Você está na página 1de 210

Fundamentos Históricos

do Direito
Prof.ª Ivone Fernandes Morcilo Lixa

2018
Copyright © UNIASSELVI 2018

Elaboração:
Prof.ª Ivone Fernandes Morcilo Lixa

Revisão, Diagramação e Produção:


Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri


UNIASSELVI – Indaial.

340
L693f Lixa, Ivone Fernandes Morcilo

Fundamentos históricos do direito / Ivone Fernandes Morcilo


Lixa. Indaial: UNIASSELVI, 2018.

200 p. : il.
ISBN 978-85-515-0122-1

1.Direito.
I. Centro Universitário Leonardo Da Vinci.

Impresso por:
Apresentação
Os historiadores Marc Bloch (1886-1944) e Lucien Febvre (1878-
1956), em meio às guerras mundiais, formaram uma parceria intelectual que
muito contribuiu para a concepção de História que temos nos dias de hoje.
O ambiente marcado por grandes tragédias e perdas humanas exigia dos
pensadores explicação e eles foram capazes de perceber que a história poderia
ser um caminho possível para compreender aqueles tempos difíceis e dolorosos.
Marc Bloch, com a ocupação nazista na França e por ser judeu, abandona a
Universidade e torna-se um militante da resistência francesa. Preso pela Gestapo,
foi torturado e fuzilado em 16 de junho de 1944, deixando inacabado um livro
sobre metodologia, “Apologia da História ou O Ofício do Historiador”, que foi
publicado em 1949 pelo parceiro Febvre, como obra póstuma.

Bloch inicia a obra com uma pergunta feita por seu filho, à época uma
criança: para que serve a história? A resposta a esta interrogação permite
explicar que o historiador tem a obrigação de difundir e esclarecer quando
fala tanto para doutores como para estudantes iniciantes.

Nas palavras de nosso autor, para responder a uma pergunta


aparentemente simples, o “historiador é chamado a prestar contas” (BLOCH,
2002, p. 41), é chamado a explicar qual sua função, sua área de atuação,
mesmo em se tratando da mais difícil das ciências, sempre em movimento.

Afinal, o que é história? Para Bloch, história não é o estudo do passado –


“passado” é um termo vago e amplo –, mas a ciência dos homens, e seu objetivo
é estudar a ação dos homens no tempo. O historiador não estuda o “passado”,
uma vez que presente e passado estão sempre sob o domínio do tempo. Estuda
onde tudo começa: o presente, e assim compreende o passado. Do conhecido
para o desconhecido. Uma tarefa que deve ser norteada pela permanente crítica,
para não cair no erro de confiar em evidências sem comprovação de verdade.

Por fim, conclui Bloch que assim é definido o ofício do historiador:


estudar o homem em função do tempo desde o olhar presente, compreendendo
o passado e desvelar a verdade, mesmo que sofra desilusões.

DICAS

O livro de Marc Bloch está disponível em: <https://bibliotecaonlinedahisfj.


files.wordpress.com/2015/02/bloch-m-apologia-da-histc3b3ria.pdf>.
É uma interessante leitura!

III
Com essa reflexão preambular iniciaremos o estudo da história do
direito.

Através da realidade do direito brasileiro atual, vamos retomar sua


trajetória histórica. Em tempos tão difíceis como o que estamos vivendo no
país, quando, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística),
em 2014, 9,6% das crianças e adolescentes viviam em casas sem o mínimo de
saneamento (água, luz e esgoto); um a cada cinco jovens de 15 a 29 anos
não trabalha e não estuda; 4,3 milhões de trabalhadores domésticos sequer
possuem carteira de trabalho, ou seja, vamos partir de um tempo e um espaço
em que, ainda, direitos garantidos são negados para uma grande parcela
da população. Tempo em que se fala muito em Direitos Fundamentais,
Democracia e Cidadania, mas desde uma realidade brutal que coloca o Brasil
como o 10º país em desigualdade social.

Não restam dúvidas: é urgente a tarefa de pensar o direito brasileiro


e redefinir sua trajetória!!! Tarefa difícil e árdua, mas necessária.

FIGURA 1 – DESIGUALDADE SOCIAL

FONTE: Disponível em: <http://chert-poberi.ru/interestnoe/kak-vyglyadit-so


cialnoe-neravenstvo-v-raznyx-gorodax-i-stranax.html>. Acesso em: 8 jan 2018

Assim, com vistas a um futuro mais generoso e justo, vamos, desde


esse presente que exige explicação, compreender o passado!

Afinal, é essa a tarefa do historiador do direito!

IV
NOTA

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto


para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há
novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é


o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um
formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova
diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também
contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente,


apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade
de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador.
 
Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para
apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto
em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas
institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa
continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de


Desempenho de Estudantes – ENADE.
 
Bons estudos!

V
VI
Sumário
UNIDADE 1 - HISTÓRIA E DIREITO................................................................................................. 1

TÓPICO 1 - DIREITO E HISTÓRIA: APROXIMAÇÃO NECESSÁRIA....................................... 3


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 3
2 OBJETIVOS E MÉTODO DO ESTUDO DA HISTÓRIA DO DIREITO................................... 6
RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 9
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 10

TÓPICO 2 - UBI SOCIETAS, IBI IUS?.................................................................................................... 11


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 11
2 OS PRIMEIROS NÚCLEOS HUMANOS......................................................................................... 13
RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 17
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 18

TÓPICO 3 - O DIREITO DOS POVOS DO ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO


(MESOPOTÂMIA, HEBREUS E EGITO)...................................................................... 19
1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 19
2 O DIREITO DIVINO DOS EGÍPCIOS............................................................................................. 21
3 O DIREITO HEBRAICO: O SAGRADO ALICERCE DE UMA NAÇÃO.................................. 24
4 O CÓDIGO DE HAMURABI: UMA PRECIOSA HERANÇA DA MESOPOTÂMIA............. 26
RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 29
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 30

TÓPICO 4 - O MUNDO GREGO ANTIGO........................................................................................ 31


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 31
2 A CONCEPÇÃO DE DIREITO E JUSTIÇA GREGA ..................................................................... 37
3 A ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA E JUDICIAL DE ATENAS........................................ 42
4 O HELENISMO...................................................................................................................................... 45
RESUMO DO TÓPICO 4 ....................................................................................................................... 48
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 49

TÓPICO 5 - O LEGADO ROMANO..................................................................................................... 51


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 51
2 A FORMAÇÃO SOCIAL E POLÍTICA: A BASE DO DIREITO ROMANO.............................. 54
3 OS PERÍODOS POLÍTICOS E AS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS............................................... 63
4 O LEGADO............................................................................................................................................. 69
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................................ 71
RESUMO DO TÓPICO 5 ....................................................................................................................... 74
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 75

UNIDADE 2 - PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO


DIREITO NA MODERNIDADE................................................................................. 77

TÓPICO 1 - O NAUFRÁGIO DA CIVILIZAÇÃO ANTIGA: A FORMAÇÃO


DA IDADE MÉDIA............................................................................................................ 79

VII
1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 79
2 O CRISTIANISMO............................................................................................................................... 80
3 A BARBARIZAÇÃO DO COTIDIANO............................................................................................ 83
4 A EMERGÊNCIA DO PLURALISMO MEDIEVAL ....................................................................... 87
RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 91
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 92

TÓPICO 2 - O DIREITO CANÔNICO: ELEMENTOS CARACTERIZADORES ....................... 93


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 93
2 A REFORMA GREGORIANA: MARCO DO DIREITO CANÔNICO....................................... 96
3 OS CONCEITOS DE JURISDIÇÃO E COMPETÊNCIA............................................................... 99
4 O PROCESSO INQUISITORIAL..................................................................................................... 100
5 A CRENÇA NA VERDADE REAL................................................................................................... 106
6 O DIREITO COMUM MEDIEVAL.................................................................................................. 109
RESUMO DO TÓPICO 2 ..................................................................................................................... 115
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 116

TÓPICO 3 - A MODERNIDADE: UM CENÁRIO DE TRANSFORMAÇÕES........................... 117


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 117
2 AS COSMOVISÕES JURÍDICAS MODERNAS .......................................................................... 117
3 O PROCESSO DE DOMINAÇÃO COLONIAL ........................................................................... 120
4 O DIREITO DA CONQUISTA ........................................................................................................ 121
RESUMO DO TÓPICO 3 ..................................................................................................................... 127
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 128

TÓPICO 4 - O DIREITO MODERNO E O POSITIVISMO JURÍDICO...................................... 129


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 129
2 O MODELO POLÍTICO LIBERAL MODERNO .......................................................................... 129
3 O DIREITO E A ORIENTAÇÃO EXEGÉTICA ............................................................................. 137
LEITURA COMPLEMENTAR.............................................................................................................. 145
RESUMO DO TÓPICO 4 ..................................................................................................................... 147
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 148

UNIDADE 3 - A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO BRASILEIRO........................... 149

TÓPICO 1 - AS RAÍZES HISTÓRICAS DA CULTURA JURÍDICA BRASILEIRA.................. 151


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 151
2 O DIREITO INDÍGENA ................................................................................................................... 152
3 O DIREITO COLONIAL BRASILEIRO.......................................................................................... 152
4 AS ORDENAÇÕES DO REINO....................................................................................................... 154
RESUMO DO TÓPICO 1 ..................................................................................................................... 158
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 159

TÓPICO 2 - A ORDEM JURÍDICA COLONIAL BRASILEIRA.................................................... 161


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 161
2 A ESTRUTURA JURÍDICA DO BRASIL COLÔNIA................................................................... 163
RESUMO DO TÓPICO 2 ..................................................................................................................... 174
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 175

TÓPICO 3 - O PROCESSO DE INDEPENDÊNCIA E A CONSTRUÇÃO DO


DIREITO NACIONAL....................................................................................................177
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................177

VIII
2 A CULTURA JURÍDICA NACIONAL: O BACHARELISMO ................................................... 180
RESUMO DO TÓPICO 3 .....................................................................................................................185
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 186
TÓPICO 4 - OS DESAFIOS DO DIREITO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO........................ 187
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 187
2 A DIFÍCIL CONQUISTA DE DIREITOS........................................................................................ 190
LEITURA COMPLEMENTAR.............................................................................................................. 192
RESUMO DO TÓPICO 4 ..................................................................................................................... 194
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 195

REFERÊNCIAS ....................................................................................................................................... 197

IX
X
UNIDADE 1

HISTÓRIA E DIREITO

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Esta unidade tem por objetivos:

• definir a relação História e Direito;


• discutir a metodologia do estudo da História do Direito;
• identificar os objetivos do estudo da História do Direito;
• refletir acerca dos elementos históricos do direito moderno ocidental;
• identificar as características e contribuições do mundo antigo para o pen-
samento jurídico moderno;
• compreender a particularidade do direito no mundo greco-romano e seu
legado à modernidade.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em cinco tópicos. No decorrer da unidade você
encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – DIREITO E HISTÓRIA: APROXIMAÇÃO NECESSÁRIA

TÓPICO 2 – UBI SOCIETAS, IBI IUS?

TÓPICO 3 – O DIREITO DOS POVOS DO ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO


(MESOPOTÂMIA, HEBREUS E EGITO)

TÓPICO 4 – O MUNDO GREGO ANTIGO

TÓPICO 5 – O LEGADO ROMANO

1
2
UNIDADE 1
TÓPICO 1

DIREITO E HISTÓRIA: APROXIMAÇÃO NECESSÁRIA

1 INTRODUÇÃO
Ao longo da história, nas distintas etapas e diversas sociedades
encontramos formas de controle e proteção de valores que possibilitam a vida
comum. Esses valores, ou bens jurídicos, são amparados e garantidos por um
conjunto de normas jurídicas definidas conforme a ordem social, política e/ou
econômica que se encontra em contínua mudança, e por esta razão as normas
jurídicas vão reconhecendo as alterações de acordo com a época e as relações
definidas no substrato social.

UNI

A vida social é regida por diversas normas, preceitos, que definem condutas (morais,
religiosas, culturais etc.), dentre as quais as normas jurídicas. Normas jurídicas são distintas das
demais por dois fatores principais: emanam de uma autoridade política competente e possuem
poder coercitivo. Em outras palavras, em primeiro lugar, as normas jurídicas são estabelecidas
por órgãos ou instituições legítimas politicamente, portanto, distintas de normas morais. Como
segundo fator, as normas jurídicas são impostas, com uso da força se necessário for, de forma
a persuadir as pessoas a agirem de modo a atender às finalidades ou objetivos estabelecidos
pelos órgãos políticos definidos. Assim, as normas jurídicas devem ser acatadas e colocadas
à disposição dos indivíduos e da coletividade para fazer valer interesses e necessidades, bem
como proteger seus bens de distintas naturezas e características.

Desde tal perspectiva, surgem algumas perguntas que devemos responder


inicialmente: é possível estudar esse conjunto de normas que vão definindo o
direito? Como estudar esse fenômeno social que chamamos de direito? Para que
estudar direito? As distintas respostas que podem ser dadas recaem em alguns
pontos comuns: a necessidade de conhecer o direito, de determiná-lo, estabelecer
a relação com as ideias e/ou valores e/ou interesses do grupo social em que se
insere. Exatamente essa é a função dos pesquisadores do direito, e desde as
investigações vão sendo redefinidos conceitos operacionais que são utilizados
para definir e fundamentar a norma jurídica adequada do caso concreto.

3
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

Dessa maneira, vai sendo definida a cultura jurídica de um determinado


grupo em um determinado tempo. Segundo Wolkmer (2007, p. 5), cultura
jurídica pode ser definida como “representações padronizadas da (i)legalidade
na produção das ideias, no comportamento prático e nas instituições de decisão
judicial, transmitidas e internalizadas no âmbito de determinada formação social”.
Portanto, o conjunto de normas e procedimentos, considerados justificáveis e
apoiados ou não pela força instituída, vão padronizando condutas e construindo a
concepção de direito. Pode-se compreender direito como fenômeno sociocultural
produzido e reproduzido desde um contexto histórico.

Pode-se conceituar a História do Direito como parte da História geral


que examina o Direito como fenômeno sociocultural, inserido num
contexto fático, produzido dialeticamente pela interação humana
através dos tempos, e materializado evolutivamente por fontes
históricas, documentos jurídicos, agentes operantes e instituições
legais reguladoras (WOLKMER, 2007, p. 5).

Vamos então percebendo que o campo do estudo da história do direito não


é o da dogmática jurídica, que delimita conceitos desde concepções indiscutíveis
e estáveis, mas um campo partilhado por outras disciplinas (teoria do direito,
sociologia jurídica, antropologia jurídica, ciência política etc.) que permite
compreender o contexto e as forças históricas, sociais, políticas, intelectuais,
culturais etc., que definem as normas jurídicas vigentes.

NOTA

Há autores que diferenciam dogmática de zetética jurídica. Dogmática jurídica


pode ser definida como campo de estudo acerca dos conceitos operacionais do direito
(“verdades” preestabelecidas) usados para solucionar na prática controvérsias jurídicas,
portanto, é um estudo limitado, a grosso modo, à norma positivada. A zetética jurídica
problematiza os dogmas e verdades jurídicas, questionando as premissas que definem a
dogmática. Nessa perspectiva, a história do direito estaria no campo da zetética, uma vez
que não apenas problematiza a dogmática jurídica contemporânea, como busca reconstruir
as ideias e práticas jurídicas em determinado contexto histórico.

Em síntese, o objetivo da história do direito é compreender a construção


do direito atual, desde a articulação de fatores ao longo do tempo, reexaminando
suas fontes de produção, as concepções, técnicas e instituições que o foram
elaborando e legitimando. Assim, trata-se de um estudo essencialmente crítico
que possibilita interpretar o direito desde a identificação dos valores consolidados
e reproduzidos historicamente.

4
TÓPICO 1 | DIREITO E HISTÓRIA: APROXIMAÇÃO NECESSÁRIA

Considerando História não como narrativa de acontecimentos, mas


expressão de experiências humanas que definem mudanças estruturais coletivas
que não tratam simplesmente de investigação sobre personagens individuais,
como os “heróis” ou “personagens”, mas de como a trama da vida move os
indivíduos comuns desde desejos, necessidades, valores e interesses a criarem
aspirações coletivas e romperem com estruturas e modelos dominantes. Trata-se,
assim, de romper com o conceito de que História é uma mera narrativa de atos
individuais, mas estudar História desde a possibilidade de mudanças do presente.
É um ato de recusa de verdades absolutas e destinos imutáveis preestabelecidos,
uma forma de adquirirmos a consciência das forças que nos levam coletivamente
a agir desde as experiências vivenciadas.

FIGURA 2 – AS SUFRAGISTAS

FONTE: Disponível em: <http://www.50emais.com.br/37809/>. Acesso em: 20 nov. 2017.

DICAS

O filme “As Sufragistas” reproduz a luta das mulheres inglesas em 1912 pelo direito
ao voto. Narra a vida política de Emmeline Pankhurst (1858/1928), nascida em Londres, que
liderava o movimento com entusiasmo, usando desde a diplomacia até a violência. Depois
de serem ignoradas pelo Parlamento inglês, as mulheres saíram pelas ruas em passeatas,
quebravam o que achavam pela frente, tocavam fogo nas caixas do correio! O filme é uma
lição de história! Deixa claro que os direitos são conquistados coletivamente!

5
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

2 OBJETIVOS E MÉTODO DO ESTUDO DA HISTÓRIA DO DIREITO


O estudo da história do direito é a possibilidade de descobrir um fascinante
universo, descobrir caminhos que foram percorridos por distintas civilizações ao
longo do tempo e foram encontrando no direito o instrumento necessário para
continuarem a vida em comum. Sem dúvida, nossa formação acadêmica exige
compreender o presente desvelando os valores e as práticas jurídicas consolidadas
ao longo do tempo, ampliando, assim, nossa cultura jurídica, sendo o estudo
histórico do direito um importante elemento para o saber formativo e distinto do
conjunto de disciplinas dogmáticas que constituem o ensino jurídico.

O importante historiador do Direito, António Manuel Hespanha, destaca


que enquanto as disciplinas dogmáticas visam “criar as certezas acerca do direito
vigente, a missão da história do direito é problematizar o pressuposto implícito
e acrítico das disciplinas dogmáticas, ou seja, o de que o direito dos nossos dias
é o racional, o necessário, o definitivo” (HESPANHA, 2005, p. 21). A história do
direito realiza sua função ao contribuir para a elaboração de uma perspectiva que
compreenda o fenômeno do direito enquanto produto das relações e contextos
sociais – econômicos, políticos etc. – localizados temporalmente, e assim é
assegurada a formação crítica dos juristas.

Em que pese a disciplina de História do Direito estar presente nos


cursos de Direito brasileiros em geral, talvez seja necessário ampliar sua função,
sobretudo quando se tem em conta a necessidade de servir de instrumento de
revisão das fontes legislativas e práticas das instituições jurídicas com vistas a
alinhar o direito com as necessidades e condições sociais.

Em suma, a finalidade essencial da História do Direito é a interpretação


crítico-dialética da formação e da evolução das fontes, ideias
norteadoras, formas técnicas e instituições jurídicas, primando pela
transformação presente do conteúdo legal instituído e buscando nova
compreensão historicista do Direito num sentido social e humanizador
(WOLKMER, 2007, p. 6).

Estudar História do Direito desde uma perspectiva não linear – a que não
concebe a história como acumulação progressiva de saber, mas como rupturas,
avanços e retrocessos –, além da importância para a formação acadêmica, permite
identificar forças e valores que vão conferindo legitimidade ao direito, e para tal
tarefa é necessário estabelecer estratégias e caminhos metodológicos adequados.

6
TÓPICO 1 | DIREITO E HISTÓRIA: APROXIMAÇÃO NECESSÁRIA

NOTA

A concepção linear da história do direito compreende o presente como uma


espécie de “celebração” do passado. O presente como única possibilidade inevitável do passado,
de uma espécie de “padrão” universal de evolução. A “naturalização” e “sacralização” do presente
é uma deformação histórica, pois o presente não é uma imposição do passado, mas o resultado
de dinâmicas escolhas humanas.
A “neutralização” da história constrói para os juristas uma lógica de direito abstrata e erudita
sem preocupação com a finalidade maior do direito: a concretização de necessidades e
proteção de bens humanos concretos.

Em que pese a longa tradição da historiografia formalista nas faculdades


de Direito em fins da década de 60 e ao longo dos anos 70, foi sendo definido
um novo marco metodológico desde a criticidade e revisão dos modelos teóricos
consolidados. Trata-se da emergência de uma corrente mais questionadora dos
historiadores, problematizando a ingenuidade intelectual e a forma através da
qual compreendem a realidade desde modelos deformados meramente teóricos.

Este movimento, denominado Nova história, teve como “força” propulsora


alguns eventos, tais como a renovação do pensamento crítico – “nova teoria crítica” da
Escola de Frankfurt –, que problematizou a neutralidade ideológica, demonstrando
que toda atividade humana é sempre política; a metodologia inovadora da Escola
Francesa dos “Annales” – que contribuiu no campo do estudo do direito para uma
visão interdisciplinar e relacional da história, concebendo a história do direito como
parte da história social. A emergência do pensamento crítico latino-americano com
pensadores como Paulo Freire, Franz Hinkelammert, Enrique Dussel, Antonio
Carlos Wolkmer, entre outros, que são considerados matrizes de internalização da
criticidade na cultura jurídica, representando uma espécie de “via alternativa” mais
próxima de nossa realidade. Muitos outros se somam para uma mutação radical
da historiografia em geral e jurídica, em particular, definindo, assim, uma opção
metodológica desmistificadora que inclui a complexidade e diversidade da vida
social no processo de edificação histórica do direito.

E
IMPORTANT

“Escola de Frankfurt” é uma corrente de pensamento que emerge no contexto


político e histórico muito problemático. Em meio à ascensão do nazismo na Alemanha e ao
stalinismo na Rússia, um grupo de intelectuais vinculados ao Instituto de Pesquisa Social da
Universidade de Frankfurt, alinhados ao que foi se denominando Teoria Crítica, passa a produzir
obras, pesquisas e análises sociais entre os anos 1920 a 1970 desde um marxismo heterodoxo.

Para conhecer melhor sobre a Escola de Frankfurt e A Teoria Crítica, você pode consultar:
<http://brasilescola.uol.com.br/filosofia/a-escola-frankfurt-introducao-historica.htm>.

7
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

NOTA

O nome Escola dos Annales refere-se a um grupo de historiadores liderados


por Lucien Febvre e Marc Bloch, que se organizaram em torno do periódico francês Annales
d'histoire économique et sociale (Anais de história econômica e social), no qual eram publicados
seus principais trabalhos. O principal objetivo desses historiadores era a problematização do
positivismo histórico dominante e o desenvolvimento de um tipo de História que levasse
em consideração novas fontes para a pesquisa histórica, como a sociologia, a economia,
a semiologia etc., considerando a história como a ciência do presente e não do passado,
investigando as transformações e rupturas sociais ao longo do tempo.

A nova concepção das fontes, funções e concepções de Direito conduz


à revisão crítica da análise e estudo do passado das instituições
jurídicas e das práticas de controle, problematizando o modelo
contemporâneo. Desde aí, o Direito Moderno é compreendido desde
uma nova perspectiva que permite identificar os fatores e elementos
políticos, sociais, econômicos e culturais subjacentes ao processo
histórico desenvolvido entre os séculos XVI a XIX na Europa que
acabou por definir a cultura jurídica dominante nos dias de hoje.
Em síntese, o que atualmente se compreende por Direito é resultado do
contexto histórico europeu moderno organizado desde a consolidação
do capitalismo liberal que foi definindo uma estrutura política e
jurídica estatal centralizada, modelo este que, por conta da expansão
colonizadora, foi colocado em marcha a partir do século XIV.
O fundamento nuclear do Direito Moderno é o individualismo liberal,
expressão maior do valor moral da sociedade burguesa emergente, que
coloca o homem como ser individual autônomo e formalmente livre.
Nessa dinâmica histórica, a ordem jurídica é instrumentalizada
como estatuto de uma sociedade que proclama a vontade individual,
priorizando formalmente a liberdade e a igualdade de seus atores
sociais (WOLKMER, 2007, p. 30).

TUROS
ESTUDOS FU

Como adiante será melhor estudado, “Modernidade” é definida como um modelo


civilizatório construído desde a Europa entre os séculos XIV a XIX, que veio a substituir o
modo de vida medieval. Tem como características o predomínio de concepções políticas e
jurídicas liberais individualistas.

Considerando a história do direito como campo de estudo que tem


como objetivo a compreensão do presente a partir da revisão crítica do passado,
evidencia-se a finalidade maior de nossos estudos: rever historicamente as
experiências do direito com vistas a adquirir uma consciência do Direito Moderno
mais humanizadora e libertária.

8
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• Direito é um produto histórico e social.

• Apenas é possível compreender os fundamentos, valores e finalidades das


normas jurídicas se houver uma contextualização histórica.

• O que atualmente identificamos como direito é produto do processo histórico


da modernidade, desenvolvido a partir dos séculos XVIII e XIV no mundo
europeu e que acabou por tornar-se um modelo dominante.

• A análise e discussão histórica acerca do direito possibilita uma revisão crítica


e humanizadora do direito.

9
AUTOATIVIDADE

1 Considere a seguinte afirmação: “Examinar e problematizar as relações entre


a História e o Direito reveste-se hoje da maior importância, principalmente
quando se tem em conta a percepção da normatividade extraída de um
determinado contexto histórico definido como experiência pretérita que
conscientiza e liberta o presente” (WOLKMER, Antonio Carlos. Paradigmas,
historiografia crítica e direito moderno. In: Revista Fac. Direito, Curitiba, n.
28, 1994/95, p.55-67).

Tendo como referência o estudo realizado, responda à seguinte questão: Qual a


importância atual de problematizar a relação entre História e Direito?

10
UNIDADE 1
TÓPICO 2

UBI SOCIETAS, IBI IUS?

1 INTRODUÇÃO
O clássico estudioso do direito Jean Carbonnier  (1908-2003) afirma que
nós, juristas, sofremos de uma espécie muito peculiar de temor ou insegurança: o
medo do vazio do direito. Para o referido autor:

Quando um intruso (da mesma espécie, o que merece ser destacado) se


introduz na zona assim delimitada, desencadeia uma reação violenta no titular
de um direito. Na profundeza obscura destes instintos – instintos separatistas,
antigregários, que empurram o indivíduo a isolar-se da espécie e a rechaçar o
contato com seus semelhantes – nós não vacilaríamos em buscar a raiz natural
(natural é aqui animal) do direito subjetivo (CARBONNIER, 1974, p. 15).

NOTA

Ubi Societas, Ibi Ius – Onde há sociedade, há direito.

A concepção de Carbonnier é uma maneira de pensar que ajuda a enfrentar


o temor, a insegurança, muito arraigada no meio acadêmico, que reafirma a crença
de que o ser humano possui “naturalmente” laços políticos além do biológico,
como se as duas dimensões da existência se confundissem. Uma crença herdada
desde o pensamento grego, para a qual os romanos deram uma forma jurídica:
ubi societas, ibi ius (onde há sociedade há direito), que se transformou em dogma,
passado de geração em geração, até chegar aos dias de hoje, fazendo com que
não sejamos capazes de conceber outra forma de conviver em sociedade sem o
modelo de direito e Estado que conhecemos.

Em outra vertente, muitos historiadores do direito não concebem o Direito


como fenômeno natural, mas produto histórico e político, sendo suas diferentes
formas de expressão resultante de relações humanas variáveis no tempo e espaço.

11
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

Pode-se afirmar que o direito é um artifício social que tem sua origem
relacionada a formas de organização complexas quando os conflitos não são mais
entre indivíduos isolados, mas sim de ordens estruturais que colocam em risco a
própria comunidade em sua totalidade. Isso significa que o direito surge quando
as normas de convivência são definidas pelos vínculos mais próximos, como os de
parentesco, em que a ancestralidade comum, real ou fantasiosa, era o que definia
as regras de convivência e regulamentações, vínculos legitimados por relatos
míticos, representações metafóricas de práticas que foram se internalizando e
sendo reproduzidas no grupo social.

Somente a partir da complexidade social é que se exige a cooperação mais
numerosa para a realização de tarefas impossíveis para um número pequeno de
indivíduos que já havia dominado a natureza.

FIGURA 3 – “LINHA DO TEMPO” DA EVOLUÇÃO HUMANA


Pré-História
Paleolítico
Paleolítico Inferior Paleolítico Médio Paleolítico Superior
4 milhões 160 mil 150 mil 40 mil

Australopitecus Homo habilis Homo erectus H. sapiens neaderthal H. sapiens H. sapiens sapiens
• (4 a 2,5 milhões). • (2,5 a 1,5 • (1,5 milhões a 300 mil) • (150 a 30mil) cromagnon • (desde 120 mil até
• Boizei, Afarensis milhões) • Pitecantropus, • África, Ásia, Europa • (50 mil a ??) hoje)
e Robustus. • África Sinantropus e Java. e Oceania. • África, Ásia, • Todos continentes,
• África. • Produção de • África, Ásia e Europa • Mora em cavernas. Europa e Oceania. inclusive a
• Bípede. utensílios. • Domínio do fogo e • Primeiras • Utiliza o silex. América.
• Utiliza utensílios. uso de ferramentas sepulturas. • Mais robusto e • Arte e magia.
desenvolvidas. • Pontas de lanças. mais inteligente, • Pintura rupestre =
• Desenvolvimento da • Arco, flecha e talvez nosso caça e fertilidade.
Paleolítico - características linguagem. anzóis. ancestral. • Escultura = Vênus.
• Nomadismo.
• Coletores.
• Caça e pesca.
• Matriarcado.
• Pintura representando a caça e a fertilidade. Homo sapiens idaltu (ancião)
•Possível antecessor do H.S.S.
•Descoberto na África em 2003
•Parentesco genético

Mesolítico Neolítico Idade dos metais Civilização


10 mil 10 mil 6 mil 4 mil

Mesolítico Revolução Neolítica: Idade dos metais: cobre, Civilização


• Pedra lascada e polida. Descoberta da agricultura. bronze e ferro. • Cidades
• Transformações • Pedra polida. • Guerras entre aldeias. desenvolvidas.
climáticas. • Sedentarismo. • Surgimento da escravidão. • Sociedade
• Primeiros sedentários. • Formação das aldeias. • Fim do comunismo primitivo. extratificada.
• Transformação do • Domesticação de animais. • Divisão do trabalho: • Produção de
alimento (cozinhar e • Comunismo primitivo: artesanato, agricultura e excedentes.
fazer pães). propriedade coletiva. pecuária. • Comércio.
• Tecelagem e cerâmica. • Arte megalítica: Stonehenge. • Escrita.
• Patriarcado. • Revolução urbana: surgem as • Formação
• Pintura: vida em sociedade. primeiras cidades (Jericó e do Estado:
Satal-ayuti) servidão
coletiva e
escravidão.
FONTE: Disponível em: <http://turmadahistoria.blogspot.com.br/2011/08/linha-de-tempo-da-pre-
historia.html>. Acesso em: 20 nov. 2017.

Como pode ser observado pela “linha do tempo” acima demonstrada, os


humanos modernos (Homo sapiens) são os últimos sobreviventes de um longo
processo de adaptação e luta pela sobrevivência. Seres frágeis (animais sem garra
e de pouca velocidade), sem o mínimo de organização e uso de ferramentas,
não são capazes nem de matar animais sedentários. O homem moderno trouxe
consigo a proliferação de ferramentas que permitiu às comunidades humanas
assentamento em colônias em cavernas e campos abertos, com sólidas casas feitas
de pedras, estacas de madeira e ossos.
12
TÓPICO 2 | UBI SOCIETAS, IBI IUS?

ATENCAO

Existem exemplares de ossos e marfins entalhados, serrados, moídos e polidos


com destreza que datam de 33 mil anos atrás!!!

2 OS PRIMEIROS NÚCLEOS HUMANOS


Desde estudos arqueológicos é possível afirmar que a última espécie
humana sobrevivente desde o Paleolítico Superior – em torno de 9 mil anos –
encontrou nas grandes planícies fluviais e nos sítios litorâneos o ambiente propício
para o desenvolvimento da agricultura e domesticação de animais. Pouco a
pouco, as relações sociais, unidas por complexas redes de parentesco, tornam-
se hierarquizadas e a realização de tarefas cotidianas, como irrigação, cultivo e
colheita, vai dando lugar a formas de organização social com poderosos mecanismos
unificadores de comportamentos, que se transformam em normas de controle.

A partir do quarto milênio a.C. surgem no Oriente Próximo as primeiras


civilizações: Mesopotâmia, Egito, Palestina, Fenícia e Persa. Estas ocuparam uma
região que ficou conhecida como Crescente Fértil, limitada entre os rios Tigre,
Eufrates e Nilo.

FIGURA 4 – CRESCENTE FÉRTIL: BERÇO DA CIVILIZAÇÃO

FONTE: Disponível em: <http://www.infoescola.com/geografia/crescente-fertil/>.


Acesso em: 12 nov. 2017.

13
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

Além da estratégica passagem entre a África, Europa e Ásia, a região


possuía uma rica biodiversidade e a presença de rios que forneciam abundância
de água para irrigação, além de servir de meio de comunicação.

UNI

Os estados que atualmente possuem terras localizadas no Crescente Fértil são:


Iraque, Jordânia, Líbano, Síria, Egito, Israel e Palestina, além da parte sul da Turquia e da área
mais ocidental do território do Irã.

A sofisticação técnica, como a astronomia para estabelecer um calendário


preciso para controle da agricultura, matemática e hidráulica para as obras de
irrigação e construção torna-se patrimônio intelectual importante para a sobrevivência
do grupo, e concentra-se nas mãos de grupos ou castas privilegiadas (sacerdotais,
guerreiras, reais...), que terão grupos subalternos, em não raras vezes conquistados
pela força militar, encarregados da sobrevivência própria e dos “eminentes”.

O avanço da agricultura permite a produção de excedentes econômicos


permanentes, uma massa de trabalhadores subalternos produzindo e a dominação
militar assistindo, no interior e entre os grupos, conflitos que deveriam ser
neutralizados. A fim de conter ou mesmo neutralizar as forças desagregadoras
que colocam em risco o modo de organização e dominação social, são definidas
forças neutralizadoras, dentre as quais consta o direito. Entretanto, as formas de
controle impostas não se originam somente pela violência física, mas pela aceitação
da dominação por conta da supremacia cultural, pelo estágio organizativo e
tecnológico materialmente mais avançado dos grupos dominantes. Assim, vão
se institucionalizando os modos de poder, dando origem às distintas formas de
ordem política e jurídica das antigas sociedades. O poder político e jurídico nas
primeiras civilizações vai assumindo as seguintes funções:

• Garantir a submissão e trabalho compulsório dos grupos subalternos.


• Difundir a ideologia da aceitação obtendo consenso e interiorização das relações
de poder.
• A manutenção do status quo dos grupos privilegiados.

A ideologia de aceitação é fundamental para reduzir, ou mesmo invisibilizar,


a violência coercitiva. Nesta etapa, as cosmogonias religiosas, os arquétipos,
foram os meios mais eficientes para os grupos religiosos desempenharem a
função neutralizadora. Seguramente, por esta razão o poder político e jurídico
assume uma natureza sagrada, mediadora entre as divindades e os humanos. Na
clássica obra “A Cidade Antiga”, Fustel de Coulanges demonstra que a origem
do direito antigo está relacionada a rituais, crenças religiosas e tradições que se
impunham acima da vontade dos homens, e os deuses estavam presentes na vida
diária comandando a cidade. Diz Fustel:
14
TÓPICO 2 | UBI SOCIETAS, IBI IUS?

A religião, que exercia tão grande império sobre a vida interior da


cidade, intervinha com igual autoridade em todas as relações que
as cidades tinham entre si. É o que se pode ver observando como
os homens daqueles tempos declaravam guerra, faziam as pazes e
celebravam alianças. Duas cidades eram duas associações religiosas
que não tinham os mesmos deuses. Quando estavam em guerra, não
eram apenas os homens que combatiam; os deuses também tomavam
parte na luta. E não se julgue que isso seja mera ficção poética. Houve
entre os antigos uma crença muito arraigada e viva, em virtude da qual
cada exército carregava consigo seus deuses. Estavam convencidos de
que eles combatiam com os soldados, que os defendiam, e eram por
eles protegidos (COULANGES, 2004, p. 181-182).

NOTA

Cosmogonia é especulação, idealização, sobre a origem do mundo constituída


por narrativas mitológicas que se aproximam de religião. Os mitos, em geral, atribuem a
divindades virtudes e poderes indiscutíveis. Mitos – da palavra grega mytus – são narrativas
de múltiplas versões opostas ao real, mas mantidos vivos e perpetuados pelo grupo social.

DICAS

Obra “A Cidade Antiga”, de Fustel de Coulanges. Disponível em:


<http://bibliotecadigital.puc-campinas.edu.br/services/e-books/Fustel%20de%20Coulanges-1.
pdf>. Acesso em: 20 nov. 2017.

Portanto, não é difícil compreender porque nos primórdios da humanidade


a natureza religiosa das formas de controle acaba por definir como intérpretes
das leis os sacerdotes. As manifestações do direito e as formas de sanção são
marcadas por fortes ritualismos e atos simbólicos que acabam confundindo
justiça com magia, e desde aí as práticas vão avançando de forma dinâmica até a
identificação de direito com lei.

Em síntese, dos costumes, do poder doméstico e da religião daqueles


“primeiros tempos” foi se institucionalizando a sucessão hereditária das
autoridades reais e fortalecendo o poder das cidades sobre as aldeias.

15
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

O autor Gilissen (2001) indica que as principais características do direito


dos povos sem escrita podem ser:

• A marca do direito dos povos antigos é a diversidade, uma vez que cada
comunidade possuía seus costumes próprios e o isolamento.
• A transmissão das regras de convivência pela tradição oral.
• A forte relação de justiça com religiosidade.
• Por não ser escrito, o direito antigo é bastante limitado quanto à abstração e
generalidade, sendo, em geral, reproduções de casos concretos.
• Identificação de direito com moral e religião.
• As fontes do direito relacionadas a costumes, práticas ancestrais, preceitos
verbais etc.

16
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:

• O direito é um fenômeno cultural que surge na medida em que as relações


humanas tornam-se mais complexas.

• Nos primórdios da civilização não há separação entre direito, religião e moral,


uma vez que há uma mesma fonte de produção das normas de regulação social:
o sobrenatural.

• Com diversidade é possível identificar elementos comuns entre as distintas


formas de direito nos povos antigos.

17
AUTOATIVIDADE

Considere a figura abaixo:

FONTE: Disponível em: <http://cultura.culturamix.com/curiosidades/


as-primeiras-sociedades>. Acesso em: 20 nov. 2017.

Com base na representação acima, quais os elementos que você pode considerar
relacionados ao surgimento do direito e por quê?

18
UNIDADE 1
TÓPICO 3

O DIREITO DOS POVOS DO ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO


(MESOPOTÂMIA, HEBREUS E EGITO)

1 INTRODUÇÃO
A passagem das formas arcaicas de sociedade para as primeiras grandes
civilizações está relacionada como o surgimento das cidades, a invenção e
domínio da escrita, o advento do comércio e uso de moeda.

Os documentos escritos mais antigos começam a aparecer em torno de 3000


a.C. no Oriente Próximo, na Mesopotâmia e no Egito. Portanto, pouco a pouco a
transmissão oral, que acabou por preservar a memória cultural e identidade dos
povos antigos, adquire forma através da escrita.

Um dos documentos jurídicos mais antigos escritos da humanidade é o


Código de Ur-Nammu, criado por um rei sumério de mesmo nome, escrito em
torno de 2050 a.C., “ano em que Ur-Nammu fez justiça na terra”, que incluía
regras sobre impostos, procedimentos de tribunais e leis cerimoniais. Leis que
se aplicavam somente a mulheres escravas e castigos cruéis, como ter o insolente
a boca lavada com sal, aplicação de multas pecuniárias, embora limitadas e
atualmente absurdas, foram importantes avanços para o estabelecimento de
limites ao poder real.

FIGURA 5 – FRAGMENTO DO CÓDIGO DE UR-NAMMU

FONTE: Disponível em: <https://hypescience.com/10-documentos-mais-antigos-


do-seu-tipo/>. Acesso em: 20 nov. 2017.

19
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

Observe bem o tipo de escrita econtrada no código de Ur-Nammu. Trata-


se do que se chama escrita cuneiforme, em forma de cunha, criada pelos sumérios
por volta do ano 3500 a.C. Juntamente com a escrita egípcia, os hieróglifos formam
as mais antigas inscrições escritas em tabuletas de argila.

NOTA

Escrita cuneiforme é o nome dado a certos tipos de escritas feitas com auxílio
de cunhas. Inicialmente, eram marcas bastante simples, posteriormente se tornando mais
abstratas e mais sofisticadas, graças ao trabalho dos antigos escribas. Ajustando a posição
relativa da tabuleta ao estilete, o escriba poderia usar uma única ferramenta para fazer uma
grande variedade de signos.

FIGURA 6 – ESCRITA CUNEIFORME

FONTE: Disponível em: <http://universodahistoria.blogspot.com.


br/2010/07/escrita-cuneiforme.html>. Acesso em: 20 nov. 2017.

Dos povos do Oriente Próximo destacam-se:

• Egito: embora não tenham transmitido propriamente códigos, os egípcios


legaram fontes indiretas nos textos sagrados e narrativas literárias e, ainda, foi
a primeira civilização a transmitir um sistema de normas individualistas.
• Mesopotâmia: a região compreendida entre os rios Tigre e Eufrates foi ocupada
sucessivamente por distintos povos, como os sumérios, acadianos, hititas e
assírios, que redigiram “códigos” com regras de direito bastante sofisticadas e
com algum nível de abstração.
• Hebreus: povo antigo que legou nos Livros Sagrados preceitos jurídicos,
posteriormente perpetuados pela Bíblia cristã.

Brevemente, vamos a seguir destacar alguns aspectos dessas


extraordinárias culturas antigas.

20
TÓPICO 3 | O DIREITO DOS POVOS DO ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO (MESOPOTÂMIA, HEBREUS E EGITO)

2 O DIREITO DIVINO DOS EGÍPCIOS


A civilização egípcia foi uma das mais influentes na antiguidade. Ao
longo do Vale do Rio Nilo, considerado por Heródoto (484 a.C.- 425 a.C.), o “pai
da história”, como “dádiva dos deuses”, o Egito se edificou como extraordinário
reino organizado em pequenas províncias – nomos – e governado pelo faraó, um
deus vivo. Além de desenvolverem técnicas agrícolas eficazes, eram excelentes
matemáticos, experientes na área da medicina, na astronomia e, sobretudo,
legaram para a posteridade preciosas obras arquitetônicas e de engenharia.

Entretanto, o fato é que, apesar de toda essa grandiosidade e extraordinário


legado no campo do direito, os egípcios foram mais tímidos quando consideramos
seus “vizinhos” do Oriente Próximo, uma vez que o que se espera é que a condição
de domínio cultural e político fosse acompanhada de sofisticação jurídica.

Os poucos documentos propriamente jurídicos que restam, além da péssima


conservação ao longo do tempo, dificultam a reconstrução e sistematização do direito
egípcio antigo. Entretanto, resumidamente pode-se afirmar que a fonte principal
do direito era a vontade do faraó, que contava com um grupo de “conselheiros”
presidido pelo vizir, espécie de chanceler, que administravam um vasto e próspero
império. Da “boca” do faraó era pronunciada o Maat (direito), símbolo da justiça.
Ao que parece, os egípcios acreditavam em uma espécie de lei ou ordem universal
eterna basilar do próprio poder, de natureza divina a qual o faraó tinha o dever de
velar. Segundo o historiador de direito Jonh Gilissen (1995, p. 53):
Maat é o objetivo a prosseguir pelos reis, ao sabor das circunstâncias.
Tem por essência ser o equilíbrio, o ideal, a esse respeito, é por exemplo
fazer que as duas partes saiam do tribunal satisfeitas. Como é neste
preceito que reside a verdadeira justiça, Maat pode ser traduzido por
Verdade e Ordem, como Justiça propriamente dita.

FIGURA 7 – DEUSA MAAT

FONTE: Disponível em: <http://arturjotaef-numancia.blogspot.com.br/2013/08/maat-deusa-


metis-dos-egipcios-por-artur.html>. Acesso em: 12 nov. 2017.

21
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

A Figura 7 é uma representação da deusa Maat. Observe que está com as


asas abertas, pronta para voar, como a alma dos mortos e acompanhar a barca
solar de seu irmão Rá. Esposa de Tot, possui na cabeça a pena da verdade, que
pesava sobre todos no momento do julgamento do morto quando ela colocava sua
pluma sobre um dos pratos da balança e no outro oposto o coração do falecido.
Se os pratos ficassem em equilíbrio, a alma seguia sua viagem. Se o coração
fosse mais pesado, era devolvido para Ammut (deusa do inferno, criatura parte
hipopótamo, parte leão e parte crocodilo) para ser devorado.

NOTA

Maat – termo de origem copta, que é um sistema de escrita originado no século


IV a.C. no Egito – que expressa uma espécie de idealização filosófica de justiça relacionada
com verdade e ordem, que deveria orientar as decisões dos governantes.

FIGURA 8 – A PENA DE MAAT É O CONTRAPESO PARA O CORAÇÃO DO MORTO

FONTE: Disponível em: <http://arturjotaef-numancia.blogspot.com.br/2013/08/


maat-deusa-metis-dos-egipcios-por-artur.htm>. Acesso em: 12 nov. 2017.

Há uma bela estória preservada por antigos papiros que serve como
fonte de compreensão para a prática da justiça egípcia. Trata-se do “Conto do
Camponês Eloquente”, datada de 2070 a.C., que mostra como as palavras sábias e
justas convencem e encantam e que a indignação com a injustiça e com a maldade
humana é própria da condição do homem ao longo da história.

22
TÓPICO 3 | O DIREITO DOS POVOS DO ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO (MESOPOTÂMIA, HEBREUS E EGITO)

E
IMPORTANT

“Conto do Camponês Eloquente” trata-se de um antigo conto que pode ser


sintetizado da seguinte maneira:

O camponês andava pelo Egito, com seu jegue, vivendo de pequenos serviços que prestava nas
fazendas, mas ao passar por uma certa propriedade, foi surpreendido pelo administrador local que,
por maldade, queria tomar o animal do pobre homem. Para lograr êxito, o perverso homem jogou
um longo tecido no chão, forçando o camponês a desviar o caminho e passar pela plantação,
destruindo parte do que pertencia ao dono da fazenda. O administrador puniu o camponês,
retendo seu animal e os poucos bens que o pobre possuía e o agrediu, certo de que sairia impune
da injustiça que cometera. Inconformado, o camponês foi até a vila, onde vivia o proprietário da
área; foi recebido e fez sua queixa. O proprietário encantou-se com os argumentos do camponês.
Pelo prazer de ouvir tão bom orador, adiava a solução do caso para poder ouvir os belos e bons
argumentos. Até que, por fim, o camponês recorreu ao faraó, que também encantado, ordenou
que um escriba copiasse os argumentos do camponês bem-falante.
O caso permanecia aberto. Irritado, o camponês deixou a cidade, desesperado com a injustiça
que sofria, e o dono das terras ordenou que se capturasse o pobre homem. Para espanto do
pobre homem, o proprietário-juiz atendeu sua súplica, ordenando a devolução do seu animal
e dos bens sequestrados pelo injusto administrador. Determinou também que este último
entregasse ao camponês tudo o que possuía. O administrador ficou pobre, como o camponês
que um dia humilhou. Em recompensa, o camponês passou a administrar a propriedade.

Em geral, os historiadores costumam considerar que o povo egípcio era


adepto de punições curiosas e cruéis, chegando a serem sádicas. A flagelação era
adotada em muitos casos, assim como o uso de varas para arrancar confissões.
Abandono à voracidade dos crocodilos, estrangulamento, decapitação,
embalsamamento vivo e empalhamento eram formas de execuções.

Muitos autores ressaltam importantes institutos jurídicos, como Família,


considerada a célula social por excelência, era restrita ao pai, mãe e filhos menores
que ganhavam emancipação após certa idade; o Testamento, que permitia total
liberdade de deixar a salvo a reserva hereditária dos filhos. Os bens móveis e
imóveis eram passíveis de alienação, havendo comum prática de comércio,
evidenciando atividade contratual frequente.

Em síntese, a sociedade egípcia dominada pelas castas sacerdotais foi


marcada por toda uma cultura desenvolvida a partir da profunda religiosidade
dominada por um poder teocrático cuja obrigação era preservar o princípio de
Maat. Suas crenças e cultos serviam de base para toda organização política e
jurídica, bem como na literatura, arte, medicina e astronomia.

23
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

FIGURA 9 – GRAVURA NA PAREDE DO TEMPLO: OFERENDA A MAAT

FONTE: Disponível em: <https://www.projuris.com.br/como-era-o-direito-no-


egito-antigo>. Acesso em: 20 nov. 2017.

Nas paredes dos templos se poderia ver o faraó fazendo suas oferendas a
Maat e aceitando suas dádivas.

3 O DIREITO HEBRAICO: O SAGRADO ALICERCE DE UMA


NAÇÃO
Chama-se direito hebraico (Mischpat Ibri) ao conjunto de regras dos antigos
israelitas, povo de origem semita, marcado por sua natureza e origem divina. Desde
o monoteísmo é uma lógica de direito que tem como núcleo a Torah (Pentateuco),
composta por cinco livros sagrados: Gênesis (BereshitI), Êxodo (Shemot), Levítico
(Va-yikra), Números (Ba-midbar) e Deuteronômio (Debarin). São no total 613 leis que
compõem a Torah, sendo 365 preceitos negativos e 248 positivos.

Segundo a tradição, Moisés é a figura-símbolo da nação israelita, escolhido


por Deus para receber a revelação do Decálogo – dez mandamentos –, que acabou
se tornando o grande princípio ético, jurídico e religioso desse povo e assumido
pelo cristianismo.

24
TÓPICO 3 | O DIREITO DOS POVOS DO ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO (MESOPOTÂMIA, HEBREUS E EGITO)

FIGURA 10 – MOISÉS COM AS LEIS – QUADRO DE REMBRANT


(MUSEU DE BERLIM)

FONTE: Disponível em: <https://institutopoimenica.com/2012/09/17/


moiss-e-as-tbuas-da-lei-rembrandt/>. Acesso em: 12 nov. 2017.

Segundo as escrituras sagradas, todo fundamento de justiça é divino e


somente em Deus ela é perfeita e absoluta. Tendo como referência principal o
amor ao próximo e a caridade, o justo é aquele que dá o melhor de si para agir
segundo as leis de Deus, ajudando no progresso da humanidade sem medir
esforços para ajudar ao próximo.

As leis hebraicas, assim como outros povos da antiguidade, de caráter


civilista, diziam respeito a negócios entre particulares, ao uso do penhor como
garantia de débito, não permitindo a exploração de seu próximo, razão pela
qual alguns bens imprescindíveis para a sobrevivência eram impenhoráveis, não
podendo ser cobrada dívida no ambiente doméstico para não humilhar a família.

“Se emprestares alguma coisa a teu próximo, não invadirás a casa para
te garantires com algum penhor. Ficarás do lado de fora, e o homem a quem
emprestaste, te trará fora o penhor” (Dt. 24:10-11). Na Torah estão os principais
institutos jurídicos do povo hebreu, tais como:
• Família: de estrutura patriarcal, o pátrio poder era vitalício. As filhas
poderiam ser vendidas como escravas e havia a previsão de servidão
por dívida. A esposa poderia ser comprada e paga com moedas ou
serviços, podendo ser a mulher repudiada, o que não ocorria com os
homens, cuja punição apenas existia em caso de adultério praticado
com mulher casada.
• Sucessão: as mulheres não tinham direito sucessório e apenas o
primogênito tinha direito à herança.
• Penal: o conceito de crime e castigo era de natureza religiosa, tendo
como pena comum a morte por apedrejamento. São considerados
crimes graves os delitos contra a divindade – como idolatria e

25
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

blasfêmia –, contra seu semelhante – lesões corporais, homicídio etc.


–, delitos contra a propriedade – roubo, falsificações, furto; os contra
a honestidade – adultério, sedução etc. –, e contra a honra – falso
testemunho e calúnia.
• Penas: desde penas corporais, como pena de morte e flagelação, até
a excomunhão, além do uso da famosa pena de talião:
• Mas, se houver dano grave, então, darás vida por vida, olho por
olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por
queimadura, ferimento por ferimento, golpe por golpe (Êx. 21.23-25).

Destaca-se que o direito talmúdico – doutrina, estudo e interpretação dos


livros sagrados – ainda é pouco estudado em nosso meio acadêmico, o que, por sua
complexidade, sem dúvida, constitui um imenso legado à modernidade, sobretudo
pela sua inserção no cristianismo ocidental, como adiante será estudado.

4 O CÓDIGO DE HAMURABI: UMA PRECIOSA HERANÇA


DA MESOPOTÂMIA
A região da Mesopotâmia é a região do Oriente Próximo que legou
importantes escritos com relatos dos povos que lá habitaram desde o IV milênio
antes de nossa era. Os sumérios foram os primeiros habitantes a terem a preocupação
de desenvolverem um sistema de escrita, e por esta razão é possível que eles
tenham sido os criadores dos primeiros códigos. O Código de Ur-Nammu, datado
de aproximadamente 2040, é importante documento histórico constituído de leis
registradas em um maciço de pedra – estela, palavra de origem grega (stela), que
significa “pedra erguida” –, em monolitos com esculturas e/ou textos em relevo.

FIGURA 11 – A ESTELA DE UR-NAMMU

FONTE: Disponível em: <https://br.pinterest.com/pin/4461379


06816601475/>. Acesso em: 12 nov. 2017.

26
TÓPICO 3 | O DIREITO DOS POVOS DO ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO (MESOPOTÂMIA, HEBREUS E EGITO)

Outros códigos foram encontrados na região, tais como as Leis de


Eshnunna, datado de cerca de 1939 a.C., encontrado no sítio arqueológico de Tell
Harmal. Bem como o Código de Lipit-Ishtar em língua suméria, com traços de
escrita acádia, escrito por volta do ano 1860 a.C. Contudo, estudiosos chamam
a atenção para o fato de que esses códigos, chamados de pré-hamurábicos,
não formam propriamente um código no sentido moderno do termo, uma vez
que as leis das cidades não eram tratadas em tais documentos. Além de que,
a preocupação em sistematizar e organizar as leis em códigos é um fenômeno
próprio da modernidade, como adiante veremos.

De todos os antigos códigos da Mesopotâmia, sem dúvida, o mais


destacado é o Código de Hamurabi, encontrado em 1902 pelo arqueólogo francês
Jacques de Morgan no atual Irã e, atualmente, encontra-se no Museu do Louvre.
Escrito em letras cuneiformes em um monólito de pedra, é certo que se trata de
um conjunto de leis promulgadas pelo rei Hamurabi (1726 a.C. – 1686 a.C.), que
governou a Babilônia transformando-a em um grandioso império. No preâmbulo
do Código, com 282 artigos, se lê o seguinte texto:

Quando o alto Anu, Rei de Anunaki e Bel, Senhor da Terra e dos céus,
determinador dos destinos do mundo, entregou o governo de toda
a humanidade a Marduc; quando foi pronunciado o alto nome da
Babilônia; quando ele a fez famosa no mundo e nela estabeleceu um
duradouro reino cujos alicerces tinham a firmeza do céu e da terra,
por esse tempo Anu e Bel me chamaram, a mim Hamurabi, o excelso
príncipe, o adorador dos deuses, para implantar justiça na terra, para
destruir os maus e o mal, para prevenir a opressão do fraco pelo forte,
para iluminar o mundo e propiciar o bem-estar do povo. Hamurabi,
governador escolhido por Bel, sou eu; eu o que trouxe a abundância
à terra; o que fez obra completa para Nippur e Dirilu; o que deu vida
à cidade de Uruk; supriu água com abundância aos seus habitantes;
o que tornou bela a nossa cidade de Brasíppa; o que encelerou grãos
para a poderosa Urash; o que ajudou o povo em tempo de necessidade;
o que estabeleceu a segurança na Babilônia; o governador do povo, o
vservo cujos feitos são agradáveis a Anuit.

A breve leitura nos permite compreender quem foi Hamurabi e suas


virtudes como “executor da justiça”, “escolhido pelos deuses”, de “sabedoria
incomparável” e tantos outros atributos que tornavam seu Código uma autêntica
obra-prima para toda posteridade.

27
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

FIGURA 12 – CÓDIGO DE HAMURABI

FONTE: Disponível em: <https://i.pinimg.com/564x/42/


a1/25/42a125cc95523e92bb0c0dbcd278dbb6.jpg>. Acesso em:
12 nov. 2017.

Acima está o preâmbulo e a figura de Hamurabi diante do deus sumério


Shamash recebendo o Código, representado por uma régua. A seguir estão
dispostos os artigos que evidenciam institutos jurídicos, como contratos, vendas,
arrendamentos, empréstimos a juros, adoção etc., sendo bastante conhecidas as
penas punitivas aplicadas, que variavam de mutilações à morte na fogueira, por
enforcamento e empalamento. De todos os artigos, o mais conhecido é o 196,
que diz: “Se alguém vazou o olho de um homem livre, ser-lhe-á vazado o seu
também”. Repete a famosa lei de Talião, que, como já vimos, era referência comum
nos povos antigos para aplicação das penas.

DICAS

Sugerimos a você conhecer melhor todos artigos do Código de Hamurabi, no site:


http://www.ebanataw.com.br/roberto/pericias/codigohamurabi.htm. Você irá se surpreender
com a riqueza jurídica deste documento!

Em síntese, estudando brevemente os povos antigos, não é difícil perceber


que, em diferentes momentos da história e sob distintas formas, vamos sempre
encontrar um conjunto de normas que espelham os valores, a cultura, as relações
de poder e o modo de vida da sociedade, e a esse instrumento magnificamente
construído vamos chamar de Direito e Justiça, e em seu nome continuamos a
marcha da história e edificamos nossas civilizações.
28
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• Os povos da Mesopotâmia elaboraram os primeiros códigos da humanidade de


que se tem notícia.

• Os hebreus criaram seu direito com base em sua profunda fé e religiosidade e


legaram, através do cristianismo, princípios jurídicos relevantes à sociedade
contemporânea.

• Os egípcios, embora sem a mesma concepção de direito que os demais povos


antigos, possuíam regras de conduta relacionadas com a crença na vida pós-morte.

29
AUTOATIVIDADE

1 Com base no estudo realizado, estabeleça uma relação entre o direito dos
povos da Mesopotâmia, Egito e hebreus, destacando, no mínimo, dois
aspectos convergentes e divergentes.

30
UNIDADE 1
TÓPICO 4

O MUNDO GREGO ANTIGO

1 INTRODUÇÃO
No mundo grego antigo, encontramos a semente das primeiras reflexões
e indagações de natureza filosófica, política e jurídica a partir da qual floresceu
o pensamento ocidental. Por exemplo, no campo da política, a cidade de
Atenas legou ao mundo a ideia de democracia. Grandes pensadores tornaram-
se permanente fonte intelectual a todas as gerações que os seguiram. O modo
de vida, a cultura helênica corporificada nas majestosas obras literárias e os
princípios e valores éticos fazem do antigo mundo grego seguramente um dos
berços da humanidade. O mundo grego antigo, universo helênico, não era uma
unidade, mas sim um conjunto de pólis independentes.

FIGURA 13 – GRÉCIA NO SÉCULO V a.C.

FONTE: Disponível em: <http://www-storia.blogspot.com.br/2014/05/as-grandes-


guerras-no-mundo-grego.html>. Acesso em: 12 nov. 2017.

31
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

A concepção de vida cosmopolita grega, a vida na pólis, desenvolveu-se


lentamente a partir de um processo de sedentarização com a desagregação dos
primitivos clãs. A origem no Período Micênico (1500-1100 a.C.) confunde-se com
lendas e mitos que coincidem com a Idade do Bronze. Ao que se sabe, os antigos
habitantes da região foram os aqueus, cários, jônios e dórios, provavelmente
originários da Anatólia, com vínculos de parentesco que se espalharam após
guerras locais. A geografia da região, caracterizada por montanhas e terras de
pouca fertilidade e proximidade com o mar, fez com que esse povo se expandisse.

UNI

A península da Anatólia, “terra do hitita”, também conhecida como Ásia Menor,


é banhada pelo mar Negro ao norte, o Mediterrâneo a oeste, o mar de Mármara a noroeste.

Pode-se sintetizar a evolução histórica grega da seguinte forma:

QUADRO 1 – PERÍODOS DA HISTÓRIA GREGA


Período pré-homérico Período inicial de desenvolvimento cretense e minoico.
(1900-1100 a.C.) A sociedade grega como conhecemos ainda não havia surgido.
Período homérico Este período é descrito pelo poeta Homero, que narra em suas
(1100-700 a.C.) histórias “Ilíada” e “Odisseia” a etapa fundacional do povo grego,
em que mito, deuses e semideuses conviviam entre os homens.
Período de obscuridade (1150- Etapa sem a utilização da escrita, o que dificulta sua descrição
800 a.C.) histórica.
Consolida-se o conceito político de pólis, ao mesmo tempo em
Período arcaico (800-500 a.C.) que é criado o alfabeto fonético e há o desenvolvimento urbano
e econômico.
Auge do Império Grego, destacando as cidades-estados de
Período clássico (500-338 a.C.) Esparta e Atenas. Etapa marcada por dezenas de guerras
internas (Guerra do Peloponeso) e externas (guerras médicas).
Período helenístico Período marcado pela grande expansão macedônica, fazendo
(338-146 a.C.) fundir-se a cultura grega com outras culturas orientais.
FONTE: A autora

Nas distintas pólis, mesmo nas grandes Atenas e Esparta, havia


especificidades quanto aos modelos políticos que vigoraram em inúmeras
ocasiões, são eles:

• Tirania: Diferente do que entendemos hoje, a tirania caracterizava-se pela


tomada do poder por um indivíduo nobre que elaborava leis e projetos políticos,
alguns para diminuir as desigualdades sociais, como divisão igualitária da terra
e perdão de dívidas.
• Democracia: Grande conceito político legado ao mundo ocidental que se exercia
através da eleição de seus membros sorteados ou escolhidos entre os cidadãos.
32
TÓPICO 4 | O MUNDO GREGO ANTIGO

• Aristocracia ou oligarquia: Nesse modelo, o cargo de magistrado era hereditário


e predominava a decisão dos conselhos.

Ao longo da história grega floresceram como principais cidades:

• Atenas: Principal cidade com forte desenvolvimento econômico. Berço da


democracia e da filosofia, foi fundada pelo Jônios, liderou a liga das cidades
democráticas (liga de Delos).
• Esparta: Sua grande característica diz respeito à sua educação. Os meninos já
eram treinados e educados com um único propósito: servir Esparta. Quando
a criança completava sete anos de idade, a responsabilidade de orientá-lo não
cabia mais aos seus pais e sim ao Estado espartano.

FIGURA 14 – MENINO TRANSFORMADO EM SOLDADO

FONTE: Disponível em: <http://kid-bentinho.blogspot.com.br/2013/12/9-razoes-


que-mostram-o-quao-dificil-era.html>. Acesso em: 12 nov. 2017.

DICAS

Neste site você encontra interessantes informações sobre o modo de vida


espartano e quão difícil era viver naquela cidade e naquela época! Disponível em: <http://kid-
bentinho.blogspot.com.br/2013/12/9-razoes-que-mostram-o-quao-dificil-era.html>. Acesso
em: 20 nov. 2017.

Em particular, os atenienses consideravam a vida pública, a vida na


pólis, a forma mais perfeita de convivência humana que deveria ser aprimorada
pelos homens. No período áureo da democracia (entre os anos 580 a 338 a.C.), os
cidadãos, homens livres e iguais, deliberavam sobre seus destinos políticos. A
concepção de cidadania grega é muito distinta da atual. Apenas eram cidadãos
os nascidos em Atenas, homens e maiores de 20 anos, ficando excluídos os
estrangeiros (metecos), as mulheres e a grande massa de escravos.

Para os atenienses, o homem que não era político ou não se interessava


pela política era um inútil.

33
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

Reunidos na Ágora, espécie de praça pública, deliberavam com entusiasmo


sobre as grandes questões da pólis, desempenhando o mesmo papel que hoje é
reservado aos Parlamentos de Estado. Esse era o sentido de democracia: o cidadão
decidindo diretamente sobre seu destino. Porém, se compararmos aos dias atuais, o
procedimento não era democrático, uma vez que poucos participavam e decidiam.
Segundo os historiadores, Atenas, por volta do ano 480 a.C., contava com 30.000
cidadãos (homens livres e adultos), 90.000 mulheres e crianças, e mais a grande
massa de escravos e estrangeiros, somando um total de 150.000 habitantes. No
auge dessa civilização, em 430 a.C., Atenas chegou a ter 250.000 habitantes, sendo
40.000 cidadãos, 120.000 mulheres e crianças, 20.000 estrangeiros e 60.000 escravos.

FIGURA 15 – ÁGORA – SÍMBOLO DA DEMOCRACIA

FONTE: Disponível em: <http://obviousmag.org/filosofia_tecnologia_arte_e_pensamento/


autor/>. Acesso em: 8 jan. 2018.

Em Atenas, pelas constantes guerras e condições de saúde da época o


índice de mortalidade era muito alto e, consequentemente, a longevidade era
baixa. A cada 100 adultos com 20 anos, 70 viviam até 30, 25 até os 60 e somente
7 vivam até os 80 anos. A mortalidade era maior entre as mulheres porque a
gestação e parto eram de alto risco.

Os homens casavam-se, em geral, após o serviço militar, após os 30/40


anos e as mulheres perto dos 20.

Os escravos trabalhavam ao lado de seus senhores na agricultura, no


serviço doméstico e públicos, como burocratas, recebendo tratamento quase
familiar, pouco se distinguindo dos homens livres, seja pela vestimenta, seja
pela cultura ou modos. Os escravos eram prisioneiros de guerra e de pirataria,
vendidos por mercadores estrangeiros, possivelmente capturados nas guerras.
O que chama a atenção de muitos historiadores é que se tem poucas notícias de
rebeliões de escravos, diferente de Roma, como veremos a seguir.

34
TÓPICO 4 | O MUNDO GREGO ANTIGO

Nas relações familiares se conhecia o divórcio recíproco, com iguais


direitos para homens e mulheres. Praticavam de maneira legal o abandono de
crianças. Diferenciavam-se na maneira de se vestir, tornando visível a diferença
entre pobres e ricos, uma vez que as roupas tendiam a ser semelhantes para as
mesmas classes sociais. Talvez por essa razão se considerava crime o furto de
roupas no ginásio de esporte.

A religiosidade grega era constituída por festivais, rituais, divertimentos,


sacrifícios, oráculos etc. Era um tipo de religiosidade pouco dogmática e pouco
doutrinária. Nos diz Finley (1998, p. 10) que:

O que falta – exceto entre raros pensadores isolados, sem influência


sobre o povo, como por exemplo, Platão e Epicuro – era um conjunto
de doutrinas sistematicamente formulado, um dogma ou um
credo. Assim, podia também ocorrer blasfêmia ou sacrilégio – mau
procedimento para com os deuses, o que lhes provocaria a ira, se não
fosse punido – porém nem ortodoxia nem heresia.

Toda religiosidade grega era inerente ao politeísmo, que foi aumentando


pelo acréscimo ao longo dos séculos de seres sobrenaturais – deuses, semideuses,
espíritos, demônios, heróis etc. – com “personalidades” peculiares. Não era
possível conhecer a todos e muito menos descrevê-los. Somente na Teogonia de
Hesíodo constam 350 nomes.

NOTA

“Teogonia” é um termo que vem do grego “teo” (deus) e “gonia” (nascimento).


Poema épico escrito provavelmente no século XIII a.C., possui 1.022 versos, estabelece uma
ordem cronológica e hierárquica entre os deuses e demais entes mitológicos que faziam
parte do imaginário grego da época. Trata-se de uma obra grandiosa, comparada às grandes
narrativas de Homero.

FIGURA 16 – TEOGONIA

FONTE: Disponível em: <https://www.resumoescolar.com.br/historia/teogonia-


de-hesiodo/>. Acesso em: 15 nov. 2017.

35
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

Cada comunidade cultuava suas divindades ou deuses protetores, para


os quais havia cultos cívicos e cada família reconhecia a deusa Héstia, protetora
do lar. Obedeciam aos oráculos e participavam das festividades promovidas pelo
Estado ao ar livre. Faziam altares e muitos sacrifícios e nada se prendia a uma
autoridade central. Não havia “igrejas”. Portanto, não havia seres humanos com
missão divina. Nos diz Finley (1998, p. 13) que “a palavra grega hiereus (sacerdote)
normalmente se refere a um celebrante leigo encarregado da administração do
culto público”. Em Atenas, o mais importante celebrante era um Arconte, que
recebia o nome de baliseus. Regras e procedimentos lhe eram impostos e ocupava
o cargo por um curto período de tempo.

NOTA

“Arconte” eram os antigos magistrados, cargo reservado somente aos cidadãos


e filhos da pólis.

Politicamente, inexistia uma autoridade grega central. As pólis


surgiram no período helênico, que foi a fase áurea. Antes disso, o mundo era
constituído por pequenas comunidades autônomas que se autodenominavam
poleis. Ocasionalmente, faziam alianças entre si para guerrearem entre si ou
comercializarem, mas nunca a ponto de impor seus costumes ou cultura. Portanto,
não havia uma uniformidade ou unidade entre os gregos antigos.

Entendem muitos historiadores que esta autonomia e ausência de


autoridade central contribuía para a preservação do modo de pensar e ser do
povo grego, porque não havia contradição entre o “império” e o “súdito”, o que
não despertaria sentimento ou necessidade de resistência.

Porém, foi a política – vida na pólis – que permitiu florescer a civilização grega
a partir do século VIII a.C. Após o longo período chamado de homérico, porque nos
é permitido conhecer através das narrativas épicas de Ilíada e Odisseia, a realeza
entra em crise, cedendo espaço à aristocracia, que se apropria progressivamente
das prerrogativas de poder. Nesta fase, o poder é repartido entre as elites, que o
desmembram em três funções: militar – exercida pelo Polemarco; administrativa –
exercida pelo Arconte e religiosa – exercida pelo Arconte Baliseus.

Neste primeiro momento, o poder começa a sair das mãos da aristocracia


(esfera privada) e vai sendo transferido para a ordem pública. Assim, o poder
não é mais exercido por uma pessoa. O poder – arché – passa a ser uma função
cujo exercício é escolhido por tempo determinado e começa a ser apropriado
pelos que possuíam direito de cidadania. Ao longo da história de Atenas,
principalmente entre os séculos VIII e IV a.C., há uma crescente expansão das
prerrogativas políticas para os homens livres, que vai edificar o grande legado
36
TÓPICO 4 | O MUNDO GREGO ANTIGO

daquela civilização: a democracia, chamada como isonomia – igualdade perante


a lei. Esse regime tornou-se complexo, caracterizado pela rotatividade de controle
e exercício de poder, assegurando a maior participação possível.

Esse regime teve como base as reformas políticas promovidas por Clístenes
(509-508 a.C.), que democratizou os mecanismos de participação, csegundo os
quais cada cidadão, em algum momento de sua vida, seria governante. Dessa
maneira, rompiam-se as barreiras entre governantes e governados e os cidadãos
tornam-se “senhores de seu destino”.

É a partir dessas bases que vamos compreender o direito grego, porque é


o direito que estará nas bases de sustentação desse regime.

2 A CONCEPÇÃO DE DIREITO E JUSTIÇA GREGA


É comum se dizer que os gregos, ao contrário dos romanos, na tradição
jurídica pouco legaram ao Ocidente. Essa é uma meia verdade!

Primeiramente, a filosofia grega teve papel relevante para a edificação


do pensamento jurídico moderno. Conforme o estudo da Filosofia do Direito, a
concepção de lei como expressão da vontade de uma coletividade e como regulação
da vida comum na cidade – na pólis – é que norteou a filosofia grega para pensar
a ordenação do mundo a partir da racionalidade. Os sofistas, com seus debates
filosóficos, contribuíram para se pensar sobre as grandes questões humanas, a
liberdade e o sentido da justiça. Como se faz a lei? A quem elas servem e para
que servem? Essas questões faziam com que os sofistas fossem malvistos. Talvez
porque ensinavam o que todos deveriam saber: o bem e o direito à liberdade.

Os debates filosóficos que se aprofundam e se reorientam com Sócrates,


Platão e Aristóteles, que foram além do senso comum, contribuíram para a criação
de um espaço público em que o discurso vai muito além do mito. Até então
eram os poetas-videntes que recebiam das deusas, ligadas à memória (deusa
Mnemosyne), uma iluminação, revelação sobrenatural, que dizia como os homens
deveriam tomar suas decisões segundo a vontade dos deuses. Com os filósofos
surge a política e a ideia de que os homens deveriam seguir as leis e a justiça
segundo a vontade de cada um, expressa publicamente, que deveria convencer
aos demais. O diálogo, a palavra partilhada, passa a conduzir a decisão racional.
A política valoriza o humano, seu pensamento e capacidade de persuasão.

A solidariedade cívica da vida na pólis exige regras universais e justas.


Sobre o assunto, Lima Lopes (2012, p. 22) traz que:

37
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

Talvez não seja por acaso que os estoicos no final do século IV a.C.
e nos séculos seguintes completem mais um salto qualitativo na direção da
universalidade. Se acima das solidariedades familiares é possível construir uma
solidariedade cívica, então é possível que haja uma solidariedade ainda mais
universal, cosmopolita. Num mundo construído pelo império helenístico e depois
pelo império romano, num Mediterrâneo totalmente helenizado, os estoicos vão
pregar uma cidadania universal, um pertencimento ao gênero humano. E os
juristas romanos serão, a seu tempo e a seu modo, influenciados pelas reflexões
estoicas, para falarem de ius gentium.

Lima Lopes (2012) ainda nos esclarece muito bem como os debates
filosóficos acerca da pólis vão edificando uma civilização que será vista pelos
estrangeiros e por si mesmos como um modelo.

Compreender o direito e a justiça grega é compreender o próprio modo


de vida na cidade como resultado da superação dos antigos vínculos familiares,
portanto, deve-se estudar o direito grego desde a consolidação da política e da
filosofia, uma vez que as leis e seus fundamentos brotam das relações entre os
cidadãos unidos pelo sentimento de justiça.

Porém, estudar direito grego exige do pesquisador um grande esforço,


uma vez que há precariedade de suas fontes, mas quais são as fontes do direito
grego? Para o historiador Gilissen (1995, p. 11), são cinco as fontes do direito:

• As epopeias de Homero (Ilíada e Odisseia).


• Os discursos e obras literárias e filosóficas.
• As inscrições jurídicas encontradas nas obras arquitetônicas.
• Os fragmentos de leis.

DICAS

Pesquise sobre a famosa Biblioteca de Alexandria, que reuniu as maiores obras


da antiga Grécia. Diziam que reunia os “livros de todos os povos da Terra”, chegando a reunir
milhares de antigos pergaminhos e rolos de manuscritos. Diversas narrativas contam sobre sua
destruição. Há um interessante filme que certamente você irá gostar: “Alexandria”.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=6UURHhHiIc4>. Acesso em: 15 nov. 2017.

38
TÓPICO 4 | O MUNDO GREGO ANTIGO

Por exemplo, na conhecida e clássica obra de Sófocles Antígona, escrita


no século V a.C., Antígona era uma das filhas de Édipo, trágica figura masculina
amaldiçoada pelos deuses por ter assassinado seu pai e, por engano, casado
com sua mãe e ter assumido o trono do pai assassinado. Após a morte de Édipo,
conta a estória, irrompe uma guerra civil e trava-se uma batalha nas portas da
cidade de Tebas. Seus dois filhos comandam facções rivais e travam uma batalha
e matam-se. O irmão de Édipo, Creonte, tio de Antígona, era então senhor da
cidade e resolve transformar a morte de Policine, o irmão que havia lutado contra
ele em escárnio, e determina que seu corpo permaneça insepulto. A morte seria
decretada ao que contrariasse tal ordem.

FIGURA 17 – ANTÍGONA ENTERRA SEU IRMÃO

FONTE: Disponível em: <http://portfoliocursoevc.blogspot.com.


br/2013/04/video-aula-1-contexto-historico-dos.html>. Acesso em:
15 nov. 2017.

Antígona, perturbada pela morte dos irmãos, mas não aceitando que
um fosse sepultado com honras enquanto o outro servisse de comida para os
abutres, decide contrariar o rei. Ela se sente motivada pelo dever normativo que
transcende sua posição de súdita e, entre a obrigação imposta pelo rei e as leis
divinas de sepultar seu irmão, dá ao corpo de Polinice um fim honroso. Quando
descoberta, é levada diante do rei Creonte, que oferece a oportunidade de negar
que tivesse conhecimento de sua lei, sua determinação, a fim de salvá-la do triste
fim. De forma corajosa, Antígona nega a oferta do rei. Leia o belo diálogo:

39
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

Creonte: ô Antígona. Que parte da minha ordem “não pode enterrá-lo” você
não entendeu? Vai dizer que não sabia?
Antígona: Estaria mentindo se dissesse que não conhecia a ordem. Como
poderia ignorá-la? Ela era muito clara.
Creonte: Portanto, tu ousaste infringir a minha lei? Tá maluca?
Antígona: Descumpri mesmo. Quer saber por quê? Porque não foi Zeus que a
proclamou! Não foi a Justiça, sentada junto aos deuses inferiores;
não, essas não são as leis que os deuses tenham algum dia prescrito
aos homens, e eu não imaginava que as tuas proibições fossem assaz
poderosas para permitir a um mortal descumprir as outras leis, não
escritas, inabaláveis, as leis divinas! Estas não datam nem de hoje nem
de ontem, e ninguém sabe o dia em que foram promulgadas. Poderia
eu, por temor de alguém, qualquer que ele fosse, expor-me à vingança
de tais leis?

Esta magnífica obra nos traz muitas tensões, dentre as quais as “legais”,
quais sejam:

• A exigência do Direito Natural frente ao Direito Positivo.


• A imperatividade da norma jurídica.
• O primitivo e incipiente exemplo de desobediência civil.
• O dever do indivíduo para com sua família versus seu dever para com o Estado.
• A subjetividade individual frente às regras objetivas do corpo social.

O drama existencial de Antígona é muito pessoal e as regras do poder


instituído não lhe davam respostas! Será que nos dias de hoje dariam?

Antígona nos fala dos aspectos trágicos e contraditórios da existência


humana, talvez sem solução.

A obra nos serve de início ao estudo do direito grego. Nos ensina que
quando as instituições não oferecem possibilidade de debate e questionamentos,
emergem ambiguidades e abusos de poder.

As leis mais antigas que se conhece são as leis de Drácon, de 621 a.C.
Colocam fim à solidariedade familiar e tornam obrigatório o recurso aos tribunais
para os conflitos entre os clãs. Como já dito, o fim da solidariedade familiar cria as
bases para uma solidariedade cívica, para além do círculo familiar.

40
TÓPICO 4 | O MUNDO GREGO ANTIGO

FIGURA 18 – DRACO – LEGISLADOR GREGO

FONTE: Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/sobre-palavras/


draco-o-primeiro-dos-draconianos/#>. Acesso em: 15 nov. 2017.

Conhecido pela severidade, lei draconiana passou a ser sinônimo de lei dura,
o primeiro código de Atenas introduziu importantes conceitos do direito penal, tais
como: a diferença entre homicídio voluntário, involuntário e legítima defesa.

Posteriormente, já entre os anos de 594 e 593 a.C., Sólon cria um novo


código de leis, promovendo ampla reforma institucional, social e econômica. Na
economia, além de incentivar a cultura de oliveiras e vinhas, bem como a exportação
de azeite, atraindo muitos estrangeiros com a promessa de cidadania, obrigou
os pais a ensinarem um ofício a seus filhos, sob pena de ficarem desobrigados
a ampará-los na velhice. Criou o Tribunal da Heliaia, no qual qualquer pessoa
poderia recorrer garantindo o princípio de que a lei está acima de qualquer
magistrado. Esse Tribunal julgava tanto causas públicas como privadas, exceto os
crimes de sangue. Seus membros eram os chamados heliastas e eram escolhidos
por sorteios anuais entre os cidadãos. Juridicamente, Sólon instituiu a igualdade
civil e suprimiu a propriedade coletiva dos clãs, além de acabar com servidão por
dívida, estabeleceu institutos importantes como a adoção, testamento etc.

A democracia é uma criação de Sólon. Através de assembleias, os


cidadãos tomavam a justiça em suas mãos e com isso promoviam o debate sobre
a justiça e o ético.

Nesse modelo, a retórica era parte essencial para o convencimento


daquilo que cada cidadão defendia e acreditava. O objetivo era persuadir pela
força dos argumentos.

Na prática da justiça ateniense não havia advogados, juízes, promotores


públicos; apenas os litigantes, os adversários, se dirigiam aos membros do
Tribunal. Pensar em prática de advocacia naquele tempo era impossível! Seria
uma espécie de cumplicidade para enganar e/ou fraudar. Mesmo assim, havia
os chamados “logógrafos”, que redigiam os discursos que a parte deveria fazer.

41
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

Para evitar a corrupção na prática da justiça, os gregos criaram a “delação


premiada”, mas acabou por existir a odiosa figura do falso delator, que recebia
o nome de sicofanta, adjetivo pejorativo e desonroso, que significa caluniador e
mentiroso interesseiro!

Portanto, toda base do direito e da democracia ateniense era a soberania


popular, que era expressa na voz de seus cidadãos, no exercício de suas funções
públicas, no voto nos tribunais e na participação em assembleias e conselhos.
Observe a figura a seguir:

FIGURA 19 – ANTIGA ATENAS


ACROPOLIS
Parthenon ATENAS
Século V a.C.

Assembly

Strategeion
Mint Fountain South Stoa Law Court
House
Tholos
Unfinished Panathenaic AGORA
Law Court Way Bouleuterion
Temple of Hephaistos

Altar of the 12 Gods Stoa


of Zeus

Royal
Stoa

Painted
Stoa

FONTE: Disponível em: <http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/protagoras2/links/atenas.


htm>. Acesso em: 15 nov. 2017.

A figura é uma representação da antiga Atenas. Veja que a Ágora – praça


central da cidade – ocupa lugar de destaque. Aí ocorriam os grandes debates políticos.
A arquitetura da época nos diz muito sobre como era o cotidiano da cidade.

3 A ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA E JUDICIAL DE ATENAS


Como já dissemos, Atenas não somente era a mais importante cidade grega
antiga. Também foi o berço da erudição, da filosofia, do conhecimento, um centro
cosmopolita que alcançou grande desenvolvimento. Em suas ruas circulavam
filósofos e artistas atraídos pela valorização da cultura de seus habitantes.
42
TÓPICO 4 | O MUNDO GREGO ANTIGO

Chamava a atenção a sofisticada organização judiciária em Atenas, que se


tornou clássica no Ocidente.

Em síntese, havia duas espécies de órgãos de jurisdição: para os crimes


públicos e para casos menos importantes. Estes últimos eram feitos por um
magistrado singular ou poderia ser pedido apelo para Assembleia propriamente
(Heliastas), que funcionava em grupos.

Para os crimes públicos:

• Assembleia do Povo: composta por senadores e magistrados populares que


decidiam sobre crimes políticos graves.
• Aerópago: o mais antigo e célebre Tribunal. Julgava crimes apenados com a morte.
• Tribunal dos Efetas: composto por 51 juízes escolhidos pelo Senado, julgava
homicídios não premeditados.
• Tribunal da Heliaia: Assembleia que se reunia em praça pública julgando recursos.

Evidente que a ausência de juristas profissionais e a confusão de leis


acabavam tornando os Tribunais espaços de debates políticos.

Nos tribunais apenas se provava o direito, segundo a lei ou o costume,


além dos fatos. Também não havia uma execução judicial: o queixoso recebia
o julgamento e se encarregava de executá-lo. Não havia polícia judiciária como
entendemos nos dias de hoje.

FIGURA 20 – ORATÓRIA: TRIBUNAL GREGO

FONTE: Disponível em: <https://salmopresente.wordpress.com/2014/05/07/a-


teologia-dos-filosofos-gregos-e-a-teologia-crista/>. Acesso em: 15 nov. 2017.

Afinal, como funcionavam os tribunais?

43
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

Como já dissemos, era indigno e imoral receber dinheiro pela defesa de


alguém e, por essa razão, quando isso ocorria, era às escondidas! A ideia era a
de que qualquer cidadão poderia se apresentar no tribunal perante juízes para
receber uma resposta simples: sim ou não.

Foi imenso o legado grego ao direito contemporâneo, tanto nos universais


conceitos de justiça e democracia, como em algumas características essenciais de
nosso direito, tais como:

• A mediação e arbitragem.
• A retórica e eloquência jurídica.
• A transferência de propriedade somente por contrato.
• O julgamento de um cidadão por seus pares, por cidadãos comuns. Prática
essencial da democracia e inventada pelos atenienses.
• Publicidade dos atos processuais como procedimento democrático.
• Diferenciação entre homicídio voluntário, involuntário e legítima defesa.

Os vestígios da clássica Atenas – esculturas, arquitetura, escritos etc. – são


suficientes para nos mostrar o quão grandiosa foi aquela civilização. O “mundo
grego” antigo foi portador de profundas mudanças na visão de humanidade, de
vida coletiva e do ser humano sobre si mesmo.

Por evidente que o modo de vida grego não era perfeito! Todavia, não
eram mais selvagens ignorantes e escravos da força das circunstâncias.

O breve trecho transcrito da obra de Aristóteles, “Política”, é o melhor


testemunho e atestado autorizado do que entendiam os gregos por democracia,
justiça e liberdade, sem dúvida, essências da condição de humanidade:

O fundamento do regime democrático é a liberdade; (com efeito,


costuma-se dizer que somente sob esse regime há liberdade, pois esse é o fim
para o qual se destina a democracia). Uma das características da liberdade é
ser governado e governar por turnos, pois a justiça democrática consiste em
possuir todos o mesmo numericamente, e não segundo os seus merecimentos;
e isto é justo, forçosamente há de ser soberana a multidão, e o que esta aprovar,
por maioria, será justo [...] Outra característica é viver como se quer, a qual
resulta daquela liberdade. Esta é a segunda democracia: não ser governado
por ninguém, se isto for possível, ou se governado por turnos [...] Sendo estes
os fundamentos da democracia, são procedimentos democráticos os seguintes:
todas as magistraturas devem ser eleitas entre todos; que todos mandem sobre
cada um, e cada um a seu turno, sobre todos; que as magistraturas sejam
providas por sorteio, ou, pelo menos, aquelas que não requeiram experiência
ou habilidades especiais; que não se fundamentem na propriedade, ou na
menor possível; que, em princípio, a mesma pessoa exerça duas vezes alguma
magistratura; que as magistraturas sejam de curta duração [...] que a assembleia
tenha soberania sobre todas as coisas [...] (Política, 8,2,1.317a e 1.317b)

44
TÓPICO 4 | O MUNDO GREGO ANTIGO

4 O HELENISMO
“Helenismo” é o nome dado ao período compreendido entre a morte
de Alexandre, o Grande,  em  323 a.C.,  e a anexação da península grega e ilhas
por Roma em 146 a.C. Nesta etapa da história, há uma grande difusão da civilização
grega numa vasta área: do Mediterrâneo oriental à Ásia Central. Representou a
concretização do ideal de Alexandre: o de levar e difundir a  cultura grega nos
territórios que conquistava. Foi um período áureo para as ciências. Tempo que
marcou a transição para o domínio e apogeu de Roma.

No século IV a.C., após os conflitos causados pela Guerra do Peloponeso,


as pólis gregas sentem de perto o declínio de seu poder. Já não podendo mais
garantir a autonomia de seus territórios, tornaram-se “presa fácil” para povos
estrangeiros. Ao norte da Grécia, a civilização macedônica começava a empreender
um projeto expansionista que, em pouco tempo, foi capaz de assegurar o controle
sobre o mundo grego. A partir desse processo de dominação é que se iniciou o
chamado Período Helenístico.

Em três séculos há um processo de transformação na vida dos povos


conquistados. Hábitos são modificados e em especial há o ideal de estabelecer
uma língua comum com a superação do ático puro antigo. Prosperam a filosofia,
a arte, filosofia, arquitetura, medicina etc.

São erguidas grandes cidades e sofisticando-se as já existentes.


Tessalônica, Corinto, Pérgamo, Éfeso, Rodes, entre outras, tornam-se as grandes
capitais do mundo.

FIGURA 21 – COLOSSO DE RODES

FONTE: Disponível em: <http://www.jornalissimo.com/curiosidades/423-10-


curiosidades-sobre-o-colosso-de-rodes>. Acesso em: 15 nov. 2017.

45
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

NOTA

Colosso de Rodes – uma das sete maravilhas do mundo antigo.

• Enorme estátua revestida a bronze representava Hélios, o deus grego do Sol. Hélio era
adorado pela população da ilha situada no Mar Egeu, que o via como seu protetor.
• O colosso foi erguido para celebrar a vitória dos gregos contra os macedônios (o povo
que habitava a antiga Macedônia, no norte da Grécia, cujo rei mais célebre foi Alexandre, o
Grande), que tentaram invadir a ilha de Rodes em 305 a.C., liderados pelo rei Demétrio I.
• A construção do monumento seria iniciada menos de dez anos depois, em 294 a.C. Durante
muitos anos, pensou-se que cada pé da estátua ficava de um lado da entrada do porto da
ilha e que os barcos passavam por baixo, mas esta versão foi afastada mais tarde por estudos
arqueológicos, que garantiram que a estátua se situava no cimo de uma colina.
• O custo do Colosso teria sido suportado pela venda do material de guerra abandonado
pelos macedônios.
• A medida da estátua seria equivalente à de um prédio de dez andares - perto de trinta
metros de altura. O seu peso é estimado em 70 toneladas.
• Calcula-se que tenham sido precisos doze anos para erguer o Colosso. Permaneceu em
pé pouco mais do que 50 anos. Em 225 a.C. um violento tremor de terra fê-lo ruir. Mesmo
em pedaços, o monumento continuou a atrair pessoas.
• O que restava do gigante ficou em Rodes até 654 d.C. Nesse ano, os árabes invadiram a ilha
e venderam as ruínas em bronze.
• Até hoje, o Colosso de Rodes continua envolto em um enorme mistério. Há quem pense
que se trata apenas de uma lenda contada pelo povo da ilha, que foi passando de geração
em geração.

FONTE: Disponível em: <http://www.jornalissimo.com/curiosidades/423-10-curiosidades-


sobre-o-colosso-de-rodes>. Acesso em: 15 nov. 2017.

Alexandria passa a ser um grande centro cosmopolita de população


heterogênea com tradicionais famílias egípcias. De uma aldeia de mercenários
rudes, Alexandria se transforma em um grande centro de comércio e navegação.
O esplendor de sua biblioteca atraía um sem-número de jovens, pesquisadores,
estudiosos e educadores.

O helenismo carrega em si um paradoxo: ao mesmo tempo em que se


assiste à decadência das cidades-estados, o espírito que dali partiu se expande
e se aprimora. Assim, o velho “mundo grego”, embora fragmentado e dividido
pelos grandes generais e conquistadores que sucederam a Alexandre, sobrevive.

No pensamento dos epicuristas e estoicos, supera-se a preocupação


filosófica dos clássicos pensadores políticos gregos. Na época helênica, os
propósitos da reflexão se dirigem à busca de regras universais capazes de conduzir
os homens a uma nova concepção de mundo e de vida. Busca-se uma “âncora”
filosófica para a vida espiritual. Qualquer pessoa minimamente culta deveria
adotar atitudes fundadas no culto à amizade, amabilidade social, prudência,
virtude e um modo inabalável e positivo de seguir a vida.

46
TÓPICO 4 | O MUNDO GREGO ANTIGO

Epicuro de Salmos e Zenão ensinavam que é necessário nos afastarmos


das paixões e buscar um ponto de equilíbrio para superar o desatino das emoções
e o autocontrole excessivo: o justo está no meio! A serenidade do espírito, diziam,
conduz a uma vida feliz.

Séculos depois, essas doutrinas renascem em Roma através de Cícero


e Sêneca.

No Ocidente, ao longo da história, nunca se deixou de admirar a


extraordinária e complexa cultura grega. Para nós, juristas, o legado grego,
mantido e aprimorado por Roma, é permanente fonte de compreensão de conceitos
universais que se imortalizaram. Ainda nos dias de hoje, passados muitos séculos,
estamos buscando o essencial e substancial na justiça, ética e direito. A história
grega segue entre nós. No entender do pensador Finley (1998, p. 345):
Quer tivessem uma visão original das coisas porque chegaram
primeiro, quer fosse por acaso que, chegando primeiro, reagissem à
vida com uma perspicácia sem paralelo, os gregos, de qualquer forma,
mantiveram um brilho perene, como se o mundo fosse iluminado por
aquela espécie de luminosidade das seis da manhã sobre o orvalho
indelével na grama. A cultura dos gregos permanece entre nós, porque
esse frescor puro torna-a nosso modelo como a própria juventude.

FIGURA 22 – ATENA: DEUSA DA SABEDORIA, PRUDÊNCIA, CAPACIDADE DE


REFLEXÃO, PODER MENTAL, AMANTE DA BELEZA E DA PERFEIÇÃO

FONTE: Disponível em: <http://www.infoescola.com/mitologia-grega/


atena/>. Acesso em: 18 nov. 2017.

47
RESUMO DO TÓPICO 4
Neste tópico, você aprendeu que:

• Os gregos antigos, particularmente os atenienses, foram os que romperam com


o pensamento mítico.

• Os gregos elaboraram, desde uma cosmogonia, os grandes fundamentos éticos


e filosóficos do direito ocidental.

• Embora com distinções entre as pólis gregas, a relação entre direito, política e
cidadania é a essência do conceito de justiça naquela sociedade.

48
AUTOATIVIDADE

1 Considere a seguinte afirmação: A História do Direito grego antigo deve


levar em consideração a variedade da Grécia, com suas diferentes pólis, e
também um tempo histórico bem grande, que vai dos séculos XX a.C. a
IV a.C. Devido a esses fatores, alguns historiadores do direito chegam a
colocar em dúvida a possibilidade de se criar uma História do direito grego
antigo, uma vez que se discute a unidade desse direito. Os historiadores do
direito grego costumam adotar uma divisão temporal visando classificar o
tipo de direito a que eles se referem, e para isso adotam marcos históricos.
Assim, são possíveis diferentes classificações temporais da história grega,
que servem também para delimitar o tipo de direito produzido. É possível
encontrar uma divisão do direito utilizando as seguintes classificações
segundo períodos: a) pré-homérico/micênico (XX-XIII a.C.), homérico (XII-
IX a.C.), arcaico (VIII-VII a.C.), clássico (VI-IV a.C.); b) jônico-dórico, ático,
alexandrino e romano-cristão; c) arcaico, clássico, helenístico e romano. Ao
se elaborar uma história do direito grego antigo é preciso que o historiador
atente para cada época da sociedade à qual se refere, uma vez que o direito
de cada uma delas é muito diferente.

FONTE: Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/pdfsGerados/artigos/11416.pdf>.


Acesso em: 18 nov. 2017.

Com base no estudo do tópico e na afirmação acima, como você diferencia o


direito pré-homérico do clássico na antiga Grécia?

49
50
UNIDADE 1
TÓPICO 5

O LEGADO ROMANO

1 INTRODUÇÃO
O legado grego e o helenismo se expandiram e se perpetuaram graças
ao Império Romano a partir do século II a.C., quando Roma leva a cultura e
civilização do Mediterrâneo oriental para o Norte e Oeste europeu.

Roma foi uma das grandes, se não a maior, potência política da história.
A expansão imperial para inúmeros poderosos reinos e cidades, como Cartago e
Macedônia, além de prósperas cidades gregas derrotadas em guerra e que tiveram
seus territórios anexados, fez de Roma, em 150 a.C., “senhora do Mediterrâneo”.

Para os povos conquistados da Europa Central e Ocidental, a expansão


imperial romana trazia consigo, além da cultura, a dominação militar e econômica.
Todos sucumbiam. As cidades gregas que se alastravam pelas costas do Mediterrâneo,
as terras cartaginesas no norte da África e Ibéria ocidental, os territórios etruscos do
Norte da Itália foram dominados. No auge da conquista, mesmo com disputas e
crises políticas internas, os romanos se impunham aos “bárbaros”.

O comércio era intenso. Os mercadores romanos levavam vinho e artigos


diversos por um vasto território que alcançava o sul das ilhas britânicas, e traziam
metais, peles, mel, lã, azeite etc. e comercializavam escravos.

As conquistas eram movidas por ambição, pelas recompensas para os


aliados e pelo ganho financeiro. Na época de Augusto (27 a.C. – 14 a.C.) a tarefa
mais urgente era alimentar uma população de quase 1 milhão de pessoas que
viviam em Roma. O domínio era visto como necessidade de sobrevivência. Para
que os imperadores e senadores pudessem continuar no poder, distribuíam para
o povo pão, vinho e os grandes espetáculos no Coliseu, pois sabiam que a fome e
a falta de atenção voltada para a política trariam distúrbios indesejáveis.

O grande filósofo e orador Marcus Tullius Cicero (106 a.C. - 43 a.C.) afirmava
que Roma ia à guerra por seus mercadores, que muitas vezes eram os próprios
membros do Senado, ou seja, decidiam sobre a guerra porque lucravam com ela.

51
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

Roma legou uma imensa herança ao mundo e em particular ao direito


ocidental. Entre rupturas e reinvenções, o direito romano sobreviveu quando
redescoberto o Corpus Iuris Civili na Idade Média e renascido na doutrina jurídica
do século XIX. Estudando as instituições e institutos romanos, vemos que existem
mais diferenças que semelhanças. Foram cerca de 700 anos de legado! O direito
romano, a partir de um conjunto de normas esparsas que regiam os conflitos
dos antigos romanos, ao longo de mais de 12 séculos, foi sendo reelaborado e
permanece nas instituições liberais dos Estados contemporâneos.

José Cretela Júnior (1998, p. 9), grande estudioso do direito romano, chama
atenção para os diferentes significados da expressão “direito romano”:
A expressão direito romano é empregada ainda para designar as
regras jurídicas consubstanciadas no Corpus Juris Civilis, conjunto
ordenado de leis e princípios reduzidos a um único corpo, sistemático,
harmônico, mas formado de várias partes, planejado e levado a efeito
no século VI de nossa era por ordem do imperador Justiniano, de
Constantinopla, monumento jurídico da maior importância, que
atravessou séculos e chegou até nossos dias.

A divisão do Império Romano em 395, após a morte de Teodósio, entre


Império Romano do Ocidente e Oriente, e a posterior queda como resultado de
uma soma de fatores, tais como o enfraquecimento militar, crise do escravismo
e expansão bárbara, não foram suficientes para colocar fim à cultura e ao direito
romano. O grande legado deve-se a Flavius Petrus Sabbatius Iustinianus (483 –
565), conhecido como Justiniano I, imperador do Império Romano do Oriente. De
origem humilde, foi nomeado cônsul por seu tio que o fez sucessor. De inteligência
ímpar, tornou o Império Bizantino um esplendor.

Seu grande mérito foi o de ter conservado, através do trabalho de


compiladores, as obras dos jurisconsultos romanos. Mesmo após o fim de Roma,
Justiniano, em 438, publica sua grande obra: Corpus Juris Civilis. O trabalho era
composto por quatro partes distintas:

• Codex: leis imperiais.


• Digesto (Pandectas): compilação dos mais de 1.500 livros escritos pelos
jurisconsultos, particularmente as obras de Ulpiano, Gaio, Papiniano, Paulo e
Modestino, que elaboravam pareceres e conceitos jurídicos.
• Institutas: espécie de manual para ensino do direito.
• Novelas (Novallae): espécie de constituições imperiais feitas pelo próprio
Justiniano depois da publicação do Codex.

52
TÓPICO 5 | O LEGADO ROMANO

FIGURA 23 – CORPUS JURIS CIVILIS

FONTE: Disponível em: <http://sala2epcd.blogspot.com.br/2014/10/


progressao-parcial_23.html>. Acesso em: 20 nov. 2017.

FIGURA 24 – JUSTINIANO

FONTE: Disponível em: <http://sala2epcd.blogspot.com.


br/2014/10/progressao-parcial_23.html>. Acesso em: 20 nov. 2017.

Embora a expressão Corpus Juris Civilis não tenha sido criada por Justiniano,
mas possivelmente pelo romanista francês Denis Godefroid por volta do ano 1583,
em geral, traduz todo o trabalho composto pelas Institutas, Pandectas, Digesta e Codex.
Graças a esse enorme esforço é que o direito romano foi legado para a posteridade.

53
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

2 A FORMAÇÃO SOCIAL E POLÍTICA: A BASE DO DIREITO


ROMANO
Costuma-se considerar a fundação de Roma a data de 21 de abril de 753
a.C. Desde sua origem, sua formação social e política esteve ligada a vínculos
entre as gentes. Gens era pequeno grupo com vínculos “de sangue”, supostamente
reais, que se associavam em famílias, constituídas por comunidades reconhecidas
pela subordinação a uma única autoridade: a do pater familias.

DICAS

No site <www.tudosobreroma.com/lenda-romulo-remo> você encontra uma


breve narrativa da lenda da fundação de Roma.

A figura abaixo reproduz a lendária estória! Pesquise sobre a lenda! Será enriquecedor!

FONTE: Disponível em: <www.tudosobreroma.com/lenda-


romulo-remo>. Acesso em: 20 nov. 2017.

Ao longo de séculos o império enfrentou graves lutas sociais internas por


conta de sua própria caracterização social. Os quirites ou patrícios, descendentes
dos paters fundadores de Roma, constituíam a elite política, econômica e religiosa,
detinham as terras produtivas. A plebe era a maioria, que poucos direitos possuía.
Eram pequenos comerciantes, artesãos e trabalhadores livres. Clientes, apesar
de serem livres, eram “presos” aos patrícios. Em geral, eram estrangeiros e
refugiados pobres que recebiam apoio e ajuda financeira dos patrícios e em troca
os serviam no trabalho e na guerra. Escravos, em sua maioria prisioneiros de
guerra, eram vendidos como mercadorias (res – coisa). Faziam as tarefas mais
pesadas e serviam também como trabalhadores domésticos. Com a expansão
do império, o número de escravos aumentou a fim de manter a luxuosa vida
ostentada pelos patrícios. Libertos eram ex-escravos colocados em liberdade,
jogados à própria sorte pelos proprietários ou que compravam a liberdade. Em
geral, continuavam trabalhando para seus antigos proprietários.

54
TÓPICO 5 | O LEGADO ROMANO

FIGURA 25 – ORDEM SOCIAL ROMANA: ESCRAVOS E SOLDADOS AO


CENTRO, PATRÍCIOS À ESQUERDA E PLEBEUS À DIREITA

FONTE: Disponível em: <http://pelotrilhodahistoria.blogspot.com.br/2012/05/


civilizacao-romana-formacao-do-imperio.html>. Acesso em: 22 nov. 2017.

O modo de produção romana, muito particular, também será causa de grandes


conflitos. Inicialmente, em Roma havia duas formas de organização de território e,
consequentemente, de uso e acesso à terra. A ager publicus, pertencente à comunidade
ou coletividade; e a privada, que pertencia aos quirites. O pressuposto para ter terras
era ser membro do patriciado. Na área pública se produzia comunitariamente e os
produtos serviam de reserva para tempos de escassez, como riqueza do império,
para manter os sacerdotes e as guerras, mas o patriciado começou a arrendar suas
terras para os plebeus e usar os escravos para obter produtos, constituindo o que
atualmente chamaríamos um processo de privatização. A expansão imperial garantia
o cativo de escravos e a tensão social ia sendo contornada.

Seguramente, a guerra desempenhava um papel fundamental: os plebeus


foram conquistando relevância nas unidades de combate ao mesmo tempo que
eram garantidos os espólios dos conquistados.

As lutas sociais em Roma entre patrícios e plebeus alimentaram a luta


pelo direito. A mais célebre foi entre os anos 494 e 495 a.C., quando a revolta da
plebe fez a cidade mergulhar no caos. Os plebeus abandonam a cidade e sem
eles Roma não se mantinha. Desesperados, os patrícios enviam um emissário
para negociar o retorno dos plebeus, que exigem um representante no Senado –
o Tribuno da Plebe – com total imunidade física e parlamentar. Até que no ano
461 é promulgada a célebre Lei das XII Tábuas que, segundo acreditavam, daria
limites aos patrícios. Esse documento jurídico constitui um marco da história do
direito e reúne de forma sistemática as práticas jurídicas da época. Como veremos
a seguir, contém definições sobre direito privado, família e rituais para práticas
negociais. O documento original foi perdido quando os gauleses invadiram Roma
em 390 a.C. A Lei das XII Tábuas, primeiro documento jurídico escrito em Roma,
recebe esse nome porque foram gravadas em placas de bronze ou madeira, não
se sabe bem, e expostas no Fórum Romano para que todos pudessem conhecer.

55
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

LEI DAS XII TÁBUAS


TÁBUA PRIMEIRA
Do chamamento a Juízo

1. Se alguém for chamado a Juízo, compareça.


2. Se não comparecer, aquele que o citou tome testemunhas e o prenda.
3. Se procurar enganar ou fugir, o que o citou poderá lançar mão sobre
(segurar) o citado.
4. Se uma doença ou a velhice o impedir de andar, o que o citou lhe forneça
um cavalo.
5 . Se não aceitá-lo, que forneça um carro, sem a obrigação de dá-lo coberto.
6. Se apresentar-se alguém para defender o citado, que este seja solto.
7. O rico será fiador do rico; para o pobre qualquer um poderá servir de fiador.
8. Se as partes entrarem em acordo em caminho, a causa estará encerrada.
9. Se não entrarem em acordo, que o pretor as ouça no comitium ou no forum e
conheça da causa antes do meio-dia, ambas as partes presentes.
10. Depois do meio-dia, se apenas uma parte comparecer, o pretor decida a
favor da que está presente.
11. O pôr-do-sol será o termo final da audiência.

TÁBUA SEGUNDA
Dos julgamentos e dos furtos

1. ... cauções ... subcauções ... a não ser que uma doença grave..., um voto ...,
uma ausência a serviço da república, ou uma citação por parte de estrangeiro,
deem margem ao impedimento; pois se o citado, o juiz ou o árbitro, sofrer
qualquer desses impedimentos, que seja adiado o julgamento.
2. Aquele que não tiver testemunhas irá, por três dias de feira, para a porta da
casa da parte contrária, anunciar a sua causa em altas vozes injuriosas, para
que ela se defenda.
3 . Se alguém cometer furto à noite e for morto em flagrante, o que matou não
será punido.
4. Se o furto ocorrer durante o dia e o ladrão for flagrado, que seja fustigado
e entregue como escravo à vítima. Se for escravo, que seja fustigado e
precipitado do alto da rocha Tarpeia.
5. Se ainda não atingiu a puberdade, que seja fustigado com varas a critério
do pretor, e que indenize o dano.
6. Se o ladrão durante o dia se defender com arma, que a vítima peça socorro
em altas vozes e se, depois disso, matar o ladrão, que fique impune.
7. Se, pela procura cum lance licioque, a coisa furtada for encontrada na casa de
alguém, que seja punido como se fora um furto manifesto.
8. Se alguém intentar ação por furto não manifesto, que o ladrão seja
condenado no dobro.
9. Se alguém, sem razão, cortar árvores de outrem, que seja condenado a
indenizar à razão de 25 asses por árvore cortada.

56
TÓPICO 5 | O LEGADO ROMANO

10. Se alguém se conformar (ou se acomodar, transigir) com um furto, que a


ação seja considerada extinta.
11. A coisa furtada nunca poderá ser adquirida por usucapião.

TÁBUA TERCEIRA
Dos direitos de crédito

1. Se o depositário, de má-fé, praticar alguma falta com relação ao depósito,


que seja condenado em dobro.
2. Se alguém colocar o seu dinheiro a juros superiores a um por cento ao ano,
que seja condenado a devolver o quádruplo.
3. O estrangeiro jamais poderá adquirir bem algum por usucapião.
4. Aquele que confessar dívida perante o magistrado, ou for condenado, terá
30 dias para pagar.
5. Esgotados os 30 dias e não tendo pago, que seja agarrado e levado à
presença do magistrado.
6. Se não pagar e ninguém se apresentar como fiador, que o devedor seja
levado pelo seu credor e amarrado pelo pescoço e pés com cadeias com peso
máximo de 15 libras; ou menos, se assim o quiser o credor.
7. O devedor preso viverá à sua custa, se quiser; se não quiser, o credor que o
mantém preso dar-Ihe-á por dia uma libra de pão ou mais, a seu critério.
8. Se não houver conciliação, que o devedor fique preso por 60 dias,
durante os quais será conduzido em três dias de feira ao comitium, onde se
proclamará, em altas vozes, o valor da dívida.
9. Se não muitos os credores, será permitido, depois do terceiro dia de feira,
dividir o corpo do devedor em tantos pedaços quantos sejam os credores,
não importando cortar mais ou menos; se os credores preferirem, poderão
vender o devedor a um estrangeiro, além do Tibre.

TÁBUA QUARTA
Do pátrio poder e do casamento

1. É permitido ao pai matar o filho que nasceu disforme, mediante o


julgamento de cinco vizinhos.
2. O pai terá sobre os filhos nascidos de casamento legítimo o direito de vida
e de morte e o poder de vendê-los.
3. Se o pai vender o filho três vezes, que esse filho não recaia mais sob o
poder paterno.
4. Se um filho póstumo nascer até o décimo mês após a dissolução do
matrimônio, que esse filho seja reputado legítimo.

TÁBUA QUINTA
Das heranças e tutelas

1. As disposições testamentárias de um pai de família sobre os seus bens, ou


a tutela dos filhos, terão a força de lei.

57
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

2. Se o pai de família morrer intestado, não deixando herdeiro seu


(necessário), que o agnado mais próximo seja o herdeiro.
3. Se não houver agnados, que a herança seja entregue aos gentis.
4. Se um liberto morrer intestado, sem deixar herdeiros seus, mas o patrono
ou os filhos do patrono a ele sobreviverem, que a sucessão desse liberto se
transfira ao parente mais próximo da família do patrono.
5. Que as dívidas ativas e passivas sejam divididas entre os herdeiros,
segundo o quinhão de cada um.
6. Quanto aos demais bens da sucessão indivisa, os herdeiros poderão partilhá-
los, se assim o desejarem; para esse fim o pretor poderá indicar três árbitros.
7. Se o pai de família morrer sem deixar testamento, indicando um herdeiro
seu impúbere, que o agnado mais próximo seja o seu tutor.
8. Se alguém tornar-se louco ou pródigo e não tiver tutor, que a sua pessoa e seus
bens sejam confiados à curatela dos agnados e, se não houver agnados, à dos gentis.

TÁBUA SEXTA
Do direito de propriedade e da posse

1 . Se alguém empenhar a sua coisa ou vender em presença de testemunhas,


o que prometeu terá força de lei.
2. Se não cumprir o que prometeu, que seja condenado em dobro.
3. O escravo a quem for concedida a liberdade por testamento, sob a condição
de pagar uma certa quantia, e que for vendido em seguida, tornar-se-á livre,
se pagar a mesma quantia ao comprador.
4. A coisa vendida, embora entregue, só será adquirida pelo comprador
depois de pago o preço.
5. As terras serão adquiridas por usucapião depois de dois anos de posse, as
coisas móveis depois de um ano.
6. A mulher que residir durante um ano em casa de um homem, como se fora
sua esposa, será adquirida por esse homem e cairá sob o seu poder, salvo se
ausentar-se da casa por três noites.
7. Se uma coisa for litigiosa, que o pretor a entregue provisoriamente àquele
que detiver a posse; mas se tratar-se da liberdade de um homem que está em
escravidão, que o pretor lhe conceda a liberdade provisória.
8. Que a madeira utilizada para a construção de uma casa, ou para amparar
a videira, não seja retirada só porque o proprietário reivindicar; mas aquele
que utilizou a madeira que não lhe pertencia seja condenado a pagar o dobro
do valor; e se a madeira for destacada da construção ou do vinhedo, que seja
permitido ao proprietário reivindicá-la.
9. Se alguém quer repudiar a sua mulher, que apresente as razões desse repúdio.

TÁBUA SÉTIMA
Dos delitos

1. Se um quadrúpede causar qualquer dano, que o seu proprietário indenize


o valor desse dano ou abandone o animal ao prejudicado.

58
TÓPICO 5 | O LEGADO ROMANO

2. Se alguém causar um dano premeditadamente, que o repare.


3. Aquele que fizer encantamentos contra a colheita de outrem; ou a colher
furtivamente à noite antes de amadurecer ou a cortar depois de madura, será
sacrificado a Ceres.
4. ....
5. Se o autor do dano for impúbere, que seja fustigado a critério do pretor e
indenize o prejuízo em dobro.
6. Aquele que fizer pastar o seu rebanho em terreno alheio;
7. e o que intencionalmente incendiar uma casa ou um monte de trigo perto
de uma casa, seja fustigado com varas e em seguida lançado ao fogo.
8. Mas se assim agir por imprudência, que repare o dano; se não tiver
recursos para isso, que seja punido menos severamente do que se tivesse
agido intencionalmente.
9. Aquele que causar dano leve indenizará 25 asses.
10. Se alguém difamar outrem com palavras ou cânticos, que seja fustigado.
11. Se alguém ferir a outrem, que sofra a pena de Talião, salvo se houver acordo.
12. Aquele que arrancar ou quebrar um osso a outrem deverá ser condenado
a uma multa de 300 asses, se o ofendido for um homem livre; e de 150 asses,
se o ofendido for um escravo.
13. Se o tutor administrar com dolo, que seja destituído como suspeito e com
infâmia; se tiver causado algum prejuízo ao tutelado, que seja condenado a
pagar o dobro ao fim da gestão.
14. Se um patrono causar dano a seu cliente, que seja
declarado sacer (podendo ser morto como vítima devotada aos deuses).
15. Se alguém participar de um ato como testemunha ou desempenhar nesse
ato as funções de libripende, e recusar dar o seu testemunho, que recaia sobre
ele a infâmia e ninguém lhe sirva de testemunha.
16. Se alguém proferir um falso testemunho, que seja precipitado da rocha
Tarpeia.
17. Se alguém matar um homem livre e empregar feitiçaria e veneno, que seja
sacrificado com o último suplício.
18. Se alguém matar o pai ou a mãe, que se lhe envolva a cabeça e seja
colocado em um saco costurado e lançado ao rio.

TÁBUA OITAVA
Dos direitos prediais

1. A distância entre as construções vizinhas deverá ser de dois pés e meio.


2. Que os soldados (sócios) façam para si os regulamentos que entenderem,
contanto que não prejudiquem o público.
3. A área de cinco pés deixada livre entre os campos limítrofes não poderá ser
adquirida por usucapião.
4. Se surgirem divergências entre possuidores de campos vizinhos, que o
pretor nomeie três árbitros para estabelecer os limites respectivos.
5. Lei incerta sobre limites.
6. ... Jardim ... ... ...

59
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

7. ... herdade ... ...


8. ... choupana ... ...
9. Se uma árvore se inclinar sobre o terreno alheio, que os seus galhos sejam
podados à altura de mais de 15 pés.
10. Se caírem frutos sobre o terreno vizinho, o proprietário da árvore terá o
direito de colher esses frutos.
11. Se a água da chuva retida ou dirigida por trabalho humano causar
prejuízo ao vizinho, que o pretor nomeie cinco árbitros, e que esses exijam do
dono da obra garantias contra o dano iminente.
12. Que o caminho em reta tenha oito pés de largura e o em curva tenha
dezesseis.
13. Se aqueles que possuírem terrenos vizinhos a estradas não os cercarem,
que seja permitido deixar pastar o rebanho à vontade. (Nesses terrenos).

TÁBUA NONA
Do direito público

1. Que não se estabeleçam privilégios em lei. (Ou que não se façam leis contra
indivíduos).
2. Aqueles que forem presos por dívidas e as pagarem, gozarão dos mesmos
direitos como se não tivessem sido presos; os povos que forem sempre fiéis e
aqueles cuja defecção for apenas momentânea gozarão de igual direito.
3. Se um juiz ou um árbitro indicado pelo magistrado receber dinheiro para
julgar a favor de uma das partes em prejuízo de outrem, que seja morto.
4. Que os comícios por centúrias sejam os únicos a decidir sobre o estado de
uma cidade (vida, liberdade, cidadania, família).
5. Os questores de homicídio...
6. Se alguém promover em Roma assembleias noturnas, que seja morto.
7. Se alguém insuflar o inimigo contra a sua Pátria ou entregar um
concidadão ao inimigo, que seja morto.

TÁBUA DÉClMA
Do direito sacro

1. ..... do juramento.
2. Não é permitido sepultar nem incinerar um homem morto na cidade.
3. Moderai as despesas com os funerais.
4. Fazei apenas o que é permitido.
5. Não deveis polir a madeira que vai servir à incineração.
6. Que o cadáver seja vestido com três roupas e o enterro se faça acompanhar
de dez tocadores de instrumentos.
7. Que as mulheres não arranhem as faces nem soltem gritos imoderados.
8. Não retireis da pira os restos dos ossos de um morto, para lhe dar segundos
funerais, a menos que tenha morrido na guerra ou em país estrangeiro.
9. Que os corpos dos escravos não sejam embalsamados e que seja abolido
dos seus funerais o uso da bebida em torno do cadáver.

60
TÓPICO 5 | O LEGADO ROMANO

10. Que não se lancem licores sobre a pia de incineração nem sobre as cinzas
do morto.
11. Que não se usem longas coroas nem turíbulos nos funerais.
12. Que aquele que mereceu uma coroa pelo próprio esforço ou a quem seus
escravos ou seus cavalos fizeram sobressair nos jogos, traga a coroa como
prova do seu valor, assim com os seus parentes, enquanto o cadáver está em
casa e durante o cortejo.
13. Não é permitido fazer muitas exéquias nem muitos leitos fúnebres para o
mesmo morto.
14. Não é permitido enterrar ouro com o cadáver; mas se seus dentes são
presos com ouro, pode-se enterrar ou incinerar com esse ouro.
15. Não é permitido, sem o consentimento do proprietário, levantar uma pira
ou cavar novo sepulcro, a menos de sessenta pés de distância da casa.
16. Que o vestíbulo de um túmulo jamais possa ser adquirido por usucapião,
assim como o próprio túmulo.

TÁBUA DÉCIMA PRIMEIRA

1. Que a última vontade do povo tenha força de lei.


2. Não é permitido o casamento entre patrícios e plebeus.
3. ... Da declaração pública de novas consagrações.

TÁBUA DÉCIMA SEGUNDA

1 . ...... do penhor ......


2. Se alguém fizer consagrar uma coisa litigiosa, que pague o dobro do valor
da coisa consagrada.
3. Se alguém obtiver de má-fé a posse provisória de uma coisa, que o pretor,
para pôr fim ao litígio, nomeie três árbitros, que estes condenem o possuidor
de má-fé a restituir o dobro dos frutos.
4. Se um escravo cometer um furto, ou causar algum dano, sabendo-o
patrono, que seja obrigado esse patrono a entregar o escravo, como
indenização, ao prejudicado.

FONTE: Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/12tab.htm>. Acesso em: 22 nov. 2017.

Além da lei das XII Tábuas, a Lex Licinia, de 357 a.C., foi feita para
permitir o casamento entre patrícios e plebeus. Para as hostes ou peregrinos (os
“estrangeiros”) eram concedidos alguns direitos – Ius gentium – que regulavam a
convivência com os patrícios. Os não romanos constituíam uma gama imensa de
indivíduos, desde as pessoas livres até os rendidos em guerras.

Em síntese, Roma era um universo fragmentado e complexo que se


expressa no direito. Como chama atenção Juan Ramón Capella (2002, p. 65-66):

61
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

O estatuto pessoal não coincidia exatamente com a riqueza: um cidadão


romano pobre podia ter em uma província do Império privilégio
de que careciam os ricos do lugar (Paulo de Tarso não deixou de
invocá-los quando lhe detiveram as autoridades provinciais judias). A
situação dos escravos era desesperada: muito poucos podiam esperar
passar a serem livres – acaso a velhice, e isso se tratava de pessoas que
houvessem prestado serviços especiais a seus donos –; a multidão de
escravos que se rebelou com Espártaco foi integralmente exterminada
depois da derrota militar (71 a.C.), única ocasião em que Roma realizou
uma guerra de extermínio, claramente “exemplar”.

A rebelião liderada por Espártaco, um valoroso combatente vencido em


guerra que se tornou gladiador e revolucionário, colocou literalmente Roma em
colapso. Chegou a reunir cerca de 90 mil combatentes e após muitas batalhas
acabou morto em combate, enquanto outros seis mil sobreviventes foram
crucificados na Via Ápia – caminho entre Roma e Cápua.

NOTA

Espártaco: sobre o tema existem filmes clássicos e alguns sites interessantes,


como o <https://guiadoestudante.abril.com.br/estudo/spartacus-o-homem-que-desafiou-
roma/>, acesse e confira.

Pode-se afirmar que, em linhas gerais, o antigo direito romano se


caracterizava por ser:

• Parcialmente Plural: porque conviviam distintas fontes de regulação para os


distintos indivíduos que habitavam ou circulavam no território romano.
• Formalista: desde sua origem os romanos exerciam rituais para dar efetividade
e/ou legitimidade aos atos judiciais.
• Parcialmente não estatal: havia regulações, normas válidas, que nasciam dos
costumes e tradições dos povos submetidos ao poder imperial romano. Além
disso, era permitido que fossem criados acordos ou pactos entre particulares.
Portanto, o direito não nascia exatamente de uma autoridade, mas entre pactos
e práticas existentes que foram se justificando.
• Tecnicista: ao longo do tempo, os pretores – magistrados que tratavam de
questões jurídicas, divididos entre urbanos (questões jurídicas da cidade) e
peregrinos (questões jurídicas em áreas rurais), exerciam o cargo por cinco anos
– publicavam Éditos que expressavam princípios, regras e fórmulas processuais
que utilizavam em suas decisões. Aos poucos os Éditos se transformaram em
técnicas que se institucionalizavam através das práticas dos tribunais.

62
TÓPICO 5 | O LEGADO ROMANO

FIGURA 26 – SENADO ROMANO

FONTE: Disponível em: <http://www.laifi.com/laifi.php?id_laifi=5285&idC=


79256#>. Acesso em: 22 nov. 2017.

3 OS PERÍODOS POLÍTICOS E AS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS


Roma teve politicamente três períodos distintos e cada qual com
características próprias de funcionamento. Observe a “linha do tempo” a seguir
para se localizar melhor:

FIGURA 27 – LINHA DO TEMPO ROMA ANTIGA


Linha do Tempo - Roma Antiga

REPÚBLICA FIM DO
MONARQUIA IMPÉRIO
IMPÉRIO
SENADO E
REI E SENADO IMPERADOR
MAGISTRADOS IDADE MÉDIA

753 a.C. 509 a.C. 27 a.C. 476 d.C

FONTE: Disponível em: <https://historiaica.wordpress.com/2015/05/20/roma-antiga-linha-


do-tempo/>. Acesso em: 22 nov. 2017.

Realeza (da fundação de Roma até 509 a.C.)

Esta é a etapa que remonta ao antigo mito descrito por Virgílio no século
I a.C. no poema épico Eneida, que relata a saga heroica do herói troiano Eneias,
que, após escapar da guerra carregando seu velho pai nas costas e pelas mãos
seu filho, assume a missão de fundar um nova Troia, que seria a gloriosa Roma.
Lenda imortalizada na belíssima escultura do artista barroco italiano Lorenzo
Bernini (1598-1680). 

63
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

FIGURA 28 – ENEIAS: OBRA DE BERNINI NO PIAZZALE DEL


MUSEO BORGHESE

FONTE: Disponível em: <http://vinteum.com/esculturas-de-gian-


lorenzo-bernini/>. Acesso em: 22 nov. 2017.

A população que habitava em vici (aldeias) possuía em comum o idioma


e se protegiam de ataques refugiando-se nas partes mais altas, uma vez que as
aldeias eram cercadas por colinas arborizadas que eram ocupadas pelas grandes
famílias patriarcais.

A liderança era exercida por um rex (rei, chefe comum), geralmente um


estrangeiro de origem etrusca. Com o enfraquecimento dos reis vai-se abrindo
caminho para a República.

Nessa fase da história as características políticas e jurídicas dominantes


eram:

• Poder exercido pelo rei: o rex comandava diretamente o exército e ainda era o
juiz e sacerdote supremo. A sucessão era por indicação do Senado.
• Senado: órgão político de natureza consultiva, portanto, subordinado ao rei.
Era formado pelos chefes das gentes e tinha também a função de confirmar – dar
validade – os comícios.
• Comícios: aconteciam nas cúrias, tipo de assembleias convocadas para rejeitar
ou aceitar as propostas apresentadas.
• Fontes do Direito: essencialmente, a fonte do direito eram os costumes e
posteriormente leis escritas.
• Jurisprudência: era o exercício de práticas sacerdotais feitas nos templos pelos
pontífices. Consistiam em rituais com fórmulas mágicas que simbolizavam as
futuras ações judiciais.

64
TÓPICO 5 | O LEGADO ROMANO

República (510 a.C. a 27 a.C.)

FIGURA 29 – MAGISTRADOS ROMANOS

FONTE: Disponível em: <https://historia10.wordpress.com/2008/11/page/2/>. Acesso em:


22 nov. 2017.

Embora atualmente saibamos que as mudanças de regime da realeza


para a república ocorreram de forma paulatina, segundo a tradição, o início da
república é marcado pela expulsão de Tarquínio, o Soberbo, em 510 a.C.

No novo regime político, mais plural e participativo, o poder passa a ser


exercido por dois magistrados, que através de eleições exerciam diretamente
a administração da cidade e a jurisdição. O ingresso na magistratura era
permitido, inicialmente, somente aos patrícios, mas a luta da plebe garante outras
magistraturas através dos tribunos.

Como já considerado, a pluralidade e diversidade de indivíduos


pertencentes a categorias sociais e políticas em Roma acaba por gerar conflitos
que serão dirimidos através da criação de leis, como a Lei Hortência em 287 a.C.,
determinando que as decisões aprovadas pelos plebeus no plebiscito tivessem a
força de lei e fossem aplicadas a todos os cidadãos, inclusive aos patrícios.

A concentração de poder nas mãos dos patrícios, que acabava por reduzir
os camponeses a escravos por dívidas e a apropriação de suas terras para uso
comum, provocava guerras e rebeliões frequentes. Os assidui – pequenos
proprietários de terras – eram reduzidos à condição de proletarii – cidadãos sem
propriedade que se espalhavam pela cidade e que tinham a obrigação de se
filiarem ao exército romano. Quando retornavam da guerra, os soldados eram
dispensados sem nenhuma indenização­, restando-lhes a proteção de seu general,
e este foi o motivo da queda da república. Os generais, fortalecidos politicamente
e com uma grande massa de fiéis servidores, facilmente assumem o poder.

Nessa etapa as fontes do direito passam a ser: os costumes, a lei – lex rogatta
(feita pelos magistrados que necessitava aprovação) e a lex data (promulgada
pelos magistrados sem necessidade de aprovação); os éditos dos magistrados
(perpetuum – éditos feitos para durar mais tempo); repentinum para situações não
previstas, que foram proibidos em 67 a.C.; e a jurisprudência (consultas dadas
pelos jurisconsultos). Definia-se jurisprudência como:
65
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

Iuris prudentia est diuinarum atque humanarum rerum notitia, iusti atque
iniusti scientia (a jurisprudência é o conhecimento das coisas divinas e humanas,
a ciência do justo e do injusto).

QUADRO 2 – LEGISLAÇÕES IMPERIAIS (EMANADAS EXCLUSIVAMENTE PELO IMPERADOR A


PARTIR DE 13 a.C.)

Éditos Ordens aplicáveis a todo império, com poucas exceções.


Decretos Julgamentos feitos pelo imperador ou seu conselho, que se tornavam precedentes.
Rescritos Respostas dadas pelo imperador ou seu conselho a uma consulta jurídica.
Pelo imperador eram dirigidas aos governadores das províncias e diziam respeito
Instruções
a questões administrativas e tributárias.

FONTE: A autora

FIGURA 30 – ASSEMBLEIA DOS CIDADÃOS (COMÍCIOS): ÍCONE DA REPÚBLICA


ROMANA

FONTE: Disponível em: <https://antoniocv.wordpress.com/2015/10/08/da-


monarquia-a-republica-romana/>. Acesso em: 22 nov. 2017.

Tipos de Assembleias:

• Curial: por local de origem/residência.


• Centurial: formada pelos cidadãos, conforme sua riqueza ou cargo no exército.
• Tribal: composta pelos plebeus.

Na fase da República há uma sofisticação dos procedimentos judiciais. O


início da demanda judicial se dava com o pedido da parte interessada perante
o pretor. Era a própria parte quem deveria fazer com que seu adversário
comparecesse e então, publicamente, era feita a formulação de sua pretensão.

Esta primeira fase era in Iuri – perante o pretor – que organizava o pedido
real em judicial. O in iudicium era o formulado judicialmente. As fórmulas eram
as defesas dos interesses previstas pelos antigos costumes ou direito criado pelos
antigos pretores.
66
TÓPICO 5 | O LEGADO ROMANO

ATENCAO

Observe que até esta fase da história não existem juristas de profissão!

A função de magistrado ou árbitro era exercida pelos próprios cidadãos


e muitos procuravam escapar, mas considerada honrosa e digna dos cidadãos
superiores.

Com a evolução e sofisticação do direito cria-se o processo formular a


partir do século II a.C., quando foram introduzidas modificações. O pretor
passa a cuidar diretamente da primeira fase do processo entre os particulares,
verificando o interesse de cada uma das partes, e remete ao juiz que verifica a
procedência do pedido e tomava uma decisão. Os pretores possuíam o poder de
imperium (poder amplo).

As fórmulas eram pequenos resumos da lide e que trouxeram grandes


avanços na concepção de direito, que foi legado à modernidade. Veja no quadro a
seguir as distintas formas de magistraturas e suas características:

QUADRO 3 – AS MAGISTRATURAS

PODERES
Imperium – poder de
DURAÇÃO soberania
IDADE ATRIBUIÇÕES
MAGISTRADOS DO Potestas – poder de
MÍNIMA
MANDATO representar o provo romano
Jurisdictium – poder de
administrar a justiça
Chefia do Governo e
Cônsules 1 ano 43 anos Imperium Potestas
do exército
Imperium Potestas/
Pretores 1 ano 40 anos Aplicação da Justiça
Judisdictium
Fiscalização dos
mercados, conservação
Eds 1 ano 37 anos Potestas
dos edifícios e ruas e
organização dos jogos
Questores 1 ano 31 anos Gestão das finanças Potestas
Censo dos cidadãos e
Censores 18 meses Potestas
sua fortuna
Defesa dos direitos
Tribuno da Plebe 1 ano Potestas
dos plebeus
Condução de uma
Ditador 6 meses guerra difícil e Imperium Potestas
restauração da ordem

FONTE: Disponível em: <https://historia10.wordpress.com/2008/11/page/2/>. Acesso em: 22 nov. 2017.

67
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

Principado – Império (27 a.C. – 284)

Essa é a etapa pós-clássica do direito romano, quando já se inicia o declínio


do Império Romano.

A passagem da República para o Império se faz de forma progressiva.


Com a crise política e econômica provocada pela dificuldade de manutenção do
vasto império e pela má administração, o poder vai se concentrando nas mãos
dos generais. Uma séria crise política acaba colocando no poder Octávio, que
centralizou o poder e recebeu do Senado o título de Augusto, é proclamado
Imperator (general vitorioso). Essa foi a época de grande esplendor de Roma. Leia
com atenção o breve texto sobre essa etapa da história:

A expansão romana pela Itália (centro e sul) e a conquista da magna Grécia


colocavam em perigo os interesses cartagineses no ocidente do Mediterrâneo e
acabou desencadeando as Guerras Púnicas entre Roma e Cartago (264-246 a.C.).
Vencedora, Roma estabeleceu seu domínio sobre o Mediterrâneo ocidental,
abrindo caminho para a conquista dos reinos helenísticos (Macedônia, Síria e
Egito) e o avanço sobre o Mediterrâneo oriental.

As mudanças socioeconômicas ocorridas em Roma após a conquista


do Mediterrâneo (Mare Nostrum) foram responsáveis pela crise da República,
que geraram: a consolidação do sistema escravista de produção; a ruína dos
pequenos agricultores e a concentração de terras em mãos da aristocracia e o
surgimento de uma nova classe de grandes comerciantes, os “homens novos”
ou cavaleiros. As lutas sociais que se seguiram assinalaram o declínio do
regime republicano.

Os irmãos Tibério e Caio Graco foram sucessivamente eleitos tribunos


da plebe e, entre 133-121 a.C., procuraram realizar reformas para solucionar
a crise da República. Tais reformas buscavam realizar a distribuição de terras
e a recomposição da classe camponesa, além de aumentar a participação
dos cavaleiros na administração do Estado. Estas propostas esbarraram na
resistência da aristocracia, chegando ao assassinato dos irmãos Graco.

O fracasso das reformas agravou a crise e abriu caminho para as


ditaduras de Mário e Sila. Mário, “homem novo” apoiado pelo exército
(profissionalizado e assalariado por ele), realizou reformas favorecendo os
cavaleiros e as camadas populares (que entraram em massa para o exército).

O general Sila, aristocrata, restabeleceu privilégios de sua classe e a


autoridade do Senado. Estas ditaduras, apoiadas no exército, permitiram a
intervenção dos militares nos assuntos políticos, aprofundando a crise da
monarquia.

68
TÓPICO 5 | O LEGADO ROMANO

A rebelião de Sertório, na Espanha em 78 a.C., a insurreição de Espártaco


(liderando um exército de 50 mil escravos e plebeus sublevados entre 73 e
71 a.C.) e a conjuração de Catilina que, em 66 a.C., pregava a anulação de
dívidas, a proscrição da nobreza senatorial e a realização de reforma agrária,
aceleraram o declínio da República.

Em uma aliança formada entre um representante da plebe (Júlio


César), um general vencedor da revolta de Sertório (Pompeu) e um ex-cônsul
enriquecido (Crasso), estabeleceu-se o triunvirato sob o qual ampliou-se o
expansionismo romano (Gália e parte da Bretanha).

Com a morte de Crasso, instalou-se uma luta entre Pompeu e Júlio


César, que, à frente de poderoso exército, obrigou Pompeu a fugir e instalou,
em 49 a.C., um regime pessoal – a ditadura vitalícia.

O assassinato de César, através de uma conspiração do Senado, fez criar


o segundo triunvirato, que, também vivendo lutas internas, levou ao poder
Otávio, assinalando o fim da República e o nascimento do Império, em 31 a.C.

FONTE: Disponível em: <http://www.casadehistoria.com.br/conteudo/historia-antiga/


expansionismo-transicao-para-imperio-romano>. Acesso em: 22 nov. 2017.

Por fim, com Dioclesiano, em 284, na tentativa de salvar o império, divide-o


em duas partes: Ocidente com capital em Roma e Oriente com capital em Bizâncio.
Durante quatro séculos se manteve a unificação imperial e, em 395, com Teodósio, há
a definitiva divisão do império e a maior potência política e bélica da história chega
ao fim. Inicia-se, desde aí, um processo de abandono paulatino das cidades e da
própria cultura romana, dando início ao que estudaremos a seguir: A Idade Média.

4 O LEGADO
Roma legou ao direito ocidental importantes institutos jurídicos,
principalmente no direito privado, criado para proteger os interesses dos patrícios.
Os conceitos jurídicos, a retórica e argumentação, bem como os institutos jurídicos
constituíram uma herança imensa e rica.

Embora sofrendo reinvenções de significados, destacam-se os seguintes


institutos jurídicos romanos herdados à contemporaneidade:

• Família: De forma muito distinta da atual, a família romana era o grupo


submetido ao poder do pater familias.
ο O casamento tinha uma natureza social e jurídica. Era uma relação entre
homem e mulher sustentado pelo affectio maritalis e tinha a finalidade de
gerar descendentes.

69
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

ο A mulher exercia papel social, mas estava vinculada ao marido por um poder
chamado manus, espécie de poder doméstico que conhecemos como poder
marital. O manus permitia ao homem castigar a mulher e repudiá-la. Com
a Lei das XII Tábuas criou-se uma exceção: o casamento sine manus. Porém,
quase que até recentemente na história, o casamento cum manus foi regra.
ο Os romanos conheciam também o divórcio como instituto jurídico. O
divórcio colocava fim ao casamento. Nos tempos mais antigos, o divórcio
apenas existia na forma de repúdio, até que já na república poderia ocorrer
por inciativa de qualquer um dos cônjuges.

• Direitos Reais: O termo “reais” deriva da palavra “res”, que significa “coisa”.
Coisa é tudo aquilo que existe na natureza e pode ser incorporado ao patrimônio.
Para os romanos havia coisas corporais, individuais e autônomas.

Você notará ao estudar Direito Civil como esses conceitos são importantes!

Para os romanos havia três tipos de coisas: res divini iuris (propriedade
dos deuses); res communes omnium (coisas comuns como água e ar) e res publicae
(coisas de propriedade do Estado).

Ainda havia res mancipi (as que necessitam de ato solene para sua
transmissão) e res nec mancipi, móveis, imóveis, divisíveis e indivisíveis etc.

Ainda faziam a distinção entre os institutos da posse e propriedade. Posse


é derivada de uma condição jurídica, por exemplo, um contrato de arrendamento,
era uma condição originada de um fato. Já a propriedade era um poder absoluto
sobre a coisa, uma relação direta do proprietário com o bem. A propriedade
derivava de um direito. Não se tratava de um poder ilimitado, sendo restrito ao
interesse de vizinhança, por exemplo, a servidão, ou mesmo ao interesse público.
Criaram os conceitos de servidão, usufruto e enfiteuse como formas de limitação
do direito de propriedade.

DICAS

Busque a diferenciação desses conceitos no direito civil. Há bons dicionários


jurídicos pela internet. Sugere-se: <https://dicionariojuridico.online/>.

Os romanos legaram os conceitos de Sucessão e Obrigações, que são


institutos jurídicos para regular as relações civis, como você verá ao estudar
Direito Civil Brasileiro.

70
TÓPICO 5 | O LEGADO ROMANO

LEITURA COMPLEMENTAR

NOTAS PRELIMINARES DA CULTURA JURÍDICA BRASILEIRA:


POR UMA TEORIA DA HISTÓRIA DO DIREITO NO BRASIL

Gustavo Silveira Siqueira

Segundo António Manuel Hespanha, existem quatro modos principais


de entender a História do Direito: História das “fontes do direito”, História da
dogmática “jurídica”, “História das instituições” e a influenciada pela “escola dos
Annales”, que aqui intitula-se História social. A “História das fontes” preocupa-se
em estudar as normas jurídicas promulgadas por determinado Estado. A “História
da dogmática” descreve as ideias dos doutrinadores, preocupando-se com o
desenvolvimento dessas e dos sistemas “de conceitos utilizados pelos juristas para
expor o Direito por eles considerados vigentes”.

Preocupando-se com as leis positivas de determinado Estado, “história


das fontes” é de fundamental importância para que o pesquisador do Direito
possa conhecer as leis que regeram seu país em determinado período histórico,
mas, por outro lado peca, ao se preocupar somente com elas. Não basta o mero
conhecimento das normas jurídicas em determinado período, é necessário conhecer
como a sociedade relacionava-se com essas normas. É necessário perceber a
eficácia, a legitimidade e, em especial, os fundamentos políticos, jurídicos, sociais
e econômicos que levaram à positivação daquelas regras.

A “História da dogmática” poderia tentar suprir essas lacunas, mas o


estudo apenas de conceitos jurídicos em determinados momentos não resolve os
mais graves problemas enfrentados pela “História das fontes”.

A “História da dogmática” pode ser uma história desconectada da realidade,


ao se pautar apenas em grandes homens ou grandes pensadores que analisam os
grandes feitos, e se esquecem dos “pequenos homens” e dos “pequenos feitos”.
A grande falha é que esses modos de entender a História do Direito partem do
princípio “de que o modo de ser da ordem jurídica está dependente da vontade do
legislador ou das construções intelectuais dos juristas, pouco ou nada tendo que
ver com os restantes aspectos da vida social”. Elas sonegam o “estudo social do
direito”, sonegam os diversos fatores relacionados à norma jurídica: em especial,
as causas e efeitos das normas jurídicas. As causas, os motivos, os fundamentos
da positivação de determinada lei e os efeitos que essa lei surtiu. Especialmente
no Brasil, que vive um constante descompasso entre a aplicação do Direito e sua
positivação, assim como das “ideias jurídicas” e da realidade social, impõe-se o
questionamento desses modelos.

A chamada História das instituições pretende identificar o Direito “não


como um conjunto de normas alheias à realidade social concreta, mas antes com
uma regulamentação da vida”, que “combinando-se e inter-relacionando-se com
outros sistemas de valores (moral, etiqueta, religião) na função, comum a todos

71
UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO

eles, de resolver os conflitos sociais e de dar coesão ao todo social”. Nesse sentido,
a História das instituições estuda o Direito relacionando-o com os fatos sociais,
verifica como esse Direito é encarado pela sociedade e que se relaciona com outros
sistemas normativos sociais.

História social pretende, basicamente, superar a História positivista, superar


as barreiras entre diversos setores da História, com a finalidade de estabelecer uma
História global e, em especial, encara “a História não como ciência do passado –
como atividade intelectual que se esgota na erudição ou na busca do exotismo
histórico –, mas como ciência do presente, na medida em que, em ligação com as
ciências humanas, investiga as leis de organização e transformação das sociedades
humanas”. Um estudo de História do Direito, que busca uma visão completa de
determinado fenômeno jurídico, em determinado período social ou que tenta
compreender normas que atravessam a História do direito, não pode deixar
de perceber todas essas metodologias. Todas essas correntes, e outras, devem
incomodar o pesquisador da História do direito, para que ele encontre essas visões
não como barreiras, mas como metodologias a serem superadas. Uma História do
Direito, conectada com a realidade brasileira, deve conhecer as leis, deve conhecer
o pensamento jurídico de determinada época, mas deve também perceber como a
sociedade se relacionava com essas normas jurídicas. Sem compreender isso, não é
possível fazer uma História do Direito condizente com as características do Brasil.

Se a intenção é entender como a História do Direito tem reflexos contemporâneos,


é necessário entender quais foram os efeitos daquele direito, naquele tempo histórico.
Não basta citar os artigos das Constituições, sem verificar seu compasso com a
realidade, sua eficácia, sua legitimidade e o motivo da sua positivação.

Assim, a pesquisa da História do Direito torna-se uma pesquisa complexa,


tão complexa quanto é a sociedade humana, mas, principalmente, torna-se uma
pesquisa interdisciplinar. Só com a interdisciplinaridade é possível fomentar uma
pesquisa histórica consciente do direito. O abandono, em especial da sociologia
e da antropologia, pode levar a uma História que não condiz com a realidade e
pobre de subsídios, incapaz de ajudar a compreensão jurídica do presente.

Nesse patamar, em um país de contradição, desigualdade e descompasso das


leis e constituições com a realidade, é fundamental a soma de todas essas metodologias
para uma compreensão mais satisfatória da História e do Direito no Brasil, é uma
necessária metodologia consciente, interdisciplinar, crítica, que possa melhor
compreender a cultura jurídica brasileira. Uma cultura extremamente complexa, com
diversas narrativas e tradições que sempre precisam ser “escovadas a contrapelo”,
revisitadas. A percepção dos problemas patrimoniais, individualistas e patriarcalistas,
que só serão conhecidos com uma visão plural, social da cultura jurídica.
FONTE: Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza-CE nos
dias 9, 10, 11 e 12 de Junho de 2010. Disponível em: <http://150.162.138.7/documents/
download/625;jsessionid=D241B462905014C6D8CD5CED097A2B6F>. Acesso em: 30 nov. 2017.

72
TÓPICO 5 | O LEGADO ROMANO

DICAS

Há no site Youtube dois importantes documentários sobre qual o sentido do


estudo da história:
A história do mundo em duas horas: <https://www.youtube.com/watch?v=gydKNvKQZgQ>;
Por que estudar história? <https://www.youtube.com/watch?v=cnUJWj_3Fo8>.

São bons documentários do canal History Chanel, você irá se maravilhar e se apaixonar pela história
da humanidade, aprendendo sobre nossa capacidade de superação na luta pela sobrevivência.

73
RESUMO DO TÓPICO 5
Neste tópico, você aprendeu que:

• O direito romano constituiu-se desde relações sociais, políticas e econômicas da


antiga Roma.

• As profundas diferenças sociais entre patrícios e plebeus são as causas centrais


da criação do chamado direito civil romano, que era o direito dos patrícios.

• Os romanos foram “gigantes” na construção dos principais conceitos do direito


civil moderno.

• Há de se compreender o direito romano desde as distintas etapas históricas e


reinvenções pelas quais passou até chegar à modernidade.

74
AUTOATIVIDADE

Considere o texto:

DIREITO ROMANO CLÁSSICO: SEUS INSTITUTOS E SEU LEGADO

Francisco Quintanilha Véras Neto 

O sistema baseado no trabalho escravo caracterizou o Império


Romano e suas etapas históricas. Os patrícios dominavam as classes inferiores,
provocando uma desigualdade que refletiu nas instituições políticas e
jurídicas. “O Império Romano e suas várias etapas históricas estariam fixados
cronologicamente no modo de produção escravagista, em que o motor do
desenvolvimento econômico estava nas grandes propriedades apropriadas
pela aristocracia patrícia, que, controlando os meios de produção, as terras e
as ferramentas necessárias ao trabalho agrícola, dominavam as classes pobres
e livres dos plebeus, clientes e dos escravos”. 

A elaboração da Lei das XII Tábuas representou o auge da revolta


dos plebeus e possibilitou algumas melhorias para a classe, do ponto de
vista jurídico. A cultura romana atribuiu a esse universo escravagista uma
forma material ao direito romano, beneficiando os mais fortes com poderes
econômicos e militares.

Eram inexistentes as sanções, a coerção pública e a autoridade para as


decisões judiciais. Como exemplo pode ser citada a instituição matrimonial,
que era disciplinada pelo direito privado, mediante o qual o casamento era
realizado de maneira informal e oral. Apenas um contrato de dote selava a
união matrimonial. 

Nas instituições liberais individualistas pode-se identificar o direito


romano, principalmente no que concerne ao direito de propriedade e ao
direito das obrigações.

O Corpus Juris Civilis representou a sistematização do direito


romano, realizada a mando do imperador Justiniano. 

Durante a realeza, o rei era magistrado único e o Senado funcionava


como uma espécie de Conselho do Rei. O direito era costumeiro e a
jurisprudência estava nas mãos dos pontífices, sendo que as instituições
apresentavam um caráter teocrático. 

75
A república, por sua vez, foi caracterizada pelo poder dos dois cônsules,
que inicialmente são as magistraturas únicas. Posteriormente, surgiram os
censores e aos poucos os plebeus vão ganhando espaço dentro do governo.

As fontes do direito na República são o costume, a lei e os éditos dos


magistrados. 

Na sequência, o império centralizou todos os poderes nas mãos


de Augusto. Apesar de respeitar as instituições públicas em Roma, nas
províncias imperiais agia como um déspota. Nesse período destacam-se
alguns jurisconsultos e criadores de conceitos tópicos da ciência jurídica
romana. Já o baixo Império foi marcado pela sua cristianização e pela
decadência política e cultural.

A propriedade era considerada perpétua e impassível de


contestação dos outros, merecendo grande importância para os romanos.
Essa relevância decorria tanto da parte econômica como da religiosa, uma
vez que cultuavam os ancestrais enterrados em tais áreas. Devido ao seu
caráter sagrado, a propriedade era perpétua das famílias, mas o poder dos
proprietários não era ilimitado. 

A ciência jurídica conheceu a sua autonomia, primeiramente,


através do povo romano. No campo da propriedade, surgiram conceitos de
copropriedade, teorias subjetivas sobre a posse e conceito de pessoa jurídica.

Os romanos foram pioneiros na construção dos conceitos jurídicos


de direito objetivo e subjetivo, conceitos de ato e fato jurídico e também na
questão da irretroatividade das leis civis. 

Entretanto, o Império Romano foi substituído pela fragmentação


da Europa ocidental em unidades de produção descentralizadas, que
constituíram o antigo feudalismo. Nesse período, a Igreja era a única
instituição centralizada.

Fundamentalmente, o Direito Romano foi incorporado pelo Ocidente


por satisfazer os burgueses em relação às práticas capitalistas. Com o
passar do tempo, ele passou a ser cautelosamente estudado e aplicado mais
concretamente, notavelmente com o advento do sistema romano-germânico. 

Resumo da Obra “Fundamentos de História do Direito”, de Antonio


Carlos Wolkmer (org.), publicada pela Editora Del Rey.

FONTE: Disponível em: <http://investidura.com.br/biblioteca-juridica/resumos/historia-do-


direito/71-fundam>. Acesso em: 22 nov. 2017.

Faça um breve resumo destacando os principais legados do direito


romano à modernidade.
76
UNIDADE 2

PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E


AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO
NA MODERNIDADE

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Os objetivos desta unidade são:

• compreender o processo de transição da antiguidade para a Idade Média;


• refletir acerca dos elementos históricos constituintes da Idade Média;
• identificar as características do direito medieval;
• compreender as particularidades históricas de formação da modernidade;
• discutir os fundamentos do direito moderno.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em quatro tópicos. No decorrer da unidade você
encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – O NAUFRÁGIO DA CIVILIZAÇÃO ANTIGA: A FORMAÇÃO


DA IDADE MÉDIA

TÓPICO 2 – O DIREITO CANÔNICO: ELEMENTOS CARACTERIZADORES

TÓPICO 3 – A MODERNIDADE: UM CENÁRIO DE TRANSFORMAÇÕES

TÓPICO 4 – O DIREITO MODERNO E O POSITIVISMO JURÍDICO

77
78
UNIDADE 2
TÓPICO 1

O NAUFRÁGIO DA CIVILIZAÇÃO ANTIGA: A FORMAÇÃO


DA IDADE MÉDIA

1 INTRODUÇÃO
A Idade Média é um período da história europeia que se estendeu por
cerca de mil anos (entre os séculos V e XV). Como veremos pelas características e
particularidades, a Idade Média é dividida entre: Alta Idade Média (século V ao
X) e Baixa Idade Média (século XI ao XV).

Essa etapa histórica, ao contrário do que nosso imaginário pode supor,


não foi um período somente dominado por superstições, perseguição a hereges
e retrocesso civilizatório. Pode-se afirmar que na Idade Média serão definidos
os elementos que irão edificar a Modernidade. Por exemplo, o cristianismo,
precursor dos grandes valores humanistas e morais modernos, consolidou-se
paulatinamente a partir do século V, transformando-se de uma crença perseguida
a uma ideologia política que conduziu o modo de vida europeu por séculos.
O cristianismo criou importantes dogmas e fundamentos para o direito, como
adiante veremos.

Ainda, é na Idade Média que se consolidam os reinos bárbaros substituindo


definitivamente os antigos domínios romanos. Os reinos bárbaros acabam por
“personalizar” a lei e a prática da justiça, invocando-se a condição individual
dos sujeitos para a aplicação da lei. Assim, vai-se construindo o chamado direito
costumeiro que se torna legado para os dias de hoje.

Em síntese, esse é um período histórico de profundas e irreversíveis


transformações que trará como consequência a edificação de concepções jurídicas
muito particulares. Uma etapa em que irão conviver modelos e concepções
jurídicas distintas, como passaremos a estudar brevemente.

79
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

FIGURA 31 – IDADE MÉDIA: ETAPAS

Idade Média: da formação à crise


ALTA IDADE MÉDIA BAIXA IDADE MÉDIA

ERIKA ONODERA
Invasões bárbaras
Fortalecimento da Igreja Feudalismo Crise do
Formação do Império Carolíngio Feudalismo

V VI VII VIII IX X XI XII XIII XIV XV

FONTE: Disponível em: <https://clionainternet.wordpress.com/tag/linha-do-tempo-idade-media/>.


Acesso em: 17 nov. 2017.

2 O CRISTIANISMO
Em fins do século IV o mundo clássico antigo já havia se transformado
radicalmente. Com uma identidade muito particular, a civilização greco-romana
em um espaço de tempo de mil anos floresceu e, paulatinamente, ao mesmo
tempo em que o helenismo conhecia seu ponto mais alto, se instalava uma espécie
de crise alimentada pela entrada em cena de dois novos elementos: o cristianismo
e o modo de vida bárbaro.

Um jovem judeu do remoto distrito da Galileia no fim da primavera do


ano 27, ou talvez 33, foi condenado à morte por crucificação, forma de execução
comumente usada pelos romanos para escravos e criminosos que não eram
romanos. Jesus, um homem que fazia milagres e falava às multidões, exaltava
a compaixão, o perdão, o amor aos pobres. No final, ele também foi traído,
humilhado e morto.

NOTA

Todos nós sabemos que o nascimento de Cristo é um marco da história


ocidental. Porém, a data de nascimento – 25 de dezembro – e o ano são convenções.

Sua mensagem se coadunava com as histórias do judaísmo. Cinco séculos


antes, Isaías profetizava que o Messias (ungido do Senhor) seria “desprezado e
levado ao abatedouro como um carneiro” (Is. 53:7). A morte de Jesus era um alívio
para as autoridades tanto romanas como para os líderes judeus. Acreditavam que
sua morte comprovaria sua condição humana.

80
TÓPICO 1 | O NAUFRÁGIO DA CIVILIZAÇÃO ANTIGA: A FORMAÇÃO DA IDADE MÉDIA

No entanto, sua execução aprofundou ainda mais a fé de seus seguidores,


que afirmavam que o Messias triunfou sobre a morte ressuscitando e mostrando
ao mundo que definitivamente ele era o “Cristo”, Senhor e Salvador do mundo.

A partir daí uma nova etapa da religião e da história da humanidade se


inicia, surgindo uma fé e uma ideologia inédita e transformadora: o cristianismo.

FIGURA 32 – EXPANSÃO DO CRISTIANISMO

FONTE: Disponível em: <https://pastordanielhill.com/2014/06/30/how-do-you-


effectively-preach-to-a-culturally-diverse-crowd/>. Acesso em: 17 nov. 2017.

DICAS

É longa e interessante a história do cristianismo. Você pode pesquisar!


Como sugestão, indicamos o site: <https://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia/cristianis
mo-religiao-passou-de-perseguida-a-oficial-no-imperio-romano.htm>.

Inicialmente perseguido de maneira feroz, o cristianismo acaba tornando-se a


religião oficial do império no século IV, com a conversão do imperador Constantino.

O império, na época, era assolado por uma multiplicidade de deuses e


crenças. Os romanos toleravam outros deuses e se apropriavam de alguns para
cultuá-los, mas exigiam que os povos dominados, por outro lado, tratassem o
imperador como divindade. O judaísmo era diferente, adorava um deus único e
não admitia nenhum outro e, por essa razão, os romanos os consideravam religio
licita (isenta de adoração ao imperador).

81
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

Os judeus espalhavam-se pelo mundo helenístico e romano evitando conflitos


com outras religiões e raças. No centro do judaísmo estavam os textos sagrados que
impunham rígidas regras de vida familiar e moral, mas rapidamente a divindade de
Jesus se dissemina entre os judeus, embora as autoridades religiosas judaicas viam
no cristianismo um insulto à fé, e assim os cristãos passam a ser perseguidos por sua
própria gente. Em apenas três décadas a nova fé religiosa se espalha.

FIGURA 33 – EXPANSÃO DO CRISTIANISMO NO IMPÉRIO ROMANO

FONTE: Disponível em: <http://disciplina-de-historia.blogspot.com.br/2011/10/difusao-do-


cristianismo-no-imperio.htm>. Acesso em: 17 nov. 2017.

Os rituais adotados pelos convertidos – eucaristia, batismo e orações


– faziam com que houvesse desconfiança. Era uma crença aberta a escravos e
senhores, homens e mulheres, que pregava a igualdade.

É evidente que ao longo da história as religiões serviram a diferentes


necessidades sociais, políticas e econômicas. As religiões, em sua maioria,
inventam deuses para serem cultuados que guiam os destinos humanos. Sem
dúvida, as religiões e os sacerdotes são instrumentos de poder e controle social,
mas o que o cristianismo trouxe de inédito que perdura até os dias de hoje?

A religião cristã floresce quando os rituais romanos e culto aos deuses se


transformam em festivais de orgias, embriaguez e pura diversão. Os imperadores,
deuses inquestionáveis, como Nero e Calígula, eram figuras decadentes e
deploráveis. Os sacrifícios aos deuses já não tinham mais sentido. A vida romana
se distanciara dos ideais virtuosos que acreditavam os grandes filósofos. Sem
dúvida, religião e vida andavam separadas.

Nesse contexto, a fé cristã representa uma forma de restauração da


espiritualidade. Era uma alternativa significativa para um mundo caótico. O
cristianismo oferecia a salvação através da fé. E mais: os apóstolos ensinavam a
rezar pelos inimigos, respeitar os oprimidos e repartir riquezas com os pobres.
82
TÓPICO 1 | O NAUFRÁGIO DA CIVILIZAÇÃO ANTIGA: A FORMAÇÃO DA IDADE MÉDIA

A nova crença exerceu forte atração sobre os herdeiros espirituais


de Sócrates, mergulhados numa época de confusão moral, e sobre o
povo de Roma em geral, privado de qualquer experiência religiosa
significativa. Além disso, o cristianismo oferecia uma rede de
correligionários forte e solidária. À classe dos artesãos, em especial,
eficazmente mantida à margem da elite dominante pela privação da
cidadania, a Igreja proporcionava um império espiritual alternativo do
qual eles eram membros plenos (OSBORNE, 2016, p. 131).

Em síntese:

• O cristianismo encontra um fértil terreno entre os empobrecidos por ser portador


de ideais e formas de comportamento que uniam pessoas divididas e fragmentadas
pelo poder imperial romano que privava as pessoas de qualquer esperança.
• A doutrina trazia em si um ideal comunitário.
• O cristianismo foi visto pelos indivíduos mais cultos da época como uma
espécie de reavivamento da relação entre o divino e o humano.
• As práticas “pagãs” sobreviveram ao cristianismo adaptando-se a ele, a
exemplo de rituais como procissões, invocação de santos, festas religiosas que
substituíram as pagãs.
• O cristianismo e sua ideologia salvacionista acabam por tornar-se a mais
importante cultura ocidental, impregnando também, com seus princípios, a
política e o direito.

3 A BARBARIZAÇÃO DO COTIDIANO
A desagregação do Império Romano, além do marco político e histórico,
também trouxe consigo uma autêntica catástrofe civilizatória. Assistiu-se ao
naufrágio de todo um modo de vida, uma autêntica “regressão”. No dizer do
Capella (2002, p. 982):
A vida urbana, as comunicações, o comércio, a saúde e as condições
de vida, a agricultura e as técnicas, a produção e em geral o saber e
a cultura (sobretudo depois do incêndio da Biblioteca de Alexandria,
depósito do saber greco-romano e oriental) vieram abaixo. As
populações do continente se viram açoitadas pela fome, a escassez, as
epidemias, o isolamento, a ignorância e a violência.

O império, que até então parecia invencível, sucumbia a invasões de povos


vindos do nordeste com uma cultura completamente distinta. A este fenômeno,
agravando ainda mais o momento histórico, pouco a pouco há uma fragmentação
política e todo saber e cultura helênica sucumbe. Novas línguas substituem o latim
e grego clássicos. Apenas o que era necessário para a sobrevivência é mantido. As
comunidades se isolam e vai-se adquirindo novos hábitos, agora mais rudes.

83
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

Este período, como já estudado na Unidade 1, foi conhecido como


“invasões bárbaras”. Na verdade, eram povos que vinham ocupando o império
desde o século II e chega o momento em que já não foi mais possível resistir,
e assim o cotidiano foi se barbarizando. Esse processo de “barbarização do
cotidiano” constitui-se em paulatino abandono do modo de vida romano que
já não mais se sustentava. Muitos romanos assumem o modo de vida bárbaro.
Vejamos a descrição feita pelo clássico historiador Le Goff e Le Roy Ladurie (1986,
p. 36) do cotidiano que se barbariza:
Os pobres estão despojados, as viúvas gemem e os órfãos são pisados
a pés, a tal ponto que muitos, incluindo gente de bom nascimento e
que recebeu educação superior, se refugiam junto dos inimigos. Para
não perecer à perseguição pública, vão procurar entre os bárbaros a
humanidade dos romanos, pois não podem suportar mais, entre os
romanos a desumanidade dos bárbaros. São diferentes dos povos
onde buscam refúgio; nada têm das suas maneiras, nada têm da sua
língua e, seja-me permitido dizer, também nada têm do odor fétido
dos corpos e das vestes dos bárbaros; mas preferem sujeitar-se a essa
dessemelhança de costume a sofrer, entre os romanos, injustiça e
crueldade. Assim emigram para os Godos ou para os Bagaldos, ou
para os outros bárbaros que em toda a parte dominam, e não têm de
que arrepender-se com o exílio. Pois gostam mais de viver livres sob a
aparência da escravidão que ser escravos sob a aparência de liberdade.

Enfim, a civilização romana ruía e com ela toda clássica antiguidade. Na


verdade, como dizem os historiadores, trata-se mais de um abandono. E assim, se
inicia o processo de feudalização.

FIGURA 34 – SERVO CULTIVANDO A GLEBA

FONTE: Disponível em: <http://historiaemfocosl.blogspot.com.br/2010/08/


invasoes-barbaras-e-feudalismo.html>. Acesso em: 17 nov. 2017.

84
TÓPICO 1 | O NAUFRÁGIO DA CIVILIZAÇÃO ANTIGA: A FORMAÇÃO DA IDADE MÉDIA

Apesar da grande diversidade, os bárbaros traziam muitas semelhanças.


Como eram “sedentários em fuga”, não tinham o modo de vida urbano e uma
individualidade como a romana. Conheciam o manejo de metais e a ourivesaria.
A cultura romana sempre foi vista pelos bárbaros como superior, mas impossível
de ser preservada.

Com os bárbaros, segundo Le Goff e Le Roy Ladurie (1986) já citados, é


impressionante a regressão da civilização em muitos aspectos. O refinamento e a
estética mediterrânea são abandonados. A população diminui visivelmente – apenas
para lembrar, a Peste Negra no século VI matou milhares de pessoas –, além das pestes,
a fome, as guerras e os saques impediam qualquer esperança de vida. Desaparece o
uso da moeda e o sistema de troca domina o tímido comércio de subsistência.

A expansão do cristianismo sobre os reinos bárbaros foi fazendo com que


os “penitenciais” servissem de controle social.

Os Livros Penitenciais eram uma espécie de “catálogo’ de pecados e


penas expiatórias que serviam para orientar os sacerdotes no aprendizado de
seu exercício. Inicialmente, aparecem na Irlanda por volta do século VII e pouco
a pouco se estendem por muitos reinos. Eram, na verdade, obras anônimas,
elaboradas por religiosos, em não raras vezes fanáticos, que elencavam pecados e
serviam de controle moral.

FIGURA 35 – LIVRO PENITENCIAL – REPRODUÇÃO

FONTE: Disponível em: <http://www.snpcultura.org/biblioteca_


nacional_expoe_livros_de_horas.html>. Acesso em: 17 nov. 2017.

85
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

Observe a riqueza de detalhes. Naquela época ainda não havia sido


inventada a imprensa e todas as obras eram manuscritas!!

Esses livros expressavam as idealizações, preconceitos e modo de vida da


época, muitos deles considerados pecados. E os reis bárbaros aplicavam castigos
terríveis e cruéis para punir os pecadores. Unhas eram arrancadas, pés e mãos
eram cortados, mutilavam-se os corpos, eram feitas marcas a ferro quente....
Enfim, a maldade não tinha limites.

Sem dúvida, a civilização regredia e o mundo se fechava em feudos.


O mundo medieval era marcado por laços pessoais entre os nobres através da
concessão de feudos. A mútua fidelidade entre os nobres e destes com os servos
e a descentralização política é a grande característica dessa etapa histórica. Era
um mundo em que estava estabelecido um sistema de vassalagem que se define
como pactos de fidelidade entre um cavaleiro (vassalo) para com um nobre
(suserano). Através de um ato solene, investidura, o vassalo prometia lutar e
auxiliar financeiramente ao suserano, que, em contrapartida, cedia um feudo –
porção de terra ou arrendamento agrícola. Como a população se via à mercê dos
bárbaros, acabavam saindo das cidades e procuravam abrigo no campo. Em troca
de proteção, os vassalos obtinham mão de obra para o trabalho em suas terras.

Esse sistema de pactos mútuos deu origem ao sistema servil. As terras eram
divididas em: manso senhorial (terras destinadas ao cultivo do senhor); manso
servil (terras destinadas à produção dos servos); e manso comunal (terras para uso
comum). Evidentemente, os nobres e a Igreja detinham grandes propriedades. Os
servos eram obrigados a trabalhar para pagar taxas ou obrigações feudais que
consistiam em corveia (trabalho no manso senhorial três dias da semana), talha
(parte da produção do servo entregue ao senhor); banalidades (pagamento pelo
uso de equipamentos do senhor: celeiros, moinhos etc.).

Era uma sociedade estamental, ou seja, dividida em ordens (estamentos)


definidas de acordo com o papel desempenhado por cada um: os que oravam, os
nobres, os guerreiros e os servos.

Enfim, uma aristocracia que se autoatribuiu o direito à propriedade obrigava


uma massa de trabalhadores a cultivar suas terras e não poderiam abandoná-las.
Serviam nas armas os homens e no leito as mulheres quando os senhores queriam.

DICAS

Você já assistiu ao filme “Coração Valente”?


Narra as relações de poder da época e a história de William Wallace, que liderou uma rebelião
contra um rei tirano!
Veja seu belo discurso em: <https://www.youtube.com/watch?v=tnfga7tbMYI>. Acesso em:
18 nov. 2017.

86
TÓPICO 1 | O NAUFRÁGIO DA CIVILIZAÇÃO ANTIGA: A FORMAÇÃO DA IDADE MÉDIA

FIGURA 36 – PIRÂMIDE SOCIAL MEDIEVAL

REI

NOBREZA CLERO

SENHORES
DAS TERRAS,
TUDO LHES
PERTENCE.
NÃO PAGAM
IMPOSTOS MAS
RECEBEM-NOS
DO POVO

POVO
SUSTENTA O CLERO E A
NOBREZA, TRABALHA,
PAGA IMPOSTOS A TODOS,
TRABALHA PARA O REI
NAS OBRAS E NA GUERRA.

FONTE: Disponível em: <http://portfoliocursoevc.blogspot.com.br/2013/04/


video-aula-1-contexto-historico-dos.html>. Acesso em: 17 nov. 2017.

Nessa sociedade imersa no cristianismo e relações de servidão é elaborada


uma organização política e jurídica paradoxal com instituições que vão tentar garantir
a estabilidade do poder, e assim, dos escombros de Roma se edifica a Idade Média.

4 A EMERGÊNCIA DO PLURALISMO MEDIEVAL


A queda de Roma, a descentralização do poder e a conformação de novas
formas de poder sociopolítico fizeram com que fosse estruturada uma nova
ordem jurídica. Com a existência de forças políticas autônomas e distintas – os
nobres, os vassalos e a Igreja – sem um poder centralizador, o mundo medieval
vai se consolidando com ordens jurídicas distintas e concorrentes em um mesmo
espaço geográfico. Grupos, famílias, clãs etc. constituíam fontes de produção do
direito dos reinos. O clero vai consolidando seus interesses e concepções através
de uma ordem jurídica própria.

Os bárbaros, como já considerado, eram, segundo os romanos, os povos


de origem indo-europeia que viviam à margem da cultura greco-romana, a
partir do século II a.C. começam a se deslocar de maneira pacífica, vivendo quase
imperceptíveis e assimilando a cultura romana. Aos poucos foram capazes de
construir uma autêntica organização militar e destruir a estrutura imperial de
Roma. O impacto causado, entretanto, não foi suficiente para a total substituição
institucional. Pouco a pouco passaram a receber influência romana, ocorrendo uma
espécie de simbiose e, após séculos de convivência, é moldado um novo regime.
87
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

Lima Lopes (2012, p. 53-54) faz uma breve síntese do processo de


transformação política e territorial:
A certa altura, no final do século V e inícios do século VI, a situação
pode ser sumariada da seguinte maneira:
Os francos, sob a liderança de Clóvis, os ostrogodos, sob a liderança
de Teodorico, o Grande, e os visigodos sob a liderança de Eurico e
depois Alarico disputam o Ocidente. Os francos controlam o norte do
que hoje é a França, os ostrogodos controlam a Itália setentrional a
partir de Ravena, e os visigodos controlam o sul da França, ou Gália.
Especialmente na Gália a divisão entre os romanos e não romanos
é forte. Teodorico governa a Itália com conselheiros romanos que
mantêm de modo geral. Nesse mundo dividido, duas ordens de direito
se estabelecem: o direito dos bárbaros e o direito romano vulgarizado,
ou o direito romano bárbaro.

FIGURA 37 – REINOS BÁRBAROS

FONTE: Disponível em: <http://roberto-menezes.blogspot.com.br/2011/02/queda-


do-imperio-romano.html>. Acesso em: 17 nov. 2017.

Com a consolidação dos reinos bárbaros e expansão do cristianismo, foi se


definindo uma nova etapa civilizatória: o feudalismo.

Feudalismo pode ser definido como uma etapa social, política e econômica
europeia. São muitos os feudalismos que se definiram em distintos pontos geográficos,
desde o Ocidente ao Oriente, como também com formas diferentes de expressão.

O famoso historiador E. Bloch (2002), já estudado na Unidade 1, identificou


duas épocas do feudalismo:

• Uma primeira etapa encerrada no século XI, que corresponderia a um


momento de organização rural mais estável, com pouco comércio e quase
nenhum uso de moeda.

88
TÓPICO 1 | O NAUFRÁGIO DA CIVILIZAÇÃO ANTIGA: A FORMAÇÃO DA IDADE MÉDIA

• Uma segunda que se circunscreve com o início do renascimento comercial e


ampliação do uso de moeda, cuja consequência foi a completa transformação
social e econômica preexistente.

O momento histórico marcado pelo renascimento comercial irá consolidar


a ascensão de uma nova classe social para a qual o senhor feudal irá orientar
sua produção: a burguesia. Essa categoria social inédita irá se fixar nas cidades e
paulatinamente revolucionando o mundo europeu, como adiante iremos estudar
mais detalhadamente.

Em síntese, pode-se afirmar que o Feudalismo, além de uma etapa


histórica da civilização ocidental, possui características que permitem definir
por períodos distintos, mas que possui como marca nuclear relações sociais e
políticas estabelecidas desde laços de fidelidade entre as camadas dominantes e
as dominadas. Os vínculos se dão sempre entre senhores e não entre servos. As
relações de poder eram estabelecidas entre os senhores por meio da vassalagem,
permitindo acúmulo de prestígio e cumplicidade. A partir desse cenário pode-se
compreender o direito medieval.

NOTA

Direito Medieval ou Feudal era o conjunto de normas, garantias e procedimento


europeu que se caracteriza por um contrato – pacto – entre senhores e vassalos, que
criava obrigações de fidelidade deste último para com seu senhor. Especialmente, criava a
obrigação de fornecer apoio militar, participação nos conselhos e cortes de seu senhor. Em
contrapartida, tinha a proteção e reconhecimento de seu domínio territorial hereditário. A
justiça era aplicada pelo senhor com base em costumes e, em alguns casos, em leis que eram
ditadas pelos reis como forma de organização social e tentativa de proteção aos súditos.
Entretanto, já no século IX se nota um declínio das formas de unificação, assistindo-se ao
fortalecimento do poder papal e o direito canônico.

E
IMPORTANT

No Youtube você poderá acessar ao History Channel, que tem à disposição


inúmeros documentários sobre os povos bárbaros.
Você poderá aprender que “bárbaro” não significa “selvagem” ou “cruel”, mas sim povos de
distintas origens que em muito contribuíram para a formação da sociedade moderna.

89
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

A seguir, vamos estudar os distintos complexos normativos medievais


que conviveram tanto na Baixa como Alta Idade Média em um mesmo espaço
geográfico. Na Alta Idade Média, simultaneamente encontramos os costumes dos
povos bárbaros, a legislação bárbaro-romana, bem como os decretos dos concílios
eclesiásticos, sem que houvesse uma unificação. Com a ascensão de Carlos Magno
(742-814) ao poder há uma tentativa de centralização, uma vez que ele buscava
converter os bárbaros ao cristianismo, incentivando guerras de conquista que
resultaram na recuperação do Império Romano do Ocidente. No ano 800 é nomeado
imperador do Sacro Império Romano Germânico pelo Papa Leão III, consolidando
uma forte relação com a Igreja, a qual protegia e favorecia. Entretanto, as trocas de
benefícios acabam por acelerar o processo de feudalização.

Com o “vazio” político, a fragmentação jurídica alimenta uma nova


expressão de direito: o direito canônico. Como resultado do renascimento cultural
do século XII, que trouxe consigo a criação de universidades, bem como o próprio
renascimento comercial e redescoberta do direito romano através do Corpus Iuris
Civilis, reestruturação urbana, entre outros fatores, construiu-se um novo cenário
propício à unificação cujo mito fundador será representado pelo cristianismo.

90
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• Os fatores que explicam a predominância do cristianismo na Idade Média.

• A consolidação da sociedade medieval e seus elementos caracterizadores.

• As características gerais do pensamento jurídico medieval.

• Os fundamentos e aspectos destacados do direito canônico, bem como seu


legado para o pensamento jurídico moderno.

91
AUTOATIVIDADE

Considere a afirmação: “[...] o direito desempenhou, na Idade Média,


um papel muito menor do que havia tido no mundo romano e o que alcançaria
na modernidade; um papel subalterno. Regressou-se a um arcaico mundo de
temores e mistérios populares, a um mundo mágico-religioso. Ainda que agora se
fez seu e se transformou híbrido e desnaturalizado, como bem compreenderiam
os espíritos profundo e sinceramente religiosos como Francisco de Assis, ou
Lutero séculos mais tarde. As crenças religiosas (servidas por uma clerezia
próxima aos fragmentados poderes locais) se constituíram no discurso público
por excelência, e as noções jurídicas mesmas experimentaram uma mutação que
as retrotraía à linguagem sacerdotal” (CAPELLA, 2002, p. 84-85).

Com o estudo realizado no Tópico 1, o autor está correto ao dizer que houve um
retrocesso na sociedade medieval? Por que a religiosidade serviu de discurso
público por excelência?

92
UNIDADE 2 TÓPICO 2

O DIREITO CANÔNICO: ELEMENTOS CARACTERIZADORES

1 INTRODUÇÃO
“Direito Canônico” é uma expressão que designa um conjunto de normas
jurídicas cujo objetivo é o de reger o modo de vida dos cristãos. Em 313, quando
Constantino concedeu liberdade para que as autoridades cristãs – papa e bispos
– pudessem julgar seus adeptos, segundo seus preceitos religiosos, iniciou-se um
processo de autonomia que, no século V, ganha absoluta autonomia.

Com a queda do Império Romano e a multiplicidade de poderes medievais,


a Igreja vai assumindo relevância absoluta no exercício do poder político e jurídico.
Com esse aumento de poder e a sofisticação intelectual desenvolvida pelas
universidades recém-criadas, o direito canônico passa a intervir prioritariamente
na sociedade como um todo.

DICAS

Há um excelente artigo que você pode ler acerca do tema. Disponível em:
<http://nemed.he.com.br/projetopandora/2016/10/15/o-nascimento-das-universidades-
medievais/>. Com o título: O NASCIMENTO DAS UNIVERSIDADES MEDIEVAIS: ASPECTOS
SOBRE A CULTURA DE SABER NA BAIXA IDADE MÉDIA OCIDENTAL.

Leia, você verá como é interessante o funcionamento das universidades na época e a


maneira como influenciaram o pensamento moderno!

A Igreja foi assumindo inúmeras funções até então reservadas ao antigo


Império Romano. Além ter adquirido grande força espiritual, ainda era o poder
mais organizado, através da imensa rede de adeptos.

93
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

FIGURA 38 – ENSINO MEDIEVAL

FONTE: Disponível em: <http://nemed.he.com.br/projetopandora/2016/10


/15/o-nascimento-das-universidades-medievais/>. Acesso em: 17 nov. 2017.

Um dos mais importantes pensadores do direito, Franz Wieacker (1967,


p. 67), destaca: “A Igreja era a força espiritual de longe mais importante; era,
ao mesmo tempo, a mais coerente e a mais extensa organização social da Idade
Média; finalmente, a sua ordem jurídica interna era a mais poderosa da Idade
Média, em termos gerais”.

Não há dúvida de que a Igreja e a cristandade têm relevância na formação


do direito medieval e com um grande legado à modernidade.

Como já considerado, o poder da Igreja se expande e se consolida também


porque sua forma de administração territorial foi muito particular, e serviu de
modelo para a organização dos Estados Modernos. Em cada província, por mais
distante que fosse, havia um bispo que mantinha sob seu controle o clero e a
paróquia. Sua competência era imensa e estabelecida a partir de uma rede articulada
de padres e laicos – aquele que não pertence à Igreja como clérigo –, diáconos etc.

A ética cristã, com grande influência do pensamento grego, foi a base do


pensamento jurídico de todo medievo, e sua influência segue até os dias atuais.
O direito canônico teve uma importância crucial na formação e consolidação
das instituições políticas e jurídicas que se sucedem no mundo ocidental. Como
veremos, a forma de organização dos tribunais e a jurisdição são concepções
construídas pelo poder papal e sistematizados pelo direito canônico.

Dentre os fatores que colocam em relevo o direito canônico, pode-se destacar:

• O caráter ecumênico da Igreja – que anuncia o cristianismo católico como universal.


• A dominação do direito canônico nas diversas esferas da vida privada – como
o instituto jurídico de família.

94
TÓPICO 2 | O DIREITO CANÔNICO: ELEMENTOS CARACTERIZADORES

• O direito canônico foi objeto de doutrina e tornou-se uma ciência.


• Os canonistas – estudiosos do direito canônico – formarão uma classe de
intelectuais que criarão conceitos jurídicos absorvidos pelo direito leigo.

Todo direito canônico assenta-se no trabalho dos canonistas que vão


aproximar o direito da teologia cristã construída a partir do texto bíblico
e, por esta razão, elaboram técnicas interpretativas que fundam a moderna
hermenêutica jurídica.

NOTA

O termo “canônico” origina-se da palavra “canon”, que significa “regra” ou “régua”


- medida. Portanto, direito canônico é composto por um conjunto de regras de vida cristã.

A interpretação da Bíblia era, a princípio, literal, mas em casos de


antinomia – conflito de normas – eram usados os seguintes critérios:

• Ratione Significationis – sentido obtido a partir da fixação do bem jurídico em


questão.
• Ratione Temporis – lei posterior revoga anterior.
• Racione Loci – lei local revoga a lei geral.
• Rationi Dispensationis – lei especial revoga lei geral.

Note que esses critérios são usados pelos juristas atualmente!

Toda base do direito canônico é o Corpus Iuris Canonici – Código de Direito


Canônico –, que permaneceu em vigor até 1917. Foi elaborado ao longo dos
séculos XII ao XV identificando direito com teologia cristã. Diferente do direito
comum, o direito canônico tem como base a Sagrada Escritura, as decisões dos
concílios e dos sínodos – reuniões/assembleias das autoridades eclesiásticas –;
as decisões papais e as leis relativas à Igreja. Entretanto, há que se lembrar que
sempre o direito canônico foi resultado do trabalho intelectual dos doutores da
Igreja, portanto, um trabalho científico.

95
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

FIGURA 39 – CORPUS IURIS CANONICI

FONTE: Disponível em: <http://legalissistemasjuridicos.blogspot.com.br/2012/09/


cuestionario.html>. Acesso em: 17 nov. 2017.

2 A REFORMA GREGORIANA: MARCO DO DIREITO


CANÔNICO
O evento que marca a construção do direito canônico e o poder da Igreja
foi a Reforma Gregoriana. Trata-se de uma grande transformação liderada por
Gregório VII (papa entre 1073 a 1085), cujo objetivo foi promover a absoluta
autonomia do poder papal, uma vez que até este momento a Igreja era uma
comunidade espiritual de natureza estritamente religiosa, mas não jurídica.

Com Gregório VII, cujo nome de origem era Hildebrando, há uma separação
entre sacramentos – preceitos religiosos – e leis, pois não se diferenciavam leis
canônicas de rituais ou liturgias. Além disso, havia uma certa subordinação do
papado ao poder civil com a forte ingerência dos nobres e reis, sobretudo das
decisões acerca dos cargos eclesiásticos.

A luta de Gregório será de opor-se à simonia – venda de objetos e cargos


sagrados; ao nicolaísmo – casamento dos clérigos e à nomeação de leigos para altos
cargos da Igreja recebendo benefícios – rendas de terras, paróquias, mosteiros etc.
No ano de 1075 inicia a Reforma que vai se constituir na maior e mais importante
revolução da política da Idade Média, emitindo um documento papal – Dictatus
Papae – que pretendia garantir a liberdade e independência da Igreja.

Foram no total 27 determinações de Gregório, das quais se destacam:

• A Igreja Romana foi fundada exclusivamente pelo Senhor.


• Só o bispo de Roma – papa – pode possuir direito universal e pode depor ou
nomear bispos.

96
TÓPICO 2 | O DIREITO CANÔNICO: ELEMENTOS CARACTERIZADORES

• Somente o papa pode legislar de acordo com a necessidade do momento.


• Somente os pés do papa podem ser beijados pelos príncipes.
• Somente seu nome pode ser recitado nas igrejas.
• O papa pode depor imperadores.
• Não podem ser convocados concílios ou sínodos sem sua ordem.
• Nenhum capítulo ou livro pode ser chamado de canônico sem sua ordem.
• Nenhum de seus julgamentos pode ser revisto, mas ele pode rever
julgamento de todos.
• A ele compete dissolver os laços de vassalagem.

Perceba que o documento ataca diretamente o poder dos nobres, que


vão reagir, iniciando uma longa fase de enfrentamento que será conhecida como
Guerra das Investiduras, cujo marco foi a carta redigida por Henrique IV, rei da
Inglaterra, que irá culminar com o rompimento do rei com o papa.

DICAS

Você pode pesquisar sobre o tema e aprofundar seu estudo. Sugere-se:


<http://adventmedidas.blogspot.com.br/2016/05/a-questao-das-investiduras.html>. Acesso
em: 18 nov. 2017.

Pode-se afirmar que o plano do Papa Gregório era abolir totalmente a


interferência dos leigos nos assuntos da Igreja e privar os soberanos do direito de
investidura – nomeação – de bispos, abades e do próprio papa, pois com a ordem
papal as nomeações passavam a ser feitas somente pelo papa. Entretanto, acabou por
tornar-se o maior e mais significativo conflito entre a Igreja e os Reinos Medievais.
Ora, na estrutura institucional anterior a Gregório VII alguns insistiam
na sacralidade dos reis. Os reis eram ungidos e se consideravam
autoridades sacrais. A sagração do rei era uma cerimônia religiosa
e política, simbolicamente, a coroação ou sagração era quase que
uma ordenação religiosa. Sem questionar diretamente a função
exercida pelo rei, a Reforma Gregoriana, no entanto, colocava uma
novidade: afirmava que o rei (ou o imperador) estava dentro da
igreja, não acima (imperator in Ecclesiam, non super Ecclesian) e dentro
da Igreja a autoridade maior era o papa. Por outro lado, o Império na
Idade Média era um poder, e não um território. Era um poder como
autoridade (imperium) e capacidade de governar (jurisdictio), apoiado
não pela submissão de um povo em um território determinado,
mas nas relações interpessoais de submissão e benefício com certos
senhores menores. Era uma rede ou uma cadeia de relações. Não
havia burocracias racionalizadas, organizadas propriamente em
carreiras. Não havia cidade capital: esta era onde o imperador ou rei
assentasse sua corte, muitas vezes de maneira provisória, pois os reis
e imperadores viajavam constantemente [...]. O Império era, pois, uma
entidade militar/espiritual e não geográfica. Vigorava ainda muitas
vezes o princípio da personalidade (ou pessoalidade) das leis e, sobretudo,
a força dos costumes locais (LIMA LOPES, 2012, p. 73-74).

97
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

Note que com a Reforma Gregoriana há um desmonte do modelo até


então vigente do exercício de poder, razão pela qual é considerada a primeira
revolução do mundo ocidental. Com esta concepção começa a nascer o conceito
de Estado, que é um ente político que centraliza o poder de legislar e tem caráter
universal. Evidente que o objetivo era o de disciplinar o poder e centralizá-lo
exatamente pela dispersão existente na época.

As consequências foram também de natureza jurídica, uma vez que os


juristas, na época os canonistas, passaram a desempenhar um papel central no
exercício do poder. Desde a publicação do Dictatus Papae de Gregório VII, os
canonistas começaram a criar conceitos e princípios para o exercício e delimitação
do poder. Lembre-se que na Idade Média havia, ao lado do poder da Igreja, o
poder dos nobres. Os canonistas criaram vários conceitos políticos e jurídicos e,
desde aí, constitui-se uma nova classe de sujeitos: os intelectuais e os burocratas
da Igreja. Agora, a ascensão profissional não era mais pelo nascimento ou
merecimento, mas pelo cargo ou ofício que exercia como consequência de uma
formação. O poder não era exercido mais de forma personalizada em um sistema
baseado em lealdade ou fidelidade, mas sim em competências definidas por lei.

FIGURA 40 – PAPA GREGÓRIO VII

FONTE: Disponível em: <http://operamundi.uol.com.br/conteudo/


noticias/19399/hoje+na+historia+1077+-+imperador+henri+iv+ajoelha-
se+aos+pes+do+papa+gregorio+vii.shtml>. Acesso em: 17 nov. 2017.

3 OS CONCEITOS DE JURISDIÇÃO E COMPETÊNCIA


É no campo da jurisdição e processo que o direito canônico ganha grande
relevância, sem que se deixe de considerar sua importante contribuição no campo
do direito civil, por exemplo, quanto aos institutos do casamento, família, contrato,
além da formulação da teoria da personalidade jurídica. Como adiante veremos
melhor, o processo canônico legou à modernidade características muito particulares
e essenciais, tais como: 1. A condução do processo por profissionais do direito; 2. A
uniformização dos procedimentos; 3. A perspectiva investigativa – inquisitorial; 4. A
predominância da escrita sobre a oralidade com a criação dos “autos” processuais.
98
TÓPICO 2 | O DIREITO CANÔNICO: ELEMENTOS CARACTERIZADORES

Com a Reforma Gregoriana, aos poucos a imposição de penitências impostas


aos fiéis vai se diferenciando das sanções legais como consequência de violação da lei.
As penitências ou revisão da consciência do cristão são próprias do padre, do curador
da alma, e se originam de um foro de consciência. Já as sanções ou penas derivam
do foro judicial que detém o poder de aplicar a lei para normatizar as condutas dos
cristãos como um todo. Desta forma, a jurisdição ou foro judicial passa a ser matéria
comum entre os eclesiásticos e os nobres. Como distingui-las? Frente ao problema,
os canonistas criam a separação de jurisdição tendo como base critérios objetivos –
competência – conforme as pessoas envolvidas no processo e matéria disputada, e
desde tais critérios definia-se a jurisdição – distribuição de justiça.

Os critérios de jurisdição dos tribunais canônicos eram: em razão da


pessoa (ratione personarum) e em razão da matéria (ratione materiae).

• Ex ratione personarum: para os eclesiásticos havia o foro de privilégio absoluto,


que não eram somente os padres, mas todo aquele que exercia uma função
eclesiástica. Os professores e estudantes também eram considerados clérigos.
Ainda aqueles que estavam sob a “proteção da cruz” – os cruzados –, que
eram os que lutavam sob a proteção de Deus. Possuíam também privilégio de
foro eclesiástico os miseráveis, que pediam proteção da Igreja, atendidos por
profissionais nomeados pelos bispos.
• Para alguns, o foro de privilégio absoluto – como era o caso dos eclesiásticos – e
para outros, relativo, podendo estes renunciar ao eclesiástico e pedir proteção
à jurisdição secular.
• Ex ratione materiae: algumas matérias deveriam ser tratadas somente em
tribunais eclesiásticos, como era o caso de casamento, por ser um sacramento
da Igreja. As matérias de testamento, ou últimas vontades, porque se acreditava
que havia algo relacionado à salvação da alma. Ainda, os benefícios patrimoniais
da Igreja e os pecados públicos como usura, heresia, adultério etc.

Porém, o grande destaque do direito canônico é no conceito inovador de


processo que, por sua complexidade, exige um estudo mais particular.

DICAS

Assista ao filme: Em nome de Deus. Disponível em: <https://www.youtube.com/


watch?v=c20mqZUy2VA>.
Você irá se encantar com a história – verídica – de Abelardo e Heloísa. Ele, um professor e
intelectual da época medieval, particularmente da Baixa Idade Média (séculos XI a XV); e ela
uma mulher extraordinária.
Não perca!!!!

99
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

4 O PROCESSO INQUISITORIAL
Ao se consolidar uma classe de profissionais do direito, também se
disseminou uma forma de solucionar conflitos, uma prática processual cuja
marca era a racionalidade e a técnica. Além de ter introduzido o processo escrito
– autos –, que passou a exigir um corpo notarial, a escrita processual exige termos
e fórmulas específicas e, assim, a lógica de técnica vai assumindo relevância.

Além disso, as fases processuais são organizadas de maneira clara:

• Libellus: queixa apresentada pelo autor a uma autoridade oficial que lê na


presença do réu a acusação ou pedido.
• Exceções: na fase seguinte apresenta-se o que hoje chamamos de preliminares –
qualquer defesa que não seja o mérito propriamente dito – que seriam dilatatórias
ou peremptórias, que poderiam impedir o andamento do processo ou atingir o
próprio direito.
• Litis contestatio: contestação.
• Decisão: feita pelo magistrado resolvendo o mérito.

A nova racionalidade jurídica, introduzida pelo procedimento


inquisitorial, tinha como objetivo o combate ao sistema irracional de provas que
predominavam no direito medieval: os ordálios.

Ordálio, ou juízo de Deus, eram meios de provas em que se invocava


a intervenção divina, aplicando-se “provas” para provar inocência, como as
“provas de fogo” – andar sobre brasa, colocar a mão em óleo fervente etc. – e
as comuns, como afundamento na água fria, ser cortado e não sangrar etc. A
partir do século XII ocorre um abandono progressivo dos ordálios, mesmo pelo
direito comum, e a predominância do modelo inquisitorial. O ordálio era como
um “detector de mentira” da época e aquele que aceitava se submeter a tal prova
aceitava suas consequências.

Os canonistas desenvolveram novas maneiras de aceitabilidade das provas:


probabilidade, relevância e materialidade, descartando as provas supérfluas
(que já estavam provadas no processo), as impertinentes (que não interessavam),
obscuras (que não poderiam ser usadas com segurança), as inacreditáveis ou
antinaturais (absurdas e impossíveis de serem aceitas). Portanto, o sistema de
provas assenta-se sobre o que passou a se chamar prova legal, uma vez que
sua apreciação dependia de regras previamente estabelecidas, como o famoso
“código processual”, o Manual dos Inquisidores criado por Nicolau Eymerich.
Este Directorium Inquisitorum, de 1376, é uma espécie de modelo fundacional do
direito processual penal moderno que visava perseguir e punir a todo aquele que
representasse uma ameaça ou poder papal, o herege.

100
TÓPICO 2 | O DIREITO CANÔNICO: ELEMENTOS CARACTERIZADORES

FIGURA 41 – DIRECTORIUM INQUISITORUM

FONTE: Disponível em: <https://ativandoneuronios.files.wordpress.


com/2011/07/directorium.jpg>. Acesso em: 17 nov. 2017.

Segundo Eymerich, quem era o herege?

Veja o que diz o referido Manual:


Chamam-se hereges pertinazes e impenitentes aqueles que,
interpelados pelos juízes, convencidos de erro contra a fé, intimados
a confessar e abjurar, mesmo assim não querem aceitar e preferem se
agarrar obstinadamente aos seus erros. Estes devem ser entregues ao
braço secular para serem executados.
Chamam-se hereges penitentes os que, depois de aderirem intelectual
e efetivamente à heresia, caíram em si, tiveram piedade de si próprios,
ouviram a voz da sabedoria e abjurando dos seus erros e procedimento,
aceitaram as penas aplicadas pelo bispo ou pelo inquisidor.
Denominam-se hereges relapsos os que, abjurando da heresia e
tornando-se por isso penitentes, reincidem na heresia. Estes, a partir
do momento em que a recaída fica plena e claramente estabelecida,
são entregues ao braço secular para serem executados, sem novo
julgamento. Entretanto, se se arrependem e confessam a fé católica, a
Igreja lhes concede os sacramentos da penitência e da Eucaristia. […]
Os autores se perguntam sobre que tipo de execução que se deve
aplicar aos relapsos. Devem morrer pela espada ou pela fogueira?
A opinião geral, confirmada pela prática generalizada em todo mundo
cristão, é que devem morrer na fogueira, de acordo com a lei: “Que
os patarinos e todos os hereges, quaisquer que sejam os seus nomes,
sejam condenados à morte. Serão queimados vivos em praça pública,
entregues em praça pública ao julgamento das chamas”. (Determinação
do imperador Federico e dos Papas Inocêncio IV, Alexandre IV e

101
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

Clemente IV. Na verdade, a prática veio antes da própria codificação)


É de fundamental importância prender a língua deles ou amordaçá-los
antes de acender o fogo, porque, se têm possibilidade de falar, podem
ferir, com suas blasfêmias, a devoção de quem assiste à execução. […]
Os inquisidores devem ser capazes de reconhecer as particularidades
rituais, de vestuário etc., dos diferentes grupos de hereges. […]
É herege quem disser coisas que se oponham às verdades essenciais da fé.
Também é herege:
a) Quem pratica ações que justifiquem uma forte suspeita (circuncidar-
se, passar para o islamismo…);
b) Quem for citado pelo inquisidor para comparecer, e não comparecer,
recebendo a excomunhão por um ano inteiro;
c) Quem não cumprir a pena canônica, se foi condenado pelo inquisidor;
d) Quem recair numa determinada heresia da qual abjurou ou em
qualquer outra, desde que tenha abjurado;
e) Quem, doente mental ou saudável – pouco importa –, tiver solicitado
o “consolamento”.
Deve-se acrescentar a esses casos de ordem geral: quem sacrificar aos
ídolos, adorar ou venerar demônios, venerar o trovão, se relacionar com
hereges, judeus, sarracenos etc.; quem evitar o contato com fiéis, for
menos à missa do que o normal, não receber a eucaristia nem se confessar
nos períodos estabelecidos pela Igreja; quem, podendo fazê-lo, não faz
jejum nem observa a abstinência nos dias e períodos determinados etc.
[…] Zombar dos religiosos e das instituições eclesiásticas, em geral, é
um indício de heresia. […] existe indício exterior de heresia toda vez
que houver atitude ou palavra em desacordo com os hábitos comuns
dos católicos (EYMERICH, 1993, p. 39-52).

Portanto, o herege é aquele que se opõe às “verdades” da fé, cuja pena


imposta varia de acordo com o grau de heresia, que vai desde o cumprimento
de penitências, durante certo tempo, até a prisão perpétua ou a reincidência,
aplicando-se neste caso a execução pelo braço dos seculares.

Quem poderia ser testemunha? a) os excomungados; b) os cúmplices do


acusado; c) os infames e pessoas acusadas de quaisquer crimes; d) os hereges
que estiverem contra o acusado. Nunca a favor; e) qualquer infiel e até mesmo
judeu; f) os domésticos (mulher, filhos, parentes e servos) para o acusar, não para
inocentar; g) a testemunha falsa, querendo retratar-se para acusar.

Ao final, como terminava o processo? Quais as “soluções” possíveis?

1. Abjuração (renúncia à fé cristã através de palavras, atos ou mesmo pensamentos


contrários ao autorizado pela Igreja):
a) suspeita leve – encontram-se leves indícios de heresia. O abjurante pronuncia
determinada fórmula, em língua vulgar, na casa episcopal ou no convento.
b) suspeita grave – não se provou nada, mas há fortes indícios que levam a uma
grave suspeita. Normalmente cumprem alguma penitência ou são levados à
prisão, nunca perpétua.
c) suspeita violenta – também não há provas, nem documentais, nem pela análise
dos fatos, mas há indícios gravíssimos que levam a uma violenta suspeita (algo
como heresia presumida). Cumprem alguma penitência e podem ser levados à
prisão perpétua.

102
TÓPICO 2 | O DIREITO CANÔNICO: ELEMENTOS CARACTERIZADORES

2. Absolvição: Depois de responder ao processo e ouvidos os especialistas, o réu


é declarado livre do crime. Não há completa absolvição, apenas se declara que
não há provas suficientes para a condenação.

3. Expiação ou Purgação Canônica: Quando alguém tem fama pela prática


de heresia, mas não se prova nem com testemunhas, nem provas materiais,
nem pela confissão. Considera-se isso uma difamação. O acusado deverá
comparecer em determinada hora, em determinado local, acompanhado de
coexpiadores que atestarão sua boa conduta cristã. Se o difamado não puder
cumprir a obrigação, será excomungado, e poderá cumpri-la no prazo de um
ano. Se não conseguir número suficiente de coexpiadores, será considerado
herege e condenado como tal.

A origem da mentalidade inquisitorial já foi objeto de estudo de inúmeros


historiadores e com conclusões não convergentes. A origem mais aceita da
Inquisição tem suas raízes no Império Romano com a cognitio extra ordinem e,
posteriormente, ainda no Direito romano antigo, com a expressão inquisitivo, que
representava a formulação de uma acusação pela autoridade judicial, quando não
havia denúncias ou acusações sustentadas por testemunhas.

A origem histórica está relacionada quando, de forma complementar às


Cruzadas, a partir de 1095, o Papa Urbano II inaugura uma “nova forma” para o
“domínio de Deus”, deflagrando-se, no final do século XII, a Inquisição Medieval.

Em síntese, tratava-se de um movimento político-religioso, em que a Igreja


Cristã arquitetou uma forma de reação à difusão de movimentos heréticos, como o
maniqueís­mo, o valdismo e, mais tarde, o catarismo, com maior preocupação aos
cátaros, uma vez que, apesar de originalmente se concentrarem no sul da França,
as suas ideias começam a se espalhar nas regiões próximas e demonstraram uma
impressionante capacidade de influência.

DICAS

Sobre os diferentes movimentos de resistência e a centralização papal, sugere-


se como leitura o conteúdo do seguinte link: <http://cleofas.com.br/primeiros-movimentos-
hereticos-e-os-cataros/>.

O combate aos cátaros, que foi bastante “eficaz”, permitiu que a Inquisição
assumisse uma natureza legal e jurídica, sendo a primeira forma concreta a partir de
sua codificação no decreto papal Ad abolendam, emanado pelo Papa Lúcio III no ano
1184, no qual se estabeleceu o primeiro delineamento do procedimento inquisitorial.

103
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

Após seguiram-se as bulas papais Licet ad capiendos (1233) e Ad Exstirpanda


(1252), ambas de autoria do Papa Gregório IX, e a bula Clementina Saepe (1306),
de autoria do Papa Clemente V, que ampliaram a perseguição aos hereges.

NOTA

A palavra heresia se origina do grego (αιρετικός), que significa escolha. Com a


autêntica manipulação imposta pela Inquisição, tornou-se um termo genérico e depreciativo
que inclui aleatoriamente qualquer conduta considerada contrária, nova ou simplesmente
diferente do estabelecido pelo poder. O objetivo primor­dial não era a imposição da sanção
ao suposto infrator, mas era um instrumento que impunha, através do medo generalizado,
uma forma única de visão de mundo, de estruturação dos poderes oficiais e de estratificação
social, sustentada pelos argumentos religiosos, criados pelos doutores da Igreja.

Até que, a partir do ano de 1438, com a descoberta de reuniões sabáticas na


região dos Alpes, inicia-se a implacável caça às feiticeiras. Sob o álibi de “combate
ao diabo” e suas diversas manifestações, a Igreja empreendeu uma das maiores e
mais cruéis expressões de intolerância, perseguindo intelectuais independentes,
mulheres, judeus, mouros ou qualquer outro “inconveniente” ao poder.

NOTA

Os sabás – sabbats – eram festas populares em que se comemoravam as


mudanças das estações do ano. Consistiam em antigos rituais de celebração à natureza que
eram vistos, aos olhos da Igreja, como práticas demoníacas.

Em nome do combate ao diabo e às suas diversas manifes­tações, a Igreja


operou um combate, uma batalha irrestrita e intolerante à diversidade de opiniões
e de crenças, enfim, às diferenças.
A visão de uma sociedade cristã unificada e ordenada era um ideal
para os líderes da Igreja. A cristandade era concebida como um
todo integrado e hierárquico. Qualquer pessoa ou grupo que levasse
uma vida religiosa fora da estrutura eclesiástica estabelecida era por
definição um herege e sujeito à disciplina punitiva das autoridades
seculares à qual a Igreja recorria. Falhas morais ou indiscrições pessoais
não eram consideradas como problemas religiosos de vulto dentro
dessa estrutura. A Igreja tinha um oportuno sistema de absolvição,
que era capaz de cuidar desses assuntos por parte do clero e do laicato
igualmente. O que era repreensível era a vida religiosa praticada fora
das ordens e da disciplina da Igreja (IRVIN; SUNQUIST, 2004, p. 506).

104
TÓPICO 2 | O DIREITO CANÔNICO: ELEMENTOS CARACTERIZADORES

A Inquisição medieval se instalou em vários reinos, mas foi na Espanha, em


1239, que deixou as maiores cicatrizes, como uma “obra” dos reis católicos Isabela
de Castilha e Fernando d’Aragão e teve como efeito a unificação dos reinos.

Os reis, Isabela e Ferdinando, iniciam a expulsão dos judeus e, em seguida,


os mulçumanos, que há séculos viviam na região, a fim de ser estabelecida a
unidade nacional do jovem Estado espanhol. “Preocupados” com a conversão dos
judeus e temerosos com o surgimento de uma classe média poderosa, intuíram
um Tribunal do Santo Ofício, que consistiu em instrumento eficaz na manutenção
do controle social e na preservação da hegemonia política recém-conquistada,
sob o argumento de que os hereges representavam um risco para o Estado Cristão
Espanhol. Assim, por insistência dos reis espanhóis, em 1º de novembro de 1478,
a bula Exigit sinceras devotionis affectus, emanada do Papa Sisto IV, concede aos reis
católicos a prerrogativa de designar dois ou três bispos ou sacerdotes seculares ou
regulares, desde que maiores de 40 anos, de conduta irrepreensível e detentores
de títulos acadêmicos pertinentes, para desempenhar o papel de inquisidores nas
cidades e nas dioceses de seus reinos.

Após esse início, e ao que parece com medo de perder o apoio bélico da
Espanha, o Papa Sisto IV, já arrependido pelo poder que foi dado aos reis católicos,
tenta retroceder, mas já não era possível. Para a Igreja, a solução foi a nomeação
do frei dominicano Tomás de Torquemada como inquisidor-geral dos reinos de
Castilha e Aragão, em outubro de 1483. Toquemada foi o mais implacável e terrível
dos inquisidores e sua nomeação marca o início de uma nova fase da Inquisição.

FIGURA 42 – TOMÁS DE TORQUEMADA

FONTE: Disponível em: <https://www.biografiasyvidas.com/


biografia/t/torquemada.htm>. Acesso em: 17 nov. 2017.

Sem dúvida, a Inquisição foi um excelente braço do poder real,


especialmente entre os séculos XVI e XVII, quando serviu de principal instrumento
para preservação do poder dos soberanos e legitimar suas ações. Portanto, não
resta dúvida de que religião, moral e direito estavam visceralmente ligados, e
por esta razão os dogmas divinos eram as matrizes que acabam por estruturar a
ordem jurídico-política do Estado.
105
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

A obsessão por absoluta e inquestionável homogenia religiosa é o que


explica esse fenômeno central na regulação da vida social, política e moral, e base do
Estado, permitindo uma manipulação ideológica e impondo um eficaz mecanismo
de terror que dominava as mentes e os corpos. Sem dúvida, acabou por ser uma das
formas de poder mais tenebrosas e nefastas que a humanidade assistiu.

5 A CRENÇA NA VERDADE REAL


A busca da verdade real era a finalidade do processo inquisitório e se
constitui em um dos pilares dogmáticos centrais. O termo “inquisição” – que significa
“inquérito”, investigação minuciosa – já nos permite compreender o que sustentava
todo procedimento, e assim, justifica-se a violação de direitos em prol da verdade.

Com a certeza da infalibilidade do processo e da verdade é possível


compreender a razão do uso de meios condenáveis, aos olhos da atualidade,
para “revelar” o “oculto”, o “não dito”. Integridade física, liberdade, dignidade,
segurança jurídica etc., eram sem importância ou bens menores quando
comparados à necessidade de busca da verdade.

Como consequência da certeza da existência da verdade real e ao sistema


de provas legais, a tortura ocupa um papel central no processo, pois a tortura era o
meio privilegiado de obtenção da verdade através da confissão, a rainha das provas.

A partir do século XIII, alguns reinos – Estados –, como Espanha e França,


adotam a prática dos tormentos. A expansão da tortura como método de apuração da
verdade acompanhou o movimento político de combate aos hereges. Inicialmente,
o primeiro decreto foi o Licet ad capiendos de Gregório IX (1233), e usado na Bula Ad
extirpanda (1252) de Inocêncio IV, para aplicação da tortura por juízes civis em todos
processos contra os suspeitos de heresia. Até que com a Bula Multorum querela de
Clemente V, a tortura também se instala nos tribunais do Santo Ofício.

Em 1487 é publicado o Malleus Malleficarum – Martelo das Feiticeiras –,


de autoria de dois monges dominicanos, Heinrich Kramer e James Sprenger, e
reconhecido pela bula papal Summis desiderantes affectibus, que consistia numa
espécie de “manual para diagnóstico de feitiçarias”, tendo minuciosas descrições
dos meios e modos de inflição dos suplícios aos acusados de bruxaria para
obtenção da verdade. Assim, as instruções de tortura, muito mais do que um
conjunto de regras, serviram como divulgação do método e estímulo para ação
dos inquisidores, exaltando o sucesso das técnicas de “apuração” da verdade.
De certa forma, os inquisidores passaram a acreditar em sua missão salvadora e
de que o método era “abençoado” e, portanto, infalível, até porque a “confissão
brotava” dos lábios dos supliciados.

106
TÓPICO 2 | O DIREITO CANÔNICO: ELEMENTOS CARACTERIZADORES

FIGURA 43 – MALLEUS MALLEFICARUM – MARTELO DAS FEITICEIRAS

FONTE: Disponível em: <http://www.espada.eti.br/n1676b.asp>.


Acesso em: 17 nov. 2017.

Não havia limites para os tormentos! Ao contrário! O inquisidor não


poderia ser negligente na aferição da verdade!

O ponto culminante do processo era o Auto de Fé. Um autêntico


espetáculo público em que se reproduzia o juízo final com a execução do herege.
Progressivamente, o Auto de Fé tornou-se a maior demonstração de poder,
quando o rei e os inquisidores ocupavam os balcões centrais para desfrutarem
da espetacular crueldade. No dia da execução o penitente deveria usar um tipo
de vestimenta – sambenito – com uma espécie de mitra de papelão na cabeça, em
geral com uma inscrição do crime cometido.

107
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

FIGURA 44 – PINTURA DE FRANCISCO RIZI: AUTO DE FÉ NA PRAÇA MAIOR

FONTE: Disponível em: <https://www.museodelprado.es/coleccion/obra-de-arte/auto-de-fe-en-


la-plaza-mayor-de-madrid/8d92af03-3183-473a-9997-d9cbf2557462>. Acesso em: 17 nov. 2017.

Em síntese, a Inquisição foi e até certo ponto é uma mentalidade que


permanece viva, consistiu em um movimento político-religioso que em nome
do combate ao demônio promoveu a perseguição indiscriminada e intolerante
à diversidade, seja de crença ou opiniões. Sem dúvida, uma estrutura de poder
mantida pelo terror.

Veja um trecho do prefácio da tradução do livro Manual do Inquisidor,


feito pelo importante teólogo brasileiro Leonardo Boff, que nos diz que a crença
na verdade absoluta nos leva à intolerância:

A “Santa” Inquisição é expressão de um componente neurótico-


obsessivo do corpo clerical e cristaliza a dimensão de pecado que exis­te nas
relações internas da Igreja. Pois, a própria Igreja-comunidade de fiéis se confessa
santa e pecadora. Se assim é, então aqui é o pecado institucional que ganha a
cena e a ocupa durante séculos. Seu espírito vaga assustador até os dias de
hoje. E devemos nos precaver contra ele. Antes, ajudar a própria instituição
eclesial a ser fiel à sua utopia originária e a ser um lugar de exercício de liberdade
e de experimenta­ção da graça humanitária de Deus. E isso se fará na medida
em que os professantes da fé romano-católica se reapropriarem daquilo de que
foram historicamente despojados: sua capacidade de experimentar o sonho de
Jesus, de dizê-lo de forma criativa e responsável no interior da comunidade,
de confrontá-lo solidariamente com outras experiên­cias do evangelho de Deus
na história e articulá-lo com o curso do mun­do, onde se revela também e
principalmente o desígnio de benquerença e de amor de Deus.

108
TÓPICO 2 | O DIREITO CANÔNICO: ELEMENTOS CARACTERIZADORES

A comunidade cristã viveu séculos sem a Inquisição. Isto significa que


não precisou dela para viver e sobreviver. Portanto, ela é supér­flua. Sua existência
mantém o mesmo escândalo, denota uma patolo­gia e concretiza um pecado. Nunca
teve direito a existir. Não deve mais existir. Por amor a Deus, por fidelidade a Jesus
Cristo e por respeito às opiniões religiosas diferentes nas sociedades humanas.

FONTE: Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/dados/livros/memoria/mundo/inquisidor/


prefacio.htm>. Acesso em: 17 nov. 2017 (grifos nosso).

Esse breve texto nos leva a pensar se nos dias de hoje não estamos também
a vivenciar uma perigosa escalada da intolerância, cujas consequências poderão
ser um retrocesso, não é?

6 O DIREITO COMUM MEDIEVAL


No período medieval, como já vimos, durante a Idade Média, os costumes
bárbaros, a legislação romana e os decretos papais conviviam de tal maneira que
parecia impossível a unificação do direito. Com o feudalismo se consolidando, o
renascimento cultural do século XII, a criação das universidades, a rearticulação
do comércio, entre outros fatores, permitem uma nova expressão da cultura
jurídica que paulatinamente vai criando uma unidade no pensamento jurídico
que no século XVI permite o surgimento do jus commune (direito comum) em toda
Europa, não como conteúdos normativos iguais, mas com características comuns
no uso do direito que vai chegar até os três primeiros séculos da modernidade.
Portanto, é mais uma forma homogênea de se construir o conhecimento jurídico
do que semelhanças normativas e procedimentais.

O incipiente capitalismo mercantil nos séculos XIV e XV produziu a


necessidade de regulação dos interesses dos particulares e as leis vão ganhando
reconhecimento como direito em si e a definição de direito comum vai sendo
referenciada como jus proprium. No século XII, a realidade da cultura europeia
se modifica completamente e, nesse contexto, surge o interesse pelos clássicos,
sobretudo pela forma de vida urbana que começa a surgir e o contato com o mundo
árabe, porque mais do que mercadorias, o mundo oriental havia conservado e
traduzido as obras de Aristóteles através dos filósofos árabes Averróis e Avicena,
produzindo-se, assim, uma espécie de sincretismo.

Neste mesmo período se fortalecem as universidades europeias, até


porque ensinar era uma das funções principais dos eclesiásticos. Ao lado do
ensino primário e secundário, são estabelecidas escolas superiores, cujo objetivo
era o ensino enciclopédico. Estas universidades se transformarão em autênticas
corporações, até que, em 1221, é usado o termo “universidade” em Paris para
designar a comunidade de mestres e de estudantes parisienses (universitas
magistrorum et scholarium).

109
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

Em Bolonha – Itália – o estudo do direito se divide entre o direito canônico


e o civil. O direito canônico era estudado a partir do Decreto de Graciano, das
Decretais de Gregório IX, as Clementinas e as Extravagantes. Já no direito civil se
estudava essencialmente o Digesto, as Institutas e as Novelas do Código de Justiniano.

Este estudo do direito romano renascido vai se estender para as demais


universidades, que se diferenciam quanto aos métodos de estudo. Por exemplo,
os glosadores e comentadores no século XII e XIII, os pós-glosadores ou
comentadores nos séculos XIV e XV e os humanistas dos séculos XVI e XVII.

Portanto, nas universidades, o direito canônico era estudado juntamente


com o direito romano, com exceção da França, onde apenas se estudava direito
canônico, pois os reis franceses temiam que o estudo do direito romano pudesse
significar uma subordinação ao Sacro Império.

Nesta etapa destaca-se o trabalho dos glosadores, que formam a


primeira classe de estudiosos pré-modernos, que surgem com Irnério no
século XII, em Bologna. Dedicaram-se, sobretudo, ao estudo do direito romano
através de uma metodologia que tinha como principal objetivo preservar o
texto ao explicitar o seu sentido.

A glosa (do grego palavra, voz) é uma observação, consideração simples


sobre o texto fiel a ele. O objetivo é comprovar que o texto jurídico é um
instrumento da razão e autoridade, sem que tivesse qualquer finalidade na vida
prática. O elemento literal é o ponto central do trabalho. Inicialmente, as glosas
eram utilizadas para explicar uma palavra do texto. Os glosadores estenderam
sua função para explicar toda a frase. O trabalho, de toda forma, como uma
espécie de tradução literal. As glosas menores eram feitas nas entrelinhas do texto
e as maiores eram ao lado, à margem. A grande pretensão era tornar evidente a
verdade irrefutável da autoridade do texto através da razão.

110
TÓPICO 2 | O DIREITO CANÔNICO: ELEMENTOS CARACTERIZADORES

FIGURA 45 – GLOSA MEDIEVAL

FONTE: Disponível em: <https://www.definicionabc.com/comunicacion/glosa.


php>. Acesso em: 17 nov. 2017.

Observe o trabalho dos glosadores demonstrado na figura acima. A glosa


é um breve comentário que busca ser bem fiel ao texto.

A metodologia desenvolvida pelos glosadores acaba se transformando


em um marco inicial da ciência jurídica moderna.

A metodologia dos glosadores simboliza um marco no estudo do direito


como ciência, ao definir categorias, institutos, enfim, elevar o estudo do direito
de simples repetição ao status de ciência. Como se verá, o traço essencial do
racionalismo jurídico moderno foi a pretensão de elaborar uma teoria do direito,
êxito alcançado a partir da secularização da cultura medieval.

A concepção moderna de Direito, portanto, é resultado de sua


desvinculação do sagrado e do divino, que tratava de fundamentar a verdade.
Sem dúvida, os glosadores deram origem à classe dos juristas modernos: os
conciliadores. Estes, contemporâneos de grandes nomes do Renascimento, como
Dante, Giotto e Petrarca, foram os arquitetos da modernidade europeia, criando
o Direito Comum na Europa e as bases para o que viria a ser o Direito Moderno.

111
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

DICAS

Sobre o tema, para aprofundar seus estudos, leia o interessante texto Humanismo,
renascimento e revolução científica, disponível em:<http://educacao.globo.com/historia/
assunto/modernidade-na-europa/humanismo-renascimento-e-revolucao-cientifica.htm>.
Você irá compreender o nascimento da ciência moderna.

Os juristas, por sua importância e influência como uma segunda classe de


intelectuais formada da Idade Média ao lado dos clérigos, impulsionados pelo
humanismo, que se coloca como uma nova experiência na qual o sentido humano
é renovado, e em meio à Reforma Luterana do século XV, que propõe uma
forma de interpretação independente das autoridades católicas, vivenciam uma
“viragem” da ciência jurídica no sentido da sistematicidade interna e construção
de conceitos e princípios gerais.

Em meio ao ambiente cultural e filosófico da Baixa Idade Média, o ensino


jurídico sofre um novo redimensionamento. O objetivo passa a ser a demonstração
da validade e autoridade implícita nos textos jurídicos.

Os juristas medievais desta nova etapa, também influentes diplomatas e


administradores, não apenas foram os primeiros a reivindicar a soberania dos
príncipes, com base nas fontes do absolutismo, como também, a partir da técnica
jurídica formal, como análise lógica da realidade utilizada nas questões políticas,
fornecem um “instrumental racionalizado” para as formas de poder que vinham
se delineando com o surgimento do capitalismo burguês-mercantilista. Os
juristas, por serem os únicos a dominar as operações lógicas, foram os únicos
capazes de criar simultaneamente um direito de caráter universal, racional e
objetivo baseado em deduções comprováveis logicamente e conceitos políticos
que acabaram por dissolver as formas de poder da Idade Média.

Observe a gravura a seguir, feita a partir de um texto do século XV que


reproduz uma reunião de doutores da Universidade de Paris.

Veja como há uma forte presença da lógica da autoridade doutoral e a


hierarquia!

112
TÓPICO 2 | O DIREITO CANÔNICO: ELEMENTOS CARACTERIZADORES

FIGURA 46 – UNIVERSIDADE MEDIEVAL

FONTE: Disponível em: <http://medievalimago.org/2014/08/23/a-


universidade-medieval-um-enorme-e-significativo-legado/>.
Acesso em: 17 nov. 2017.

Apesar das reformas jurídicas levadas a cabo pelos glosadores e


comentadores, permanece a ideia de Direito como um conjunto de normas que
o intérprete pouco pode alterar. Por ser a ordem jurídica um dado indiscutível,
fundada numa ordem prefixada autoritariamente, a atualização e a sistematização
do direito são tomadas como mera tarefa técnico-interpretativa, orientada por
instrumentos lógico-dogmáticos.

O trabalho de atualização e sistematização do Direito exigido pelo


cenário mercantilista, desenvolvido principalmente pelos comentadores sob a
ótica interpretativa do direito romano-justiniano, aliado ao avanço político que
caminhava no sentido da centralização do poder dos príncipes, o resultado foi
a monopolização do Direito pelo Estado. Nesta ótica, a ordem jurídica como
conjunto normativo de origem ligada à tradição dotada de autoridade deixava
ao jurista apenas a tarefa de interpretar esse conjunto normativo segundo a
necessidade de atualização e sistematização.

O trabalho dos juristas da época consiste, basicamente, em interpretação


contrapondo o texto de lei (verba) a seu espírito (mens) – sentido oculto a ser
“revelado”, com base na concepção filosófica medieval em que a palavra “é a
manifestação do conhecimento humano” – encerram a verdade, o que está na
alma do homem –. Por conta disso, o domínio de técnicas interpretativas, como
único meio de estabelecer o “espírito” encerrado no texto normativo, possibilitava
a rejeição de qualquer interesse normativo oposto, a exemplo da interpretação
restritiva utilizada em certos momentos para as regras que não poderiam ser
aceitas, por “excederem à vontade racional do legislador”, e em outros, aceitas
ampliativamente, de acordo com o interesse e utilidade.
113
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

É exatamente esse trabalho que irá desenvolver a sistematização do direito


moderno, particularmente a concepção de que direito é um sistema normativo legal
que pode ser compreendido cientificamente através de técnicas específicas. Os juristas
medievais desenvolveram um trabalho de sistematização, a partir da interpretação
lógica. Inicialmente, a lógica como procedimento interpretativo foi aplicada aos textos
bíblicos, considerando o texto como expressão de uma ideia geral (ratio) presente
em toda sua extensão, por isso, cada parte do texto é compreendida a partir de sua
integração no conjunto, o que permite a “extração” dos preceitos isolados.

Entretanto, como veremos a seguir, apenas sob o paradigma da legalidade


– a lei como tecnologia disciplinar das relações sociais – estabelecido a partir dos
séculos XVIII e XIX, é que se coloca o direito enquanto modelo técnico-racional
de orientação da prática jurídica. Assim, o direito torna-se uma ciência objetiva
cuja interpretação e aplicação devem ser orientadas por critérios metodológicos
específicos de cientificidade.

O processo de racionalização da prática jurídica moderna não pode ser


compreendido isoladamente, mas como parte integrante de um amplo processo
de racionalização que se transformou na marca da sociedade ocidental a partir
do século XVIII.

Em síntese, é sob os fundamentos do direito comum, do ius commune, que


se perpetuarão as transformações políticas e jurídicas da modernidade. Tomando
como base o direito, cuja autoridade e universalidade encontravam respaldo na
própria ideia de Império, irá ser esfacelada a unificação medieval da cristandade,
abrindo caminho para a afirmação do direito dos Estados cujo processo de
consolidação passa a exigir gradual concentração das funções administrativa,
legislativa e judiciária, como veremos adiante.

114
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:

• As características e elementos que edificaram o Direito Canônico Medieval.

• O legado do Direito Canônico para o pensamento jurídico moderno.

• As origens políticas e ideológicas dos Tribunais Canônicos e o Processo


Inquisitorial.

• A formação do direito comum canônico.

• A importância do ensino medieval e a formação dos canonistas.

115
AUTOATIVIDADE

Após o estudo realizado, responda à seguinte questão:

Como você resumiria o conceito de justiça para o Direito Canônico Medieval?


Nos dias de hoje pode-se encontrar no Direito elementos do Direito canônico?
Quais? Escreva sobre isso de maneira fundamentada.

116
UNIDADE 2 TÓPICO 3

A MODERNIDADE: UM CENÁRIO DE TRANSFORMAÇÕES

1 INTRODUÇÃO
Antes de iniciarmos nosso estudo sobre o direito moderno, vamos começar
identificando o cenário, o contexto, a partir do qual se edifica toda lógica jurídica
predominante até os dias de hoje.

“Modernidade” é a designação genérica de um complexo conjunto de


transformações cujos efeitos acabaram colocando a Europa como centro de um
projeto civilizatório hegemônico. Trata-se de um processo paradigmático inédito
que reorientou as múltiplas relações da vida cotidiana e suas formas tradicionais
de racionalização, carregando consigo distintas faces.

Externamente, ou seja, para além da Europa, desde a América Latina e


África, a modernidade pode ser interpretada como construção do mito criado a
partir do século XV acerca da existência de um centro histórico mundial portador
de uma concepção política de ordem econômica, política e social civilizadora.

2 AS COSMOVISÕES JURÍDICAS MODERNAS


Como vimos, em momentos históricos anteriores os impérios ou sistemas
culturais coexistiam entre si, e apenas com a expansão europeia, que atinge a
América no século XV e o Oriente no XVI, é que o planeta se torna o “lugar” de
uma “única” história mundial (DUSSEL, 2000, p. 46). Na face interna, desde a
Europa, modernidade é uma forma de emancipação de racionalização civilizada
da humanidade. Um discurso que oculta a irracionalidade de dominação que
justifica seu próprio mito.

A expansão colonizadora da Europa é uma das faces da modernidade,


trata-se de um processo de dominação cultural e política que edificou uma
universalização do direito europeu.

117
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

FIGURA 47 – TRATADO DE TORDESILHAS

FONTE: Disponível em: <http://www.historianet.com.br/conteudo/default.


aspx?codigo=897>. Acesso em: 17 nov. 2017.

Para Enrique Dussel (2000), o mito da modernidade, uma prática irracional


de violência, é fundado nas seguintes crenças:
1. a civilização eurocêntrica moderna se autocompreende como a mais
desenvolvida e superior;
2. em troca desta superioridade lhe é imposta a exigência moral de
desenvolver os povos mais primitivos, rudes e bárbaros;
3. este processo de educação civilizadora deve ser conduzido pela Europa;
4. como o bárbaro se opõe ao processo civilizador, se necessário for e
em último caso, a violência pode ser utilizada em nome do progresso
(justificando-se, assim, a “guerra justa” colonial);
5. o processo civilizatório produz vítimas, mas como a violência é
inevitável há um heroísmo intrínseco neste sacrifício salvador;
6. portanto, o bárbaro não é vítima, mas sim o culpado dos sacrifícios
necessários, já que o “civilizado” é inocente por ser nobre sua missão;
7. portanto, o processo civilizatório possui “custos” para os povos
atrasados (imaturos), para as raças escravizáveis e para todo débil
(DUSSEL, 2000, p. 49).

Em síntese, “modernidade” é um paradigma múltiplo, ambíguo e


complexo que enfeixa em si relações de dominação desenvolvidas mundialmente
desde o século XV, cujo impulso foi a autoelaboração europeia, a construção da
concepção de Europa, de um imaginário de “progresso” linear e universal.

118
TÓPICO 3 | A MODERNIDADE: UM CENÁRIO DE TRANSFORMAÇÕES

Sem dúvida, a tirania de poder, com sua “missão civilizadora”, ocultada pelo
discurso justificador da modernidade, constituiu-se numa prática “racionalizadora”
de um mito alimentado interna e externamente pelo mundo europeu ao mesmo
tempo em que era definitivamente superado o passado medieval. Assim, “mundo
moderno” é produto da aproximação entre a burguesia secularizada europeia e
as necessidades do capitalismo que acabou por oferecer os contornos do padrão
mundial de poder que construiu o modelo civilizatório hegemônico.

A origem da palavra “moderno” é bastante esclarecedora. Modernus,


derivado de modo (recente, há pouco), é uma palavra tardia na língua latina. Foi
utilizada em fins do século V como antônimo de antiquus, criando termos como
modernitas (tempos modernos) e moderni (homens de nosso tempo) que passaram
a ser comuns após o século X (KUMAR, 1997).

Portanto, a palavra “modernidade” é uma criação cristã medieval. O sentido


de moderno medieval era daquilo que se opunha ao mundo antigo pagão imerso
em trevas e em uma concepção naturalista segundo a qual o tempo era cíclico e
reprodutivo. A noção de tempo humano, regular e repetitivo, compartilhava do
caráter cíclico de toda matéria criada. Era admitida mudança, mas não a novidade
(KUMAR, 1997). A noção de tempo na antiguidade é a própria eternidade imutável.

No entanto, “no Renascimento se inicia uma nova situação que supera o


tradicional desprezo do indivíduo enquanto ente visível da ação social começando
a se alterar, com a própria possibilidade da extroversão” (SCLIAR, 2003, p. 42).

No quadro emocional instável do homem do Renascimento combinam-se


três vertentes primordiais posteriormente acentuadas na via própria do processo
de construção da modernidade.

E
IMPORTANT

É importante que haja a consciência de que o processo de construção da


modernidade é difuso, sendo caracterizado pelo seu caráter lento e irregular de gestação
que começa a ocorrer precursoramente nos séculos XI e XII, caracterizado por um lento e
irregular desenvolvimento do mercado de trocas comerciais e a aceleração do processo de
racionalização que até então era muito lento (FONSECA, Ricardo Marcelo. Modernidade e
contrato de trabalho. Op. Cit. LTr, 2002, p. 30).

119
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

3 O PROCESSO DE DOMINAÇÃO COLONIAL


Conjugam-se, respectivamente, a tendência à inovação, à aventura e à
descoberta. Nessa nova condição histórica, ainda não capitalista do Renascimento,
a característica acentuada é a mercantilização. Nesta lógica de mercantilização,
sem limites ou obstáculos que não sejam profanáveis pela acumulação, o sagrado
se reifica, se coisifica, se aliena e todo universo humano adquire valor de troca.

Nesse sentido, o sentimento do individualismo, a potencialização da


extroversão criativa e sua monetarização tornam-se correntes. Na arte e na
literatura surge, ao contrário da Antiguidade ou da Idade Média, um novo
contexto no qual a autoria não é mais ignorada ou mencionada como um rótulo
sem maior significação. Porém, a sociedade renascentista possui ainda um modelo
incapaz de romper com o legado clássico e reconstruí-lo rumo ao futuro.

A modelagem cultural renascentista imprime a forma de mercadoria


com a contraposição do produto do artesão oposto ao do gênio da obra de arte,
agora também integrado nos circuitos comerciais difundidos pelos mecenatos e
diferenciado pelo traço da sua condição individual como trabalhador.

Uma das questões essenciais desse período é o da formação do indivíduo


como um dos elementos vitais para a compreensão do homem fragmentado
nas relações sociais controladas pelo capital, com a consequente escalada do
individualismo que marcou o advento da modernidade.

Rompeu-se com a concepção do indivíduo visto de forma pejorativa ou


desnecessária em sociedades do passado, como a da Grécia antiga, caracterizada pelo
culto coletivista da pólis; na Idade Média tal conceituação também era dispensável
devido ao caráter da vida comunitária essencialmente provincial ou local.

Contudo há um sentido da Renascença que impulsiona a modernidade.


As experiências socialmente partilhadas pelo cotidiano, paulatinamente a partir
dos séculos XIV e XV, espelham a emergência de uma nova racionalidade.

Na Europa, vai sendo desenhado o cenário de um novo modo de vida no


qual a dimensão humana se descobre e, desafiando a ordem medieval, redefine seu
significado existencial, abandonando definitivamente a posição secundária em relação
ao poder divino e à natureza. O prodigioso esforço de superar a tradição medieval
até então dominante conduziu a uma nova concepção e valoração do humano,
inaugurando um novo momento histórico. Chama atenção Richard Tarnas (2000)
que é equivocado imaginar essa fase como produto tão somente de luz e esplendor,
já que vai sendo construída em meio a convulsões sociais e desastres fatais, como a
Guerra dos Cem Anos, que parecia interminável e destruidora, e a Peste Negra que,
em meados do século XIV, havia dizimado um terço da população europeia.

120
TÓPICO 3 | A MODERNIDADE: UM CENÁRIO DE TRANSFORMAÇÕES

Se, de um lado, a coragem para divergir dos preconceitos dominantes


ia emancipando o espírito humano, de outro, o cotidiano parecia avassalador.
Professores eram perseguidos quando não professavam a mesma fé do monarca
e o debate teológico, com a Reforma, assume destaque no meio universitário.
Institucionalmente, perdem o papel de liderança intelectual para as academias,
que passaram a ser o centro de produção cultural a partir do século XVII. Nesse
ambiente ainda as fogueiras da Inquisição ardiam sem parar!

NOTA

As academias eram grupos de indivíduos já com conhecimento que se reuniam


para discutir sobre suas experiências, hipóteses e conhecimentos, aproximando-se de um
“clube de amadores” de um certo tema, arte ou ciência. Esses indivíduos não pertenciam
à academia para obter um título, mas para livremente investigar e discutir, o que não era
possível no ambiente universitário.

4 O DIREITO DA CONQUISTA
Como parte desse ambiente, praticava-se como nunca magia negra e
flagelação grupal. A Igreja, pedra angular do modelo social, para muitos era mais
um centro de corrupção e decadência do que um exemplo de integridade moral.
O cenário era visto mais como apocalíptico do que inovador.

Neste contexto, a recuperação do conhecimento e a revolução da cultura


começam a ser considerados ponto de partida para a construção do novo espírito
humano. Um espírito que ia justificando e impulsionando o domínio econômico
e político europeu para além de suas fronteiras. As inovações técnicas se alastram
e permitem a visualização de um novo horizonte existencial, por exemplo, a
bússola magnética, a pólvora, o relógio mecânico e a imprensa. Inovações que
provocam a expansão do mundo conhecido, uma nova relação com o tempo e a
expansão da secularização do conhecimento.

Simultaneamente, se construía um novo ethos cultural para uma sociedade que


começa a conceber-se como definitivamente civilizada. Neste contexto, novos valores
são ressaltados, dentre os quais o individualismo assume relevância. Desaparecera
o ideal cristão medieval que dissolvia o indivíduo na coletividade. A figura do herói
santificado paulatinamente é trocada pela do aventureiro rebelde capaz de pensar
como gênio numa vida de serviço ao Estado, comércio e conhecimento. O desejo de
prosperidade econômica e social deixava de ser pecado, tornando-se virtude.

Esse é o ambiente de um novo ator social com mais confiança em sua


própria capacidade de discernimento do que nas autoridades. Orgulhoso de sua
própria razão e ciente de que seria capaz de compreender e controlar o mundo
circundante sem depender de nenhuma divindade onipotente.
121
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

FIGURA 48 – OS PRECURSORES DO ILUMINISMO: RENÉ DESCARTES,


FRANCIS BACON, JONH LOCKE E ISAAC NEWTONF

FONTE: Disponível em: <http://historiadomundo.uol.com.br/idade-


moderna/precursores-do-iluminismo.htm>. Acesso em: 17 nov. 2017.

A realidade parecia transformar-se num ritmo alucinante. Copérnico, no


século XVI, com a teoria heliocêntrica e a órbita planetária, havia iniciado um
movimento antidogmático seguido por Tycho Brahe, Kepler e Galileu, entre outros,
que viria a abalar o princípio de autoridade, até então, base do poder papal.

Isaac Newton, no século XVII, dá um passo definitivo para a criação de uma


teoria geral da dinâmica. Em meados do mesmo século, Huygens elaborou a teoria
ondulatória da luz. Em 1628, são publicadas as descobertas de Harvey sobre a
circulação do sangue. Robert Boyle, em 1661, supera definitivamente os alquimistas
no campo da química e retoma a teoria dos átomos de Demócrito. Giordano Bruno,
em 1660, é queimado na fogueira por divulgar a teoria heliocêntrica e por suas
convicções teológicas serem consideradas heréticas. Acreditava que a Sagrada
Escritura deveria ser obedecida como ensinamento moral e não como astronômico.
A revolução da ciência abria possibilidade para a certeza epistemológica e consenso
objetivo e, ao mesmo tempo, a lógica da previsão experimental e metodológica
científica ia assumindo como redentora social.

No século XVII, na Inglaterra, Francis Bacon proclama a necessidade de


um novo método capaz de substituir o antigo silogismo, encontrando na indução
uma resposta. Suas ideias são explicitadas em 1620, com a publicação do Novum
Organum, que, como o nome sugere, vem a substituir o antigo Organon aristotélico.
Apesar dos equívocos teóricos, defende o postulado de que um método adequado,
o empírico, permitiria a compreensão dos princípios e mecanismos que regem os
fenômenos naturais, e finalmente, a natureza poderia ser dominada.

Enquanto isso, na França, René Descartes, em meio à crise do ceticismo


filosófico francês e como fruto do racionalismo crítico, busca criar critérios irrefutáveis
para a certeza do conhecimento. Por ser um excelente matemático, acreditava que
apenas o rigor metodológico da geometria e aritmética poderia conduzir a um
conhecimento absoluto e verdadeiro no campo filosófico. Partindo da crença na
consciência individual e do comportamento metódico da dúvida, conclui que a única

122
TÓPICO 3 | A MODERNIDADE: UM CENÁRIO DE TRANSFORMAÇÕES

certeza é a certeza da dúvida. O sujeito pensante existe – cogito, ergo sum – e tudo
demais pode ser questionado. Nesta ótica, o conhecimento seguro é o que pode ser
obtido a partir do princípio primeiro do cogito; usando a dúvida, o experimento e
a hipótese, a ciência avançaria. A razão humana torna-se a suprema autoridade e a
única capaz de obter uma compreensão racional do mundo circundante.

Descartes conferiu um novo sentido à palavra Método: passou a significar


proposta de verificação da verdade de uma proposição que exclui o erro. Méthode
é um conceito já conhecido, existente na cultura helênica, para a qual significava,
segundo Hans-Georg Gadamer, um caminho capaz de conduzir ao que se quer
conhecer (GADAMER, 1999).

E
IMPORTANT

Defendendo a supremacia da racionalidade humana sobre a natureza, assim


escreve Bacon: Já é tempo de expor a arte de interpretar a natureza ... De fato, somos da
opinião de que se os homens tivessem à mão uma adequada história da natureza e da
experiência, e a ela se dedicassem cuidadosamente, e se, além disso, se impusessem duas
precauções: uma, a de renunciar às opiniões e noções recebidas; outra, a de coibir, até o
momento exato, o ímpeto próprio da mente para os princípios mais gerais e para aqueles que
se acham próximos; e se assim procedessem, acabariam, pela própria e genuína força de suas
mentes, sem nenhum artifício, por chegar à nossa forma de interpretação. A interpretação é,
com efeito, a obra verdadeira e natural da mente, depois de liberta de todos os obstáculos.
Mas com os nossos preceitos tudo será mais rápido.
FONTE: BACON, Francis. Novum Organum ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da
natureza. Tradução de José Aluysio Reis de Andrade. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1973, p. 95.

Na modernidade, Descartes estabeleceu a ideia de método unitário,


funcionando como paradigma de validade para todo conhecimento, de certificação
universal em razão das condições formais de procedimento. Criou o início de
intrincadas e indissolúveis questões que viriam a ser discutidas pelas gerações de
teóricos que o seguiram, produzindo, assim, uma pluralidade de problemas que
transcenderam a individualidade de qualquer pensador e acabaram por entrelaçarem-
se naquilo que se chamou de pensamento científico moderno: a combinação entre
conhecimento técnico-científico e a forma de racionalizar o kosmos circundante.

Assim, foi sendo definida uma nova cosmologia profana dentro da qual
simultaneamente o ser humano descobria o movimento planetário e mudava seu
eixo existencial: de um universo aristotélico-cristão hierárquico, finito e estático para
um cosmo de significados múltiplos e absolutamente novos (TARNAS, 2000). O
mundo tornara-se secular e mutante. Com a teoria darwiniana demonstrava-se que a
transformação era o estado permanente da natureza em luta para o desenvolvimento
e supremacia dos mais fortes e não fruto benevolente de um plano transcendental.

A ciência tornava a realidade neutra. Apenas as evidências empíricas e a


análise racional poderiam ser legítimas bases epistemológicas.
123
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

De forma definitiva eram rompidos os vínculos com o passado medieval


e inaugurada uma era em moldes absolutamente novos, anunciando o alvorecer
de um progresso humano infinito. O ingresso em um tempo futuro expandido
de forma infinita, um tempo para progressos sem precedentes na evolução da
humanidade (TARNAS, 2000).

Nestes novos tempos o passado não tinha mais sentido em ser revivido,
apenas compreendido como forma de perspectiva para o futuro. A autoridade da
tradição é abolida. O conceito de moderno inclui a independência e a inovação.
Talvez, por esta razão, o conceito de modernidade é de abertura; de contínua
ideia de inovação.

Entre os séculos XVIII e XIX, na Europa, quando a ciência já havia assumido


uma instância superior, para além do bem e do mal (SOUZA SANTOS, 2006),
finalmente, os tempos modernos ganhavam vida (KUMAR, 1997) e o irreversível
processo de secularização tornou a ciência um novo meio de redenção social e
político, acreditando que ao transformar os problemas sociopolíticos em questões
técnicas, as soluções seriam mais eficientes.

O modelo de racionalidade sob o qual se edificou a ciência moderna,


essencialmente orientada pelos postulados das ciências naturais que se estendeu
às ciências sociais emergentes, no entender de Boaventura de Souza Santos (2006,
p. 61), acabou por constituir-se num modelo totalitário, universal, já que: “nega
o caráter racional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem pelos
princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas”.

Esta é a característica essencial e diferenciadora do modelo paradigmático de


conhecimento que vem a substituir hegemonicamente todos os que o antecederam.

A insurgente confiança epistemológica construía a crença na possibilidade


da unidade e verdade, e, simultaneamente, a definitiva superação do modo de
vida medieval.

Neste contexto, é edificado um modelo de racionalidade que rompe com o


senso comum, negando qualquer conhecimento fundado tão somente na prática.
Partindo da concepção de mundo-máquina, herança da física newtoniana,
consolida-se a concepção de dominação através do conhecimento como resultado
da adoção de critérios metodológicos adequados e precisos, tendo como
pressuposto certeza da existência da ordem, previsibilidade e estabilidade.

A explosão que estilhaçou a imagem medieval teológica e geocêntrica


de mundo, igualmente modificou o ideal de vida teórica, tornando a ciência
uma grandeza autônoma (GADAMER, 1999). A permanente autossuperação do
conhecimento produzido pela investigação faz da ciência um empreendimento
desafiador e ilimitado cujo caminho de investigação metódica é a própria
certificação da razão (GADAMER, 1999). A partir de então, a tarefa dos diversos
campos do conhecimento é colocar-se nessa “trilha segura”, na qual o saber torna-
se produto de uma teoria fundada em rígidos critérios metodológicos.

124
TÓPICO 3 | A MODERNIDADE: UM CENÁRIO DE TRANSFORMAÇÕES

Neste contexto, a imagem de mundo, elaborada a partir da autoconsciência


humana, faz com que a própria interpretação da realidade adquira um sentido
pragmático. Em outras palavras, o agir, enquanto produto compreensivo, passa a
pressupor o uso adequado de uma operação técnica.

O modelo de racionalidade que foi sendo construído desde o


Renascimento no mundo europeu, a partir do século XIX adquire o status de
modelo global de racionalidade científica, alastrando-se para os diversos campos
do conhecimento, colonizando culturas e sociedades, sobretudo ocidentais. Tal
modelo é representado melhor pelo positivismo, em suas distintas vertentes, que
para Souza Santos (2006, p. 25) assenta-se nas seguintes ideias fundamentais:
[...] distinção entre sujeito e objeto e entre natureza e sociedade ou
cultura; redução da complexidade do mundo a leis simples susceptíveis
de formulação matemática; uma concepção da realidade dominada
pelo mecanicismo determinista e da verdade como representação
transparente da realidade; uma separação absoluta entre o conhecimento
científico – considerado o único válido e rigoroso – e outras formas
de conhecimento, como o senso comum ou estudos humanísticos;
privilegiamento da causalidade funcional, hostil à investigação das
“causas últimas”, consideradas metafísicas, e centrada na manipulação
e transformação da realidade estudada pela ciência.

Toda reflexão epistemológica moderna assentou-se neste paradigma, que


demonstrava ser capaz de formular princípios organizativos da ordem natural
e social. Esse modelo de racionalidade deve ser compreendido como parte
essencial do grande projeto civilizatório da modernidade, que segundo Souza
Santos (2006), é assentado sobre dois pilares – o da regulação e da emancipação –
cada um dos quais constituído por três princípios ou lógicas.

O pilar da regulação, construído pela concepção de Estado – que encontra sua


justificativa nas concepções contratualistas –, o princípio de mercado – formulado
sobretudo pelas concepções capitalistas liberais, e o princípio da comunidade – tal
como concebido teoricamente por Rousseau. O pilar da emancipação assentado
nas lógicas de racionalidade tal como expressas por Max Weber: a estético-
expressiva das artes e literatura, a cognitiva instrumental da ciência e tecnologia e a
racionalidade moral-prática da ética e direito (SOUZA SANTOS, 2006).

O grande esforço, sobretudo ocidental, em edificar uma civilização


institucionalmente racionalizada e objetivamente avaliada transmuta-se num
imenso e ambicioso projeto social global que carregava consigo a promessa de
um desenvolvimento harmônico e recíproco entre os pilares da regulação e
emancipação, capaz de racionalizar completa e simultaneamente a vida coletiva
e individual. À ciência coube o papel central de controlar e administrar qualquer
possibilidade de excessos, desvios ou défices, considerados como situações
passíveis de serem resolvidas de forma eficiente, convertendo-se, assim, a
ciência em força produtiva com critérios de eficácia e eficiência que se tornaram
hegemônicos, ao ponto de colonizarem gradualmente os critérios racionais das
outras lógicas emancipatórias (SOUZA SANTOS, 2006).

125
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

O importante autor contemporâneo Boaventura de Sousa Santos escreve


sobre os “sintomas” da crise do pensamento científico moderno. Perceba como o
autor coloca a impotência da ciência para os tempos que se vão anunciando.

Vivemos num tempo atônito que ao debruçar-se sobre si próprio


descobre que os seus pés são um cruzamento de sombras, sombras que vêm
do passado que ora pensamos já não sermos, ora pensamos não termos ainda
deixado de ser, sombras que vêm do futuro que ora pensamos já sermos, ora
pensamos nunca virmos a ser. Quando, ao procurarmos analisar a situação
presente das ciências no seu conjunto, olhamos para o passado, a primeira
imagem é talvez a de que os progressos científicos dos últimos trinta anos são
de tal ordem dramáticos que os séculos que nos precederam desde o século
XVI, onde todos nós, cientistas modernos, nascemos, até ao próprio século XIX,
não são mais que uma pré-história longínqua. Mas se fecharmos os olhos e
os voltarmos a abrir, verificamos com surpresa que os grandes cientistas que
estabeleceram e mapearam o campo teórico em que ainda hoje nos movemos
viveram ou trabalharam entre o século XVIII e os primeiros vinte anos do século
XX, de Adam Smith e Ricardo a Lavoisier e Darwin, de Marx e Durkheim a Max
Weber e Pareto, de Humboldt e Planck a Poincaré e Einstein. E de tal modo é
assim que é possível dizer que em termos científicos vivemos ainda no século
XIX e que o século XX ainda não começou, nem talvez comece antes de terminar.
E se, em vez de no passado, centrarmos o nosso olhar no futuro, do mesmo
modo duas imagens contraditórias nos ocorrem alternadamente. Por um lado,
as potencialidades da tradução tecnológica dos conhecimentos acumulados
fazem-nos crer no limiar de uma sociedade de comunicação e interativa libertada
das carências e inseguranças que ainda hoje compõem os dias de muitos de nós:
o século XXI a começar antes de começar. Por outro lado, uma reflexão cada vez
mais aprofundada sobre os limites do rigor científico combinada com os perigos
cada vez mais verossímeis da catástrofe ecológica ou da guerra nuclear fazem-
nos temer que o século XXI termine antes de começar.

FONTE: Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-4014198


8000200007>. Acesso em: 17 nov. 2017.

Lendo o trecho acima, que você tem disponível na íntegra pela internet,
somos levados a pensar se realmente a ciência, enquanto conhecimento em si, é
capaz de solucionar os males do nosso tempo!

126
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• A Modernidade como um contexto político, histórico e cultural no qual irá se


edificar uma nova racionalidade jurídica.

• O rompimento com o poder político papal e a emergência dos Estados Modernos.

• A secularização do conhecimento e a concepção de ciência substituindo a


ideologia cristã.

• A contribuição dos distintos pensadores para a edificação do saber moderno e


a redefinição do Direito.

127
AUTOATIVIDADE

Considere a cena abaixo, do filme Tempos Modernos, de 1936, de


Charles Chaplin:

FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-1832/


fotos/detalhe/?cmediafile=20067818>. Acesso em: 3 jan. 2018.

Pergunta-se: Considerando o estudo realizado acerca do pensamento


moderno, o que a figura acima lhe sugere quanto à relação ser humano X
tecnologia?

128
UNIDADE 2
TÓPICO 4

O DIREITO MODERNO E O POSITIVISMO JURÍDICO

1 INTRODUÇÃO
Para compreendermos o direito moderno como resultado de todo um
processo histórico acumulado, há que se partir da compreensão da racionalização
jurídica moderna, o que pressupõe inseri-la no amplo processo ético-filosófico e
técnico-produtivo da ordem capitalista liberal que emergiu da sociedade ocidental
europeia no século XVIII, culminando na consolidação de uma nova ordem social,
econômica e política, fundada nos valores e interesses da classe burguesa.

Se inicialmente o liberalismo constituiu um instrumento revolucionário


capaz de enfrentar o Antigo Regime Absolutista, com o apoio das camadas
populares que acreditavam na possibilidade de construção de uma sociedade
livre, justa e fraterna, com a apropriação do poder político e econômico pela elite
burguesa, os ideais revolucionários são mantidos unicamente no plano formal,
excluindo-se da prática qualquer ação comprometida com a distribuição da
riqueza e a democratização política.

Afirma Antonio Carlos Wolkmer (1994) que, das expressões valorativas,


a que mais se encontra integrada ao liberalismo é o individualismo. No modelo
liberal, o individualismo assume caráter diferenciado de outras experiências
históricas, como o cristão, naturalista, racionalista e anarquista, por estabelecê-lo
não como um “valor em si”, mas como “valor absoluto”, que concebe e prioriza
o homem em sua absoluta autonomia não apenas frente ao poder estatal, mas a
qualquer forma de organização institucional.

Sob tal ótica, foi produzido um modelo político monopolizado capaz


de assegurar e reproduzir os interesses liberais individualistas do capitalismo
burguês, aliado a um tipo específico de instrumental jurídico capaz de garantir
sua legitimidade e efetividade.

2 O MODELO POLÍTICO LIBERAL MODERNO


O modelo político liberal moderno é resultado histórico da formação de
um tipo de poder estruturado na Europa durante os séculos XV, XVI e XVII,
que veio a suceder o político-jurídico medieval. Trata-se de uma forma política
moldada dentro de um processo de centralização e concentração ocorrido nesses
séculos, que se desdobrou através de distintas fases: absolutista, liberal e social.

129
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

Entende Hermann Heller (s.d., p. 158) que: “[...] é patente o fato de que
durante meio milênio, na Idade Média, não existiu o Estado no sentido de uma
unidade de dominação, independentemente no exterior e interior que atuara de
modo contínuo com meios de poder próprios, e claramente delimitada pessoal e
territorialmente”.

Para o referido autor, o modelo de poder político da Idade Média é


entendido como “estamental” (as funções encontravam-se repartidas entre a
Igreja, os nobres proprietários de terra, os cavalheiros e outros privilegiados),
sendo os reinos e territórios da Idade Média, tanto no interior como no exterior,
unidades de poder político apenas excepcionalmente, já que o poder estava
limitado em seu interior pelos inúmeros depositários de poder feudal, e no
exterior pela Igreja e Imperador.

Como já vimos, além de que, na fase medieval, era desconhecida a ideia de


uma pluralidade de Estados soberanos coexistindo com uma igual consideração
jurídica, não conhecendo o Estado feudal uma relação de súdito de caráter
unitário, como atualmente o compreendemos.
Portanto o Estado «moderno» se origina em um processo de alterações
que incluem a exaustão do sistema socioeconômico feudal e o advento
do capitalismo; incluem também o surgimento de uma nova vida
urbana, em contraste com a existência predominantemente rural do
medievo e em consonância com a ascensão de um novo tipo social que
viria a ser denominado burguesia (SALDANHA, 1987, p. 8).

A ordem política e social medieval, por sua descentralização e


fragmentação, permitiu a coexistência de distintas e complexas ordens jurídicas
legítimas num mesmo espaço social, o que será definitivamente abolido pelo
Estado Moderno, que irá impor uma ordem jurídica monista, considerando o
Estado como a fonte monopolizadora de produção do Direito, tendo as demais
fontes apenas legitimidade derivada.

Há de salientar-se que, dentro dessa realidade jurídica pluralista, num


plano superior, colocou-se o Direito Canônico, por estar diretamente vinculado à
autoridade religiosa, critério último para a validação das demais ordens jurídicas,
como consequência do princípio agostiniano de subordinação da ordem terrena
à ordem divina.

Paulatinamente, com o avanço da ordem mercantilista e a necessidade


de proteger juridicamente os interesses da burguesia comercial, associam-se as
ideias individualistas e capitalistas a partir do século XVI, abrindo caminho para
um “novo” estilo de vida que foi capaz de transformar a estrutura social, jurídica
e econômica do mundo medieval ocidental, delineando um novo homem com
consciência do valor da personalidade e da liberdade individual, rompendo-se com
as regras morais e religiosas da Idade Média. Assim, começa a entrar em colapso a
antiga estrutura jurídica descentralizada, passando a ser sucedida pela consolidação
mais genérica, sistemática e unitária de um Direito Mercantil (WOLKMER, 1994).

130
TÓPICO 4 | O DIREITO MODERNO E O POSITIVISMO JURÍDICO

No plano político, o Estado Moderno, de forma oposta ao do poder medieval,


constitui-se de dois processos paralelos que paulatinamente o vão consolidando: O
processo de centralização, quando se passou do poder disperso e local para um
poder situado em um foco central nas mãos do monarca; e a formação de uma nova
concepção política de que o poder deve ter legitimidade e representatividade.

Tal modelo político desenvolveu-se por conta da conjugação de fatores que


se desenvolveram historicamente através de estágios “demarcados por mutações
revolucionárias” fundamentais, que são: absolutista, liberal e social, sendo que
cada fase é caracterizada por um tipo, uma figura conceitual genérica provinda
da unificação de certos traços de um objeto.

DICAS

Para melhor compreender esta fase da história, procure ler sobre as Revoluções
Burguesas. Há muito material disponível na internet!!!!

FIGURA 49 – REVOLUÇÃO INGLESA

FONTE: Disponível em: <https://cafedahistoria.wordpress.com/2012/04/12/


revolucoes-burguesas-a-revolucao-inglesa/>. Acesso em: 17 nov. 2017.

O adjetivo liberal, tomado em sua concepção política, que vem a caracterizar


o modelo que sucede ao absolutista, deve ser compreendido a partir dos movimentos
político-sociais pré-napoleônicos do século XIX; apesar de antes ter a Inglaterra exemplos
de correntes e instituições tipicamente liberais, associado a um credo jusnaturalista,
diferencia-se substancialmente do antigo. Para o jusnaturalismo predominou uma
concepção objetiva – existência de leis eternas, correlatas de uma racionalidade inerente
às coisas e oriundas do domínio do nous e de sua obra, o cosmos.
131
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

Com o pensamento moderno emerge a noção de direito subjetivo (que


sobreveio já com o cristianismo), emergindo uma concepção plural e individual
de direitos naturais. Na versão liberal, o contratualismo representa um “legado”,
um ponto de partida para a ideia de necessário acordo de vontades para a
legitimação de poder.
Somente um poder consentido seria legítimo – aqui sem diferenciar-
se legitimidade e validade – e tal consentimento deveria provir de
todos, ou seja, de cada um dos contratantes, cada qual livre e racional
em sua condição humana. Tal liberdade viria a ser proclamada nas
declarações constitucionais do liberalismo, dando aval ao poder
consentido e outorgado, e reconhecida e protegida pelo Estado
(SALDANHA, 1987, p. 29).

O paradigma legalista, enquanto legitimação de qualquer ação social,


tanto no individual quanto no plano político, a partir da previsão legal – conjunto
normativo escrito de caráter geral e abstrato – que obedece a um modelo técnico-
racional e produzida unicamente pelo Estado, traz como um de seus corolários
o princípio do primado da lei. Esta é uma invenção do século XIX que vem na
esteira das revoluções burguesas, que vincula a teoria da soberania popular e da
representação parlamentar como reação à concepção absolutista de Estado.

Para a burguesia em ascensão, a defesa de seus interesses – livre circulação


de bens, de pessoas, liberdade de comércio e direito de propriedade – passava pela
necessidade de impor ao Estado o primado da lei como garantia a violações a tais
direitos. Tal paradigma foi apropriado pelas distintas ordens jurídicas ocidentais
de maneira diferenciada, conferindo-lhe fisionomia própria. Assim, por exemplo,
na França a lei positivada é a condição de existência de direitos, enquanto que na
Alemanha de Weimar, sob o efeito do socialismo, se cria a ideia de que a lei escrita
cria o perigo de restringir direitos ao invés de garanti-los, preferindo-se operar a
distinção entre lei formal e lei material (AUER, s.d.).

O paradigma da legalidade, ao ser transformado em ideologia jurídica,


se converte num princípio hermenêutico moderno, pois cria a ficção da
possibilidade de vincular o abstrato ao concreto, o geral ao particular, reforçando
a ideia de coerência da ordem jurídica. Auer (s.d., p. 135), tomando ideologia
no sentido gramsciano, a define como “[...] um sistema lógico de ideias que
circulam na sociedade e que constituem outras tantas normas de comportamento
difusas, parcialmente conscientes e parcialmente inconfessas”. Tal ideologia
jurídica, tendo por finalidade promover a coesão do grupo social, organizando
a consciência individual em função de padrões de universalidade, justiça,
equidade e previsibilidade, torna legítima a organização jurídica posta, criando
um “consenso” que permite um agir social.

A citação a seguir retrata o que é o paradigma da legalidade, que vem a


ser o conceito-chave do direito moderno.

132
TÓPICO 4 | O DIREITO MODERNO E O POSITIVISMO JURÍDICO

O princípio da legalidade canaliza e estrutura a lei. A lei pode


ser vaga, imprecisa, fluida e indeterminada, pois o princípio da
legalidade consegue a proeza de fazer aparecer como conformes a
esta fluidez os mais diversos atos de aplicação individual e concreta.
Garantindo uma ligação tanto normativa como lógica entre o abstrato
e o concreto, entre o geral e o individual, a legalidade funda e reforça
a ideia de uma coerência da ordem jurídica. Ela pinta a imagem
reconfortante, porque previsível, de um mundo jurídico fechado
e ordenado, em que tudo está no seu lugar, em que a conclusão
decorre naturalmente do jogo das premissas maior e menor, em que
o geral e o abstrato antecipam um juízo hipotético sobre o concreto
que, por sua vez, os confirma, etc. Em suma, a ideia de uma lógica da
ordem jurídica é essencialmente ideológica e esta ideia alimenta-se,
nomeadamente, do princípio da legalidade (AUER, s.d., p. 136).

Este milagroso paradigma é legitimado pela crença positivista enquanto


atitude científica que “[...] encontra na observação científica dos fenômenos a
explicação da realidade, excluindo toda especulação metafísica. Esta observação é
uma experiência da realidade a partir da qual será dada a explicação (empirismo
vem da experiência)” (MIAILLE, 1989, p. 275).

Esta corrente de pensamento foi o resultado da incorporação do modelo


epistemológico adotado pelas ciências naturais às “ciências do espírito”,
pressupondo que todo saber, para ser válido, deveria se basear na observação
direta da realidade empírica, rejeitando qualquer especulação metafísica,
substituindo a autoridade e a especulação filosófica pela observação e pela
experiência, pretendendo objetivar o conhecimento.

Segundo Hespanha (1997), no plano jurídico, este movimento vinha ao


encontro da pretensão de colocar fim tanto à incerteza e ao casuísmo do modelo
jurídico tradicional quanto à proliferação de sistemas especulativos sobre direito
natural que haviam surgido ao longo do século XVIII.
Ou seja, dirigia-se tanto contra a vinculação do direito à religião e
à moral, como contra a sua identificação com especulações de tipo
filosófico como as que eram correntes nas escolas jus racionalistas.
Contra uma coisa e contra a outra proclamava-se a necessidade de um
saber dirigido para coisas positivas (HESPANHA, 1997, p. 174).

No pensamento jurídico fixaram-se duas correntes doutrinárias de matriz


positivista a partir do século XIX: o positivismo legalista, representado pela Escola
Exegética, e o positivismo formalista científico, cuja precursora foi a Escola Histórica.

O positivismo em sua vertente legalista, que acaba sendo dominante


na prática jurídica, reduz o direito à lei e admite como única fonte de direito o
criado por um legislador estatal. Já a segunda: “[...] deduzia as normas jurídicas
e sua aplicação a partir do sistema, dos conceitos e dos princípios doutrinais da
ciência jurídica, sem conceder a valores ou objetivos extrajurídicos (por exemplo,
religiosos, sociais ou científicos) a possibilidade de confirmar ou infirmar as
soluções jurídicas” (WIEACKER, s.d., p. 492).

133
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

Embora não possam as duas concepções ser confundidas por possuírem


diferentes matrizes filosóficas e políticas, ambas rejeitam qualquer fundamentação
metafísica do direito, conferindo-lhe o status de um saber científico especializado
e autônomo, que deve utilizar métodos objetivos e verificáveis à semelhança das
ciências naturais. A tal credo soma-se a pretensão de conferir a esse saber um
caráter de universalidade e de progressiva perfeição, já que esta fase coincide
com o período áureo da expansão colonialista europeia que difundia e impunha
a cultura, e por via de consequência, o modelo jurídico desenvolvido na Europa
Ocidental às diferentes partes do mundo, combatendo e dizimando, em nome
do “progresso, modernidade e da civilização”, todas as formas de organização
social, política e jurídica dos povos conquistados, convencida de sua supremacia.

A codificação representou a consolidação do positivismo jurídico como


discurso predominante no período de formação da ciência jurídica moderna.
Esse movimento inovador e revolucionário no plano jurídico-formal vem na
esteira da ideologia liberal burguesa e no triunfo dos princípios da Revolução
Francesa, rompendo definitivamente com a antiga ordem estamental sobre a qual
se assentava o Antigo Regime.

FIGURA 50 – CÓDIGO CIVIL FRANCÊS

FONTE: Disponível em: <https://viajepordois.wordpress.com/2013/09/12/


waterloo/>. Acesso em: 17 nov. 2017.

O princípio básico desse novo paradigma jurídico, coerente com a


concepção de que o estudo do Direito deve ser restringido à experiência
constatada, consiste em identificar e reconhecer apenas como Direito o produzido
pelo Estado, o único com existência objetiva – jus positum – que, com segurança,
pode ser instrumento de planificação e manutenção da sociedade.

O movimento da codificação, produto da simbiose do jus racionalismo


com o iluminismo, alastrou-se pela Europa Ocidental a partir do século XIX,
e, apesar da multiplicidade de circunstâncias que justificam sua ocorrência,
possui, no dizer de Wieacker (s/d, p. 366), “um idêntico perfil espiritual”.

134
TÓPICO 4 | O DIREITO MODERNO E O POSITIVISMO JURÍDICO

Os códigos modernos pretenderam uma “planificação social” através da


reordenação sistemática da matéria jurídica, tendo como pressuposto a convicção
iluminista de que o estágio civilizatório da sociedade seria alcançado com uma forma
de governo fundada na razão e na “vontade geral”. O projeto geral para a edificação
de um modelo social fundado na ética natural vinha sendo delineado pelo Direito
Natural, que, a partir do século XVII, encontrou um ambiente filosófico para uma
redefinição no sentido de conceber o Direito Natural estável fundado na razão.

O pensamento dos juristas que buscavam um “direito certo e seguro”


encontrou no poder da razão individual a possibilidade de descoberta das regras
do justo fundado numa ordem racional, o que iria conduzir no sentido de tornar
o direito positivo o “mais certo”.
A ideia do direito natural, neste novo sentido, vem a impor-se
decisivamente na cultura jurídica europeia do século XVII. De alguma
forma, o novo direito natural, fundado na razão, é o correspondente
do antigo direito natural, fundado na teologia. O pensamento social e
jurídico laicizara-se. O que não é estranho ao facto de, pela primeira
vez, se ter quebrado a unidade religiosa da Europa (com a Reforma) e
de se ter entrado em contato com povos totalmente alheios à tradição
religiosa europeia. E, com esta laicização, o fundamento do direito
passara a residir em valores laicos, comuns a todos os homens, como
as evidências racionais (HESPANHA, 1997, p. 150).

Este novo conceito de Direito Natural, que passa a dominar o pensamento


dos juristas, traz como consequência a construção de sistemas jurídicos que têm
como ponto de partida os direitos inatos do indivíduo. A concepção individualista
de homem, apesar de remontar ao nominalismo, teve no cartesianismo e no
empirismo um novo impulso, onde os direitos individuais, imutáveis e necessários
são definidos pela própria natureza humana.

DICAS

A filosofia nominalista, ao contrário da tradição filosófica clássica que conferia


existência real ao homem como inserido em estruturas sociais, considerava o homem
enquanto um ser isolado, sem outros direitos e deveres senão aqueles reclamados pela sua
natureza individual ou pela sua vontade.

Do cartesianismo é absorvida a ideia de o homem como ser que busca


a verdade através da razão, detentor de dois direitos naturais inerentes: usar
livremente a razão na produção do conhecimento e de pautar sua ação em
princípios ditados pela razão. O empirismo transcende o cartesianismo ao idealizar
o homem não apenas como um ser racional, mas comandado por instintos concretos
(perpetuação, conservação...) que deveriam ser garantidos e satisfeitos, já que
constituíam um Direito Natural (HESPANHA, 1997).

135
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

É assim superada a concepção aristotélico-tomista de Direito Natural pela


convicção na natureza individual do homem e na observação dos impulsos que o
levam à ação, emergindo um novo conceito de sociedade e de ordem social.
[...] perante a sua necessidade “natural” de agir racionalmente ou
de agir instintivamente, a sociedade aparecida até mesmo como um
obstáculo, pois nela não era possível dar livre curso a estes impulsos
sem chocar com os desígnios de ação dos outros”. É exatamente esta a
firme crença dos pensadores jus racionalistas que defendem o Estado
como forma de organização social e de limite dos direitos naturais.
De facto, levado pela consideração dos interesses da vida em comum,
para a qual se sentiam inclinados (Grócio), ou pelo medo de um
estado de natureza em que a satisfação dos impulsos naturais gerava
contínuas lutas (Hobbes), os homens celebram entre si um pacto,
pelo qual limitam a sua liberdade natural, entregando na mão dos
governantes o poder de editar regras de convívio obrigatórias. É o
«contrato social», cujos germes já se encontram em Suarez, mas cuja
teoria é agora amplamente desenvolvida.
A teoria do «contrato social» não deu lugar somente às teorias
democráticas que tiveram seu epílogo na Revolução Francesa. Ele
foi igualmente adequado a fundamentar o «despotismo iluminado»,
típico das monarquias e principados europeus do século XVIII. Tudo
dependia, de facto, do conteúdo do contrato, pois os jus naturalistas
acabavam, como se vê, por depor todo direito positivo nas mãos dos
membros da coletividade. E então, é da vontade arbitrária destes que
a lei vem, em última análise, a depender. E bem pode acontecer que,
atentos aos perigos do estado de natureza, os homens decidam depor
todos os seus direitos na mão do príncipe, a fim de que este zele, com
o pulso livre, pelo bem comum e pela felicidade individual (Hobbes)
(HESPANHA, 1997, p. 151-152).

Com o jus racionalismo é aberta uma nova fase no pensamento jurídico.


De um lado, a nova convicção de “natureza humana” eterna e imutável
confere valor universal do Direito, o que explica a “exportação” dos códigos,
notadamente o Código Civil napoleônico como subsidiário ou principal, para
regiões culturalmente distintas, representando um verdadeiro movimento
revolucionário. E de outro, o divórcio definitivo entre Direito Natural e Direito
Positivo, vindo este último a ser considerado como o único Direito, sendo que
no dizer de Bobbio (1993, p. 23), “[...] a partir deste momento o acréscimo de
adjetivo «positivo» ao termo «direito» torna-se um pleonasmo, mesmo porque,
se quisermos usar uma fórmula sintética, o positivismo jurídico é aquela doutrina
segundo a qual não existe outro direito se não o positivo”.

As codificações sistemáticas do Direito significaram o “triunfo da razão” que


pretenderam a positivação de um modelo de Direito ensinado nas universidades
desde o século XI, “o direito justo”, mostrando os juristas a disposição em admitirem
a inovação de ser o soberano competente para afirmar o Direito.

136
TÓPICO 4 | O DIREITO MODERNO E O POSITIVISMO JURÍDICO

Na verdade, é reconhecido o poder do Estado para expor os princípios


da lei natural: trata-se, como diz Cambecérès – jurista francês do século XIX que
elaborou o Código Civil de 1804 –, de estabelecer um código de natureza sancionado
pela razão e garantido pela liberdade, poder este que, uma vez admitido,
facilmente é afastado de tal fim, já que o “legislador”, como personificação do
Estado, servindo-se de tal poder, independentemente de qualquer preocupação
com “leis naturais”, serve-se da nova mentalidade para ter na lei positivada um
eficiente instrumento de controle social.

3 O DIREITO E A ORIENTAÇÃO EXEGÉTICA


Na França revolucionária do século XIX, o movimento da codificação veio
a mudar radicalmente o conceito de Direito, fazendo verdadeira “tábula rasa” da
ordem jurídica anterior. Ao criar uma nova mentalidade que identifica Direito
com os códigos, os juristas desenvolvem um instrumental técnico de interpretação
e aplicação do Direito, seguindo uma orientação exegética.

No dizer de Bobbio (1993, p. 83), a técnica exegética consiste em: “[...] assumir
pelo tratamento científico o mesmo sistema de distribuição da matéria seguido
pelo legislador e, sem mais, em reduzir tal tratamento a um comentário, artigo
por artigo, do próprio Código”. Portanto, a chamada Escola da Exegese pretendia
reduzir o direito à lei, levando a cabo os objetivos revolucionários burgueses.
Como disse o decano Aubry, em 1857, em um relatório oficial sobre
o espírito do ensino da Faculdade de Direito em Paris: Toda a lei,
tanto no espírito quanto na letra, com uma ampla aplicação de seus
princípios e o mais completo desenvolvimento das consequências que
dela decorrem, porém nada mais que a lei, tal a divisa dos professores
do Código de Napoleão (PERELMAN, 1998, p. 31).

Apesar de já ter a Assembleia Nacional Constituinte de 1790 concebido


um projeto de código que sintetizasse um novo direito revolucionário, apenas
em 1804, com o Consulado e sob a influência de Napoleão I, é que o Código
Civil teve uma versão definitiva, seguindo-se o Código de Processo Civil
(1806), Código Comercial (1807), Código Penal (1810), dentre outros. Esta fase
de promulgação dos códigos inaugura a instauração da Escola da Exegese, que,
segundo Perelman (1998), vem seguida de duas outras fases distintas: uma fase
de apogeu até cerca de 1880, e uma de declínio, que termina em 1890 com a obra
de Gény, anunciando o fim do pensamento exegético. Os códigos napoleônicos
consumaram definitivamente a doutrina jus racionalista ao “positivar a própria
razão” e a concretização legislativa da volonté générale.

137
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

Segundo Hespanha, a lei sistematizada nos códigos adquire o monopólio de


manifestação do direito. Já não havia lugar para outras fontes de direito. O direito
doutrinal havia sido incorporado nos códigos. A Revolução rompeu definitivamente
com o passado, instituindo uma nova ordem política e jurídica, desvinculando-se,
assim, do Direito tradicional. A jurisprudência não tinha mais sentido como fonte
de Direito na medida em que aos juízes cabia apenas o poder de aplicar a lei e não
estabelecer o Direito (HESPANHA,1997). Esta compreensão jurídica, predominante
na França do século XIX, forjou juristas (Duranton, Demolombe, Troplong) cujas
obras doutrinárias limitavam-se a expor e interpretar os artigos dos códigos.
A Escola da Exegese estava intimamente ligada ao ambiente político
e jurídico francês, ou seja, a um Estado nacional revolucionário, em
corte com o passado, dotado de órgãos representativos e que tinha
empreendido uma importante tarefa de codificação. Isto determina a
disseminação dos princípios desta escola noutros países, retardando-a,
nomeadamente, nos casos em que estes requisitos não estivessem
realizados (HESPANHA, 1997, p. 178).

Tal saber jurídico que dominou a Europa na primeira metade do século


XIX, segundo Bobbio (1993, p. 84-89), possui como características fundamentais:
1. A inversão das relações tradicionais entre Direito Natural e Direito
Positivo.
2. O monismo jurídico.
3. A interpretação e aplicação da lei fundada na intenção do legislador.
4. O culto à lei e o princípio da autoridade.

Até fins do século XVIII, predominava uma concepção dualista em que o


Direito era definido individualmente em duas esferas distintas: o Direito Natural
e o Direito Positivo, diferenciados quanto à gradação de superioridade ao longo
da formação histórica do pensamento jurídico.

Na Antiguidade Clássica, como vimos, o Direito Natural era considerado


hierarquicamente inferior ao Positivo, concebido como Direito comum (koinós
nómos), enquanto o Direito Positivo era o particular.

Já na Idade Média, o Direito Natural é visto como “a lei escrita por Deus
presente no coração dos homens”, como afirma São Paulo na Sagrada Escritura,
o que resulta na inversão da relação entre as duas espécies de Direito, tendência
que impregnou o pensamento jus naturalista de que considerou o Direito Natural
superior ao Positivo. Porém, apesar de tais distinções, ambos eram considerados
como legítimos.

Com o pensamento exegético, embora sem a coragem de negar


completamente, o Direito Natural passa a ser de menor importância e sem
significado prático. No dizer de Demolombe, um dos idealizadores do Positivismo
Jurídico, o Direito Natural só importa ao jurista quando é inserido na lei, fazendo,
assim, uma inversão própria do pensamento positivista, ao desconsiderar o
Direito Natural como referencial de validade ao Direito Positivo.

138
TÓPICO 4 | O DIREITO MODERNO E O POSITIVISMO JURÍDICO

O jurisconsulto não deve se prender a um modelo mais ou menos


perfeito, a um tipo mais ou menos ideal; [...] o direito natural, para ele,
não é sempre o melhor, nem o mais excelente; mas o direito natural
possível, praticável, realizável é aquele, sobretudo, que se conforma
e se assimila melhor ao espírito, aos princípios e às tendências gerais
da legislação escrita; e eis por que penso que é sempre nessa mesma
legislação que é necessário atingir, diretamente ou indiretamente, todas
as regras das soluções jurídicas (Bonnecase) (BOBBIO, 1993, p. 85).

Bobbio (1993) salienta que a Escola da Exegese eliminou a ideia de


aplicação subsidiária do Direito Natural no caso de lacuna do Direito Positivo, já
que, apesar de o art. 4º do Código de Napoleão admitir a função subsidiária do
Direito Natural, a interpretação deste artigo é alterada. Partindo do princípio da
completude do ordenamento jurídico, o juiz não necessita de meio subsidiário
para resolver conflitos: “o juiz não pode legalmente pretender que a lei não lhe
proporciona os meios para resolver a causa que lhe é submetida” (Bonnecase),
além de dever o juiz considerar improcedente qualquer pedido que não “previsto
em lei” (BOBBIO, 1993, p. 86).

Quanto à segunda característica apontada por Bobbio, o monismo jurídico,


ou princípio da onipotência do legislador, segundo Wolkmer (1994, p. 40), tal
doutrina resulta da inter-relação entre:
A suprema racionalização do poder do soberano e a positividade
formal do Direito [...], conferindo ao Estado o monopólio de produção
das normas jurídicas, transformando o Estado em único agente
legitimado capaz de criar legalidade para enquadrar as formas de
relações sociais que se vão impondo.

O Estado Liberal Moderno, conforme já considerado, é definido em função


de ser um modelo político ao mesmo tempo per leges (faz a lei) e sub leges (sob o
controle da lei), contorno que foi conferido pela congruência entre a legalidade
estatal e a centralização burocrática, que atribui a seus órgãos institucionais
diferentes poderes – legislar e julgar através de regras jurídicas abstratas e
genéricas, sistematizadas no Direito Positivo.

É exatamente com a Escola da Exegese que ocorre a mais íntima simbiose


entre o Direito e o Estado, não apenas no sentido de reconhecer como única
fonte de Direito o Estado, mas sobretudo, por admitir como o único verdadeiro
o Direito Estatal.
Tendo presente a consolidação do modo de produção capitalista e a
definição da burguesia como segmento social hegemônico, impõe-se,
a partir de uma arquitetura lógico-formal unitária, o princípio de que
toda sociedade tem apenas em único Direito, e que este «verdadeiro»
Direito, instrumentalizado por regras positivamente postas, só pode
ser produzido através de órgãos e de instituições reconhecidos e/ou
oficializados pelo Estado. Constrói-se, assim, a segurança, a hierarquia
e a certeza de um arcabouço de normatividade dogmática fundado no
plano lógico de que só existe um Direito, o Direito Positivo do Estado
(WOLKMER, 1994, p. 54).

139
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

A concepção estatal de Direito implica, necessariamente, o princípio da


onipotência do legislador, que não significa tão-somente a negação do Direito
Natural, mas também, no dizer de Bobbio (1993, p. 86), “a negação de todo tipo de
direito positivo diferente daquele posto pela lei, como o direito consuetudinário,
o direito judiciário e principalmente o direito científico”.

Dura lex, sed lex; um bom magistrado humilha sua razão diante da razão
da lei (Mourlon). Esta máxima do pensamento exegético deixa evidente que a
interpretação e aplicação da lei devem ser submetidas à razão expressa na lei, a
razão de um Estado Legislador.

Como decorrência da sacralização do Direito Estatal fundado no


princípio da onipotência do legislador, vincula-se uma terceira crença, ou
característica, do pensamento exegético: a interpretação e aplicação da lei com
base na intenção do legislador.

A ficção jurídica de um legislador onipotente e detentor de “uma


vontade” expressa no texto legal é fruto do pensar dogmático positivista, que
compreende o texto da lei como expressão da mens legislatoris (vontade do
legislador). Pressupondo os códigos como instrumento capaz de garantir a
certeza das relações sociais e o Direito como fato objetivado e delimitado nestes
códigos, via de consequência, a interpretação e aplicação do Direito deveria ser
centralizada na determinação unívoca e precisa do sentido expresso no texto
legal, operando-se com a segurança e certeza como valores prioritários desse
modelo de cientificização.

Para dar conta da perspectiva formalista e lógica da ciência jurídica,


definitivamente o intérprete não pode operar senão o que lhe é dado, que são as
proposições normativas e sistematicamente organizadas nos códigos.

Esta preocupação cientificista, herdada pelos juristas do século XVIII, se


explica pelo conceito sistemático de Direito, que se resume em um conjunto de
elementos estruturados pelas regras da dedução.

Nesse sentido, interpretar significa, sob tal ótica, estabelecer o sentido


imanente da norma na totalidade do sistema tal qual foi previsto pelo legislador,
distinguindo-se a vontade real e vontade presumida.
Busca-se a vontade real do legislador no caso em que a lei disciplina
efetivamente uma dada relação, mas tal disciplinamento não fica
claro a partir do texto da lei (então se busca, mediante investigações
de caráter essencialmente histórico, o que o autor da lei pretendia
efetivamente dizer); busca-se, em contrapartida, a vontade presumida
do legislador (o que se resolve, em última análise, numa ficção
jurídica), quando o legislador se omitiu em regular uma dada relação
(lacuna da lei). Então, recorrendo à analogia e aos princípios gerais do
direito, procura-se estabelecer qual teria sido a vontade do legislador,
se ele tivesse previsto o caso em questão (BOBBIO, 1993, p. 87).

140
TÓPICO 4 | O DIREITO MODERNO E O POSITIVISMO JURÍDICO

Finalmente, a última característica assinalada por Bobbio (1993), o culto


à lei e o princípio da autoridade, resulta da identificação do Direito com a lei
que submete o intérprete, como “profissão de fé” (Demolombe), ao culto das
disposições legais, a um excessivo apego à lei e à vontade do legislador nela
expressa, conferindo ao texto legal um poder inerente – a fetichização.

É pressuposto do pensamento exegético a impossibilidade de colocar em


discussão a justeza “da palavra” do legislador expressa no texto legal. A Escola
da Exegese foi sustentada por seus expoentes, comentadores do Código, cujos
entendimentos serviram de dogma aos juristas.

As teorias jurídicas estruturadas na Europa durante o século XIX, apesar


de possuírem como vínculo comum o objetivo de viabilizar e consolidar o novo
paradigma político e social voltado para os interesses da burguesia triunfante,
não constituíam uma unidade de soluções metodológicas.

A Alemanha, em fins do século XVIII, que ocupava lugar de destaque


no cenário do pensamento jurídico europeu, além de não ter sido palco da
experiência revolucionária burguesa, não conhecia o modelo político do Estado
Nacional. Na Europa, a crença no racionalismo e no liberalismo revolucionário
difundia a convicção de que os Estados Modernos deveriam ordenar sua ordem
jurídica através de uma codificação monopolizadora.

Nas raízes dos movimentos políticos contratualistas, o Estado (e o Direito


Codificado) era idealizado como fruto de um contrato social racional a-histórico,
portanto, como forma universal e a-cultural, indiferente às particularidades
históricas e culturais.
Era isto que uma cultura de raízes nacionais, ancorada nas
especificidades culturais dos povos, não podia aceitar. Uma organização
política e jurídica indiferenciada, exportável, universalizante, aparecia,
quando confrontada com os particularismos das tradições nacionais,
como um artificialismo a rejeitar (HESPANHA, 1997, p. 181).

É contra esta visão artificial e intemporal de Estado e Direito que


pensadores como Gustav Hugo (1764-1844), Friedrich Carl V. Savigny (1779-
1861) e G.F. Puchta (1798-1846) buscam fontes não estaduais e não legislativas
do direito, compreendendo a sociedade como um organismo sujeito à evolução
histórica, onde a tradição do passado condiciona naturalmente o presente. Esta
natural e peculiar evolução, sob tal ótica, possuiria como elemento permanente
e atuante o “espírito do povo” (Volksgeist), que daria sentido e unidade a todas
formas de manifestação cultural das diferentes nações.

141
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

FIGURA 51 – OS DOIS GRANDES NOMES DO POSITIVISMO JURÍDICO

FONTE: Disponível em: <http://www.duhaime.org/LawMuseum/LawArticle-


1164/1814-The-Thibaut-Savigny-Controversy-German-Codification-v-Common-Law.
aspx>. Acesso em: 17 nov. 2017.

O processo de construção do positivismo na Alemanha, segundo Bobbio


(1993, p. 45), foi precedido pela desagregação dos “mitos” jus naturalistas ligados
à concepção filosófica racionalista – a filosofia iluminista de matriz cartesiana,
tarefa que coube ao historicismo na primeira metade do século XIX –, que tem sua
origem na Escola Histórica do Direito.

NOTA

O historicismo, como tendência de pensamento que se opõe ao raciocínio


puro e abstrato, dividiu-se em diversos ramos, designando várias reações contra as doutrinas
racionalistas. Pode-se distinguir três correntes: o historicismo filosófico de Schelling e Hegel, o
historicismo político dos teóricos da Restauração e o historicismo jurídico. Apesar de considerar
as importantes relações e interdependência entre as diferentes correntes, há que se destacar o
historicismo jurídico. Sobre o historicismo alemão em suas diferentes vertentes, leia:
DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia. Tradução de Antônio José Brandão. Coimbra:
Arménio Amado – Editor, 1979.
LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução de José Lamego, Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, s.d.

142
TÓPICO 4 | O DIREITO MODERNO E O POSITIVISMO JURÍDICO

Como decorrência das condições específicas do processo histórico e da


concepção predominante no pensamento jurídico alemão em rejeitar o Estado
como única fonte do direito e sua forma legislativa, é na filosofia da cultura
organicista e evolucionista somada ao ambiente cultural do romantismo alemão,
que a Escola Histórica vai buscar como pressuposto da ordem jurídica a ideia de
que a sociedade, assim como um ser vivo, é um todo orgânico submetido a um
processo de evolução histórica que é individualizado em cada povo.

Este processo evolutivo histórico, neste entendimento, é movido por uma


força, ou um “espírito contínuo e atuante”: o espírito do povo (Vosksgeist), que
confere unidade e sentido a todas manifestações culturais de uma nação, sendo
o direito uma dessas formas de manifestação, e, portanto, é o resultado da ação
deste agente nuclear.

A partir desse pressuposto, assiste-se à construção do pensamento jurídico


alemão positivista na primeira metade do século XIX, que, sob o ponto de vista
hermenêutico, servirá como base para a concepção formalista e organicista de
interpretação e aplicação do Direito.

O primeiro passo de desmistificação do jus naturalismo deu-se com Gustav


Hugo. Como sugere o título de sua obra, “Tratado do Direito Natural como
Filosofia do Direito Positivo”, escrita em 1798, entende-se que o direito natural
não pode ser mais concebido como sistema normativo independente do direito
positivo, mas como filosofia do direito positivo. Com tal afirmação, reduzindo o
direito natural e filosofia ao direito positivo, efetua a passagem do jus naturalismo
para o jus positivismo.

Na obra referida, quando se discutem as fontes do direito, ao colocar a


questão central do que é direito, o autor responde não acreditando na “sabedoria”
jus racionalista do legislador e sua “fábrica de leis”: Na crítica que Hugo lançou
ao jus racionalismo a-histórico e seus legisladores, buscou construir uma ciência
jurídica autônoma, empírica e filosófica, propondo uma sistematização interna
da qual seria possível a construção conceitual dos conteúdos do direito positivo,
antecipando as contribuições levadas pela Escola Histórica.

A reação ao movimento de codificação, considerado como fator de


destruição e não de construção do direito, conduzirá à valorização dos elementos
consuetudinário e doutrinal do direito e não ao direito legislado, como pretendia
o pensamento legalista-exegético, o que é evidenciado no debate travado entre
Savigny e Antônio Frederico Justo Thibaut (1772-1840). Thibaut, no ensaio “Sobre
a necessidade de um direito civil geral para a Alemanha” (Heidelberg, 1814),
defende a necessidade da codificação do direito com uma perfeição formal –
normas jurídicas enunciadas de maneira clara e precisa – e substancial – normas
capazes de regular todas as relações sociais – como forma de unificação da
Alemanha e avanço no pensamento jurídico. Bobbio (1993, p. 59) interpreta o
estudo de Thibaut como:

143
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

[...] nos institutos fundamentais do direito se encontra uma disciplina


universal [...], e assim subverte a clássica argumentação da escola
histórica. Enquanto para esta a codificação [...] é algo artificial e
arbitrário, para Thibaut, ao contrário, as diversidades locais do direito
não têm nada de natural, sendo unicamente devidas ao arbítrio dos
vários príncipes de tais universidades.

A reação de Savigny, já conhecido como grande jurista, é manifestada


no mesmo ano com a publicação “Da vocação de nosso tempo para a legislação
e a jurisprudência”, quando declara não ser contrário à codificação, mas que
as condições históricas e culturais da Alemanha, que eram de decadência,
inviabilizavam a construção de uma obra de tal importância. Para Savigny,
a maneira pela qual iria superar os entraves do pensamento jurídico e político
alemão não era a codificação, mas antes “promover vigorosamente o renascimento
e o desenvolvimento do direito científico, isto é, a elaboração do direito por obra
da ciência jurídica” (BOBBIO, 1993, p. 62).

Tal discussão evidencia o antilegalismo como característica central


do pensamento jurídico alemão, que prioriza os elementos consuetudinário
e doutrinal como referenciais na construção da ciência jurídica. O costume é
valorizado exatamente por ser manifestação natural e espontânea do direito e a
doutrina pelo entendimento da escola histórica que entendia serem os intelectuais
capazes de revelar de maneira sistemática e organizada “o espírito do povo”.

O idealismo científico formal serviu como fundamento da crença de que


o direito, tal qual as ciências naturais, é regido por princípios gerais apreendidos
empiricamente. Por via de consequência, torna-se insondável a justeza das
decisões, na medida em que se trata de uma operação mental lógica (apenas
verdadeira ou falsa) independente da valoração do conteúdo e da finalidade das
decisões, já que a interpretação se limita à correta subsunção através de um ato
lógico. Com esta noção elimina-se do sistema jurídico a possibilidade de lacunas,
sendo que o trabalho do juiz em aparente lacuna seria de “revelar” a solução já
existente no próprio sistema.

Uma concepção objetivista de interpretação jurídica: se o direito se


constitui num sistema coerente de conceitos manifestados no direito positivado,
o sentido das normas seria conferido pelo próprio sistema. Portanto, o sentido da
norma, diferentemente do entendido pelo legalismo exegético, não seria obtido
estabelecendo-se a “vontade do legislador”, mas de sua inserção no contexto
sistemático normativo, ou seja, um sentido objetivamente dado.

144
TÓPICO 4 | O DIREITO MODERNO E O POSITIVISMO JURÍDICO

LEITURA COMPLEMENTAR

Crítica e Emancipação: Direitos Humanos desde a experiência


latino-americana

Ivone Fernandes
Morcilo Lixa

Em Eichmann (em Jerusalém) Hannah Arendt (1999) nos demonstrou que


o mal não pode ser explicado como uma fatalidade, mas como uma possibilidade
da liberdade humana e sua banalidade não significa algo sem importância ou que
possa ser entendido como normal. O banal é o que vai sendo vivenciado como
se fosse comum e acaba sendo reconhecido como normal e o mal torna-se banal
porque seus agentes são superficiais e suas vítimas são consideradas supérfluas.
Portanto, quanto mais superficial alguém for, mais provavelmente ele cede ao mal.

Para Arendt, a incapacidade de pensar é o que permitiu a muitos homens


comuns cometerem atos cruéis em escala jamais vista, mas o ato de pensar não é
mero conhecimento, e sim a capacidade de distinguir o bem do mal.

E é no pensar que está a esperança de que as pessoas sejam capazes de ter


forças para evitar catástrofes nos raros momentos de confronto com a verdade. É
também neste ato de pensar e contribuir para a profundidade que se pode iniciar
a urgente tarefa de refundar o conceito de Direito e Direitos Humanos.

Já aprendemos, e ainda estamos lamentavelmente aprendendo no Brasil, que


as barbaridades cometidas contra seres humanos não se fundam somente no ódio,
na cobiça ou na estupidez, mas sim na ausência de reflexão, no distanciamento e
estranhamento, para usar a linguagem filosófica, que permite a abertura de lidar
com o invisível, com o não dito, com o silenciado e com o que está “fora de ordem”.
Talvez em tempos de fascismos tão declarados seja chegado o momento de nos
educarmos como forma nos protegermos da banalidade do mal, talvez assim possa
ser menos favorável e tenha mais pudor falas intolerantes e assassinas.

Vive-se tempos difíceis e de perversidades inéditas tanto no Sul como no


Norte para se falar em Direitos Humanos. Desde o Sul, paradoxalmente o fim do
século XX e início do XXI foi uma era de afirmações de Direitos Humanos pela via
de ações afirmativas do Estado com as anunciadas novas ordens constitucionais
e sua permanente violação, quer pelo próprio Estado, quer pela sociedade civil
alimentada pela intolerância e o ódio que servem de combustível ao fascismo que
nos últimos anos passou a dominar nosso cotidiano.

145
UNIDADE 2 | PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE

Em relação à questão racial, por exemplo, a edição de medidas legais,


como a Lei 7716/89, que definiu os crimes resultantes de raça ou cor ou mesmo
o reconhecimento ao direito de posse da terra às comunidades quilombolas ou
ainda as políticas de âmbito federal na educação, como a edição da Lei 10.639/96,
que instituiu no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática
“história e cultura afro-brasileira”, não foram suficientes para impedir que o
aumento da violência contra a população negra, jovem e pobre desse país. De
acordo com o Mapa da violência publicado em 2016, vem aumentando a violência
contra a população negra no país.

Desgraçadamente, segundo o último Mapa da Violência no Brasil, publicado


em 2016, a taxa de homicídios de negros aumentou 9,9% entre 2003 e 2014, passando
de 24,9% para 27,4%. Pela pesquisa, a vitimização negra do país, que em 2003 era
de 71,7%, mais que duplicou: em 2014 alcançou 158,9%, o que significa que morrem
2,6 vezes mais negros que brancos vitimados por arma de fogo.

Há décadas organizações de defesa de Direitos Humanos vêm denunciando a


dramática situação nos presídios brasileiros, situação que nos primeiros dias do ano de
2017 acabou em explosivos massacres que resultaram em carnificina, com 133 mortes,
explorada pela violência midiática nacionalizando um dantesco cenário com corpos
sem vida, cabeças, pernas e uma centena de fotos e vídeos sem cortes sem respeitar a
privacidade e a imagem dos mortos e seus familiares, ignorando as causas da tragédia:
a crise da segurança pública brasileira e a ausência de política pública de segurança.

A nua realidade desnudada nos acusa

Nós, juristas, por força do vício domesticador das instituições que nos
formam e nos forjam não nos damos conta de como somos arquitetos dessa
perversidade. Herdeiros de uma cultura jurídica negadora do “outro”, do
“marginalizado”, “do bárbaro e selvagem nativo” constrói-se uma inteligência
sequestrada não a serviço da defesa dos direitos da maioria da população brasileira,
mas do 1% mais rico que monopoliza não apenas os recursos, mas também a
política. Enquanto que no século XVI os donos da terra arregimentavam feitores
e suas chibatas para o controle de seus escravos, nos dias de hoje os intelectuais
domesticados e rasos formam um “exército de capangas” a serviço do poder.
FONTE: Disponível em: <https://editorakarywa.files.wordpress.com/2014/11/constitucionalismo-
direitos-humanos-justic3a7a-e-cidadania-na-amc3a9rica-latina.pdf>. Acesso em: 3 jan. 2018.

146
RESUMO DO TÓPICO 4
Neste tópico, você aprendeu que:

• O Direito Moderno vai construir-se também como um saber técnico-científico


acerca da norma.

• Positivismo Jurídico é a expressão que designa a concepção moderna de direito


segundo a qual o único direito válido é o direito estatal.

• O positivismo jurídico vai encontrar na codificação moderna a maior expressão


de racionalidade e previsibilidade.

• Para o Direito moderno há uma aproximação entre: Direito e Lei.

147
AUTOATIVIDADE

A fim de fixar melhor o estudo realizado, considere a figura abaixo.

FONTE: Disponível em: <http://rafazanatta.blogspot.com.br/2012/11/em-


defesa-da-emancipacao.html>. Acesso em: 17 nov. 2017.

O que a “pichação” lhe sugere? De que forma significa uma crítica à


racionalidade moderna?

148
UNIDADE 3

A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO
DIREITO BRASILEIRO

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Neste momento você irá compreender a particularidade da história do di-
reito brasileiro. Os objetivos desta unidade são:

• identificar a origem moderna do direito brasileiro como parte do processo


de expansão colonial europeia;
• particularizar as distintas etapas políticas e jurídicas do Brasil, identifican-
do as características e elementos identificadores;
• compreender a construção do direito brasileiro contemporâneo e suas fun-
ções políticas e sociais;
• discutir os desafios do direito brasileiro contemporâneo frente à necessida-
de de garantir a ordem constitucional democrática.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em quatro tópicos. No decorrer da unidade você
encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – AS RAÍZES HISTÓRICAS DA CULTURA JURÍDICA BRASI-


LEIRA

TÓPICO 2 – A ORDEM JURÍDICA COLONIAL BRASILEIRA

TÓPICO 3 – O PROCESSO DE INDEPENDÊNCIA E A CONSTRUÇÃO DO


DIREITO NACIONAL

TÓPICO 4 – OS DESAFIOS DO DIREITO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

149
150
UNIDADE 3
TÓPICO 1

AS RAÍZES HISTÓRICAS DA CULTURA JURÍDICA BRASILEIRA

1 INTRODUÇÃO
Iniciaremos nosso estudo acerca do direito brasileiro buscando refletir
acerca da experiência histórica nacional, vivenciada a partir do século XVI,
discutindo a possiblidade de vislumbrar novas trajetórias, pactos e compromissos
exatamente em um momento em que se coloca a necessidade de repensar a cultura
jurídica brasileira. Nossa análise, desde um olhar decolonial, compreendendo a
reflexão sobre a experiência histórica do Brasil.

NOTA

Como veremos mais adiante nesta unidade, a palavra “decolonial” refere-se a uma
corrente de pensamento crítico que nasceu em fins do século XX e tem como característica
central a busca de novos paradigmas políticos e jurídicos construídos desde a realidade
de interesses locais, objetivando a construção de uma autonomia política e intelectual. O
termo “decolonial” é utilizado para designar estudos acerca das raízes históricas e políticas
das profundas desigualdades sociais dos povos e nações periféricas que foram áreas de
dominação e exploração histórica desde os séculos XIV e XV.

A origem do que atualmente entendemos por direito é produto de um


processo histórico inicial de colonização que acabou por construir um modelo,
um “padrão” de poder político e jurídico que marcou profundamente a cultura e
as relações de poderes nacionais.

É na tentativa de visibilizar os elementos que construíram a cultura


jurídica nacional que se pretende retomar brevemente sua construção histórica,
lembrando, como diz Antonio Carlos Wolkmer (2007, p. 1), que as retomadas
dos estudos históricos ganham significado quando: “[...] se tem em conta a
necessidade de repensar e reordenar uma tradição normativa, objetivando
depurar criticamente determinadas práticas sociais, fontes fundamentais e
experiências pretéritas que poderão, no presente, viabilizar o cenário para um
processo de conscientização e emancipação”.

151
UNIDADE 3 | A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO BRASILEIRO

E
IMPORTANT

Neste momento de estudo nossa pretensão é analisar a especificidade da cultura


jurídica no contexto histórico-político, delineado a partir da invenção do Brasil no século XVI.

2 O DIREITO INDÍGENA
Para iniciar nosso estudo, vamos voltar ao ano de 2000, quando haviam sido
passados 500 anos do “descobrimento” do Brasil. Na época, a filósofa Marilena
Chauí (2001, p. 57) descontrói o “mito do descobrimento Brasil” afirmando que,
assim como a América não estava à espera de Colombo, o Brasil não estava aqui
à espera de Cabral.

Antes de mais nada, diz Chauí, “Brasil” é uma invenção histórica e


cultural da metrópole portuguesa e parte do projeto do capitalismo mercantil
europeu, que simultaneamente alargavam as fronteiras do visível, trazendo
novas mercadorias, e as do invisível, novos semióforos.

NOTA

O termo “semióforo” é utilizado por Marilena Chauí para designar uma imagem
que vincula o visível ao invisível – ao imaginado – que permanece e é reproduzido pelas
elites intelectuais para dar sentido e vínculo entre o real e o imaginário. A invenção de uma
nação, em geral, passa por um processo de construção de semióforos, tais como “a vontade
de Deus”, “missão salvadora”, “obra de heróis” etc., e dessa forma a gênese histórica é negada
e esvaziada, tornando o irreal em real, nascendo o mito.
No caso do Brasil, o mito, o invisível, sempre foi o da “missão civilizadora dos europeus”!!!

Portanto, não foi a “vontade de Deus” que conduziu os súditos de Dom


Manuel até as terras brasileiras, mas sim os interesses econômicos da classe de
comerciantes europeus da época.

3 O DIREITO COLONIAL BRASILEIRO


As conquistas coloniais europeias do século XV aparecem como
desdobramento da expansão do capitalismo mercantil, constituindo o ponto de
partida para edificação do projeto da Modernidade.

152
TÓPICO 1 | AS RAÍZES HISTÓRICAS DA CULTURA JURÍDICA BRASILEIRA

Como já vimos na Unidade 2, “Modernidade” compreendida externamente,


desde o mundo não europeu, pode ser interpretada como construção do mito
criado a partir do século XV acerca da existência de um centro histórico mundial
portador de uma concepção política de ordem econômica, política e social
civilizadora: A Europa. Portanto, o projeto civilizador da modernidade trouxe
consigo relações de dominação desenvolvidas mundialmente desde o século XV,
alimentadas por um falso discurso legitimador de “progresso” linear e universal,
que para os povos colonizados significou dominação e extermínio.

Em síntese, a expansão colonialista europeia do século XV não resultou


da necessidade de ocupação de novos espaços por excesso populacional, mas
foi propositalmente provocada por uma burguesia comercial definida pelo
importante historiador Caio Prado Júnior (1975, p. 13) como “sedenta de lucros,
e que não encontrava em seu espaço pátrio satisfação à sua desmedida ambição”.

FIGURA 52 – INVASÃO DO NOVO MUNDO

FONTE: Disponível em: <https://acasadevidro.com/2012/09/25/a-america-nao-


foi-descoberta-a-invasao-europeia-do-novo-mundo-segundo-todorov>. Acesso
em: 25 nov. 2017.

DICAS

Esse é um interessante site que traz um breve resumo da obra: “A Conquista da


América – a questão do Outro”, de Tzvetan Todorov, publicada pela Editora Martins Fontes.
Leia! Você terá uma visão do “descobrimento” sob o ponto de vista da população dominada!
Link:<https://acasadevidro.com/2012/09/25/a-america-nao-foi-descoberta-a-invasao-
europeia-do-novo-mundo-segundo-todorov>. Acesso em: 25 nov. 2017.

153
UNIDADE 3 | A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO BRASILEIRO

4 AS ORDENAÇÕES DO REINO
Os diversos fatores políticos que culminaram com a ascensão ao trono
português da Casa de Aviz no século XIV favoreceram o fortalecimento da burguesia
comercial lusitana, que logo tratou de iniciar um movimento de expansão externa,
iniciada com a tomada de Ceuta em 1415, e desde então, não mais parou.

Alfredo Bosi (1993, p. 12) analisa a colonização brasileira distinguindo


dois processos colonizadores:
1. Aquele relacionado com o mero povoamento e o que conduz à
exploração do solo, relacionado à expansão populacional, entendido
como “ato de habitar e o ato de cultivar”.
2. E o processo iniciado a partir do século XVI no qual havia o acréscimo
de algo: um traço de dominação, de aventura, de conquista.

Entretanto, nem sempre o colonizador concebendo a si mesmo como um


simples conquistador.

Em 1556, quando era difundida a Lenda Negra sobre a colonização ibérica


na América, a Espanha proibia o uso das palavras conquista ou conquistadores,
impondo a substituição por descobrimento ou colonizadores.

Portanto, o processo de ocupação, ironicamente chamado de descobrimento,


não ocorreu por expansão demográfica como na antiguidade havia ocorrido com
os gregos pelo Mediterrâneo entre os séculos VIII e VI a.C. “[...] ela é a resolução de
carências e conflitos de matriz e uma tentativa de retomar, sob novas condições, o
domínio sobre a natureza e o semelhante que tem acompanhado universalmente o
chamado processo civilizatório” (BOSI, 1993, p. 13).

Em tal processo era necessário cultivar não apenas a terra, mas “cultivar”
seres humanos, práticas, símbolos, valores capazes de garantir um estado de
coexistência social, enfim, uma cultura.

Sem dúvida, a produção da cultura colonialista exigiu o domínio de


outros humanos, de sujeitá-los a padrões de dominação. Talvez essa seja uma
possibilidade de se compreender por que a partir do século XVIII as noções de
cultura e progresso se confundem e se misturam. Assim, colonizar era cultivar
a terra e os seres humanos.

Neste sentido, o processo de expansão comercial europeu, chamado de


“colonização”, se insere no momento de superação do modo de vida medieval,
quando um grupo ascendente e enriquecido – burguesia mercantil – orquestra as
transformações econômicas, sociais e políticas que culminam com a formação dos
Estados Modernos e consolidação do capitalismo.

Assim, os elementos essenciais para a compreensão da relação colônia-


metrópole, com a consequente criação de um aparato jurídico, são, entre outros:

154
TÓPICO 1 | AS RAÍZES HISTÓRICAS DA CULTURA JURÍDICA BRASILEIRA

• A expansão da economia europeia mercantil.


• O esforço dos Estados Modernos metropolitanos em transformar as colônias
em instrumentos de expansão desse poder.

Na transformação dos antigos reinos medievais em Estados modernos,


unificados e centralizados, abrem-se os caminhos ultramarinos que permitem a
inserção desses Estados no processo de exploração, viabilizando a construção de
seus impérios coloniais.

Portanto, a “moldura do sistema” que explica a organização produtiva


colonial e suas implicações na vida social não se limita à atividade colonizadora,
mas de ajustar a colônia de forma especializada, “concentrando os fatores na
produção de alguns poucos produtos comerciáveis na Europa, as áreas coloniais se
constituem ao mesmo tempo em outros tantos centros consumidores dos produtos
europeus” (NOVAIS, 1976, p. 58). Com esta relação monopolizadora criam-se os
mecanismos de apropriação e concentração dos lucros. Assim, a invenção do Brasil
teve um sentido. Brasil, no entendimento de Stuart B. Schwartz (2000, p. 105):
[...] desde sua origem tem sido tanto uma ideia como um lugar.
Significou coisas diferentes para pessoas diferentes e o próprio
termo tem sido redefinido e reinterpretado para refletir as diferentes
discrepâncias entre pessoas de variadas extrações e posições sociais.
O Brasil, enquanto ideia, foi frequentemente mais um projeto do que
uma realidade, às vezes geográfica, às vezes nacionais ou até social.

O projeto do colonizador conferiu um sentido à invenção brasileira:


tratava-se de instalar uma produção semicapitalista, em larga escala.

A grande lavoura açucareira, pelo modo de exploração, nas palavras de


Sérgio Buarque de Holanda (2000, p. 49), “é de natureza perdulária e caracteriza
o objetivo metropolitano: servirem-se da terra ao máximo, mas sem muitos
sacrifícios, como usufrutuários”.

Embora Portugal, desde o século XVII, ter sido incorporado no sistema


capitalista como periférico, sem ter assumido lugar central, chegando ele próprio
a ser um país dependente – sobretudo da Inglaterra –, a subordinação colonial
constitui-se no elemento central de construção da identidade cultural brasileira,
reproduzindo as relações de poder de uma metrópole periférica e subalterna.

Por esta razão, pode-se afirmar que o colonialismo português foi


diferenciando e se caracteriza por ter sido manipulado segundo os desejos e
necessidades de outras metrópoles, sobretudo a inglesa.

Bosi (1993, p. 23-25), na tentativa de mapeamento da formação econômica-


social do Brasil-Colônia, descreve como características fundamentais da ordem
então estabelecida os seguintes aspectos:

155
UNIDADE 3 | A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO BRASILEIRO

1. A predominância de uma camada de latifundiários com interesses atrelados


a grupos mercantis europeus, o que permitia dependência estrutural,
impedindo a dinamização de um capitalismo mais avançado internamente,
reproduzindo-se um modelo capitalista colonial específico, limitado a uma
esfera mercantil dependente.
2. Como parte da lógica latifundiária vinculada aos interesses dos traficantes
negreiros africanos, a força de trabalho foi constituída essencialmente por
escravos cuja única alternativa não era a passagem para o trabalho assalariado,
mas a fuga e resistência nos quilombos, ou ainda, como parte de uma lógica
perversa, a alforria, alternativa para a resistência, representava o ingresso
numa vida marginal ou de condição de submissão como agregado. A condição
foi sempre da dependência e exploração.
3. A estrutura política-jurídica vai sempre representar os interesses dos
proprietários locais, os homens bons, mas com poder limitado aos interesses
reais. A competência de nomear o governador geral com mandato de quatro anos
era da coroa portuguesa, sendo incluído no poder do governador a competência
militar e administrativa segundo critérios determinados pelos regimentos,
cartas e ordens régias. O corpo burocrático de funcionários reais – provedores,
ouvidores, procuradores, intendentes... – tem a ação controlada diretamente
por Lisboa (a partir de 1642 pelo Conselho Ultramarino). Com o avanço da
estrutura colonial, vão sendo transferidos magistrados metropolitanos, juízes
de fora, que se sobrepunham aos eleitos nas vilas. A permanente tensão entre
os interesses locais e metropolitanos será o fator de crise instalada a partir
do século XVIII, que com a independência como tentativa de sua superação,
servirá de fortalecimento do mandonismo local legitimado pelos bacharéis que
servirão de representantes dos donos do poder.
4. O exercício de cidadania é limitado tanto pelo Estado Absolutista Metropolitano
como pelo poder interno, inexistindo qualquer representação ou mecanismo
de garantia para o conjunto da população, situação que pouco se altera com a
independência, pois o que se instala é um modelo político censitário e indireto.
5. A cultura eclesiástica, sobretudo a jesuíta empenhada numa prática missionária
supranacional, ganha espaço no início do processo de colonização, quando a
moeda corrente era a ideia do papel evangelizador da expansão metropolitana.
Posteriormente, de uma atividade marginal irá sucumbir sob a pressão do
avanço bandeirante e do exército metropolitano, restando, assim, a função
educacional junto aos filhos das elites locais.
6. A formação de uma cultura letrada estamental que não permitia a mobilidade
vertical, com raros casos de apadrinhamento, predominando, assim, uma
massa analfabeta caracterizando uma rígida linha divisória entre uma cultura
oficial e uma cultura popular.

A partir desse “mapeamento” é possível compreender as raízes da cultura


brasileira como resultado de uma lógica agrária, latifundiária e escravista, marcada
por uma imensa distância entre o que exigiam da terra e o que a ela davam em troca.

156
TÓPICO 1 | AS RAÍZES HISTÓRICAS DA CULTURA JURÍDICA BRASILEIRA

A ilimitada exploração interna como regra necessária para a submissão


externa. Portanto, a gestão da colônia deveria ser feita através da metrópole cujo
“norte” foi a efetivação dos princípios mercantilistas e o núcleo a formação e
manutenção de um sistema monopolista.

Como lembra Wolkmer (2007, p. 38), era a forma encontrada pela metrópole
de impedir que outras nações europeias “pusessem em risco, com a concorrência,
aqueles privilégios advindos da restrição comercial, tão lucrativas aos comerciantes
portugueses que não encontravam, no seu espaço, satisfação para sua ambição”.

Portanto, como parte integrante do universo colonial brasileiro formou-se um


tipo de poder político e jurídico destituído de qualquer identidade com os interesses
internos, já que se formou com a incorporação do aparato burocrático e profissional
lusitano. Por outras palavras, como extensão da coroa portuguesa constituiu-se uma
forma de poder legitimada pelos senhores da terra, os donos locais do poder.

157
RESUMO DO TÓPICO 1

Neste tópico, você aprendeu que:

• As bases históricas do direito brasileiro foram definidas a partir do processo


moderno de colonização.

• A colonização brasileira teve como sentido promover a acumulação de lucros


na metrópole portuguesa, e por esta razão, a ordem política e jurídica nacional
foi elaborada a partir desse interesse externo.

• A implantação de um modelo de produção na colônia brasileira a partir


do século XVI foi sustentada por um modelo político e jurídico específico,
inicialmente chamado “direito brasileiro”.

158
AUTOATIVIDADE

Leia com atenção o texto abaixo e responda à questão proposta.

O eurocentrismo é a perspectiva de conhecimento que foi elaborada


sistematicamente a partir do século XVII na Europa, como expressão e como
parte do processo de eurocentralização do padrão de poder colonial/moderno/
capitalista. Em outros termos, como expressão das experiências de colonialismo
e de colonialidade do poder, das necessidades e experiências do capitalismo
e da eurocentralização de tal padrão de poder. Foi mundialmente imposta e
admitida nos séculos seguintes, como a única racionalidade legítima.

Em todo caso, como a racionalidade hegemônica, o modo dominante


de produção de conhecimento. Para o que interessa aqui, entre seus elementos
principais é pertinente destacar, sobretudo, o dualismo radical entre “razão” e
“corpo” e entre “sujeito” e “objeto” na produção do conhecimento; tal dualismo
radical está associado à propensão reducionista e homogeneizante de seu modo
de definir e identificar, sobretudo na percepção da experiência social, seja em
sua versão a-histórica, que percebe isolados ou separados os fenômenos ou os
objetos e não requer por consequência nenhuma ideia de totalidade, seja na que
admite uma ideia de totalidade evolucionista, orgânica ou sistêmica, inclusive
a que pressupõe um macro sujeito histórico. Essa perspectiva de conhecimento
está, atualmente, em um de seus mais abertos períodos de crise, como o está
toda a versão eurocêntrica da modernidade.
FONTE: QUIJANO, Aníbal. Colonialidade, poder, globalização e democracia. In: Revista Novos
Rumos. Ano 17, n. 37, 2002, p. 4-25.

Considerando o estudo realizado e a leitura do texto acima, responda


à seguinte questão: É possível estabelecer alguma relação entre o processo de
colonização brasileiro do século XVI e a construção do conhecimento jurídico
nacional? Fundamente sua resposta.

159
160
UNIDADE 3
TÓPICO 2

A ORDEM JURÍDICA COLONIAL BRASILEIRA

1 INTRODUÇÃO
Como vimos, Portugal, no século XV, juntamente a demais países
europeus, como Espanha e Inglaterra, haviam reunido condições técnicas, bem
como interesses econômicos e políticos que permitiram o processo de expansão
do domínio europeu.

É evidente que havia uma grande disputa entre os reinos metropolitanos


da época sobre as terras “descobertas” e as “a serem descobertas”, especialmente
sobre as riquezas que possuíam. Seguramente, por esta razão, as terras brasileiras
já eram alvo de interesse, sobretudo, de Espanha e Portugal, o que explica a
existência de Tratados entre tais países mesmo antes da “chegada” de Pedro
Álvares Cabral, em 22 de abril de 1500. Destacam-se os seguintes Tratados:

1. Tratado de Toledo: celebrado em 6 de março de 1480, que dava a Portugal a


exclusividade sobre as terras e águas ao sul das Ilhas Canárias.
2. Bula Inter Coetera: de 4 de maio de 1493, expedida pelo Papa Alexandre VI
que conferia à Espanha o direito exclusivo sobre todas as terras que estivessem
a oeste de uma linha imaginária a 100 léguas de Açores e Cabo Verde.
3. Tratado de Tordesilhas: de 7 de junho de 1494, que estabeleceu um meridiano
divisório a 370 léguas a oeste das Ilhas de Cabo Verde, sendo a leste pertencente
a Portugal e oeste a Espanha.

FIGURA 53 – TRATADO DE TORDESILHAS

FONTE: Disponível em: <http://brasilescola.uol.com.br/historiab/tratado-


de-tordesilhas.htm>. Acesso em: 25 nov. 2017.

161
UNIDADE 3 | A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO BRASILEIRO

Portanto, a “descoberta” do Brasil não foi “mero acaso”, mas parte de


um projeto de conquista. Porém, para os portugueses, ávidos por ouro, prata
e mercadorias que pudessem alimentar o comércio europeu, encontraram uma
população dispersa que vivia de caça e coleta.

Na clássica obra “O Povo Brasileiro”, o antropólogo Darcy Ribeiro


descreve o contato entre os indígenas brasileiros e os portugueses:

Os índios perceberam a chegada do europeu como um acontecimento


espantoso, só assimilável em sua visão mítica do mundo. Seriam gente de
seu deus sol, o criador – Maíra
–, que vinha milagrosamente sobre as ondas
do mar grosso. Não havia como interpretar seus desígnios, tanto podiam
ser ferozes como pacíficos, espoliadores ou dadores. Provavelmente seriam
pessoas generosas, achavam os índios.


Mesmo porque no seu mundo, mais belo era dar que receber. Ali,
ninguém jamais espoliara ninguém e a pessoa alguma se negava, louvor por
sua bravura e criatividade. Visivelmente, os recém‐chegados, saídos do mar,
eram feios, fétidos e infectos. Não havia como negá‐lo. É certo que, depois do
banho e da comida, melhoraram de aspecto e de modos. Maiores terão sido,
provavelmente, as esperanças do que os temores daqueles primeiros índios.


Tanto assim é que muitos deles embarcaram confiantes nas primeiras


naus, crendo que seriam levados a Terras sem Males, morada de Maíra.

Pouco mais tarde, essa visão idílica se dissipa. Nos anos seguintes, se
anula e reverte‐se no seu contrário: os índios começam a ver a hecatombe que
caíra sobre eles. Maíra, seu deus, estaria morto? Como explicar que seu povo
predileto sofresse tamanhas provações? Tão espantosas e terríveis eram elas,
que para muitos índios melhor fora morrer do que viver.

Mais tarde, com a destruição das bases da vida social indígena, a


negação de todos os seus valores, o despojo, o cativeiro, muitíssimos índios
deitavam em suas redes e se deixavam morrer, como só eles têm o poder de
fazer. Morriam de tristeza, certos de que todo o futuro possível seria a negação
mais horrível do passado, uma vida indigna de ser vivida por gente verdadeira.

FONTE: RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro – a formação e o sentido do Brasil. 2. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995, p. 42-43.

162
TÓPICO 2 | A ORDEM JURÍDICA COLONIAL BRASILEIRA

Nas palavras do referido autor, não é difícil perceber a razão da aparente


fácil dominação do invasor: os indígenas eram gentis, não viviam movidos pela
cobiça e foram facilmente atraídos pelos facões, espelhos e bugigangas com que
eram enganados.

O resultado foi fatal! Nessa história houve perdedores e não foram os


invasores portugueses!!!

Sem o menor pudor, os nativos foram considerados objetos desprovidos


de qualquer direito. As imensas massas de nações indígenas tiveram exterminadas
suas organizações sociais e os invasores impuseram seu sistema jurídico, pouco ou
nada restando, no caso do Brasil, dos costumes ancestrais de gestão de conflitos.

A enorme distância da metrópole, a falta de acesso e a absoluta falta de


estrutura administrativa eram fatores que iam fortalecendo o poder dos donos do
poder local. Seguramente é por esta razão que desde nossa origem não há uma
clara distinção entre o poder público e poder privado por parte das elites.

2 A ESTRUTURA JURÍDICA DO BRASIL COLÔNIA


No primeiro período da colonização, que vai até 1549, a preocupação
central era a de garantir a posse da terra, tendo sido adotado um arcaico sistema
chamado de Capitanias Hereditárias, constituído pela doação de extensas faixas
de terra a nobres portugueses que quiseram, por conta própria, explorar a terra
e promover o povoamento. O sistema era feudal e toda administração jurídica
e política ficava sob a responsabilidade do donatário. Na verdade, a “gestão da
justiça” era marcada por abusos e arbitrariedades sem qualquer burocratização
de procedimentos, uma vez que, na prática, era o dono da terra que legislava,
julgava e aplicava as penas que bem entendesse.

Seguramente, esse ilimitado arbítrio e ausência de controle é um dos


fatores que explica o fracasso do sistema de capitanias, com exceção das de São
Vicente e Pernambuco.

Em 1549, na tentativa de resgatar o controle é instaurado pela coroa o


Governo Geral, que assume amplas responsabilidades burocráticas e fiscais,
tendo no comando o Governador Geral, possibilitando a formação de uma tímida
justiça colonial administrada por um pequeno grupo de burocratas que vieram a
serviço do governador.

A instituição do sistema de Governo-Geral, como forma de centralizar o


poder e solucionar o problema do fracasso do sistema de capitanias e a invasão
estrangeira, aumenta a possibilidade de criação de um corpo burocrático,
destacando-se o Ouvidor-Geral como símbolo da justiça local.

Durante todo o período colonial vigorava o sistema jurídico metropolitano,


ou seja, as Ordenações Reais, compostas pelas seguintes Ordenações:

163
UNIDADE 3 | A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO BRASILEIRO

1. Ordenações Afonsinas: concluídas em 1446, foram elaboradas por ordem de


D. João I da Dinastia de Avis e eram divididas em cinco livros:
o Livro I: relativo aos regimentos dos cargos públicos (régios e municipais),
compreendendo governo, fazenda, justiça e exército.
o Livro II: Direito eclesiástico, jurisdição e privilégio dos donatários,
prerrogativa da nobreza e estatuto dos mouros e judeus.
o Livro III: Processo civil.
o Livro IV: Direito Civil.
o Livro V: Direito e Processo Penal.
2. Ordenações Manuelinas: concluídas em 1521, trataram de incorporar as
modificações advindas do processo de expansão colonial e as novas leis
que continuaram a ser editadas. Também eram compostas por cinco Livros,
tratando mais diretamente de direito marítimo, contratos e mercadores, sem
mudanças no direito e sistema penal, que permanecia um sistema de torturas
e horrores medievais, com aplicação de tortura e penas corporais como a pena
de morte.
3. Ordenações Filipinas: de 1603, representa a unificação das Ordenações
anteriores com pequenas inclusões de leis extravagantes.

E
IMPORTANT

Mudança significativa apenas ocorre na fase colonial em 1769, com as reformas


feitas por Marquês de Pombal – reformas pombalinas –, cujo objetivo era o de estabelecer
regras gerais para uniformizar a interpretação e aplicação das leis em casos de omissão,
lacunas ou imprecisão nas leis reais. Chamada também de Lei da Boa Razão, a finalidade era
manter as diferenças entre Portugal e suas colônias.

A administração jurídica brasileira é marcada com a chegada do primeiro


Ouvidor-Geral, Pero Borges, em 1549. Nas palavras de Schwartz (1979), ao
contrário de criar uma administração centralizada, teve sua função sobreposta à
estrutura existente de magistrados e ouvidores designados pelos donatários. O
resultado foi um sistema de controle exercido pelo rei e pelo donatário, ao mesmo
tempo, confuso e muitas vezes inoperante.

ATENCAO

Há de se lembrar que, por orientação das Cartas de Doação, o cargo de ouvidor,


primeira autoridade da justiça colonial, era designado pelos donatários das capitanias por um
prazo renovável de três anos, constituindo-se a administração da justiça como representação
dos donatários nas questões cíveis e criminais.

164
TÓPICO 2 | A ORDEM JURÍDICA COLONIAL BRASILEIRA

A justiça colonial encontrada pelo ouvidor-geral Pero Borges é descrita


por Schwartz (1979, p. 24) da seguinte maneira:
Grassavam o abuso administrativo e a incompetência. Por exemplo,
durante a ausência do donatário em Ilhéus, Francisco Romero, um
espanhol fazia as vezes de capitão e ouvidor. Embora fosse um bom
homem e soldado experiente, Romero era inadequado para o cargo
de juiz, pois é ignorante e muito pobre, o que muitas vezes faz crer
aos homens o que não devem. Borges recomendou insistentemente
que a Coroa forçasse os donatários a selecionar seus ouvidores
dentre homens treinados para servir à lei. Sublinhou que em Lisboa,
um magistrado treinado e com grande experiência presidia poucas
audiências, enquanto no Brasil, um analfabeto podia proferir muitas
sentenças, desrespeitando todos os princípios legais.

A incompetência e inoperância judicial colonial brasileira que contribuiu


para a prática de excessos e ilegalidades de toda espécie pode ser compreendida não
apenas pela permissividade metropolitana e local, mas também pela dificuldade
de acesso às áreas remotas, o que foi contribuindo para um mandonismo local,
situação que preocupava os missionários jesuítas, sobretudo a exploração das
comunidades indígenas.

Schwartz (1979) ainda chama a atenção para o fato de que a lei portuguesa
vigente no Brasil dizia respeito somente aos europeus, praticamente inexistindo
proteção jurídica para as relações entre os europeus e os indígenas. Tal situação é
descrita pelo autor ao se referir ao que o missionário jesuíta Manoel da Nóbrega
descreve como punição imposta a um índio que havia assassinado um português:
foi colocado na boca de um canhão e literalmente feito em pedaços. Assim era
feita a justiça na colônia!!!

Rapidamente os nativos perceberam para qual lado pendia a balança


da justiça, porque não havia limites para o abuso e arbítrio dos colonizadores,
encontrando apenas algum refúgio nas missões jesuítas.

Entretanto, apesar das profundas contradições na administração da


justiça colonial, já por volta de 1580 havia um sistema mais centralizado, o que
pode ser compreendido como reflexo do avanço da indústria açucareira em
Pernambuco e Bahia.

Na medida em que se expandia a lavoura monocultora açucareira, cresciam


a população e os conflitos, o que vinha a exigir maior intervenção jurídica para
a manutenção da prosperidade local. O momento político que então se sucedeu
com a ascensão ao trono de Felipe II da Espanha (1580) é marcado por uma maior
atenção à justiça colonial, fruto, possivelmente, da personalidade burocrática e
precisão administrativa imperial, traço que transparece com a nova codificação
empreendida, já que a complexa legislação portuguesa era herdeira dos códigos
romanos e visigodos. Leis antigas e injustas que na prática eram desrespeitadas, o
que permitia a impunidade para os poderosos (SCHWARTZ, 1979).

165
UNIDADE 3 | A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO BRASILEIRO

FIGURA 54 – PELOURINHO: SÍMBOLO DA “JUSTIÇA” COLONIAL

FONTE: Disponível em: <http://www.redebrasilatual.com.br/revistas/64/curta-


essa-dica/escravos.jpg/image_view_fullscreen>. Acesso em: 25 nov. 2017.

Na lógica metropolitana, legislar era garantir a justiça através de prêmios ou


castigos, como atitude paternal do monarca em relação a seus súditos. A lei emanada
do pai – do Rei – é justa porque, mesmo dura, pretende corrigi-los e salvá-los.

Contudo, na distante colônia o “poder paternal” do monarca era exercido


como força aliada à autoridade delegada, o que produz um sistema de pouca
efetividade, marcado pelo desmando e corrupção local.

A importância da colônia sendo crescente e visível já no início do século


XVII explica a criação do Tribunal de Relação no Brasil, cuja primeira tarefa era
a de selecionar um grupo de magistrados treinados e dispostos a enfrentar as
condições adversas na colônia.

DICAS

Sugere-se a “visita” ao site do Arquivo Nacional do Ministério da Justiça, onde


você poderá encontrar a história do Judiciário no Brasil. Disponível em: <http://www.
arquivonacional.gov.br/br/>. Acesso em: 5 dez. 2017.

A estrutura jurídica inicia no Brasil nas mãos dos capitães-donatários, que


recebiam amplos poderes para administrar a economia e organizar a vida civil na
terra. Com o fracasso do sistema de capitanias hereditárias é criado o sistema de
governo-geral, que incluía a figura do ouvidor-geral, que era o cargo mais elevado na
hierarquia judiciária da colônia, buscando-se, assim, diminuir o poder dos capitães-
donatários, até que em 14 de abril de 1628 revoga-se, expressamente, o privilégio
dos capitães de fazerem justiça em suas terras. O ouvidor recebia recursos vindos de
ouvidores das comarcas, mais conhecida por ação nova, como jurisdição originária,

166
TÓPICO 2 | A ORDEM JURÍDICA COLONIAL BRASILEIRA

conflitos que se dessem a uma distância de dez léguas de sua sede ou estrada. De suas
decisões era possível recorrer à Casa de Suplicação em Lisboa. Embora tenha sido
criado pelo Regimento de 1587, apenas em março de 1609 se instalou propriamente
um tribunal régio no Brasil: o Tribunal de Relação da Bahia, que era constituído
por dez desembargadores, todos letrados – um chanceler, três desembargadores de
agravos, um ouvidor-geral do cível e do crime, um juiz dos feitos da coroa, fazenda
e fisco, um provedor de defuntos e resíduos, dois desembargadores extravagantes e
o governador-geral, que teria assento como Governador da Relação. Esses tribunais
deram origem aos atuais Tribunais de Justiça dos Estados brasileiros.

FIGURA 55 – PAÇO DO TRIBUNAL DE RELAÇÃO DO RIO DE JANEIRO – 1751

FONTE: Disponível em: <http://linux.an.gov.br/mapa/?p=2776>. Acesso em: 25 nov. 2017.

O perfil era o de homens aptos e experientes que iriam presidir o Tribunal


brasileiro subordinado à Casa de Suplicação, desfrutando dos mesmos privilégios
dos desembargadores metropolitanos.

NOTA

A Casa de Suplicação era o tribunal diretamente ligado ao poder real que inicialmente
incluía as atividades do Desembargo do Paço. Com a reforma das Ordenações aprovadas em
1595, mas em vigor em 1603, atualmente conhecida como Ordenações Filipinas, a administração
metropolitana era regida pelo monarca que poderia ser substituído por uma junta de governadores
e contava com uma série de órgãos de apoio, a começar pelo Conselho de Estado, que se reunia
ocasionalmente pela convocação do rei para assessorá-lo em questões complexas. O mais
constante era o Desembargo do Paço, que se reunia diariamente e às sextas despachavam com
o rei. Além de exercer funções consultivas, julgava as questões que, por causa de foros especiais,
superavam a alçada da Casa de Suplicação, os recursos às decisões da mesma e os conflitos de
jurisdição entre ela e a Casa de Cível. Eram de competência exclusiva do Desembargo do Paço os
pedidos de legitimação, restituição de fama, findas, graças e perdões, emancipação de menores
etc. Junto à Casa de Suplicação e ao Desembargo do Paço existia um tribunal especial, com
competência privativa em causas que envolvessem a Igreja ou os membros das ordens militares-
religiosas. Era a Mesa da Consciência e Ordens, que também assessorava o Rei.

167
UNIDADE 3 | A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO BRASILEIRO

Entretanto, conforme narra Wolkmer (2007), apesar do Tribunal de


Relação ter sido oficializado em 7 de março de 1609, com a invasão holandesa
foi abolido em 1626, e restaurado posteriormente em 1652. A partir do século
seguinte expandem-se os Tribunais de Relação no Brasil – Rio de Janeiro em 1751,
Maranhão em 1812, Pernambuco em 1821.

Nas palavras de Schwartz (1979, p. 58), “os burocratas que iriam constituir
a magistratura brasileira eram um grupo muito bem particularizado que
representava a espinha dorsal do governo real”.

Para serem nomeados a Desembargo do Paço exigia-se o requisito de ser


formado em Direito por Coimbra e ter exercido a profissão por, no mínimo, dois
anos. Porém, para o ingresso na Universidade deveria ser o futuro bacharel de
“raça pura” – com limites de carreira para os que tivessem a “mancha” de serem
“cristãos novos” –, ortodoxos na sua religião e politicamente leais, originando a
maioria da pequena nobreza e da classe de burocratas.

A prova de conhecimento jurídico para a inscrição no quadro de


magistrado era precedida de inúmeras declarações testemunhais sobre a vida
pregressa, atividades e reputação do candidato, mais especificamente, buscava-se
a garantia de que não havia “contaminação de sangue de mouro, mulato, judeu ou
qualquer outra raça infecta” (SCHWARTZ, 1979, p. 58). Ainda a comprovação de
que os pais e avós, no momento da nomeação, não tivessem atividades manuais,
artesanais e prática de comércio varejista, exceto se houvessem pertencido ao
senado da Câmara ou outro órgão de privilégio especial no funcionalismo real.

Os magistrados coloniais, graças à política da coroa portuguesa, formavam


no século XVII um grupo de burocratas elitizado – fiéis servidores reais – movidos
por generosas promoções e interesses pessoais.

O cargo representava prestígio, dinheiro e status, o que acaba por construir


a magistratura como um ramo da burocracia real e ao mesmo tempo um grupo
social específico. Os juízes europeus, sob a proteção da coroa, emergiram como
um grupo que se viu com o direito de exigir privilégios e símbolos que até então
pertenciam à nobreza, chegando a criar justificativas para sua nobreza.

No século XVIII, na Europa Ocidental, os juristas argumentavam que o


conhecimento das leis literalmente enobrece o indivíduo e, portanto, deveriam
ser considerados iguais aos nobres, e a coroa, como detentora dos símbolos que
garantiam a ascensão social, para vincular os magistrados a seus interesses, fazia
concessões. Entretanto, no império português, chama atenção Schwartz (1979), a
magistratura não se tornou uma nobreza distinta por seu cargo ou função.

Individualmente, o magistrado poderia ascender à nobreza pelo


casamento ou por título conferido pela coroa, mas não chegando a competir
com a aristocracia, porque seus interesses eram ditados pelo rei, no entanto isso
não impediu que na colônia brasileira se formasse um grupo característico de
burocratas da justiça que souberam aliar as funções e fórmulas burocráticas às

168
TÓPICO 2 | A ORDEM JURÍDICA COLONIAL BRASILEIRA

relações pessoais de parentesco. É o abrasileiramento da burocracia, descrito como


procedimentos pessoais e profissionais que se confundem e se autossustentam.

Ao chegar na colônia, além de sua família, o juiz poderia agregar parentes,


afilhados, empregados, escravos; enfim, um grupo de pessoas que serviam como
intermediários entre o magistrado e as demais pessoas da sociedade, o que
permitia uma “facilitação de caminho” até o juiz. Por outro lado, ao estender
sua proteção a um grupo próximo, o magistrado também cumpria parte de seu
papel profissional: protetor, padrinho, marido e pai. E, é claro, sem deixar de
lado sua obrigação religiosa, o que lhe dava vantagens sociais. Por essa razão, os
magistrados tornavam-se benfeitores de igrejas, conventos e ordens religiosas,
e não raras vezes, na condição de ilustres funcionários reais, assumiam papéis
de liderança. Os pesados encargos financeiros de uma vida de ostentação não
podiam ser arcados com os já altos salários e gratificações recebidas.

Rapidamente os juristas brasileiros perdiam interesse intelectual, apesar


de sua formação universitária. Não há entre os magistrados brasileiros da época
colonial autores cujos trabalhos são lembrados, apesar de estarem sempre
presentes em reuniões intelectuais.

Sem dúvida, a melhor leitura sobre os magistrados no Brasil colonial é de


Gregório de Mattos, que com os seguintes versos descreve a justiça:

E que justiça a resguarda?... Bastarda.


É grátis distribuída?... Vendida.
Valha-nos Deus, o que custa O que El-Rei nos dá de graça.
Que anda a Justiça na praça Bastarda, vendida, injusta.

Seu interesse particular pela administração da justiça no Brasil é por ter


sido letrado em Coimbra e magistrado real em Portugal. Seus versos não mostram
os juízes como seres sem rosto, mas como pessoas em seu cotidiano, envolvidos
essencialmente em duas esferas: poder e corrupção. Seus versos renderam-lhe a
deportação para Angola, pois não poupava cáusticas palavras para descrever o
sentido do “abrasileiramento da magistratura real”.

Apesar dos versos do “Boca do Inferno”, como era chamado Gregório por
seus inimigos, não representarem perigo para a autoridade e o cargo exercido pelos
juízes, deixavam evidente o nível incontrolável de corrupção que havia atingido o
exercício da justiça no Brasil em fins do século XVII. Descrevia os burocratas judiciais
– juízes, escrivães, tabeliães... – como pedaços cortados de um mesmo tecido.

Apesar de serem sempre acusações pessoais e não ao sistema como um


todo, seus versos deixavam evidente o comprometimento no exercício da justiça.

Por essa razão, dizia que um magistrado recebia suborno tanto do acusado
como do acusador e por isso era mais fácil chegar o “juízo final do que a sentença”.

169
UNIDADE 3 | A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO BRASILEIRO

NOTA

Gregório de Mattos e Guerra, conhecido como “Boca do Inferno”, nasceu na Bahia


em 23/12/1636 em uma família de proprietários rurais, empreiteiros de obras e funcionários
administrativos de ascendência portuguesa. Estudou no Colégio dos Jesuítas da Bahia até 1642,
quando vai para a Universidade de Coimbra, onde se forma em Cânones em 1661. Após atestar
ser “puro de sangue” é nomeado juiz de fora em Alcácer do Sal, em 1663. Teve brilhante carreira
como magistrado em Lisboa, reconhecido com sentenças publicadas pelo jurisconsulto
Emmanuel Alvarez Pegas. Retorna para o Brasil em 1683, depois de 30 anos, para assumir o
cargo de Desembargador da Relação Eclesiástica e, mais tarde, tesoureiro-mor da Sé, um ano
após ter tomado ordens menores. Entretanto, é destituído do cargo por se recusar a usar batina
e acatar ordens superiores. Começa então a satirizar os costumes e as classes sociais baianas,
as quais chamará de “canalha infernal”. Escreve com letras corrosivas e eróticas. Por sua vida livre
de “homem solto sem modos cristãos” é denunciado à Inquisição em Lisboa em 1685 por falar
mal de Jesus Cristo e não tirar o barrete da cabeça quando passa uma procissão em sua frente,
mas o feito não tem prosseguimento. Por seus poemas e sátiras contra o governador Antonio
Luiz Gonçalves da Câmara Coutinho, a quem chamava de “fanchono beato”, é ameaçado de
morte. Até que um complô o prende e envia-o a Angola sem direito de voltar à Bahia. Em
Luanda, no ano de 1694, auxilia o governo local a combater uma conspiração militar e em troca
recebe a permissão para voltar ao Brasil, mas para Recife, devendo ficar longe da Bahia e de
seus desafetos. Morre em 1695 vítima de uma febre contraída em Angola.

FONTE: Disponível em: <http://www.academia.org.


br/academicos/gregorio-de-matos/biografia>. Acesso
em: 25 nov. 2017.

Pelo relato da época, o exercício da justiça brasileira era venal e facilmente


subvertido. Os critérios de análise processual eram pessoais, econômicos e sociais,
sem que isso, entretanto, comprometesse os interesses reais, funcionando como
uma certa flexibilização frente à dureza da estrutura metropolitana.

Quanto mais se expandia a colônia, mais cresciam a burocratização e as


oportunidades de corrupção, o que não significava, necessariamente, ilegalidade,
mas o uso de artifícios jurídicos para benefício próprio ou de um apadrinhado, ou
mesmo, o uso do cargo para obter vantagens pessoais diretas ou indiretas.

170
TÓPICO 2 | A ORDEM JURÍDICA COLONIAL BRASILEIRA

Raimundo Faoro (2000) demonstra que a minoria colonial, formada por


um quadro administrativo, e o estado-maior de domínio comandam, controlam e
disciplinam a economia e os núcleos humanos, tornando-se esses efetivamente os
donos do poder. As formas jurídicas vão servindo de freio à emancipação colonial.
Os juristas, como uma espécie de “aristocracia” local, comandavam a vida na
colônia, fazendo de seus procedimentos instrumentos eficientes de dominação e
perpetuação da ordem exploradora.

Há que se reconhecer que o aparato jurídico-político colonial significou a


transposição da estrutura metropolitana para a colônia, porém, com traços muito
peculiares, a exemplo da justaposição da justiça-oficial e da privada exercida nos
sertões e nos latifúndios, cujo poder não era contestado. A justiça local, que servia
de fortalecimento do mandonismo, sempre foi reconhecida como uma espécie de
contrapeso à ineficiência da justiça real, à venalidade dos burocratas e à corrupção
dos magistrados.

Ainda cabe lembrar o papel desempenhado pela Igreja Católica na


administração da justiça com seu Tribunal do Santo Ofício. Nas palavras de Anita
Novinsky (1983, p. 90), serviu, mais do que instrumento religioso:
como um sistema político de dominação e onde não havia lugar para
os judeus, cristãos novos, muçulmanos, negros, mulatos, ciganos,
heterodoxos ou contestadores de toda espécie. Através de seu sistema
de ameaças, [...] de perseguição [...] de tortura, a Inquisição garantiu
a continuidade da estrutura social do antigo regime, e a religião
preencheu sua função político-ideológica.

Apesar de não ter havido um Tribunal Inquisitorial no Brasil, ele existia


como presença possível, pois sempre que necessário, os acusados brasileiros eram
julgados pelo Tribunal Inquisitorial em Lisboa.

As chamadas “Visitação do Santo Ofício” ocorreram na colônia brasileira,


sobretudo na fase de mineração de ouro, apesar do poder delegado ao Bispo da
Bahia pelo Santo Ofício em 1580, quando foram registradas inúmeras heresias,
sadomias, feitiçarias, bigamias, blasfêmias etc.

DICAS

Há, no site <http://www.biblioteca.pe.gov.br/?pag=&cat=41&art=114>,


informações acerca da primeira visitação do Santo Ofício no Brasil. É muito interessante e
você poderá enriquecer sua cultura jurídica.

171
UNIDADE 3 | A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO BRASILEIRO

FIGURA 56 – CAPA DO DOCUMENTO: PRIMEIRA VISITAÇÃO DO


SANTO OFÍCIO ÀS PARTES DO BRASIL

FONTE: Disponível em: <http://www.biblioteca.pe.gov.


br/?pag=&cat=41&art=114>. Acesso em: 25 nov. 2017.

Em síntese, é oportuno destacar o pensamento de Wolkmer (2007, p. 71),


quando afirma que “a especificidade da estrutura jurídica da colônia brasileira
não permitiu o exercício da cidadania e as práticas políticas descentralizadas”.

Forjada em meio a um passado latifundiário, patrimonialista, senhorial


e escravista, cuja dinâmica fez surgir uma cultura jurídica singular marcada por
ideias e práticas paradoxais.

Este é o horizonte da cultura jurídica brasileira colonial dominante.


Legítima herdeira de um pensamento condicionado pelo mercantilismo e
administração burocrática centralizada, construída sob uma mentalidade
escolástico-tomista e elitista. Uma mentalidade condicionada a servir a Deus e ao
rei, e, portanto, incapaz de ser comprometida com qualquer nova ideia que viesse
a representar o ideário renascentista moderno, mais próximo do humanismo
emergente, já que este significava a “expansão protestante”, que teve como maior
expressão de resistência na Europa a Península Ibérica.

Assim, longe do ideário iluminista moderno que veio a representar a


possibilidade de construção de uma lógica racional crítica ao obscurantismo
medieval, a cultura jurídica colonial brasileira definiu-se sacralizando a tradição
e o servilismo, o que permitiu a consolidação e reprodução das ideias e valores da
elite mercantilista portuguesa.

Neste sentido, assinala Alberto Venancio Filho (1982) que, por força da
Companhia de Jesus na Universidade de Coimbra, a cultura predominante até
meados do século XVIII mantinha-se refratária às transformações reivindicadas
pelo Renascimento, o que é claramente evidenciado num edital do Colégio das
Artes da Universidade de Coimbra de 1746, que determinava:

172
TÓPICO 2 | A ORDEM JURÍDICA COLONIAL BRASILEIRA

[...] nos exames ou lições, conclusões públicas ou particulares se não


ensine defensão ou opiniões novas pouco recebidas, ou inúteis para
os estudos das ciências maiores, como são as de René Descartes,
Gassendi, Newton e outros, nomeadamente qualquer ciência que
defenda os átomos de Epicuro ou outras quaisquer conclusões opostas
ao sistema de Aristóteles [...] (VENANCIO FILHO, 1982, p. 5).

Tal panorama é alterado com a Reforma do Marquês de Pombal, como já


considerado, na segunda metade do século XVII, quando os jesuítas são expulsos
da metrópole e da colônia, e seus reflexos na tentativa de emergência de uma
cultura moderna, o que irá marcar a transição para o século XIX e a busca de
superação da herança colonial.

Em síntese, compreender o direito e a gestão da justiça no Brasil Colônia


é a possibilidade de compreender as origens de nossa profunda desigualdade
social e negação de cidadania que até os dias atuais procuramos nos livrar. Não é
difícil perceber as razões que fazem de nosso direito um instrumento elitizado e
distante ainda de interesses nacionais.

A intenção de Portugal era construir uma elite burocrática defensora dos


interesses reais que defendesse as leis metropolitanas. Desde aí foi sendo criado
um sistema de compadrio que aliava as elites metropolitanas às elites canavieiras.
E assim, a elite letrada e pseudoburocrática usufruía dos “benefícios” do poder
em troca do desrespeito à lei e à justiça.

173
RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• A estrutura administrativa do Brasil Colônia teve como característica a criação


de um aparato político e jurídico capaz de garantir os interesses metropolitanos.

• As bases das instituições jurídicas brasileiras estão intimamente ligadas: a um


passado escravocrata e patrimonialista, marcado pela dominação de uma elite
agrária local e submissa aos interesses econômicos metropolitanos.

• O Direito brasileiro, em sua origem colonial, mais se aproxima de arbítrio e


favoritismo do que propriamente a realização de justiça.

174
AUTOATIVIDADE

Observe a gravura de Debret abaixo:

“UM JANTAR BRASILEIRO”, 1827

FONTE: Disponível em: <http://historiaporimagem.blogspot.com.br/2011/10/


jean-baptiste-debret-um-jantar.html>. Acesso em: 25 nov. 2017.

A figura é uma das mais reproduzidas nos livros de história do Brasil,


por caracterizar a sociedade colonial brasileira, marcada por profundas
desigualdades sociais.

Após detalhada observação na gravura e associando com o estudo realizado,


faça uma breve dissertação discutindo a relação entre as bases políticas e
econômicas do Brasil Colônia e a ordem jurídica.

175
176
UNIDADE 3
TÓPICO 3

O PROCESSO DE INDEPENDÊNCIA E A CONSTRUÇÃO DO


DIREITO NACIONAL

1 INTRODUÇÃO
Mudanças sensíveis ocorrem na cultura jurídica brasileira no século XIX,
que se inicia sob o signo da modernidade. As revoluções burguesas e o absolutismo
ilustrado, que na Europa abriam as portas para compreender o humano como
valor fundamental da sociedade, encontravam um forte contraste com o
sistema colonial brasileiro, cuja marca era a violência imposta aos trabalhadores
escravizados e a dinâmica contraditória da relação metrópole-colônia, que acabou
por definir um espaço subjugado.

Apesar disso e das resistências contra a centralização receberem golpes


fatais, quer pelas mãos diretas das milícias reais, quer de seus braços locais, o
Brasil torna-se independente em 1822.

Uma dispersa, desarticulada e fluida nação emerge entre conflitos e


dilaceração das antigas capitanias. O cuidado maior era o de manter a unidade
política, que, como destaca Raimundo Faoro (2000, p. 315-316), “tratava-se de
tarefa gigantesca e incerta diante dos enormes obstáculos, não apenas geográficos,
mas sobretudo políticos”.

É evidente que uma sequência de fatos – Abertura dos Portos (1808),


criação do Reino Unido do Brasil (1815) e, finalmente, a Revolução do Porto (1820)
– aceleraram o processo que mobilizou as elites locais para a independência.

Tal processo tornou necessária a construção de uma cultura jurídica


nacional, que encontra no liberalismo uma proposta doutrinária a partir da qual
foram edificados os primeiros cursos jurídicos, uma elite jurídica e o edifício legal.

Assim, a tarefa primeira é compreender a natureza e especificidade desse


“liberalismo caboclo” presente como cimento da cultura jurídica em construção,
sobretudo para compreender a profunda distinção entre o revolucionário
liberalismo europeu e o brasileiro, e como este último serviu de suporte aos
interesses das oligarquias vinculadas à monarquia imperial.

A face “cabocla” do liberalismo brasileiro é muito bem conhecida. Por


isso, com razão comenta Wolkmer (2007, p. 76):

177
UNIDADE 3 | A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO BRASILEIRO

Eram profundamente contraditórias as aspirações de liberdade


entre diferentes setores da sociedade brasileira. Para a população
mestiça, negra, marginalizada e despossuída, o liberalismo,
simbolizado na Independência do país, significava a abolição dos
preconceitos de cor, bem como a efetivação da igualdade econômica
e a transformação da ordem social. Já para os estratos sociais que
participaram diretamente ao movimento de 1822, o liberalismo
representava instrumento de luta visando à eliminação dos vínculos
coloniais. Tais grupos, objetivando manter intactos seus interesses
e as relações de dominação interna, não chegaram a reformar a
estrutura de produção nem a estrutura da sociedade.

O liberalismo, como observa Macridis (1982, p. 38-41), em suas diferentes


dimensões, ético-filosófica, econômica e política-jurídica, representou o ideário
de cunho individualista sustentado pela burguesia europeia contra o absolutismo
monarquista, capaz de reproduzir novas condições materiais, sociais e políticas
que permitiam sua ascensão e justificativa de poder. Entretanto, no Brasil, essa
doutrina era conhecida por uma pequena parcela de letrados inovadores, e até
revolucionários, já que a maioria da população era de analfabetos, escravos e
uns poucos trabalhadores livres para os quais os “novos ventos da liberdade
europeia” não sopravam nem como “leve brisa”.

O liberalismo brasileiro serviu tão bem aos interesses das oligarquias


locais que pôde conviver com a institucionalização da escravidão, tornando-se
uma aparente ambiguidade, porém a marca da política brasileira: uma retórica
liberal e uma prática oligárquica, um conteúdo conservador e reacionário sob a
aparência da democracia.

Emília Viotti da Costa (1985) identifica o liberalismo brasileiro como uma


“ideologia de tantas caras” que serviu em “momentos distintos diferentes grupos
com intenções diversas”:

• A face heroica: própria dos movimentos que antecederam a independência, a


antidemocrática – dos revolucionários da primeira Constituinte.
• A face moderada: dos adeptos da monarquia constitucional, a radical – dos
reformistas da fase regencial.
• A face conservadora: que acabou por impor-se e defendida pela minoria
antidemocrática apegada às práticas do clientelismo e da patronagem.

Em síntese, o liberalismo no Brasil foi singular, pois apesar de defender


a democracia representativa, negava a participação popular, atribuindo aos
poucos letrados a tarefa de conduzir as instituições políticas e jurídicas. Enfim,
um liberalismo conservador, elitista, antidemocrático que nega na prática suas
próprias convicções.

O processo de transição social produzido pela independência trará a


marca desta lógica liberal.

178
TÓPICO 3 | O PROCESSO DE INDEPENDÊNCIA E A CONSTRUÇÃO DO DIREITO NACIONAL

Apesar disso, salienta Florestan Fernandes (1974, p. 31) que a independência


se constituiu numa revolução social por ter produzido simultaneamente o fim da
era colonial e o advento da sociedade nacional. As relações de poder modificam-
se na medida em que deixam de manifestar-se “[...] como imposição de fora
para dentro, para organizar-se a partir de dentro, malgrado as injunções e as
contingências que iriam cercar a longa fase do “predomínio inglês” na vida
econômica, política e diplomática da nação” (FERNANDES, 1974, p. 31-32).

Sem dúvida, os donos do poder não se insurgiram contra a estrutura da


sociedade colonial, mas contra o limite imposto pelo sistema que acabava por
neutralizar a capacidade desta elite em dominar as diferentes esferas da ordem
social, política e econômica.

Essa é, segundo Florestan Fernandes (1974), a lógica que permite


compreender por que as elites nacionais, sem negar a ordem social dominante,
atuaram na esfera política, adaptando e integrando internamente a herança
colonial com os interesses impostos pela independência.

Portanto, o novo momento brasileiro irá se caracterizar como uma


inovação aliada ao poder por parte das oligarquias e a enorme marginalização da
população livre.

A independência pode ser compreendida como mudança de status político-


jurídico sem mudança material e social, o que justifica a perpetuação das relações
sociais de dominação internas ao longo da construção da sociedade nacional.

FIGURA 57 – “O GRITO DO IPIRANGA” – PINTURA A ÓLEO DE PEDRO AMÉRICO –


MUSEU DO IPIRANGA

FONTE: Disponível em: <http://www.mp.usp.br/museu-do-ipiranga>. Acesso em:


25 nov. 2017.

179
UNIDADE 3 | A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO BRASILEIRO

Para muitos historiadores, essa é uma das razões da defesa limitada,


tosca e egoísta, porém eficaz, dos ideais liberais por parte das elites nacionais,
pois apenas era defendido aquilo que, num jogo de probabilidades concretas,
poderiam efetivamente desfrutar, como o poder de igualdade e fraternidade dos
interesses inerentes ao seu papel definido da estrutura de poder dominante.

É evidente que o liberalismo, ao construir a base ideológica e política para


a transição colonial, tornou-se, ao mesmo tempo, o elemento mais destacado da
cultura brasileira durante a fase imperial e o ideário para a edificação do Estado
nacional, para a “ideia de Brasil”.

NOTA

O projeto liberal no Brasil, que norteou o processo de independência, não


significou uma única aspiração, mas sim o resultado de distintos segmentos, radicais e
moderados conservadores, que concordavam num aspecto: o processo de independência e
construção nacional se operaria com a ausência de participação popular.

O resultado dos conflitos entre os diferentes segmentos liberais foi a vitória


dos conservadores, pensamento claramente explícito nas palavras de Evaristo da
Veiga, líder da independência, citado por Lima Lopes (2012, p. 279): “Não temo
que o Brasil se despolitize, temo que se anarquize, temo mais hoje os cortesãos da
gentalha que aqueles que cheiram as capas do monarca”.

Os radicais “souberam aceitar” a monarquia como forma de sobrevivência.


Este fato demonstra a paradoxal conciliação resultante da estratégia liberal-
conservadora capaz de permitir o clientelismo e a cooptação aliada a uma cultura
jurídico-institucional formalista, retórica e ornamental. Este “pacto conciliador”
estará presente na judicialização do processo de independência, sendo sua face
visível o bacharelismo liberal.

2 A CULTURA JURÍDICA NACIONAL: O BACHARELISMO


Com a independência política, a grande tarefa será a de construir autonomia
jurídica. Para tanto, serão usadas duas grandes estratégias: a elaboração de uma
legislação própria e a criação dos cursos de Direito.

Se, de um lado a primeira tarefa era a de construir o aparato legal


institucional da nação independente, de outro, era necessária a formação de uma
elite jurídica própria e afinada com os ideais da independência. A implantação dos
cursos jurídicos no Brasil era a alternativa possível frente à perda do único centro
formador de juristas de língua portuguesa, a Universidade de Coimbra, de um

180
TÓPICO 3 | O PROCESSO DE INDEPENDÊNCIA E A CONSTRUÇÃO DO DIREITO NACIONAL

lado, e o desaparecimento dos centros jesuíticos de ensino. Sem dúvida, o ponto


de partida para a construção da ordem político-jurídico nacional era a instauração
dos cursos na medida em que este era o curso fornecedor de importantes quadros
para o Estado imperial, já que a grande maioria de bacharéis era absorvida pelo
serviço público, por serem mais raros os cargos para magistrados e advogados.

A Carta de Lei de 11 de agosto de 1827, que implanta os primeiros cursos


jurídicos do Brasil de São Paulo e Recife, reflete, segundo Wolkmer (2007, p. 80),
“a exigência da elite que veio a suceder a dominação colonial preocupada com
a estrutura de poder e a preparação de uma camada burocrática administrativa
capaz de assumir o gerenciamento nacional”.

FIGURA 58 – FACULDADE DE DIREITO DO LARGO SÃO FRANCISCO

FONTE: Disponível em: <http://ead.stj.jus.br/ead/mod/page/view.php?id=3009>. Acesso


em: 25 nov. 2017.

Tais centros servirão como reprodutores da legalidade oficial positiva, ou


seja, legitimadores dos interesses do poder, distantes de qualquer compromisso
com expectativas sociais. Deve-se lembrar que entre os ministros de Estado de
1831 a 1853, mais de 45% eram magistrados, que somando em certos períodos os
advogados que exerciam tais funções, chegava-se a 60%.

Assim, os cursos de Direito assumiram as funções de serem


simultaneamente defensores do ideário liberal e formadores da elite burocrática
devidamente adestrada para o exercício do poder.

Entretanto, ao buscar construir suas próprias escolas de Direito, o ensino


jurídico brasileiro reproduzia um modelo alienígena, cosmopolita, ilustrado e
literário, divorciado do quadro agrário rural predominante, e excluindo a grande
massa popular marginalizada.

181
UNIDADE 3 | A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO BRASILEIRO

Apesar de tais escolas tratarem de formar burocratas do poder dentro


da lógica do conservadorismo, é necessário que se assinale algumas tendências
inovadoras. A Faculdade de Direito de Pernambuco, apesar de comungar a
tendência comum do ensino jurídico brasileiro, vai ser o cenário da emergência
de um movimento que representará a possibilidade de novos horizontes mais
afinados com as modernas correntes de pensamento emergentes, o que poderia
representar uma alternativa para o mimetismo português e francês. Este
movimento de forte influência germânica, autodenominado Escola de Recife,
será considerado o mais avançado de sua época, e terá como expoente a figura
de origem social humilde e mestiça: Tobias Barreto. Sobre a importância deste
movimento, destaca Alberto Venancio Filho (1982, p. 96):
O movimento da Escola do Recife representava, contudo, e talvez pela
primeira vez, a realização daquela grande tarefa a que se tinham proposto
as faculdades de Direito, de representarem grandes centros de estudo
das ciências sociais e filosóficas no Brasil, mas da qual, via de regra, se
vinham omitindo ou escapando, pois trazia o movimento no seu bojo um
problema de transformação de ideias no campo da crítica literária.

A Escola de Recife entendia que para dotar o Brasil de um aparato jurídico era
necessário compreender a sociedade brasileira, sua natureza e construção. Defendia
que o jurista deveria ser algo mais que um rábula. A intenção era a de compreender
o fenômeno jurídico a partir de uma pluralidade de conhecimentos que resultavam
essencialmente do evolucionismo e do monismo. E, sem dúvida, esses pensadores
jurídicos, mais distantes do centro do poder, viam-se como vanguarda.

Já São Paulo, centro privilegiado do bacharelismo liberal e da elite agrária,


orientou-se para a formação de burocratas e militantes políticos. No espaço do
Largo São Francisco foram intensas as defesas em favor dos direitos individuais
e liberdades políticas.

As lutas abolicionistas e republicanas eram parte da vivência acadêmica


que mais se caracterizava como autodidata, pois o ensino jurídico propriamente
era de má qualidade, permitindo que inúmeros acadêmicos aderissem à militância
política, sem que, entretanto, deixassem de ser cooptados pela burocracia estatal.
O comprometimento da qualidade do ensino era denunciado em 5 de agosto de
1831 pelo aviso do Ministro do Império José Lino Coutinho, sobre o desleixo e
negligência escandalosa de professores do curso de Direito, que eram indiferentes
à ausência dos acadêmicos e aprovavam indiscriminadamente.

Comparativamente, enquanto a Escola de Recife imaginava produzir


pensadores da ciência do Direito, o Largo São Francisco de São Paulo era o celeiro
de políticos e burocratas do Estado Imperial.

Recife exaltava seu papel como núcleo intelectual e formador de ideias.


São Paulo, apesar da fragilidade intelectual, colocava-se como vanguarda política
nacional de onde partia o direcionamento político-jurídico brasileiro. Entretanto,
seja como for, em meio a um ensino de baixa qualidade, os juristas tornam-se quase
autodidatas que continuavam a reproduzir ideias tradicionalistas e formalistas de
182
TÓPICO 3 | O PROCESSO DE INDEPENDÊNCIA E A CONSTRUÇÃO DO DIREITO NACIONAL

direito, mantendo como espaço de discussão política não o espaço público, mas o
privado: o interior do Salão do Imperador e os espaços domésticos, fato característico
de uma sociedade aristocrática que foi capaz de construir um corpo normativo legal
de fachada liberal que pudesse conviver com o escravismo e religião de Estado.

Os juristas brasileiros que vão sendo forjados no Brasil independente


caracterizam-se pelo apego ao passado e a valorização de uma cultura retórica
e vazia, que não soube levar em conta a diversidade e especificidade brasileira.

Por esta razão, afirma Caio Prado (2012) que o direito brasileiro era um
direito artificial e inaplicável que deixa de lado as particularidades nacionais,
sendo um exemplo significativo a questão da terra: “[...] num país agrícola e na
maior parte ainda deserto, e que apesar disto nunca foi devidamente tratado
nas leis brasileiras. O que sempre tivemos na matéria foi copiado de legislações
europeias, onde naturalmente a situação é inteiramente outra” (p. 197).

Um exemplo disso é a codificação civil brasileira de 1916. Mais próxima do


conservadorismo do que da inovação, reproduziu mais valoração ao patrimônio
privado do que às pessoas. Fiel retrato do modelo social, político, ideológico e
cultural de sua época; muito do qual se perpetuou até o momento. Sem dúvida, trata-
se da ritualização e dogmatização das raízes que ordenavam, e de certa forma, ainda
ordenam, as relações materiais e pessoais brasileiras. O resultado desse passado,
no tocante à legislação civilista, é que permanecem irresolvidas questões sociais
dramáticas, como a concentração de riqueza, que foi funcionando historicamente
como um perverso mecanismo que nos dias de hoje segrega e estigmatiza milhões de
brasileiros, pois, sem dúvida, o modelo civil nacional foi idealizado para assegurar e
perpetuar os interesses e privilégios da oligarquia agrária.

Em síntese, a cultura jurídica do século XIX, que vai engendrar o direito do


século XX, vigente atualmente no Brasil, foi marcada por um forte individualismo
e formalismo legalista, projetando uma lógica singular, própria de uma nação
que emergiu buscando aliar os princípios individualistas liberais burgueses
importados do modelo europeu, com o legado colonial que instituiu práticas
burocráticas-administrativas orientadas e ajustadas para a garantia e a proteção
dos bens patrimoniais, ignorando, na prática, os interesses e necessidades da
grande maioria que compõe o povo brasileiro. São oportunas as palavras de
Wolkmer (2007, p. 125) quando afirma: “[...] os limites, o artificialismo e a pouca
funcionalidade desse sistema de legalidade formalista e conservador propiciam
as condições favoráveis para a sequência de confrontos intermináveis e os
horizontes de ruptura com os procedimentos de justiça oficial e estatal”.

É exatamente sob a ótica desta cultura jurídica que vai ser construída
toda legislação nacional. Um saber técnico-normativo que vai, dentro de padrões
rigorosos de objetividade, pretender seguir um seguro caminho para a manutenção
e reprodução do modelo de direito legado por este passado marcado pela exclusão
e dominação, alheio a qualquer interesse e compromisso de emancipação.

183
UNIDADE 3 | A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO BRASILEIRO

DICAS

A fim de melhor compreender a evolução histórica da legislação nacional,


sugere-se a leitura do texto: “Brevíssimas notas sobre a história do direito e da justiça no
Brasil”, de Jefferson Carús Guedes, disponível em: <http://www.confluencias.uff.br/index.php/
confluencias/article/viewFile/303/228>.

O colonialismo metropolitano imposto ao Brasil a partir do século


XVI trouxe como uma de suas faces a imposição do modelo epistemológico
hegemônico na Europa através da violência. Violência através da repressão de
outras formas de saber existentes na colônia e também pela assimilação de um
saber que se anuncia como universal e verdadeiro.

A cultura jurídica nacional desenvolveu-se numa matriz epistemológica


que muito bem cumpriu o papel de reprodução do direito hegemônico, tornando-
se instrumento de legitimação de um passado comprometido com a ausência de
compromissos de legítima emancipação nacional. Enfim, uma concepção vazia
e negadora de referenciais que possam definir um horizonte compreensivo
legitimamente justo para com o que secularmente foi excluído do direito
brasileiro: valores e necessidades capazes de promover a emancipação política
e social dos empobrecidos, dos ausentes e dos invisibilizados. Um “direito das
ausências” responsável por ter a “balança” da justiça pendido para “o lado” mais
forte política e economicamente.

184
RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• Com a independência política brasileira em 1822, o grande desafio será a


construção da autonomia jurídica, daí a criação das primeiras Faculdades de
Direito e elaboração da legislação nacional.

• O liberalismo, apesar de suas contradições no Brasil, constituiu-se no grande


ideário norteador do processo de independência, servindo seus princípios de
fundamento da legislação nacional.

• A cultura jurídica brasileira deve ser compreendida a partir das grandes


contradições e paradoxos da sociedade nacional, que buscou conciliar os
interesses das elites locais e as necessidades sociais.

185
AUTOATIVIDADE

Considere o texto: “Com a Independência do país, o liberalismo


acabou constituindo-se na proposta de progresso e modernização superadora
do colonialismo, ainda que, contraditoriamente, admitisse a propriedade
escrava e convivesse com a estrutura patrimonialista de poder. Ao conferir
as bases ideológicas para a transposição do status colonial, o liberalismo não
só se tornou componente indispensável na vida cultural brasileira durante o
Império, como também na projeção das bases essenciais de organização do
Estado e de integração da sociedade nacional”.

FONTE: WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. 4. ed., Rio de Janeiro: Forense,
p. 65.

A partir do estudo realizado, por que afirma o autor que o liberalismo brasileiro
foi contraditório? Quais são as contradições?

186
UNIDADE 3
TÓPICO 4

OS DESAFIOS DO DIREITO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

1 INTRODUÇÃO
A entrada no século XXI, embora não triunfal, nas terras brasileiras foi feita
sob a égide da democracia aliada à esperança – nunca perdida – de reafirmação
de cidadania.

É nesse contexto que o sistema judiciário internamente assumiu o


papel inédito de assegurar não apenas o conjunto de direitos fundamentais
duramente conquistados, mas o de também manter a estabilidade política
numa historicamente frágil ordem democrática. Revisando a história do Direito
brasileiro, não é difícil perceber que esse protagonismo é muito diferente do
tradicionalmente assumido de servir de mero instrumento de conferir eficácia ao
sistema normativo estabelecido por um poder político raramente comprometido
com interesses populares e fortemente marcado pela herança colonial.

Na trajetória de construção do Estado brasileiro, o Judiciário esteve mais


ocupado em cumprir seu papel controlador e reprodutor dos interesses das elites
e organizar-se institucionalmente como aparato burocrático do poder. A bem
da verdade, o Judiciário não foi alvo de atenção nem das elites nem das forças
progressistas, talvez porque nunca representou obstáculo para aquelas, tampouco
fonte de justiça social para essas, mas acabou, em finais do século XX, assumindo
um papel político do qual não pode mais renunciar.

O novo sistema mundial neoliberal, adotado pelos países europeus, nos


últimos 30 anos, encontrou o absoluto desmantelamento do Estado intervencionista
– quer o modelo desenvolvimentista das periferias e semiperferias mundiais,
como Estado Providência – e o fortalecimento do Estado de Bem-Estar Social
relativamente avançado nos países da Europa, marcado por fortes políticas sociais
que aliam altos níveis de competitividade com altos níveis de proteção social
(SOUSA SANTOS, 2007).

A mudança política em tempos de neoliberalismo global, na leitura de


Boaventura de Sousa Santos, exige um Judiciário eficiente, rápido e independente
para assegurar o novo modelo de desenvolvimento que se assenta nas regras
de mercado e nos contratos privados, mas também, que responda às demandas
sociais causadas pela precarização dos direitos sociais e econômicos (2007).

187
UNIDADE 3 | A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO BRASILEIRO

Particularmente no Brasil, sem que tenha um modelo de Estado forte em


políticas sociais, a redemocratização constitucional colocada em marcha com a
Constituição Federal de 1988 ampliou consideravelmente o leque de direitos, não
apenas em relação aos chamados direitos fundamentais, mas também aos novos
direitos, cujos titulares são sujeitos coletivamente identificados: consumidores,
negros, homossexuais, crianças e adolescentes, mulheres, indígenas, e tantos outros
quantas possibilidades de articulação social e política. Esse fato aumenta a expectativa
social de serem garantidos direitos anunciados constitucionalmente, mesmo com
débeis mecanismos de implementação, já que a nova ordem constitucional também
prevê a ampliação de estratégias e “instituições das quais se pode lançar mão para
invocar os tribunais, por exemplo, a ampliação da legitimidade para propositura de
ações diretas de inconstitucionalidade, possibilidade de as associações interporem
ações em nome de seus associados e a consagração da autonomia do Ministério
Público” (SOUSA SANTOS, 2007, p. 18).

O novo constitucionalismo e a redemocratização brasileira conferiram


ao Judiciário um papel relevante: não apenas é visto como instrumento de
viabilização de direitos e garantias, como também a reconstrução e manutenção
da ordem democrática.

Entretanto, a redemocratização aliada ao constitucionalismo construído


nas matrizes europeias que consagram direitos fundamentais – conquistados ao
longo de um processo histórico específico –, em terras brasileiras tem sido uma
proposta desacompanhada de políticas públicas e sociais capazes de conferir
eficácia e efetividade à nova ordem, ainda com agravante de existirem fortes
resistências entre juristas herdeiros de uma lógica cartesiana ainda reféns do
ultrapassado paradigma formal legalista de direito.

Pode-se afirmar que aí está uma das razões centrais para compreender
o porquê de, passados quase 30 anos de Constituição Democrática, ainda o
Brasil é um país em que os princípios democráticos fazem parte de uma mera
intencionalidade nem sempre ou raramente contemplada. “Para se ter uma ideia,
o princípio constitucional da ampla defesa ficou quase 15 anos sem ser aplicado nos
interrogatórios judiciais, sem que a doutrina e a jurisprudência – com raríssimas
exceções – tivessem reivindicado a aplicação direta da Constituição” (STRECK,
2017, p. 155). Evidentemente, sem esquecer que ainda o “peso da balança” pende
para um “lado”.

Se no passado colonial a face visível da exploração era a do escravo, em


tempos de globalização o resultado da perversidade sistêmica, que nos lembra
Milton Santos, são as vítimas do fascismo social.

O fascismo social não é, como lembra Boaventura de Sousa Santos (2001),


aquele criado diretamente pelo Estado, mas o produto de um sistema em que o
nível de competitividade tem a guerra como norma, e acaba num individualismo
arrebatador e possessivo que tudo coisifica, inclusive seres humanos.

188
TÓPICO 4 | OS DESAFIOS DO DIREITO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Um sistema “que comanda outros subsistemas da vida social, formando


uma constelação que tanto orienta e dirige a produção da economia como também
a produção da vida” (SANTOS, 2001, p. 48). As fragmentações resultantes da lei
de mercado rompem a solidariedade social, fazendo com que novas formas de
perversidades sociais sejam criadas.

Como resultado da nova ordem mundial neoliberal, são profundas as


desigualdades sociais, vivendo-se um cotidiano de exclusão.

FIGURA 59 – EXCLUSÃO SOCIAL: UMA ESTRANHA CONVIVÊNCIA

FONTE: Disponível em: <http://profwladimir.blogspot.com.br/2012/05/dados-brasil-


desigualdades-sociais.html>. Acesso em: 25 nov. 2017.

DICAS

Para melhor compreensão do tema, sugere-se a leitura do livro Constitucionalismo,


descolonización y pluralismo en América Latina, de Antonio Carlos Wolkmer e Ivone Fernandes
M. Lixa, disponível em: <https://sociologiajuridica.org/2015/04/19/livro-constitucionalismo-
descolonizacion-y-pluralismo-juridico-en-america-latina/>.

189
UNIDADE 3 | A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO BRASILEIRO

No Brasil, a desigualdade e seletividade, sobretudo no circuito da


violência penal, reproduz sistematicamente processos de exclusão e vitimização
aos setores populares, desonrando e desrespeitando grupos sociais que compõem
as zonas de selvageria, expondo sofrimento e intimidade de seres humanos, que
perversamente são transformados em “descartáveis” por “terem rompido o
contrato social” e, por isso, transformados em seres desprovidos de direitos.

A exceção torna-se regra nas áreas de exclusão e justificável para a prática


do extermínio do “perigoso”.

DICAS

No site <http://www.mapadaviolencia.org.br/> você encontrará dados acerca da


violência no Brasil. Analise os dados!!! Realmente são grandes desafios para o direito!a

2 A DIFÍCIL CONQUISTA DE DIREITOS


Já aprendemos, e ainda estamos lamentavelmente aprendendo no
Brasil, que as barbaridades cometidas contra seres humanos não se fundam
somente no ódio, na cobiça ou na estupidez, mas sim na ausência de reflexão, no
distanciamento e estranhamento, para usar a linguagem filosófica que permite a
abertura de lidar com o invisível, com o não dito, com o silenciado e com o que
está “fora de ordem”. Talvez em tempos de fascismos tão declarados seja chegado
o momento de nos educarmos como forma de nos protegermos da banalidade
do mal, talvez assim possam ser menos favoráveis e tenham mais pudor falas
intolerantes e assassinas.

Caminhando para a segunda metade da primeira década do século


XXI não há muitas razões para otimismo. Vivemos uma espécie de ausência de
esperança e de futuro. Estamos enfrentando tempos difíceis e de perversidades
inéditas tornando quase utopia falar em Direito, sobretudo em Direitos Humanos.

Uma breve análise nos permite afirmar que é necessário reinventar a


política e repolitizar o Direito desde a participação popular na política, criando
mecanismos para resolução de conflitos de forma a estabelecer no Estado um
poder popular e pluralista cuja prática destina-se a resgatar grupos que se
encontram em situação de subjugação ou exclusão sem que consigam, por
si mesmos, atender suas necessidades. Dessa maneira, simultaneamente, se
enriquece a democracia com mecanismos participativos diretos, resgatando o
“constitucionalismo primeiro” que está além do convencional e dominante.

190
TÓPICO 4 | OS DESAFIOS DO DIREITO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Trata-se de reconhecer as novas realidades constituintes cotidianas cujos


atores, como sujeitos históricos, são os que dinamizam, desde a estrutura social,
política e econômica, e carregam em si a potencialidade transformadora que vai
reconfigurando a ordem jurídica a partir de uma lógica plural e democrática
capaz de ampliar o espaço jurídico para além do estatal, articulando saberes,
práticas e ações coletivas inovadoras até então pouco reconhecidas. Uma
prática cujo espaço de investigação é inesgotável, que busca identificar os
elementos corriqueiros nas traduções das múltiplas realidades – a jurídica e a
coletivamente criada – para encontrar o comum, o ponto inicial para a tradução,
para novas práticas que possam colocar em diálogo os espaços tradicionalmente
considerados “jurídicos e não jurídicos”.

DICAS

Sugere-se como leitura dois textos básicos:


1. Brevíssimas notas sobre a história do Direito e da Justiça no Brasil.
Autor: Jefferson Carús Guede.
Disponível em: <http://www.confluencias.uff.br/index.php/confluencias/article/viewFile/303/228>.
2. O capítulo III do livro de Antonio Carlos Wolkmer, História do Direito no Brasil.
Disponível em: <file:///C:/Users/Usuario/Downloads/WOLKMER,%20Ant%C3%B4nio%20Carlos.%
20Hist%C3%B3ria%20do%20Direito%20no%20Brasil%20(1).pdf>. Acessos em: 4 dez. 2017.

Ainda são recomendados alguns filmes disponíveis na Internet, como:


“Xica da Silva”. Direção de Carlos Diegues, 1976.
“Brava gente brasileira”. Direção de Lucia Murat, 2000.
“Mauá: o imperador do Brasil”. Direção de Sérgio Resende, 1999.

Lembre-se: a cultura jurídica se adquire de várias formas!


Leia bons romances!
Veja bons filmes e documentários!

191
UNIDADE 3 | A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO BRASILEIRO

LEITURA COMPLEMENTAR

O sistema brasileiro de Justiça: experiência recente e futuros desafios

José Eduardo Faria

Nunca, na história republicana do país, juízes e promotores alcançaram


tanta evidência como agora. Graças às prerrogativas concedidas pela
Constituição de 1988, as duas corporações estão presentes na vida econômica.
Influenciando a agenda política e exercendo enorme protagonismo social, seja
ao assegurar a proteção de interesses difusos, seja intervindo em questões
relativas à justiça distributiva. Mas, a quem cabe a titularidade da independência
funcional conquistada pelo Ministério Público (MP): à instituição como um
todo ou a cada um de seus integrantes? Do lado do Judiciário, como pode
almejar o direito à última palavra um Poder que controla de modo quase
total o acesso aos seus quadros? Em suma, qual a legitimidade das duas
instituições que compõem o "sistema de Justiça" brasileiro, em cujo âmbito
os valores da independência e da autonomia se sobrepõem a outros com os
quais deveriam compor, como os da eficiência administrativa, transparência
decisória e equilíbrio das finanças públicas?

Questões como essas ganharam importância desde que promotores


e procuradores da República passaram a recorrer a gravações clandestinas e
escutas ilegais, com o objetivo de formular denúncias criminais contra dirigentes
do Executivo e do Legislativo, e magistrados passaram a se opor às "reformas
estruturais", especialmente à previdenciária, e a impedir as tentativas de
revogação de direitos adquiridos do funcionalismo e taxação dos inativos, em
nome dos princípios do equilíbrio e da responsabilidade fiscal.

Perante a opinião pública, o Judiciário tem sido visto como um moroso


e inepto prestador de um serviço público. No Executivo, os responsáveis pelo
Orçamento Geral da União o encaram como um aparato com baixa eficiência
gerencial e insensível ao equilíbrio das finanças públicas, pois seus gastos
com obras de discutível utilidade, suas crescentes despesas de custeio e suas
sentenças comprometeriam as políticas de ajuste fiscal, poriam em risco
a estabilidade monetária e travariam as reformas estruturais. Além disso,
juntamente ao MP, o Judiciário é acusado pelo Congresso de exorbitar em suas
prerrogativas, interferir no processo legislativo e bloquear políticas formuladas
por órgãos representativos eleitos democraticamente, "destecnificando"
a aplicação da lei e, por consequência, levando à "judicialização" da vida
administrativa e econômica.

192
TÓPICO 4 | OS DESAFIOS DO DIREITO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Muitas dessas críticas talvez sejam injustas, mas não quer dizer que não
tenham algum fundo de verdade, o que alimenta diferentes indagações sobre
o futuro das duas instituições num contexto marcado por fortes desigualdades
sociais e culturais, graves limitações fiscais e transformações radicais nos modos
de funcionamento da economia.
FONTE: FARIA, José Eduardo. O sistema brasileiro de Justiça: experiência recente e futuros desafios.
In: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000200006>. Acesso
em: 12 dez. 2017.

No site você poderá ler o texto na íntegra!!!!

193
RESUMO DO TÓPICO 4

Neste tópico, você aprendeu que:

• O passado histórico acabou por criar uma brutal realidade social no Brasil
contemporâneo, que tem exigido respostas nem sempre possíveis de serem
dadas com rapidez e eficiência.

• Mesmo com a ordem jurídica democrática implantada pela Constituição de


1988, não conseguimos ser democráticos na prática, imperando um crescente e
aterrorizante fascismo social.

• Temos muitos desafios diante de nós e precisamos reinventar nossas práticas


jurídicas, buscando procedimentos mais eficientes e adequados a esse novo e
difícil tempo.

194
AUTOATIVIDADE

Considere a figura abaixo:

FONTE: Disponível em: <http://www.ncst.org.br/subpage.php?id=19708_24-04


-2017_reforma-da-previd-ncia-agrava-desigualdades-sociais-dizem-cnbb-oab-e-
cofecon>. Acesso em: 25 nov. 2017.

O que lhe sugere? Há questões relativas ao Direito representadas? Comente


sobre isso.

195
196
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. A Política. São Paulo: Ed. EDIPRO, 2008.

AUER, Andreas. O Princípio da Legalidade como Norma, como Ficção e como


Ideologia. In: Justiça e Litigiosidade – História e Prospectiva. Op. cit., s.d.

BÍBLIA SAGRADA. Tradução de Padre Antônio Pereira de Figueredo. Rio de


Janeiro: Encyclopedia Britannica, 1980.

BÍBLIA SAGRADA. Tradução de João Ferreira Almeida. Rio de Janeiro: King


Cross Publicações, 2008.

BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Tradução:


André Telles, Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2002.

BOBBIO, Noberto. O Positivismo Jurídico. São Paulo: Ícone, 1993.

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Cia das Letras, 1993.

CAPELLA, Juan Ramón. Fruto Proibido – uma aproximação histórico-teórica


ao estudo do Direito e do Estado. Tradução Lédio Rosa de Andrade. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2002.

CAPELLA, Juan Ramón. O fruto proibido – uma aproximação histórica-teórica


ao estudo do Direito e do Estado. Trad. Lédio Rosa de Andrade. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2002.

CARBONNIER, J. Derecho Flexible. Tradução de L. Diez Picazo. Madrid:


Tecnos, 1974.

CHAUÍ, Marilena. Brasil – mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo:


Fundação Perseu Abramo, 2001.

COULANGES, Fustel de. A formação a cidade. In: A cidade antiga. Rio de


Janeiro: Ediouro, 2004.

CRETELLA JUNIOR, José. Curso de Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

DUSSEL, Enrique. 1492: O encobrimento do outro – a origem do “mito da


modernidade”. Tradução: Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 2000.

EYMERICH, Nicolau. Manual dos Inquisidores. Revisto e ampliado por


Francisco de La Peña em 1578. Tradução de Maria José Lopes da Silva. Prefácio

197
Leonardo Boff. São Paulo: Ed. Rosa dos Ventos. 1993.

FAORO, Raimundo. Os donos do poder – formação do patronato político


brasileiro. São Paulo: Editora Globo, 2000.

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro:


Editora Guanabara, 1974.

FINLEY, M. I. O legado da Grécia – uma nova avaliação. Tradução Yvette


Vieira Pinto de Almeida. Brasília: Ed. UnB, 1998.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método – traços fundamentais de uma


hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. 3. ed. Rio de Janeiro:
Vozes, 1999.

GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. 3. ed. Lisboa: Fundação


Calouste Gulbenkian, 2001.

GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. Lisboa: Fundação Calouste


Gulbenkian, 1995.

HELLER, Hermann. Teoria do Estado. São Paulo: Mestre Jou, s.d.

HESPANHA, Antônio M. Panorama Histórico da Cultura Jurídica Europeia.


Portugal: Forum da História, 1997.

HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica europeia – síntese de um


milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Cia das
Letras, 2000.

IBGE. Síntese de Indicadores Sociais. Brasília: Instituto Brasileiro de geografia


e estatística, 2014.

IRVIN, Dale T.; SUNQUIST, Scott W. História do movimento cristão mundial.


Trad. José Raimundo Vidigal, v. II. São Paulo: Paulus, 2004.

JÚNIOR, Caio Prado. Evolução política do Brasil. 9. ed. São Paulo: Brasiliense, 1975.

KUMAR, Krishan. Da sociedade pós-industrial à pós-moderna – novas teorias


sobre o mundo contemporâneo. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1997.

LE GOFF, Jacques; LE ROY LADURIE, Emmanuel (org.). História e Nova


História. Lisboa: Teorema, 1986.

198
LIMA LOPES, José Reinaldo de. O direito na história – lições introdutórias. 4.
ed. São Paulo: Atlas, 2012.

MACRIDIS, Roy C. Ideologias políticas contemporâneas. Brasília: Unb, 1982.

MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. Tradução de Ana Pratta. 2. ed.


Lisboa: Editorial Estampa, 1989.

NOVAIS, Fernando A. O Brasil nos quadros do antigo sistema colonial. In: MOTA,
Carlos Guilherme (org). Brasil em perspectiva. 9. ed. São Paulo: DIFEL, 1976.

NOVINSKY, Anita. A Inquisição. São Paulo: Brasiliense, 1983.

OSBORNE, Roger. Civilização – uma nova história do mundo ocidental. Trad.


Pedro Jorgensen. Rio de Janeiro: Difel, 2016.

PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica e Nova Retórica. São Paulo: Martins


Fontes, 1998.

PRADO JÚNIOR, Caio. Evolução política do Brasil. Reedição especial. São


Paulo: Cia das Letras, 2012.

SALDANHA, Nelson. Estado Moderno e a Separação dos Poderes. São Paulo:


Saraiva, 1987.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. São Paulo: Ed. Record, 2001.

SCHWARTZ, Stuart A. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. São Paulo:


Perspectiva, 1979.

SCHWARTZ, Stuart A. Gente da terra braziliense da nação. Pensando o Brasil:


a construção de um povo. In: MOTTA, Carlos Guilherme (org). Viagem
Incompleta. A experiência brasileira. Ed. SENAC, 2000.

SCLIAR, Moacir. Saturno nos trópicos – a melancolia europeia chega ao Brasil.


São Paulo: Cia. das Letras, 2003.

SOUSA SANTOS, Boaventura de. A Gramática do Tempo: para uma nova


cultura política. São Paulo: Cortez, 2006.

SOUSA SANTOS, Boaventura. Para uma Revolução Democrática da Justiça.


São Paulo: Cortez, 2007.

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
TARNAS, Richard. A epopeia do pensamento ocidental – para compreender as
ideias que moldaram nossa visão de mundo. Tradução de Beatriz Sidou. 2. ed.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

199
VENANCIO FILHO, Alberto. Das arcadas ao bacharelismo – 150 anos de
ensino jurídico no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1982.

VIOTTI DA COSTA, Emília. Liberalismo brasileiro, uma ideologia de tantas


caras. Folha de São Paulo de 24.02.1985. In: WOLKMER, Antonio Carlos.
História do direito no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução A. M.


Hespanha. Lisboa: Fundación Calouste Gulbenkian, s.d.

WOLKMER, Antonio Carlos. História do direito no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro:


Forense, 2007.

WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico – Fundamentos de uma nova


cultura do Direito. São Paulo: Editora Alfa Ômega, 1994.

200

Você também pode gostar