. Ele discorda da interpretação de autores
(mesmo os socialistas) que caem no que ele denomina de “idealização do indus-
trialismo”. “A polidez do melhoramento tem como contraponto necessário a dura
realidade do poder econômico, e uma ênfase moral diferente torna-se inevitá-
vel” (WILLIAMS, 1989, p. 231). Nesse sentido, é licito aceitar o termo “fronteira
cultural” entre o campo e a cidade:
A canção da terra, a canção do trabalho rural, a canção do amor por
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

tantas formas de vida com as quais todos nós partilhamos nosso uni-
verso físico, é importante demais, comovente demais, para que abra-
mos mão dela sem resistência, numa traição odiosa, e a entreguemos à
arrogância dos inimigos de todas as formas significativas e concretas de
independência e renovação (WILLIAMS, 1989, p. 365).

No capítulo sobre os “Patrícios e Plebeus”, Edward Thompson (1998) examina


as relações entre a gentry (nobres) e os trabalhadores pobres no século XVIII
inglês e relativiza o termo “paternalismo”. De acordo com Thompson (1998, p.
42), aquele século
testemunhou uma mudança qualitativa nas relações de trabalho (...)
ficando todo o seu modo de vida menos marcado por uma posição
de dependência do que tinha sido até então ou do que viria a ser nas
primeiras décadas da disciplina da fábrica e do relógio [...] tinham es-
capado dos controles sociais da aldeia senhorial e ainda não estavam
sujeitos à disciplina do trabalho fabril.

Em suma, foi uma fase de transição, uma fase predatória do capitalismo agrá-
rio e comercial, “e o próprio Estado estava entre os principais objetos da rapina”
(THOMPSON, 1998, p. 42).
A tese central de Thompson (1998) é – compartilhando a opinião de Marcos
Antônio Lopes e Sidnei Munhoz (2010) – de que o controle da classe dominante
no século XVIII se localizava primordialmente em uma “hegemonia cultural” e
apenas secundariamente em uma expressão de poder econômico ou físico (mili-
tar). A resistência da populaça inglesa daquele período estava fundada em uma
complexa trama que Thompson (1998) chamou de “reciprocidades paternalistas”,
por intermédio da qual a gentry exercia o controle e a subordinação das plebes
ao mesmo tempo em que as classes trabalhadoras impunham à aristocracia a

Os Trabalhadores e a Formação da Classe Operária


32 UNIDADE I

permanência dos costumes tradicionais. Assim, “longe de uma sociedade patriar-


cal segura de si, o que o século XVIII presencia é o velho paternalismo prestes
a entrar em crise” (THOMPSON, 1998, p. 45).
Outro ponto fundamental trabalhado por Thompson em “Patrícios e Plebeus”
é a contraposição teórica e metodológica de que o século XVIII representava
um momento relativamente pacífico, sem contradições e lutas declaradas entre
a plebe e a gentry.
A cultura plebeia não era certamente revolucionária, nem sequer uma
cultura proto-revolucionária (no sentido de fomentar objetivos ulte-

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riores que questionassem a ordem social). Contudo, tampouco deve
descrevê-la como uma cultura deferente. Fomentava motins, mas não
rebeliões; ações diretas, mas não organizações democráticas (THOMP-
SON, 1998, p. 62).

Nesse sentido, a insubordinação da plebe era uma inconveniência, não uma


ameaça. O autor (1998, p. 68) não apresenta a Inglaterra do século XVIII como
um teatro de terror cotidiano, mas adverte que “os historiadores mal começaram
a avaliar o volume de violência anônima, normalmente acompanhada de cartas
anônimas ameaçadoras”. Para Thompson (1998, p. 68), a tradição anônima, o
teatro e contrateatro das classes antagônicas e, finalmente, a ação rápida e fugaz
da multidão indicam que “no século XVIII, a resistência é menos articulada,
embora frequentemente muito específica, direta e turbulenta”, considerando “a
noção de reciprocidade gentry-multidão, de equilíbrio paternalismo-deferência”.

TEMPO NATURAL E DISCIPLINA INDUSTRIAL

Por fim, resta analisar a mais profunda e sutil mudança atrelada à Revolução
Industrial, a alteração da própria noção de temporalidade histórica.
A crescente racionalização do mundo moderno – Renascimento, Reforma,
Contrarreforma, Iluminismo – levou ao processo que o sociólogo Max Weber
(1983) chamou de “desencantamento de mundo”. O tempo profano veio desa-
fiar o tempo sagrado cristão. Uma história desse mundo veio desafiar e conviver
com a história universal sagrada. Deus não seria abandonado, mas não reinaria
mais sozinho e de modo absoluto. O êxtase material desafia o êxtase religioso.

A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848)


33

A rejeição da metafísica do mundo é revogada. A historicidade não mais é vista


como um fardo, uma prova, uma pena. Emerge um novo personagem na his-
tória: o homem da cidade, o burguês, o comerciante, que avança pelos oceanos
na conquista desse mundo. “Aquele diálogo bíblico entre Jesus e o demônio, em
que este promete a Jesus todas as riquezas deste mundo em troca de sua alma e
submissão, ganha uma nova versão” (REIS, 2006, p. 21-23). É provável que José
Carlos Reis refira-se ao mito do Fausto nessa passagem.
A superação do tempo natural, presente desde o início da literatura, é anali-
sada por Edward Thompson no capítulo sobre “Tempo, disciplina de trabalho e
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

capitalismo industrial”, em Costumes em Comum. A investigação de Thompson


pressupõe uma distinção clara na concepção de tempo entre camponeses, peque-
nos artesãos e a ética do trabalho industrial, pois “o tempo agora é moeda, ninguém
passa o tempo, e sim o gasta” (THOMPSON, 1998, p. 272).
Antes da Revolução Industrial os sinos das igrejas davam o tom, mas a par-
tir de 1790 ocorreu uma difusão geral de relógios portáteis no exato momento
em que a Revolução Industrial requeria maior sincronização do trabalho. Dessa
forma, “o tempo sideral, com um único passo abandonou os céus para entrar nos
lares” (THOMPSON, 1998, p. 268). Esse processo que impôs uma nova disci-
plina de tempo está situado na evolução da ética protestante, puritana, que teve
no Metodismo operário um equivalente da teoria da predestinação, de Calvino;
nesse ponto, Thompson aproxima-se de Weber de A ética protestante e o espí-
rito do capitalismo. Sua tese é que a Revolução Industrial consolidou uma nova
experiência com a noção de tempo; por meio da ascese metodista e da disciplina
da fábrica institui-se um novo ritmo de trabalho e de lazer. Todos perceberam
que tempo é dinheiro.

Os Trabalhadores e a Formação da Classe Operária


34 UNIDADE I

A característica do “Metodismo” é o caráter sistemático, metódico da condu-


ta no sentido da obtenção da graça. “A teologia do metodismo, em virtude
de seu oportunismo inescrupuloso, estava melhor preparada do que qual-
quer outra para servir de religião a um proletariado que não tinha qualquer
razão para se sentir ‘eleito’, em função de sua experiência pessoal. Na sua
teologia, Wesley parece ter dispensado os melhores elementos do Puritanis-
mo e selecionado, sem hesitação, os piores”.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Fonte: Thompson (1987, p. 240).

José Carlos Reis (1994) afirma que, na Revolução Industrial, houve uma “revo-
lução epistemológica” quanto ao conceito de tempo histórico, uma mudança
substancial. A primeira grande mudança na noção de “tempo” foi produzida
pela religião ao romper com o mito – a religião opôs a profecia ao ritual, a sal-
vação futura contra a salvação na origem (na antiguidade). A segunda mudança
foi realizada pela filosofia do século XVIII, ao romper com a religião, a filosofia
opôs a utopia à escatologia, a demonstração racional à fé em uma profecia, um
futuro humano, temporal, histórico, ao futuro divino, meta-histórico, eterno. Na
perspectiva de José Carlos Reis (2006, p. 30),
êxtase profano (utopia) venceu o êxtase religioso (parusia) da outra
vida eterna. O futuro não é mais o fim do mundo. Agora, a espera é
outra: a realização da história, do progresso, como obra dos homens,
que se tornaram competidores de Deus na criação do mundo.

Dessa maneira, a “utopia substitui a profecia. No ‘fim da história’, a espera é outra:


não mais o apocalipse, mas uma sociedade moral e racional” (REIS, 1994, p. 11).
Portanto, a perspectiva teológica do tempo histórico foi uma primeira
revolução epistemológica: rompeu-se com a a-historicidade do mito,
com circularidade supralunar grega e aceitou-se o tempo como irre-
versibilidade, singularidade, linearidade, sentido e finalidade. (...) Para
Koselleck, a história era impensável, antes da Revolução Francesa,
como podendo ser feita pelos homens. Fazer a história era uma ideia
nova, moderna. Foi, portanto, uma segunda revolução epistemológica
na compreensão do tempo e da história (REIS, 1994, p. 11).

A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848)


35

O Iluminismo trouxe o pressuposto da disponibilidade da história à ação e ao


homem, que seria então Deus sobre a Terra, livre, consciente e potente para rea-
lizar o futuro que ele desejasse. No capítulo sobre “O tempo de Deus e tempo
dos homens”, Ivan Manoel (2004, p. 47) afirma que, na tradição católica, o tempo
não pertencia ao homem, “o tempo trazia inscrito, como inerente a si, a marca
da sacralidade. Por isso sua cadência era marcada pelo repicar dos sinos e pelo
cantochão gregoriano. Dito de outra forma, “o reino de Deus era a bússola dos
homens no tempo”. O pressuposto da Igreja era de que “o tempo de Deus e da
natureza fora suplantado pelo relógio de bolso” (MANOEL, 2004, p. 47). Esse
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

impacto temporal foi obra da Revolução Industrial.

“Antes dos relógios existirem, todos tinham tempo. Hoje todos têm relógios”.
Fonte: Eno T. Wanke.

Os Trabalhadores e a Formação da Classe Operária


36 UNIDADE I

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Figura 2: “A Liberdade guiando o povo”, Eugène Delacroix, 1830.

REVOLUÇÃO FRANCESA

“A crença de que a sociedade tradicional seja estática e imutável é um


mito da ciência social vulgar. Não obstante, até um certo ponto de mu-
dança, ela pode permanecer ‘tradicional’: o modelo do passado continua
a modelar o presente, ou assim se imagina” (Hobsbawm, Sobre História,
1998, p. 57).

A escolha da epígrafe que abre este tópico sobre a Revolução Francesa não é de uma
obra específica sobre tal evento, mas denota a possibilidade de mudança histórica,
da transformação feita pelos homens. Como vimos anteriormente, na discussão
sobre o tempo histórico, antes da Revolução Francesa, a História (com “H” mai-
úsculo) era impensável como obra dos homens. “A Revolução Francesa devolveu
à terra a fé no impossível”, disse Edgar Quinet. A tradição cristã (sobretudo com
Santo Agostinho, no século IV d.C.) consolidou o que pode ser denominado de
“transcendência histórica”, o que ultrapassa os limites da experiência possível.
Todavia, o declarado anticlericalismo dos franceses e, posteriormente, as dou-
trinas materialistas devolveram à História sua materialidade.
Ainda, nas revoluções inglesas de 1742 e 1788, havia forte conotação religiosa.

A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848)


37

Christopher Hill, seguramente o mais influente pesquisador da Revolução


Gloriosa, tem uma tese polêmica e monumental sobre as representações, ora
subversivas, ora conservadoras, da Bíblia inglesa e as revoluções do século
XVII. Hill (2003, p. 264) demonstra que, mesmo na esfera secular, não havia
separabilidade entre política e religião:
eu questionei se a Bíblia poderia ter sido, para a Revolução Inglesa, um
equivalente de Rousseau para a Revolução Francesa ou de Marx para
a Russa, isto é, uma fonte de estímulos intelectuais e de novas ideias
críticas quanto às instituições existentes. Todavia, a Bíblia não produziu
nenhuma filosofia política consensual. Ela foi usada como uma espécie
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

de bagagem de citações que poderiam justificar qualquer coisa que um


determinado indivíduo ou grupo desejasse.

Nas palavras de Karl Marx (apud HILL, 2003, p. 61): “Cromwell e o povo inglês
tomaram seus discursos, paixões e ilusões do Antigo Testamento (...). Quando
a transformação burguesa foi consumada, Locke suplantou Habacuque [profeta
hebraico]”. A sólida argumentação de Hill não deixa dúvidas quanto à utiliza-
ção bíblica como representação, mesmo na esfera secular, em Hobbes, Locke,
Milton, Newton, e, é claro, Oliver Cromwell. O próprio conceito de revolução
social, segundo Hill, também surgiu nos anos 40 e 50 do século XVII, nasce em
expressões bíblicas, tais como: “O mundo virado de ponta-cabeça” e na frase
“derrubem, derrubem, derrubem” (Ezequiel 21.27).
Essa introdução é importante para se pensar a racionalização da história que
se segue à Revolução Francesa e devida também aos pensadores iluministas. O
conceito de que a história é feita pelos homens de acordo com as circunstâncias
que encontram (Marx) superou a doutrina do “espírito puro” de Hegel, (o mundo
das ideias agindo na História independentemente da ação humana). Mas o pen-
samento idealista ainda se faria sentir nos pensadores do século XIX como Alexis
de Tocqueville [1805-1859], em obra monumental sobre a grande Revolução,
mas que em determinado momento afirma que “a Revolução resolveu repentina-
mente, por um esforço convulsivo e doloroso, sem transição, sem precauções, sem
deferências, o que ter-se-ia realizado sozinho” (TOCQUEVILLE,1997, p. 68, grifo
nosso). Tocqueville refere-se à queda do Antigo Regime, do poder aristocrático
do Clero e Nobreza, que, como veremos, permaneceu em maior ou menor grau
até a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), em países como Rússia, Alemanha,

Revolução Francesa
38 UNIDADE I

Áustria, Império Otomano. Sem embargo, a História não se faz “sozinha”.


O saudoso filósofo Leandro Konder (2009) certa vez pensou em elucidar
essa questão com uma metáfora engenhosa. Ele comparou a História à escada
rolante, pois certamente ela tem um sentido, um ritmo, uma direção determi-
nada. Mas cabe ao homem ou à humanidade o processo de estacionar na escada
rolante, descer ou acelerar o passo. A Revolução Francesa acelerou o processo
de decadência do Ancien Régime em pelo menos um século. Hobsbawm (1995,
p. 110) é categórico ao falar dessa dinâmica revolucionária:
A revolução Francesa e os feitos de Napoleão abriram os olhos do mun-

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do. Antes as nações não sabiam de nada, e as pessoas pensavam que
os reis eram deuses sobre a terra e que tinham que dizer que tudo que
eles faziam era bem feito. Devido a esta mudança, agora é mais difícil
dominar o povo.

A análise política feita por Tocqueville em meados do século XIX ainda perma-
nece atual, mas não pode ser referência única na análise do fato marcante que
dividiu a história. Soma-se ao político francês o denso trabalho de seu contem-
porâneo, o historiador Jules Michelet, e dos recentes estudos de François Furet,
que o tornaram referência no tema. Enquanto Tocqueville aborda a obra polí-
tica da Revolução no clássico O Antigo Regime e a Revolução, Michelet foca um
grupo social até então marginalizado em meados dos oitocentos, o povo. François
Furet, por sua vez, ocupa-se em relativizar a oposição entre a burguesia ascen-
dente (o terceiro Estado) e a nobreza.
Na sua interpretação, o conflito era, pois, entre a sociedade civil e contra o
Estado. Com a entrada das massas (novos agentes históricos), a elite perdeu o
controle sobre a Revolução, ao menos na fase jacobina, radical. Nesse sentido,
a Revolução não seria uma luta de classes, mas uma competição de discursos
pela apropriação da legitimidade. Em síntese, François Furet critica a tese quase
consolidada da Revolução Francesa como uma revolução burguesa, a tomada
do poder político da aristocracia pela burguesia em ascensão. A tese inversa, isto
é, a da revolução como obra da burguesia e da luta de classes, Furet desqualifica
como “vulgata marxista” que explica tudo a partir da ótica econômica.

A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848)


39

Para compreender essa trincheira de ideias, é preciso antes entender as diver-


sas fases da Revolução, a alternância de poderes entre radicais e conservadores,
não apenas até o golpe do 18 brumário de Napoleão (9 de novembro de 1799),
mas a reação absolutista em 1815 (A Sagrada Aliança) e a elevação de Carlos
X ao trono, as novas ondas revolucionárias de 1830 e 1848 até a proclamação
da terceira República em 1870. Mesmo sob o signo da Revolução durante todo
o século XIX, pode-se dizer que a França, sobretudo, Paris, tornou-se a capital
daquele século. Vejamos no Quadro 1 a cronologia dos fatos para depois inter-
pretar cada etapa desse movimento:
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CRONOLOGIA DA REVOLUÇÃO FRANCESA

1789 Convocação dos “Estados Gerais”.

1789 Revolta do Terceiro Estado e tomada da Bastilha.

Período de Monarquia Constitucional. Elaboração da Constituição em 1791


1789 a
e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, baseado em três prin-
1791
cípios: liberdade, igualdade e fraternidade (Liberté, Egalité, Fraternité).

1791 Fuga do rei Luís XVI.

Convenção Nacional ou período Jacobino com a ascensão de Robespierre


ao poder. Intervalo mais conturbado da Revolução, em que a personagem
1792 a principal foi a Guilhotina, denominando o que alguns teóricos chamaram de
1795 “Terror”. Mas foi também um ínterim revolucionário em termos de direitos:
voto universal masculino, abolição da escravidão etc. Hobsbawm não aceita
o termo “terror”, ele vê essa fase como “heroica”.

1794 Deposição de Robespierre.

1795 a
Reação Termidoriana ou Diretório e a terceira Constituição.
1799
1799 Consulado e o golpe do 18 de brumário de Napoleão.
Quadro 1: Cronologia da Revolução Francesa
Fonte: o autor.

Revolução Francesa
40 UNIDADE I

As causas imediatas da Grande Revolução já são bem conhecidas: fome, insatis-


fação popular, uma corte parasitária e, sobretudo, o Terceiro Estado (burguesia)
desejoso de participar do jogo político. Mas essas condições já existiam, em maior
ou menor grau, desde os setecentos. Assim como diversos pensadores teólogos
tentaram reformar a Igreja antes de Lutero em 1517 (Jan Huss, John Wycliffe,
Thomas Münzer) e acabaram queimados – à exceção de Wycliffe, que sobreviveu
graças à proteção de nobres, mas seus restos mortais foram exumados e queima-
dos – os predecessores de Robespierre, assim como de Lutero, ainda sobreviviam
dentro da lógica do Antigo Regime. Em 1789, porém, as condições tornaram-se

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insuportáveis, tanto em termos econômicos (a aristocracia tornou-se anacrônica,
retrógrada) quanto culturais e políticos (foi necessário um século de bombar-
deios iluministas para abalar os pilares da aristocracia e do clero).
Mas o moribundo Antigo Regime não morreria sem lutar, muito menos de
causas naturais, como sustentou Tocqueville. Como vimos na introdução desta
unidade, o que caracteriza o conceito de Revolução é acelerar determinado acon-
tecimento, rompendo com o anterior. Nesse sentido, é válida a observação de
Tocqueville (1997, p. 44), quando afirma que a Revolução teve dois períodos dis-
tintos: “o primeira durante o qual os franceses parecem abolir tudo que pertenceu
ao passado; e o segundo, onde nele vão retornar uma parte do que deixaram”. De
fato a criação de um novo calendário, rompendo com a contagem de tempo a.C
e d.C e a total supressão do clero foi paulatinamente relevada e restringiu ape-
nas a subordiná-lo ao Estado, como Henrique VIII já o fizera na Inglaterra em
1534 nos Atos de supremacia.
No entanto, sobre o novo calendário, Walter Benjamin (1994, p. 230) faz
uma análise mais detalhada:
A Grande Revolução introduziu um novo calendário. O dia com o
qual começa um novo calendário funciona como um acelerador his-
tórico. No fundo, é o mesmo dia que retorna sempre sob a forma dos
dias feriados, que são os dias de reminiscência. Assim, os calendários
não marcam o tempo como os relógios. Eles são monumentos de uma
consciência histórica [...].

A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848)


41
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A QUEDA DA BASTILHA (1789)

A queda da Bastilha em 14 de julho de 1789 marca o rompimento e a aceleração


histórica, uma revolução de fato, e ainda é um feriado nacional dos franceses. A
tomada da Bastilha não representou apenas uma mudança histórica no Estado
francês, mas também na história da vida humana sob o Estado de direito.
A queda da Bastilha foi interpretada por Walter Benjamin (2015) no recente
livro intitulado “A hora das crianças”, uma coletânea de temas históricos desti-
nados ao público infantil e narrados pelo próprio filósofo na rádio, durante a
República de Weimar na Alemanha. Mais que um exemplo pedagógico e primor
didático, o estilo benjaminiano é uma aula de como lecionar História. Ele inicia
a narrativa mostrando a importância da Bastilha para os interesses da aristocra-
cia, pois era uma prisão política, destinada aos inimigos do regime, aos crimes
contra a segurança do Estado, conspirações e não um mero presídio para crimi-
nosos comuns. A Bastilha foi construída entre 1369 e 1383. Seus muros tinham
mais de 400 anos quando a revolução os levou abaixo.

Revolução Francesa
42 UNIDADE I

A narrativa de Benjamin ganha um ar de mistério (e cativa o leitor) quando


demonstra como funcionava a Bastilha, por meio da lenda (possivelmente verí-
dica) do homem da máscara de ferro. Um prisioneiro de origem nobre que trazia
no rosto uma máscara negra e havia ordem para executá-lo imediatamente caso
revelasse quem era. Tanto suspense levou inúmeros pesquisadores a buscar a ori-
gem do suposto nobre e alguns chegaram à hipótese de se tratar de James Scott,
o duque de Monmouth, filho de Carlos II e inimigo de James II, então rei da
Inglaterra. Derrotado em 1685 e acusado de conspiração, foi executado naquele
mesmo ano. Mas logo correu o boato de que o homem executado era na ver-

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dade um oficial do duque de Monmouth que havia dado a vida para salvar a do
seu senhor. O verdadeiro duque teria escapado para a França, porém ali teria
sido detido por Luis XIV e enclausurado na Bastilha. Havia ordens para que o
prisioneiro fosse imediatamente morto caso revelasse sua identidade e, quando
finalmente pereceu, sua cabeça foi separada do corpo e seu rosto desfigurado,
além de todo o cuidado para queimar toda sua roupa de cama e eliminação de
qualquer vestígio da cela onde havia habitado.
Não havia qualquer direito político ou civil aos prisioneiros da Bastilha, mui-
tos eram presos na calada da noite e só após anos saberiam ou não do motivo de
sua prisão. Os poucos que saíam ainda com vida do local assinavam um termo
de compromisso que os proibia de revelar uma palavra sequer do que tinham
visto e ouvido ali dentro. Em um local onde todo contato era proibido, os pri-
sioneiros se desdobravam para inventar formas de comunicação entre si. Alguns
prisioneiros criaram uma forma de alfabeto através de pancadas na parede, outros
ensinaram um cão a levar e trazer bilhetes escritos entre os corredores.
“Todas essas coisas demonstram o quanto a Bastilha era uma ferramenta
do poder, e o quanto ela não era um instrumento do direito”, conclui Benjamin
(2015, p. 169). Portanto, o que caiu, no histórico 14 de julho de 1789, não foi
meramente uma prisão secular, um depósito de armas ou os muros de uma for-
taleza, mais que isso, foi uma instituição que ruiu como um castelo de cartas,
bastando derrubar a primeira peça. Daí em diante, novos intendentes foram esco-
lhidos, a nova Constituição aboliu os privilégios feudais, as terras da Igreja foram
confiscadas pelo Estado e os clérigos subordinados à França e não mais a Roma.

A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848)


43

A FASE RADICAL: OS JACOBINOS (1791-1794)

Em 1792, a ameaça de invasão externa das monarquias absolutistas como Prússia


e Áustria e a situação desoladora pela fome dos sans-culottes (literalmente “sem
calças” ou maltrapilhos) tornaram a revolução mais radical. O grupo liderado por
Marat, Danton e Robespierre assumiu o controle, eram chamados de jacobinos.
A origem da palavra “jacobino” deve-se ao fato de seus representantes reu-
nirem-se no convento de São Tiago, dos dominicanos. Tiago em latim é Jacob,
daí a denominação que é ao mesmo tempo uma ideologia e um poder, um sis-
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tema de representações que denota a ala mais radical da baixa burguesia. Decorre
desse período a clássica separação entre direita e esquerda na política, enquanto
os radicais sentavam-se à esquerda do Parlamento, em oposição aos Girondinos,
ala conservadora da burguesia que ficava à direita.
No mesmo ano, o rei Luís XVI foi condenado por traição à Revolução, acu-
sado de conspiração com a Áustria, e a personagem característica do período
Jacobino entrou em ação: a guilhotina. Em 21 de janeiro de 1793, o rei foi exe-
cutado e sua famosa rainha Maria Antonieta – que ficou eternizada pelo desdém
aos pobres na conhecida frase “se não tem pão que comam brioches” – teve o
mesmo destino. Robespierre, agora na dianteira da Revolução, enfrentaria dois
fortes adversários, a ala radical de Danton e Marat (guilhotinados) e a contrarre-
volução conservadora dos camponeses da região de Vendeia (partidários ainda
da monarquia) e da alta burguesia. Ele acabou isolado, mesmo vencendo as ame-
aças de invasão externa.
A República Jacobina (1792-1794) foi a etapa mais radical e popular da
Revolução. Para malograr o apoio do campesinato, diversas leis foram aprovadas
para suprimir os direitos feudais, sem indenização. Nas cidades, para garantir o
apoio dos sans-culottes, o preço dos alimentos foi tabelado e foram aprovadas leis
rigorosas contra os especuladores. No campo político, houve nova Declaração dos
direitos do homem e do cidadão, mais radical que em 1789. A nova Constituição
de julho de 1793 reforçou o poder Legislativo, eleito pelo sufrágio universal, além
da abolição da escravidão nas colônias. Por esses fatos, é lícito aceitar o termo de
Hobsbawm, o “período heroico”, como contraponto ao senso-comum, o “terror”.

Revolução Francesa
44 UNIDADE I

Alguns historiadores, como Hannah Arendt, afirmam que, na fase do “terror”


jacobino, a Revolução Francesa desviou-se do ideal libertário no plano político
para tornar-se uma revolução social, ao assumir o movimento de libertação das
massas. Veja-se o discurso do próprio Robespierre em sua “Teoria do governo
revolucionário”, de 1793 (ROBESPIERRE, online):
O princípio do governo constitucional é conservar a República; a do
governo revolucionário é fundá-la. O governo constitucional se ocupa
principalmente da liberdade civil; o governo revolucionário da liberda-
de pública. Sob o regime constitucional é suficiente proteger os indiví-
duos dos abusos do poder público; sob o regime revolucionário, o pró-

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prio poder público está obrigado a defender-se contra todas as facções
que o ataquem. O governo revolucionário deve aos bons cidadãos toda
a proteção nacional; aos inimigos do povo não lhes deve senão a morte.

A FASE CONSERVADORA: O DIRETÓRIO (1795-1799)

Em 1794, o golpe do 9 Termidor, pelo novo calendário francês (ou 27 de julho),


marcou a reviravolta conservadora dos girondinos e a deposição de Robespierre.
Uma nova Constituição foi elaborada com voto censitário, por renda, a escravidão
foi retomada, marginalizando novamente as classes baixas. O período conser-
vador ou Diretório (1795-1799) consolidou a alta burguesia como nova classe
dominante, barrou a tentativa de radicalização pelos remanescentes jacobinos
liderados por Graco Babeuf na chamada “Conspiração dos Iguais”. Babeuf foi
denunciado antes mesmo da eclosão da revolta, sem apoio popular acabou na
guilhotina após tentativa falha de suicídio. Suas ideias socialistas, porém, continu-
aram vivas durante todo o século seguinte. Em vez de radicalização, despotismo
(pouco esclarecido) de Napoleão Bonaparte.
Bonaparte domou o gênio da Revolução, escreveu Tocqueville (1997). O
gênio militar de Napoleão é evidente, assim como sua tragédia na diplomacia.
Apesar dos avanços do período conhecido como Consulado (1799-1804), quando
reatou relações com a Igreja (Concordata com Pio VII), agradando com isso os
camponeses, sanou as finanças criando o banco francês e consolidando os negó-
cios burgueses; o avanço para fora da França, como imperador, foi barrado pelos

A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848)


45

interesses de hegemonia inglesa (marítima) e pelas forças da aristocracia euro-


peia, cambaleante, mas ainda capaz de resistir aos avanços e ideias de liberdade.
Em suma, pode-se dizer que Napoleão barrou a revolução na França para levá-
-la a toda a Europa.
Assim como as ideias revolucionárias do Cristianismo primitivo pregavam
a liberdade em caráter universal e não mais restrita ao “povo eleito”, a Revolução
Francesa adquiriu conotação universal na Declaração dos direitos do homem e
do cidadão; ela não faz referência apenas à pátria francesa, mas ao homem em
todo o mundo. “Não há mais judeu nem grego, não há mais escravo nem livre,
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não mais homem nem mulher”, disse Paulo aos Gálatas (Gálatas 3.28) (BÍBLIA
PORTUGUÊS, online). Por sua vez, Napoleão (apud COTRIM, 1994, p. 296)
disse aos italianos: “Povos da Itália, o exército vem romper seus grilhões [cor-
rentes]... Fazemos a guerra como adversários generosos e só sentimos rancor
contra os tiranos que nos escravizam”.
Bonaparte levou as cores da bandeira tricolor francesa e as impôs pela força
militar e das ideias a praticamente toda a Europa continental, com o estandarte
de liberdade, igualdade e fraternidade. Em sua visão, não se tratava de conquista
militar, mas de libertação. No continente, ele encontrou oposição dos antigos
impérios dos Habsburgo na Áustria, dos Junquers prussianos e do czarismo russo,
legítimos representantes do Antigo Regime. Nos mares e oceanos, enfrentou a
poderosa marinha de guerra britânica, o que contrariou seus desejos imperia-
listas. Essa conjuntura o levou a decretar o famoso “Bloqueio Continental” em
1806, proibindo aos países europeus o comércio com a Inglaterra, sob ameaça
de invasão. Nesse aspecto, a Revolução Industrial teve impacto imediato e deci-
sivo quanto às pretensões de Napoleão dominar a Europa. A oficina mecânica
do mundo estava do outro lado do canal da mancha, na Inglaterra, e a França
não foi capaz de suprir todas as necessidades industriais do continente europeu,
pelo fato de ainda estar atrasada na mecanização e pela rede de influências e inte-
resses econômicos que os ingleses souberam consolidar com Portugal e Rússia.

Revolução Francesa
46 UNIDADE I

Note-se bem que há uma contradição evidente, um paradoxo claro no pro-


cesso descrito acima. A Inglaterra era uma monarquia constitucional liberal
desde os tempos de Revolução Gloriosa (1688), por natureza, seria adversária
das monarquias absolutistas da Europa do leste (Áustria, Prússia e Rússia), mas
o que ocorreu foi justamente o inverso. O único país como ameaça econômica e
militar aos interesses britânicos era justamente a França. Todos os outros eram
anacrônicos, incapazes de concorrer com uma nação liberal e industrializada.
Com essa dinâmica, compreende-se a recusa de Portugal e Rússia em cumprir
os desmandos de Napoleão e seu bloqueio. O resultado, como se sabe, foi exi-

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toso em um primeiro momento (invasão de Portugal e Espanha, vinda da família
real ao Brasil) e desastroso ao final (na tentativa frustrada de conquistar a Rússia,
com um exército de mais de meio milhão de soldados).
Durante o retorno da malograda campanha na Rússia, os exércitos de
Napoleão foram paulatinamente suprimidos por uma coalizão da Áustria, Prússia
e Inglaterra, primeiro em Leipzig e depois em Waterloo (1814 e 1815). Derrotado,
Napoleão abdicou e foi isolado na ilha de Elba, de onde conseguiu fugir no ano
seguinte e iniciou o governo dos cem dias (março a junho de 1815). Novamente
vencido por ingleses e prussianos na batalha de Waterloo, na Bélgica, foi defi-
nitivamente exilado e aprisionado na Ilha de Santa Helena, no sul do oceano
Atlântico. Morreu em 1821, possivelmente envenenado. Déspota, ditador, liber-
tário? Não há consenso sobre o papel histórico desempenhado por Bonaparte.
Leitor entusiasmado de Voltaire e antigo amigo de Robespierre, Bonaparte veria
todo o sangue de suas batalhas cair no esquecimento com a restauração euro-
peia da Santa Aliança, no Congresso de Viena de 1815.

A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848)


47

A ERA NAPOLEÔNICA E O CONGRESSO DE VIENA


(1814-1815)

Napoleão e seu exército entraram como uma lança por toda a Europa, à exce-
ção da Rússia. Dominou facilmente Portugal e Espanha, onde colocou seu irmão
como monarca e levou seu estandarte até a Itália, subjugando até o Papa. Mas
como foi dito na introdução, o Ancien Régime não cairia sem lutar, muito menos
espontaneamente. Nesse quesito, fica evidente a importância da “união” das anti-
gas potências ainda absolutistas da Europa do leste (Rússia, Prússia e Áustria)
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

que tomaram partido da restauração sem antes ter passado pela fase de revo-
lução. Trata-se de um claro conservadorismo pela manutenção das formas de
governo tradicionais, ainda que retrógradas.
No final de 1814, as potências que impuseram as primeiras derrotas militares
a Napoleão reuniram-se no imponente Palácio Imperial de Hofburg, na Áustria.
Durante vários meses a hospitalidade dos Habsburgo (dinastia que ocupou o
trono austríaco por séculos), sua faustosa recepção e banquetes suntuosos deram
o tom da política europeia. Ao todo compareceram 212 delegações. A Inglaterra
foi representada pelo duque de Wellington, um dos vitoriosos de Waterloo; pela
Rússia, compareceu o Czar em pessoa, Alexandre; a Prússia teve o barão von
Humboldt, seu diplomata; a França teve o habilidoso ministro Charles Maurice de
Talleyrand, seu representante; pela Áustria, o príncipe Klemens von Matternich.
O objetivo do congresso, apensar dos interesses dispersos de cada país, era
um consenso geral: reorganizar as forças da Europa (ou restaurar) sob o Antigo
Regime. Para entender a lógica do processo, é necessário conhecer os princípios
que estavam em pauta: equilíbrio e legitimidade. Equilíbrio de força entre as
potências após o furacão chamado Napoleão e legitimidade ou restituição dos
territórios ao seu “legítimo” proprietário, segundo o velho direito monárquico.
A França, apensar dos esforços do habilidoso Talleyrand, teve suas fronteiras
reduzidas ao equivalente de 1791; perdeu a posse de São Domingos, antiga joia
colonial, e teve que pagar aos Aliados uma indenização de 700 milhões. Manteve,
porém, as regiões da Alsácia, Lorena e Flandres, apesar da cobiça prussiana. A
Prússia ganhou generosos territórios, uma porção da Polônia e passou de 190.000
quilômetros quadrados para 280.000. A Áustria tornou-se uma potência dentro

A Era Napoleônica e o Congresso de Viena (1814-1815)


48 UNIDADE I

da Itália, após a dissolução da República de Veneza. A Rússia foi a grande vito-


riosa do congresso, com grandes porções da Polônia, da Finlândia e da Suécia,
além dos territórios turcos no Mar Negro. A Inglaterra tinha poucos interes-
ses territoriais no continente, além daqueles comerciais, e soube tirar proveito e
garantir sua hegemonia nos mares.
No plano político, houve a criação da Santa Aliança, uma organização mútua
para agir caso houvesse ameaças liberais aos tronos absolutistas. Por pressões na
Inglaterra e dos Estados Unidos (Doutrina Monroe), a atuação da Santa Aliança
foi barrada na América Latina, no período das independências. A dinastia dos

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Boubons foi restaurada na França, o que levou Luís XVIII ao trono do país. De
caráter moderado, governou até 1824, quando foi substituído pelo irmão Carlos
X, defensor intransigente do regime absolutista. Com as revoluções de 1830, foi
obrigado a abdicar e fugir para a Inglaterra. A onda conservadora do Congresso
de Viena não resistiria às forças devastadoras do liberalismo. Essa é a ideia-chave
determinante para a compreensão da primeira metade do século XIX. Os reis
absolutistas seriam agora suplantados pelo reinado dos banqueiros.

O LIBERALISMO POLÍTICO E ECONÔMICO

Liberalismo e socialismo são as ideias políticas predominantes durante todo o


século XIX. Vamos analisar o nascimento e os impactos dessa forma de pensa-
mento econômico e também sociológico, que considera as camadas sociais. O
liberalismo clássico difere-se bastante do neoliberalismo atual, que será estudado
na última unidade do livro, referente às décadas de 1980-90.
O liberalismo clássico dos séculos XVIII e XIX não nasce necessariamente
com a obra do economista Adam Smith [1723-1790] e seu famoso estudo intitu-
lado A riqueza das nações. Pode-se dizer que o clássico de Smith é uma vertente
econômica do liberalismo político, presente na Grã-Bretanha desde John Locke
[1632-1704], privilegiando as ações individuais em detrimento dos interesses
sociais, sobretudo do Estado. Mas o economista escocês consolidou a máxima
do liberalismo econômico, isto é, o conceito de “Laissez-faire”, que pode ser tra-
duzido como “deixe fazer”, “deixe passar”, denotando a liberdade e a fluidez do

A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848)


49

comércio sem as barreiras alfandegárias e/ou protecionistas do Estado e seus


mecanismos de regulamentação. Mas o que interessa é compreender o libera-
lismo enquanto teoria e filosofia da História, como pensamento predominante
enquanto teoria e práxis no período de derrocada do Antigo Regime.
Segundo as definições do renomado historiador das ideias políticas René
Rémond (1976), o liberalismo consiste, sobretudo, em uma filosofia da histó-
ria, do conhecimento, totalmente orientada para a ideia de liberdade. Trata-se
também de uma filosofia individualista, na medida em que coloca o indivíduo à
frente da razão de Estados, dos interesses do grupo, das exigências da sociedade;
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privilegia o indivíduo frente à coletividade, em suma. Com esses pressupostos, o


liberalismo afirma, nas entrelinhas, que a História é feita não pelas forças cole-
tivas, mas pelos indivíduos.
O liberalismo consiste, portanto, em uma filosofia política. Seu primeiro ini-
migo foi o Absolutismo, contra quem instituiu a divisão dos poderes do Estado
(legislativo, executivo e judiciário), afinal, o poder deve ser limitado. O melhor
governo, de acordo com essa perspectiva, é o “governo invisível”, aquele cuja ação
não se faz sentir. Vale lembrar que Adam Smith fala em “mão invisível” do mer-
cado que autorregula-se (em tese). De forma semelhante, o Liberalismo é contra
as autoridades intelectuais e espirituais da Igreja, é declaradamente anticlerical.
Tal doutrina surge abertamente subversiva; em seus primórdios, o Liberalismo
tinha uma força bastante revolucionária, rejeitando as autoridades e o Estado.
Mas uma análise mais atenta, feita pelo próprio René Rémond (1976, p. 31 e
ss.), o Liberalismo revela-se como a expressão dos interesses burgueses em ascen-
são no limiar do século XIX. Nas palavras de Rémond (1976, p. 31), trata-se da
“máscara dos interesses de uma classe”, de sua correlação com a burguesia. O libe-
ralismo é, portanto, “o disfarce do domínio de uma classe, do açambarcamento
do poder pela burguesia capitalista: é a doutrina de uma sociedade burguesa,
que impõe seus interesses, seus valores, suas crenças” (RÉMOND, 1976, p. 32). O
liberalismo é, portanto, uma doutrina ambígua. Se combate o autoritarismo do
Ancien Régime, da monarquia, das Igrejas, por outro lado, basta tomar o poder
para que sua vertente conservadora fique evidente. Nesse sentido, não se pode
dizer que se trata de uma doutrina eminentemente democrática, pois o libera-
lismo combate alternadamente dois adversários, o passado e o futuro, o Antigo
Regime e a futura democracia.
A Era Napoleônica e o Congresso de Viena (1814-1815)
50 UNIDADE I

Somente conhecendo o conceito teórico e epistemológico do termo é que


se pode compreender a onda revolucionária que assolou a Europa na primeira
metade do século XIX. Período que Eric Hobsbawm chamou de “Revoluções
Liberais”. A primeira onda, da década de 1820-1824, abalou as retrógradas
monarquias absolutas da Nápoles, Espanha e Portugal. Limitou-se ao mundo
Mediterrâneo, mas teve como desdobramento um forte impacto nas indepen-
dências das Américas portuguesa e espanhola. É notório que Dom João VI tenha
retornado às terras lusitanas justamente pela ameaça dos liberais, na conhecida
Revolução do Porto, de 1820.

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A segunda onda revolucionária ocorreu na década de 1830, mais preci-
samente entre 1829-1834 e afetou toda a Europa a oeste da Rússia e os EUA
com as reformas de Andrew Johnson (1829-1837). Na Europa, a derrubada
dos Bourbons na França (Carlos X) estimulou diversas outras insurreições. Em
1830, a Bélgica, Irlanda, Suíça, Polônia e partes da Itália se tornam independen-
tes. Essa década marca a vitória dos industriais e banqueiros (burguesia) frente
à antiga aristocracia.
E, por fim, a terceira fase em 1848, na qual o epicentro da revolução parte
da França para toda a Europa. Para Eric Hobsbawm (1997, p. 130), não houve
nada tão próximo a uma revolução mundial quanto em 1848, pois o que ocor-
reu em 1789 foi o levante de apenas uma nação (França), agora (1848) parecia
a “primavera dos povos de todo um continente”.
Assim, podemos estabelecer um “tipo ideal” para a análise do Liberalismo e
suas consequências. É um regime que prima pela existência de uma Constituição
e, com ela, a dissolução dos poderes do Estado, limitando o poder; a coexistência
de duas Câmaras legislativas, permitindo dividir, compensar e equilibrar os jogos
políticos. O Liberalismo em seu nascedouro não foi sinônimo de democracia, não
houve sufrágio universal após as promessas dos tempos revolucionários. É conhe-
cida a frase de Guizot, primeiro ministro da França em 1848, enquanto defendia
o voto censitário, por renda, dizia àqueles que queriam votar: “Enriquecei-vos”.
A “igualdade de direito, desigualdade de fato” resume a ópera do Liberalismo.

A ERA DAS REVOLUÇÕES: DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À PRIMAVERA DOS POVOS (1789-1848)


51

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Olá, caro(a) aluno(a)! Chegamos ao final da primeira unidade e espero que você
tenha gostado do conteúdo, tenha sintetizado as principais informações e tenha
compreendido as profundas mudanças que a Revolução Industrial e a Francesa
trouxeram a todo o mundo. E, o mais importante, que todas essas transformações
foram atos humanos que ocorreram a partir das relações materiais de existência.
O ano de 1789 é uma dessas datas imortalizadas no calendário histórico, pois, a
partir dela, inicia-se um novo modelo de política, de pensamento e até de viver,
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compreendendo a própria consciência humana como produto da História.


Cabe ainda um rápido balanço para estimular reflexões e despertar seu inte-
resse pela leitura das unidades que se seguem. Como vimos, as grandes revoluções
que marcam o nascedouro da era contemporânea trazem consigo um culto ao
progresso, à ilusão do aperfeiçoamento inesgotável da humanidade, ao amanhã
melhor que o passado. A esse culto, o filósofo Walter Benjamin chamou de “o
capitalismo como religião”. Na modernidade, a profecia é substituída pela uto-
pia, a fé nas religiões pela religião da fé no progresso. Processo que Max Weber
designou como “desencantamento de mundo”.
Chama-se “secularização” o processo pelo qual valores religiosos são trans-
formados em termos políticos, da Igreja ao Estado. Não quero apreender com
isso o idealismo de Hegel (mundo das ideias, mundo suprassensível) como a
secularização da divina providência, ou a sociedade sem classes de Marx como
a secularização da Era Messiânica. Mas pense comigo, os homens viveram por
milênios sob os desígnios dos sacerdotes, somente há duzentos anos temos
esse mundo material racionalizado, quase ateu. Você certamente já ouviu falar
ou mesmo leu um livro monumental chamado Os reis taumaturgos, de Marc
Bloch, em que os reis tinham o poder quase divino de curar certas doenças ape-
nas pelo toque. Hoje, alguém acredita no poder divino dos reis? Obviamente
que não e isso foi consequência política da revolução Francesa e econômica da
Revolução Industrial inglesa.
Essas ponderações são necessárias para “preparar o terreno” para o plantio
da segunda unidade. Nela, discutiremos as matrizes do pensamento moderno e
a construção da ideia de progresso. Vamos lá?

Considerações Finais
A REFORMA PROTESTANTE E O DESENVOLVIMENTO DO CAPITALISMO
É notória a influência das ciências sociais sobre a historiografia. Quer seja nos Anna-
les, na Nova Esquerda Inglesa, ou entre os historiadores alemães, a sociologia de Marx,
Durkheim e Max Weber é determinante para a compreensão dos fenômenos religiosos e
políticos com o desenvolvimento econômico. A associação da primeira geração da École
des Annales com as ciências sociais levou o renomado historiador Peter Burke a designar
essa escola – com certo exagero – como “a revolução francesa da historiografia”. Den-
tre as análises sociológicas mais influentes na historiografia está a relação da Reforma
com o desenvolvimento do capitalismo e o debate entre Marx e Weber, benéficos para a
compreensão desse processo complexo e de longa duração.
Max Weber, o autor da Ética Protestante e o espírito do capitalismo, critica a análise ma-
terialista de Karl Marx que, n’O Capital, afirmou ser a Reforma um “reflexo” das mudanças
econômicas e da ascensão da burguesia no século XVI, carente de uma nova “ética” reli-
giosa mais coerente com os desejos de lucro e poupança dessa classe, até então conde-
nada pelo catolicismo como usura. Weber refere-se ao materialismo histórico de Marx
como “ingênuo” e que suas ideias se originam como mero “reflexo ou como superestru-
tura de situações econômicas” (WEBER, 1983, p.14). Com relação à Reforma protestante,
Weber (1983, p. 61) ainda afirma que:
devemos evidentemente libertar-nos da ideia de que é possível inter-
pretar a Reforma como ‘conseqüência histórica necessária de certas
mudanças econômicas’. Inúmeras circunstâncias históricas que, não
somente independem de toda lei econômica, como também não man-
tém relação alguma com qualquer ponto de vista econômico.
Weber (1983, p. 61) reitera que o estudo sobre a Ética protestante e o espírito do capita-
lismo poderia também, “de uma forma evidentemente modesta, tornar-se uma contri-
buição para a compreensão da maneira pela qual as ‘ideias’ adquirem força na História”,
uma vez que “o espírito do capitalismo estava presente antes do desenvolvimento ca-
pitalista”. Como veremos, no entanto, há mais aproximações que distanciamento entre
Karl Marx e Weber, desde que o conceito de religião seja compreendido de acordo com
a definição de Durkheim (1996, p. XVI), como uma coisa eminentemente social. As re-
presentações religiosas são representações coletivas; os ritos são maneiras de agir que
apenas surgem no interior de grupos coordenados e se destinam a suscitar, manter ou
refazer alguns estados mentais desses grupos. “Nada pode haver na fé que não tenha
estado antes nos sentidos. (...) A religião parece (...) não como um vago e confuso deva-
neio, mas como um sistema de ideias e de práticas bem fundamentadas na realidade”
(DURKHEIM, 1996, p. 63).
No Grundisse (manuscritos de 1857 e 1858), obra lançada pela primeira vez no Brasil em
2011, no capítulo sobre o dinheiro, Marx cita a lamentação dos povos antigos, gregos
sobretudo, do dinheiro como fonte de todos os males e afirma que os laços têm de estar
organizados como laços políticos, religiosos etc., na medida em que o poder do dinheiro
53

não é o nexus rerum et hominum [aquilo que une as coisas e pessoas].


O culto ao dinheiro tem seu ascetismo, sua renúncia, seu autossacrifí-
cio – a parcimônia e frugalidade, o desprezo dos prazeres mundanos,
temporais e efêmeros; a busca do tesouro eterno. Daí a conexão entre
o puritanismo inglês ou também o protestantismo holandês com o ga-
nhar dinheiro (MARX, 2011, p. 175).
De acordo com os estudos de Michael Löwy (2000) e Eric Hobsbawm (2011), Weber não
poderia ter lido o Grundisse, uma vez que esses esboços para O Capital permaneceram
inéditos até 1940, portanto quase vinte anos depois da morte de Weber. No entanto,
comparando com a Ética Protestante, a semelhança é mesmo surpreendente: “Com-
binando essa restrição do consumo com a liberação da procura de riqueza, é óbvio o
resultado que daí decorre: acumulação capitalista através da compulsão ascética à pou-
pança” (WEBER, 1983, p. 124).
Marx menciona ainda o papel da reforma na Inglaterra na espoliação dos bens da igreja
e das terras comunais. Ao dar um novo e terrível impulso à expropriação violenta do
povo no século XVI, a nova religião favoreceu a acumulação primitiva de capital e na
transformação que fez de quase todos os feriados em dias úteis, o protestantismo de-
sempenha um importante papel na gênese do capital. Temos, portanto, uma sociologia
das religiões intrínseca ao marxismo. Mais interessante que a validade empírica de tais
análises históricas é seu significado metodológico: o reconhecimento da religião como
uma das causas importantes das transformações econômicas que conduzem ao estabe-
lecimento do capitalismo moderno (LÖWY, 2000, p. 15-16).
No Método dialético, Michael Löwy esboça uma aproximação entre Weber e Marx, com
um subtítulo bem intitulado “notas críticas sobre um diálogo implícito”. O autor cita al-
gumas semelhanças entre Karl Marx e Max Weber e pergunta-se como explicar que a Éti-
ca Protestante seja tão frequentemente apresentada como a grande obra “anti-Marx” da
sociologia moderna? A resposta é sarcástica e realista: “uma das razões é provavelmente
a necessidade da imagem de um São Jorge acadêmico que esmague o dragão marxis-
ta” (1976, p. 36). Trata-se antes de uma visão materialista de Marx (o desenvolvimento
econômico condicionou o desenvolvimento da Reforma) e idealista de Weber (havia éti-
ca protestante de poupança, ascese e trabalho que condicionou o desenvolvimento da
burguesia).
Weber jamais afirmou que o puritanismo ou a ética protestante tenham influenciado di-
retamente ou determinado o surgimento da economia capitalista. Sua abordagem bus-
ca elucidar em que medida o movimento religioso, em consequência de suas afinidades
eletivas, influenciou o desenvolvimento da cultura material. Nas palavras do próprio
Weber (1983, p. 24-25), “o ascetismo e a devoção eclesiástica, de um lado, e a participa-
ção na vida industrial do capitalismo, do outro, possam vir a estruturar-se numa íntima
relação de afinidade”. Já pelos pressupostos da A Ideologia Alemã (de Marx e Engels), a
consciência humana é determinada pelas relações materiais de existência, “a consciên-
cia nunca pode ser mais do que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo
de vida real”. Ou dito de outra forma: “ao contrário da filosofia alemã, que desce do céu
para a terra, aqui é da terra que se sobe ao céu” (MARX; ENGELS, 2007, p. 19, grifo nosso).
Contudo, é preciso ressaltar que Eric Hobsbawm não aceita a influência da Reforma ou
do Puritanismo como influência direta na eclosão da Revolução Industrial. Mas outro
autor renomado, Edward Thompson, em A formação da classe operária inglesa, cita re-
pedidas vezes e com destaque o papel do Metodismo (doutrina de caráter sistemático,
metódico, regrado, na busca da “graça”), que, coincidentemente ou não, destacou-se
no período da Revolução Industrial como forma de “servir de religião a um proletariado
que não tinha qualquer razão para se sentir eleito”. O “ópio das massas” relembra-nos
que muitas pessoas se voltaram para a religião, em busca de algum “consolo”, ainda que
os sonhos inspirados pela doutrina metodista não parecessem muito felizes, conclui
Thompson.
Ao substituir o sacerdócio dos Padres pelo negócio dos burgueses, a Reforma implantou
um novo paradigma. Sacerdócio significa o ócio consagrado aos deuses, enquanto que
o negócio é a negação do ócio. Por fim, vale citar a sentença crítica e perspicaz de Karl
Marx, que sintetiza a doutrina da Justificação pela fé, de Lutero:
Sem dúvida, Lutero venceu a servidão por devoção porque pôs no seu
lugar a servidão por convicção. Quebrou a fé na autoridade porque res-
taurou a autoridade da fé. Transformou os padres em leigos, transfor-
mando os leigos em padres. Libertou o homem da religiosidade exte-
rior, fazendo da religiosidade o homem interior. Libertou o corpo dos
grilhões, prendendo com grilhões o coração (MARX, 2010, p. 152).
Fonte: Sousa (2013, p. 115-126).
55

1. Com relação aos estudos sobre a Revolução Industrial e o protagonismo da clas-


se trabalhadora, analise o poema abaixo:
Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles blocos de pedra?
E a Babilônia várias vezes destruída –
Quem a reconstruiu tantas vezes? (...)
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo.
Quem os ergueu? Sobre quem triunfaram os césares?
Cada página uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande homem.
Quem pagava a conta?
Tantas histórias.
Tantas questões.
(Bertold Brecht. Perguntas de um operário que lê.)
Partindo das reflexões de um trabalhador que lê um livro de história, Brecht cen-
sura a memória construída sobre determinados monumentos e acontecimentos
históricos. A crítica refere-se ao fato de que:
a) Os agentes históricos de uma determinada sociedade deveriam ser aqueles que
realizam feitos heroicos ou grandiosos e, por isso, ficaram na memória.
b) A história deveria se preocupar em memorizar os nomes de reis ou dos gover-
nantes das civilizações que se desenvolvem ao longo do tempo.
c) Os grandes monumentos históricos foram construídos por trabalhadores, mas
sua memória está vinculada aos governantes das sociedades que os construíram.
d) Os trabalhadores consideram que a história é uma ciência de difícil compreen-
são, pois trata de sociedades antigas e distantes no tempo.
e) As civilizações citadas no texto, embora muito importantes, permanecem sem
terem sido alvos de pesquisas históricas.
2. A Revolução Industrial marcou uma mudança radical quanto às formas de traba-
lho, substituiu o trabalho manual (manufaturas) pelo trabalho mecanizado, a for-
ça motriz humana pela máquina. Nesse processo, há o que historiadores (como
Thompson) chamaram de transição de uma economia moral (o controle do pre-
ço de alimentos, por exemplo) para economia monetária,em que o homem é
menos importante que o mercado econômico. Sobre a Revolução Industrial, é
correto afirmar que:
a) Sua fundamentação econômica, baseada em Adam Smith (A riqueza das na-
ções), estava pautada na livre iniciativa individual (Laissez-faire ou deixe fazer),
ou seja, no controle absoluto do Estado sobre a economia.
b) Ocorreu na Inglaterra no final do século XVIII, porque esse país ainda mantinha
práticas feudais, possibilitando o lucro e acúmulo de capitais.
c) Suas consequências foram: desenvolvimento do capitalismo, crescimento eco-
nômico, trabalho assalariado, desenvolvimento das ideias do liberalismo econô-
mico, oposição entre burgueses e proletários.
d) A Revolução Industrial libertou o homem das amarras feudais, permitindo que
todos se tornassem burgueses, industriais e banqueiros, possibilitando ainda a
ascensão política dos trabalhadores e jornadas de trabalho dignas.
e) A Revolução Industrial desenvolveu-se na Inglaterra, exclusivamente, graças aos
novos inventos, como a máquina a vapor de James Watt.

3. Pode-se dizer que a Revolução Francesa de 1789-99 foi o equivalente político


da Revolução Industrial. Pois, se a Revolução Industrial marcou a vitória da bur-
guesia no campo do trabalho, a Revolução Francesa instaurou a burguesia como
classe política dominante, substituindo o Antigo Regime (a aristocracia). Sobre a
Revolução Francesa, analise as afirmações a seguir:
I. A convocação dos Estados Gerais em 1789 foi motivada pela ação dos sans-culot-
tes, que, famintos, ameaçavam o Rei.
II. A fase jacobina (1ª República francesa) foi marcada pelo terror (guilhotina), mas
também pode ser considerada a fase heroica da Revolução, pois instaurou me-
didas realmente revolucionárias, como abolição da escravidão, voto universal e
direitos igualitários.
III. A fase do Diretório foi comandada por Robespierre, que passou o poder a Napo-
leão Bonaparte, como forma de assegurar os direitos da elite burguesa.
IV. O golpe do 18brumário de Napoleão Bonaparte significa a invasão à Espanha e
Portugal.
57

É correto o que se lê em:


a) Apenas I e II estão corretas.
b) Apenas II e III estão corretas.
c) Apenas III e IV estão corretas.
d) Apenas II, III e IV estão corretas.
e) Todas as alternativas estão corretas.

4. O Congresso de Viena, concluído em 1815, após a derrota de Napoleão Bonapar-


te, baseou-se em três princípios fundamentais. Assinale a opção que apresenta
corretamente esses princípios:
a) Liberalismo, democracia e industrialismo.
b) Socialismo, totalitarismo e controle estatal.
c) Restauração, legitimidade e equilíbrio europeu.
d) Conservadorismo, tradicionalismo e positivismo.
e) Constitucionalismo, federalismo e republicanismo.

5. Durante o processo de formação da classe operária, movimentos como o Ludis-


mo e Cartismo tiveram destaque durante a Revolução Industrial. O Cartismo in-
glês, movimento operário que surgiu na década de 1830, reivindicava:
I. O estabelecimento do socialismo na Inglaterra.
II. A organização dos trabalhadores em ligas operárias e sindicatos.
III. A luta armada para a realização do socialismo.
IV. A destruição das máquinas nas fábricas.
V. Benefícios trabalhistas e eleitorais.
Estão corretas apenas as alternativas:
a) I e II.
b) II e III.
c) IIe V.
d) III e IV.

e) I, II, III e IV.


MATERIAL COMPLEMENTAR

Costumes em comum
Edward Palmer Thompson
Editora: Companhia das Letras
Sinopse: livro de referência obrigatória em história contemporânea.
Thompson é reconhecido como um dos principais historiadores do século
XX, e Costumes em comum consolida os costumes e a cultura popular no
processo de formação (the making of ) da classe operária moderna. Ele
analisa os motins pelo pão, a venda de esposas e a mudança na noção de
temporalidade histórica como formas de resistência popular, na transição
de uma “economia moral” baseada nos costumes, para a economia
monetária da Revolução Industrial.

História da Revolução Francesa


Jules Michelet
Editora: Companhia das Letras
Sinopse: livro de referência nos estudos sobre a Revolução Francesa.
Michelet é um dos principais historiadores franceses do século XIX. Sua
obra sobre a Revolução Francesa é pioneira quanto à inserção do povo
como protagonista da História, tendência que seria consolidada apenas na
segunda metade do século XX com a Nova Esquerda Inglesa.
MATERIAL COMPLEMENTAR

O Campo e a Cidade na História e na Literatura


Raymond Williams
Editora: Companhia das Letras
Sinopse: Williams trabalha na “fronteira da moral”, entre o campo e a
cidade, o contraste entre a urbes e o rústico. A moral aqui apresentada
está embasada no contexto da cultura, na série de valores e costumes que
perpassam as mudanças históricas e demoram para se adaptarem aos novos
horizontes culturais e/ou econômicos. Há, em Williams, um engajamento
que o leva a ver as transformações abruptas do século XVIII com certo
estranhamento, tendo em vista sua origem em uma Grã-Bretanha rural.
Por meio da metodologia que Williams chama de “retrospecção” ou escada
rolante, ele compara diversas épocas literárias, de Homero a Aldoux Huxley, sem,
todavia, perder o século XVIII de vista. Ele discorda da interpretação de autores (mesmo
os socialistas) que caem no que ele denomina de “idealização do industrialismo”.

Título: Os Miseráveis
Ano: 2012
Sinopse:o filme é uma adaptação de uma das principais obras do
escritor francês Victor Hugo. O cenário e o enredo são os contrastes dos
efeitos da Revolução Industrial e Revolução Francesa.

Material Complementar
Professor Me. Rui Bragado Sousa

MODERNIDADE E

II
UNIDADE
“PROGRESSO”(1848-1900)

Objetivos de Aprendizagem
■■ Compreender os desdobramentos e as consequências das grandes
Revoluções (Industrial e Francesa).
■■ Comparar os dois modelos de pensamento que surgiram desse
processo (liberalismo e socialismo).
■■ Analisar o desenvolvimento da cultura moderna e os impactos da
noção de “progresso”.
■■ Verificar a dinâmica do nacionalismo, darwinismo e positivismo.
■■ Pensar no fio condutor que liga a Revolução Industrial ao
Imperialismo.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ 1848 – Da primavera dos povos ao golpe 18 brumário de Luís
Bonaparte (a história se repete?)
■■ Do socialismo utópico ao socialismo científico: Do Manifesto
Comunista à Comuna de Paris, 1848-1871
■■ Matrizes do pensamento moderno: nacionalismo, darwinismo,
positivismo
■■ Da Revolução Industrial ao Imperialismo.
63

INTRODUÇÃO

Caro(a) aluno(a), como futuro(a) professor(a), seguramente você já refletiu sobre


os temas que se seguem nesta segunda unidade. No momento de apresentação do
conteúdo, cabem algumas reflexões sobre o que é chamado de “filosofia da his-
tória”. Nesse sentido, o momento é de muitas indagações e pode-se questionar a
respeito de como ocorre o processo de conhecimento histórico. O passado legi-
tima, condena ou oferece novas fronteiras na construção da sociedade? E, mais
que isso, a história se repete ou o passado é um acontecimento único e isolado
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

no porão das fontes e manuscritos?


É claro que tais questões não são meras divagações ébrias e estéreis e muito
menos retórica vazia de Teorias da História. No período contemporâneo, há
aquilo que muitos teóricos chamam de “perda de experiência” e, consequente-
mente, da capacidade de narrar. Um autor clássico afirmou que a “história é a
mestra da vida” (magistra vitae); o espelho dos vícios e virtudes da humanidade,
no qual se pode “aprender” pela experiência. Neste período contemporâneo,
porém, tal postulado perde seu sentido pedagógico. “O que a experiência e a his-
tória nos ensinam é que os povos e os governos jamais aprenderam algo a partir
da história, assim como jamais agiram segundo os ensinamentos que dela foram
extraídos”, disse o filósofo idealista Hegel (KOSELLECK, 2006).
A nova história teve que renunciar a pretensão de ser “mestra da vida”. “Desde
que o passado deixou de lançar luz sobre o futuro, o espírito humano erra nas
trevas”, disse Tocqueville. Na medida em que a humanidade desloca o sentido
da história, do passado e presente, para um futuro indeterminado, quer seja o
paraíso, a sociedade sem classes ou a crença ilimitada no progresso técnico, ela
tende a negar o presente e as lutas da ordem do dia. Mesmo Marx, em O 18 de
Brumário de Luís Bonaparte, fala em “poesia do futuro” e não em resgatar as
energias atadas na tradição e na experiência.
Na contemporaneidade, o conhecimento histórico acontece, de acordo com

Introdução
64 UNIDADE II

as definições de Koselleck, não apenas por meio da experiência e da cultura, mas


do horizonte de expectativa, do futuro. Entre o passado romântico e o futuro utó-
pico, pode-se dizer que está o vão da ampulheta na qual o historiador pensa seu
ofício. E, como bem disse José Carlos Reis (2006, p. 183), “o fundo da ampulheta
fala, se expressa, é capaz de dialogar com a parte superior, retirando os vivos da
solidão em sua passagem inexorável pelo vão”.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
1848 – DA PRIMAVERA DOS POVOS AO GOLPE 18
BRUMÁRIO DE LUÍS BONAPARTE (A HISTÓRIA SE
REPETE?)

“Infantaria, cavalaria e artilharia substituíram liberté, égalité e fraternité”


(Karl Marx, O 18 brumário de Luís Bonaparte, 2011, p. 62).
Para darmos início à segunda unidade, retomaremos algumas ideias-chave da
unidade anterior, lembrando sempre que ainda estamos falando dos desdobra-
mentos da Revolução Francesa e Industrial. Vimos que a fase radical da Revolução
foi barrada, em um primeiro momento, pela alta burguesia ao delegar o poder a
Napoleão; no segundo momento, pela restauração conservadora do Congresso
de Viena (1815). Novamente um monarca ascendeu ao trono, Luís XVIII, da
dinastia dos Bourbons e irmão de Luís XVI, executado em 1793. Seu governo
foi considerado moderado, uma vez que delegava os privilégios à classe ascen-
dente, porém ainda não dominante (burguesia), e conservara algumas conquistas
da grande Revolução, como as liberdades civis, igualdade perante a lei e divi-
são dos poderes, políticas claras do pensamento que estava sendo consolidado
na Europa, o liberalismo político e econômico, a doutrina do laissez-faire, ana-
lisado na unidade anterior.

MODERNIDADE E “PROGRESSO”(1848-1900)
65

Mas, com a morte de


Luís XVIII em 1824, ascen-
deu ao trono seu irmão
Carlos X (o conde de Artois).
Pode-se dizer que Carlos X
seguiu na contramão da ten-
dência política do período;
foi intransigente defensor
Figura 3: Cena típica de 1848, barricadas nas ruas de Paris.
do Antigo Regime, aliou-se
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

à antiga nobreza absolutista. Criou leis que indenizavam a nobreza pelas terras
confiscadas pela Revolução de 1789 e outras medidas ainda mais conservado-
ras como a dissolução da Assembleia Nacional e da Guarda Nacional, censurou
a imprensa e restringiu a participação das classes populares na política. A rea-
ção não tardou a acontecer e uma nova personagem entrou na cena histórica, as
barricadas. Tal como a guilhotina marcou o período jacobino, a barricada seria a
forma de manifestação característica dos movimentos de 1830 e 1848. Essas bar-
ricadas, pequenas formas de trincheira, deram o tom para o ataque ao Hotel de
Ville em 28 de julho de 1830. Por três dias houve enfrentamento entre as tropas
leais ao rei e a população. Em 30 de julho, o rei abdicou e fugiu para a Inglaterra.
Após a revolução de Julho, um banqueiro liberal chamado Laffitte, ao con-
duzir em triunfo para o Hotel de Ville (sede da câmara de Paris) o duque de
Orleans, Luís Felipe, teceu o seguinte comentário: “Agora o reino dos banqueiros
irá começar”. Laffitte traíra o segredo da revolução, anotou Marx (2012, p. 37).
Uma nova aristocracia entrou na cena política da França, a chamada aristocracia
financeira, banqueiros, especuladores da bolsa e do tesouro e grandes proprie-
tários. Por essas questões, Luís Felipe (1830-1848) ficou conhecido como “o rei
burguês”. Elaborou-se uma nova constituição de caráter liberal, privilegiando os
segmentos da alta burguesia. Novos reis surgiam não mais da aristocracia, mas
surgiam reis da bolsa, reis das estradas de ferro, reis banqueiros.

1848 – Da Primavera dos Povos ao Golpe 18 Brumário de Luís Bonaparte (A História se Repete?)
66 UNIDADE II

Os reis banqueiros governavam por meio do endividamento do Estado.


Fornecendo empréstimos, a alta burguesia governava e legislava mediante as
câmaras. Esse processo causou um déficit do Estado francês, em que as dívidas
eram sempre maiores que a arrecadação de impostos, causando um desequilíbrio
na balança comercial. Um dos princípios da economia moderna é o equilíbrio
entre déficit e superávit, o que entra e o que sai, mas isso não ocorreu no perí-
odo de rapina e especulação no governo de Luís Felipe. “Que o déficit do Estado
era o interesse direto da fração burguesa dominante, eis o que explica que as
despesas públicas extraordinárias nos últimos anos do reinado de Luís Felipe

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tenham ultrapassado de longe o dobro das despesas extraordinárias no tempo
de Napoleão” (MARX, 2012, p. 39).
As frações não dominantes da burguesia gritavam “corrupção” e o povo
“abaixo os grandes ladrões, abaixo aos assassinos”. Finalmente, após mais de
quinze anos de rapina, dois acontecimentos econômicos mundiais aceleraram
o eclodir da insatisfação popular e amadureceram o descontentamento até o
converter em revolta: a praga da batata (uma praga que apodrecia o carboidrato
mais consumido da Europa, levando milhões à morte na Irlanda) e as más colhei-
tas de 1845 e 1846. A carestia de alimentos fez estalar conflitos sangrentos não
só na França, mas em todo o continente. Frente aos escândalos da aristocracia
financeira, a luta do povo pelos alimentos de primeira necessidade. Essa devas-
tação econômica causou uma epidemia generalizada no comércio e na indústria,
tornando insuportável a dominação exclusiva dos banqueiros. A burguesia opo-
sicionista promoveu banquetes na rua, clamando a agitação popular e exigindo
uma reforma eleitoral. O governo tornou-se insustentável.

A “PRIMAVERA DOS POVOS” EM 1848

A humanidade nunca esteve tão próxima de uma revolução mundial como em


1848, escreveu Eric Hobsbawm (1997), ano que teria constituído a primavera
dos povos ou a emancipação popular. 1848 é também o ano de publicação do
Manifesto Comunista e da famosa máxima de Marx e Engels: “proletários de
todo o mundo, uni-vos”. Foi, portanto, uma data emblemática no curso da era

MODERNIDADE E “PROGRESSO”(1848-1900)
67

contemporânea. Vamos compreendê-la melhor se olharmos pela ótica da classe


que estava sempre na retaguarda da burguesia, os trabalhadores urbanos, mas
que não tiveram suas condições de vida melhoradas pela ascensão burguesa. Eles
lutariam agora contra a própria burguesia, expondo o antagonismo da contem-
poraneidade: burgueses e proletários.
O processo revolucionário de 1848 possui grandes semelhanças com a grande
Revolução de 1789, ao ponto de Marx (2011, p. 25) indagar:
a história se repete? [...] A primeira vez como tragédia, a segunda como
farsa. Caussidière como Danton, Loius Blanc como Robespierre, a
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Montanha de 1848-51 como a Montanha de 1793-95, o sobrinho como


o tio. E essa mesma caricatura se repete nas circunstâncias que envol-
vem a reedição do 18 de brumário.

Poderíamos acrescentar Auguste Blanqui (em 1848) como Graco Babeuf (em
1797). O que Marx quer dizer com essa brilhante comparação é que 1848 reeditou
a grande época da tomada da Bastilha de 1789, porém com novos personagens,
novos atores sociais e uma classe trabalhadora muito mais consciente de seu
protagonismo histórico.
Aposto que essa avalanche de novos nomes confundiu um pouco as coisas,
pois certamente você já está adaptado(a) aos nomes de Robespierre, Danton,
Montanha, mas não aos de Blanc, Caussidière e Blanqui. Entretanto, tão logo
analisarmos as fases dessa “primavera dos povos”, as coisas ficarão cristalinas
como o processo de 1789. Então, vamos lá!
A fome, o endividamento do Estado, a consequente inflação, a queda do
consumo, a crise do sistema bancário e a ferrenha oposição dos críticos de Luís
Felipe tornaram seu governo insustentável. Jornais como O Nacional (onde
escrevia o poeta Lamartine) e o Reforma conclamavam reuniões populares
com a oferta de banquetes públicos, muitas vezes na rua. Era literalmente um
prato cheio para os esfomeados e para as pretensões políticas da oposição, que
precisava do apoio popular. Luís Felipe tentou proibir um desses banquetes mar-
cado para 22 de fevereiro de 1848; todavia, a multidão resistiu pedindo a cabeça
do ministro Guizot, e a manifestação alastrou-se por toda Paris. Em dois dias,
as barricadas tomaram conta da capital, quartéis foram tomados, obrigando a
capitulação do rei. Esse processo marca o que foi chamado de jornadas revolu-
cionárias de fevereiro de 1848.
1848 – Da Primavera dos Povos ao Golpe 18 Brumário de Luís Bonaparte (A História se Repete?)
68 UNIDADE II

É possível distinguir três períodos principais até o fatídico golpe de Luís


Bonaparte, sobrinho de Napoleão, em dezembro de 1851. O período de feve-
reiro ou a derrubada do rei; 4 de maio de 1848 até maio de 1849: período da
Constituição da República ou Assembleia Nacional Constituinte; 28 de maio
de 1849 a 2 de dezembro de 1851: período da República constitucional ou da
Assembleia Nacional Legislativa.
O Governo provisório, erguido por meio das barricadas de fevereiro, com-
punha-se de diversas vertentes. Os burgueses e pequenos burgueses formaram
a maioria de caráter republicano, representada por Ledru-Rollin e Flocon e por

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partidários do jornal O Nacional, como Lamartine. Os representantes da monar-
quia reuniam-se em torno de Crémieux, pela sucessão de Luís Felipe pelo neto.
A classe operária tinha apenas dois representantes, Louis Blanc e Albert.
Até 25 de fevereiro de 1848 a República ainda não tinha sido proclamada;
em contrapartida, todos os ministérios já se encontravam distribuídos entre os
elementos burgueses do governo provisório. Os operários, porém, dessa vez, não
estavam dispostos a tolerar a rapina de junho de 1830, quando foram deixados
de fora de todo o governo, após terem sido decisivos para a deposição de Carlos
X. Em fevereiro de 1848, a classe trabalhadora estava disposta a fazer prevalecer
seus direitos, a deixar a vanguarda, para ser o protagonista da história; estava dis-
posta a proclamar a República pela força das armas. Foi com essa mensagem que
Raspail (um operário) se dirigiu ao Hotel de Ville, em nome dos trabalhadores
de Paris, e ordenou ao governo provisório que proclamasse a República. Se den-
tro de duas horas essa ordem do povo não tivesse sido cumprida, ele retornaria
à frente de 200.000 homens. Antes que se esgotasse o prazo os muros de Paris
ostentavam as palavras de ordem: République Française! Liberté, Egalité, Fraternité!
A análise feita por Karl Marx (2012, p. 44) sobre as lutas de classe na França
foi certeira e permanece atual, por que ela resume bem os fatos em apenas um
parágrafo:
Ao ditar a República ao Governo provisório e, por meio de o Gover-
no provisório, a toda a França, o proletariado passou ao primeiro pla-
no como partido autônomo, mas, ao mesmo tempo, desafiou contra
si toda a França burguesa. O que ele conquistou foi o terreno para a
luta pela sua emancipação revolucionária, de modo nenhum a própria
emancipação.

MODERNIDADE E “PROGRESSO”(1848-1900)
69

Assim como nas jornadas de junho de 1830 os operários tinham conquistado a


monarquia burguesa, nas jornadas de fevereiro de 1848, conquistaram a repú-
blica burguesa, concluiu Marx. Veremos que Marx “acertou na mosca”, pois as
migalhas conquistadas, os raros direitos, durariam somente até junho de 1848;
por apenas três meses os trabalhadores gozaram de condições favoráveis. E quais
foram tais condições? Os trabalhadores impuseram um decreto no qual o Governo
se comprometia em assegurar e proporcionar trabalho a todos os cidadãos. As
palavras de ordem eram: “Organização do trabalho! Criação de um ministério
especial do Trabalho”. Aos gritos de vinte mil trabalhadores em frente ao Hotel de
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Ville, o governo provisório nomeou uma comissão especial permanente encar-


regada de encontrar os meios para a melhoria da classe trabalhadora, presidida
por Louis Blanc e Albert. Escreveu Marx (2012, p. 46),
Ao lado dos ministérios das finanças, do comércio, das obras públicas,
ao lado da banca e da bolsa ergueu-se uma sinagoga socialista, cujos
sumo-sacerdotes, Louis Blanc e Albert tinham como tarefa descobrir
a terra prometida, pregar o novo evangelho e dar trabalho ao proleta-
riado de Paris.

Parte dos trabalhadores sem emprego foi recrutada para a nova Guarda Nacional,
cerca de vinte mil homens; outros cem mil foram integrados nas Oficinas
Nacionais, estatais, um exército de operários.
A oposição da burguesia não tardou. Ora, sem um exército de desempre-
gados mantendo os salários artificialmente baixos, os lucros dos empregadores
eram menores. Vemos, com esse exemplo, que a apologia às privatizações não
é coisa atual apenas. Mas isso não vem ao caso agora, veremos essas questões
na unidade V.
A “opinião pública” logo espalhou os rumores de que essas oficinas eram o
embrião do socialismo ou uma pensão do Estado para um trabalho fingido. A
crescente agitação popular com o objetivo de assegurar direitos básicos como
o trabalho teve seu objetivo inverso;foi vítima de uma vulgar conspiração do
Governo provisório.

1848 – Da Primavera dos Povos ao Golpe 18 Brumário de Luís Bonaparte (A História se Repete?)
70 UNIDADE II

Em 16 de abril de 1848, inúmeros operários tinham-se reunido no Campo de


Marte e no Hipódromo para preparar eleições para oficiais da Guarda Nacional.
O Governo e os órgãos da burguesia se aproveitaram dessa reunião para espa-
lhar o boato de que tinham se reunido armados, sob a direção de Louis Blanc,
Blanqui, Cabet e Raspail, para daí se dirigirem ao Hotel de Ville, derrubarem o
Governo Provisório e proclamarem um Governo Comunista. A grotesca arma-
ção ressoou como um relâmpago em Paris e deu o pretexto para que o exército
voltasse à capital. Cem mil homens armados protegiam o Hotel de Ville.
Nos meses seguintes, a máscara da República burguesa, disfarçada de

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República do povo, caiu. Os atritos entre a população e o Governo chegaram ao
ponto crucial, e a insurreição de junho de 1848 marcou o mais colossal aconteci-
mento na história das guerras civis europeias. O estopim que ateou fogo a Paris
foi um decreto contra as Oficinas Nacionais – o verdadeiro alvo do ataque –,
que ordenava a expulsão violenta das oficinas nacionais de todos os trabalhado-
res solteiros ou sua incorporação no exército. Aos operários não restava escolha,
morreriam de fome ou iniciariam a luta.
A barricada é o ponto central do movimento de resistência. Durante a
Revolução de Junho, mais de quatro mil barricadas se espalharam por Paris.
Esses operários preferiram, escreve um dos historiadores modernos da Comuna,
“a luta no próprio quarteirão ao combate aberto e, se preciso, a morte atrás do
calçamento empilhado como barricada, numa rua de Paris”. Dificilmente se
pode exagerar o prestígio revolucionário que Auguste Blanqui então possuía e
que manteve até a morte. Antes de Lênin, não houve quem tivesse aos olhos do
proletariado traços mais distintos. Se, por um lado, Blanqui entrou na tradição
como “putschista”, há boas razões para isso. Para a tradição, ele representa o tipo
de político que, como diz Marx, vê sua missão no “antecipar-se ao processo de
evolução revolucionário, impeli-lo por meio de artifícios para a crise, improvi-
sar uma revolução sem que haja condições para ela” (apud BENJAMIN, 1995,
p. 07). Blanqui foi preso e a insurreição esmagada.
Os trabalhadores tinham apenas a si mesmos. Já o Governo tinha o apoio da
aristocracia financeira, da classe média, do exército, dos “intelectuais” escritores
do jornal O Nacional. Mais de três mil insurgentes foram mortos após a vitó-
ria das tropas do general Cavaignac, 15 mil foram deportados sem julgamento,

MODERNIDADE E “PROGRESSO”(1848-1900)
71

outros tantos presos. Na noite de 25 de julho de 1848, quando a Paris da bur-


guesia se iluminava, a Paris do proletariado ardia, gemia e se esvaia em sangue.
Concluiu Karl Marx (2012, p. 63)
A revolução de Fevereiro foi a revolução bela, (...) a revolução de Junho
é feia, a revolução repugnante, porque o fato tomou o lugar da palavra,
porque a república pôs à mostra a cabeça do próprio monstro, tirando-
-lhe da cabeça a coroa protetora e dissimuladora.
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O 18 BRUMÁRIO DE LUÍS BONAPARTE

O general Cavaignac governou Paris sob estado de sítio até 10 de dezembro


de 1848, quando foram realizadas eleições presidenciais. Concorreram o pró-
prio Cavaignac e Luís Bonaparte, sobrinho do tio ilustre Napoleão Bonaparte.
Aproveitando-se do sobrenome e da ala bonapartista da política francesa, saudo-
sista dos tempos de glória de Napoleão, o sobrinho foi eleito com 70% dos votos.
É nesse sentido que agora se pode compreender a frase emblemática de Marx:
“primeiro como tragédia, depois como farsa”. Isto é, se Napoleão barrou tragica-
mente a revolução, eliminando sua carga radical; seu sobrinho representou uma
farsa política, um fantoche, eleito segundo os interesses burgueses e escudado
pelo exército e pelo apoio dos camponeses. Sem dúvida, a história se repetiu.
Luís Bonaparte aproveitou-se do prestígio que o sobrenome lhe dera e também
da fragilidade da Constituição francesa, parlamentarista, porém centralizadora
em torno do Presidente. Aos poucos foi minando as instituições. Em setembro
de 1850, fechou a Assembleia Nacional e passou a governar por decreto. Em 7
de dezembro de 1852, golpeou novamente a República francesa, nomeando-se
Imperador, com o nome de Napoleão III. Esse foi o trágico desfecho da “prima-
vera dos povos” iniciada em fevereiro de 1848. Foi o golpe 18 de brumário de
Luís Bonaparte.

1848 – Da Primavera dos Povos ao Golpe 18 Brumário de Luís Bonaparte (A História se Repete?)
72 UNIDADE II

O escritor francês Victor Hugo fez alusão a Luís Bonaparte como “Napoleon,
le Petit” (Napoleão, o pequeno). Uma visão depreciativa, porém não distor-
cida. Karl Marx foi ainda mais incisivo na crítica quando demonstra como as
circunstâncias e as condições políticas da França possibilitaram a um “persona-
gem medíocre e grotesco” desempenhar o papel de herói. Ele governou a França
até 1871, quando foi derrotado na malograda campanha contra a unificação da
Alemanha, na guerra franco-prussiana. Dizem os críticos que uma única vez
Luís Bonaparte retirou sua espada da bainha, não para a luta, mas para entregá-
-la ao chanceler alemão Bismarck.

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As energias revolucionárias dos trabalhadores tiveram que esperar mais de
20 anos para poder explodir novamente, na Comuna de Paris em 1871. Mas,
nesse ínterim, eles foram representados na obra do poeta Charles Baudelaire,
não como meros coadjuvantes da história, como protagonistas. “Seja qual for o
partido a que se pertença”, escreveu Baudelaire em 1851,
[...] é impossível não ficar emocionado com o espetáculo desta
população doentia, que engole a poeira das fábricas, que inala
partículas de algodão, que deixa penetrar seus tecidos pelo alvaiade,
pelo mercúrio e por todos os venenos necessários à realização de obras-
-primas [...] Esta população espera os milagres a que o mundo lhe pa-
rece dar direito; sente correr sangue purpúreo entre as veias e lança um
longo olhar carregado de tristeza à luz do sol e às sombras dos grandes
parques (apud BENJAMIN, 2015, p. 48 e ss.).

Essa população é o pano de fundo no qual se destaca a silhueta do herói, com-


pleta Walter Benjamin, na obra Baudelaire e a modernidade. Para esse quadro,
Baudelaire escreveu uma legenda a seu modo: a expressão la modernité.
O herói é o verdadeiro tema da modernité. Isso significa que, para vencer a
modernidade, é preciso uma formação heroica. Essa era também a opinião de
Balzac. Assim, Balzac e Baudelaire se opõem ao romantismo. Eles sublinham
as paixões e as forças de decisão; o romantismo sublinha a renúncia e a dedi-
cação. Baudelaire reconhece no proletário o escravo da esgrima. Aquilo que o
assalariado realiza no trabalho diário não é menos importante que o aplauso do
gladiador na antiguidade (BENJAMIN, 1995).

MODERNIDADE E “PROGRESSO”(1848-1900)
73

A Paris do Segundo Império de Napoleão III pode ser resumida da ideia-


-chave do flâneur. O flâneur representa uma descrição sociológica da cidade.
Para Alan Poe, é alguém que não se sente seguro em sua própria sociedade; é
o homem da multidão, segundo Guys. Para compreender o mundo moderno,
Baudelaire trocou o gabinete e a biblioteca pelas ruas, o ócio, pela aventura e até
duelos. Baudelaire amava a solidão, mas a queria na multidão. O flâneur é um
abandonado na multidão. Nada mais atual.
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DO SOCIALISMO UTÓPICO AO SOCIALISMO


CIENTÍTICO: DO MANIFESTO COMUNISTA À
COMUNA DE PARIS (1848-1871)

Na década de 1990, foi feita uma pesquisa de opinião pela rede BBC de Londres
questionando qual seria o maior filósofo ou pensador de todos os tempos. Os
britânicos apontaram Karl Marx, à frente de homens como Platão, Aristóteles,
Descartes e Kant. Mesmo duvidando da credibilidade da votação, que, como toda
pesquisa, pode ser tendenciosa, basta digitar seu nome no Google, Marx con-
tinua a ser a maior de todas as grandes presenças intelectuais, só superado por
Darwin e Einstein, mas bem à frente de Adam Smith e Freud.
É preciso advertir que, sem compreender o socialismo como sistema econô-
mico oposto ao liberalismo e o comunismo como contraponto ao capitalismo,
não se entende todo o século XX, que estudaremos nas próximas unidades. O
século dos extremos esteve dividido entre essas duas concepções econômicas
e históricas. Cerca de 1/3 da humanidade viveu e pensou sob os pressupostos
desenvolvidos por Karl Marx, não apenas econômicos, pois Marx também é
considerado um dos fundadores da sociologia moderna, ao lado de Max Weber
e Émile Durkheim. Ele harmonizou, como um alquimista, o melhor da econo-
mia inglesa, da filosofia alemã e do socialismo francês.

DoSocialismoUtópicoaoSocialismoCientítico:doManifestoComunistaàComunadeParis(1848-1871)
74 UNIDADE II

Para entender esse complexo sistema de pensamento e alguns de seus con-


ceitos principais, é necessário dividir a análise em três pontos. Primeiro vamos
analisar o papel das utopias na modernidade e sua influência sobre Marx, depois
vamos verificar como foi desenvolvido o método do materialismo histórico e
dialético, e, por fim, vamos ver como esse pensamento foi aplicado da teoria
à prática, na organização das ligas operárias, bem como definir seus conceitos
mais importantes.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A MARCHA DAS UTOPIAS E O SOCIALISMO UTÓPICO

Dissemos, na introdução desta unidade, que as utopias ou a expectativa futura


constituem o ponto central em que se escreve a história. Se é certo que entre a
experiência (passado) e a utopia (vindoura) ocorre o conhecimento, a prática
história, então, não pode analisá-las, jamais, como meros sonhos fantasiosos de
comunidades inexistentes, como quimeras ilusórias. Nada seria mais enganoso
para entender a contemporaneidade.
Você já pensou na relação entre os descobrimentos da América (1492) e do
Brasil (1500) para o desenvolvimento das utopias na era moderna? A relação é
óbvia, pois as cartas de Américo Vespúcio e os relatos dos viajantes estimula-
ram os europeus a pensar novas sociedades, projetos igualitários que fugissem
da rígida estrutura ainda feudal da Igreja cristã. As utopias europeias realmente
inexistiram antes da colonização e produziram verdadeiros clássicos na litera-
tura. São diversos os exemplos de utopistas que aliaram projetos igualitários às
utopias. Para citar apenas os mais notáveis: Utopia, de Thomas Morus, 1516; A
cidade do sol, de Campanella, 1602; A nova Atlântida, de Francis Bacon, 1627;
O código da Natureza, de Morelly.
O termo utopia, do grego u-topos, significa originalmente “nenhum lugar”,
o que ainda não existe, uma aspiração que está em contradição com o existente,
com a ordem estabelecida. Todavia, “restringir ou até orientar o utópico ao modo
de Thomas Morus seria como querer reduzir a eletricidade ao âmbar-amarelo,
do qual ela recebeu o seu nome em grego e no qual ela foi percebida pela pri-
meira vez”, pontuou o filósofo e teólogo Ernst Bloch (2006, p. 25). O que ele quer

MODERNIDADE E “PROGRESSO”(1848-1900)
75

dizer com essa comparação entre eletricidade e utopia é que devemos entendê-
-las em termos modernos, atuais, e não na forma arcaica em que surgiram. Pra
você ter uma ideia da grandeza desse conceito, ele foi investigado ao extremo
por dois dos maiores pensadores do século XX, Ernst Bloch e Karl Mannheim.
É porque o homem constrói utopias – e não só as imagina – que ele se torna
capaz de julgar o imediato e o factual, seja em referência ao passado, pela sau-
dade, pela lembrança, pela recordação de uma idade de ouro; seja em referência
ao futuro, pela espera de um paraíso em um comportamento que vai transformar
o presente. Essa concepção de utopia é desenvolvida no Princípio Esperança, de
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Ernst Bloch. A utopia não somente indica aos outros a existência dos possíveis
além do real, mas é também um instrumento de trabalho que permite a explo-
ração sistemática de todas as possibilidades concretas existentes no real. Nesse
sentido, o pensamento utópico na sua crítica do atual não é irreal, porque se apoia
nas tendências fundamentais do presente, que tem as suas raízes no passado, e
irrompe para o futuro. O pensamento utópico propõe um instrumento prospec-
tivo e não analítico. A utopia é uma forma de ação e não uma mera interpretação
da realidade, afirma Pierre Furter (1974, p. 147) em Dialética da Esperança.
Karl Mannheim, em seu livro Ideologia e Utopia, procurou distinguir os dois
conceitos. Para ele, ideologia é o conjunto de concepções, ideias, representações,
teorias que se orientam para a estabilização ou legitimação ou ainda reprodução
da ordem estabelecida. São aquelas doutrinas que têm certo caráter conservador,
no sentido amplo da palavra, e servem para a manutenção da ordem estabele-
cida. As utopias, pelo contrário, são aquelas ideias, representações e teorias que
aspiram outra realidade, uma realidade ainda não existente. Utopias negam a
ordem social ao criticá-la e, pelo fato de criticar a ordem estabelecida, têm uma
função subversiva e, em alguns casos, revolucionária.

DoSocialismoUtópicoaoSocialismoCientítico:doManifestoComunistaàComunadeParis(1848-1871)
76 UNIDADE II

A palavra “ideologia” surge com o filósofo enciclopedista Destutt de Tracy,


que a aplicou à teoria das ideias em geral. Para o filósofo Hegel, a ideologia
é uma projeção direta do espírito, como conceito universal, seria impossí-
vel considerá-la como um instrumento de classe. Já, para Marx, o conceito
aparece como equivalente à ilusão, uma falsa consciência, o pensamento da
classe dominante que sobrepõe às demais classes. Mas, no século XX, An-
tonio Gramsci elabora uma visão mais sofisticada sobre as ideologias. Para
esse filósofo italiano, há ideologias orgânicas, aquelas necessárias à deter-
minada estrutura, e ideologias não orgânicas, formas de pensamento que

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circulam no meio do povo comum, como crenças, folclore, mitos e experiên-
cia popular. Indico dois grandes trabalhos para quem pretende saber mais
sobre ideologias: Ideologia e protesto popular, de George Rudé (1991);
Ideologias e ciência social, de Michael Löwy (2010).
Fonte: o autor.

É fácil perceber por que a América forneceu as matrizes para o desen-


volvimento da utopia moderna. O indígena vivia em estado de natureza, sem
propriedade privada, uma sociedade matriarcal, igualitária, exatamente o inverso
da rigidez europeia, sobretudo após a Reforma Protestante. As utopias não são
exclusividade da literatura. Para o filósofo Ernst Bloch, as utopias constituem
uma das potencialidades iminentes do homem, pois somos criaturas que sonham
adiante, acordados; da mesma forma que sentimos fome, medo, temos fé, criamos
as utopias. Vejamos alguns exemplos claros em poemas tipicamente utópicos:
Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!
(Mário Quintana).1

Vou-me embora pra Pasárgada


Lá sou amigo do rei

1 Disponível em: <http://pensador.uol.com.br/poemas_de_mario_quintana/>. Acesso em: 24 set. 2015.

MODERNIDADE E “PROGRESSO”(1848-1900)
77

Lá tenho a mulher que eu quero


Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada


Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Rainha e falsa demente


Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
(Manuel Bandeira)2
Quer seja nas estrelas de Quintana, na Pasárgada de Bandeira ou ainda em inú-
meros outros exemplos como Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, as
utopias constituem formas de melhoramento social, na medida em que o negam
e imaginam algo melhor, mais humano. É nesse contexto histórico que, no século
XIX, as utopias modernas encontraram ressonância no socialismo, como forma
de negação da realidade social opressora e, ao mesmo tempo, como apontamento
de novas alternativas.
A origem da palavra socialismo data do início do século XIX, ela surge con-
comitante às agitações provocadas pelas grandes revoluções, francesa e industrial.
Pierre Leroux foi o primeiro a usar o termo, ainda bastante impreciso se compa-
rado ao cientificismo e rigor que Marx e Engels lhe deram. É natural que Pierre
Leroux caracterizasse o socialismo como “o reinado de Cristo que está prome-
tido à terra”. Há também a influência das utopias, pois Morelly constatou em sua
obra que todos os infortúnios da humanidade decorrem de ela ter abandonado
a comunidade de bens em favor da propriedade. Portanto, são três as matrizes
do socialismo moderno: o igualitarismo do cristianismo primitivo, a influência
subversiva das utopias e o terceiro e mais importante, as exigências do opera-
riado, o novo agente histórico (WILSON, 1994).

2 Disponível em: <http://pensador.uol.com.br/rei_davi_sonho/>. Acesso em: 24 set. 2015.

DoSocialismoUtópicoaoSocialismoCientítico:doManifestoComunistaàComunadeParis(1848-1871)
78 UNIDADE II

Veja que não foram propriamente Marx e Engels os criadores do socialismo,


eles “apenas” elevaram o conceito aos termos ditos científicos, às leis econômi-
cas com o desenvolvimento do materialismo histórico. Mas, para se chegar ao
método científico, o socialismo foi pensado de forma ainda utópica por três
grandes teóricos dos oitocentos: Saint Simon, Charles Fourier e Robert Owen.
Saint-Simon foi um nobre francês bastante excêntrico. Um ramo de sua famí-
lia havia trabalhado na corte de Luís XIV (aquele que se proclamou “o rei sol”
com a famosa frase “o estado sou eu”) e acreditava ser descendente do próprio
Carlos Magno. Para organizar o caos da modernidade, pensou em uma socie-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
dade a partir do mérito, uma hierarquia. A humanidade seria dividida em três
classes, os savants (sábios), aqueles que tinham posses e os que não tinham pos-
ses. Os savants exerceriam o “poder espiritual” da sociedade ocupando os cargos
no órgão supremo, que seria denominado “conselho de Newton”. O objetivo era
tornar os homens bons cristãos e garantir o desenvolvimento de suas faculdades.
Gastou toda a fortuna nos estudos e na publicação de seus livros, lidos apenas
pelos amigos próximos (WILSON, 1994).
Charles Fourier pode ser definido como um “Altruísta”, homem raro que
se preocupa com o bem das pessoas sem esperar retorno. Quando jovem, apa-
nhava dos colegas maiores por defender os mais fracos e, na velhice, caminhava
por horas na chuva ao saber de alguma injustiça ou alguém necessitado. Mas
foi ao ver um carregamento de arroz ser jogado no rio, porque os proprietários
haviam conseguido monopolizar o mercado e queriam manter o preço elevado
artificialmente, enquanto o povo passava fome, que moldou seu engajamento
em favor dos pobres. Mas as fantasias de Fourier, tão ridicularizadas, revelam-se
hoje surpreendentemente razoáveis. Segundo Fourier, o trabalho teria, entre seus
efeitos, que quatro luas iluminariam a noite, que o gelo se derreteria dos polos,
que a água marinha deixaria de ser salgada (apud BENJAMIN, 1994, p. 240). O
processo de aquecimento global referenda as “fantasias” de Fourier.

MODERNIDADE E “PROGRESSO”(1848-1900)
79

Robert Owen certamente é a figura mais notável dos três utopistas clássicos.
Saiu de casa aos dez anos e aos vinte já dirigia uma grande indústria de tecidos
em Manchester, exercendo a liderança de centenas de pessoas. Edmund Wilson
(1994, p. 88) associa seu gênio administrativo e empreendedor ao do magnata
dos automóveis, Henri Ford. Foi influenciado pelas ideias de Rousseau, a teoria
do bom selvagem descrita em O contrato social, no qual Rousseau considera o
homem bom por natureza, a sociedade que o corrompe. Owen observou a dis-
crepância entre a “atenção dada às maquinas inanimadas e o descaso e desprezo
com que se tratavam as máquinas vivas, os homens”. Aliou a habilidade de ges-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

tor e a sensibilidade social em um projeto inovador para o início do século XIX.


Suas fábricas davam mais lucros e seus empregados tinham uma carga horária
menor que as demais indústrias. Isso porque Owen considerava as condições
dos operários mais degradantes que as dos escravos da América e da Índia, em se
tratando de saúde, alimento e vestuário, e propôs condições mais humanas para
seus funcionários. Criou os jardins de infância, para as mães que não tinham
onde deixar os filhos, proibiu o álcool entre os trabalhadores e impôs a disci-
plina por vantagens (WILSON, 1994).
Tanto Owen como Fourier propuseram novos modelos de sociedades limi-
tadas e independentes, mas no interior da sociedade maior, capitalista. Fourier
criou as falanges socialistas, ilhas de igualitarismo em um oceano de desigualdade.
Owen levou seu modelo de gestão da New Lamark, na Inglaterra, para a New
Harmony, nos Estados Unidos. Apesar de pensar em comunidades que visavam
à igualdade absoluta, hierarquia apenas por idade, sem propriedade, religião ou
matrimônio, a experiência estadunidense foi um fracasso. Na Inglaterra, ainda
organizou sindicatos e cooperativas owenistas, mas sem grande impacto. Nos
Estados Unidos, essas comunidades isoladas ainda seriam vistas até o final do
século XIX, com as experiências de Enfartin e Etienne Cabet, autor da última
obra utópica dos oitocentos, a Viagem à Icária. A utopia comunista do romance
de Cabet tinha um presidente e um sistema parlamentar calcados na Revolução
Francesa e na Constituição americana, porém, uma vez fundada a comunidade
na prática, Cabet impôs-se como um ditador (WILSON, 1994, p. 105).

DoSocialismoUtópicoaoSocialismoCientítico:doManifestoComunistaàComunadeParis(1848-1871)
80 UNIDADE II

Particularmente, não vejo Graco Babeuf como um socialista utópico, mas


como um dos fundadores do moderno conceito de socialismo, ao lado de Pierre
Leroux. Durante a fase do Diretório (1795-99) ele tentou organizar uma revolta
para derrubar a reação conservadora, ou reação termidoriana, que deu margem
ao golpe de Napoleão. A chamada “conspiração dos iguais” captou a contradição
da Revolução Francesa, isto é, os homens que haviam expropriado os bens dos
nobres e da Igreja permaneciam fiéis à propriedade privada. E você, o que pensa
sobre o debate? Babeuf está mais próximo dos utópicos Saint-Simon, Fourier e
Owen, ou do cientificismo de Marx e Engels?

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
“Pois o socialismo não é somente a questão operária ou a do quarto estado,
mas [...] a questão da torre de Babel que foi precisamente construída sem
Deus, não para atingir o céu a partir da terra, mas para trazer o céu até a
terra.”
Fonte: Dostoievsky, Os Irmãos Karamazov.

O MATERIALISMO HISTÓRICO E O SOCIALISMO CIENTÍFICO

Você conhece a história de Prometeu acorrentado, na mitologia grega? Na tra-


gédia do poeta Ésquilo, escrita no quinto século a.C., Prometeu é castigado por
Zeus por entregar o poder do fogo aos homens (que tem o sentido de liberdade
e emancipação humana frente aos deuses). E, com o fogo veio o desenvolvi-
mento das artes, da cultura e, consequentemente, do homem como senhor do
seu destino. Em certo sentido, pode-se dizer que Karl Marx (1818-1883) repre-
senta algo como um “Prometeu moderno” e o materialismo histórico representa
um equivalente do fogo.
Não quero dizer, com essa comparação, que Marx seja o libertador da

MODERNIDADE E “PROGRESSO”(1848-1900)
81

humanidade, mas que ele soube captar as exigên-


cias revolucionárias e a filosofia do oitocentos em
um método histórico que daria conta de explicar a
evolução da humanidade e da História mediante
leis científicas e inexoráveis pela luta de classes. Tal
método ficou conhecido como materialismo his-
tórico e dialético. Compreender a dinâmica desse
processo é determinante para se pensar não ape-
nas a contemporaneidade, mas a própria história
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

contemporânea.
O método dialético consiste em pensar a
evolução histórica por meio das contradições. Os
gregos foram pioneiros nessa forma de pensamento triangular: se há uma tese,
logo haverá sua antítese, e esta formará uma síntese, que eventualmente terá
uma tese oposta, assim sucessivamente. Outro exemplo: se eu faço uma afirma-
ção e você discorda, você teria uma negação do que afirmei, todavia eu ainda
poderia negar a sua negação e fazer outra afirmação, assim infinitamente. O que
os gregos queriam dizer é que a história se transforma, que a matéria morre,
que o mundo está em constante evolução (ou retração). Isso porque a matéria é
dialética e está em constante movimento de abertura e fechamento, de indeter-
minação e terminação. A matéria é dinâmica.
Mas o mundo material foi paulatinamente suplantado pelo mundo do espí-
rito, das ideias. Primeiro com Santo Agostino, que deslocou o eixo temporal da
terra para a cidade de Deus. Depois com o filósofo Georg Wilhelm Hegel (1770-
1831) e sua Fenomenologia do espírito. Há o famoso exemplo da “dialética do
senhor e do escravo”, que sintetiza a teoria de Hegel. Para ele, na relação entre o
senhor e seu escravo, a emancipação ocorre por meio da libertação da consci-
ência do escravo, pelo espírito, e não pelo rompimento das relações escravistas
no mundo material. O pensamento contemplativo e conservador de Hegel, na
prática, justificava as intenções do Congresso de Viena (1815) ou a reação con-
servadora da Europa pós Revolução Francesa.
A superação da dialética hegeliana em Marx viria após a publicação do livro

DoSocialismoUtópicoaoSocialismoCientítico:doManifestoComunistaàComunadeParis(1848-1871)
82 UNIDADE II

Santo Agostinho (354-430 d.C.), um dos grandes doutores da Igreja, escre-


veu duas obras célebres: As confissões, onde expõe toda sua vida boêmia e
devassa antes de se converter ao cristianismo; e A cidade de Deus, na qual
a Civitas Dei era literalmente concebida como um pedaço do céu na terra.
Agostinho chega a afirmar que “A Civitas Dei está tão longe da civitas terrena
quanto o sol está distante da terra” ou, ainda, que “a Deus e à alma anseio
conhecer; nada mais? Nada mais que isso”. Dessa forma, Agostinho colocou
a Igreja acima do Império Romano.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Fonte: Bloch (2006).

A Essência do Cristianismo, de Ludwig Feuerbach (1804-1872). Nessa obra, de


inspiração claramente materialista, Feuerbach afirma que não produz “o objeto a
partir do pensamento, mas, inversamente, o pensamento a partir do objeto”. Nesse
sentido, a essência da religião seria a essência aparente e superficial da natureza
e da humanidade, ou seja, que “teologia é antropologia” (FEUERBACH, 2002,
p. 424, 429). Ao ver a essência da religião no processo de vida real dos homens,
Feuerbach devolve à terra e ao homem sua existência.
O livro de Feuerbach causou entusiasmo nos jovens Karl Marx e Friedrich
Engels, seu fiel companheiro intelectual. Mas os limites e fragilidade de A essên-
cia do cristianismo foram logo superados pelo espírito crítico de Marx. O que
em um primeiro momento era entusiasmo, logo se tornou crítica do que Marx
e Engels chamaram de “materialismo antropológico” e não histórico, na medida
em que “o materialismo de Feuerbach se manifesta na concepção do homem
como ser corpóreo, ser natural. É um materialismo ausente no âmbito de que o
homem é ser social e faz história” (MARX; ENGELS, 2007, p. 36, 37). Dito de
outra forma:

MODERNIDADE E “PROGRESSO”(1848-1900)
83

A produção das ideias, das representações e da consciência está, a prin-


cípio, direta e indiretamente ligada à atividade material e ao comércio
material dos homens; ela é a linguagem da vida real. As representações,
o pensamento, o comércio intelectual dos homens aparecem aqui como
emanação direta de seu comportamento material. O mesmo acontece
com a produção intelectual tal como se apresenta na linguagem da po-
lítica, na da lei, da moral, da religião e da metafísica, etc., de todo um
povo (MARX; ENGELS, 2007, p. 19).

O trecho acima é de A ideologia alemã, obra de 1846, em que Marx e Engels


criticam a filosofia idealista alemã. Para eles, “os alemães se movem no domínio
do ‘espírito puro’ e fazem da ilusão a força motriz da história [...] Ao contrário
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

da filosofia alemã, que desce do céu para a terra, aqui é da terra que se sobe ao
céu” (MARX, ENGELS, 2007, p. 19).
O método dialético e materialista ganha fundamentação histórica no
Manifesto Comunista, de 1848. Ao desenvolver o conceito de luta de classes,
Marx e Engels encontram o motor da histórica nas contradições dialéticas. A
história de todas as sociedades até hoje é história da luta de classe, ele escrevem.
Homem livre e escravo, patrício e plebeu (na antiguidade), senhor e servo (no
período medieval), burgueses e proletários (na era contemporânea), opressores
e oprimidos formaram as classes opostas e contraditórias na história. Ao expor
o antagonismo de classes, Marx esboçou a própria dinâmica do capitalismo; ao
realizar o diagnóstico de sua estrutura econômica, traçou os prognósticos para
sua superação: o comunismo, em que não haveria mais classes sociais.
Para Marx, é a partir das relações materiais, das forças produtivas, do traba-
lho, que ele denominou de base econômica ou infraestrutura, que se desenvolvem
as esferas da cultura, do direito, da moral, da filosofia e teologia, denominadas
superestruturas. Portanto, a base do pensamento seria puramente material e
não ao contrário, como na filosofia alemã idealista, de Hegel, sobretudo. Isso não
significa que a base econômica determine todas as esferas da cultura, sendo que
a teologia e a filosofia são estruturas que flutuam independentes da economia
e, inversamente, até influenciam o desenvolvimento material. Muitos marxistas
como Georg Lukács e Raymond Williams preferem termos como “forças mutua-
mente determinantes, embora desiguais”, uma vez que o utilitarismo econômico
faz parte apenas da sociedade capitalista onde a economia penetra inteiramente
em todos os outros tipos de vida e de consciência.

DoSocialismoUtópicoaoSocialismoCientítico:doManifestoComunistaàComunadeParis(1848-1871)
84 UNIDADE II

Há aspectos iluministas e dialéticos de Marx: a evolução implica na substitui-


ção da religião, da especulação, do mito e da imaginação pelo espírito objetivo.
O aspecto darwinista: a evolução é um processo natural de melhoria da espé-
cie. Como filosofia da história, o marxismo é, portanto, uma síntese de todas as
grandes filosofias da história de sua época: a negatividade hegeliana, a vontade
geral revolucionária de Rousseau, o progresso racional iluminista, a superação
da metafísica positivista, o evolucionismo darwinista. O sentido da história é a
emancipação humana dos homens pela ação de um sujeito coletivo – o prole-
tariado – que implantaria o universal humano, fazendo cessar a luta de classes

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
(REIS, 1996, p. 48).
É, portanto, com o método científico do materialismo histórico e dialético
que ocorre a superação do socialismo utópico. Não que Marx e Engels desde-
nhassem as contribuições dos utopistas, ao contrário, eles os reconheciam como
grandes mentes daquele século com propostas para reorganizar a sociedade,
mas não conseguiam entender a dinâmica de seu funcionamento e evolução.
“O que caracteriza o poder e a verdade do marxismo é justamente o fato de ele
ter dissipado a nuvem que envolvia os sonhos para frente sem ter apagado as
colunas de fogo que neles ardiam, dando-lhes, ao contrário, força e concretude”
(BLOCH, 2006, p. 145).
Ao lado da produção teórica havia a organização da classe operária por meio
da Associação Internacional dos Trabalhadores, cuja primeira Internacional data
de 1864, onde Marx rivalizou com anarquistas como Bakunin, que viam apenas
o Estado como fonte de todos os males, e com os social-democratas, partidá-
rios da reforma constante da sociedade, sem, no entanto, alterar o regime da
propriedade privada. Nesse sentido, se pode falar do marxismo como “filosofia
da práxis”, por unir a teoria e a prática no projeto de emancipação da classe tra-
balhadora ou do proletariado. A Comuna de Paris é um exemplo prático dessa
associação, a primeira experiência de autogestão dos trabalhadores.

MODERNIDADE E “PROGRESSO”(1848-1900)
85

Por burguesia entende-se a classe dos capitalistas modernos, os proprietá-


rios dos meios de produção. Os proletários são a classe dos trabalhadores
assalariados que nada possuem a não ser sua força de trabalho. A social-de-
mocracia nasceu com o intuito de converter trabalho assalariado e capital
em harmonia, reformando a sociedade sem romper suas estruturas. “Às rei-
vindicações sociais do proletariado limou-se-lhes a ponta revolucionaria e
deu-se-lhes uma volta democrática; às exigências democráticas da pequena
burguesia retirou-se a sua forma meramente política e afiou-se a sua ponta
socialista”. Assim nasceu a social-democracia, escreveu Marx (2011, p. 35).
Fonte: o autor.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

A COMUNA DE PARIS EM 1871

“Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a ques-


tão, porém, é transformá-lo”. Essa é a famosa tese de Marx sobre Feuerbach que
sintetiza a teoria e a prática revolucionárias. O primeiro exemplo claro de auto-
gestão da classe trabalhadora foi a Comuna de Paris em 1871. Nesse sentido, esse
tópico conclui tanto a unidade anterior sobre Luís Bonaparte como o socialismo
científico, pois ambos os fenômenos estão diretamente relacionados.
Em 1870, após sucessivas derrotas, o exército francês capitula-se frente às tro-
pas de Bismarck o então primeiro ministro da Prússia. Na batalha de Sedan, em
setembro de 1870, Napoleão III é preso, e, em outubro, 180 mil soldados france-
ses se renderam. Com Paris sitiada, milhares de trabalhadores invadem o Palácio
Bourbon e forçam a Assembleia Legislativa a proclamar o fim do Império e o
início da Terceira República. O Governo Provisório de Defesa Nacional é eleito,
tendo à frente Adolphe Thiers e Jules Favre.
Em 31 de outubro de 1870, houve a tentativa de instalar um governo revo-
lucionário, em que trabalhadores e sessões da Guarda Nacional se sublevaram e
invadiram o Hotel de Ville, liderados por Blanqui. No dia seguinte, o Governo
toma violentamente a sede da câmara de Paris, e Auguste Blanqui é preso por
traição. No ano seguinte, Thiers, à frente do poder executivo, assina tratados de
paz com a Prússia, o que causa ainda mais desconforto entre a população de Paris.
Pelo Tratado de Frankfurt, a França se comprometia a pagar uma indenização de
5 bilhões de Francos, além de ceder à Alemanha as regiões de Alsácia e Lorena.

DoSocialismoUtópicoaoSocialismoCientítico:doManifestoComunistaàComunadeParis(1848-1871)
86 UNIDADE II

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Figura 4: Canhões posicionados estrategicamente na defesa de Paris durante a comuna.

Na tentativa de pacificar Paris, Thiers ordena a retirada dos canhões da


Guarda Nacional, mas os soldados confraternizam com a população, execu-
tam dois generais e, aos gritos de “Viva a Comuna”, obrigam Thiers a fugir para
Versalhes. Durante pouco mais de dois meses os parisienses organizam um
governo popular. A comuna “era essencialmente um governo da classe operá-
ria, o produto da luta de classes produtora contra a classe apropriadora, a forma
política enfim descoberta para se levar a efeito a emancipação econômica do tra-
balho” (MARX, 2011, p. 59).
Claude Villard, um dos modernos historiadores da Comuna, afirma que
houve uma reedição da tradição jacobina e dos sans-cullotes, ou seja, uma tradi-
ção revolucionária. No entanto tratava-se de uma democracia direta no sentido
mais forte do termo, com o poder gerido diretamente pelo povo. As mulheres
tinham um lugar de destaque no governo, os aluguéis foram suspensos, houve
a supressão do trabalho noturno para padeiros, abolição do alistamento obriga-
tório, a Igreja foi separada do Estado.
A ética da Comuna impediu os revoltosos de usarem o dinheiro do Banco
da França ou marcharem sobre Versalhes, pois consideravam um patrimônio
de todos os franceses e não apenas dos parisienses. Thiers conseguiu a libera-
ção de parte do exército prisioneiro dos alemães para sufocar a Paris sitiada.
Os comunardos resistiram por mais de dois meses, até 29 de maio de 1871. Na
guerra civil da França, morreram cerca de 30 mil, outros 38 mil foram presos e
7 mil deportados.

MODERNIDADE E “PROGRESSO”(1848-1900)
87

MATRIZES DO PENSAMENTO MODERNO:


NACIONALISMO, DARWINISMO, POSITIVISMO

Os três conceitos teóri-


cos que estudaremos neste
tópico são paralelos e dão
fundamentação aos even-
tos práticos, factuais,
como o Imperialismo e a
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Primeira Guerra Mundial.


São determinantes para a
compreensão da dinâmica
contemporânea. Figura 5: Paisagem típica das Revoluções do século XIX: as bavrricadas

O NACIONALISMO

Os Estados são um fenômeno antiguíssimo e datam dos primórdios da civi-


lização. Contudo, falar em nação, nacionalidade ou nacionalismo implica em
situar a análise da segunda
metade do século XIX em
diante. É certo que os gregos
antigos julgavam-se perten-
centes de um mesmo povo,
os helenos, pois tinham em
comum o idioma, os costu-
mes e as tradições religiosas
ou mitológicas que os dife-
renciava dos povos ditos
bárbaros. Assim como os
judeus acreditavam ser Israel
sua terra prometida, mesmo
Figura 6: Um comunardo posa elegantemente durante a Comuna de Paris
após sucessivas diásporas da

Matrizes do Pensamento Moderno: Nacionalismo, Darwinismo, Positivismo


88 UNIDADE II

região palestina, primeiro no cativeiro da Babilônia sob Nabucodonosor, depois


pelos romanos. Ou na era moderna, pode-se dizer que tanto Portugal como
Espanha (depois Inglaterra e França) pertenciam a um Estado definido com
fronteiras, forças armadas, idioma e cultura semelhantes. Todavia, não se pode
afirmar que todo o povo vivia sob o nacionalismo, com o mesmo sentimento de
pertencimento a determinada nação. Antes, viviam sob laços de solidariedade
tribal, da comunidade, ainda influência da descentralização medieval.
Mesmo com as fronteiras do território espanhol é certo que um catalão ou
um basco viviam e pensavam enquanto bascos e catalães, e não como espanhóis.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Da mesma forma, um siciliano ou veneziano não se via como italiano. Nesse
sentido, pode-se falar do nacionalismo como algo inventado, criado e até imagi-
nado. Para entender esse processo, primeiro analisaremos as unificações tardias
da Itália e Alemanha (1870) e, depois, consolidaremos o estudo com uma discus-
são historiográfica do nacionalismo, o debate entre grandes especialistas do tema.
Os processos de unificação da Itália e Alemanha são chamados de “tardios”
pelo fato de que diversos outros povos conseguiram a independência antes dessas
nações, como Grécia (1829) e Bélgica (1830). O atraso deve-se também à atuação
da Áustria, antiga e poderosa monarquia que dominou a política naquela região
por séculos, com a dinastia dos Habsburgo. A Áustria controlava um vasto ter-
ritório na Europa central e do leste, conhecido como Império Austro-Húngaro,
com influência direta sobre diversos ducados alemães e sobre Veneza, Parma,
Módena, Toscana e Lombardia, na Itália.

MODERNIDADE E “PROGRESSO”(1848-1900)
89

SUIÇA
Tirol ÁUSTRIA
Sabóia
Veneza Ístria
Turim

Gênova PARMA
ENA
MÓD
Mônaco Zara
TOSCANA ESTADOS
PONTIFÍCIOS

M
REINO DO

AR
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

PIEMONTE Córsega

AD
SARDENHA

RI
ÁT
I
CO
Roma

Nápoles REINO
Sardenha DAS DUAS
SICÍLIAS
Estados dos Habsburgos MAR
TIRRENO
Estados dos Bourbons

Reino da Itália em 1860

Expansão territorial até 1870

Expansão territorial até 1919/20 Sicília

Figura 7: Mapa da Unificação Italiana


Fonte: Franco e Andrade (1993, p. 48).

Além do domínio austríaco, a Itália estava divida ainda pelos Bourbons, da


França, que controlavam a Sicília e Nápoles, e pela Igreja Católica, em Roma.
A unificação foi engendrada em sociedades secretas de caráter liberal burguês
(os Carbonários), uma divisão da maçonaria. Entre os líderes estão Giuseppe
Mazzini e Giuseppe Garibaldi, à frente do movimento que ficou conhecido como
Risorgimento (ressurgimento) da Jovem Itália. A região do Piemonte (norte da
Itália) teve atuação de destaque nesse processo e conduziu a unificação. Em 1861,
Vítor Emanuel II foi aclamado rei da Itália.

Matrizes do Pensamento Moderno: Nacionalismo, Darwinismo, Positivismo


90 UNIDADE II

Na Alemanha, foi a Prússia que levou adiante a unificação, e o primeiro


ministro Otto von Bismarck foi seu arquiteto. Em 1866, os alemães declararam
guerra à Áustria pelo controle de alguns ducados (reinos) no norte alemão. Com
auxílio da Itália e neutralidade da França, Bismarck venceu a primeira batalha na
guerra de unificação. O segundo passo para unir todos os alemães em uma única
nação foi aproveitar-se da intransigência de Napoleão III, que declarou guerra
à Prússia, temendo as pretensões e influência dos alemães sobre a sucessão do
trono espanhol. Como vimos anteriormente, Luís Bonaparte e o exército francês
foram derrotados facilmente e, de forma humilhante, assinaram o reconhecimento

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
da Alemanha em território francês, em Versalhes. Em 1871, nascia o Segundo
Reich (segundo reino, sendo o primeiro o Sacro Império Romano Germânico),
com Guilherme I como Imperador e Bismarck como primeiro ministro.

MAR
MAR SCHLESWIG BÁLTICO
DO NORTE
HOLSTEIN
1867
Hamburgo
1888
1888
HANOVER

P R Ú S S I A

SAXÔNIA
TURINGIA
E
SS

LUXEMBURGO
HE

BAVIERA União Alfandegária Prussiana 1828


LO
RE
NA

União Alfandegária Alemã (Zollverein) 1834


1872 WÜRTTEMBERG
ÁCIA

BADEN
ALS

Novo Zollverein 1867

Aquisições até 1888

Figura 8: Mapa da unificação alemã


Fonte: Franco e Andrade (1993, p. 46).

MODERNIDADE E “PROGRESSO”(1848-1900)
91

HISTORIOGRAFIA DO NACIONALISMO

Eric Hobsbawm (1998, p. 17) sempre foi taxativo quanto aos (maus) usos e abu-
sos da História e sua apropriação política como instrumento de construção de
identidades e nações. “O passado legitima” – escreve ele em Sobre História. “O
passado fornece um pano de fundo mais glorioso a um presente que não tem
muito o que comemorar”. Para os objetivos deste tópico, essa citação é de grande
relevância. Ainda que exista um debate e campos de estudo abertos quanto ao
conceito de formação das nacionalidades, os trabalhos teóricos de Hobsbawm
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

e de Benedict Anderson vêm dissipar a nuvem de fumaça (política) que enco-


bria a produção historiográfica no calor dos acontecimentos, na segunda metade
do século XIX.
Em A Invenção das Tradições, Eric Hobsbawm afirma que as sociedades
que se desenvolveram após a Revolução Industrial foram naturalmente obriga-
das a inventar, instituir ou desenvolver novas redes de convenções ou rotinas
com uma frequência muito maior que antes. “Naturalmente, muitas instituições
políticas, movimentos ideológicos e grupos – inclusive o nacionalismo – sem
antecessores tornaram necessária a invenção de uma continuidade histórica”,
por exemplo, através da criação de um passado antigo que extrapole a continui-
dade histórica real, seja pela lenda, ou pela invenção (HOBSBAWM, 1997, p. 11).

Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente


reguladas por regra tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza
ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comporta-
mento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma comu-
nidade em relação ao passado. Um exemplo nítido dessa metodologia é o
clássico de José Murilo de Carvalho sobre a formação da mentalidade no
Brasil republicano, intitulado A formação das almas.
Fonte: Hobsbawm e Ranger (1997, p. 09).

Matrizes do Pensamento Moderno: Nacionalismo, Darwinismo, Positivismo


92 UNIDADE II

Extrapolando o termo “invenção”, Benedict Anderson (2008, p. 17) utiliza o con-


ceito e título de seu trabalho de Comunidades Imaginadas. Para esse autor, mais
que inventadas, as nações são imaginadas, no sentido de que fazem sentido para
a “alma” e constituem objetos de desejos e projeções. O que o livro de Anderson
comprova é o processo como se constroem solidariedades e como, a partir do
momento em que a nação é imaginada, ela é então modelada, adaptada e trans-
formada. “A nação constrói tempos vazios e homogêneos, e amnésias coletivas
fazem parte desse jogo político (...)”. Nesse sentido, as comunidades imaginadas
seriam representações construídas pelos sujeitos históricos.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Apesar do alcance teórico que as obras de Anderson e Hobsbawm tiveram na
historiografia recente sobre nacionalismo e nacionalidade, não existe consenso
acerca desse debate. Outros autores questionam conceitos como “invenção” ou
“imaginação” no processo de construção dos modernos Estados-Nação. Francisco
Carlos Teixeira, um importante historiador contemporâneo, chegou a afirmar
que a obra Nações e Nacionalismo é um livro equivocado. O posicionamento
de Teixeira deve-se, sobretudo, à análise de Hobsbawm sobre os nacionalismos
europeus da segunda metade do século XIX como sendo notadamente frutos de
um modo de produção específico, o capitalismo monopolista, tendo o Estado
como seu principal mantedor. Teixeira (apud SOUSA, 2013) argumenta que as
diversas etnias europeias são o principal fator determinante para a irrupção do
nacionalismo.
Todavia, as nações emergentes no século XIX criaram hinos, bandeiras, espor-
tes nacionais, mitos, heróis, buscando um sentido identitário, criando memórias
e utopias, construindo o ser nacional, dando sentido ao coletivo. E, nesse sen-
tido, foram “comunidades imaginadas” e “tradições inventadas”.
O que tornou possível imaginar as novas comunidades, num sentido
positivo, foi uma interação mais ou menos casual, porém explosiva, en-
tre um modo de produção e de relações de produção (o capitalismo),
uma tecnologia de comunicação (a imprensa) e a fatalidade da diversi-
dade linguística humana (ANDERSON, 2008, p. 78).

MODERNIDADE E “PROGRESSO”(1848-1900)
93

Apenas no final do século XIX essa interação foi possível. A combinação desses
fatores, do nacionalismo aliado à política expansionista e imperialista das gran-
des potências da Europa, produziu verdadeiras catástrofes, dizimação de povos
ditos inferiores em nome da alta cultura europeia. (Ver o documentário da rede
BBC, “Racismo, uma história”, em material complementar). “O paradoxo do
nacionalismo era que, ao formar sua própria nação, automaticamente criava con-
tra-nacionalismos para aqueles que, a partir de então, eram forçados à escolha
entre assimilação ou inferioridade” (HOBSBAWM, 1998, p. 135).
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Sobre o conceito de “tradição inventada” e “comunidades imaginadas”, refli-


ta sobre as seguintes citações: “Entender mal a história é parte essencial de
se tornar nação” (Ernest Renan).“É a magia do nacionalismo que converte o
acaso em destino” (Benedict Anderson).
Fonte: Anderson (2008, p. 21).

O DARWINISMO SOCIAL

Seguramente você já ouviu falar do livro de Charles Darwin chamado A ori-


gem e evolução das espécies através da seleção natural. É, sem dúvida, um dos
maiores trabalhos na área das ciências naturais em todos os tempos. O livro foi
publicado em 1859 e inspirou uma legião de seguidores. Em suma, sua tese é a
de que, na evolução animal, algumas espécies sobrevivem por conta da adap-
tação ao ambiente natural, outras, no entanto, tendem a desaparecer; esta é a
lei da “seleção natural”. Darwin escreveu acerca da natureza animal, excluindo
o homem de toda sua análise. O infortúnio começou quando alguns teóricos
adaptaram as teses de Darwin, do reino animal para a sociedade, para o homem.

Matrizes do Pensamento Moderno: Nacionalismo, Darwinismo, Positivismo


94 UNIDADE II

Sob todos os aspectos, as leis biológicas, das ciências naturais, do natura-


lismo, são diferentes das leis da humanidade, do homem como ser social por
natureza. Mas o darwinismo degenerou-se na forma esclerosada do darwinismo
social, atendendo aos mais sórdidos interesses e justificando as maiores atroci-
dades que o “evoluído” homem presenciou.
Darwinismo social significa a aplicação popular da ideia biológica da seleção
natural para o pensamento social. Herbert Spencer cunhou a expressão “sobre-
vivência dos mais aptos” em 1864. Spencer acreditava haver um tipo de seleção
natural na história. Ele se opôs ao auxílio do Estado aos pobres com base no argu-

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mento de que isso preservaria os membros mais fracos e malsucedidos da raça.
A raça tornou-se um componente muito importante na ideologia do imperia-
lismo. No caso do imperialismo, era perfeitamente possível argumentar que os
melhores e mais fortes sobreviventes (no caso, a raça anglo-saxã) tinham o dever
diante da humanidade de prosseguir impondo-se e de não limitar sua competi-
ção diante dos povos mais fracos devido a alguma consideração ética falsa ou a
alguma noção legalista de seus direitos (WILLIAMS, 2011, p. 124).
O darwinismo social agradou tanto os burgueses quanto a aristocracia.
Estimulou a competição desenfreada entre os homens, sem regras, sem ética, ao
bom estilo liberal do laissez-faire. A aristocracia estava privilegiada, pois, pelos
pressupostos da doutrina social darwinista, os mais fortes estavam no topo da
competição. Mas a maior justificativa aos interesses imperialistas foi a noção de
“raça”, utilizada por Darwin para pensar o reino animal, mas degenerada por
teóricos como Spencer e Langbehn para as “raças humanas”, umas inferiores
(que deveriam ser conquistadas) outras superiores (que deveriam prevalecer,
pela “seleção natural”).
O pensamento social darwinista foi adaptado nas mais diversas vertentes
políticas. A social-democracia liberal ganhou fundamentação com o livro de
Benjamin Kidd, intitulado Evolução social, em que argumentava que devia-se
realizar ações sociais para preservar a competição real. Em um momento em que
poucos tinham condições para concorrer em igualdade com os mais poderosos,
suas teses pregavam a reforma social. Os mais conservadores, contudo, tinham
na obra de W. H. Mallock, Aristocracia e evolução, os pressupostos aristocráti-
cos. Na obra de Mallock, estão as teorias da elite e os embriões do fascismo, na

MODERNIDADE E “PROGRESSO”(1848-1900)
95

medida em que cultuava a figura do grande líder, do poder absoluto do mais forte,
e a “única” condição à evolução é que os demais simplesmente obedecessem e o
seguissem, para colocar suas visões “grandiosas” em operação (WILLIAMS, 2011).
Até mesmo os anarquistas revolucionários, como Kropotkin, buscaram os
fundamentos para suas leituras da sociedade na história natural, nas ações “coo-
perativas” de abelhas e formigas!
Friedrich Engels foi um dos primeiros a notar que a teoria darwinista do
reino animal, biológico, não poderia ser associada ao homem, ao social. Pois
“os meios de desenvolvimento são produzidos socialmente, as categorias toma-
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das do reino animal não são, de forma alguma, aplicáveis”. Mas a iluminação de
Engels representava apenas areia de um deserto no pensamento europeu, uma
vez que o darwinismo social atendia às demandas expansionistas do continente
berço da Revolução Industrial, fornecia a fundamentação para subjugar outros
povos, ditos “inferiores” (WILLIAMS, 2011, p. 129, 130).
O darwinismo social se converteu na concepção de mundo preponderante
das classes dominantes e governantes da Europa. Tal pensamento devia grande
parte de sua importância à sua natureza sincrética, isto é, “era ciência e fé”. Ele
proporcionou um apoio pseudocientífico para as antigas classes dominantes que
vinham se reafirmando. Adequava-se às ideias das elites, justificando as desigual-
dades sociais. Em sua concepção, os homens eram desiguais por natureza, e o
mesmo ocorria quanto à estrutura da sociedade, destinada a ser dirigida pelos
“mais aptos” (MAYER, 1987).
Seguindo as teorias do darwinismo social, chega-se ao imperialismo, às teo-
rias racistas e à racionalização da guerra. Não havia protestos enquanto os brancos
civilizados da Europa escravizavam os negros e indígenas de outros continentes,
o problema do darwinismo social começou apenas quando os nazistas arianos
resolveram escravizar todo o restante da humanidade, inclusive outros brancos.

Matrizes do Pensamento Moderno: Nacionalismo, Darwinismo, Positivismo


96 UNIDADE II

No Congo belga, não menos que dez milhões pereceram sob domínio do rei
Leopoldo, da Bélgica. Tribos aborígenes inteiras foram dizimadas na Austrá-
lia sob domínio britânico. A fome matou outros milhões na Índia controlada
pela Inglaterra. A fundamentação social darwinista ao racismo levou mi-
lhões à morte. Recomendo o documentário “Racismo, uma história”, da rede
BBC de Londres que retoma um episódio pouco lembrado pelos europeus e
sua “racionalidade iluminista” em material complementar.
Fonte: o autor.

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O POSITIVISMO

Primeiro vamos conhecer a origem do termo “Positivismo” e depois esclarecer


seus pressupostos básicos, como pensamento dominante no final do século XIX,
bem como sua aplicação prática enquanto doutrina. Vale lembrar que tanto o
positivismo como o nacionalismo e o darwinismo social formam as matrizes do
pensamento moderno. Essa tríade de pensamentos deu fundamentação e justi-
ficação para o Imperialismo, que veremos à frente.
O sociólogo Michael Löwy (2010, p. 40) afirma que Condorcet, filósofo ilumi-
nista e contemporâneo da Revolução Francesa, é o pai do conceito de Positivismo.
Condorcet estava inserido no pensamento racionalista e iluminista, no anticleri-
calismo francês típico da grande Revolução, buscava assim uma ciência objetiva,
relacionada à matemática e física, visando escapar dos preconceitos das clas-
ses dominantes de então, a aristocracia e o clero. A ciência positiva deveria se
libertar de todos os dogmas políticos ou religiosos, vistos como preconceito e
obscurantismo.
Mas o primeiro a utilizar o termo “ciência positiva” foi o socialista utó-
pico Saint-Simon, que estudamos na unidade anterior. O positivismo, tanto em
Condorcet como em Saint-Simon, tem um aspecto utópico e crítico e busca a
superação da subjetividade. Mas foi Augusto Comte, discípulo de Saint-Simon,
que formulou os pressupostos positivistas tal como foram consolidados. Mas há
uma diferença elementar entre o pensamento positivista de Condorcet e Saint-
Simon para o de Comte. Os dois primeiros viveram nas agitações da Revolução
Francesa e do socialismo utópico, respectivamente, enquanto que o pensamento

MODERNIDADE E “PROGRESSO”(1848-1900)
97

de Augusto Comte é bastante conservador. Este explica que seu método posi-
tivo deve se consagrar enquanto teoria e prática à defesa da ordem real. Nascem,
com Comte, as palavras-chave do positivismo: ordem e progresso, que, por sinal,
estão estampadas na bandeira nacional.
A utopia positivista ou a transição para a sociedade positiva baseava-se na
Religião da Humanidade. Na fundamentação de Augusto Comte, a humanidade
teria três fases distintas ou três estados. A fase mítica ou mitológica, corres-
pondente à antiguidade clássica; a fase teológico-militar, identificada com o
medievo; a fase derradeira ou “positiva” deveria ser encarnada pela República.
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A fase “final” da história, a positiva, racionalizada, deveria ser regulada por leis
naturais, invariáveis, independentes da vontade e da ação humana. A sociedade
deveria ser interpretada tal como uma equação matemática ou lei da gravidade,
ou do movimento da Terra em torno do Sol.
Hoje, sabemos o quanto esse pensamento tem de simplicidade e até inge-
nuidade, mas, no final dos oitocentos, o positivismo influenciou sociólogos do
calibre de um Émile Durkheim e historiadores como Leopond von Ranke. É bem
conhecida a ilusão de Ranke, que almejava conhecer o passado “como de fato foi”,
como algo fixo e cristalino. Mas o que é mais importante e conveniente compre-
ender sobre o positivismo é a doutrina que lhe é subjacente: a ideia do progresso
como algo inevitável e contínuo, como aperfeiçoamento linear da história e da
humanidade. Justamente nesse ponto o positivismo fracassa enquanto método,
pois ele reconhece apenas a evolução da técnica, do capitalismo, da indústria e
não os retrocessos da sociedade.
Esses ideais modernos, condensados no que então era visto como associa-
ção indissolúvel entre os conceitos de progresso e de civilização, redesenhavam
o quadro internacional, acenavam com a possibilidade de um otimismo sem
limites em função das conquistas da ciência e da técnica, impunham uma deter-
minada concepção de tempo e de história (NEVES, 2010).

Matrizes do Pensamento Moderno: Nacionalismo, Darwinismo, Positivismo


98 UNIDADE II

Essa nova concepção de tempo e de história acompanha as múltiplas mudan-


ças que, aproximadamente entre 1870 e a Primeira Grande Guerra de 1914, se
multiplicavam em todos os âmbitos. A própria percepção mais abstrata do tempo
e a concepção de história, que é seu corolário, estarão pautadas pela primazia da
noção de evolução e por uma representação linear, em constante aceleração, do
tempo histórico, que certamente ganha uma nova coloração, ainda que possa ser
percebida desde o século XVIII e da construção da razão instrumental moderna,
posto que, nas palavras de Reinhart Koselleck, nosso conceito moderno de his-
tória é fruto da reflexão das Luzes sobre a complexidade crescente “da história

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em si, na qual as condições da experiência parecem afastar-se cada vez mais,
da própria experiência”. O tempo positivista é visto como um continuum entre
dois polos que especificam seu ponto de partida e seu telos [meta, objetivo final],
situado no polo que assinala a sempre renovada conquista do progresso e da civi-
lização, marcado com um sinal de positividade e oposto ao polo do atraso e da
barbárie, negativado (NEVES, 2010, p. 22-23).
A ideologia do progresso, na visão lúcida de Margarida de Souza Neves
(2010), impedia a percepção dessa diferença fundamental e de algumas formas
das decorrências menos edificantes do espírito do tempo, tais como o etnocen-
trismo, o desrespeito aos valores de diversas culturas, a injusta distribuição da
riqueza entre os Estados e no interior deles, a preponderância, a violência e a
exploração. Perceba como o positivismo se adéqua aos objetivos do Imperialismo,
isto é, justifica levar o “progresso” aos povos “atrasados”.
Desde a metade do século XIX, essa ideologia, síntese dos ideais moder-
nos, transformara-se em algo muito próximo a uma religião leiga. Como toda
religião, para além de realizar seu sentido etimológico – religare – ao congre-
gar os que partilhavam a mesma fé em torno de um credo comum, aquela que
se consolida a partir da crença inabalável na marcha do progresso da humani-
dade como decorrência lógica e necessária das conquistas técnicas e científicas,
saberá encontrar seus ritos, sua liturgia e suas celebrações.

MODERNIDADE E “PROGRESSO”(1848-1900)
99

Não é à toa que, para alguns especialistas em Positivismo, há uma clara


influência do monge Joaquim de Fiore sobre Augusto Comte. Para Joaquim de
Fiore, que viveu no século XII, os três estágios da história são o do Pai, do Antigo
Testamento, do temor e da lei conhecida. O segundo é o do Filho ou do Novo
Testamento, do amor e da Igreja, que está dividida em clérigos e leigos. O ter-
ceiro estágio, que está por vir, é o do Espírito Santo ou da iluminação de todos,
em uma democracia mística, sem senhores nem Igreja. “O primeiro Testamento
forneceu o caule, o segundo a espiga, o terceiro produzirá o trigo” (BLOCH, 2006,
p. 64). A semelhança é mesmo surpreendente se comparada às três fases positi-
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vistas: a fase mítica ou mitológica, correspondente à antiguidade clássica; a fase


teológico-militar, identificada com o medievo; a fase derradeira ou “positiva”.

Michael Löwy critica o “esforço de objetividade” da sociologia positivista, de


Durkheim e seus discípulos, como uma ilusão ou mistificação. Ele a compara
com a anedota do Barão de Münchhausen. Esse herói picaresco, tal como
os positivistas, quando se vê atolado num pântano em que ele e seu cavalo
estavam sendo tragados e sem a ajuda de ninguém, agarrou seus próprios
cabelos e, por meio deles, puxou-se para cima, trazendo consigo seu cava-
lo entre as pernas. Com essa alegoria bem humorada, Löwy (1995, p. 32)
conclui “que os que pretendem ser sinceramente seres objetivos, são sim-
plesmente aqueles nos quais as pressuposições estão mais profundamente
enraizadas”.
Fonte: Löwy (1995).

Matrizes do Pensamento Moderno: Nacionalismo, Darwinismo, Positivismo


100 UNIDADE II

DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL AO IMPERIALISMO

[...] tudo deve ser pago. Não se podia, em hipótese alguma, dar nada a
ninguém, ou oferecer ajuda gratuita. A gratidão deveria ser abolida, e as
virtudes que dela brotavam deveriam deixar de existir. Cada minuto da
existência humana, do nascimento até a morte, deveria ser uma barga-
nha diante de um guichê. (Charles Dickens, Tempos difíceis).

Charles Dickens é um dos principais representantes do romance industrial inglês,


ao lado de Coleridge, Walter Scott, William Morris e Carlyle. Esses autores vive-

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ram o auge da Revolução Industrial e suas narrativas constituem documentos
históricos desse processo e de seus impactos, pensando a literatura como uma
representação da realidade social. Tempos difíceis, publicado em 1854, ilus-
tra como a modernidade expulsou da vida material dos indivíduos qualidades
como beleza, cor e imaginação, reduzindo-a a uma rotina repetitiva, cansativa
e uniforme.
São os Sinais dos tempos, sintetizado na obra de mesmo título do Thomas
Carlyle, em 1829. O texto resume a inquietude e o desconforto dos românticos
frente à modernidade, no que chamaram de “mecanização do mundo”. Diz Carlyle,
“Se nos pedissem para qualificar com um único epíteto esta era em que vivem,
estaríamos tentados a chamá-la não de uma Era Heroica, Piedosa, Filosófica nem
Moral, mas antes de tudo de uma Era Mecânica [...]” (LÖWY; SAYRE, 2015, p.
52-67). A revolta e a melancolia dos românticos frente ao progresso capitalista
representam mais que um protesto aos ideais da modernidade, eles denunciam
a catástrofe que viria no século XX.
Os românticos, no entanto, tinham a seu favor apenas a revolta e a melan-
colia; os imperialistas, por outro lado, tinham todo o restante. O nacionalismo,
o positivismo e o darwinismo social foram os pressupostos teóricos para a Era
dos Impérios.

MODERNIDADE E “PROGRESSO”(1848-1900)
101

O IMPERIALISMO (1875-1914)

A definição do período de 1875 a 1914 como a Era dos Impérios é do historiador


Eric Hobsbawm (1998), em livro com o mesmo título. Nesse meio tempo, cerca
de um quarto do globo foi distribuído ou redistribuído como colônia entre meia
dúzia de Estados. A Grã-Bretanha aumentou seus territórios em cerca de dez
milhões de quilômetros quadrados; a França, cerca de nove; a Alemanha con-
quistou mais de dois milhões e meio; a Bélgica e a Itália, pouco menos que essa
extensão cada uma. Talvez um terço do planeta fosse britânico, no sentido econô-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

mico e também cultural, o “império onde o sol nunca se punha” (HOBSBAWM,


1998, p. 90-111).
Mesmo países periféricos como o Brasil ou o emergente Japão se autodeno-
minaram “Impérios”. Mas o imperialismo ficou restrito às potências industriais,
sobretudo às do hemisfério norte, e as colônias, restritas ao hemisfério sul, em
boa medida partes dispersas das antigas possessões de Portugal e Espanha, que
ainda mantinham pretensões imperialistas, porém sem condições de competir
com as potências industrializadas, como Inglaterra, França, Alemanha, EUA e
Japão. Portanto, o que entendemos por “Imperialismo” é a divisão territorial do
mundo entre as grandes potências capitalistas, configurando um conjunto de colô-
nias formais e informais e de esferas de influência. Veja a tabela resumida abaixo,
que difere a colonização dos séculos XVI e XVII do imperialismo dos oitocentos.

Da Revolução Industrial ao Imperialismo


102 UNIDADE II

DIFERENÇAS ENTRE COLONIALISMO E NEOCOLONIALISMO


Antigo Sistema Colonial Neocolonialismo
Período Séculos XVI a XVIII De 1870 a 1945
Áreas atingidas América África e Ásia
Agente colonizador Estado absolutista Burguesia
Política econômico Mercantilismo Liberalismo
Potências Espanha, Portugal, França, Ingla- Inglaterra, França, Holanda,
terra e Holanda Bélgica, Alemanha, EUA e
Japão

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Objetivos Exploração comercial (especiarias, Exportação, investimento
metais, escravos) de capitais, busca de maté-
rias - primas, escoamento
de mão de obra e mercados
consumidores.
Tabela 1: Diferenças entre colonialismo e neocolonialismo
Fonte: o autor.

Em “Origens do totalitarismo”, a historiadora e filósofa Hannah Arendt dife-


rencia as variadas formas de imperialismo e colonização. “O imperialismo
surgiu quando a classe detentora da produção capitalista rejeitou as frontei-
ras nacionais como barreira à expansão econômica”, ela explica. No século
XIX existiam três formas de imperialismo britânico: as povoações (ou plan-
tações, ou colônias), como a Austrália; os entrepostos comerciais ou pos-
sessões, como a Índia; os postos marítimos e militares, como o Cabo da boa
Esperança, mantidos para a garantia dos primeiros.
Fonte: Arendt (1999).

É importante notar que o continente americano, alvo do antigo sistema colo-


nial português e espanhol, manteve-se quase imune às pretensões imperialistas.
Nenhuma das potências europeias tinha interesse em desafiar a hegemonia dos
EUA nas Américas. Isso se deve, em boa medida, à chamada Doutrina Monroe,
elaborada pela primeira vez em 1823 e reelaborada posteriormente com o objetivo

MODERNIDADE E “PROGRESSO”(1848-1900)
103

de evitar hostilidades e pretensões europeias no continente. A doutrina Monroe


estava pautada no pressuposto “a América para os americanos”, uma expressão
claramente demagoga, pois, na verdade, assegurava os privilégios territoriais e
econômicos apenas aos EUA e não à autonomia descentralizada. Seja como for,
a emergência dos EUA como potência militar e econômica inibiu os predado-
res europeus.
Nesse momento, talvez você esteja indagando: “mas qual a relação do impe-
rialismo com a revolução industrial”? Eu diria que a relação é evidente em diversos
pontos. Vamos a eles. A produção em escala industrial precisa de uma demanda,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

isto é, de consumidores para seus produtos em massa. Ora, a procura domés-


tica, dentro dos países, é incompatível com os excessos da produção, logo, há a
necessidade de buscar novos mercados consumidores. Então,
o fato maior do século XIX é a criação de uma economia global, que
atinge progressivamente as mais remotas paragens do mundo, uma
rede cada vez mais densa de transações econômicas, comunicações e
movimentos de bens, dinheiro e pessoas ligando os países desenvolvi-
dos entre si ao mundo não desenvolvido (HOBSBAWM, 1998, p. 95).

Reino Unido

França
IMPÉRIO RUSSO
Rússia
JAPÃO
TUR Estados Unidos
QU CORÉIA
IA
Portugal
AFEGANISTÃO
Alemanha
CHINA
PÉRSIA Holanda
ARÁBIA
Japão
ÍNDIA
INDO

FILIPINAS OCEANO
CHIN

PACÍFICO
A

OCEANO
ÍNDICO

Figura 9: Partilha da Ásia.


Fonte: Franco e Andrade (1993, p. 49).

Da Revolução Industrial ao Imperialismo


104 UNIDADE II

Concomitante à exportação de bens de consumo, há a necessidade de matérias-


-primas para a produção industrial. O motor à combustão, produto clássico da
segunda revolução industrial, dependia basicamente do petróleo e da borracha,
esta abundante em países periféricos como o Brasil e o Congo, extraída com a
exploração de nativos das florestas tropicais. A nova indústria elétrica nascente
era carente de metais como o cobre, e a ânsia por metais preciosos nunca seria
satisfeita. Por esse “intercâmbio” entre produtos industriais (da Europa) e maté-
rias-primas de países periféricos, basicamente commodities, houve a denominação
pejorativa de “banana republic” aos países que tinham apenas alimentos como

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
moeda de troca. A função das colônias era complementar as economias metro-
politanas e não fazer-lhes concorrência.
Portanto, o motivo para a expansão imperialista foi a procura de mercados.
Mas diversas potências sentiram a necessidade de novos mercados, acirrando
ainda mais a concorrência entre os europeus. Nesse sentido, o imperialismo foi o
“subproduto natural de uma economia internacional baseada na rivalidade entre
várias economias industriais concorrentes, intensificada pela pressão econômica
dos anos de 1880” (HOBSBAWM, 1998, p. 101). Na década de 1880, houve uma
grave crise econômica na Europa, justamente pelo excesso de produção e pouco
consumo, logo, o ideal de livre concorrência liberal, cuja máxima era laissez-faire
(deixe fazer, deixe passar), caiu em desuso, em detrimento do protecionismo, das
altas taxas de câmbio. No lugar do livre cambismo ou comércio irrestrito, houve
a ascensão do capitalismo monopolista.
Dessa forma, é possível descrever uma definição conceitual do termo
Imperialismo. Segundo o estudo clássico de Edward Said (1995, p. 40),
o império é uma relação formal ou informal em que um Estado con-
trola a soberania política efetiva de outra sociedade política. Ele pode
ser alcançado pela força, pela colaboração política, por dependência
econômica, social ou cultural.

Ou dito de outra forma, por manter povos “atrasados” subordinados ao impé-


rio “avançado”, por dependência econômica ou militar.
Os europeus tinham orgulho de suas colônias, considerado como uma bar-
bárie a serviço da civilização. Levar ao atraso os pressupostos civilizados da
Europa, levar o progresso ao caos, eram conceitos típicos do Positivismo europeu.

MODERNIDADE E “PROGRESSO”(1848-1900)
105

O ideal megalomaníaco do Imperialismo pode ser resumido no pensamen-


to do industrial Cecil Rhodes: “(...) Essas estrelas, esses vastos mundos que
nunca poderemos atingir. Se eu pudesse, anexaria os planetas”.
Fonte: Cecil Rhodes.

O impacto econômico do imperialismo é a desigualdade, visto que as relações


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entre as metrópoles e os países dependentes eram altamente assimétricas. Há o


processo de “Ocidentalização” do mundo africano e asiático, ou aculturação peri-
férica aos ideais europeus. As igrejas empreenderam a conversão dos pagãos à
fé cristã. Mas talvez o maior impacto do imperialismo foi levar aos povos “atra-
sados” a “ética” capitalista. Substituir as qualidades humanas pelas qualidades
mercantis; as relações humanas, pelas relações monetárias; os valores morais e
culturais pelo valor que vale: o dinheiro. O Imperialismo foi uma expansão do
capital industrial.

O livro clássico de Edward Said (1995), chamado Cultura e Imperialismo,


demonstra como a inteligência europeia e o etnocentrismo europeu contri-
buíram para levar a cultura “superior” aos povos “atrasados”. Os argumentos
eram cômodos e confortáveis, afinal, a Europa tinha desenvolvido a filosofia
das luzes, a democracia moderna, a literatura mais sofisticada de então; era,
enfim, como um farol a serviço de iluminar a obscura cultura dos povos “in-
feriores”.
Fonte: o autor.

Da Revolução Industrial ao Imperialismo


106 UNIDADE II

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegamos ao fim de mais uma unidade e dos estudos em torno do século XIX.
Espero que a leitura tenha sido agradável e estimulante para motivá-lo(a) a aden-
trar na “Era dos extremos”, como Eric Hobsbawm denominou o século XX.
Nessa viagem pela modernidade, pudemos observar como uma transforma-
ção econômica (Revolução Industrial) traz consigo o desenvolvimento de novas
ideias, valores e uma cultura que ora a legitima (liberalismo) ora a critica (socia-
lismo),assim como as doutrinas que lhe dão sustentação, como o nacionalismo,

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a República e o Positivismo.
A expansão desenfreada do capital econômico no final do século XIX encon-
traria limites do planeta Terra no limiar do século XX. Como os limites humanos
e tecnológicos não permitiam anexar as estrelas (como sonhou Cecil Rhodes), “o
capital só poderia devorar-se a sim mesmo, para começar novamente o infinito
processo da geração de poder”, anotou Hannah Arendt (1998, p. 176).
Mas o otimismo positivista e mecânico de que a humanidade caminhava
naturalmente rumo ao aperfeiçoamento, em uma concepção linear e meramente
evolutiva de história, logo cairia por terra com a desilusão da Primeira Grande
guerra mundial, com a ascensão do fascismo e com o terror nazista. Essas pon-
derações são relevantes para não apreendermos a História meramente como
processo evolutivo e contínuo. Compreender as rupturas, as contradições e as
cesuras é de vital importância para se pensar a História em termos dialéticos.
Nos estudos acerca do século XX, essa forma de pensar e escrever nossa
disciplina ficará mais clara. É preciso compreender tanto os avanços como os
retrocessos da sociedade, tanto no que se refere aos termos políticos quanto aos
culturais. Das luzes iluministas à escuridão fascista é o que veremos nas próxi-
mas unidades. Boa leitura!

MODERNIDADE E “PROGRESSO”(1848-1900)
107

A IGREJA CATÓLICA E A MODERNIDADE


Assim como os românticos, a Igreja também resistiu enquanto pôde aos valores mo-
dernos. A filosofia católica da História nesse período chama-se Catolicismo Ultramon-
tano (período cronológico de 1800 a 1961, de Pio VII a João XXIII), caracterizado pela
condenação do mundo moderno, centralização política e doutrinaria da Cúria Romana,
adoção do medievalismo como paradigma sócio-político. Esse processo também é co-
nhecido como “Romanização” da Igreja, pela negação do liberalismo, socialismo e do
positivismo.
Aparentemente reacionário e retrógrado, o Catolicismo Ultramontano revela a manu-
tenção de valores pré-capitalistas, dos sinos da Paróquia e não do relógio cronometrado
da indústria. O conflito triangular (Igreja, liberalismo, socialismo) nos ajuda a compreen-
der as diversas ideias em disputa na modernidade. Na encíclica Quanta cura e no Sylla-
bus, a Igreja condena o liberalismo, mas contraditoriamente não faz alusão aos efeitos
econômicos e sociais que lhe são característicos. Na encíclica Qui pluribus de 1846, já há
a condenação do socialismo e do comunismo e demais tendências igualitárias.
Karl Marx daria o troco na mesma moeda, afirmando no Manifesto Comunista que o
socialismo cristão é apenas a água benta com que o padre consagra o despeito dos
aristocratas. Ou seja, como não toca na abolição da propriedade privada e das classes
sociais, o socialismo cristão seria mera demagogia visando apenas reformar, fazer cari-
dade, mantendo o status quo da sociedade.
Mas o documento mais incisivo da Igreja sobre a modernidade é, sem dúvida, a encí-
clica Rerun Novarum, do Papa Leão XIII, em 1891. De caráter conservador e idealista, o
texto baseia-se no “direito natural” de propriedade e de classes sociais, pois “os homens
diferem entre si desde o nascimento, pelo talento e as qualidades”. Leão XIII via as clas-
ses antagônicas dos capitalistas e trabalhadores como complementares e buscou seu
equilíbrio (PORTELLI, 1990). Como contraponto, pode-se citar a frase do Ernest Renan:
“Se você quiser ter uma ideia de como eram as primeiras comunidades cristãs, dê uma
olhada na filial mais próxima da Associação Internacional dos Trabalhadores”.
Fonte: Portelli (1990).
1. Com relação ao socialismo científico, leia o excerto a seguir:
“A maneira como os indivíduos manifestam sua vida reflete exatamente o que
são. O que eles são coincide, pois, com sua produção, isto é, tanto com o que eles
produzem quanto com a maneira como produzem. O que os indivíduos são de-
pende, portanto, das condições materiais de sua produção” (MARX;ENGELS,2007,
p. 18).
Com base nessa leitura, é correto afirmar que:
a) O capitalismo teve origem no modo de produção socialista, a partir de uma re-
volução burguesa.
b) O capitalismo teve origem nas ideias religiosas, a partir do Renascimento, e no
crescimento da burguesia.
c) A produção das ideias na vida social, no decorrer da história, está separada da
produção da vida material.
d) A perspectiva de análise marxista examina a sociedade levando em considera-
ção as relações sociais estabelecidas no modo de produção.
e) O pensamento marxista surgiu no início da Revolução Francesa com a defesa da
igualdade e da fraternidade entre todos os seres humanos.

2. O Imperialismo foi o “subproduto natural de uma economia internacional base-


ada na rivalidade entre várias economias industriais concorrentes, intensificada
pela pressão econômica dos anos de 1880” (HOBSBAWM, 1998, p. 101). Com base
nessa citação e na leitura da unidade sobre o Imperialismo, assinale a alternati-
va correta quando à definição do conceito:
a) O império é uma relação formal ou informal em que um Estado controla a so-
berania política efetiva de outra sociedade política. Ele pode ser alcançado pela
força, pela colaboração política, por dependência econômica, social ou cultural.
b) O Imperialismo tem como característica a dominação formal de países e culturas
exóticas, com intervenção e controle militar direto, sem autonomia aos povos
colonizados.
c) A partilha da África e Ásia na segunda metade do século XIX foi motivada pela
lógica do Laissez-faire ou economia liberal.
d) O imperialismo europeu ficou restrito à África e Ásia. Na América, foi barrado
pelo poder dos EUA e sua Doutrina Truman.
e) O exemplo mais categórico de Imperialismo no século XIX foi o Terceiro Reich
alemão.
109

3. O “Darwinismo social” foi uma importante doutrina política durante o final do sé-
culo XIX. Darwinismo social significa a aplicação popular da ideia biológica da se-
leção natural para o pensamento social e político, justificando, assim, a conquista
dos mais fracos. Quanto à relação entre Darwinismo social e Imperialismo,
assinale a alternativa correta:
a) Herbert Spencer e Charles Darwin foram os criadores do Darwinismo social.
b) O Darwinismo social foi a justificativa dos povos colonizados para suas lutas de
independência e liberdade.
c) Ao afirmar que existem raças superiores e inferiores, o Darwinismo social justifi-
cava a dominação dos mais fracos pelos mais fortes.
d) O Reino biológico é o correspondente natural do homem em sociedade.
e) Ao levar aos povos ditos primitivos os ideais civilizatórios do Ocidente, os países
imperialistas estavam levando a cultura aos povos bárbaros.

4. A Comuna de Paris, de 1871, foi o primeiro exemplo claro de autogestão da clas-


se trabalhadora. Sobre essa experiência popular, leia as afirmações a seguir:
I. Era essencialmente um governo da classe operária, o produto da luta de classes
produtora contra a classe apropriadora, a forma política enfim descoberta para
se levar a efeito a emancipação econômica do trabalho.
II. Houve uma reedição da tradição jacobina e dos sans-cullotes, ou seja, uma tradi-
ção revolucionária, radical dos trabalhadores franceses.
III. Segundo Karl Marx, o erro dos comunardos foi não ter marchado sobre Versalhes,
onde estavam refugiados Thiers e o Governo provisório.
IV. O curto período da Comuna ficou marcado como uma experiência democrática,
em que as mulheres tinham plenos direitos, assim como os estrangeiros. Um ide-
al de democracia direta, como a Polis ateniense.
V. Foi derrotada pelo exército francês com ajuda dos prussianos, deixando um sal-
do de aproximadamente 30 mil mortos.
Assinale a alternativa correta:
a) Apenas I, II e V estão corretas.
b) Apenas III, IV e V estão corretas.
c) Apenas III está correta.
d) Apenas I e V estão corretas.
e) Todas estão corretas.
MATERIAL COMPLEMENTAR

O 18 de brumário de Luís Bonaparte


Karl Marx
Editora: Boitempo
Sinopse: Escrito em 1852, no calor da hora, Marx demonstra como o
processo revolucionário de 1848 converteu-se no conservadorismo
de Luís Bonaparte, sobrinho do tio famoso, Napoleão Bonaparte. O
livro é a aplicação prática do Materialismo Histórico e Dialético como
método de análise da sociedade. Nele, Marx explica o golpe de Luís
Bonaparte como fruto das contradições francesas. A afirmação de que
a história se repete, “a primeira vez como tragédia, a segunda como
farsa” tornou-se célebre. Mais que uma análise profunda das lutas de
classe na França, o livro demonstra a efetividade do marxismo como
método histórico.

Cultura e Materialismo
Raymond Williams
Editora: Unesp
Sinopse: Williams é um dos autores que inserem a literatura como fonte
para pensar determinados períodos históricos. Não se trata de analisar
a História como ficção, como literatura, mas de buscar um método
que interligue a produção intelectual (romances, poemas, crônicas,
sátiras) com a realidade material, com o social e político. Nesse livro, o
leitor encontra referências para estudar o romance industrial inglês, as
utopias e ficções científicas do século XIX, como fenômeno análogo à
modernização capitalista.
MATERIAL COMPLEMENTAR

Revolta e melancolia: o romantismo na contracorrente da


modernidade
Michael Löwy; Robert Sayre
Editora: Boitempo
Sinopse: O próprio título demonstra a relação antitética e, ao mesmo
tempo, diretamente relacionada entre o movimento romântico e o
capitalismo. O romantismo surge como resistência aos novos valores
da modernidade e da industrialização. Analisar a segunda metade do
século XIX por meio do romantismo equivale a penetrar no pensamento
cultural da sociedade moderna. O romantismo possui dois horizontes, um
conservador e outro utópico, na medida em que nega o presente, visa a
uma volta ao passado idealizado, anterior ao capitalismo. Mas a negação
volta-se também para o futuro, para as utopias e projetos contestadores
da realidade opressora nascente.

Baudelaire e a Modernidade
Walter Benjamin
Editora: Autêntica
Sinopse: Walter Benjamin é reconhecido com um dos maiores críticos
literários do século XX, e sua obra sobre Charles Baudelaire demonstra
como conseguiu penetrar com brilhantismo nas estruturas sociais,
culturais e políticas da França sob governo de Luís Bonaparte. Benjamin
consegue relacionar os poemas de Baudelaire (As flores do mal; Spleen
de Paris) com a metodologia do materialismo histórico, de Marx.
Ligando a poesia e a luta de classes, Benjamin faz uma análise quase
alquimista da sociedade francesa. No livro, estão conceitos-chave do
pensamento benjaminiano, como a “perda da aura” ou da experiência
com a industrialização e o homem reduzido a mero “autômato”, um ser
sem alma, quase uma máquina, que ele denomina como “experiência
de choque”. Tais conceitos são retirados de Baudelaire (perda do
Halo, no Speen de Paris) e de Karl Marx (fetichismo da mercadoria e coisificação do
trabalhador). Um livro monumental.

Material Complementar
MATERIAL COMPLEMENTAR

Título: Judas: o obscuro


Ano: 1985
Sinopse: Baseado na obra de Thomas Hardy, o filme retrata uma
paixão proibida, porém pode ser utilizado como uma análise sobre
os anseios do homem pobre do final do século XIX, no caso inglês,
para ter uma vida digna, e as dificuldades que ele enfrenta por ser de
origem de um lugar pobre. Demonstra também uma visão pessimista
sobre o “progresso” a qual todos acreditavam estar vivendo durante o
período (Início da Belle Époque).

Título: Racismo, uma história (BBC)


Ano: 2007
Sinopse: O documentário da rede BBC de Londres, dividido em três
episódios, desvenda as teses que serviram de argumento para subjugar
culturas ditas “inferiores” desde os descobrimentos até o nazismo.
A série mostra um dos capítulos mais trágicos da humanidade e
quase sempre esquecidos nos livros e em aulas. Pode-se relacionar o
documentário com as teses do darwinismo social, o pretexto utilizado
pelos imperialistas para dominar diversos povos e culturas.
Professor Me. Rui Bragado Sousa

III
DA GUERRA À REVOLUÇÃO:

UNIDADE
PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL E
REVOLUÇÃO RUSSA

Objetivos de Aprendizagem
■■ Compreender a continuidade do Imperialismo do século XIX e suas
consequências, cuja principal foi a Primeira Guerra Mundial.
■■ Analisar a conjuntura social, política e econômica que levou a Europa
à guerra.
■■ Entender a formação dos blocos e coalizões: tríplice entente e
aliados.
■■ Verificar as consequências da Primeira Guerra: Tratado de Versalhes,
perdas da Alemanha e ascensão dos EUA.
■■ Estudar a Revolução Russa e o nascimento da União Soviética (URSS).

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Das luzes à escuridão: origens e causas da Primeira Guerra Mundial
(1900-1914)
■■ Primeira Grande Guerra: o Teatro de Operações (1914-1918)
■■ “A Revolução que Abalou o Mundo”: a Revolução Russa (1917)
■■ Formação da União Soviética, do Socialismo e suas consequências
115

INTRODUÇÃO

Na transição entre os séculos XIX e XX a Europa encontrou seu apogeu cultural,


artístico, político e econômico. Paradoxalmente, mergulharia no maior conflito
bélico visto até então. Como um continente inteiro poderia mergulhar no caos
de uma guerra com proporções nunca antes vistas no mesmo momento em que
vivia sua era de ouro? Entender essa relação inversa será nosso objetivo geral
nesta unidade, bem como as consequências que lhe são análogas.
Não por acaso, Eric Hobsbawm denominou parte do período que veremos
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

como “A era dos extremos”, mas poderíamos chamar também de era dos para-
doxos ou das contradições. Há ainda uma contradição histórica a ser notada: os
temas da Segunda Guerra Mundial são muito mais expostos ao nosso incons-
ciente por meio da manutenção da memória viva daquele conflito pelo cinema
hollywoodiano e por uma literatura abundante. É certo que as atrocidades come-
tidas na Segunda Grande Guerra foram maiores, tanto no que se refere ao número
de vítimas civis e militares quanto à destruição de cidades inteiras, às inova-
ções militares e ao terror do Holocausto provocado pelos nazistas. Contudo, até
a eclosão da Segunda Guerra não havia tal distinção (primeira ou segunda); os
europeus faziam referência apenas à “Grande Guerra” de 1914 e muitos ainda
utilizam essa sintaxe.
As proporções da Grande Guerra (1914-1918) foram determinantes para des-
locar o eixo de poder da Europa para as nações em ascensão, como EUA e URSS,
além do Japão. Boa parte do modo de vida e pensamento do homem moderno
no século XX foi decidida em detrimento das consequências da Primeira Guerra
Mundial. Sendo que o desenvolvimento do Socialismo na URSS é uma de suas
“obras” e, em certa medida, só foi possível pela derrota militar da Rússia cza-
rista frente aos alemães.
Nesse sentido, as primeiras décadas do século XX fornecem um repertório
histórico muito rico e complexo. Vamos focar dois grandes eixos temáticos de
estudos: Primeira Grande Guerra e Revolução Russa, assim como seus desdo-
bramentos. Mãos à obra?! Boa leitura!

Introdução
116 UNIDADE III

Figura 10: Imagem característica da Primeira Guerra Mundial: soldados nas trincheiras utilizando máscaras contra os ataques

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
com gás venenoso

DAS LUZES À ESCURIDÃO: ORIGEM E CAUSAS DA


PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL (1900-1914)

OS ANTECEDENTES DA GUERRA (1900-1914)

Antes de falarmos da guerra em si e de suas consequências, vamos tentar entender


as causas do conflito, a política de alianças e a falência da diplomacia europeia.
Compreender esse processo equivale a dizer que se trata da “gestação” da Primeira
Guerra mundial, cujos embriões foram plantados ainda no século XIX.
De 1814 até 1914 a Europa viveu um século de relativa paz e crescimento
econômico. As cláusulas do Congresso de Viena (1814-15) valeram por muitas
décadas, pautadas no equilíbrio entre as potências europeias. As guerras que
ocorreram depois de Napoleão não foram suficientes para desencadear redes
de apoio de outras nações em blocos, como ocorreria em 1914. Mesmo graves
conflitos como a guerra da Crimeia (1853) e a guerra Franco-Prussiana (1871)
foram confrontos localizados e resolvidos em rápidas batalhas. Desse modo,
ironicamente, as décadas anteriores à Grande Guerra ficaram tradicionalmente
conhecidas como a “bela época” (Belle Époque).

DA GUERRA À REVOLUÇÃO: PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL E REVOLUÇÃO RUSSA


117

Mesmo as guerras de unificação da Itália e da Alemanha não alteraram o


cenário geopolítico europeu. Concomitante ao equilíbrio continental, os exceden-
tes da produção industrial encontravam demanda na África e Ásia, para onde as
guerras seriam deslocadas em caso de resistência dos nativos. Na segunda metade
dos oitocentos, a Grã-Bretanha consolidou sua zona de influência sobre os asi-
áticos e esmagou a resistência local. Foi o que ocorreu na chamada “Guerra do
Ópio” contra a China (1839-1842), na qual os chineses foram obrigados a abri-
rem seus portos aos interesses ingleses; na Guerra dos Bôeres (1899-1902), que
consolidou o controle da África do Sul pelos britânicos.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

A França não era menos imperialista e, nas décadas precedentes à Grande


Guerra, controlava um vasto território na África subsaariana (Argélia, Sudão,
Níger, Senegal, Costa do Marfim e África Equatorial), além da região da Indochina,
na Ásia. Apesar da derrota humilhante para os prussianos em 1870, o capital
francês desenvolveu-se ao ponto de alguns teóricos (Walter Benjamin) qualifica-
rem Paris como a capital do século XIX, tanto em termos políticos, econômicos
e culturais.
Além disso, a França nutria um nítido sentimento de revanchismo contra a
Alemanha, não apenas pela fragorosa derrota frente a Bismarck, mas pela perda
das regiões ricas em minérios, a Alsácia e Lorena, como cláusula da derrota em
1870. Após a guerra Franco-Prussiana, os franceses foram obrigados a reconhe-
cer a unificação da Alemanha em pleno território francês, em Versalhes, ferindo
o orgulho típico dos franceses.
Mas a guerra antes de 1914 não era sinônimo de decadência, derrocada
de um país ou mesmo crise, pelo contrário, era o símbolo das nações mais for-
tes e muitas vezes até bem-vinda. Os riscos eram mínimos, como acentua Eric
Hobsbawm (1998, p. 422): “O trabalho do soldado nos países ocidentais era, de
longe, consideravelmente menos perigoso que o de certos grupos de trabalha-
dores civis, como os dos transportes (especialmente para o mar) e das minas.”
Os que corriam o maior risco de vida não usavam farda.

Das Luzes à Escuridão: Origem e Causas da Primeira Guerra Mundial (1900-1914)


118 UNIDADE III

Contudo, esse virtual equilíbrio entre as forças da Europa mudaria com a


entrada em cena de um ator que não queria nada menos que o papel de pro-
tagonista da história: a Alemanha. As políticas do Chanceler Bismarck, após a
unificação alemã em 1870, são claramente beligerantes e com um objetivo claro,
isolar a França nos jogos políticos do continente, buscando assim seu papel como
país imperialista, ainda que tardio. Em 1885, houve um encontro em Berlim para
discutir a participação alemã na partilha da África. Com poucas concessões (a
África já se encontrava quase que totalmente dividida entre ingleses, franceses,
belgas, holandeses, espanhóis e portugueses), a Alemanha sentiu-se boicotada

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pelos imperialistas. Forma-se, então, a primeira aliança fixa dos países retarda-
tários na corrida imperialista: Alemanha, Áustria-Hungria e Itália.

A FORMAÇÃO DAS ALIANÇAS: A “PAZ ARMADA”

No início do século XX, a produção de aço da Alemanha já era maior que as


da França e Inglaterra juntas. A expansão alemã trouxe consigo a rivalidade e o
temor de franceses e ingleses. A construção da ferrovia Berlim-Bagdá causou o
temor dos ingleses, influentes na região do Oriente Médio. A pretensão alemã de
ter uma grande marinha também alvoroçou os britânicos. Em meados do século
XIX, todas as outras marinhas do mundo, juntas, mal ultrapassavam o tamanho
da marinha britânica sozinha. No final do século, as coisas já não eram assim
(HOBSBAWM, 1998, p. 435).
Esse processo deu origem a uma corrida armamentista sem precedentes. O
alistamento tornou-se obrigatório, houve a construção de um sentimento mar-
cial nacionalista, beligerante, na população civil da Europa. A farda passou a
ser vista como um símbolo de status e até mesmo de honra. De 1880 a 1914, as
oito principais potências mundiais (Rússia, França, Alemanha, Grã-Bretanha,
Áustria-Hungria, Estados Unidos, Japão e Itália) aumentaram seus exércitos per-
manentes de três para cinco milhões de soldados e de 1,5 milhão de toneladas
de navios de guerra para 8,1 milhões (BERTONHA, 2011, p. 24).

DA GUERRA À REVOLUÇÃO: PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL E REVOLUÇÃO RUSSA


119

Os gastos militares britânicos passaram de 32 milhões em 1887 para 44,1


milhões de Libras esterlinas em 1899 e para mais de 77 milhões em 1913-1914;
destes, quase um terço destinado à marinha. Em 1885, a marinha britânica cus-
tou ao Estado 11 milhões de libras; já, nas vésperas da guerra, em 1913-1914,
custou mais de quatro vezes esse montante (HOBSBAWM, 1998, p. 424-425).
A corrida armamentista alimentou a pretensão da indústria bélica. Um exem-
plo foi a fábrica alemã de canhões Krupp, que empregava 16 mil pessoas em 1873
e quase 70 mil em 1912, quando cerca de 50 mil das famosas armas Krupp saíram
da linha de produção. Processo semelhante ocorreu com a inglesa Armstrong,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

que empregava vinte mil homens nas vésperas da guerra. “O comércio interna-
cional moderno da morte já estava bem encaminhado” (HOBSBAWM, 1998, p.
427). Porém, a Europa não foi à guerra devido à corrida armamentista como tal,
mas devido à conjuntura internacional que lançou as nações nessa competição.
Conjuntura essa que analisaremos a seguir.
Descobrir as origens da Primeira Grande Guerra não equivale a descobrir “o
agressor”, adverte Hobsbawm (1998, p. 431). Desse modo, uma alternativa para
analisarmos a gênese desse conflito é compreendermos a política de alianças e
acordos mútuos entre as nações beligerantes.
Alianças entre países europeus sempre existiram, mas agora eram diferen-
tes, pois eram alianças fixas, embora muitas vezes contraditórias. A Alemanha
tinha um acordo com a Áustria desde 1882, em que a Itália integrou posterior-
mente. Essa aliança ficou conhecida como a “Tríplice Aliança” e tinha como
característica principal a união de forças pela divisão imperialista da África, na
qual eram retardatários.
A França, temerosa do crescente poder alemão no continente, uniu-se com
a Rússia em 1891. Essa aliança também se explica pela rivalidade franco-alemã
e pelo desejo crescente de retomar as regiões da Alsácia e Lorena. A Rússia, por
sua vez, aliou-se à França pelo interesse dos territórios dos Bálcãs, de população
eslava, porém controlado em sua maioria pela Áustria. Mas a França não tinha
reais brigas com a Áustria, nem a Rússia com a Alemanha. Entre 1903 e 1907, a
Inglaterra – rival histórica da França – uniu-se ao lado antialemão – para a sur-
presa de todos – formando a “Tríplice Entente”.

Das Luzes à Escuridão: Origem e Causas da Primeira Guerra Mundial (1900-1914)


120 UNIDADE III

A denominação “Entente” deve-se ao codinome do bloco anglo-franco-russo


que começou como um “entendimento cordial”, em francês, Entente Cordiale,
em 1904. Era essencialmente uma negociação imperialista por meio da qual os
franceses desistiram de reivindicar o Egito e, em troca, a Grã-Bretanha apoia-
ria as reivindicações da França relativas ao Marrocos – uma nação em que a
Alemanha também estava de olho (HOBSBAWM, 1998, p. 439).
Veja que no passado, durante as guerras napoleônicas, a Inglaterra unira-
-se à Prússia (territórios alemães), Rússia e austríacos contra a França, então a
maior potência do continente. Todavia, no limiar do século XX, seu maior rival

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não era mais a França, mas sim a Alemanha.
Três problemas transformaram o sistema de aliança em uma bomba-relógio,
explica Hobsbawm (1998, p. 433). O primeiro foi a situação do fluxo internacio-
nal, desestabilizado por novos problemas e ambições mútuas entre as nações.
Como segundo problema, temos a lógica do planejamento militar que conge-
lou tais alianças em blocos fixos. E, finalmente, a entrada de uma grande nação
(Grã-Bretanha) em um dos blocos, o que de fato tornou o conflito mundial, pela
escala de suas colônias.
Segundo as definições de David Thomsom (1986), a participação da comu-
nidade Britânica, a mais universal de todas as potências de então, transformou
um conflito local em guerra mundial. Para Thomsom, sem a participação dos
ingleses, o conflito seria apenas a quarta guerra imperialista alemã, sendo as três
primeiras de Bismarck pela unificação alemã (em 1864, contra a Dinamarca; em
1866, contra a Áustria-Hungria; em 1870, contra a França).
Assim, a política de alianças fixas aliada ao capitalismo industrial monopo-
lista criou as condições necessárias para a eclosão da guerra. De certa forma, essa
corrida armamentista e o imperialismo desmedido criaram uma bomba-relógio,
faltava apenas o estopim para atear o fogo da explosão. E o estopim da guerra
veio com o assassinato do arquiduque (herdeiro do trono austríaco) Francisco
Ferdinando, em julho de 1914.
O problema maior não foi o assassinato de um personagem pouco signifi-
cante na política europeia, mas sim o fato de ter ocorrido na região dos Bálcãs,
conhecida como “o barril de pólvora da Europa”. Em uma visita à cidade de
Sarajevo em 28 de julho de 1914, Francisco Ferdinando foi alvejado pelo militante

DA GUERRA À REVOLUÇÃO: PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL E REVOLUÇÃO RUSSA


121

bósnio-sérvio Gavrilo Princip. Naquele momento a Áustria tinha pretensões


sobre a Sérvia, que era independente, e deu um ultimato aos sérvios com duras
exigências, culpando-a pelo atentado. “Para muitos austro-húngaros, eliminar a
Sérvia era quase um pré-requisito para salvar o Império” dos Habsburgo, afirma
o pesquisador Fábio Bertonha (2011, p. 32).
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A região dos Bálcãs – o barril de pólvora da Europa –, formada por eslavos,


estava bastante dividida em 1914. Na parte austríaca do império Habsbur-
go, estavam eslovenos, croatas e dálmatas. Na parte húngara, havia croatas
e alguns sérvios. A Bósnia-Herzegovina estava sob a administração direta da
Áustria. Os turcos controlavam a Macedônia, e apenas a Sérvia, Bulgária e
Montenegro se mantinham independentes.
Fonte: Hobsbawm (1998, p. 432).

O atentado contra Francisco Ferdinando foi o estopim que acendeu o fogo da


guerra, mas não a causa em si. Hobsbawm (1998) adverte que descobrir a origem
da guerra (o atentado contra Ferdinando) não significa necessariamente conhe-
cer as causas do confronto. Mas o fato é que cinco semanas depois do atentado
contra Ferdinando praticamente toda a Europa se encontrava em guerra. Com
o apoio da Alemanha, a Áustria declarou guerra à Sérvia. A Sérvia se encon-
trava escudada, protegida pelos povos russos de mesma origem, os eslavos, que,
com o apoio da França, declararam guerra à Áustria. Os alemães, por sua vez,
também reagiram ao lado dos austríacos contra os russos e franceses. Por fim,
a Inglaterra também entrou ao lado dos franceses e russos em apoio à Sérvia.
Essa cadeia de acontecimentos trágicos pode ser analisada como um efeito
dominó ou cascata. Após cair a primeira peça, todas as demais caíram também.
“Até o fim de seus dias, GavriloPrincip, o assassino do arquiduque Francisco
Ferdinando, não conseguiu acreditar que sua minúscula iniciativa tivesse ate-
ado fogo ao mundo” (HOBSBAWM, 1998, p. 446).

Das Luzes à Escuridão: Origem e Causas da Primeira Guerra Mundial (1900-1914)


122 UNIDADE III

DISCUSSÃO E REFLEXÃO SOBRE AS CAUSAS DA GUERRA

Até mesmo um historiador como Eric Hobsbawm afirma que explicar as causas
da Primeira Guerra Mundial significa mergulhar em águas profundas e turbu-
lentas. Não é tarefa simples. Mas vamos esboçar aqui duas tendências opostas
que têm a pretensão de responder essa questão. A primeira tese explicativa é a
de Eric Hobsbawm, no famoso capítulo de A era dos impérios, intitulado “Da
paz à guerra”. A tendência oposta é a de Arno Mayer, em um clássico sobre as
origens do Imperialismo e da Primeira Guerra Mundial, denominado A força

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da tradição: a persistência do Antigo Regime (1848-1914).
A tese central de Hobsbawm é a de que, com a concorrência entre os Estados
modernos, a economia passou a ser a base do poder internacional, ou seja, o poder
econômico passou a ser igual ao poder político e militar. “O desenvolvimento do
capitalismo empurrou o mundo inevitavelmente em direção a uma rivalidade
entre os Estados, à expansão imperialista, ao conflito e à guerra” (HOBSBAWM,
1998, p. 437). O que tornou um lugar ainda mais perigoso “foi a equação tácita
de crescimento econômico ilimitado e poder político”, ele conclui.
A tese oposta e não menos interessante é a de Arno Mayer (1987). Inversamente
a Hobsbawm, Mayer não atribui como causa da Grande Guerra a concorrência
capitalista dos países imperialistas, mas sim os poderes anacrônicos e reacioná-
rios dos Impérios ainda governados por forças do Antigo Regime (aristocracia,
nobreza). Basta relembrar que, em 1914, boa parte dos países que protagonizaram
a guerra eram ainda monarquias absolutistas e autoritárias. É o caso do império
alemão da dinastia dos Hohenzollern, governado pelo Kaiser Guilherme II; do
império Austro-Húngaro, da dinastia Habsburgo; dos russos, uma retrógrada
monarquia absolutista semi-feudal governada pelo Czar Nicolau Romanov; do
império Turco-Otomano.
Nesses países, as instituições liberais consolidadas pela Revolução Francesa
(igualdade, liberdade, fraternidade) ainda eram muito frágeis para que tais
ideias de raízes iluministas pudessem triunfar e se tornar hegemônicas. A tese
de Arno Mayer é consolidada pelo apoio do alto Clero, dos oficiais do Exército
(uma tradição aristocrática na Alemanha) e da intelligentsia europeia aos ide-
ais conservadores, aristocratas, como, por exemplo, o pensamento do filósofo

DA GUERRA À REVOLUÇÃO: PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL E REVOLUÇÃO RUSSA


123

Friedrich Nietzsche (antidemocrático, elitista e conservador).


Nesse sentido, para Mayer, as causas da guerra estão diretamente relacionadas
à tentativa de sobrevivência dessas monarquias aristocráticas frente ao capita-
lismo burguês liberal do restante do continente. Em suma, trata-se de uma luta
entre os impérios reacionários (Alemanha, Áustria-Hungria, Turco-Otomano)
frente à democracia constitucional da Europa Ocidental (Inglaterra, França) e
aos Estados Unidos.
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Compreendendo os antecedentes da Grande Guerra e a discussão entre


Arno Mayer e Eric Hobsbawm, reflita sobre as prováveis causas do conflito:
foi obra do Antigo Regime decadente ou do capitalismo monopolista?
Fonte: o autor.

Das Luzes à Escuridão: Origem e Causas da Primeira Guerra Mundial (1900-1914)


124 UNIDADE III

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A PRIMEIRA GRANDE GUERRA: O TEATRO DE
OPERAÇÕES (1914-1918)

A técnica industrial inaugurada na Inglaterra no final do século XVIII não serviu


apenas para a produção de máquinas ao desenvolvimento econômico, mas tam-
bém para a indústria bélica, para os armamentos de guerra. A Primeira Grande
Guerra foi o primeiro episódio em que praticamente toda a economia dos países
beligerantes estava a serviço de Marte (o deus da guerra), afirma David Thomson
(1986). Nesse sentido, as nações que já haviam feito suas revoluções industriais
(Inglaterra, Alemanha e França) teriam um grande diferencial e vantagem sobre
os países atrasados tecnicamente e economicamente (Rússia, Áustria, Itália).
Sabendo de sua superioridade industrial no continente europeu, a Alemanha
planejou sua tática de guerra aproveitando sua cadeia de ferrovias e transporte
logístico para deslocar as tropas rapidamente, seja para o front oeste (contra a
França e Inglaterra), seja para a frente oriental (contra a Rússia) com o auxílio
dos austríacos. Esse era o famoso Plano Schlieffen, que conduziu os aconteci-
mentos nos primeiros meses de guerra.
O Plano Schlieffen consistia no deslocamento de um grande número de sol-
dados contra a França, passando pela Bélgica (ao norte) para desviar de uma
longa cadeia de fortes na fronteira franco-alemã. A ideia era vencer os france-
ses antes que a ajuda britânica chegasse e, após a vitória, deslocar mais tropas

DA GUERRA À REVOLUÇÃO: PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL E REVOLUÇÃO RUSSA


125

contra a Rússia, que tinha um exército numeroso, porém em um vasto territó-


rio, o que tornava seu exército lento nas movimentações. Por isso, mais de 78
divisões foram utilizadas na frente ocidental e apenas nove para deter os russos
no primeiro momento (BERTONHA, 2011). No entanto, os belgas resistiram o
suficiente para preparar o exército francês.
Em setembro de 1914, foi travada a primeira grande batalha realmente mere-
cedora desse nome no vale do rio Marne. Em um curto território, cerca de dois
milhões de soldados franceses e alemães se enfrentaram (talvez a maior bata-
lha da história até então). Na Batalha do Marne, não houve triunfos decisivos,
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porém os alemães tinham sido detidos. O plano Schlieffen havia falhado, assim
como a guerra rápida de movimento.

A GUERRA DE TRINCHEIRAS

Seguramente, a Primeira Guerra Mundial foi protagonizada por soldados, pois


ocorreu ainda nos moldes da guerra clássica (infantaria, artilharia e cavala-
ria). Apenas os armamentos eram novos e com uma capacidade de destruição
inimaginável. Nas guerras antigas e medievais, os cavalos tinham um lugar de
destaque; no início do século XX, contudo, eles se mostraram insignificantes.
Os exércitos lutaram com escudo, espada, arco e flecha até o medievo e, após a
descoberta da pólvora, com canhões e mosquetões de poucos e lentos disparos,
até o limiar do XX. Na guerra de 1914-1918, porém, novas invenções elevaram
o número de mortes ad absurdum. O desenvolvimento da metralhadora prati-
camente tornou inviáveis os ataques a fuzil e baioneta, repelidos por uma única
máquina que podia disparar até mil tiros por minuto.
Nesse cenário, já no final de 1914, os soldados das duas frentes de combate
iniciaram a construção de uma gigantesca rede de túneis protegidos por sacos
de areia e arame farpado, eram as trincheiras, às quais a primeira Grande Guerra
sempre é associada. Em meados da Guerra, essa vasta cadeia de trincheiras já
tinha o comprimento de quase mil quilômetros; ia do mar do norte (Bélgica e
Holanda) até a Suíça.

A Primeira Grande Guerra: O Teatro de Operações (1914-1918)


126 UNIDADE III

Imagine e reflita sobre as condições desfavoráveis dos soldados nas trin-


cheiras, vivendo por anos em buracos sem as mínimas condições de higiene
e insalubridade e sob constante ataque de gases e artilharia.
Fonte: o autor.

As trincheiras privilegiavam muito mais o defensor que o atacante, uma vez que

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uma metralhadora bem posicionada podia repelir um ataque numeroso do ini-
migo. Por isso os dois blocos (Entente e Aliados) permaneceram praticamente
estacionados em 1915 e 1916, na frente ocidental. No lado oriental, porém, os
alemães conseguiram sucessivas vitórias sobre os russos, mal armados e mal
treinados.
A “imobilidade” dos exércitos não significa que as batalhas não fossem
menos sangrentas. Na Batalha do Somme, no verão de 1916, franceses e ingleses
concentraram 2000 canhões pesados atrás de uma linha de 15 km e bombar-
dearam as linhas inimigas continuamente durante uma semana. Em um único
dia de ataque, os ingleses perderam 60.000 homens para avançar apenas quatro
quilômetros. Na batalha toda, os alemães perderam meio milhão de soldados,
franceses e ingleses perderam outros seiscentos mil. Processo semelhante ocor-
reu na Batalha de Verdun, em 1916, na qual os franceses contiveram um ataque
alemão a um custo de cerca de um terço de milhão de homens, para cada lado
(THOMSON, 1986, p. 64-65).
A indústria da guerra não tardaria a desenvolver armamentos novos e sofis-
ticados que pudessem tirar os soldados das trincheiras e virar o jogo para a
ofensiva, uma vez que a guerra de trincheiras beneficiava somente os defensores,
a retaguarda, no caso, aos franceses. A primeira engenhoca da guerra moderna
foi o tanque ou os blindados, de uma forma geral. O tanque de guerra foi desen-
volvido pelos ingleses, mas eram ainda rústicos demais para surtir efeito, eram
lentos e pouco eficientes. O segundo armamento inaugurado na Primeira Guerra
Mundial foi a aviação militar, utilizada como bombardeiros e metralhadoras com
fortes canhões. Mas seu desenvolvimento foi tardio e só entrou em cena em um

DA GUERRA À REVOLUÇÃO: PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL E REVOLUÇÃO RUSSA


127

momento em que a guerra já estava praticamente decidida. O terceiro e mais


desumano armamento foram as armas químicas, os gases venenosos desenvol-
vidos pelas indústrias químicas.
O uso das armas químicas reside em sua peculiaridade brutal: são armas
exclusivamente de ofensiva, não há defesa eficaz contra os ataques de gás pelo ar.
As máscaras falharam na maioria dos casos. As batalhas com cloroacetofenona
(gás lacrimogêneo), sulfeto de dicloroetila (gás mostarda) e difenilaminacloroar-
sina (gás lewisita) foram comuns nos anos finais da guerra. O gás lacrimogêneo
é considerado como “a mais humana das armas químicas”, não é mortal, mas,
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em locais fechados, é bastante eficiente, pois ataca as mucosas do rosto (olhos,


nariz e boca). Já o gás lewisita e o mostarda são mortais. O mostarda tem esse
nome porque queima e corrói a carne; os locais onde foi aplicado continuavam
contaminados por meses, além de tornar os víveres não comestíveis e a água não
potável. A lewisita é um veneno à base de arsênico, matando de forma irreme-
diável e súbita tudo o que atinge (BENJAMIN, 2013, p. 69-72).
Estima-se que, entre 1915 e 1918, mais de 100 mil toneladas de gás vene-
noso foram utilizadas, matando 90 mil homens e ferindo mais de um milhão
(BERTONHA, 2011, p. 83). A ironia é que o gás tóxico poderia provocar a
morte tanto de inimigos quanto da própria tropa, dependendo das correntes de
vento e da chuva, por isso foram
suprimidas nas batalhas de
proximidade. Ainda assim,
os franceses calculam que,
entre agosto de 1914 e feve-
reiro de 1917, um francês
foi morto em cada minuto
(THOMSON, 1986, p. 65).
No total, a guerra deixou
um saldo de aproximada-
mente quinze milhões de
mortos.

A Primeira Grande Guerra: O Teatro de Operações (1914-1918)


128 UNIDADE III

O DESFECHO E AS CONSEQUÊNCIAS DA GRANDE GUERRA

Os desdobramentos da guerra na frente oriental nós veremos em detalhes no


próximo tópico, sobre a Revolução Russa. No momento, basta dizer que os ale-
mães venceram categoricamente os russos, mas os austríacos estavam esgotados
e sempre precisavam do deslocamento de divisões alemãs para o front oriental.
Em fevereiro de 1917, o czar foi derrubado dando lugar ao governo provisório
que insistiu em manter a Rússia na guerra. Os soldados russos, desmoralizados
por derrotas e falta de armamento e alimentos, desertavam em massa. O caos

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interno e externo permitiu a ascensão dos bolcheviques, levando Lênin ao poder.
Com o famoso lema “paz, pão e terra”, instalaram o governo comunista soviético
(consolidado apenas em 1922). Trotsky foi enviado para negociar a paz com os
alemães, assinada em 3 de março de 1918.
Pelo tratado de Brest-Litovsk os russos concordaram em ceder à Alemanha
os territórios perdidos durante a guerra: Finlândia, Polônia, Ucrânia, Letônia,
Estônia e Lituânia. Com o tratado, os alemães estavam livres para guerrear em
apenas uma frente de combate, a ocidental. Mas as vantagens vieram demasiada-
mente tarde para surtir efeito. No final de 1917 e início de 1918, os Estado Unidos
entraram na guerra ao lado dos aliados franceses e britânicos e, nesse período,
já desembarcavam mais de 250 mil homens por mês na Europa. Além disso, os
aliados alemães já demonstravam sinal de esgotamento. A Áustria sucumbira
frente aos russos e italianos, e os turco-otomanos já se encontravam derrotados
pelos britânicos e seus aliados do Oriente Médio.
Mesmo mantendo seus exércitos no território inimigo durante toda a guerra,
pode-se dizer que os planos da Alemanha não foram totalmente satisfatórios.
O plano Schlieffen, executado pelo General Moltke, havia falhado em 1914; os
esforços do General Hindemburg para aniquilar a Rússia em 1915 também; o ata-
que sobre Verdun, destinado a “ferir de morte a França”, tinha sido contido por
Pétain. E, por fim, o plano Ludendorff, de 1918, destinado a dividir os franceses
e ingleses, foi anulado pelo comando unificado de Foch e pelos suprimentos e
reservas dos EUA (THOMSON, 1986, p. 67).
A entrada dos Estados Unidos na guerra deve-se às estreitas relações que
tinham com a França e Inglaterra e também para evitar a concorrência alemã

DA GUERRA À REVOLUÇÃO: PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL E REVOLUÇÃO RUSSA


129

hostil aos interesses americanos. Os EUA convenceram a opinião pública interna


a apoiar a guerra após a descoberta de um suposto plano alemão de união com o
México para atacá-los, depois de vencida a luta na Europa (BERTONHA, 2011).
Os EUA já eram a maior economia mundial naquele período e sua participação
realmente pendeu a balança a favor dos aliados ocidentais.
Nesse cenário adverso, os alemães perceberam a impossibilidade de ven-
cer a guerra e, esgotados, pediram um armistício em novembro de 1918. Em
decorrência da derrota, o Kaiser Guilherme II abdicou, e a Alemanha foi transfor-
mada em uma República. Contudo, a guerra terminou com os exércitos alemães
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dentro do território francês e nenhuma força inimiga sobre solo alemão, permi-
tindo assim que fosse criado o mito de que o Exército não tinha sido derrotado
(THOMSON, 1986, p. 68).

O TRATADO DE VERSALHES E A “CULPA ALEMÔ

Vimos, na introdução desta unidade, que conhecer o agressor (Alemanha) não


significa necessariamente associá-lo como culpado da guerra. As causas são
mais profundas e relacionadas à conjuntura do capitalismo monopolista oci-
dental (Inglaterra, França e EUA) versus os retrógrados Impérios aristocráticos
(Alemanha, Áustria-Hungria e Rússia), retardatários na corrida imperialista.
Mas essa visão não foi consenso entre os vencedores da guerra, os aliados
ocidentais. Pelo Tratado de Versalhes, assinado em junho de 1919, França e
Inglaterra impuseram aos alemães pesadas indenizações, perda de territórios
e a redução de seus exércitos ao número máximo de cem mil homens, além de
proibir o desenvolvimento da aviação militar alemã. A França nutria ainda um
claro revanchismo, representada por Clemenceau, retomou as regiões da Alsácia
e Lorena e obrigou os alemães a desmilitarizar a fronteira a leste - a região da
Renânia. Os ingleses ainda tentaram tomar os navios da marinha alemã como
espólio de guerra, mas os marinheiros afundaram propositadamente boa parte
da frota, antes da rapina inglesa. Mas talvez a maior punição foi retomar todas
as colônias alemãs da África e Ásia. O objetivo final do Tratado de Versalhes não
era outro senão humilhar e punir a Alemanha (BERTONHA, 2011; THOMSON,
1986).
A Primeira Grande Guerra: O Teatro de Operações (1914-1918)
130 UNIDADE III

Os EUA atuaram mais como mediadores do Tratado, tentando evitar a men-


talidade predatória dos europeus. Pelos famosos 14 Pontos defendidos pelo
presidente Woodrow Wilson, o velho continente deveria ser reorganizado de
acordo com os princípios de nacionalidade de cada região e pelo equilíbrio entre
as potências, como ocorrera no Congresso de Viena há um século, no rearranjo
após as guerras napoleônicas. Mas, na prática, qualquer tentativa de entendi-
mento se mostrou nula.
O que ainda restava do Antigo Regime desmoronou. A Áustria e a Hungria
foram separadas, e o último Habsburgo abdicou em 1918. O império Turco-

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Otomano foi retalhado entre as diversas nacionalidades que abrigava. Na Rússia, o
czarismo, forma de governo absolutista, foi suplantado pelos bolcheviques. Novos
países independentes surgiram, como, por exemplo, a Polônia, Tchecoslováquia
e Iugoslávia. A maior alteração geopolítica foi o deslocamento do eixo de poder,
da Europa para os EUA, URSS e Japão.
A Primeira Guerra Mundial deixou um saldo assustador de aproximadamente
quinze milhões de mortos, dos quais nove milhões de soldados (Grã-Bretanha,
1,7 milhão; França, 1,5 milhão; Áustria-Hungria, 1,5 milhão; dois milhões de
alemães; quantidade semelhante de Russos) e seis milhões de civis ceifados pela
fome e doenças como a gripe espanhola.
A criação da Liga das Nações, mediada pelo presidente estadunidense
Woodrow Wilson, tinha como objetivos construir uma paz justa e duradoura.
Mas, na prática, mostrou-se pouco relevante frente aos desejos instáveis e opor-
tunistas de ingleses e franceses. As sementes da segunda guerra mundial estavam
presentes no clímax da primeira (THOMSON, 1986, p. 69).
Por fim, podemos falar ainda da vitória da democracia após 1918. As conse-
quências sociais da Grande Guerra alteraram o panorama político e trabalhista
de todo o mundo. As mulheres ascenderam ao mercado de trabalho, o voto
tornou-se universal na maioria dos países e, apesar da falência da ilusão do pro-
gresso, no pós-guerra, havia a esperança de paz. Contudo, a alteração de maior
impacto no século XX foi a ascensão bolchevique na Rússia e o desenvolvimento
do socialismo, que veremos a seguir.

DA GUERRA À REVOLUÇÃO: PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL E REVOLUÇÃO RUSSA


131

“A REVOLUÇÃO QUE ABALOU O MUNDO”: A


REVOLUÇÃO RUSSA (1917)

RÚSSIA: ASCENSÃO E QUEDA DE UM IMPÉRIO

Imagine uma corte medie-


val em pleno século XX,
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um rei, uma rainha, um


feiticeiro, uma corte de aris-
tocratas parasitários e parte
dos camponeses vivendo
ainda sob laços feudais de
produção. Sem exageros ou
distorções, essa era a Rússia
às vésperas da Revolução
de 1917. Lembre-se do que
foi dito na unidade sobre a
Revolução Francesa, que a
Figura 11: Família Romanov, símbolo da aristocracia europeia. Ao centro,
história não se faz sozinha o czar Nicolau II
e que o Antigo Regime não
desapareceria sem lutar. A monarquia absolutista que os franceses derruba-
ram em 1789 estava ainda bem viva na Rússia e sobreviveu em muitos aspectos
apenas pela força das tradições. Uma tradição milenar que desabou em 1917.
Para entender esse processo, é necessário um retorno às origens do Império
Russo, de sua ascensão como o maior país territorial do planeta à decadência e
desaparecimento.
No auge do Império Russo no século XIX, seus territórios somavam mais de
22 milhões de quilômetros quadrados, da Polônia até o Alasca, do oceano Ártico
até o Oriente Médio. A etnia predominante dos russos é a eslava, que consolidou
sua ocupação na Idade Média, período de conversão dos eslavos ao cristianismo
ortodoxo, influência do Império Bizantino com sede em Constantinopla.

“A Revolução que Abalou O Mundo”: A Revolução Russa (1917)


132 UNIDADE III

No reinado de Ivã IV, o Terrível (1547-1584), a expansão territorial foi mais


marcante, chegando à Sibéria. Ivã assumiu o título de czar (uma derivação de
César) como sinal de sua determinação em exercer o poder de forma autocrá-
tica, autoritária. A partir de então, o título seria adotado pelos demais soberanos
moscovitas (donde deriva Moscou). Na mesma época em que espanhóis, portu-
gueses, franceses e ingleses criavam e ampliavam seus Impérios nas Américas,
os russos construíam o seu na Ásia (BERTONHA, 2011b).
Após a queda de Constantinopla e do Império Bizantino frente aos turcos
em 1453, os russos sentiram-se legítimos representantes do cristianismo orto-

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doxo, os herdeiros da “terceira Roma”. Isso explica a utilização do termo “czar”
pelos imperadores, uma junção da tradição bizantina do Cesaropapismo, ou
seja, a união entre o poder secular (político) e o religioso, entre César e o Papa
em um único monarca. Em boa medida, essa representação de Roma continuou
até 1917, pois o czar era legitimado como um representante de Deus na terra.
Na segunda metade do século XVII, a nova dinastia reinante, os Romanov
(que ficaria no poder de 1613 até 1917), procurou aumentar seus domínios e
modernizar o Estado e as forças armadas. O auge desse processo ocorreu no rei-
nado de Pedro, o Grande, entre 1682 e 1725. Em 1703, os russos conquistaram
uma série de vitórias frente aos suecos e ao território de São Petersburgo, trans-
formado em capital posteriormente. No reinado de Catarina II, a Grande, entre
1762 e 1796, a expansão continuou, e a Rússia foi elevada ao status de Império.
No século XIX, o Império Russo encontrou ao mesmo tempo seu apogeu e o
início da decadência. O ápice ocorreu após a vitória frente ao grande exército de
Napoleão, formado por mais de 550.000 homens. A vitória final sobre Napoleão
ocorreu com a coalizão de russos, prussianos e ingleses, mas, de qualquer modo,
a entrada de um exército russo em Paris foi, “com certeza, um símbolo da ascen-
são russa ao status de potência mundial” (BERTONHA, 2011b, p. 31).
A expansão russa continuou nas décadas seguintes até a Guerra da Crimeia
(1854-1856). Nesse grande conflito, os russos entraram em guerra contra os
turcos, pela anexação de novos territórios, mas foram barrados pela marinha
britânica e francesa juntas. O czar Alexandre II foi obrigado a ceder, com perdas
humanas estimadas em meio milhão de soldados. Todavia, o traço mais mar-
cante da decadência imperial russa não foi a derrota na guerra da Crimeia, mas

DA GUERRA À REVOLUÇÃO: PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL E REVOLUÇÃO RUSSA


133

sim o atraso econômico que o regime absolutista trazia consigo. Em meados


do século XIX, a parte ocidental da Europa já se encontrava em fase de rápida
industrialização e ascensão da burguesia. Na Rússia, porém, esse desenvolvi-
mento foi bastante tardio.
Esse atraso industrial ficou evidente em 1904, na guerra contra o Japão. As
ambições russas no oriente chocaram-se com a expansão de outra potência, o
Japão, que também almejava controlar a região oriental da China e a Coreia.
Preocupado com a finalização da ferrovia transiberiana, os japoneses atacaram
as instalações navais de Port Arthur, derrotando as forças navais e terrestres
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russas com facilidade. Para contra-atacar, os russos mobilizaram sua frota do


mar Báltico, que em um imenso esforço deu a volta ao mundo, contornando a
África do Sul e o oceano Índico, atingindo a região do conflito em maio de 1905.
A esquadra russa era composta por cerca de cinquenta navios, dos quais oito
encouraçados modernos, mas foi completamente destruída pelos japoneses na
Batalha de Tsushima (BERTONHA, 2011b, p. 37).
A fragorosa derrota externa e os problemas sociais internos criaram as
condições para a primeira insurreição russa de 1905, um ensaio para a grande
Revolução de 1917.

DO DOMINGO SANGRENTO EM 1905


AO OUTUBRO VERMELHO DE 1917

É certo que a frustrada guerra contra o Japão


tinha como objetivos acalmar os ânimos
internos que se encontravam em ebulição
naquele momento, com greves, motins, pro-
testos e até atentados contra o czar. Não existe
nada mais eficaz para exaltar o nacionalismo
que uma rápida guerra vitoriosa. Mas o tiro
saiu pela culatra. Com a vitória japonesa,
o czar ficou desmoralizado, e seu governo
fragilizado. Figura 12: Imagem do “Domingo Sangrento” em 1905.

“A Revolução que Abalou O Mundo”: A Revolução Russa (1917)


134 UNIDADE III

A derrota imperial apenas intensificou as contradições que vinham de longa


data. Em fins do século XIX, escreve Christopher Hill (2007, p. 20), “o telégrafo
e a máquina a vapor vieram a tornar a autocracia um tipo acabado de anacro-
nismo, mas as instituições tendem a sobreviver muito além do desaparecimento
das causas de sua existência”. Em pleno século XX, o czar Nicolau II ainda insis-
tia na ideia de governar por direito divino, sem consentir qualquer interferência
na estrutura do absolutismo. A razão da revolta de 1905 residia na incompatibi-
lidade do regime czarista frente às exigências da civilização moderna.
Para ter uma ideia do atraso russo, apenas em 1861 a servidão foi abolida

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pelo czar Alexandre II (pressionado após a derrota da Crimeia), e, mesmo no
limiar do século XX, ainda se podia encontrar resquícios de feudalismo, em que
cerca de 80% da população de 140 milhões de habitantes viviam no meio rural.
Os sinais do descontentamento vinham de longa data, apontando a decadência
da autocracia czarista. Em 1861, o czar Alexandre II foi assassinado por militan-
tes narodnik (militantes e camponeses que utilizavam táticas terroristas contra o
Estado). Em 1887, o czar Alexandre III sofreu outro atentado, mas sobreviveu.
Nessa ocasião, Alexandre Ulianov, o irmão mais velho de Lênin (Vladimir Ilitch
Ulianov), foi enforcado pela acusação de conspiração. Em 1898, houve a criação
do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR), imediatamente posto
na ilegalidade pelo czar e perseguido pela Okhrana, a temida polícia secreta do
czar. Em seu segundo congresso, no ano de 1903, o POSDR dividiu-se entre bol-
cheviques (maioria) e mencheviques (minoria).
Essas contradições foram intensificadas com a derrota russa frente aos japo-
neses em 1904, que, aliada à crescente crise econômica interna, abriram as portas
da revolução, em 1905. Em uma demonstração de insatisfação popular, um grupo
de trabalhadores liderado pelo Padre Georgi Apollonovich Gapon tentou entregar
uma petição ao czar no dia 9 de janeiro de 1905. A revolva foi cruelmente repri-
mida pela polícia no episódio que ficou conhecido como “o domingo sangrento”.
Esse foi o estopim para desencadear motins por toda a capital, São Petersburgo.
Em vez da liderança e dos cantos religiosos do padre Gapon, os operários des-
cobriram outra forte arma frente ao autoritarismo do czar: a greve geral. Nasceu
assim, em 1905, o embrião que estaria maduro em 1917: os sovietes (deriva do
termo russo sove’t [soviet], que significa “conselho”). O conselho de operários,

DA GUERRA À REVOLUÇÃO: PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL E REVOLUÇÃO RUSSA


135

camponeses e soldados espalhou-se por toda a capital russa. Nesse modelo de


democracia direta, os trabalhadores elegiam e enviavam representantes para um
comando centralizado de greve, o “conselho dos delegados operários”, que pode-
riam ser substituídos a qualquer momento. Leon Trotsky foi o grande líder do
soviete de São Petersburgo, aliando a militância nas ruas com artigos de oposi-
ção ao czar nos jornais.
As tropas do czar ainda se mantinham fiéis, mas Nicolau II foi obrigado a
ceder aos objetivos da burguesia para continuar governando. Em troca do apoio
financeiro e militar da burguesia, Nicolau II permitiu a criação do Parlamento,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

a Duma. Na teoria, isso significaria o fim do absolutismo na Rússia, mas, na


prática, as coisas ocorreram de modo bastante diferente das revoluções inglesa
(1640 e 1688) e francesa (1789 e 1848). O Parlamento russo tinha a peculiari-
dade única, seus representantes não seriam eleitos pelo povo, mas pelo próprio
czar, direta ou indiretamente. Ademais, em 1906, o czar conseguiu um emprés-
timo dos franceses no valor de 2.250 milhões
de francos, o mais vultoso empréstimo da
história da humanidade até então. “Daí
por diante, Nicolau podia dar os ombros à
Duma”, que foi dissolvida após dois meses
de reunião (HILL, 2007, p. 22).
A primeira Revolução Russa de 1905
teve um caráter misto e desorganizado; foi
uma revolta de liberais constitucionalistas
contra a autocracia arbitrária e antiquada
do czar; uma revolta dos trabalhadores
inflamados pelo “domingo sangrento”, o
que generalizou os motins. Foi uma revolta
generalizada de camponeses famintos e
sem terras, espontânea e desorganizada
(CARR, 1995, p. 12), mas foi o nascedouro
da grande revolução de 1917. Figura 13: Czar Nicolau II

“A Revolução que Abalou O Mundo”: A Revolução Russa (1917)


136 UNIDADE III

“Dezessete anos antes do fim do século XIX, Karl Marx morria. Dezessete
anos após o início do século XX, Karl Marx tornava a viver” (Leo Huberman).
Fonte: Huberman (1986, p. 271).

“OS DEZ DIA QUE ABALARAM O MUNDO” (OUTUBRO DE 1917)

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Os trabalhadores, operários, camponeses, liberais moderados e socialistas tiveram
que esperar doze anos para uma nova oportunidade frente ao regime autocrático
de Nicolau II. As condições favoráveis vieram com o colapso czarista na Primeira
Guerra Mundial, mas também pela fragilidade da corte do czar, anacrônica em
pleno século XX. Em 1917, a Rússia mostrou sua verdadeira face, um “colosso
com pés de barro”, como anotou o pesquisador Fábio Bertonha (2011b, p. 47).
As razões, portanto, da Revolução Russa de 1917 são internas e externas,
privadas e econômicas. No âmbito doméstico, na política interna, pode-se dizer
que as ações de Nicolau constituem uma perfeita ingerência política. Em plena
guerra contra a Alemanha e Áustria, Nicolau era submisso às vontades da cza-
rina, de origem alemã, que, por sinal, recebia ordens de Rasputin, uma espécie
de xamã, bruxo ou feiticeiro. A história é repleta de curiosas semelhanças, pois
tanto Nicolau como Carlos I da Inglaterra e Luís XVI da França tinham rainhas
estrangeiras e odiadas pelo povo. Todos tiveram o mesmo destino, depostos por
revoluções.
Com o poder quase hipnótico que exercia sobre a czarina, Rasputin nome-
ava e destituía os ministros do Império Russo a seu bel-prazer. Nos anos de
guerra (1914-1917), houve a troca de quatro Primeiros Ministros, seis Ministros
do Interior, quatro da guerra e seis da Agricultura. Em 1915, o próprio Nicolau
assumiu o comando da guerra, persuadido pela esposa, mesmo contra a reco-
mendação por escrito de oito dos seus ministros. O czar deixou, assim, seu trono
atrelado aos destinos da guerra.

DA GUERRA À REVOLUÇÃO: PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL E REVOLUÇÃO RUSSA


137

No campo econômico, porém, as causas são mais complexas. A modernização


tardia na Rússia deixou um vazio de poder entre a casta dirigente (aristocracia)
e a classe trabalhadora (proletariado). Não houve o desenvolvimento pleno da
burguesia, da camada média da população, como na Inglaterra e na França. O
capital russo era predominantemente estrangeiro, sobretudo de financistas france-
ses. Por isso a classe média desenvolveu-se lenta e tardiamente, ao mesmo tempo
em que o liberalismo (filosofia política da burguesia) não tinha raízes na Rússia.
Essa especificidade da Rússia criou uma burguesia covarde e relutante, ao con-
trário da burguesia francesa extremamente atuante e revolucionária. Portanto, o
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protagonista da Revolução não seria a burguesia, mas sim o proletariado.


Em fevereiro de 1917, após sucessivas derrotas na guerra e o agravamento da
crise interna, o czar Nicolau II abdicou. Sem dúvida, a guerra catalisou a crise,
mas as condições internas apenas demonstravam a disparidade entre o regime
absolutista e a modernidade. Com a abdicação do czar, criou-se a situação de um
“duplo poder”. O governo provisório foi eleito entre os representantes da Duma
(o Parlamento russo), mas, paralelamente, o poder, a organização e a consciên-
cia de classe dos sovietes cresciam diariamente.
O governo provisório estava representado por socialistas moderados e libe-
rais, homens como Alexandre Kerenski, o príncipe Lvov e o Chanceler Miliukov.
O soviete de Petrogrado (novo nome de São Petersburgo) já tinha a liderança de
Trotsky. A dualidade de poderes separava o governo provisório de caráter liberal
burguês, aos moldes das revoluções inglesa e francesa, e os sovietes, liderados
pelo partido bolchevique, de inspiração socialista/marxista.
O governo provisório fez o que qualquer novo governo democrático faria.
Prometeu a liberdade de opinião e imprensa, reunião de associação, direito à
greve, extinção dos privilégios de classes, assembleia constituinte eleita por sufrá-
gio universal, voto igualitário, direto e secreto. Falso foi o que ele deixou de fazer,
isto é, retirar a Rússia imediatamente da guerra. Em abril, Miliukov emitiu nota
garantindo a continuidade da participação russa na guerra, decisão que tinha o
apoio de Kerenski.

“A Revolução que Abalou O Mundo”: A Revolução Russa (1917)


138 UNIDADE III

No mesmo mês de abril, um novo fato mudaria o destino dos russos: o retorno
de Lênin do exílio. Nas famosas Teses de abril, Lênin insistiu na possibilidade de
tomada de poder pelos sovietes e pelo proletariado, em uma revolução socialista,
antes mesmo de passar pela fase burguesa capitalista da história. (Lembre-se das
teses de Marx, de que a humanidade passaria do feudalismo para o capitalismo
e deste para o comunismo). Lênin defendia a tese de uma República dos sovie-
tes de deputados operários no lugar da República parlamentarista. Seus lemas
eram “todo o poder aos sovietes” e “paz, pão e terra”, visando ao apoio de solda-
dos, operários e camponeses.

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Mas o fato é que Lênin conseguiu convencer seus correligionários bolche-
viques da possibilidade efetiva de um governo socialista. Outros bolcheviques
como Stalin, Kamenev e Zinoviev eram relutantes e até mesmo céticos. Mas as
circunstâncias contribuíram a favor de Lênin, sobretudo a insistência do Governo
Provisório em manter a Rússia na guerra, em condições já exaustivas. Na guerra
interna de influência, o Governo Provisório acusou Lênin e o partido bolche-
vista de serem “agentes do Kaiser alemão”, agitadores para desestabilizar o novo
governo. Trotsky foi preso e Lênin teve que se esconder na Finlândia.

©Löwy

Figura 14: Foto histórica de Lênin em 1917. Ao seu lado está Leon Trotsky, presidente dos sovietes de
Petrogrado e futuro líder do Exército Vermelho

DA GUERRA À REVOLUÇÃO: PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL E REVOLUÇÃO RUSSA


139

A extrema direita tentou então um golpe militar, chefiado pelo general


Kornilov, com a cumplicidade do novo Governo provisório. Mas isso precipi-
tou a deserção em massa de soldados e seu apoio aos bolcheviques, bem como a
união dos sovietes aos ideais defendidos por Lênin. Havia, assim, as condições
necessárias para a Revolução de Outubro de 1917, com o apoio geral de prole-
tários e soldados.
Em 16 de outubro, Kerenski mandou enviar os 300 mil soldados da guarda de
Petrogrado para a frente de batalha, mas Trotsky, presidente do soviete, manteve
os soldados na capital. Nesse ponto, já é possível perceber a falência do Governo
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Provisório, existente apenas na teoria. Quem realmente governava eram os mili-


tantes bolcheviques. Em 24 de outubro, Kerenski tentou reprimir um Congresso
dos Sovietes, mas forneceu com isso o motivo formal para sua derrubada. Quase
sem derramamento de sangue os bolcheviques tomaram o poder.
Lênin foi eleito comissário do povo e Trotsky líder do Exército Vermelho.
A Revolução Russa representou o primeiro desafio claro ao sistema capitalista
e pode ser considerada, ao mesmo tempo, uma causa e uma consequência do
declínio capitalista. Mas a consolidação da utopia vermelha não seria tão sim-
ples quanto a derrubada do governo provisório. Após uma longa guerra contra
os alemães ao custo de quase 4 milhões de vidas, os russos teriam ainda uma
guerra civil de dois anos para estabelecer o socialismo.

“Os dez dias que abalaram o mundo” é o título célebre da obra do jornalis-
ta John Reed. Ele foi correspondente durante a Primeira Grande Guerra e,
depois, na Rússia, testemunhou “no calor da hora” a revolução de outubro.
Recomendo como leitura complementar e até como fonte para análise da
Revolução Russa.
Fonte: o autor.

“A Revolução que Abalou O Mundo”: A Revolução Russa (1917)


140 UNIDADE III

FORMAÇÃO DA UNIÃO SOVIÉTICA, DO SOCIALISMO


E SUAS CONSEQUÊNCIAS

“Deus fica no céu lá em cima, e o czar lá longe” (Provérbio russo).

Muitos estudiosos e analistas da Revolução Russa (Edward Carr, Christopher


Hill e o próprio Leon Trotsky) a comparam com a Revolução Francesa. Respeitando
as especificidades de cada evento, essa comparação mostra-se eficaz para entender
o processo como um todo. De fato, assim como os franceses, os russos tiveram

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uma fase jacobina da revolução (extremamente revolucionária, no qual se abole
todo o passado visando construir a utopia vermelha socialista), mas também uma
etapa conservadora (termidoriana, em que alguns substratos do passado voltam
a existir para consolidar a nova política). A Revolução Francesa produziu um
Napoleão Bonaparte, os russos tam-
bém tiveram o seu déspota em Stalin.
O que importa é compreender
que, em 1917, houve “uma revolu-
ção dentro da revolução”. A etapa
natural da história seria conduzir à
queda do czar Nicolau um governo
liberal capitalista, como ocorrera
na Inglaterra (1688) e na França
(1789). Substituindo o Absolutismo
por uma Monarquia Constitucional,
pela República ou Parlamentarismo.
Mas pela especificidade que apenas
os russos tinham, que analisamos no
tópico anterior, a revolução socialista
se tornou viável e efetiva. Prova de
que a história é feita pelos homens, de
acordo com as condições existentes. Figura 15: Cartaz de propaganda soviético com os símbolos do
Comunismo: a foice e o martelo representando o camponês e
o operário

DA GUERRA À REVOLUÇÃO: PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL E REVOLUÇÃO RUSSA


141

Passados os primeiros dias de empolgação após a bem-sucedida Revolução


de outubro de 1917, os bolcheviques sabiam que a tarefa de instaurar o socia-
lismo em um país atrasado seria uma tarefa árdua e longa. O primeiro passo
para consolidar a Revolução foi a assinatura da paz com os alemães, no famoso
tratado de Brest-Litovsky, em 3 de março de 1918. Os russos bem que tentaram
persuadir as tropas alemãs a seguirem seus passos rumo à revolução socialis-
ta,mas a disciplina característica dos alemães impediu a confraternização das
tropas. Trotsky foi enviado para assinar a paz, mas ela veio a custo alto. Antigos
territórios russos passaram aos alemães, como, por exemplo, a Polônia, boa parte
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

da Bielo-Rússia, os países bálticos e alguns territórios do Cáucaso. Além disso,


a Ucrânia e a Finlândia tornaram-se independentes. Por fim, houve também as
reparações de guerra.
No total, mais de 780 mil quilômetros quadrados do antigo império foram
cedidos à Alemanha e seus aliados, a Rússia perdeu cerca de um terço de sua
população e quase 25% do território. Naturalmente, com a derrota alemã no final
de 1918, os ganhos do tratado Brest-Litovsky foram revogados, reconquistá-los
seria uma das prerrogativas para a formação da União Soviética.
A saída da guerra tornou-se uma das condições obrigatórias para ven-
cer a oposição interna. Ainda em 1918 as forças reacionárias (aristocratas e
burguesas) se uniram com o auxílio das potências europeias para sufocar os bol-
cheviques. Teve início, assim, uma longa guerra civil que duraria até 1922. Para
enfrentar essa ameaça, os russos criaram o Exército Vermelho, anteriormente
chamado de Exército dos Trabalhadores e Camponeses, e instauraram o cha-
mado “Comunismo de Guerra”.
Pelo Comunismo de Guerra, todos os recursos sob o controle bolchevique
foram canalizados, sem levar em conta os custos, para a vitória na guerra interna.
A Guarda Vermelha de 1917, que mal dispunha de mais de dez mil homens trei-
nados, transformou-se, no auge da guerra civil, em um exército de cinco milhões
de soldados, sob a liderança de Trotsky. Para angariar o apoio dos camponeses,
houve a reforma agrária e a abolição da propriedade privada.

Formação da União Soviética, do Socialismo E Suas Consequências


142 UNIDADE III

Durante a guerra
civil o governo de Lênin
foi praticamente cercado
em Moscou. As tropas de
Koltchak, um ex-almirante
czarista, e de Denikin, gene-
ral czarista, cercaram a nova
capital, apoiados por forças
do “Exército Branco” uni-

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dos para derrubar o regime
socialista, formado por
Figura 16: Soldados do Exército Vermelho durante a guerra civil
franceses, ingleses e outros
mercenários. Mas a atuação do exército vermelho foi notável e, em dois anos,
não havia mais resistência. Na tentativa de reconquistar os territórios perdidos
no tratado Brest-Litovsky, porém, houve uma derrota substancial para os polo-
neses, que consolidaram sua independência.
Em 1922, vencida a guerra civil, a Rússia bolchevique mudou de nome, pas-
sando a se chamar União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS, ou CCCP
em russo). Mas os desafios não eram menores. A população russa declinou de
171 milhões, em 1914, para 132 milhões, em 1921. Em 1920, a indústria fabricava
apenas 13% do que havia produzido em 1913; o comércio exterior estava redu-
zido a zero, a agricultura estava em ruínas e a fome generalizada (BERTONHA,
2011b, p. 72).
Nesse cenário, Lênin abandonou o Comunismo de Guerra e instaurou a NEP
(Nova Política Econômica). A NEP representou a tentativa de superar as condi-
ções adversas, as perdas da Guerra Mundial e guerra civil. Assim, estabeleceu-se
uma forma de governo misto, em que a grande indústria ficava sob o controle
do Estado, enquanto que as pequenas empresas e pequenas propriedades rurais
tinham o direito de comercializar e produzir livremente seus produtos. Na prá-
tica, a NEP representou um retorno aos antigos modos de produção capitalista.

DA GUERRA À REVOLUÇÃO: PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL E REVOLUÇÃO RUSSA


143

Os resultados foram positivos no que confere à recuperação econômica do


país. Em 1928, a produção de cereais e o rebanho bovino estavam praticamente
aos níveis de 1913, anteriores à Grande Guerra. A superfície plantada em hec-
tares também foi recuperada, assim como a produção industrial. Apesar dos
aparentes bons resultados, a NEP tinha dois grandes problemas, o primeiro era
que mantinha a propriedade privada dentro de um projeto de sociedade socia-
lista que pretendia aboli-la; o segundo era que ela não permitia a industrialização
maciça do país, que, pelos pressupostos da ideologia marxista, seria fundamen-
tal para a prosperidade e sobrevivência do socialismo.
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A polêmica em torno da NEP levou a intensos debates, sobretudo após a


morte de Lênin em 1924. Dentre os grupos do Partido Comunista que disputa-
ram a sucessão do grande arquiteto da URSS, estavam Trotsky, líder dos sovietes
desde 1904 e defensor da ideia da revolução contínua, e Stalin, secretário geral
do partido e idealizador da consolidação da revolução “num só país”.
A tese de Stalin sagrou-se vitoriosa, seguida da coletivização da terra e da
industrialização maciça do país. Mas a recuperação definitiva da economia sovi-
ética viria apenas no final da década de 1930. A população russa chegou a 180
milhões de pessoas em 1938; entre 1929 e 1938, a parcela soviética na produção
manufatureira mundial passou de cinco para dezoito por cento, a segunda do
mundo, atrás apenas dos EUA (BERTONHA, 2011b, p. 74).
O socialismo havia sido bem-sucedido onde os czares haviam falhado, ao
ponto da URSS fazer frente e vencer os nazistas na Segunda Guerra Mundial,
como veremos na próxima unidade. Mas esse processo vitorioso trouxe consigo
a marca do autoritarismo e da violência de Stalin.
Para consolidar seu governo, Stalin esmagou toda resistência não socialista,
sobretudo as ligas camponesas, denominadas por Kulaks. Os antigos aliados do
partido bolchevique (depois de 1922, renomeado como Partido Comunista)
foram perseguidos, mortos ou exilados. As múltiplas ideias e debates dos tempos
dos sovietes foram substituídos pela centralização e burocratização do apare-
lho estatal, em um único partido. “A história do partido bolchevique tornou-se
a história de sua rápida degeneração”, escreveu Leon Trotsky (1994, p. 148), exi-
lado no México pouco antes de ser assassinado.

Formação da União Soviética, do Socialismo E Suas Consequências


144 UNIDADE III

Da democracia partidária restaram apenas reminiscências na era de Stalin.


Mas uma análise crítica não nos permite concluir que isso se deva ao regime
socialista. A Rússia foi uma monarquia absolutista e autoritária por séculos e
não passou pela fase do direito natural, consolidado pela revolução francesa.
Não havia, assim, uma tradição democrática entre os russos. Ao que a revolução
de 1917 se propunha era uma tarefa duplamente pretensiosa: fazer a revolução
industrial e também os ideais democráticos da revolução francesa. Os desafios
eram enormes diante das circunstâncias.
Em partes, os êxitos foram satisfatórios, pois, ao lado dos EUA, a URSS foi a

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
grande vitoriosa da Segunda Grande Guerra frente aos nazistas (principalmente
considerando o papel do Exército Vermelho). Além disso, emergiu do conflito
em disputa direta com os EUA pela hegemonia política e econômica mundial.

DA GUERRA À REVOLUÇÃO: PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL E REVOLUÇÃO RUSSA


145

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Caro(a) aluno(a), espero que você tenha refletido sobre a temática que serve de
roteiro para todo o livro: de que a cultura também é um documento de barbárie.
Com os exemplos da Primeira Guerra Mundial e Revolução Russa, essa visão fica
mais clara. Por isso o olhar do historiador e do professor de história devem ser
críticos e atentos. Como disse o filósofo Walter Benjamim, trata-se de “escovar
a história a contrapelo”, nadar contra a correnteza e não deixar que o óbvio se
torne regra. Perceber que a ideologia do progresso também pode ser desastrosa.
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Uma ideia-chave permite exemplificar melhor o que quero dizer: a cultura é


o sinônimo e a antítese da civilização. Para compreender os avanços e retroces-
sos da história e apreender a cultura humana é que existe o ofício do historiador
e do professor. Para lembrar aquilo que as pessoas tendem a esquecer. Esse “lem-
brar” refere-se tanto às tragédias quanto aos feitos positivos do homem.
A Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa moldaram o pensamento
de todo o século XX. Elas evidenciam a morte do velho (o Antigo Regime) e
inauguram o novo modelo de homem e sociedade na modernidade. Esses even-
tos inauguram também a antítese da modernidade, a oposição entre capitalismo
e socialismo como modelo econômico e social predominante. Portanto, falar
em século XX equivale a situar o início das discussões com a Primeira Grande
Guerra e seus efeitos.
Mas as trincheiras, a guerra de gases venenosos, a degradação humana
levada a nível mundial pela Grande Guerra de 1914 a 1918 não seria o exemplo
mais categórico da degradação humana no século XX. O fascismo, nazismo e a
Segunda Guerra Mundial mostrariam as barbáries e crueldades mais terríveis
que o mundo já testemunhou. É o que veremos nas próximas unidades.

Considerações Finais
A FOICE, O MARTELO E A CRUZ: RELIGIÃO NA RÚSSIA REVOLUCIONÁRIA
Na Rússia revolucionária, como acontecera na França do século XVIII, derrubar o poder
divino implicava igualmente atacar a Igreja. A Revolução de Outubro não foi um gol-
pe de Estado contra o czarismo, até porque os Romanov não estavam mais no poder.
A revolução era a derrubada de toda a antiga maneira de ser e pensar dos russos,
especialmente sua religião: a Igreja Católica Ortodoxa.
A força simbólica da religião e seu papel no controle das massas, a aliança entre Estado
e Igreja tinha sido notada com perspicácia tanto por Jacobinos como por Bolcheviques.
Os laços entre a autocracia e a Igreja garantiam a velha ordem social na Rússia, em pleno
século XX. As relíquias, os altares decorados com ícones, o luxo das procissões e dos
parâmentos litúrgicos dos bispos e sacerdotes faziam parte de uma aura do poder que
o czar sabia utilizar com pompa. Tratava-se da manutenção do velho cesaropapismo
bizantino, ou seja, a estreita união entre o trono e a Igreja.
Foi segurando ícones sagrados que Nicolau II desfilou diante das tropas na Primeira
Guerra Mundial. Às vésperas da revolução que abalaria o trono e o altar da “Santa Rús-
sia”, o Patriarcado ortodoxo podia envaidecer-se de suas mais de 55 mil igrejas, 29 mil
capelas, mais de 112 mil padres e diáconos, 550 monastérios, 475 conventos e quase 100
mil monges e freiras. Desde a queda de Constantinopla para os turcos em 1453, Moscou
orgulhava-se de ser a Terceira Roma e a nova fonte viva do cristianismo para os eslavos.
Esses números demonstram o quão a religião estava profundamente arraigada na “alma
russa” e o quanto o Antigo Regime e as relações feudais ainda faziam parte da sociedade
russa no limiar do século XX. O próprio alfabeto russo, chamado alfabeto cirílico, deve
sua criação a são Cirilo, que a Rússia emprega para escrever até hoje. Foi um padre orto-
doxo, Georgi Apollonovich Gapon, que liderou os trabalhadores numa petição ao czar,
no famoso episódio do “domingo sangrento”, em janeiro de 1905. Foi entoando cânticos
sagrados que os manifestantes foram recebidos à bala pelas tropas do czar.
Igualmente misturada entre política e religião era a situação do monge Grigori Rasputin,
místico ambicioso que se tornara peça-chave nos anos anteriores à revolução de 1917.
A influência quase mágica que despertava na czarina chegou a despertar murmúrios
maledicentes, assim como sua ascendência sobre o príncipe Alexei. Rasputin foi elimi-
nado por um complô da elite, temerosa com o poder de persuasão do bruxo sobre toda
a corte.
A destruição do poder, da influência e da riqueza da Igreja Ortodoxa foram os alvos
prioritários para a construção do socialismo. Uma das primeiras medidas do governo
de Lênin foi a separação Igreja-Estado, instituindo a liberdade de expressão religiosa
e o incentivo ao ateísmo. Mas a repressão também foi violenta, pois nos primeiros cin-
co anos do novo regime bolchevique, 28 bispos e cerca de 1200 padres foram levados
à morte. Em sua maioria, as grandes igrejas ortodoxas se transformaram em museus.
A bela catedral de São Basílio, em Moscou, com suas características cúpulas coloridas em
forma de cebola, fechou-se para os padres e abriu-se a visitantes como museu estatal. Datas
147

religiosas foram ignoradas ou substituídas por festas cívicas.


O socialismo aboliu a religião milenar ortodoxa, mas transformou-se também numa
espécie de religião política. Muitos intelectuais aderiram ao Partido Comunista, como
George Lukács e Ernst Bloch, pensadores com um histórico de crenças no messianismo e
na chegada de um salvador. Muitos dizem que o Lukács da juventude queria entrar para
um monastério, o Partido Comunista foi seu substituto.
Outro exemplo é o embalsamento do corpo de Lênin, a mais sagrada e potente relíquia
apresentada a uma nação socialista. Ao contrário dos cristãos, judeus e muçulmanos, os
crentes bolcheviques tinham acesso direto ao corpo-testemunho do fundador da sua fé.
Sua múmia, visitada em respeitosas e pias procissões, demonstra que o poder do clero
ortodoxo é mais fácil de ser quebrado do que o capital simbólico construído pela reli-
gião. Era a repetição da história profetizada por Marx. Moscou passara de Terceira Roma
à sede da Terceira Internacional comunista.
Não por acaso, o filosofo Ernst Bloch comparou a Revolução Russa de 1917 com o impac-
to da pregação de Cristo, na antiguidade. “O conselho dos operários e dos soldados que
tem por missão destruir a economia monetária e a moral mercantil, a coroação de tudo
o que é perverso no homem; (...) pretorianos que, agora, na Revolução Russa, instaura-
ram pela primeira vez o Cristo como imperador” (Ernst Bloch).
Fonte: adaptado de Karnal (s/d, p. 61-65).
1. As causas da Primeira Guerra Mundial são múltiplas e complexas. Dentre elas,
podem-se assinalar como verdadeiras:
I. A política de alianças fixas aliada ao capitalismo industrial monopolista criou as
condições necessárias para a eclosão da guerra.
II. O desenvolvimento do capitalismo empurrou o mundo inevitavelmente em di-
reção a uma rivalidade entre os Estados, à expansão imperialista, ao conflito e à
guerra.
III. Os poderes anacrônicos e reacionários dos Impérios ainda governados por for-
ças do Antigo Regime (aristocracia, nobreza). As causas da guerra estão direta-
mente relacionadas à tentativa de sobrevivência dessas monarquias aristocráti-
cas frente ao capitalismo burguês liberal do restante do continente.
IV. O revanchismo entre França e Alemanha, que vinha desde 1870, forneceu o pre-
texto para a corrida armamentista na Europa.
V. A expansão imperialista para a África contribuiu para criar as alianças fixas (En-
tente e Aliados) e estas formaram o estopim da guerra.
Assinale apenas a alternativa correta:
a) Apenas III e V estão corretas.
b) Apenas I, III e IV estão corretas.
c) Apenas II e IV estão corretas.
d) Todas as alternativas estão corretas.

2. O artigo 231 do Tratado de Versalhes de 1919, chamado “Cláusula de Culpa de


Guerra”, refere-se a qual importante fato do final da Primeira Guerra Mun-
dial?
a) Ao militante bósnio-sérvio Gavrilo Princip, assassino do arquiduque austríaco
Francisco Ferdinando, causador direto da guerra.
b) À Marinha de Guerra britânica e seu papel como protagonista do conflito mun-
dial.
c) À região dos Bálcãs, conhecida como o “barril de pólvora da Europa”.
d) A Cláusula de Culpa de Guerra refere-se à Alemanha, culpada pelo conflito mun-
dial e responsabilizada com a cobrança de pesadas indenizações.
e) Refere-se aos nacionalismos dos países europeus, culpados pelo deflagramento
da guerra.
149

3. Na primeira Revolução Russa de 1905, houve a criação de duas importantes insti-


tuições políticas. Uma por parte dos revolucionários e outra por parte do Gover-
no czarista. São eles, respectivamente:
a) Duma (Parlamento) e Sovietes (Conselhos).
b) Sovietes (Conselhos) e Duma (Parlamento).
c) Okhrana (Polícia Secreta) e POSDR (Partido Social-Democrata Russo).
d) Partido Bolchevique e Duma (Parlamento).
e) Partido Menchevique e Censura do governo do Czar.

4. Em 1917, houve duas revoluções na Rússia, uma em fevereiro e outra em outu-


bro. Essas revoluções podem ser classificadas, respectivamente, como:
a) Liberal (fevereiro) e conservadora (outubro).
b) Jacobina (fevereiro) e bolchevique (outubro).
c) Comunista (fevereiro) e socialista (outubro).
d) Burguesa (fevereiro) e aristocrata (outubro).
e) Liberal (fevereiro) e socialista (outubro).
MATERIAL COMPLEMENTAR

Dez dias que abalaram o mundo


John Reed
Editora: Companhia das Letras
Sinopse:Reed foi jornalista e correspondente durante a Grande Guerra.
Em 1917, estava na Rússia e testemunhou a Revolução de Outubro e a
ascensão dos bolcheviques. Testemunha ocular da história, o jornalista
narrou os discursos, a articulação política dos sovietes até a tomada do
poder por Lênin e seus camaradas. Após quase cem anos da Revolução
Russa, o livro permanece um relato exemplar e fonte obrigatória na
análise da “revolução que abalou o mundo”.

A era dos extremos: o breve século XX, 1914-1991


Eric Hobsbawm
Editora: Paz e Terra
Sinopse: Mais que um simples manual didático sobre a história do século
XX, o clássico de Hobsbawm é referência obrigatória em qualquer estudo
sério sobre a era contemporânea. Com erudição quase enciclopédia, o
historiador britânico nos ajuda a compreender o século mais violento de
todos os tempos.
MATERIAL COMPLEMENTAR

Título: Feliz Natal


Ano: 2005
Sinopse: Drama de guerra e também romance, o filme do diretor
Christian Carion descreve a breve confraternização das tropas
alemãs e fraco-britânicas no natal de 1914. O filme demonstra que,
mesmo com a hostilidade da guerra, alguns valores humanitários
permanecem universais, entre eles a celebração do natal.

Título: Cavalo de guerra


Ano: 2012
Sinopse: Um filme do renomado diretor Steven Spielberg que narra a
incansável busca de um soldado por seu cavalo durante as batalhas da
Primeira Guerra Mundial. Aparentemente uma relação simples entre
o homem e o animal.O filme revela a grande mudança consolidada
pela Grande Guerra, ou seja, a substituição do homem e dos animais
pela máquina. O uso da cavalaria se mostrou arcaico durante a guerra,
impotente frente às inovações militares da indústria moderna. No
entanto, os valores humanos jamais poderão ser substituídos. Essa
mensagem, o filme passa com brilhantismo.

Título: Tempos Modernos


Ano: 1932
Sinopse: Obra-prima de Charlie Chaplin, filmado durante a grande
depressão causada pela crise econômica de 1929, o longa demonstra o
estranhamento do homem frente à indústria moderna. Aparentemente
uma comédia simples, o filme revela-se uma sátira brilhante quanto
à redução do homem a mero autômato, isto é, uma simples peça da
engrenagem da fábrica moderna. Há elementos freudianos no filme, o
que pode ser chamado de “experiência de choque” frente ao caos das
grandes cidades e indústrias. Um clássico dos tempos de cinema mudo
que ainda permanece atual.

Material Complementar
Professor Me. Rui Bragado Sousa

IV
TEMPOS DE BARBÁRIE: FASCIMO,

UNIDADE
NAZISMO E SEGUNDA GUERRA
MUNDIAL (1919-1945)

Objetivos de Aprendizagem
■■ Compreender o período entreguerras e a conjuntura econômica e
política que levaram o mundo à nova barbárie.
■■ Verificar a relação intrínseca entre a crise econômica de 1929 e a
ascensão dos fascismos.
■■ Apreender a tragédia do nazismo e sua ascendência teológica e
política.
■■ Entender as causas da Segunda Guerra Mundial, bem como suas
consequências.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Da reconstrução ao caos: o pós-guerra até a crise 1929
■■ Ascensão do fascismo: autoritarismo e totalitarismo
■■ Nazismo: Hitler e o grotesco terceiro Reich
■■ A Segunda Guerra Mundial (1939-1945)
155

INTRODUÇÃO

Muitos observadores e intelectuais que vivenciaram o terror da Primeira Grande


Guerra afirmam que houve um impacto traumático na mentalidade de toda uma
geração, com o terror das armas modernas e das trincheiras. Muitos dos solda-
dos sobreviventes voltaram mudos para casa, outros tantos mutilados física e
psicologicamente.
O filósofo Walter Benjamin (1994, p. 115), no ensaio “Experiência e pobreza”,
afirma que “nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadoras que
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela


inflação, a experiência do corpo pela fome, e experiência moral pelos governantes”.
A esse trauma coletivo de guerra somar-se-ia a perda de experiência pelas
formas de trabalho mecanizado, do qual o filme “Tempos modernos”, de Charlie
Chaplin, é o exemplo maior. O homem reduzido a mero autômato nas linhas
de produção, moldadas pela teoria do “Taylorismo”, do qual falaremos adiante.
Esses fatores, em conjunto, aliados à grave crise econômica que se seguiu
por toda a década de 1920 produziam os embriões do fascismo e, consequente-
mente, da Segunda Guerra Mundial. Portanto, a crise econômica e a queda da
bolsa em 1929 estão intrinsecamente relacionadas à ascensão do fascismo ita-
liano e alemão, bem como sua consequência: a Segunda Grande Guerra.
O entremeio do século XX produziu as maiores barbáries não apenas da
história contemporânea, mas de toda a humanidade enquanto civilização. No
lugar da guerra de gases e trincheiras, há o Holocausto e as bombas atômicas de
Hiroshima e Nagasaki. Não por acaso, alguns analistas abordam o período que
estudaremos como “A guerra dos trinta anos” (mais precisamente 31 anos, de
1914 a 1945), em que a segunda guerra é abordada diretamente como consequ-
ência da primeira, com apenas um intervalo de vinte anos para rearmamento,
recrutamento e treinamento de novos soldados.

Introdução
156 UNIDADE IV

DA RECONSTRUÇÃO AO CAOS: O PÓS-GUERRA ATÉ


A CRISE DE 1929

Na declaração mútua de
guerra entre as potên-
cias europeias em agosto
de 1914, Edward Gray, um
observador inglês, disse pro-
feticamente que “as luzes da

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Europa estão se apagando
e não as veremos brilhar
outra vez em nossa existên-
cia” (apud HOBSBAWM,
1998, p. 451). A perspicácia
da frase vai além das muitas
Figura 17: A imagem ilustra bem as condições econômicas e trabalhistas
consequências da Grande da década de 1920. A pujança capitalista e a insegurança financeira.
Guerra. Apenas em termos
conceituais, a guerra terminou em novembro de 1918, pois, em termos prá-
ticos, econômicos e políticos, ela continuaria no decorrer da década de 1920,
ainda que nos bastidores.
Há um vício eurocêntrico em muitos historiadores, na insistência em ver os
efeitos da Primeira Guerra apenas no continente Europeu. No Velho Mundo, a
guerra realmente terminou no final de 1918, porém nos países periféricos como
Turquia, Rússia, países do Oriente Médio e até no Brasil – a única nação latino-
-americana que participou do conflito mundial – os efeitos da Grande Guerra
seriam percebidos em todo o decorrer da década seguinte. Até mesmo nos Estados
Unidos, maior potência mundial desde 1913 e o grande vencedor da guerra, os
efeitos seriam catastróficos.
A Turquia perdeu seu secular Império Otomano e mergulhou em uma longa
guerra interna pela sucessão do poder até a elevação de Mustafá Kemal. Durante
esse processo devemos lembrar do massacre dos armênios, o primeiro Holocausto
do século XX. O genocídio que ceifou a vida de aproximadamente um milhão
de armênios. O Irã viu-se mergulhado na disputa de poder interno, fora o jogo

TEMPOS DE BARBÁRIE: FASCIMO, NAZISMO E SEGUNDA GUERRA MUNDIAL (1919-1945)


157

de áreas de influência controlado pela Inglaterra e França no Oriente Médio. No


pós-guerra, houve a tentativa de instalar um soviete iraniano ao modelo bol-
chevique, porém culturalmente diferente dos russos. O Brasil teve participação
discreta na guerra ao lado dos EUA, com colaboração estratégica da Marinha
de Guerra e seus dois únicos encouraçados modernos da classe Dreadnought,
alguns cruzadores, torpedeiros e navios de apoio. Mas, quando finalmente con-
seguiu chegar à zona conflagrada, em novembro de 1918, a guerra já havia se
encerrado. Os planos do Brasil para assegurar uma das cadeiras permanentes
da Liga das Nações também foram frustrados.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Não obstante, como vimos na unidade anterior, as maiores consequências


da guerra recaíram sobre a Alemanha. Pelo famoso artigo 231 do Tratado de
Versalhes, chamado “Cláusula de Culpa de Guerra”, os alemães assinaram um
humilhante armistício com os aliados da Tríplice Entente. Com a abdicação do
Kaiser Guilherme II em novembro de 1918, houve um princípio de Revolução,
liderado pelos comunistas Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. Com a eclosão do
chamado movimento Espartaquista em Berlim (1919) e da efêmera Räterepublik
(“República dos Conselhos”) na Baviera (1918-1919), a Alemanha esteve às por-
tas de uma guerra civil. De um lado estavam os comunistas, em torno da Liga
Spartakus, em luta contra a monarquia e pela construção do socialismo aos mol-
des da Revolução Soviética; de outro lado estavam os social-democratas, liderados
por Friedrich Ebert, partidários de uma República parlamentarista.
As greves, a fome e a penúria causada pela longa guerra de 1914-1918 con-
tribuíram para a situação de duplo poder, onde os alemães não sabiam ao certo à
qual das Repúblicas pertenciam, se à social-democrata ou à Espartaquista. Mas,
ao contrário da Revolução Russa, organizada e sistemática, a breve utopia alemã
durou apenas alguns meses, efetivamente de novembro de 1918 a janeiro de 1919.
Seu caráter espontâneo e o mínimo apoio militar aos socialistas permitiram que
o levante fosse rapidamente sufocado, com o assassinato sumário dos líderes Karl
Liebknecht e Rosa Luxemburgo, em 16 de janeiro de 1919. Ironicamente, um dos
lemas mais famosos de Rosa Luxemburgo era “socialismo ou barbárie”. Com a
ascensão do nazismo, da Segunda Guerra, do Holocausto e das bombas atômicas
de Hiroshima e Nagasaki, pode-se dizer que a profecia de Rosa estava correta.

Da Reconstrução ao Caos: O Pós-Guerra até a Crise de 1929


158 UNIDADE IV

A sede do governo alemão foi


transferida de Berlim para Weimar,
ou República de Weimar (1919-
1933). Uma nova Constituição foi
elaborada, com algumas pautas
progressistas como o voto femi-
nino, alguns direitos trabalhistas,
jurídicos, que vieram a inspirar
muitas outras Constituições libe-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
rais no século XX. Contudo, a
nova Constituição promulgada
em agosto de 1919 trazia consigo
algumas falhas que viriam a ser
utilizadas por golpistas e nazistas.
Ela continha uma cláusula em que,
nos momentos de crise ou ausên-
cia da maioria parlamentar, o Figura 18: Karl Liebknecht, líder socialista assassinado em 1919.

Parlamento poderia ser dissolvido


pelo Presidente que escolheria um novo Chanceler. Some-se a isso o fato de que
os militares tinham status diferenciado na hierarquia da República, não apenas
pelos bravos feitos de guerra, mas também pelo esmagamento da liga comunista.
Esses dois fatores em conjunto tornaram a República alemã ambígua e frágil,
embora fosse bastante democrática, era também suscetível a golpes de Estado. O
primeiro putsch (golpe, atentado) ocorreu já em 13 de março de 1920, organizado
pelo general Ludendorff e por Wolfgang Kapp. Os golpistas conseguiram tomar o
prédio do Parlamento (Reichstag) sem luta, mas renunciaram após quadro dias,
sufocados por uma greve geral. A segunda tentativa de golpe foi organizada em
1923, conhecida como o Putsch da cervejaria de Munique, liderada por Hitler,
Göring (um herói da Primeira Guerra que viria a ser o braço direito de Hitler e
o segundo na hierarquia nazista) e novamente pelo general Ludendorff.

TEMPOS DE BARBÁRIE: FASCIMO, NAZISMO E SEGUNDA GUERRA MUNDIAL (1919-1945)


159

O Putsch da cervejaria de Munique (local onde os golpistas se reuniam para


conspirar e onde também foram presos) não teve muitas repercussões, pois o
presidente Ebert considerava o nazismo apenas como um movimento excên-
trico e sem importância. Hitler foi condenado a cinco anos de prisão, acusado
de alta traição, dos quais cumpriu apenas oito meses em condições de cárcere
que mais pareciam um hotel.
A alta inflação foi outro grave efeito do desequilíbrio no pós-guerra. Em
1923, a França ocupou militarmente a região do vale do Ruhr, na Alemanha,
para assegurar o pagamento de indenizações. A ocupação desvalorizou o Marco,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

moeda alemã, a níveis jamais vistos. A unidade monetária foi reduzida a um


milionésimo de milhão, ou seja, praticamente deixou de existir, enquanto que as
poupanças privadas desapareceram, criando um vácuo quase completo de capi-
tal (HOBSBAWM, 1995, p. 94). Há relatos extremos que nos dão uma ideia da
catástrofe, como as memórias do próprio Eric Hobsbawm, em que seu avô sacou
uma grande quantidade de dinheiro e descobriu que ele poderia pagar apenas
um café. O historiador Marc Ferro (1995) descreve homens carregando carri-
nhos de dinheiro para comprar apenas pão.
No fim da guerra, um Dólar valia 4 Marcos; no início de 1923, essa relação
vai a 7000 Marcos por um Dólar; no fim desse mesmo ano, um Dólar valia 130
bilhões de Marcos. Os salários tinham que ser reajustados diariamente, o que
levou os assalariados e aposentados à miséria. Os exportadores, porém, lucra-
ram fortunas com o Dólar tão alto (LENHARO, 1989).
A crise de 1923 obrigou os alemães a recorrerem a vultosos empréstimos
estrangeiros. Com o famoso Plano Dawes, junto aos EUA, a condição econô-
mica do país foi momentaneamente saneada. De 1924 até 1929 as economias
europeias pareciam dar sinais de ligeira melhora. Todavia, o crash da bolsa 29 de
outubro de 1929 elevou a crise a níveis extraordinários e, de certa forma, abriu
as portas para o fascismo.

Da Reconstrução ao Caos: O Pós-Guerra até a Crise de 1929


160 UNIDADE IV

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.


Figura 19: No alto à esquerda, o crítico literário Figura 20: Combates de rua em Berlim durante o
Gustave Landauer, comissário do povo para a Cultura levante espartaquista, em janeiro de 1919.
na República bávara. No alto à direita, o cadáver de Fonte: Löwy (2009, p. 252).
Karl Liebknecht, assassinado em 15 de janeiro de 1919.
Abaixo, Rosa Luxemburgo.
Fonte: Löwy (2009).

A CRISE DE 1929 E O NEW DEAL

A crise de 1929 representou, sem dúvida, o mais trágico episódio da história


do capitalismo e o maior desafio para manutenção de sua hegemonia enquanto
sistema econômico. Vamos tentar entender, brevemente, o que causou a grande
depressão de 1929, por que ela ocorreu nos EUA, país economicamente mais
desenvolvido, e seu impacto no decorrer da década de 1930. Entre seus efei-
tos, estão a queda do liberalismo e a ascensão de regimes “totalitários” como o
fascismo.
A economia capitalista funciona como uma rede global de mercados, sendo
que o comércio e as trocas existem em nível mundial. Desde 1913, os EUA já
despontaram como a maior economia do planeta, produzindo cerca de um terço
dos bens de consumo do mundo, pouco abaixo das somas de Alemanha, Grã-
Bretanha e França juntas. Em 1929, respondiam por cerca de 42% da produção
mundial (HOBSBAWM, 1995, p. 101).

TEMPOS DE BARBÁRIE: FASCIMO, NAZISMO E SEGUNDA GUERRA MUNDIAL (1919-1945)


161

As linhas de montagem industrial, como os parques mecânicos de Henry


Ford, popularizaram os bens duráveis como o automóvel. A fábrica, como estu-
damos na unidade sobre a Revolução Industrial, separou o homem de seu objeto
de produção, reduzindo os custos e elevando o produto final em escala industrial.
Esse processo separa o processo de criação da execução, a ideia e a produção,
a arte e a técnica, pois ao homem cabe apenas o processo mínimo na linha de
produção, seu produto não mais lhe pertence, como nos lembra a historiadora
Maria Stella Bresciani (1986).
Esse divórcio entre o homem e seus artefatos tem fundamentação teó-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

rica na obra de Frederick Taylor (daí deriva taylorismo). Nos Fundamentos de


Administração Científica, publicado em 1911, estão contidos os pressupostos
para elevar a produção mecânica sem levar em conta a participação humana no
processo de fabricação. Pressupostos teóricos que Henry Ford tornou práticos,
produzindo o famoso Ford-T em escala astronômica, barateando os custos e per-
mitindo que um em cada cinco estadunidenses tivesse o carro próprio em 1929.
O exemplo do automóvel Ford apenas demonstra a capacidade de produção
dos EUA e um mercado consumidor interno aquecido. Mas essa volúpia industrial
ou excesso de produção teria seu limite em 1929. Houve um descompasso entre
a produção e o consumo, o que os economistas chamam de “superprodução” e
“subconsumo”. Dito de outra forma, a demanda ou procura da massa não pode-
ria acompanhar o crescimento desproporcional de produtos e bens industriais.
Esse desequilíbrio entre produção e consumo leva a uma reação em cadeia em
escala global. Se os estoques não vendem, o valor artificial da empresa (na bolsa)
também cai, enquanto que o capital de investimentos cessa. Logo, o desemprego
aumenta e a população saca as poupanças e não consegue pagar os empréstimos,
levando à bancarrota do sistema financeiro. Nesse “efeito cascata”, há a redução
do consumo, o que paralisa toda a economia. Sem emprego, a tendência natural
é cortar gastos com bens supérfluos, como o café. Assim, os países dependentes
de monocultura ou commodities, como o Brasil daquele período, maior produtor
de café do mundo, também quebram. Por isso o estouro da bolsa de 1929 abalou
todo o mundo, já integrado em uma rede de comércio mundial.

Da Reconstrução ao Caos: O Pós-Guerra até a Crise de 1929


162 UNIDADE IV

Alguns números demonstram o abismo causado pela crise. No pior momento


da depressão (1932-33), 22% a 23% da força de trabalho britânica e belga, 24%
da sueca, 27% da americana, 29% da austríaca, 31% da norueguesa, 32% da dina-
marquesa, e nada menos que 44% da alemã não tinham emprego (HOBSBAWM,
1995, p. 97). Os EUA saíram de uma situação de pleno emprego (cerca de 4%
ou 5% de desempregados) antes da crise para um quarto da população ativa
desempregada no pós-crise. E a Alemanha à quase metade dos trabalhadores
sem trabalho.
Os EUA produziram em 1932 a metade do que tinham produzido em 1929.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A recuperação viria lenta e tardiamente, com o presidente Franklin Delano
Roosevelt, em torno de uma economia planejada, inversamente à anarquia defen-
dida pelos liberais. Planejamento econômico e cooperação eram as palavras de
ordem do New Deal (Novo acordo econômico, ou novo modelo econômico)
posto em prática a partir de 1933. Além do planejamento econômico, foram
adotadas medidas para a recuperação da economia e regulamentação do mer-
cado de capitais, bancos e a bolsa.
Nesse processo em que o governo assume “as rédeas da economia”, houve
histeria coletiva dos liberais, temerosos de que os EUA virassem uma economia
planificada ao estilo soviético, que, por sinal, parecia imune à crise. A funda-
mentação teórica do New Deal veio com o economista britânico John Maynard
Keynes e sua obra intitulada Teoria Geral do Emprego, Juros e Moeda, de
1936. O presidente Roosevelt ganhou a fundamentação teórica que precisava
para enfrentar a oposição, a Suprema Corte e os liberais, contrários à interven-
ção estatal na economia.
O keynesianismo – como ficou conhecida a escola de Keynes – tornou-se
um dos modelos de economia mais influentes do século XX e seu autor um dos
maiores economistas daquele século. Seus pressupostos, quase óbvios, é que em
momentos de crise o Estado deveria intervir, financiando o emprego público
em massa, assegurando a assistência social (previdência e seguros desemprego).
Em suma, o que o New Deal fez foi inaugurar o “Estado de bem-estar social”,
ou welfare state.
Fora dos EUA a presença do Estado na economia também crescia conforme a
crise aumentava. A URSS entrava em uma era de rápida industrialização com os

TEMPOS DE BARBÁRIE: FASCIMO, NAZISMO E SEGUNDA GUERRA MUNDIAL (1919-1945)


163

“Planos Quinquenais”, onde a produção industrial soviética triplicou na década


de 1930, subindo de 5% dos produtos manufaturados no mundo em 1929 para
18% em 1938. E o mais importante, não havia desemprego na União Soviética
(HOBSBAWM, 1995, p. 100). Até os nazistas plagiaram a ideia e Hitler intro-
duziu o “Plano Quadrienal”. Em 1939, a economia alemã já estava 25% acima
dos níveis de 1929.
Por esses problemas citados acima é que Eric Hobsbawm denomina o perí-
odo entreguerras como “a queda do liberalismo”. A teoria do laissez-faire (que
estudamos na primeira unidade) prevê como uma crença a autorregulação da
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

economia sem a intervenção do Estado, a partir da “mão invisível do mercado”


que se equilibra (teoricamente apenas) por meio das leis de oferta e procura,
enfim, tal a teoria do liberalismo econômico mostrou-se ineficaz nas décadas
de 1920 e 1930.

ASCENSÃO DO FASCISMO: AUTORITARISMO E


TOTALITARISMO

O Fascismo é o movimento político característico do período entreguerras (1919-


1945). Não necessariamente está restrito a esse recorte cronológico, mas apenas
com severas reservas se poderia situá-lo fora dessa temporalidade. O que veio
antes de 1919 ou viria após 1945 podem ser denominados como movimentos
de característica protofascista ou neonazista, respectivamente. Isso porque ape-
nas no entreguerras existiram as condições ou o “tipo ideal” para o nascimento e
desenvolvimento dos fascismos. O que não significa que o fenômeno não possa
ocorrer novamente no futuro.

Ascensão do Fascismo: Autoritarismo e Totalitarismo


164 UNIDADE IV

Para o historiador Eric Hobsbawm, o colapso econômico entre as guerras


produziu o fascismo e, sem a crise, não teria havido um Hitler. Hobsbawm (1995,
p. 133) afirma categoricamente que, não fosse a grande depressão causada pelo
crash da bolsa em 1929, o fascismo não teria se tornado muito significativo na
história do mundo, uma vez que a depressão “transformou Hitler de um fenô-
meno de periferia política no senhor potencial, e finalmente real, do país”,período
esse descrito por Hobsbawm como “a queda do liberalismo”.
A palavra “fascismo” deriva do italiano “fascio”, surgiu com Benito Mussolini
(1883-1945)e significa literalmente “feixe”. O fascio era um feixe de varas em que

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
os litores (legisladores) da Roma antiga carregavam as leis; ele tem por objetivo
simbolizar a unidade nacional. Uma tipologia do fascismo pode ser condensada
nas seguintes características: antiliberalismo, anticomunismo, nacionalismo exa-
cerbado, com uma liderança carismática (o duce para os italianos ou o führer
para os alemães, literalmente significa condutor, líder ou chefe).
Outra característica marcante do fascismo é sua pretensão “totalitária”, em
seduzir toda a população à sua ideologia. Mussolini insistia em que “[...] espiritual
ou materialmente não existiria atividade humana fora do Estado, nesse sentido
o fascismo é totalitário” (apud ARENDT, 1998, p. 198). O termo “totalitarismo”
foi endossado por diversos autores contemporâneos ao fascismo e à Guerra Fria,
como a historiadora Hannah Arendt e seu livro clássico Origens do totalita-
rismo. Contudo, atualmente, alguns pesquisadores como Fábio Bertonha (2008;
2013) e Marc Ferro (1995) consideram a expressão “totalitarismo” vaga e impre-
cisa. Isso porque havia resistência aos regimes fascistas, sobretudo resistência
dos comunistas; nem mesmo Hitler conseguiu 100% de aprovação após subir ao
poder em 1933. Para se chegar à pretensão megalomaníaca em seduzir ou hipno-
tizar toda a sociedade, os fascistas fizeram sim o uso do “autoritarismo”, criando
diversas polícias secretas, inclusive para vigiar os membros do próprio partido.
Se todo Fascismo fosse meramente sinônimo de fanatismo, intolerância ou
autoritarismo, o próprio conceito de fascismo deixaria de existir ou seria redu-
zido ao debate raso e infrutífero do termo. Em outras palavras, “não é possível
ser fascista sem ser intolerante, fanático, irracional, mas o inverso não é verda-
deiro”, esclarece o professor e pesquisador do Fascismo João Fábio Bertonha (2013,
p. 71). Afinal, se Francisco Franco, Salazar, Costa e Silva, Milton Friedman ou

TEMPOS DE BARBÁRIE: FASCIMO, NAZISMO E SEGUNDA GUERRA MUNDIAL (1919-1945)


165

Olavo de Carvalho são todos fascistas, como entender as diferenças entre eles e
com relação a fascistas reais, como Hitler, Mussolini ou Mosley? Essa reflexão
proposta por Fábio Bertonha (2013; 2008) é o ponto-chave para compreender o
fascismo em suas formas políticas e econômicas sem cair nas armadilhas e pre-
conceitos intrínsecos ao nosso problema e objeto.
Nesse sentido, ficam claros enquanto movimentos fascistas típicos o regime
de Mussolini na Itália (1922-1945) e de Hitler na Alemanha (1933-1945), além
de Guarda de Ferro na Romênia e a Cruz em Seta na Hungria. As ditaduras de
Francisco Franco, na Espanha, de Salazar em Portugal, o Estado Novo de Getúlio
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Vargas, as ditaduras militares na América Latina etc. podem ser considerados


regimes autoritários, porém não são fascistas no sentido estrito do termo. Escreve
Hobsbawm (1995, p. 127),
A ascensão da direita radical após a Primeira Guerra Mundial foi sem
dúvida uma resposta ao perigo, na verdade à realidade, da revolução
social e do poder operário em geral, e à Revolução de Outubro e ao
leninismo em particular. Sem esses, não teria havido fascismo algum.

O que deu oportunidade ao desenvolvimento do fascismo no período entreguer-


ras foi o colapso dos velhos regimes e, com eles, as velhas elites dominantes da
aristocracia, o que criou um vácuo de poder após a Primeira Grande Guerra.
Junta-se a isso a crise econômica que persistiu ameaçadora durante toda a década
de 1920 e finalmente explodiu em 1929. Por essas razões, Eric Hobsbawm ana-
lisa a ascensão do fascismo como um sintoma de uma grave “crise do liberalismo
político e econômico” daquela época. A seguinte passagem deixa isso mais claro:
As condições ideais para o triunfo da ultradireita alucinada eram um
Estado velho, com seus mecanismos dirigentes não mais funcionando;
uma massa de cidadãos desencantados, desorientados e desconten-
tes, não mais sabendo a quem ser leais; fortes movimentos socialistas
ameaçando ou parecendo ameaçar com a revolução social [...]; e uma
inclinação do ressentimento nacionalista contra os tratados de paz de
1918-20 (HOBSBAWM, 1995, p. 130).

Ascensão do Fascismo: Autoritarismo e Totalitarismo


166 UNIDADE IV

A fragilidade das novas instituições e a democracia ainda não solidificada real-


mente contribuíram para a ascensão de Mussolini e Hitler. Em 1922, Benito
Mussolini desfilou sobre Roma com seus Camisas Negras e chegou ao poder sem
a resistência do rei Victor Emanuel III. Da criação do Fasci di Combattimento em
1919, depois consolidado como Partido Fascista Italiano, até a elevação como
Primeiro Ministro da Itália foram apenas três anos.
Na década de 1930, a expansão fascista mostrou sua verdadeira face. O pri-
meiro alvo italiano foi a região da Etiópia, antiga Abissínia, um importante reino
cristão na África, com terras férteis que estimularam a cobiça de Mussolini em

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reviver o antigo Império Romano no Mediterrâneo. A segunda experiência impe-
rialista foi o apoio tácito que tanto os italianos quanto os alemães sob Hitler
deram aos golpistas na Guerra Civil Espanhola de 1937.

Durante a expansão fascista de Mussolini na África em 1935, na região da


Abissínia, ou Etiópia, houve ferrenha resistência dos etíopes, liderados por
Haile Selassie (1892-1975). O monarca não só barrou o imperialismo utópico
dos italianos em reviver o Império Romano na modernidade, mas deu início
ao culto sincrético entre religião cristã e música. O nome de Haile Selassie
antes de ascender ao trono em 1930 era Ras Tafari Manoken (que significa
“aquele que é respeitado, nobre de respeito”). Assim, se pode identificar a
origem do movimento Rastafari, ou Rasta, que teve em Bob Marley o ícone
do Reggae no século XX; uma ideologia de paz e amor ao próximo, mas que
teve Haile Selassie como seu fundador. Não por acaso, RasTafari (ou Haile
Selassie) ficou conhecido como o “Negus Negast”, ou rei dos reis.
Fonte: Moreno (2013, p. 201-212).

TEMPOS DE BARBÁRIE: FASCIMO, NAZISMO E SEGUNDA GUERRA MUNDIAL (1919-1945)


167

A Guerra Civil Espanhola de 1937 deixou claro o futuro da Europa. Foi uma
luta de um governo legítimo e democraticamente eleito da República aliado
aos socialistas, comunistas e mesmo anarquistas. De outro lado, estavam os
generais golpistas, insurgentes que se apresentaram como cruzados contra o
comunismo, um conglomerado de direita que ia do fascismo até os monarquistas
(os Carlistas) que recebeu o nome de Falange Tradicionalista Espanhola. Dentre
os generais golpistas estava o jovem Francisco Franco (1892-1975), que, após o
apoio da Alemanha e Itália, governaria ditatorialmente a Espanha até sua morte
(HOBSBAWM, 1995, p. 159).
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Durante a Guerra Civil Espanhola, Pablo Picasso pintou um quadro que se


tornaria símbolo daquela tragédia. O retrato do bombardeio à cidade de
Guernica nos dá uma ideia dos horrores do que ficou conhecido como o
“ensaio de Hitler” para a Segunda Guerra Mundial. Reflita sobre a pintura.
Fonte: o autor.

Figura 21: Guernica, de Pablo Picasso.


Fonte: www.pablopicasso.org

Ascensão do Fascismo: Autoritarismo e Totalitarismo


168 UNIDADE IV

NAZISMO: HITLER E O GROTESCO TERCEIRO REICH

“O nazismo era mais um velho regime recauchutado e revitalizado do


que um regime basicamente novo e diferente” (Eric Hobsbawm, 1995,
p. 130).

Antes de discutirmos sobre o fascismo alemão diretamente, cabe uma advertên-


cia: apesar de não ser pesquisador específico sobre essa problemática, considero
o tema o mais complexo de toda a Era Contemporânea, por diversos fatores. Por
isso penso que não se pode compreender a ascensão nazista na Alemanha apenas

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em termos políticos e econômicos. Como entender em termos econômicos que
a Alemanha, um dos Estados modernos mais evoluídos, onde viveram homens
como Goethe, Hegel, Marx, Nietzsche, entre outros pensadores, tenha se deixado
cair nas mãos do partido nazista, liderado por um homem como Hitler? Como
entender em termos políticos o clima místico dos rituais nazistas, que seduziram
os alemães como uma hipnose coletiva, uma espécie de anestesiamento coletivo?
Se você já assistiu ao filme “A queda”, do diretor Oliver Hirschbiegel, que
narra os últimos dias do regime nazista pelas memórias da secretária particu-
lar de Hitler, deve se lembrar do depoimento dessa funcionária quando diz, ao
final do filme, que pareciam viver “num pesadelo, do qual não conseguiam acor-
dar”. Nesse sentido, proponho duas vertentes para a análise do fascismo alemão:
a primeira clássica da economia política, que tem em Eric Hobsbawm (1995) o
maior expoente; a segunda, menos ortodoxa, que privilegia aspectos teológicos,
onde se afirma que não é pela teoria econômica que o misticismo do nazismo
pode ser compreendido. Entre os pensadores que analisaram o fascismo por esse
viés estão Walter Benjamin, Ernst Bloch e Wilhelm Reich.
Segundo a escola econômica e materialista de Hobsbawm, foi a Grande
Depressão que transformou Hitler de um fenômeno de periferia em senhor da
Alemanha. Seus argumentos são fundamentados pelo número de votos e da par-
ticipação política dos nazistas antes e depois da crise de 1929. Após a recuperação
econômica com o Plano Dawes de 1923-24, o partido nazista ficou reduzido
à participação insignificante de 2,5 a 3% do eleitorado, o que representa um
quinto do voto do partido comunista (KPD) e um décimo dos social-democratas
(SPD) nas eleições de 1928. Dois anos depois já havia subido para mais de 18%

TEMPOS DE BARBÁRIE: FASCIMO, NAZISMO E SEGUNDA GUERRA MUNDIAL (1919-1945)


169

do eleitorado, tornando-se o segundo mais forte na política alemã. Em 1932, no


auge da crise, já era o maior partido com 37% dos votos totais.
No entanto, mesmo Eric Hobsbawm (1995, p. 129), representante da escola
histórica econômica e social, pondera ao afirmar que os pontos fortes desses
movimentos eram dedicados “às inadequações da razão e do racionalismo e à
superioridade do instinto e da vontade”. Na verdade, as duas vertentes expli-
cativas (econômica e a teológica) se equivalem, não são excludentes. Vamos
entender parte por parte.
O partido nazista nasce com o nome de “Partido nacional socialista dos
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trabalhadores alemães”, onde “nazi” deriva das iniciais de nacional e socialista


(Nationalsozialismus). Logo no início da década de 1920 há a adesão de elementos
conservadores, ultranacionalistas, sobretudo antibolcheviques e antissocialis-
tas, além de certo apoio do capital industrial. Como vimos anteriormente, em
1923, Hitler e o general Ludendorff tentaram um golpe, contido na cervejaria de
Munique. Na prisão, Hitler redige o famoso Mein Kampf (Minha luta), em que
estão delimitados os pontos do programa nazista. Muito do conteúdo da obra é
meramente demagogo, falso, visando apenas à propaganda eleitoral e à sedução
dos vários elementos descontentes da população. No livro, fala-se em “reforma
agrária”, em confisco dos lucros da guerra, na punição dos usurários e especula-
dores; em suma, é um texto direcionado à massa popular de eleitores.
O caráter “socialista” do nazismo resume-se ao nome do partido, nada mais.
Os que ressaltam que o nazismo se chamava nacional-socialismo (sem se levar
em conta que a soma das duas palavras, aqui, sugere exatamente uma oposição
ao socialismo marxista, pois o socialismo não tem pátria, não é nacionalista, é
universal) ou que ele utilizava a cor vermelha nos seus símbolos esquecem-se que
Hitler afirmou, no próprio Mein Kampf, que “roubar” a cor vermelha (como na
suástica), forma efetiva da propaganda comunista, dos seus inimigos, era chave
para a competição com o comunismo alemão. Ademais, após chegar ao poder
em 1933 (de maneira democrática, na urna), a primeira medida de Hitler foi
colocar os sindicados na ilegalidade.

Nazismo: Hitler e o Grotesco Terceiro Reich


170 UNIDADE IV

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Figura 22: Adolf Hitler e a famosa saudação nazista

Um mês depois de Hitler chegar ao poder, o prédio do Parlamento alemão


em Berlim (Reichstag) foi misteriosamente incendiado. O fraudulento incêndio
do Reichstag foi o pretexto para colocar o Partido Comunista na ilegalidade,
acusado injustamente do atentado. Os próprios nazistas incendiaram o prédio.
Seguindo a política repressiva, Göring cria a Gestapo, a polícia secreta do Estado.
As grandes indústrias não são nacionalizadas (como prometia o Mein Kampf),
muito menos ocorre a reforma agrária nem a melhoria dos salários. Pelo con-
trário, os salários são congelados (LENHARO, 1986, p. 29).
Com a eliminação das tropas dissidentes das SA (Stürmabteilungen) ou
“Divisões de Assalto” e sua incorporação nas temidas SS (Schutzstaffel), as
“Tropas de Proteção” do próprio partido, comandadas por Heinrich Himmler,
e com a morte do Marechal Hindenburg em 1934, Hitler torna-se o soberano da
Alemanha. O episódio da eliminação dos principais líderes da SA, em 1934, ficou
conhecido como a “Noite dos Punhais”, em que, sucessivamente, os membros
mais influentes das Divisões de Assalto foram sumariamente assassinados, para
colocar os seus demais membros sob o controle do poder nazista. O temor de
Hitler era que os alemães se dividissem entre ele e Rölm, o influente chefe da SA.
Desde então a máquina de propaganda nazista engendrada pelo ministro
Joseph Goebbels e a rápida recuperação econômica mantiveram a população
adormecida para os crimes contra a humanidade que o nazismo já cometia
antes mesmo da eclosão da guerra. A unidade nazista se realizou pela criação
de um clima ultranacionalista, a partir do conceito de “povo” (volk), associado

TEMPOS DE BARBÁRIE: FASCIMO, NAZISMO E SEGUNDA GUERRA MUNDIAL (1919-1945)


171

ao sangue (Blut) e ao “solo” (Boden). A teoria do “espaço vital” para a sobrevi-


vência dos povos arianos (raça superior para os nazistas) na Europa Central os
fez eleger dois inimigos: os eslavos e os judeus.
No início do governo nazista, os campos de concentração eram apenas pri-
sões em potencial para dissidentes, comunistas ou subversivos, “e quando a guerra
explodiu, não havia mais de 8 mil pessoas em todos eles” (HOBSBAWM, 1997,
p. 151). Nesse período, os alemães ainda encaravam a “solução final” aos judeus
como expulsão da Europa Central e não como extermínio em massa. De acordo
com a filósofa e historiadora judia Hannah Arendt (1999), que viveu e escreveu
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nos tempos de nazismo e Segunda Guerra, a “solução” para o “problema judeu”


foi arquitetado por Reinhard Heydrich, um alto comandante das SS. A primeira
solução seria a expulsão de todos os judeus da Europa e isolamento provavel-
mente em uma ilha, a princípio Madagascar, no leste africano. A segunda solução
seria a concentração, campos de isolamento de judeus; os famosos “guetos” de
Varsóvia, na Polônia, são um exemplo, assim como novamente a ideia da ilha
de Madagascar. Mas, com a deflagração da guerra e as dificuldades para a emi-
gração de judeus, a terceira solução foi posta em prática, isto é, o extermínio de
todos os judeus da Europa.
O antissemitismo (aversão, ódio e preconceito contra judeus) data na
Alemanha do século XIX. Na Europa, a perseguição aos judeus ocorreu, em maior
ou menor grau, por toda a história após a diáspora (dispersão) dos judeus de seu
território na Palestina, feito pelos romanos no ano de 71 d.C. Sistematicamente,
os judeus foram expulsos da Espanha no século XV, de Portugal no século XVI e
muitos se dirigiram para as regiões da Holanda e Alemanha. No início do século
XX, o total da população judaica alemã somava cerca de apenas 1% do total de
habitantes daquele país. No entanto, esse 1% ocupava cerca de 10% das vagas
universitárias, pois se tornou uma classe abastada de ricos comerciantes e fun-
cionários públicos.
Fora essa “concorrência” com judeus em seu próprio país, os alemães os
acusaram de sabotagem durante a Primeira Grande Guerra. Mas o ódio maior
talvez venha da ideologia messiânica judaica, uma tradição milenar que man-
tém essa etnia unida desde Moisés e a saída do Egito. Judeus como Karl Marx,
Sigmund Freud, Albert Einstein formaram a vanguarda do pensamento moderno.

Nazismo: Hitler e o Grotesco Terceiro Reich


172 UNIDADE IV

Há, portanto, um choque entre duas concepções de pensamento histórico. Esses


fatores criaram o ódio nazista, corroborado e endossado pela população alemã
e pela perseguição desmedida desde a ascensão de Hitler.

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É importante notar que a tradição judaica remete ao Êxodo, ou à libertação
dos judeus da escravidão no Egito Antigo. Já instalados na região da Pales-
tina, sua “terra prometida”, os judeus enfrentaram os maiores Impérios da
antiguidade para manter sua religião e costumes. Em 722 a.C., o cruel Im-
pério Assírio. Em 587 a. C., Jerusalém foi conquistada pelos exércitos de Na-
bucodonosor.O período de cativeiro na Babilônia, durante o reinado de Na-
bucodonosor, representou uma verdadeira catástrofe para o povo hebreu.
A destruição do templo em Jerusalém, o fim da monarquia e o novo exílio
forçaram o reavivamento das crenças messiânicas. Mesmo com a relativa au-
tonomia que os persas (Ciro, Imperador persa venceu os caldeus) relegaram
aos povos conquistados, a partir de 540 a.C., a Judeia permaneceria um terri-
tório controlado. Em 330 a.C., Alexandre, o Grande, ao vencer os persas, não
impôs somente um novo governo político aos estrangeiros, impôs também
um imperialismo cultural, o processo de helenização do mundo antigo. A
resistência judaica aos costumes gregos, helênicos, ocorreu entre 167 e 174
a.C., quando os herdeiros de Alexandre tentaram substituir o culto a Javé
pelo deus sírio Baal Shamen. Durante esse processo de resistência, houve a
pregação dos mais importantes profetas judaicos (Isaias, Jeremias, Daniel),
e, na dominação do Império Romano, houve a atuação de Jesus Cristo (Cris-
to, em grego, é a tradução do hebraico Maschiah, ou Messias). Após a cru-
cificação, o livro do Apocalipse (Revelação) remete claramente ao domínio
romano. Finalmente, em 71 d.C., os romanos ocuparam a Palestina e expul-
saram os judeus, processo conhecido como Diáspora, dispersão. Sem pátria,
a etnia semita manteve-se unida pelas tradições do Antigo Testamento e da
Cabala.
Fonte: o autor.

TEMPOS DE BARBÁRIE: FASCIMO, NAZISMO E SEGUNDA GUERRA MUNDIAL (1919-1945)


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Figura 23: Fachada de Auschwitz, maior campo de concentração nazista, onde estima-se que cerca de dois milhões de
judeus foram mortos.

Mas a “solução final” como extermínio em massa dos judeus da Europa só teve
início em 1942, na Conferência de Wannsee, de caráter secreto e chefiada direta-
mente por Heydrich. Há um bom filme que reconstrói os debates dessa conferência
baseado na ata da reunião, chamado “Conspiração”. A partir de 1942, os judeus
de todos os territórios controlados pelos nazistas foram enviados para os “cam-
pos de concentração”, locais de escravidão, tortura e morte. O maior complexo
de extermínio foi construído na Polônia, o Auschwitz-Birkenau, que aprimorou
a tecnologia da morte com as câmaras de gás venenoso. As estimativas dos ale-
mães são que nada menos de dois milhões de judeus foram ali aniquilados, de um
total de cerca de cinco a seis milhões de judeus mortos pelos nazistas. Esse episó-
dio recebeu o nome de Holocausto, a tentativa de genocídio de toda uma etnia.

Nazismo: Hitler e o Grotesco Terceiro Reich


174 UNIDADE IV

O MISTICISMO NAZISTA

Os pesquisadores Alcir Lenharo (1989) e Hannah Arendt (1999) afirmam que a


população alemã estava bem informada sobre o que se passava com os judeus e
a política de guerra dos nazistas. Essa visão impede que aceitemos a tese de que
os alemães foram vítimas dos nazistas tanto quanto os judeus. É verdade que as
táticas de choque de Hitler e seus comparsas visavam manter a população em
um estado de coerção e medo. Mas essa resignação também foi endossada por
elementos de uma “política” destinada a atingir o inconsciente do povo. A pro-

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paganda nazista teve como objetivo inaugurar o que Alcir Lenharo chama de
“sistema de delírio”, um anestesiamento coletivo.
Por isso acredito que apenas a teoria econômica, a crise de 1929, a queda do
liberalismo e o revanchismo pelas perdas da Primeira Grande Guerra não expli-
cam o conteúdo místico do nazismo, seu componente teológico de propaganda,
visando atingir o inconsciente coletivo da população – o que o psicanalista Carl
G. Jung chamou de “arquétipos” ou memórias e fantasias primordiais de uma
pré-história tribal. Nesse sentido, a propaganda nazista buscava seduzir os ale-
mães em suas memórias mais íntimas e nas emoções mais sensíveis.
A propaganda visava teatralizar a política, torná-la acessível ao público por
meio apenas de formas artísticas e não práticas ou efetivas. Essa “estetização da
política” dava ao público a impressão de que fazia parte do sistema, de que era
o próprio partido “nacional e socialista”. Nos grandes comícios, desfiles, espe-
táculos esportivos e guerreiros, todos cuidadosamente captados pelas câmeras
de gravação, a massa vê seu próprio rosto, ela tem o direito de exigir ser fil-
mada. Apenas esteticamente, portanto, as massas participam do jogo político
(BENJAMIN, 1994).

TEMPOS DE BARBÁRIE: FASCIMO, NAZISMO E SEGUNDA GUERRA MUNDIAL (1919-1945)


175

Hitler considerava que a propaganda deveria ser popular, dirigida às massas,


desenvolvida em um formato de simples compreensão. “As grandes massas”, dizia
ele, “têm uma capacidade de recepção muito limitada, uma inteligência modesta,
uma memória fraca” (apud LENHARO, 1989, p. 47). Por isso muito dos even-
tos do partido nazista ganharam o sentido de um ritual religioso. Até mesmo
a suástica, o símbolo nazista, possui um elemento místico. Ela representa duas
figuras entrelaçadas, simbolizando a submissão, além de ser um símbolo per-
feito, representando o “eterno retorno”.
O caráter de culto religioso dos rituais nazistas pode ser observado nos discur-
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sos emotivos de Hitler; na queima de livros proibidos pelo partido, uma mistura
de caça às bruxas com ritual de exorcismo católico; no culto aos mortos, os “már-
tires” do Putsch de Munique, em 1923. Até mesmo as novas bandeiras de novas
unidades das SA e SS eram “batizadas” por Hitler em um ritual místico seme-
lhante à eucaristia do catolicismo. A consagração das bandeiras era algo análogo
à consagração do pão, uma espécie de sacramento (LENHARO, 1989, p. 44).
Alcir Lenharo notou com certo sarcasmo que a ironia do nazismo era come-
morar o nascimento de um judeu (Jesus Cristo) no natal. Abolir a religião da
mentalidade das massas seria como equiparar-se aos comunistas, em grande
maioria ateus e materialistas. Proponho continuarmos essa discussão na “lei-
tura complementar” ao final da unidade, em um texto um pouco mais detalhado
sobre as técnicas de persuasão dos nazistas, o que também nos ajuda a compre-
ender a união alemã em torno do projeto do Terceiro Reich.

“A supressão de uma raça [pelos nazistas] era a resposta à exterminação de


uma classe, a burguesia [pelo socialismo]”, diz o renomado historiador Marc
Ferro (1995, p. 174). Reflita sobre essa passagem elucidativa e objetiva.
Fonte: o autor.

Nazismo: Hitler e o Grotesco Terceiro Reich


176 UNIDADE IV

A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL (1939-1945)

Ao contrário de 1914, os soldados não foram à Segunda Guerra “com uma flor
no fuzil” e muito menos cantando os hinos e canções militares. O trauma da
guerra anterior ainda estava presente na memória de toda a Europa. Inversamente
a 1914, quando praticamente todas as grandes nações se lançaram à guerra, em
1939 houve a tentativa de evitá-la até o limite. Nesse sentido, novamente fazendo
referência à Grande Guerra, na qual há uma abundante lista de causas, a causa
da segunda guerra limita-se aos agressores: Alemanha, Japão e Itália. Os demais

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Estados arrastados à guerra, sendo capitalistas (França, Inglaterra e EUA) ou
comunistas (URSS), não queriam o conflito (HOBSBAWM, 1995, p. 43).
Portanto, ainda de acordo com Hobsbawm, o que causou concretamente a
Segunda Guerra Mundial foi a agressão pelas três potências descontentes. Durante
a Guerra Civil Espanhola, as duas potências fascistas fizeram um alinhamento
formal, o Eixo Berlim-Roma; enquanto a Alemanha e Japão concluíam o “Pacto
Anti-Comintern” (antissoviético). O Japão invadiu a Manchúria em 1931; a Itália
ocupou a Albânia e iniciou sua expansão para a África em 1935, na Etiópia; a
intervenção alemã na guerra civil espanhola foi o laboratório bélico para Hitler
invadir a Áustria em 1938 e a Tchecoslováquia no mesmo ano.
Esse processo de conquista e expansão é conhecido como “a gestação da
Segunda Guerra Mundial”. Restam poucos pontos obscuros sobre esse conflito,
os quais procuraremos abordar sucintamente. Um desses pontos mais obscuros
é entender o porquê do acordo entre Hitler e Stalin em 1939, o famoso tratado
Molotov-Ribbentrop, que dividiu a Polônia entre Alemanha e URSS e foi o estopim
para a guerra. Outra questão instigante é compreender as causas do Japão não
ter atacado a URSS em 1941, quando ela estava fragilizada, preferindo enfrentar
a maior potência mundial no Pacífico, os EUA. E o mais surpreendente, como
os americanos “se deixaram” atingir em Pearl Harbor de “surpresa” em dezem-
bro de 1941?

TEMPOS DE BARBÁRIE: FASCIMO, NAZISMO E SEGUNDA GUERRA MUNDIAL (1919-1945)


177

O estrategista militar prussiano Carl von Clausewitz (1780-1831) disse que


“a guerra é a continuação da política por outros meios”. Onde a diplomacia falha,
a guerra torna-se o argumento. As democracias ocidentais tentaram por toda a
década de 1930 barrar a ascensão fascista e o imperialismo desses países. Após
Hitler romper com o Tratado de Versalhes, militarizando a região da Renânia,
recriando a força aérea na poderosa Luftwaffe e anexando a Áustria e a região dos
Sudetos (de população alemã) na Tchecolosváquia em 1938, houve a tentativa de
conciliação em Munique. Reuniram-se Hitler, Deladier (França), Chamberlain
(Grã-Bretanha) e Mussolini (Itália).
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Após essa conferência de 1938 em Munique, Deladier e Chamberlain volta-


ram com a promessa de que o expansionismo alemão havia cessado. Na realidade,
Hitler ganhara apenas tempo para assinar um tratado de não agressão com a
URSS. Mas o que uniu todas as potências democráticas ocidentais contra o
fascismo? Os governos ocidentais não eram visceralmente antialemães nem
apaixonadamente antifascistas em princípio. A anexação da Áustria e de par-
tes da Tchecoslováquia, “países distantes dos quais pouco sabemos”, como disse
o Primeiro Ministro Britânico Chamberlain, pouco preocupava os ociden-
tais. Durante o período entreguerras, a ascensão do socialismo na URSS e sua
passagem inabalável pela crise de 1929 preocuparam mais os ocidentais que o
fascismo. A possibilidade de uma revolução operária em todo o continente era
muito mais assustadora para as elites dominantes que o nazismo e o controle
que Hitler exercia sobre as massas.
A desconfiança mútua entre Stalin e França-Inglaterra deixou Hitler livre para
agir. Os comunistas sabiam que a guerra contra os nazistas seria inevitável, mas
tentaram adiá-la o maior tempo possível. Mas o pacto de não agressão germano-
-soviético de agosto de 1939 – tratado Molotov-Ribbentrop – permitiu que Hitler
e Stalin dividissem a Polônia. A invasão ocorreu no primeiro dia de setembro
de 1939; dois dias depois Grã-Bretanha e França declaram guerra à Alemanha.

A Segunda Guerra Mundial (1939-1945)


178 UNIDADE IV

1940-1942: HITLER SENHOR DA EUROPA

A primeira fase da guerra é conhecida como Blitzkrieg (guerra relâmpago),


pois consiste em ataques coordenados utilizando infantaria, artilharia e avia-
ção, sem dar ao inimigo tempo para defesa. Seus três elementos essenciais são o
efeito surpresa, a rapidez da manobra e brutalidade do ataque. Seu idealizador
foi o general alemão Heinz Guderian, um dos militares inovadores em táticas
na Segunda Guerra Mundial. Uma de suas criações era o ataque coordenado de
tanques Panzer, alinhados às dezenas e não dispersos em campo aberto. Imagine

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um ataque coordenado de centenas de tanques, com apoio aéreo e ataques de
artilharia; essa tática permitiu que o Exército alemão conquistasse praticamente
toda a Europa no primeiro semestre de 1940.
Com essa máquina de guerra (Wehrmacht), os alemães levaram apenas três
semanas para conquistar a Polônia em 1939, uma semana para vencer a Dinamarca
em abril de 1940, a Holanda em 5 de maio de 1940, a Bélgica em 28 de maio do
mesmo ano, a Noruega em 10 de junho de 1940 e a França em 14 de junho de
1940. Em pouco mais de seis meses de conflito, todo o continente europeu estava
dominado direta ou indiretamente pelos nazistas. A rendição dos franceses foi
humilhante, uma vez que se sentiam protegidos por uma longa cadeia de fortes
na fronteira com a Alemanha, a Linha Magnot, mas foram pegos pela retaguarda
e, sem defesa apropriada aos aviões da Luftwaffe, capitularam em poucas sema-
nas. O governo foi transferido de Paris para Vichy, um regime colaboracionista
com o Reich, sob a chefia do marechal Pétain.
Pétain tinha sido um herói da Primeira Guerra Mundial, destacando-se
pela famosa batalha de Verdun, onde os alemães foram barrados em 1915. Em
1940, porém, a resistência dos franceses não foi tão ferrenha quanto na experi-
ência anterior. Após sucumbir de forma rápida e devastadora, o general Pétain
foi nomeado chefe do governo com a função de terminar a guerra com os ale-
mães e evitar maiores catástrofes para a França. Ao assinar a paz, ele passa a ter
plenos poderes da Assembleia Legislativa, como presidente do governo de cola-
boração com os nazistas. Na prática, os alemães controlavam indiretamente o
governo francês, mas este também flertava com os aliados, com a resistência do
Partido Comunista e de militares como Charles de Gaulle.

TEMPOS DE BARBÁRIE: FASCIMO, NAZISMO E SEGUNDA GUERRA MUNDIAL (1919-1945)


179

Máxima extensão
do Eixo
Avanço aliado
1942-43 Vitórias do Eixo
1944 Linha de
Maginot
1945

DIA
Beligerantes não-ocupados

FINLÂN
SUÉCIA
Países neutros
EGA
RU
UNIÃ
NO
O
abril 1940
REINO
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

DINAMARCA SOVIÉ
TICA
UNIDO

PAÍSES
BAIXOSBÉLGICA
POLÔNIA 1941-1943
ALEMANHA
maio 1940 TCHEC set. 1939
OSLOV
FRANÇA ÁQUIA
SUIÇA ÁUSTRIA HUNGRIA
ROMÊNIA
IUGOSLÁVIA
ITÁ
L

BULGÁRIA
UGA

LIA

ESPANHA abril 1941


PORT

ALBÂNIA TURQUIA
GRÉCIA
out. 1940

MALTA

ARGÉLIA
EGITO
abril 1941
LÍBIA dez. 1940

Figura 24: Máxima expansão dos países do Eixo


Fonte: Franco e Andrade (1993).

No final de 1940, apenas a Inglaterra resistia. A atuação dos ingleses foi propor-
cionada não apenas pela sua conhecida marinha de guerra, mas pela atuação
da RAF (Royal Air Force). A bravura dos pilotos ingleses levou o novo primeiro
ministro Witston Churchill a declarar que “Nunca tantos deveram tanto a tão
poucos”. No norte da África, local estratégico pelo petróleo, os ingleses barraram
os inicialmente invencíveis Afrika Korps do habilidoso general alemão Rommel,
na batalha de El-Alamein, com o General Montgomery.

A Segunda Guerra Mundial (1939-1945)


180 UNIDADE IV

Com a Europa praticamente dominada, Hitler voltou-se para a frente orien-


tal contra a URSS. Preparada por Hitler desde o fim de 1940, a invasão da Rússia,
chamada pelo código de “Operação Barbarossa”, visava atingir as cidades de
Leningrado, Moscou e Kiev antes do inverno de 1941. Em 22 de junho de 1941,
três milhões de soldados, dez mil tanques e três mil aviões penetraram nas
linhas soviéticas. Em 10 de julho, o exército alemão já ocupava os países bálti-
cos, a Bielo-Rússia e grande parte da Ucrânia. O ataque fulgurante dos alemães
pegou Stalin de surpresa, que via a guerra contra os nazistas como inevitável,
por questões de raça (os eslavos seriam escravos dos arianos) e pela ideologia

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
(comunista, extremamente o oposto do nazismo), mas esperava o ataque para
1942 (FERRO, 1995, p. 50-59).
No início de outubro do mesmo ano, os alemães já estavam nos arredores de
Moscou. Mas os russos impuseram ferrenha resistência desde 1942, e os alemães
foram detidos em Stalingrado no início de 1943. A guerra contra os soviéticos
foi muito diferente daquela ocorrida no ocidente europeu. A tática da Blitzkrieg
não surtiu o efeito desejado e os alemães deslocaram cerca de 80% de suas divi-
sões para a frente oriental. Para muitos analistas, a resistência dos russos em
Stalingrado (1942) é a maior batalha de todos os tempos, tanto no que se refere
ao conteúdo das armas utilizadas, quanto ao número de vítimas, estimadas em
quase dois milhões.
A URSS transferiu o grosso de sua indústria e alimentos para o interior do
país, mais de mil e quinhentas fábricas foram removidas, junto com dezesseis
milhões de operários em 1,5 milhões de vagões ferroviários, para além dos mon-
tes Urais. Essa “evacuação” deixou apenas o terreno vazio para Hitler, enquanto
novos armamentos eram desenvolvidos, como os tanques T-34 e os lançadores de
foguetes Katyushka. Assim, saíram das fábricas russas cerca de 200 mil canhões
e morteiros, 160 mil aviões e 100 mil tanques; apenas os EUA foram capazes de
produzir mais armamentos que a União Soviética (BERTONHA, 2011b, p. 89).
Na frente oriental, a partir de 1944, os soviéticos avançam, forçando a ren-
dição da Finlândia, Bulgária, Hungria, Polônia, Romênia, Tchecoslováquia e
Iugoslávia. No dia 2 de maio de 1945, as tropas comunistas tomam Berlim e o
Reichstag (parlamento), pondo fim à guerra na Europa. No contra-ataque sovié-
tico iniciado em 1944 até atingir Berlim em maio de 1945, houve a mobilização

TEMPOS DE BARBÁRIE: FASCIMO, NAZISMO E SEGUNDA GUERRA MUNDIAL (1919-1945)


181

de armamentos tão poderosos que alguns observadores chamaram de “dilúvio


de fogo” a reconquista da Polônia. Algo inigualável sem o uso de armas nucle-
ares. Não surpreende, assim, que dos 13,6 milhões de alemães mortos, feridos
ou aprisionados durante a guerra, 10 milhões o foram na frente oriental. Esses
ataques maciços do Exército Vermelho levaram alguns marechais alemães a ren-
derem-se em batalha, o que nunca havia acontecido antes (BERTONHA, 2011b).
A URSS havia vencido uma das maiores máquinas militares da história. Mas o
custo humano e material foi incomensurável para vencer o Terceiro Reich; entre
25 e 27 milhões de russos perderam a vida nessa guerra.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

A GUERRA NO PACÍFICO E A VITÓRIA DOS ALIADOS

No Pacífico, o protagonismo coube aos EUA. Em 7 de dezembro de 1941, a


aviação japonesa bombardeia a base americana do Havaí em Pearl Harbor. Diz
Marc Ferro (1995, p. 75),

Como foi possível que os americanos tenham se deixado ‘surpreender’


dessa forma? E por que os japoneses escolheram enfrentar a primeira
potência mundial em vez da URSS, que na época estava vulnerável?
Crônica de uma agressão programada.

Não fosse Pearl Harbor


e a declaração de guerra
de Hitler, os EUA sem
dúvida teriam continu-
ado de fora da guerra,
diz Hobsbawm.

Figura 23: Representação da vitória dos EUA no Pacífico, na ilha japonesa de


IWO-JIMA

A Segunda Guerra Mundial (1939-1945)


182 UNIDADE IV

Marc Ferro é um dos historiadores que suspeitam que os EUA não foram
pegos de surpresa em Pear Harbor e que apenas a sucata da marinha Americana
foi destruída naquele ataque. Naturalmente, não há como provar a hipótese, o
que também não a invalida, uma vez que há evidências que a sustentam. Em 1941
(pouco antes de Hitler ordenar a operação Barbarossa), o embaixador japonês
Matsuoka esteve em Berlim para tratar das táticas e alianças mútuas. Ele ouviu
de Hitler que “militarmente a Alemanha não precisa de ajuda... e que não pre-
tendia compartilhar sua vitória com ninguém”. Isso queria dizer, nas entrelinhas,
que o ataque frente aos russos seria unicamente feito pela Alemanha, enquanto

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
que ao Japão caberia a luta no Pacífico enfraquecendo o império Britânico.
Outro dado importante é que o secretário de Estado americano Cordell Hull e
o próprio presidente Roosevelt já impunham sansões aos japoneses, sobretudo
de matérias-primas. E o mais importante, desde o verão de 1941 os america-
nos já tinham conseguido decifrar o MAGIC, o código secreto dos japoneses
(FERRO, 1995, p. 80).
Por todas essas evidências, as suspeitas de Marc Ferro, de que os americanos
sabiam ou, no mínimo, imaginavam um ataque japonês no Havaí, são lícitas. O
ataque “surpresa” geralmente leva a opinião pública a apoiar a guerra, era justa-
mente o que Roosevelt precisava para declarar guerra aos países do eixo: apoio
interno. Outro dado marcante é que apenas seis meses depois de Pear Harbor,
em junho de 1942, os americanos já impunham uma grande derrota aos japone-
ses na Batalha de Midway. Pois as perdas humanas e materiais foram mínimas
no Havaí, comparadas com outras grandes batalhas. Nesse sentido, “é dupla-
mente surpreendente que o ataque japonês fosse uma surpresa”, conclui Marc
Ferro (1995, p. 81).
No Pacífico, a guerra teve um desfecho igualmente trágico. O lançamento
das bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, em 6 e 9 de agosto de 1945,
não foi justificado como indispensável para a vitória, então absolutamente certa
naquele momento, “mas como um meio de salvar vidas de soldados americanos”,
diz Hobsbawm (1995, p. 34). Para os historiadores mais ortodoxos, conservado-
res, o uso de artefatos nucleares serviu para apressar a rendição japonesa, pois os
soldados japoneses lutariam até a morte em caso de invasão por terra dos esta-
dunidenses. Já na versão dos historiadores revisionistas, as bombas sinalizaram

TEMPOS DE BARBÁRIE: FASCIMO, NAZISMO E SEGUNDA GUERRA MUNDIAL (1919-1945)


183

a supremacia dos EUA frente à URSS e não ao Japão propriamente dito. Nessa
perspectiva, os ataques serviram de aviso à Stalin e deram início às hostilidades
da Guerra Fria. Essa segunda versão ganha sustentação se a postura americana
nos tratados de guerra com os vencedores for observada atentamente. Em Teerã
(anterior à Hiroshima), os americanos se portaram de forma conciliatória com
a Grã-Bretanha e URSS; já em Postdan (logo após o ataque nuclear), os EUA, já
com o novo presidente Harry Truman, se mostraram autoritários e impositivos
quanto aos interesses pós-guerra.
Os dados apresentados anteriormente também ajudam a desmistificar a tese
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

amplamente divulgada pela mídia de que o “Dia D” foi decisivo para os rumos da
guerra. O desembarque maciço de soldados aliados na região da Normandia, na
França, ocorreu apenas em 6 de junho de 1944. Ora, as batalhas de Stalingrado,
Al-Alamein, Guadalcanal e Midway (todas anteriores a 1944) já haviam selado o
destino da guerra. Em 2 de fevereiro de 1943, o general alemão Paulus, coman-
dante da frente oriental, decide se render, capitulando com cerca de cem mil
homens, contra as ordens de Hitler de lutar até o fim. Consta que Paulus teria
dito que não tinha intenção de suicidar-se “por aquele cabo da Baviera [Hitler]”
(FERRO, 1995, p. 59).
O número de vítimas é estimado em três ou quatro vezes mais que a Primeira
Grande Guerra, ou seja, cerca de 50 milhões de vidas. Alguns países como a
URSS, Polônia e Iugoslávia perderam de 10% a 20% de sua população total. As
baixas de Alemanha, Itália, Japão e China chegam a 6% de seu total. Apenas
Grã-Bretanha, França e EUA tiveram número de vidas inferior a 1914-1918. Os
estadunidenses, vencedores da guerra ao lado da URSS, perderam cerca de 350
mil homens, pouco mais da metade das cifras de sua Guerra civil, a Secessão de
1861-1865, estimadas em 600 mil homens. Ao passo que os soviéticos perderam
dez milhões de soldados e quantidade semelhante de civis na Segunda Guerra
Mundial. Cerca de 80% dos russos do sexo masculino nascidos em 1923 mor-
reram durante a guerra.

A Segunda Guerra Mundial (1939-1945)


184 UNIDADE IV

Os bens materiais também são incalculáveis, tendo em vista que a Segunda


Guerra levou os campos de batalha da área rural para a urbana, para as cida-
des. Hobsbawm (1995) estima que 25% dos bens de capital pré-guerra foram
destruídos na URSS durante a Segunda Guerra, 13% na Alemanha e 7% a 8%
na França e Itália.
Naturalmente os números são apenas estimativas, uma vez que seria abso-
lutamente incontável em cifras exatas as perdas de guerra; algo incomensurável.
Acho interessante a reflexão de Eric Hobsbawm (1995, p. 50) sobre esses números
absurdos e astronômicos.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
“Seria menor o horror do
holocausto se os histo-
riadores concluíssem que
exterminou não 6 milhões
(estimativa original por
cima, e quase certamente
exagerada), mas 5 ou mesmo
4 milhões?” Ou, então, vinte
milhões de vítimas soviéti-
cas em vez dos estimados
27 milhões?

Figura 26: A bandeira soviética no topo do destruído Parlamento alemão


(Reichstag) após duas longas semanas, de 16 de Abril a 2 de Maio, pela
capital do III Reich. A Segunda Guerra Mundial acabaria na Europa, dias
depois, em 8 de Maio de 1945.

“Para cada mil guerras não aconteceram dez revoluções; tão difícil é o andar
ereto. E mesmo onde [as revoluções] tiveram êxito, os opressores em geral
pareciam mais substituídos do que abolidos”.
Fonte: Ernst Bloch(2005).

TEMPOS DE BARBÁRIE: FASCIMO, NAZISMO E SEGUNDA GUERRA MUNDIAL (1919-1945)


185

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a Europa devastada em 1945, os vencedores da guerra não cometeriam os


mesmos erros de 1919, no Congresso de Versalhes. A cobiça e a intransigência da
França e Inglaterra deram lugar a políticas de reconstrução e apoio econômico.
Como se sabe, boa parte das dívidas de guerra da Alemanha foi perdoada. Em
1919, os aliados cobravam indenizações; em 1945, houve um paternal projeto de
empréstimos; no lugar de hostilidades recíprocas, houve pacifismo e cooperação.
Os acordos de guerra (primeiro em Teerã, em 1943; em Moscou, no outono
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

de 1944; em Ialta, Crimeia, em fevereiro de 1945; em Potsdam, na Alemanha já


ocupada, em agosto de 1945) consolidaram as esferas de influência dos países
vencedores, EUA e URSS. A criação da Organização das Nações Unidas (ONU),
do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional (FMI), da Organização
Mundial do Comércio (OMC) visavam estimular políticas econômicas e balizar
os interesses dos vencedores, sobretudo americanos.
Ainda que o antagonismo entre EUA e URSS tenha começado logo após
o final do conflito mundial, dando início à Guerra-fria, pode-se sustentar que
a humanidade nunca viveu tão bem quanto nos anos 50 e 60 do século XX. A
ideia-chave era elementar: se os homens conseguiam mobilizar tantos recur-
sos em tempos de guerra, seria natural que o fizessem também em tempos de
paz. Por isso o modelo econômico do keynesianismo triunfou no pós-guerra,
com pleno emprego e a ascensão do famoso american way of life (estilo de vida
americano), um contraponto publicitário ao comunismo da União Soviética.
A coexistência dessas duas potências em equilíbrio permitiu que boa parte da
humanidade vivesse no welfare state(Estado de bem-estar social), com exceção
do chamado terceiro mundo.
Na última unidade, vamos entender o período da Guerra-fria, as tensões,
espionagem, políticas de influência e guerras periféricas.

Considerações Finais
PODER E PERSUASÃO DO TERCEIRO REICH
Até o momento, abordamos a parte “fácil” dos estudos sobre o nazismo, sua trajetória
e características em busca de uma tipologia para análise. Agora, vamos complicar e so-
fisticar um pouco nosso objeto de estudos. Na primeira leitura, as seguintes passagens
podem parecer obscuras, mas, uma vez verificadas atentamente, nos auxiliam a com-
preender melhor o fascismo alemão. O filósofo e historiador judeu-alemão Ernst Bloch
(contemporâneo ao nazismo e exilado nos EUA) desenvolve a “sociologia assincrônica”
da sociedade alemã, escrita na década de 1930, no livro específico sobre a escalada na-
zista chamado Herança desta época.
A teoria da assincronia consiste em demonstrar que nem todos vivem no mesmo Agora,
ou seja, trata da “não simultaneidade dos tempos”. Para Bloch, não existe um paralelis-
mo entre a evolução histórica de diferentes eventos com uma diferente percepção do
tempo. É assincrônico aquilo que não é simultâneo ao capitalismo de respectiva época,
é, portanto,
uma consciência que se coloca de forma oblíqua, ‘atravessada’ em relação às superestru-
turas culturais e espirituais que correspondem ao respectivo nível de desenvolvimento
das forças produtivas e das condições de produção capitalista (MUNSTER, 1997, p. 221).
São formas de consciência nas quais se mantêm elementos do pensamento pré-capita-
lista, pré-industrial, mesmo após esses pressupostos econômicos terem sido liquidados.
Persistindo certo romantismo e aversão ao progresso.
O êxito do nazismo foi conseguir a convergência dos mais diversos tempos existentes na
sociedade alemã no começo do século. Quais seriam esses tempos?
1) Havia, primeiro, os tempos míticos. O “tempo periódico” ou “recorrente” de uma po-
pulação apegada às suas crenças arcaicas, que se expressarão, por exemplo, no mito da
“terra e sangue”. 2) O “tempo messiânico”, que se expressa na Alemanha durante muitos
séculos pela espera do herói político. 3) O “tempo apocalíptico”, que afirma que surgiria
e se instalaria na Europa o Terceiro Reino (Terceiro Reich), o paraíso do Espírito Santo
e da Felicidade. Mito que atravessou não só toda a Europa, como também os séculos
desde Joaquim de Fiore até Hitler, com o seu grotesco e trágico Terceiro Reich. 4) Tem-
pos puramente sociais como o “tempo recessivo”, que caracterizava a visão de mundo
da pequena burguesia, que se encontrava naquela época em recessão econômica e de
inflação, esmagada por uma proletarização de fato à qual só poderia opor uma exalta-
ção moralista das suas impossíveis virtudes. 5) Havia também o “tempo vazio”, o tempo
zero, das grandes massas urbanas. As massas esperavam sair de sua condição miserá-
vel de lumpenproletariat (literalmente Lumpen significa “trapo”) para tornarem-se bons
cidadãos, isto é, pequenos burgueses aceitos e integrados. 6) Havia, enfim, o “tempo
processivo” que valorizava as mudanças – mas de maneira formal somente. Ignorava as
opções, as escolhas e as decisões que cada mudança devia na realidade implicar. Este
tempo era o último traço do “tempo revolucionário socialista” (FURTER, 1974, p. 63-65).
187

Bloch constata que os nazistas exploraram fraudulentamente a assincronia. Entretan-


to eles tinham a seu favor as condições sincrônicas, isto é, o monopólio do poderoso
capital alemão ameaçado pelo socialismo. O poder de persuasão nazista por meio da
fraude e do plágio aos elementos socialistas é perceptível na difusão da cor vermelha, na
falsificação e malversação de termos fundamentais ao marxismo, com o objetivo de ca-
muflar a contradição entre trabalho e capital. Ironicamente, Bloch afirma que o pompo-
so título do “Partido nacional-socialista dos trabalhadores alemães” foi criado para que
“os assassinos e suas vítimas pudessem se cumprimentar como camaradas”, na medida
em que o nazismo “pratica a superação do proletariado proposta por Marx, por meio
de fuzilamentos e campos de concentração” e, ao mesmo tempo, se apresenta como o
“verdadeiro Jacó do socialismo”. No Gênesis, Jacó foi o terceiro patriarca dos judeus, neto
de Abraão e filho de Isaac.
Boa parte da propaganda nazista e sua força de persuasão está relacionada a elementos
sagrados ou míticos. Todavia, como afirma Benjamin (2013, p. 163) em sua “Crônica dos
desempregados alemães”, “o Reino de Deus os alcança como catástrofe”, pois ele “é algo
como sua imagem inversa, o aparecimento do anticristo. Como se sabe, este arremeda
a bênção que foi anunciada como messiânica. Assim sendo, o Terceiro Reich arremeda
o socialismo”. De acordo com Michael Löwy (2013), essa passagem é uma espécie de crí-
tica judaico-cristã do nazismo como falso Messias, como anticristo, como manifestação
diabólica do espírito do mal, enganador e ardiloso. O socialismo é assim teologicamente
interpretado como o equivalente da promessa messiânica, enquanto o regime de Hitler
é a imensa mistificação que se pretende “socialista e nacional” (apud SOUSA, 2015).
Walter Benjamin (1994, p. 61), em suas “Teorias do fascismo alemão”, de 1930, analisando
a relação de causa e efeito do fascismo às portas do poder, afirma que “a realidade social
não está madura para transformar a técnica em seu órgão e que a técnica não é suficien-
temente forte para dominar as forças elementares da sociedade”, no mesmo sentido, a
“guerra imperialista é codeterminada, no que ela tem de mais duro e de mais fatídico,
pela distância abissal entre os meios gigantescos de que dispõe a técnica, por um lado,
e sua débil capacidade de esclarecer questões morais, por outro”.
Walter Benjamin (1892-1949), pensador judeu, vivenciou as atrocidades nazistas “no ca-
lor da hora” e teve que exilar-se em Paris, em 1933, até sua morte, em 1940, quando op-
tou pelo suicídio durante a fuga desesperada das tropas da Gestapo, na fronteira entre
França e Espanha. Benjamin é seguramente um dos maiores pensadores do século XX e
nos deixou uma herança cultural notável, no que se refere à crítica da modernidade, da
técnica capitalista e da estética moderna.
“Jamais a liberdade de movimento esteve em maior desproporção com a riqueza dos
meios de locomoção”, escreveu o filósofo Walter Benjamin (1995, p. 67).
Fonte: Sousa (2015).
1. Como resposta à crise causada pelo crash da bolsa de Nova Iorque em 1929, o
presidente Franklin Roosevelt criou o New Deal, novo modelo econômico. Assi-
nale a alternativa que corresponde às características desse plano:
a) Política econômica baseada no liberalismo e no Laissez-faire.
b) Política econômica baseada no socialismo e em Karl Marx.
c) Política econômica de desregulação do mercado financeiro.
d) Política econômica intervencionista, visando ao pleno emprego e à regulamen-
tação do mercado financeiro.
e) Política econômica que aplicava as doutrinas do economista John Maynard Ke-
ynes (keynesianismo), ou seja, a teoria do Estado Mínimo.

2. O Fascismo possui algumas características que permitem identificá-lo como um


movimento político típico do período entreguerras. Assinale as características
do fascismo que formam uma tipologia para sua análise:
a) O fascismo tem como características o socialismo, o comunismo e a cor verme-
lha.
b) O fascismo tem como características o liberalismo, o capitalismo e o autoritaris-
mo.
c) O fascismo tem como características o bolchevismo e o totalitarismo.
d) O fascismo tem como características a democracia, a tolerância racial e ideológi-
ca e a liberdade de expressão.
e) O fascismo tem como características o antiliberalismo, o anticomunismo, o na-
cionalismo exacerbado, com uma liderança carismática.

3. Sobre a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), leia as afirmações a seguir e as-


sinale a única opção correta:
I. Ocorreu como consequência do Tratado de Versalhes (1919), como política ex-
pansionista de Hitler e do nazismo.
II. Seu fim marcou o início da Guerra Fria e a divisão mundial em dois blocos: capi-
talista versus comunista.
III. Teve origem quando os EUA declararam guerra ao Japão após Pear Harbor.
IV. A primeira fase da guerra ficou conhecida como blitzkrieg, ou guerra relâmpago,
quando o exército alemão conquistou praticamente toda a Europa.
189

V. Deixou um saldo de quase 50 milhões de vidas e genocídios nunca antes vistos


como o Holocausto e as bombas de Hiroshima e Nagasaki.
a. Todas as alternativas estão corretas com exceção da afirmativa I.
b. Todas as alternativas estão corretas com exceção da afirmativa II.
c. Todas as alternativas estão corretas com exceção da afirmativa III.
d. Todas as alternativas estão corretas com exceção da afirmativa IV.
e. Todas as alternativas estão corretas com exceção da afirmativa V.

4. Sobre o Holocausto, a tentativa de extermínio dos judeus pelos nazistas, assina-


le a alternativa correta quanto à “solução final para a questão judaica”.
a) O extermínio em massa de judeus começou logo após a subida de Hitler ao po-
der, em 1933.
b) A decisão de exterminar os judeus de toda a Europa foi tomada na Conferência
de Wannsee, em janeiro de 1942. Os responsáveis diretos pelo holocausto foram
Adolf Hitler, Heydrich e Himmler.
c) O holocausto ficou restrito aos judeus do leste europeu nos “campos de concen-
tração”, sendo Varsóvia e Auschiwitz os mais notáveis.
d) A solução final teve como motivação o fato de Karl Marx, criador do socialismo
científico, ter sido judeu.
e) Holocausto significa o extermínio de ciganos, homossexuais e negros.
MATERIAL COMPLEMENTAR

Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal


Hannah Arendt
Editora: Companhia das Letras
Sinopse: publicado originalmente em 1963, o livro logo se tornou referência
nos estudos sobre o nazismo. O livro tem dois objetivos claros. O primeiro busca
narrar o sequestro de Adolf Eichmann, um Tenente-Coronel nazista e refugiado na
Argentina após a queda do Terceiro Reich. Ele foi encontrado pelo Mossad, o serviço
secreto israelense, e levado a Jerusalém para o julgamento. O segundo objetivo é
demonstrar os mecanismos de morte do regime nazista através do depoimento
de Eichmann. Hannah Arendt acompanhou o julgamento e descreveu os planos
fascistas para a “solução final” do problema judeu.

O capitalismo como religião


Walter Benjamin
Editora: Boitempo
Sinopse: O livro de Benjamin demonstra como as peregrinações em busca da
mercadoria fetiche e do dinheiro tornaram-se uma espécie de religião. O capitalismo é
uma religião de mero culto, sem dogma. O capitalismo desenvolveu-se no Ocidente
de forma parasitária sobre o cristianismo – o que não se demonstra apenas com
o exemplo do Calvinismo, mas também com o das outras orientações ortodoxas
cristãs. “De tal modo que a história do cristianismo se tornou essencialmente a
do seu parasita, o capitalismo” (BENJAMIN, 2012, p. 37). Para Walter Benjamin, o
capitalismo é um culto que não redime, mas deixa um sentimento de culpa, não
visa à redenção, portanto. “É o fim da transcendência de Deus”, ele conclui.
MATERIAL COMPLEMENTAR

Título: Círculo de fogo


Ano: 2001
Sinopse: O filme descreve a atuação dos franco-atiradores soviéticos na
Batalha de Stalingrado, a mais violenta da Segunda Guerra Mundial. Baseado
numa história real do soldado Vasily Zaitsev que se tornou símbolo da
ferrenha resistência da URSS e marcou o início da contraofensiva dos aliados
contra os nazistas.

Título: A Queda
Ano: 2008
Sinopse: O filme narra os últimos dias de Adolf Hitler e da cúpula nazista
em 1945, protegidos num bunker em Berlim. A atuação do ator Bruno Ganz
é bastante fiel na tentativa de reconstruir os trejeitos e a personalidade de
Adolf Hitler. Baseado no depoimento de Traudl Junge, secretária particular
de Hitler, e na obra do escritor Joachin Fest, um renomado pesquisador
do nazismo.O filme vale ser assistido não apenas pela atuação dos atores,
mas pela releitura do clima persuasivo e autoritário dos nazistas sobre a
população, resignada.

Título: O grande ditador


Ano: 1940
Sinopse: Filme em que Charlie Chaplin satiriza o regime nazista, a
personalidade excêntrica de Hitler e seus discursos marcados pelo ódio aos
judeus, comunistas e negros. Um filme célebre.

Material Complementar
MATERIAL COMPLEMENTAR

Título: Operação Valquíria


Ano: 2008
Sinopse: Filme estrelado por Tom Cruise baseado numa conspiração do
Exército alemão para assassinar Adolf Hitler, chamado “Operação Valquíria”.
O teor conspiratório de suspense mantém um clima de tensão em todo o
filme. No total, Hitler sobreviveu a quinze tentativas de assassinato.

Título: O tambor
Ano: 1979
Sinopse: Filme dirigido por Volker Schlöndorff, vencedor do Oscar
de melhor filme estrangeiro, baseado na obra do renomado escritor
alemão Günter Grass. Uma das raras obras que descreve a atuação
do regime nazista por meio da família alemã. Na trama, um menino
recusa-se a crescer, a se tornar adulto. Mas ele tem o um dom, o grito e
um instrumento, o tambor. Na prática, Günter Grass descreve o próprio
Hitler como um menino que se recusou a esquecer do trauma da Primeira
Guerra, com o dom do grito (oratória) e o tambor, representando a guerra.

Título: A vida é bela


Ano: 1997
Sinopse: O filme estrelado e dirigido pro Roberto Benigni é ao mesmo
tempo romântico e utópico. Ele narra um pai separado da família que
reencontra o filho num campo de concentração nazista. Para evitar que o filho
tomasse consciência da escravidão e morte dos campos de concentração, o
personagem, magistralmente interpretado por Benigni, induz o filho a ver
aquilo tudo de forma lúdica, como uma brincadeira, um jogo. Vencedor do
Oscar de melhor filme estrangeiro.
Professor Me. Rui Bragado Sousa

DA GUERRA FRIA AO “FIM

V
UNIDADE
DA HISTÓRIA” (1945-2001)

Objetivos de Aprendizagem
■■ Compreender o período da Guerra Fria e a possibilidade de extinção
da humanidade.
■■ Analisar a divisão bilateral do poder no pós Segunda Guerra.
■■ Verificar os desdobramentos da Guerra Fria no Terceiro Mundo.
■■ Apreender a globalização, a descolonização e o pensamento
econômico do neoliberalismo.
■■ Entender as causas da queda do Muro de Berlim e da URSS.
■■ Refletir sobre o “fim da história” de Francis Fukuyama e sobre o 11 de
setembro de 2001.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ A Guerra Fria e o isolamento da URSS
■■ A Guerra Fria no terceiro mundo
■■ Globalização, descolonização e neoliberalismo
■■ A queda do muro de Berlim e o fim do socialismo real
195

INTRODUÇÃO

“Da Guerra Fria ao ‘fim da história’”, título utilizado para esta unidade, tem uma
dupla conotação, um sentido figurado e outro prático. Não apenas quanto à pos-
sibilidade eminente e efetiva de extermínio e extinção da espécie humana, mas
também teoricamente. Em 1992, Francis Fukuyama publicou “O fim da histó-
ria e o último homem”. Sua tese apressada era que se inauguraria uma nova era
de equilíbrio, pacifismo e o fim das contradições, com o fim da oposição entre
capitalismo e comunismo. O que se viu foi exatamente o oposto.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Naturalmente a oposição quase catastrófica entre os modelos do capitalismo


e de comunismo trazem consigo novas formas e estilos de vida que produzem
culturas distintas. Nosso objetivo será compreender esse meio século (1946-
2001) e os efeitos que a chamada “cultura de massa” e os meios de comunicação
em massa (televisão, cinema, imprensa) tiveram na consolidação do capitalismo
como sistema hegemônico após a queda do Muro de Berlim em 1989. A cultura
do pós Segunda Guerra Mundial introduziu a necessidade do entretenimento da
emergente sociedade de consumo. Há, nessa apropriação da cultura, um impacto
colossal na mentalidade de toda a humanidade.
Um exemplo desse impacto é a percepção que a sociedade tinha e passou a
ter em relação à arte. A arte ou a cultura de uma forma geral, até o século XIX,
nunca teve uma função tão reduzida a mero entretenimento. A arte tinha um
valor sagrado, um valor de culto, pois era inacessível ao comum consumo par-
ticular. Algumas obras só poderiam ser vistas em igrejas, templos ou museus.
Com a reprodução técnica da arte, em que se perde sua autenticidade, quando
ela pode ser reproduzida ao desejo consumista de cada indivíduo, ela passa então
a ter outra significação, em vez do valor de culto, o valor político.
Não por acaso, os super-heróis surgem justamente na Guerra-Fria. Isso não é
mera coincidência, pois seu surgimento gera uma espécie de propaganda ociden-
tal frente ao “inferior” comunismo soviético. E a melhor forma de propaganda é
aquela em que absorvemos inconscientemente, sem ao menos nos darmos conta
de que a estamos consumindo.

Introdução
196 UNIDADE V

©shutterstock
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A GUERRA FRIA E O ISOLAMENTO DA URSS

Ao abordar os temas da Guerra Fria, o historiador ou professor deve atentar-


-se ao problema da longa duração desse evento. Neste sentido, a organização do
material em eixos temáticos é tão importante quanto o domínio que o profis-
sional tem do conteúdo. Ainda que se concorde que “o todo é maior que a soma
das partes”, como disse o sociólogo Émile Durkheim, a sistematização das cau-
sas, debates e efeitos torna a visão do todo mais cristalino; como peças em um
mosaico, embora fragmentado, é uma parte integrante de um bloco maior. Essa
é a perspectiva didática de um dos maiores estudiosos da Guerra Fria no Brasil,
Sidnei Munhoz, e da especialista em ensino de história Neide de Paiva Vieira
(MUNHOZ; VIEIRA, 2011).
Seguindo esse raciocínio, vamos analisar, primeiramente, a construção e a
definição teórica da Guerra Fria, suas motivações, principais articuladores, dou-
trinas e o produto final desse jogo de interesses em escala mundial. No tópico
seguinte, direcionamos o foco para os eventos práticos, “quentes”, para a ação
nas zonas periféricas do globo, como a Guerra da Coreia (1950-53), do Vietnã

DA GUERRA FRIA AO “FIM DA HISTÓRIA” (1945-2001)


197

(1964-1975) e do Afeganistão (1979-1989). Nessa dinâmica, é importante notar


o papel que os chamados países de “terceiro mundo” tiveram durante a Guerra
Fria, eles foram as maiores vítimas dos interesses dos EUA e URSS.
O conceito de “Guerra fria” não reduz seu significando ao mero antônimo
de “guerra quente” ou guerra, de fato. Por meio século, a tensão entre EUA e
URSS manteve o mundo em alerta para a probabilidade de uma guerra efetiva.
Falar em Guerra fria significa pensar em competição, tanto da indústria bélica
quanto da concorrência ideológica entre dois grandes modelos de economia e
ideologia (capitalismo e comunismo). Essa competição pode ser observada nos
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Jogos Olímpicos, por exemplo, em que as duas superpotências rivalizaram para


demonstrar ao mundo a eficácia de cada modelo de gestão. Ela foi, portanto,
uma guerra de influências, de bastidores e de poder.
Não há consenso entre os pesquisadores do tema sobre quando as hostili-
dades recíprocas tiveram início. Alguns advogam para o ano de 1945, logo após
o fim da Segunda Guerra Mundial, com a divisão da Alemanha e o controle do
leste europeu pela URSS. Os EUA responderam retirando a participação soviética
da reconstrução da Itália e Grécia, países que já tinham um Partido Comunista
local forte, mas estavam na zona de influência estadunidense na Europa, isto é,
na Europa ocidental. É certo que a intransigência do presidente Harry Truman
contribuiu para o afastamento gradual das potências vencedoras da guerra e seu
subsequente rompimento. Truman rompeu com a tradição isolacionista ame-
ricana e com a política da “persuasão amistosa”, de Roosevelt. Stalin, de outro
lado, ficou descontente com a cartilha ONU. A sede das Nações Unidas estava
nos EUA, projetada por Oscar Niemeyer e Le Corbusier. Mesmo fazendo parte
do Conselho permanente da instituição (URSS, EUA, Grã-Bretanha, França e
China), os soviéticos seriam minoria e o voto seria vencido frente à junção dos
países ocidentais e capitalistas.

A Guerra Fria e o Isolamento da URSS


198 UNIDADE V

Convém notar que Berlim ficava localizada na parte oriental da Alemanha


dividida, de controle soviético, pelos acordos anteriores ao fim da guerra. Ainda
assim Stalin aceitou a divisão da capital alemã em zonas de influência. No entanto,
em 1948, as forças do Exército Vermelho bloquearam o acesso a Berlim Ocidental,
situada 180 km no interior da zona soviética de ocupação, sob o pretexto de que
as forças ocidentais tinham negligenciado o Acordo de Ocupação das Quatro
Potências, de 1945. Na verdade, trata-se de uma retaliação soviética às políticas
de isolação da URSS pelos EUA. Ao interromper o trânsito de todo transporte de
suprimentos para a Berlim Ocidental, Stalin acirrou a já desgastada relação entre

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
comunistas e capitalistas. Por quase um ano a população (cerca de 2,5 milhões
de pessoas) da parte ocidental de Berlim foi abastecida apenas por aviões ameri-
canos, ingleses e franceses. Em 23 de maio de 1949, foi proclamada a existência
da República Federal da Alemanha, no ocidente; poucos meses depois, Moscou
instalava a rival República Democrática Alemã (Alemanha Oriental). Considero
esse o marco inicial da Guerra Fria.

UNIÃO SOVIÉTICA

ESTADOS
UNIDOS

OTAN Pacto de Varsóvia

Países capitalistas Países socialistas

Figura 27: Divisão bipolar do globo durantea Guerra Fria


Fonte: Franco e Andrade (1993, p. 58).

DA GUERRA FRIA AO “FIM DA HISTÓRIA” (1945-2001)


199

A DOUTRINA DA CONTENÇÃO E A DOUTRINA TRUMAN

Em 1946, o primeiro Ministro britânico Winston Churchill utilizou a expressão


que ficaria como sinônimo das políticas ocidentais frente à URSS, “a Cortina
de Ferro”, ou seja, o isolamento, cordão “sanitário”, para evitar o “contágio” da
Europa Ocidental com os comunistas do leste. A “doutrina da contenção” ou o
isolamento da União Soviética foi o programa político americano para limitar
a influência dos comunistas nos seus territórios já conquistados. Esse projeto
baseou-se em três fases: a propaganda ocidental visando demonstrar a superio-
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ridade capitalista (Doutrina da Contenção); a prática de empréstimos bilionários


para a reconstrução da Europa (Plano Marshall); o aparato militar para a concreti-
zação desses objetivos (criação da OTAN e da CIA). Vamos estudá-las caso a caso.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, praticamente toda a Europa se encon-
trava devastada, tanto em termos materiais quanto econômicos. A Inglaterra
já não tinha poder para mediar os interesses do continente nem do Oriente
Médio; a França estava profundamente debilitada; a Alemanha estava arrasada,
com praticamente todo seu antigo e imponente parque industrial destruído. No
ano de 1947, a produção alemã correspondia a apenas 31% dos níveis de 1936
(LEUCHTENBURG, 2008, p. 611). A situação de penúria pode ser resumida no
fato de que cigarros e chocolates tinham substituído a moeda como meios de
troca. Não havia combustível, os alimentos foram racionados e a rede de ferro-
vias que interligava todo o continente estava destruída.
Nesse cenário catastrófico crescia o prestígio da União Soviética, pois o
Exército Vermelho havia vencido os nazistas, a maior máquina de guerra já
existente até então, enquanto que a inexistência de classes e autogestão do prole-
tariado alimentava os sonhos de uma Europa empobrecida. Partidos comunistas
tornaram-se rapidamente influentes mesmo fora da área de influência de Stalin,
na França, Itália e Grécia. É certo que o Exército Vermelho emergia como a mais
poderosa força armada do mundo, como ficou demonstrado na retomada da
região da Manchúria, frente aos Japoneses. Porém, Stalin não tinha planos para
a conquista armada da Europa Ocidental. A prioridade dos russos seria a recons-
trução de sua própria nação, mas a ideologia comunista saiu-se vitoriosa após a
vitória frente aos nazistas (MUNHOZ; BERTONHA, 2009).

A Guerra Fria e o Isolamento da URSS


200 UNIDADE V

A chamada “Operação tempestade de agosto” [de 1945] foi planejada na


Conferência de Ialta, na qual ficava estipulado que, após a vitória frente aos
alemães, as forças militares de URSS e USA seriam direcionadas para a luta
contra o Japão. Os russos direcionariam suas forças para o front oriental,
forçando a rendição das tropas japonesas na Coreia e China (Manchúria),
enquanto os americanos agiriam nas ilhas japonesas. Os soviéticos conquis-
taram, em poucas semanas, um território da Ásia equiparado ao continente
europeu, em termos territoriais, forçando a rendição em massa de japone-

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ses que tinham adquirido fama de bravura na luta contra os EUA no Pacífico.
A rápida e devastadora vitória do Exército Vermelho na Ásia foi respondida
com os ataques com armas nucleares pelos americanos. Isso aumentou o
prestígio da luta em terra dos soviéticos e da tecnologia nuclear americana,
o que contribuiu para iniciar a rivalidade entre as duas superpotências. Por
outro lado, o poderio e a influência da URSS se tornaram patentes na China
e Coreia. Os EUA responderam não permitindo que os soviéticos tomassem
parte na reconstrução japonesa.
Fonte: o autor.

Esse panorama, ao mesmo tempo sombrio e desafiador, moldou a política externa


dos EUA no pós-guerra e exigiu que a imagem positiva do comunismo fosse
desconstruída. O embasamento teórico para o desenvolvimento da chamada
“Doutrina da Contenção” deve-se à atuação do diplomata George Frost Kennan.
Sua experiência como diplomata estadunidense na URSS e como conselheiro de
Estado permitiu que entrasse em contato com a cultura e as demandas do governo
de Moscou. Astuto observador e conhecedor das tradições russas, Kennan propôs
uma estratégia visando conter o possível expansionismo soviético. Essa estraté-
gia ficou conhecida como a “Doutrina da Contenção”.
Em 1946, George Frost Kennan escreveu um curto documento endereçado
ao Departamento de Estado americano, no qual analisava e definia as diretrizes
do governo soviético, bem como a estratégia de relacionamento com os russos.
O documento com cerca de oito mil palavras ficou conhecido como o “Longo
Telegrama”, um dos escritos de maior impacto na diplomacia do século XX.
Nele, Kennan enfatiza a impossibilidade de um acordo entre os governos do

DA GUERRA FRIA AO “FIM DA HISTÓRIA” (1945-2001)


201

Kremlin (Moscou) e de Washington. Segundo sua visão coerente, os dois mode-


los econômicos (capitalismo e comunismo) traziam em si um conflito inerente
de ideologias. Lembre-se de que Karl Marx – o criador do socialismo científico
– já advogava para o fim das classes sociais e da burguesia em 1848. Nesse sen-
tido, as duas doutrinas seriam insustentáveis, pois são antagônicas.
A solução para o impasse, segundo Kennan, seria uma política externa de longa
duração, visando à contenção do expansionismo soviético. O diplomata acre-
ditava que a “principal ameaça soviética não era a militar (poder do Exército
Vermelho), mas a capacidade de ação e sedução das organizações comunistas
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no interior das nações capitalistas” (MUNHOZ; VIEIRA, 2011). O isolamento


da URSS tornou-se, assim, um consenso na política externa americana e con-
figurou a estratégia da disputa pela hegemonia mundial com a URSS. Deve-se
a Kennan a elaboração teórica do plano, mas lembre-se de que, ainda em 1946,
Churchill já falava em “cortina de ferro”, expressão que tomou emprestado de
Joseph Goebbels, ministro da propagada de Hitler, que já temia o avanço comu-
nista antes do fim da Segunda Guerra Mundial.
A análise teórica de George Frost Kennan foi endossada na prática pelo
então presidente dos EUA, Harry Truman (1945-1953). Truman soube mano-
brar habilmente o Congresso americano e a opinião pública caseira frente ao
“perigo vermelho”. Em 1947, Truman e Marshall (seu secretário de Estado) con-
seguiram a autorização do Congresso para a liberação de um maciço programa
de assistência econômica que ficou conhecido como Plano Marshall. Ao todo, os
empréstimos aos aliados da Europa Ocidental somaram cerca de 22,4 bilhões de
dólares, uma quantia assombrosa para aquele período. Alguns críticos susten-
tavam que Truman levaria o país à bancarrota, outros, como o opositor Henry
Wallace, apelidaram o Plano Marshall de “Plano Marcial”. Uma analogia coerente
tendo em vista que os dólares americanos foram aprovados mediante a coopera-
ção dos europeus para a criação da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico
Norte), uma rede de apoio mútuo dos países capitalistas em caso de agressão ou
invasão da URSS. Ao fazer aprovar essa organização, Truman passou por cima
da própria ONU e de seu Conselho de Segurança (LEUCHTEBURG, 2008).

A Guerra Fria e o Isolamento da URSS


202 UNIDADE V

Em síntese, a “Doutrina Truman” resume-se à fala do presidente em 1947:


“Deve ser política dos Estados Unidos apoiar os povos livres que estão resistindo
à subjugação armada por minorias armadas ou pressões externas”. No setor mili-
tar, Truman criou ainda o Conselho de Segurança Nacional e a Agência Central
de Informações (CIA).
O mais imponente programa de assistência internacional jamais em-
preendido, o Plano Marshall foi extraordinariamente bem sucedido.
Infusões maciças de capital restauraram rapidamente a economia eu-
ropeia. Cerca de 13,3 bilhões de dólares foram investidos. Em 1951, a
produção industrial nos países do Plano Marshall tinha alcançado os

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níveis em torno de 40% superiores aos de antes da guerra, e a produção
agrícola ultrapassava em cerca de 10% os padrões da década de 1930
(LEUCHTEBURG, 2008, p. 613).

Esse desempenho excepcional só foi possível por que os EUA haviam saído da
guerra mundial muito mais fortes do que entraram. Em um mundo devastado
e empobrecido pela guerra, os EUA eram
a grande exceção, produzindo, em 1945,
50% do PIB mundial e controlando 2/3 das
reservas de ouro e metade do transporte
marítimo do mundo (BERTONHA, 2011b).
A União Soviética, por outro lado,
emergiu como um gigante militar, porém
economicamente pobre. A devastação cau-
sada pelos nazistas em seus territórios e os
mais de 25 milhões de mortos causou um
grande desequilíbrio interno. Ainda que a
URSS tivesse restaurado e aumentado os
antigos territórios do czar, a reconstrução
interna seria prioridade. Isso fica evidente
na recusa do Kremlin em apoiar revolu-
ções comunistas fora da URSS. Suas ações
visavam fortalecer a própria URSS e con-
©Google

solidar o socialismo. Para responder à


Figura 28: Cartaz de propaganda soviética
criação da OTAN pelos ocidentais, os russos representando o astronauta Yuri Gagarin

DA GUERRA FRIA AO “FIM DA HISTÓRIA” (1945-2001)


203

arquitetaram o “Pacto de Varsóvia”, em 1949. E, no mesmo ano, já haviam desen-


volvido sua bomba atômica, o que os colocava no mesmo patamar dos EUA.

A DÉTENTE E O RELAXAMENTO DAS TENSÕES

O clímax da Guerra Fria pôde ser estabelecido cronologicamente entre as décadas


de 1950 e 60 e definido como a “corrida armamentista”. Em 1947, os soviéti-
cos desenvolveram o famoso fuzil de assalto AK-47 (batizado com o nome de
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seu projetista, Kalashnikova), a arma mais utilizada no século XX com cerca de


100 milhões de unidades produzidas, e os formidáveis jatos Mig15. Em 1949,
os russos testaram seu primeiro artefato nuclear e, em 1953, já tinham a bomba
de hidrogênio.
O desenvolvimento das armas nucleares ocorreu paralelamente ao nasci-
mento dos modernos mísseis balísticos de longo alcance e até intercontinentais,
além dos submarinos e porta-aviões nucleares. Com isso, estima-se que, no iní-
cio dos anos 1980, os soviéticos tinham mais de vinte mil ogivas nucleares e os
americanos, aproximadamente vinte e seis mil. Esse arsenal seria capaz de des-
truir todo o planeta dezenas de vezes (BERTONHA, 2011b, p. 98-99).
No entanto, a ameaça declarada entre EUA e URSS ocorreu apenas no epi-
sódio dos mísseis em Cuba, em 1962, o qual vamos abordar no próximo tópico.
As duas superpotências sabiam que um ataque seria revidado imediatamente, o
que levaria todos ao extermínio. Após essa crise, houve um “relaxamento” das
tensões, com a criação de uma linha direta entre Moscou e Washington, entre
o presidente americano John Kennedy e o líder soviético Nikita Khrushchov,
em que ambos firmaram acordos para a redução e o controle de armamentos.
Essa fase da Guerra Fria ficou conhecida pela palavra francesa Détente. Ela
foi utilizada pelo presidente francês Charles de Gaulle (1890-1970) para se refe-
rir ao relaxamento, à distensão das tensões entre França e URSS. Pouco depois
o termo foi usado para denominar a aproximação entre os EUA e os soviéticos.
Isso não significa, porém, que essa fase esteve livre de conflitos. Mas ela marca,
novamente, o acirramento por áreas de influência, o que se verifica na guerra
do Vietnã (MUNHOZ; VIEIRA, 2011, p. 136-137).

A Guerra Fria e o Isolamento da URSS


204 UNIDADE V

A Détente caracteriza-se pelo estranho paradoxo: foi ao mesmo tempo um


acordo de cooperação e de acirramento das competições por territórios e zonas de
influência. Ela demonstra, na prática, a efetividade da “Doutrina da Contenção”,
elaborada por George Frost Kennan. Veja que o “pano de fundo” ou o teatro onde
se realizou o “espetáculo quase mortuário” da Guerra Fria realizou-se nos países
do Terceiro Mundo. As regiões periféricas foram as mais afetadas pela compe-
tição e interesses dos EUA e URSS; nessas regiões, a guerra tornou-se quente,
efetivamente. É o que veremos a seguir.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Na região do Oriente Médio, porém, o relaxamento das tensões da Guer-
ra Fria (Détente) não surtiu efeito, pelo contrário, em alguns momentos, a
tensão entre Israel e os países árabes esteve próxima de desencadear uma
guerra em cadeia mundial. Israel foi oficialmente criado em 1948, pela ONU,
como forma de restabelecer os judeus à sua “terra prometida”. A proposta
inicial era dividir a região da Palestina e Jerusalém entre árabes e judeus.
No entanto, as tensões chegaram ao clímax em 1967, levando a uma rápida
guerra entre Israel e uma coalizão do Egito, Síria e Jordânia, apoiados ainda
por Kuwait, Iraque, Arábia Saudita, Argélia e Sudão. Apesar da desvantagem
numérica, a vitória israelense foi notória. Em menos de uma semana, os ju-
deus haviam conquistado toda a Palestina, com mortes de menos de mil
soldados, ao passo que, entre os árabes, as mortes passaram dos 15 mil.
Com a vitória, Israel estabeleceu seu domínio na região, mas ao mesmo
tempo privou os palestinos de seu Estado (Jordânia). Como consequência,
houve a criação de organismos armados, como o Fatah, liderados por Yasser
Arafat e a aproximação dos árabes com a URSS.
Fonte: o autor.

DA GUERRA FRIA AO “FIM DA HISTÓRIA” (1945-2001)


205

Expansão territorial de Israel na Palestina de 1956 a 2000


Israel
Palestina

RAMALÁ RAMALÁ RAMALÁ RAMALÁ

JERUSALÉM JERUSALÉM JERUSALÉM JERUSALÉM

GAZA GAZA GAZA GAZA


Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

PALESTINA ISRAEL

1946 Plano da ONU 1947 1949-1967 2000


Figura 29: Expansão territorial de Israel na Palestina
Fonte: Google

A GUERRA FRIA NO TERCEIRO MUNDO

No decorrer das décadas de 1960 e 1970, a tensão entre Moscou e Washington


foi transferida para as periferias do globo, para o chamado Terceiro Mundo. Esse
processo de expansão americana e soviética ocorre simultaneamente com a dinâ-
mica da “descolonização da África e Ásia” frente às antigas potências europeias,
agora decadentes. O mundo bipolar forçava os países recém-independentes a
unirem-se, direta ou indiretamente, às esferas de influência dos EUA ou URSS.

A Guerra Fria no Terceiro Mundo


206 UNIDADE V

Antes de prosseguir, gostaria de iniciar um parágrafo para falar dos filmes


de espionagem típicos da Guerra Fria. Não se trata de uma discussão estéril, pois
eles nos ajudam a compreender a estética do cinema e da propaganda ociden-
tal. Confesso que sou um fã de carteirinha dos filmes de 007, do agente James
Bond, criado por Ian Fleming. Essa é a franquia de maior sucesso da história
do cinema, já são mais de 50 anos da famosa trilha sonora do agente britânico,
seus carrões, mulheres e inconfundíveis bordões. Apesar de o primeiro James
Bond ter sido interpretado pelo mestre Sean Connery, um olhar atento revela um
espião fantasioso, superficial e, muitas vezes, entediante. Essa postura piora com

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Roger Moore, o Bond dos anos 1980, e com Pierce Brosnan, nos anos 1990, que
pareciam agentes de férias. Com Daniel Craig, o atual 007, o agente passa a ser
mais humano e realista, mais verossímil com a realidade. Mas, ainda assim, tra-
ta-se de uma série fantasiosa e talvez por isso mesmo tenha feito tanto sucesso.
Se você quer assistir a algo realista, recomendo “Munique”, do diretor Steven
Spilberg, que aborda a atuação do temido serviço secreto israelense, o Mossad.
A atuação do agente James Bond pelo MI6 (Serviço Secreto Britânico) leva
o próprio espectador a fazer parte da Guerra Fria. Veja bem que 007 não é ame-
ricano nem soviético. É certo que as maiores agências de inteligência e contra
espionagem foram a CIA e a KGB (americana e soviética, respectivamente). Essa
“imparcialidade” proposital induz o telespectador a tomar partido “inconscien-
temente”. Ao ver James Bond vencer metade da Spectre (representação da KGB)
sem derramar uma gota de suor, saindo com as mulheres mais belas, nos melhores
carros; ora, trata-se de uma propaganda capitalista deliberada. Processo seme-
lhante ocorre com o soldado Rambo, que vence metade do exército soviético no
Afeganistão com armas brancas.
Ademais, os dois primeiros filmes de 007 na década de 1960 abordam o pro-
blema das armas nucleares (“007 contra o satânico dr. No” e “Moscou contra
007”); na minha modesta opinião,são os melhores filmes de toda a série, ao lado
de “Cassino Royale”, de 2006. O que quero dizer é que o filme vende um estilo
de vida e demonstra a eficácia da propaganda cinematográfica de Hollywood.
Indiretamente, ele leva a população do terceiro mundo para dentro da Guerra
Fria, a tomar partido. Essa “estética da Guerra Fria” teve surpreendentes resul-
tados nas áreas descolonizadas e que não foram beneficiadas pelas políticas do

DA GUERRA FRIA AO “FIM DA HISTÓRIA” (1945-2001)


207

Plano Marshall, restrito à Europa e Japão. Não houve política econômica dos
EUA para o Terceiro Mundo, à exceção da insignificante “Aliança para o pro-
gresso”, de John Kennedy, que ocorreu justamente após a queda de Cuba para o
lado comunista, em 1959. A meu ver, houve uma espécie de colonização estética,
visual, onde o poder de consumo era precário nos países periféricos, consumia-
-se imagens, ilusões do “american way of life”, o estilo de vida americano.
Falar em welfare-state, o Estado de bem-estar social dos anos 1950-60, equi-
vale a situar a discussão nos EUA, Europa e Japão. A URSS também gozava de
pleno emprego e situação econômica favorável no pós-guerra. Todavia, o ter-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

ceiro mundo viu-se relegado; justamente o local onde as “trincheiras” da Guerra


Fria foram estabelecidas. Isso fica claro na Ásia com a Guerra da Coreia, Vietnã
e Afeganistão; na África, com suas guerras civis; na América Latina, com seus
ditadores de fantoche (SCHOULTZ, 2000, p. 369).
Na década de 1950, a situação do continente asiático era particularmente
delicada. A Grã-Bretanha já não conseguia sustentar seu antigo império colonial,
na Índia e em zonas estratégicas da China. A França ainda insistia na domina-
ção da região da Indochina, mas sem força militar suficiente. Os EUA focaram
sua atenção e recursos na reconstrução do Japão. Esse cenário pode ser resumido
na ideia de “vácuo de poder”,o que permitia à URSS aumentar sua influência e
prestígio na região.
O congresso de Ialta, de 1945, já estabelecia como direitos da União Soviética
recuperar os antigos territórios perdidos para o Japão em 1905 e expandir sua
esfera até a Mongólia e Manchúria. Com isso, Stalin estabeleceu relações amis-
tosas com os comunistas chineses liderados por Mao Tsé-Tung, empenhados
na guerra civil contra Chiang Kai-Shek. Mas, quando Mao venceu Kai-Chek e
o obrigou a refugiar-se na ilha de Formosa, atual Taiwan, os EUA temeram que
o comunismo se espalhasse por todo o continente. Posteriormente, Mao Tsé-
Tung rompeu com a centralização do Kremlin, moldando seu projeto político à
cultura chinesa e não à soviética. Ainda assim o comunismo era encarado pelos
americanos em franca expansão, o que daria ainda mais prestígio para a “dou-
trina da contenção” de Georg Frost Kennan.

A Guerra Fria no Terceiro Mundo


208 UNIDADE V

O caso da Coreia ilustra bem a dinâmica da Guerra Fria. Após a Segunda


Guerra, o país foi ocupado e divido por EUA, ao sul, e URSS, ao norte; separa-
dos pelo Paralelo 38, divisão que permanece até os dias atuais. Teoricamente, a
divisão terminaria após a eleição interna, mas a ONU fracassou na unificação do
país, e a ocupação tornou-se efetivamente controle. A União Soviética investiu
na reconstrução da Coreia do Norte e na reestruturação de suas forças armadas.
Os EUA não acreditavam em uma invasão por parte dos norte-coreanos, mas
ela ocorreu em junho de 1950, quando tropas do norte cruzaram em massa o
Paralelo 38, invadindo a Coreia do Sul (LEUCHTENBURG, 2008).

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
CHINA

Intervenção chinesa
outubro 1950
Antung

Pyongyang CORÉIA
DO NORTE
Panmunjom
Seul
Avanço norte-coreano
15/9/1950
Avanço máximo da ONU
24/11/1950
CORÉIA
Avanço máximo das tropas
chinesas e norte-coreanas
DO SUL Taegu
25/1/1951
Linha do armistício
27/7/1953
Intervenção norte-americana

Figura 30: Divisão da Coreia durante a Guerra Fria


Fonte: Franco e Andrade (1993, p. 56).

DA GUERRA FRIA AO “FIM DA HISTÓRIA” (1945-2001)


209

Não existem provas suficientes para afirmar que a invasão da Coreia do Sul foi
arquitetada diretamente por Moscou e Stalin. Mas também é pouco provável
que tenha se tratado de uma invasão espontânea e autônoma dos norte-core-
anos, tendo em vista a centralização do Partido Comunista, em que todas as
decisões vinham de cima. Nesse sentido, é lícito supor que os soviéticos viam o
leste asiático como sua zona de influência, assim como o leste europeu, supondo
que os americanos não reagiriam ao ataque. Não foi o que Truman pensou. Em
um discurso que se tornou célebre durante os anos de Guerra Fria, o presidente
americano afirmou que onde os fortes atacaram os fracos, como na Manchúria,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Etiópia e Áustria [por Japão, Itália e Alemanha, respectivamente] e as democra-


cias se abstiveram a agir, “essa omissão encorajou os agressores a prosseguirem”
(apud LEUCHTENBURG, 2008, p.623).
O pensamento lógico de Truman, moldado pela “Doutrina da Contenção”,
era que, se permitissem a queda da Coreia do Sul, os comunistas sentir-se-iam
livres para dominar regiões mais próximas e assim sucessivamente. Tal lógica
moldou a política mundial durante a segunda metade do século XX, isto é, onde
existisse o mínimo foco de expansão soviética ou mesmo comunista, os EUA
interviriam energicamente. Em alguns casos, porém, os invasores não foram os
russos, e sim os próprios americanos, levando a URSS ao contra-ataque.
Seguindo essa premissa, Truman ordenou ao general MacArthur, então
comandante das forças americanas na Ásia, que mobilizasse as tropas para atacar
os norte-coreanos, sem levar em conta a possibilidade de resistência do exército
chinês comunista e da própria URSS. As tensões chegaram ao nível extremo de
se pensar no uso de armas nucleares, mas, nesse momento, Truman mostrou-se
comedido, apesar da derrota humilhante de MacArthur. Até 1953, os impasses
pareciam desencadear uma guerra em cadeia na Ásia, mas a morte de Stalin no
mesmo ano contribuiu para acalmar os ânimos e assegurar um armistício com
as Coreias divididas, sem ganhos territoriais ou anexações para nenhum dos
lados. Porém, não houve qualquer conferência de paz, o que, na prática, signi-
fica que Coreia do Norte e do Sul estão em guerra até hoje.

A Guerra Fria no Terceiro Mundo


210 UNIDADE V

Figura 31: Uma das imagens mais emblemáticas e reproduzidas no século XX. Vítimas de um ataque americano com Napalm
(bomba incendiária). Ao centro, a menina Kim Phuc, com as roupas e a pele devastadas pelo Napalm.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O virtual equilíbrio das superpotências na Guerra Fria ficou evidente em 1955,
no episódio do ataque conjunto de Israel, França e Inglaterra ao Egito de Gamal
Abdel Nasser. Washington reagiu atônito ao ataque desmedido, temendo que
isso servisse de pretexto para os países da África e Oriente Médio aliarem-se
a Moscou. O governo do Kremlin também hesitou em intervir, pois a política
externa de Nikita Kruchev era mais comedida que a de Stalin, embora tenha inva-
dido a Hungria em 1956. Mas frente à ascensão da União Soviética no Oriente
Médio, o presidente americano Eisenhower (1953-1961) endossou a promessa
de assistência a qualquer país que fosse ameaçado de agressão comunista. Em
1955, aprovou 200 milhões de dólares aos regimes amigos no Oriente Médio.
Onde não havia a possibilidade de “auxiliar os regimes amigos”, os EUA entra-
ram com o “auxílio” militar. Foi o que ocorreu na Indochina (Laos, Camboja e
Vietnã), uma região estratégica no sudeste da China, controlada pela França depois
da Segunda Guerra Mundial, mas com um histórico de ferrenha luta nacionalista
anticolonial. Ho Chi Minh tornou-se o principal líder da resistência, com forte
teor comunista. Após sucessivas e humilhantes derrotas, o exército francês ren-
deu-se em 1954, o que acendeu o alerta em Washington. Em uma conferência
de paz em Genebra, em 1955, ficou decidido que Laos e Camboja seriam neu-
tralizados; Ho Chi Minh ficaria com a parte norte do Vietnã e os franceses com
o sul, até que fossem realizadas eleições. Em suma, o caso do Vietnã seguiu a
lógica de Alemanha e Coreia, divididas pelas superpotências. Quando a França
saiu do Vietnã do Sul, os Estados Unidos entraram.

DA GUERRA FRIA AO “FIM DA HISTÓRIA” (1945-2001)


211

O presidente americano Eisenhower temia a ascensão comunista na Ásia.


Segundo sua “teoria do dominó”, se qualquer país do sudeste asiático caísse, os
outros logo o seguiriam. A luta entre norte e sul persistiu por toda a década
de 1960, com sucessivas vitórias da Frente de Libertação Nacional, também
conhecidos popularmente como Vietcong. Agindo com táticas de guerrilha, os
vietnamitas impuseram derrotas até ao exército americano, que, em 1965, com
o presidente Lyndon Johnson, desembarcou uma grande quantidade de tropas,
ocupando diretamente o Vietnã do Sul até 1973. Estima-se que a cada dez sol-
dados vietnamitas mortos correspondia a um norte-americano. Ainda assim, a
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

resistência aos invasores foi ferrenha, levando a opinião pública americana a se


posicionar contra a guerra.

CHINA
VIETNÃ
DO NORTE

Golfo de
Tonkin
LAOS Vinh

TAILÂNDIA

CAMBOJA VIETNÃ
DO SUL
Rota de Ho Chi Minh
Áreas controladas pela Saigon
Frente de Libertação Nacional
Áreas controladas pelo
governo de Saigon
Áreas contestadas
7ª esquadra
norte-americana (1964)

Figura 32: Guerra do Vietnã


Fonte: Franco e Andrade (1993, p. 56).

A Guerra Fria no Terceiro Mundo


212 UNIDADE V

Com a retirada dos americanos do território vietnamita em 1973, a guerra civil


persistiu por mais dois anos, quando, em 1975, o Vietnã do Norte conseguiu
invadir Saigon, capital do Sul, prevalecendo assim o regime comunista em todo
o país. Essa talvez tenha sido a pior derrota americana em todo o século XX.
Apesar de usar armas de guerra inovadoras, tecnologia imensamente superior,
bombas de napalm, os americanos sucumbiram frente às táticas de guerrilha
dos vietnamitas. A fotografia da menina vietnamita Kim Phuc correndo com as
roupas e a pele queimadas pelas bombas incendiárias de napalm tornou-se uma
das imagens mais emblemáticas da Guerra Fria.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A GUERRA FRIA NA AMÉRICA LATINA

A atuação da política externa dos EUA com o continente americano é histo-


ricamente bastante diferente daquela empregada na reconstrução da Europa
e Japão. A impressão é que imaginavam que a proximidade com o gigante do
norte inibiria qualquer aproximação com a URSS. Mesmo com a criação da
OEA (Organização dos Estados Americanos) em 1948, os Estados Unidos fica-
ram muito aquém de prestar assistência e cooperação mútua, como fizeram com
o Plano Marshall para a Europa.
Prevalecia ainda a antiga Doutrina Monroe (de 1823), isto é, a restrição do
continente americano aos americanos, diga-se, estadunidenses, em que a “diplo-
macia do dólar” e do suborno não funcionava. Entrava em cena a política do
“big stick” [grande porrete], descrita pelo beligerante Theodore Roosevelt, no
limiar dos anos 1900. Essa relação, no mínimo ambivalente, foi alterada somente
quando um grupo de jovens revolucionários conseguiu depor o governo cor-
rupto e autoritário de Fulgêncio Batista, em Cuba, no ano de 1959. Logo após a
vitória de Fidel Castro e sua aproximação com Moscou, houve a implementa-
ção do regime comunista na ilha (SCHOULTZ, 2000).

DA GUERRA FRIA AO “FIM DA HISTÓRIA” (1945-2001)


213

Fato que aumentou as ten-


sões entre as superpotências,
pois, em 1957, a União Soviética
colocou em órbita o primeiro saté-
lite artificial da terra, o Sputnik I.
Isso dava a impressão de que os
comunistas estavam à frente na
corrida armamentista e tecno-
lógica. Para completar a ruptura
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

total, em 1960, os russos abate-


ram um avião espião americano
em pleno solo soviético, o famoso
U-2. O U-2 veio a ser o nome de
uma das mais famosas e influen-
tes bandas de Rock atual, liderada
pelo vocalista Bono Vox.
Essa conjuntura sombria coin-
cidiu positivamente com a eleição
de John Kennedy e a mudança de
postura em relação à América Figura 33: Famosa fotografia de Alberto Korda, de Che Guevara,
uma das imagens mais reproduzidas do século XX.
Latina. Kennedy corroborou com
a política de assistência em massa
para o continente, um corolário do Plano Marshall para a América, a Aliança
para o Progresso. A crise dos mísseis em Cuba, no ano de 1962, demonstra a
serenidade de Kennedy, pois por alguns dias o mundo esteve próximo de uma
guerra nuclear. Mas sua atuação equilibrada, bloqueando a ilha e negociando
diretamente com Nikita Kruchev, manteve o virtual e frágil equilíbrio da Guerra
Fria intacto.

A Guerra Fria na América Latina


214 UNIDADE V

Não obstante, o assassinato de Kennedy em 22 de novembro de 1963 e a


ascensão dos partidos de esquerda na América Latina levaram novamente ao
retrocesso. Nas décadas de 1960 e 70, as democracias latino-americanas caíram
como um castelo de cartas. Apenas atualmente se tem certeza da participação
estadunidense na sequência dos golpes militares na América Latina (Brasil, 1964;
Chile, 1973; Argentina, 1976), com a liberação da documentação oficial daquele
período. O projeto Opening the Archives (Abrindo os arquivos), coordenado no
Brasil pelo professor Sidnei Munhoz (Uem) em parceria com a Brown University,
tem feito pesquisas nesse sentido.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A Revolução Cubana de 1959 foi apenas o reflexo de meio século de ditadu-
ra e exploração da ilha. Cuba tornou-se “independente” da Espanha depois
que os EUA venceram os espanhóis em 1898, retirando dos castelhanos sua
“última joia”, como se referiam a Cuba, além de Porto Rico e das Filipinas,
no Pacífico. Após a vitória, os americanos chegaram a cogitar a hipótese de
anexar Cuba como mais um Estado da Federação. Isso não ocorreu diante
das teses racistas dos políticos estadunidenses, relutantes em aceitar uma
população eminentemente negra, e pelo fato de Cuba produzir grande
quantidade de cana de açúcar, o que levaria a uma competição interna com
os produtores de açúcar de beterraba, no sul dos EUA. Mas diante de um
grande debate no Congresso, os americanos preferiram apenas elevar Cuba
ao status de protetorado dos EUA. Na prática, a ilha tornava-se politicamen-
te “independente”, mas dependente economicamente.
Esse cenário persistiu por toda a primeira metade do século XX, em que o
desemprego ultrapassava os 20% na ditadura de Batista. Foi quando um
grupo de jovens revolucionários liderados por Fidel Castro e Ernesto Gueva-
ra de la Serna (Che Guevara) conquistou o apoio da população até a deposi-
ção do ditador Fulgencio Batista.
Fonte: Schoultz (2000).

DA GUERRA FRIA AO “FIM DA HISTÓRIA” (1945-2001)


215
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Figura 34: Ao centro, Ernesto “Che” Guevara, ao lado de Fidel Castro

GLOBALIZAÇÃO, DESCOLONIZAÇÃO E
NEOLIBERALISMO

Acredito que você compreendeu a dinâmica e o foco do nosso conteúdo nesta


quinta unidade, isto é, entender a Guerra Fria como o macro tema que per-
meou toda a segunda metade do século XX. A partir da análise macroscópica
(um grande tema) é que se apreendem os demais assuntos relevantes do perí-
odo (microtemas). Eric Hobsbawm (1998) afirma que não há nada de novo ou
errado em ver o mundo por meio do microscópio da história, em vez do teles-
cópio. No entanto, essa referência à Micro-história (Carlo Ginzburg, Giovanni
Levi) é pouco didática, em se tratando de um evento de longa duração como a
Guerra Fria. Por isso este terceiro tópico tem como objetivo fazer uma ponte
entre as grandes políticas de contenção ou isolamento da URSS por parte dos
EUA e sua efetividade econômica e cultural. Penso que são conteúdos relevan-
tes para se compreender o quarto tópico da unidade, sobre a queda do Muro de
Berlim, a falência do bloco soviético e o fim do socialismo real.

Globalização, Descolonização e Neoliberalismo


216 UNIDADE V

Nesse sentido, é preciso analisar o processo de globalização e o neoliberalismo


como formas efetivas e articuladas do capitalismo frente ao modelo socialista
na URSS. Segundo alguns autores especialistas em globalização, trata-se de um
“processo histórico de dominação econômica e expansão planetária do capita-
lismo” (GONZALES, 1995, p. 84). O fenômeno da globalização abarca muito
mais que a ideia simplista de uma rede mundial de serviços e trocas comerciais
interligadas. Fala-se também, grosseiramente, em “aldeia global” ou, por alguns
estudiosos, “Mcdonaldização” cultural, em referência à rede de fast food de ham-
búrgueres americana que se expande por todo o mundo.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
São termos que nos ajudam a pensar o conceito de globalização, mas, rela-
cionada à dinâmica da Guerra Fria, essa denominação pode ser ainda mais
expandida. Trata-se, sobretudo, de um processo de ocidentalização da cultura,
de construir uma sociedade homogênea que não permite diversidade cultural.
As culturas diferentes tendem a ser vistas como algo exótico, fora da sociedade,
mero folclore. A globalização pressupõe, assim, um modelo único de cultura,
de agir, de visão de mundo, de economia e de política.
Mas qual a relação da globalização com a Guerra Fria? Essa é a grande ques-
tão a ser pensada nesse tópico. Vimos anteriormente que a divisão bipolar do
mundo entre as duas superpotências moldou a disputa por áreas de influência
na segunda metade do século XX. Se as armas nucleares não permitiam a con-
quista formal do inimigo, o que levaria à destruição mútua de toda a espécie
humana, a forma mais eficaz de controle e persuasão é naturalmente a domi-
nação cultural. Há dois conceitos desenvolvidos pelo professor Fábio Bertonha
que permitem elucidar essa questão. Esse pesquisador da Era Contemporânea
nos ensina que não existe apenas a forma de dominação militar, bruta, autori-
tária (o que ele chama de Hard Power, ou poder forte). Há outros elementos tão
ou mais eficientes que o controle militar, como a dominação simbólica ou cul-
tural (que ele denomina de Soft Power, ou poder leve).
A tese de Fábio Bertonha (2011) faz todo sentido se pensarmos que nem
mesmo o Império Romano dominou todas as suas colônias exclusivamente com
o poderio militar. Havia um acordo tácito de proteção e cooperação entre as elites
de dominantes e dominados para evitar as guerras. Processo semelhante ocor-
reu durante a Guerra Fria, uma vez que EUA e URSS formaram, na perspectiva

DA GUERRA FRIA AO “FIM DA HISTÓRIA” (1945-2001)


217

de Bertonha e Sidnei Munhoz (2009), “verdadeiros Impérios na modernidade”.


O orçamento militar no auge das tensões da Guerra Fria entre tais potências
chegou a 100 bilhões de dólares por ano. É o que afirmam as estatísticas do his-
toriador Paul Kennedy (1989, p. 377).
No entanto o bloqueio econômico e territorial e a hegemonia cultural con-
tribuíram para isolar a URSS. Fora do bloco soviético, os comunistas só podiam
contar com Cuba, Angola, Etiópia, Egito, Vietnã e outros pequenos territórios.
Os EUA, em contrapartida, ocuparam, direta ou indiretamente, todos os países
que haviam se tornado independentes, no processo que ficou conhecido como
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

“descolonização” da África e Ásia; descolonização política, mas novamente colo-


nizados culturalmente. Situação que melhorou com a aproximação americana
da China, na década de 1970, o que significou o isolamento formal da URSS.
Tais considerações são importantes para entender que a União Soviética teve
que enfrentar uma situação geopolítica desfavorável: o isolamento geográfico,
militar e cultural. O processo de “ocidentalização” do planeta contribuiu para
construir um conceito de cultura homogêneo e global pró-americano. Resumindo
em uma ideia-chave, pode-se dizer que o Ocidente trocou Dostoievsky pelo
Mickey Mouse, de Disney.

O NEOLIBERALISMO

A razão para abordarmos o neoliberalismo neste tópico é simples, trata-se do


modelo econômico predominante no último quarto do século XX e imprescin-
dível para se compreender a dinâmica política desse período, com impacto em
todo o mundo, o que leva o neoliberalismo a estar diretamente relacionado com
a globalização, como seu fundamento ideológico e econômico. A título de intro-
dução, convém ressaltar que neoliberalismo atual (note-se o prefixo “neo”, novo)
difere-se bastante do Liberalismo econômico clássico que estudamos na pri-
meira unidade. Ainda que a inspiração venha dos mestres Adam Smith e David
Ricardo, trata-se de uma releitura muito mais radical da ideia de liberalismo.

Globalização, Descolonização e Neoliberalismo


218 UNIDADE V

O liberalismo clássico é associado ao conceito de “Laissez-faire”, que pode


ser traduzido como “deixe fazer”, “deixe passar”, denotando a liberdade e a flui-
dez do comércio sem as barreiras alfandegárias e/ou protecionistas do Estado e
seus mecanismos de regulamentação. Nos seus primórdios, o liberalismo tinha
como adversários o Estado e a Igreja. O neoliberalismo moderno, por outro lado,
se opõe ao modelo econômico predominante no pós-guerra, o keynesianismo,
ou o Estado de bem-estar social (Welfare state).
Sua origem está diretamente associada à publicação do livro de Friedrich
Hayek, escrito em 1944 e intitulado O caminho da servidão (The Road to

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Serfdom). O alvo direto do fundador do neoliberalismo era o Partido Trabalhista
Inglês, mas, indiretamente, visava atingir as teses do modelo keynesiano de eco-
nomia, ou seja, o Estado de bem-estar social na Europa e o New Deal nos EUA.
O modelo descrito por Keynes se sobressaiu no pós-guerra, com o Estado pater-
nalista, pleno emprego e condições razoáveis de igualdade entre os trabalhadores,
além de um movimento sindical forte e articulado politicamente.
A tese central de Hayek, em O caminho da servidão, é que o Estado inter-
vencionista limita as ações individuais dos cidadãos. Isso levaria, indiretamente,
a uma servidão moderna, como ocorrera na Alemanha de Hitler. Desafiando o
consenso oficial da época, Hayek argumentava que a desigualdade era um valor
positivo – na realidade, imprescindível em si –, pois disso precisavam as socieda-
des ocidentais. Nesse sentido, a igualdade promovida pelo Estado de bem-estar
destruía a liberdade dos cidadãos e a vitalidade da concorrência, da qual depen-
dia a prosperidade de todos (ANDERSON, 1995).
Naquele momento (1944-45), as teses de Hayek não faziam muito sentido,
eram, na verdade, um contrassenso. A Europa e o Japão encontravam-se devasta-
dos e a reconstrução caberia ao Estado, financiado pelas políticas econômicas do
Plano Marshall; apenas em alguns pontos específicos a iniciativa privada poderia
contribuir. Além do mais, havia o socialismo como parâmetro para uma igual-
dade de fato, o que inibia e balizava as ações predatórias dos capitalistas. Nesse
sentido, pode-se dizer que a classe trabalhadora vivenciou uma era de ouro nos
anos de 1950-60, com o desenvolvimento pleno do capitalismo no pós-guerra.
Por essa razão, não pareciam muito verossímeis os avisos neoliberais dos
perigos que representavam qualquer regulação do mercado por parte do Estado.

DA GUERRA FRIA AO “FIM DA HISTÓRIA” (1945-2001)


219

Conhecendo essa desvantagem, Hayek reuniu um seleto grupo de economistas que


compartilhavam sua orientação ideológica para uma reunião na pequena cidade
de Mont Pèlerin, na Suíça. Em 1947, reuniram-se Milton Friedman, Karl Popper,
Lionel Robbins, Ludwig Von Mises, Walter Eupken, Walter Lipman, Michael
Polanyi, Salvador de Madariaga, entre outros. Fundou-se assim a Sociedade de
MontPèlerin, “uma espécie de franco-maçonaria neoliberal, altamente dedicada e
organizada, com reuniões internacionais a cada dois anos” (ANDERSON, 1995).
Todavia, com as crises de 1973, influenciadas pela alta do petróleo, o mundo
ameaçou entrar em recessão, combinando baixas taxas de crescimento com altas
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

taxas de inflação. Isso favoreceu as teses neoliberais, que ficaram no esquecimento


durante vinte anos, mas ressurgiram fortalecidas na década de 1970. Para Hayek,
Mises, Milton Friedman, as raízes da crise estavam localizadas “no poder exces-
sivo e nefasto dos sindicatos” e, de maneira mais geral, no movimento operário,
que havia corroído as bases de acumulação capitalista com “suas pressões rei-
vindicativas sobre os salários e com sua pressão parasitária para que o Estado
aumentasse cada vez mais os gastos sociais” (ANDERSON, 1995).
A solução neoliberal seria elevar o desemprego aos níveis “aceitáveis”, o arro-
cho salarial, a estabilidade monetária mediante a disciplina orçamentária com
corte de gastos com políticas sociais, reformas fiscais para incentivar a iniciativa
privada, enfim, a desestatização da economia, seguir a rígida cartilha neolibe-
ral. Tais ideias ganharam sustentação prática e efetiva na década de 1980, com
a eleição de Margareth Thatcher, na Inglaterra, e Ronald Reagan, nos Estados
Unidos. A prioridade de Thatcher foi o projeto de privatizações, levado à exaus-
tão na Inglaterra e influenciando países distantes como a Nova Zelândia, onde
quase nada sobrou das empresas estatais. Nos EUA, contudo, Reagan extrapo-
lou a disciplina orçamentária na competição com a URSS.
Mas a alta inflação, um problema crônico da década de 1980, praticamente
forçou os países relutantes ao neoliberalismo a aderirem suas teses. O neolibe-
ralismo havia começado
tomando a social-democracia como sua inimiga central, em países
de capitalismo avançado, provocando uma hostilidade recíproca por
parte da social-democracia. Depois, os governos social-democratas se
mostraram os mais resolutos em aplicar políticas neoliberais (ANDER-
SON, 1995, p. 35).

Globalização, Descolonização e Neoliberalismo


220 UNIDADE V

Isso fica claro no exemplo da França, que demorou a seguir o exemplo da vizi-
nha Inglaterra. Contudo, em meados da década de 1980, os níveis de desemprego
eram maiores na França socialista moderada, que na Inglaterra conservadora e
neoliberal, como Thatcher se gabava em repetir.
Na América Latina, a experiência chilena sob a ditadura de Augusto Pinochet
[1973-1990] tornou-se pioneira na aplicação dos princípios neoliberais. No Chile,
porém, a influência para as reformas veio da Escola de Chicago, encabeçada por
Milton Friedman, antigo participante da sociedade de Mont Pèlerin e também
adepto das teses de Hayek e da Escola Austríaca de economia.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Outro fator econômico foi muito mais eficaz para a aplicação das políticas
neoliberais na América do Sul que a ditadura: a hiperinflação. Brasil, Argentina,
Peru, Bolívia, quase todos os países da região sofreram com esse problema crônico
durante as décadas de 1980 e 1990. Diante desse caos econômico e desvalorização
contínua da moeda, o neoliberalismo entrou como uma “medicina deflacionária
drástica”, um remédio com graves efeitos colaterais (desemprego, desigualdade,
pobreza), mas a única solução conhecida naquele momento.
Para conter a hiperinflação, as medidas neoliberais mostraram-se eficazes,
o “paciente” estaria curado de um de seus males, mas irremediavelmente doente
pelos efeitos colaterais da medida econômica. As taxas de crescimento dos anos
1990 não foram maiores que as anteriores, mas politicamente o neoliberalismo
triunfou como movimento ideológico em escala verdadeiramente mundial,
como o capitalismo jamais havia produzido no passado. “Trata-se de um corpo
de doutrina coerente, autoconsciente, militante, lucidamente decidido a trans-
formar todo o mundo à sua imagem, em sua ambição estrutural e sua extensão
internacional”, conclui Perry Anderson (1995, p. 38).

DA GUERRA FRIA AO “FIM DA HISTÓRIA” (1945-2001)


221

A crítica que se pode fazer ao modelo neoliberal não é necessariamente à sua


ênfase nas privatizações, desemprego e desigualdade, isso permeia o próprio sis-
tema capitalista em geral. E no modelo econômico após a queda do socialismo
na União Soviética, um Estado intervencionista mostra-se quixotesco e ana-
crônico. No entanto alguns valores universais, tais como a educação e a saúde,
não podem ser abordados meramente como valor de mercadoria, como propõe
o neoliberalismo exacerbado. Os pilares do ensino público foram construídos
com a Revolução Francesa, em que os Estados investiram na formação de seus
cidadãos, Estados esses que são os mais desenvolvidos no mundo atual. Mas,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

atualmente, o que vemos é um processo inverso, em que o Estado não tem fun-
ção de investir no indivíduo. Uma tese contraditória em si.

Na unidade III, referente à Revolução Russa, você estudou o modelo eco-


nômico socialista; na unidade IV, sobre a crise de 1929, conheceu o keyne-
sianismo; agora, o neoliberalismo. Reflita sobre a diferença das três escolas
econômicas e sua efetividade prática na atualidade.
Fonte: o autor.

Globalização, Descolonização e Neoliberalismo


222 UNIDADE V

A QUEDA DO MURO DE BERLIM E O FIM DO


SOCIALISMO REAL

Como vimos, diversos fatores contribuíram para acelerar a decadência do bloco


soviético e forçar a derrocada do precoce modelo socialista de economia e ide-
ologia. Antes de tudo, convém ressaltar que alguns autores discordam de que o
socialismo realmente existiu na URSS, o socialismo tal como postulado por Karl
Marx, como um estágio anterior ao Comunismo, onde não haveria mais classes
sociais nem necessidade do Estado ou do Exército. De fato, o socialismo inicial

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
da Revolução Russa degenerou-se na burocracia estatal de Stalin, o que foi con-
vertido em autoritarismo. Há indícios de que o socialismo na antiga Iugoslávia
foi mais democrático que o modelo soviético.
No entanto, em se tratando de termos conceituais, não há como divergir de
que a União Soviética tentou construir um regime socialista, ela falhou na ten-
tativa de chegar ao comunismo, por diversos fatores, entre eles a concorrência
desenfreada com o capitalismo ocidental. O ideário do neoliberalismo havia sem-
pre incluído, como componente central, o anticomunismo mais intransigente de
todas as correntes capitalistas do pós-guerra. Portanto, compreender os motivos
da queda da URSS requer o conhecimento prévio de toda a Guerra Fria, da glo-
balização e do neoliberalismo. São temas que em conjunto formaram um “tipo
ideal” de contenção comunista.
Já no final da década de 1970, a economia soviética dava sinais de ligeira
diminuição de ritmo. Daí em diante a taxa de crescimento caiu constantemente,
incluindo o Produto Interno Bruto (PIB), a produção industrial, agrícola e a
renda per capta. Mesmo o índice de expectativa de vida era menor na URSS
que em países da Europa, EUA e Cuba. Como Eric Hobsbawm (1995, p. 248)
notou com perspicácia, “o paradoxo da Guerra Fria é que o que derrotou e aca-
bou despedaçando a URSS não foi o confronto, mas a détente”. Estranhamente,
o bloco soviético começou a declinar no mesmo momento em que as tensões
com o Tio Sam diminuíam.
O período do governo de Leonid Brejnev [1964-1982] marca tanto a Idade
de Ouro dos soviéticos quanto o início da decadência. Brejnev, sucessor de Nikita
Kruchev, ficou marcado como uma combinação de incompetência e corrupção,

DA GUERRA FRIA AO “FIM DA HISTÓRIA” (1945-2001)


223

tornada mais evidente que a URSS operava basicamente por um sistema de patro-
nato, nepotismo e suborno. No início da década de 1980, a Europa Oriental se
encontrava em uma aguda crise de energia. Isso produziu a escassez de alimen-
tos e bens manufaturados (HOBSBAWM, 1995, p. 459).
Para completar a crise, os russos insistiram na intervenção armada no
Afeganistão, ocupado em 1989. Segundo alguns analistas, houve a montagem,
uma estratégia forçando o expansionismo soviético em uma região inóspita e
com histórico de ferrenha resistência. Quando os russos cruzaram as fronteiras
do Afeganistão, um político americano influente afirmou com notoriedade: “eles
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

entraram, nós demos um Vietnã a eles” (apud BERTONHA, 2011b, p. 148). A


analogia é célebre, pois resume com perfeição a desastrosa política dos EUA no
Vietnã, uma guerra que nem mesmo os americanos poderiam vencer, em com-
paração com o “Vietnã” soviético no Afeganistão.
Como previsto, a intervenção foi um fracasso militar e econômico. No
entanto, internamente as condições sociais de vida dos habitantes eram razo-
avelmente boas, no mínimo melhores que nos países de terceiro mundo. Por
isso não havia pressão popular para mudanças. Mas com o governo de Mikhail
Gorbachev, houve a tentativa de reforma do sistema socialista, uma reforma
interna que se mostrou desastrosa e em muito contribuiu para a desagregação
da União Soviética. É o que veremos a seguir.

GLASNOST, PERESTROICA E A QUEDA DO MURO DE BERLIM

“Estagnação” é a palavra que define a economia soviética na década de 1980.


Diversos fatores contribuíram para essa desaceleração, entre eles, estão: a buro-
cracia do Estado, o centralismo operacional, o desequilíbrio entre a indústria e
o campo, com sucessivas crises de abastecimento e a desastrosa campanha no
Afeganistão. Especialmente a chamada Terceira Revolução Industrial (Revolução
tecnológica na informática) foi praticamente nula na URSS, pois era incompatí-
vel com a estrutura vertical e autoritária do modelo socialista.

A Queda do Muro de Berlim e o Fim do Socialismo Real


224 UNIDADE V

Como avaliam os especialistas nessa temática (Hobsbawm, Gorender,


Bertonha), a economia socialista na União Soviética funcionou muito bem
quando se tratava de produzir bens de qualidade predeterminados pelo plane-
jamento central (como armas, energia, até tecnologia aeroespacial), mas no que
se trata de inovação de bens de consumo e informática, os métodos de produ-
ção central mostravam-se pouco eficientes. Com isso, aos poucos, a URSS foi
perdendo terreno na corrida econômica dos anos 1980, frente aos japoneses, ale-
mães e, sobretudo, estadunidenses.
Para recapitular, os soviéticos foram pioneiros em tecnologia espacial, os

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
primeiros a colocar um satélite na órbita da Terra e a enviar uma nave tripulada
para o espaço. Porém essa tecnologia ficou restrita à centralização do Estado, não
houve a expansão desse pioneirismo em escala populacional, para o mercado
interno, o que tornou a URSS praticamente inoperante na revolução tecnoló-
gica da informática, robótica e biotecnologia.
Dentro dessa paralisação, imobilitismo, estagnação da economia, diversos
debates foram travados no interior do Partido Comunista para tentar recupe-
rar a pujança dos velhos tempos. Das alternativas, a primeira seria fortalecer
ainda mais o aparato do Estado sobre a população, como nos tempos de Stalin; a
segunda opção seria reformar o sistema a partir de dentro. A segunda alternativa
sagrou-se vitoriosa com a ascensão de Mikhail Gorbachev ao poder, em 1985.
Gorbachev não pretendia eliminar o socialismo como modelo econômico
predominante da URSS, pois havia uma sólida tradição comunista desde os tem-
pos de Lênin que impedia sua supressão. O objetivo claro era a reforma política e
econômica para dar dinamismo ao sistema. Dessa forma, Gorbachev lançou sua
campanha para transformar o socialismo soviético com os slogans Perestroica
(reestruturação da economia política) e Glasnost (transparência ou liberdade de
informação). A Glasnost tinha objetivos meramente publicitários, visando apro-
ximar o povo do Partido e dar a este uma nova legitimidade. Assim, a censura foi
abolida e a liberdade de expressão incentivada, além de certa autonomia local e
descentralizada. Com a Perestroica, procurou-se descentralizar o planejamento
econômico, estimulando a iniciativa individual dos camponeses e operários.
Como escreve Fábio Bertonha (2011b, p. 110),

DA GUERRA FRIA AO “FIM DA HISTÓRIA” (1945-2001)


225

A ideia, com esses mecanismos, era manter o predomínio do Partido


Comunista na sociedade e Estado soviético e do Estado na Economia,
mas flexibilizá-los, de forma a permitir que a economia crescesse, que
a tecnologia de ponta fosse incorporada ao sistema produtivo e que a
população soviética se sentisse reconhecida no Estado.

Mas os resultados efetivos das reformas de Gorbachev mostraram-se catastróficos,


embora houvesse alguns indicativos de que a abertura econômica funcionaria,
como o exemplo da China, uma economia mista desde a década de 1970, da
Nova Política Econômica (NEP, de 1922), que elevou os níveis de produção mes-
clando a iniciativa privada e o Estado forte; as condições da década de 1980 eram
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

bastante diversas dos primórdios da URSS. Como bem diz Hobsbawm (1995),
democratizar exércitos não melhora sua eficiência. Os reformadores desejavam
ter as vantagens do capitalismo sem perder as do socialismo. Em resumo:
O que levou a União Soviética com rapidez crescente para o precipí-
cio foi a combinação de glasnost, que equivalia à desintegração da au-
toridade, com uma perestróica que equivalia à destruição dos velhos
mecanismos que faziam a economia mundial funcionar, sem oferecer
qualquer alternativa (HOBSBAWM, 1995, p. 468).

Foi uma combinação explosiva, uma vez que solapou as rasas fundações da
unidade econômica da URSS. Ao mesmo tempo em que a Glasnost permitiu a
contestação do bloco soviético, fomentando as elites regionais à independência,
a Perestroica deu-lhes o fundamento econômico para isso, isto é, a participa-
ção na sociedade capitalista. Com isso o Estado socialista praticamente deixou
de existir, extinguiu-se.
Assim como a criação do Estado de direito na Revolução Francesa contri-
buiu para a queda dos muros da Bastilha em 1789, as reformas de Gorbachev
aceleraram a queda do Muro de Berlim em 1989. Duzentos anos separam os dois
eventos, mas a comparação demonstra a força das instituições democráticas na
História e o potencial revolucionário que possuem.

A Queda do Muro de Berlim e o Fim do Socialismo Real


226 UNIDADE V

Depois da reunificação da Alemanha, à qual Moscou resistiu até onde pôde,


outras nações já não viam motivos para o pertencimento no bloco soviético. Os
países bálticos logo desertaram; Estônia, Letônia e Lituânia foram os pioneiros.
Logo atrás vieram Polônia, Tchecoslováquia, Romênia e Hungria. É interessante
notar que militarmente a Rússia tinha meios para conter o processo de desagrega-
ção, mas economicamente isso era inviável. Foi uma clara vitória do capitalismo
enquanto modelo econômico. A URSS sucumbiu sem lutar.
Marx e Engels desenvolveram o socialismo científico a partir da análise das
relações capitalistas de produção. Previram sua superação com o comunismo,

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
quando o capitalismo não mais fosse capaz de atender às necessidades básicas
do ser humano. Pode-se dizer que o socialismo soviético foi bastante precoce e
ocorreu em um país que ainda não possuía as condições efetivas para seu desen-
volvimento. Ainda assim as realizações dos russos no século XX são notáveis.
A industrialização de um país semifeudal, a vitória frente ao Terceiro Reich de
Hitler e a paridade com a maior economia do mundo, os EUA, mostram que a
Revolução de Outubro de 1917 não foi despropositada.
Friedrich Engels, certa vez, tentando elucidar a questão de como seria a
transição do socialismo para o comunismo, disse que, quando houvesse tal pos-
sibilidade, o Estado praticamente se extinguiria, deixaria de existir. Em vez de
chegar ao comunismo, o socialismo soviético chegou ao... capitalismo, com a
extinção do Estado socialista.

O FIM DA UNIÃO SOVIÉTICA E “FIM DA HISTÓRIA”?

Simbolicamente, a queda do Muro de Berlim representou o fim da divisão bipo-


lar do mundo e, consequentemente, a derrocada do bloco soviético. A linha dura
do Exército Vermelho, de inspiração stalinista, ainda tentou conter as reformas
e retornar ao padrão de 1985, anterior a Gorbachev. Em um referendo realizado
em março de 1991, 76% dos eleitores votaram pela manutenção da URSS. Mas o
retorno já era impossível, frente às sucessivas declarações de independências das
Repúblicas socialistas, onde até mesmo a Ucrânia (que há mais de um século fazia
parte da Rússia) e a Bielo-Rússia deixaram o bloco. Com os jogos olímpicos de

DA GUERRA FRIA AO “FIM DA HISTÓRIA” (1945-2001)


227

Barcelona, em 1992, houve a última participação da URSS enquanto bloco unido.


A magnitude do colapso soviético é impressionante, tanto em termos eco-
nômicos como territoriais. Após a independência das repúblicas socialistas, o
território sob controle de Moscou caiu de 22,4 para 17 milhões de Km2, ou seja,
perdeu quase um quarto do antigo território. As perdas populacionais foram
ainda maiores, na faixa de cinquenta por cento, regredindo de 290 milhões
para menos de 150 milhões de pessoas. A Rússia perdeu 24% de seu território,
metade da população e parte substancial de seus recursos econômicos e milita-
res (BERTONHA, 2011b, p. 119).
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O declínio econômico também foi surpreendente. A economia da URSS nas


décadas de ouro em 1960-70 rivalizava diretamente com os EUA. Em 1999, o PIB
russo tinha sido reduzido a 1/10 da economia estadunidense e 1/5 da chinesa. O
elemento econômico também se refletiu no aparato militar. Ainda que o exército
russo seja um dos mais preparados do mundo, não lembra os tempos áureos do
Exército Vermelho. Essa decadência militar ficou evidente na primeira Guerra
do Golfo (1991-1992), em que os EUA praticamente subjugaram os dissidentes
do Oriente Médio, especialmente Saddam Hussein, utilizando armas com pre-
cisão cirúrgica, em uma região próxima e com influência da URSS. Em tempos
de Guerra Fria a intervenção americana seria impensável.
Como foi dito na introdução desta unidade, logo após o colapso da URSS,
o historiador estadunidense Francis Fukuyama publicou um livro que ganhou
efêmera repercussão intitulado “O fim da história e o último homem”. Sua tese,
bastante apressada e fruto de vagas reflexões, é que se inauguraria uma era de
equilíbrio e paz com o fim das contradições entre EUA e URSS, capitalismo e
comunismo. Sua tese tem certo embasamento filosófico se resgatarmos Karl
Marx, que, na Ideologia Alemã, de 1846, já afirmava que o motor da História
é a dialética ou as contradições que movem a humanidade para o aperfeiçoa-
mento material e imaterial. Mas para Marx, porém, o comunismo não significa
o “fim da história”, mas sim da pré-história do homem.

A Queda do Muro de Berlim e o Fim do Socialismo Real


228 UNIDADE V

Na realidade, o que se viu depois do fim do socialismo e das tensões da Guerra


Fria foi justamente o oposto, o acirramento de conflitos, guerras, desigualdade
e mais contradições, o que logo colocou Fukuyama em descrédito. A crença de
que se inauguraria um tempo de livre comércio sem restrições ao consumo tam-
bém caiu por terra com a criação de organismos regionais de proteção comercial.
O fim da URSS representou tanto uma oportunidade positiva quanto um
problema para os EUA. Se, por um lado, o fim do socialismo e de suas barreiras
abriria toda uma área hostil aos interesses americanos; de outro lado, a inexis-
tência de um rival poderoso questionava a legitimidade e a manutenção de todo

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
o sistema global, militar e econômico de influência americana. Nesse sentido, o
ataque às Torres Gêmeas no World Trade Center, o onze de setembro de 2001,
representou a oportunidade de recriar um vilão, um inimigo e referendar os EUA
como “defensores da liberdade” no ocidente.
Nesse sentido, o 11 de setembro de 2001 representou um instrumento efi-
ciente para justificar a manutenção de todo esse sistema. Para alguns analistas,
pode-se comparar o ataque terrorista de 2001 com o ataque japonês a Pear
Harbor, em 1941. Essa analogia nos ajuda a compreender a forma como o jogo
político ocorre na era Pós-moderna, depois da queda do Muro de Berlim, em
um mundo unilateral, hegemônico. É preciso eleger sempre novos inimigos para
justificar o expansionismo e as invasões. O 11 de setembro serviu de pretexto
para o ataque americano ao Afeganistão em 2001 e para a invasão do Iraque em
2003. Como álibi, os americanos usaram a suspeita da captura do inimigo invi-
sível Osama Bin Laden, no Afeganistão, e a desmontagem da Al Qaeda e dos
Talibãs; no Iraque, a alegação da invasão foi a misteriosa produção de armas quí-
micas de Saddam Hussein. Como ficou provado, não havia armas químicas no
Iraque, muito menos tecnologia militar nuclear, foi um ataque meticuloso para
levar à força os interesses americanos pelo Oriente Médio, antes que China o
fizesse. Árabes e chineses são os novos inimigos eleitos dos EUA no século XXI.

DA GUERRA FRIA AO “FIM DA HISTÓRIA” (1945-2001)


229

Logo após a invasão do Iraque os observadores mais astutos já enxergavam


o expansionismo americano no Oriente Médio. Como apontam as perguntas
desafiadoras de Humberto Gessinger, escritas em 2004:

Onde leva essa loucura?


Qual é a lógica do sistema?
Onde estavam as armas químicas?
O que diziam os poemas?
(Armas químicas e poemas, Engenheiros do Hawaii).
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Enfim, o que ocorreu após o onze de setembro de 2001 ainda está sendo anali-
sado e escrito, por isso o ciclo da história contemporânea encerra-se nessa data.
O que veio depois é estudado como “tempo presente” e descrito como pós-mo-
dernidade. Mas se você deseja conhecer uma análise detalhada do mundo pós
11 de setembro, recomendo o livro do filósofo esloveno Slavoj Žižek, muito
bem intitulado “Bem vindo ao deserto do real”. Žižek simplesmente esmiúça
de forma visceral a realidade virtual em que vivemos, moldada pela superficia-
lidade das mídias, pelo comodismo das telas em terceira dimensão, enfim, um
mundo em que pouca coisa pode ser considerada real. A realidade do entrete-
nimento impede a visão da realidade de fato. E isso é um objeto de análise dos
próximos historiadores e professores do século XXI. É um trabalho desafiador,
mas também estimulante.

A Queda do Muro de Berlim e o Fim do Socialismo Real


230 UNIDADE V

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Caro(a) aluno(a), chegamos à última unidade dos estudos sobre História


Contemporânea. Nesse ínterim, procuramos desenvolver o conteúdo, os even-
tos, o factual sempre relacionado com seus efeitos na cultura e no pensamento
humano. Como escreveu Edward Thompson (1998), não existe desenvolvimento
econômico que não seja também uma transformação cultural. Assim, pode-se
dizer que toda a contemporaneidade está interligada, desde a Queda da Bastilha
em 1789 até o 11 de setembro de 2001. Não se compreende o século XX sem

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a análise prévia do liberalismo (pensamento burguês pós Revolução Francesa)
e do socialismo (doutrina oposta ao liberalismo), que nasce como seu antago-
nista. Essa interface teórica e prática permite uma análise mais específica sobre
a Guerra Fria, em que há um choque dialético e cultural entre as duas versões
de economia, ideologia e de História.
Outro ponto digno de nota é a militância política de Hobsbawm após a
queda do Muro de Berlim, em 1989, e do consequente ceticismo que se instaurou
entre as esquerdas em um momento de – pode-se dizer – hegemonia neoliberal
na década de 1990. A crença quase mitológica na “mão invisível” do mercado
que se autorregula, em um período em que as profecias mais apressadas chega-
ram a prever o “fim da História”, como em Fukuyama, caiu por terra logo após
o colapso do bloco soviético. A ilusão de que tudo adiante seria liberal e livre
mercado foi logo desmistificado com as guerras, políticas protecionistas e orga-
nização de blocos econômicos locais. Para Hobsbawm, enquanto houve uma
alternativa ao capitalismo liberal, as classes trabalhadoras conquistaram direitos
como nunca antes, o famoso Estado de bem-estar social e as políticas keynesianas.
Como afirma Martins (2010, p. 84), por mais que o modelo de socialismo real
não tenha sido o ideal, ele teve o efeito de “corrigir os excessos do capitalismo”.
O espírito do capitalismo não tem a ética protestante, parafraseando o soció-
logo Max Weber (A ética protestante e o espírito do capitalismo). Nesse sentido,
a metodologia de “escovar a história a contrapelo” torna-se indispensável na
modernidade.

DA GUERRA FRIA AO “FIM DA HISTÓRIA” (1945-2001)


231

A GUERRA FRIA ATRAVÉS DOS QUADRINHOS


A historiografia e as formas que utilizamos para escrever a História evoluíram positiva-
mente nas últimas décadas. Houve o alargamento da noção de documento e de fontes
históricas, saindo das esferas da escrita apenas para as formas estéticas, como o cinema,
a música, a arte, a fotografia e, os menos ortodoxos, caricaturas e quadrinhos, ou, melhor
dizendo, HQs (Histórias em Quadrinhos).
A origem dos quadrinhos modernos remonta a Richard Outcault e seu Yellow Kid, criado
para o jornal New York Times, em 1895. Nasce, assim, a habitual linguagem dos balões e
as onomatopeias. Mas foi justamente com a crise de 1929, no período do entreguerras,
que os quadrinhos se popularizaram, sobretudo aqueles voltados para superaventuras
e super-heróis. A aventura indica um desejo de evasão e criação de mitos, de heróis
positivos.
É nesse contexto que surgem personagens como Tarzan, Buck Rogers, Príncipe Valente,
Dick Tracy, Flash Gordon, Zorro, Mandrake, O Fantasma, entre outros. O fenômeno dos
Super-Heróis nos quadrinhos começou na Revista Action Comics de 1938, com o surgi-
mento do Superman. Esse nascimento está intimamente relacionado com o início da Se-
gunda Guerra Mundial, quando Hitler parecia invencível na Europa e os EUA se prepara-
vam para combatê-los. Nesse contexto, heróis que não tinham superpoderes pareciam
ineficientes para defender os ideais estadunidenses contra a ameaça nazista.
O imaginário, o inconsciente coletivo da população necessitava de um estímulo para a
batalha. O herói que melhor encarnou essa representação foi o Capitão América e sua
ideologia patriótica. Seu uniforme listrado e estrelado representava a própria bandeira
americana. Seu pior inimigo (além de Hitler) é tudo o que significa ameaça para a demo-
cracia americana.
Os governos, em especial o estadunidense, captando a capacidade de as HQs influen-
ciarem a opinião pública, utilizaram-se extensamente dessa mídia para divulgar e pro-
mover seus ideais. Na guerra ideológica (comunismo e capitalismo) que caracterizou a
Guerra Fria, essa forma de propaganda inconsciente teve um importante papel, servin-
do como imagem do paladino da justiça e liberdade. É desnecessário lembrar que todos
os super-heróis com que tivemos contato durante a infância são heróis americanos.
Mas surpreendentemente, após o fim da Guerra Fria, com a queda do Muro de Berlim
em 1989, houve a criação de um Superman soviético. Em 2003, a editora Panini lançou o
Superman – Entre a foice e o martelo. A ideia central do enredo é pensar “o que acontece-
ria se a nave que trouxe o Superman à terra caísse em solo soviético e não em território
estadunidense?”. Imagine o super-homem vestido em trajes vermelhos com a foice e o
martelo (símbolo do socialismo) estampados no peito, em vez do famoso “S”.
Nesse HQ, o Superman soviético cresce em uma fazenda coletiva na Ucrânia e se trans-
forma em herói militar e símbolo máximo do comunismo até, por fim, substituir Stalin
como líder máximo da URSS. O herói é apresentado da seguinte forma:
Olhem! Lá no céu! É um pássaro? É um avião? É o Superman! Superman: estranho visi-
tante de outro mundo, que pode mudar o curso de poderosos rios, dobrar o aço com
as próprias mãos e que, como campeão dos proletários, trava uma interminável batalha
por Stalin, o socialismo e a expansão internacional do Pacto de Varsóvia (SUPERMAN,
2004, p. 7).
Como comandante do Estado soviético, seus poderes o permitem uma vigilância cons-
tante de todos, regulando a economia socialista, fazendo que a revolução proletária
atinja cada vez mais países e, consequentemente, que o comunismo se expanda por
toda a terra, isolando os EUA como única nação capitalista do mundo. Nesse HQ, o vilão
Lex Luthor é americano e dedica sua vida à derrubada do comunismo.
Todavia, há uma crítica suave ao modelo dito “totalitário” do socialismo soviético. Nos
quadrinhos, o Superman degenera-se em autoritarismo, com a personificação do poder
que se mantém em grande destaque. Nos países não democráticos, é comum que a pes-
soa, investida de poder, dele se aposse por toda sua vida como se fosse seu proprietário.
Trata-se de usurpação do poder, que perde seu lugar público quando é incorporado ao
governante.
Ao final, Lex Luthor elege-se presidente dos EUA e confronta o Superman através das
ideias: “Por que você simplesmente não põe o mundo inteiro numa garrafa, Superman?”
Com isso, Luthor critica o culto ao líder dos socialistas (Mao, Fidel, Lênin, Stalin) e deixa
clara a intenção totalitária dos comunistas, dominar o mundo. Superman deixa o poder
e vive como um homem comum, sem interferir “no curso normal da história”. Com isso,
sem seu grande líder, a URSS entra em colapso e se desfaz.
Dessa forma, tanto as versões originais do HQs do Superman na Guerra Fria como as
atuais mostram-se por servir como veículo de divulgação do American Way of Life. Eles
demonstram os perigos existentes em um regime “totalitário” em detrimento da liberda-
de individual no ocidente capitalista.
Fonte: Melo (2013, p. 265-281).
233

1. Com relação às políticas da Guerra Fria, a chamada “Doutrina da Contenção” for-


neceu os elementos necessários para a elaboração da política externa dos EUA
frente à URSS. Sobre a Doutrina da Contenção, assinale a alternativa correta:
I. Winston Churchill utilizou a expressão que ficaria como sinônimo das políticas
ocidentais frente à URSS, “a Cortina de Ferro”, ou seja, o isolamento, cordão “sani-
tário”, para evitar o “contágio” da Europa Ocidental com os comunistas do leste.
II. A “doutrina da contenção”, ou o isolamento da União Soviética, foi o programa
político americano para limitar a influência dos comunistas nos seus territórios
já conquistados.
III. “Doutrina da Contenção” deve-se à atuação do diplomata George Frost Kennan.
Ele desenvolveu uma estratégia visando conter o possível expansionismo sovi-
ético.
IV. Seu idealizador foi Joseph Goebbels, ministro da propagada de Hitler, que já
temia o avanço comunista antes do fim da Segunda Guerra Mundial.
V. Essa fase da Guerra Fria ficou conhecida pela palavra francesa Détente.
Assinale a alternativa correta:
a) Apenas I e II estão corretas.
b) Apenas II e III estão corretas.
c) Apenas IV e V estão corretas.
d) Apenas I, II e III estão corretas.
e) Apenas III, IV e V estão corretas.

2. Quanto à chamada “Doutrina Truman”, assinale a alternativa verdadeira:


a) Foi a política externa do Presidente Herry Truman. Dividiu-se emDoutrina da
Contenção, prática de empréstimos bilionários para a reconstrução da Europa
(Plano Marshall) e aparato militar para a concretização desses objetivos (criação
da OTAN e da CIA).
b) Também conhecida como “Plano Marshall”, foi a política de empréstimos bilio-
nários ao terceiro mundo.
c) Foi o projeto dos EUA que, na Guerra Fria, visava desenvolver e aperfeiçoar as
armas nucleares.
d) Doutrina Truman, ou “Aliança para o progresso”, foi um projeto destinado a ele-
var os índices econômicos dos EUA.
e) Foi a apropriação de Herry Truman das doutrinas econômicas de John Maynard
Keynes e do New Deal de Roosevelt.
3. O Neoliberalismo foi a doutrina econômica predominante no último quarto do
século XX. Sobre o Neoliberalismo, é correto afirmar:
a) É associado ao conceito de “Laissez-faire”, que pode ser traduzido como “deixe
fazer”, “deixe passar”, denotando a liberdade e a fluidez do comércio sem as bar-
reiras alfandegárias e/ou protecionistas do Estado.
b) O neoliberalismo moderno se opõe ao modelo econômico predominante no
pós-guerra, o keynesianismo, ou o Estado de bem-estar social (Welfare state).
c) Sua origem está diretamente relacionada com a publicação de “A riqueza das
nações”, de Adam Smith.
d) Foi o modelo econômico implantado pelo presidente americano Franklin Roo-
sevelt, também conhecido como “New Deal”.
e) Seu principal fundador é o economista britânico John Maynard Keynes.

4. “O que levou a União Soviética com rapidez crescente para o precipício foi a
combinação de glasnost, que equivalia à desintegração da autoridade, com
uma perestróica, que equivalia à destruição dos velhos mecanismos que faziam
a economia mundial funcionar, sem oferecer qualquer alternativa”(HOBSBAWM,
1995, p. 468).Quanto à definição do conceito de glasnost e perestroica, assi-
nale a alternativa correta:
a) Glasnost significa modernização do sistema, e Perestroica, abertura política.
b) Perestroica significa reestruturação da economia política, e Glasnost, transpa-
rência ou liberdade de informação.
c) Glasnost significa reestruturação da economia política, e Perestroica, transpa-
rência ou liberdade de informação.
d) Perestroica significa abertura política, e Glasnost equivale ao controle do Estado
na economia.
e) Glasnost significa abertura política, e Perestroica equivale ao controle do Estado
na economia.
MATERIAL COMPLEMENTAR

Tempos fraturados: cultura e sociedade no século XX


Eric Hobsbawm
Editora: Companhia da Letras
Sinopse: Esta é a última obra do historiador e intelectual Eric
Hobsbawm, falecido em 2012. O livro propõe algumas reflexões sobre
a cultura e as artes na sociedade industrial e, posteriormente, uma
instigante análise da figura do caubói americano e suas intrínsecas
relações com a cultura e a política estadunidense. Uma obra que
completa a trajetória de um dos mais influentes pensadores do século
XX e fundamental para compreender o nosso tempo.

Bem-vindo ao deserto do real


Slavoj Žižek
Editora: Boitempo
Sinopse: o título refere-se à fala do personagem Morpheus, de Matrix.
Ao demonstrar ao escolhido, Neo, o deserto da catástrofe encoberta
pela cegueira coletiva da atualidade, que vive em uma realidade virtual,
Morpheus profere a seguinte frase: “bem-vindo ao deserto do real”.
Aparentemente piegas, o livro se torna essencial para se compreender
a realidade dita pós-moderna e a conjuntura mundial que se seguiu aos
ataques terroristas do onze de setembro de 2001.

Material Complementar
MATERIAL COMPLEMENTAR

Título: Moscou contra 007


Ano: 1964
Sinopse: Esse é o segundo filme da série do espião britânico James
Bond, escrita por Ian Flening, dirigido por Terence Young e estrelado
por Sean Connery. No longa, 007 desvenda uma conspiração da
Spectre, a representação da KGB, o serviço secreto soviético. O filme
surge justamente no auge da Guerra Fria, logo após a tensão dos
mísseis em Cuba. É importante notar que, em cada um dos filmes do
agente 007, há um inimigo diferente, mas sempre relacionado com a
conjuntura de determinado momento.

Título: Munique
Ano: 2005
Sinopse: Filme dirigido por Steven Spielberg que retrata a atuação
do serviço secreto israelense, o Massad. Roteiro bastante realista e
fiel aos evento que deram origem ao longa, o ataque terrorista contra
a delegação israelense nas Olimpíadas de Munique em 1972 e a
consequente caçada dos agentes de Israel aos árabes.

Título: Platoon
Ano: 1986
Sinopse: Do gênero de drama de guerra e dirigido por Oliver Stone, o
filme é considerado por muitos críticos como a melhor montagem de
guerra de todos os tempos, ao lado de “O resgate do soldado Ryan”. O
cenário para o filme é a Guerra do Vietnã e a dinâmica da Guerra Fria.
237
CONCLUSÃO

“Escrever história é dar às datas sua fisionomia”, lembra-nos o filósofo e historiador


da cultura Walter Benjamin. No entanto, esta tarefa não é nada simples, tanto no que
se refere à construção escrita, quanto à distribuição do conhecimento em aula. Há
algumas barreiras que impedem o profissional de história de ter uma visão cristalina
de todo o processo. Algumas delas são fruto da própria formação do professor, seus
preconceitos de classe, raça ou dogma limitam a compreensão em essência da His-
tória. Mas não se pode ser imparcial, indiferente, niilista; tomar partido não reduz o
conteúdo de verdade da disciplina.
Quanto a esse problema em estabelecer um método em ciências humanas, os gre-
gos foram mestres e ainda nos inspiram. Há uma anedota descrita na Odisseia de
Homero, há quase três mil anos, que nos traz iluminações preciosas. O poema épico
narra o difícil retorno de Ulisses de Tróia para Ítaca, na Grécia. Na viagem, ele se
depara com diversos obstáculos colocados propositalmente para impedir seu re-
gresso. No Palácio de Circe, Ulisses (ou Odisseu) demora um ano inteiro vivendo de
delícias e esquece-se da casa e de Penélope, sua esposa. Num dado momento, ao
comer “o lótus mais doce que o mel”, Ulisses se esquece até de narrar os fatos.
A memória, a lembrança e a rememoração são os objetos do historiador. Na mito-
logia grega, Zeus toma como sua quinta esposa Mnemosine (a deusa da memória).
Até o deus do Olimpo precisava ser lembrado para existir. Mnemosine existia para
suprimir Lethe (o esquecimento). Resta pensar qual é a “flor de lótus” da moderni-
dade que nos mantém no esquecimento dos fatos. A mídia, a ideologia e os desejos
consumistas são algumas formas de Lótus.
São apenas reflexões. Por fim, gostaria de agradecer aos colegas do curso de Histó-
ria da UniCesumar que contribuíram com indicações, sugestões e críticas para a me-
lhoria do livro. A organização final da narrativa e a escolha dos temas são, porém, de
minha inteira responsabilidade, assim como eventuais falhas e equívocos. A você,
futuro(a) professor(a), desejo sucesso e perseverança nessa carreira tão desafiadora.
Abraços e bom estudo!
239
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245
GABARITO

UNIDADE 1
1. Opção correta é a C.
2. Opção correta é a C.
3. Opção correta é a A.
4. Opção correta é a C.
5. Opção correta é a C.

UNIDADE 2
1. Opção correta é a D.
2. Opção correta é a A.
3. Opção correta é a C.
4. Opção correta é a E.

UNIDADE 3
1. Opção correta é a D.
2. Opção correta é a D.
3. Opção correta é a B.
4. Opção correta é a E.

UNIDADE 4
1. Opção correta é a D.
2. Opção correta é a E.
3. Opção correta é a C.
4. Opção correta é a B.

UNIDADE 5
1. Opção correta é a D.
2. Opção correta é a A.
3. Opção correta é a B.
4. Opção correta é a B.

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