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UnB | CDS | PPGCDS2098 | Heloisa Brenha Ribeiro | Matrícula 231118880

Edelman (2014)
EDELMAN, Marc. Linking the Rights of Peasants to the Right to Food in the United Nations. Law,
Culture and the Humanities, v. 10, n. 2, p. 196-211, 2014.
https://doi.org/10.1177/1743872112456669

A história que o antropólogo norte-americano Marc Edelman (1952-) nos conta em “Linking
the rights of peasants to the right to food in the United Nations” (Ligando os direitos dos
camponeses ao direito à alimentação nas Nações Unidas, em tradução livre) é a história de
uma luta social. A luta dos camponeses pelo reconhecimento de seus direitos no direito internacional
contemporâneo.Trata-se de uma história de pouco mais de duas décadas, mas cujos protagonistas
estiveram apartados por mais de meio século. Esses protagonistas são, de um lado, a Organização das
Nações Unidas (ONU), e seu sistema de direitos humanos fundado em 1948 e que orienta boa parte
das normas e práticas do direito internacional até hoje; e do outro, camponeses provenientes de
diferentes grupos sociais e regiões que, a partir dos anos 1990, passam a se articular em movimentos
sociais e a reivindicar coletivamente seus direitos na ONU, por meio da Via Campesina.
Como as trajetórias desses dois atores se entrelaçaram e o que isso significa? É o que o
professor do Hunter College e da City University of New York procura responder em “Linking the
rights”. Para tanto, ele nos apresenta a evolução e os principais debates em torno de um conceito
organizador tanto para o sistema de direitos humanos da ONU como para o sistema de direitos dos
camponeses encampado pela Via Campesina: o direito à alimentação.
O direito humano à alimentação é enunciado pela primeira vez em 1948, na Declaração
Universal dos Direitos Humanos (DUDH), como parte do direito a um padrão de vida adequado.
Torna-se juridicamente vinculativo em 1976 para os Estados que ratificaram o Pacto Internacional
sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), assinado dez anos antes. No entanto, o
direito humano à alimentação apresenta “uma série de paradoxos” (p. 196). Ao mesmo tempo em
que é reconhecido como o único direito humano “fundamental” à consecussão de todos os outros
direitos humanos, ele “também é maciçamente violado” (p. 196-197). A realização do direito
humano à alimentação, lembra Edelman, depende do acesso a recursos, inclusive de renda suficiente
para acessar alimentos e/ou terra, água, sementes, crédito, tecnologia e conhecimentos necessários à
produção.
O autor argumenta que, pelas razões acima e também por sua legitimidade inquestionável,
que o direito humano à alimentação se tornou um “ímã” para a reivindicação de outros direitos
humanos afins (como a água, habitação, liberdade de expressão, igualdade de gênero, não
discriminação) e para a afirmação de novos tipos de direito (como o direito dos camponeses de se
beneficiar da reforma agrária, de obter um preço justo por sua produção, de decidir o que cultivar, de
participar da políticas públicas que afetam seus territórios), ainda não reconhecidos no direito
internacional.
É nessa chave, portanto, que Edelman vai estudar a campanha da Via Campesina para que a
ONU promulgue uma declaração sobre os direitos dos camponeses. Ele situa a origem desse
movimento na Indonésia de fins dos anos 1990, quando cai o ditador Suharto (1967-1998). Em 2001-
2002, organizações agrárias indonesas elaboraram uma declaração dos direitos dos camponeses
específica para o país, que contribuiu significativamente a declaração de direitos dos camponeses que
a Via Campesina adotaria em 2008-2009. Dali em diante, a rede internacional de movimentos sociais
agrários estabeleceu presença contínua no sistema ONU, tensionando os debates e forçando
mudanças.
Edelman sublinha que o uso do conceito de “território”, as exigências de reforma agrária e de
regulação de preços, bem como a rejeição do direito de propriedade intelectual – presentes na

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declaração da Via Campesina – alarmam os Estados soberanos do sistema ONU e “vão à veia jugular
do sistema capitalista” (p. 199). Essas reivindicações têm sido tratadas por cientistas sociais como
“altamente políticas” ou “ideológicas”, levando-os a se afastar progressivamente das categorias
operacionais de “camponês” ou “campesinato”. Por sua vez, os movimentos sociais agrários,
interessados em angariar apoio para um novo instrumento jurídico internacional e em sublinhar a
legitimidade de sua luta, têm adotado entendimentos cada vez mais amplos de quem é “camponês”,
definindo-o, enfim, como “qualquer pessoa que se dedique à agricultura, à pecuária, ao pastoreio, ao
artesanato relacionado à agricultura ou a uma ocupação conexa em uma zona rural. Isso inclui os
povos indígenas que trabalham na terra” (p. 199). Tal definição, porém, coloca no mesmo balaio
grupos – comumente designados “camponeses”, “agricultores familiares” e “gente da terra” –
bastante desiguais em termos de acesso não só a recursos mas também a direitos. Esses grupos,
inclusive, podem entrar em conflito pelo direito à terra (por exemplo, indígenas e não indígenas) e ao
preço justo (por exemplo, agricultores subsidiados de países versus não subsidiados, de países em
desenvolvimento).
Outra dificuldade em afirmar os camponeses como um grupo coerente com direitos
específicos, segundo Edelman, refere-se ao estatuto de vulnerabilidade concedido apenas a parte
deles, os indígenas. O direito internacional os considera povos vulneráveis, especialmente
discriminados e marginalizados em seu estatuto jurídico, e violentados em seus direitos humanos.
Considera-se a proteção a esses grupos vulneráveis complementar, e não contrária ao princípio de
não discriminação. Diversos deles foram reconhecidos como vulneráveis em vários instrumentos
internacionais, incluindo mulheres, crianças, idosos, pessoas que vivem na pobreza, povos indígenas,
minorias, migrantes, refugiados, pessoas com deficiência, prisioneiros e pessoas HIV positivas. A
Via Campesina defende a inclusão de camponeses na lista de grupos vulneráveis, afirmando que eles
são vítimas de discriminação e violações de direitos humanos e observando que “agora há mais
camponeses do que nunca na história e eles ainda constituem cerca de dois quintos da humanidade”
(p. 200).
Para Edelman, é improvável que essas alegações sejam bem-aceitas pelos Estados-membros
da ONU, que são profundamente céticos em relação ao status dos camponeses como um grupo e à
necessidade de novos instrumentos de direitos. “No entanto, apesar desses obstáculos, os
movimentos agrários transnacionais que estão fazendo campanha por um instrumento de direitos dos
camponeses da ONU ganharam uma força considerável e uma legitimidade crescente nos últimos
dois anos, em parte por vincularem sua luta às preocupações com o direito à alimentação” (p. 200).
O direito à alimetação no DUDH, segundo o autor, apresentava duas limitações principais: 1)
tinha força exortativa e não jurídica, não sendo vinculativa para os Estados-membros, 2) subordinava
o direito à alimentação ao direito a um nível de vida adequado, em vez de dar-lhe uma atenção
específica. Em 1976, ele recebe validação adicional com o PIDESC, que especificou “os direitos de
toda pessoa à (...) alimentação adequada” e a “não sofrer de fome nem de desnutrição". Os Estados
parte do PIDESC se comprometiam a realizar progressivamente e “até o máximo dos seus recursos
disponíveis” todos os direitos do pacto. No entanto, não houve a criação de nenhuma autoridade que
obrigasse os Estados a cumprir o pacto. Apenas em 1986 foi criado o Comitê sobre os Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (CDESC) para definir a forma como os direitos do PIDESC
deveriam ser assegurados pelos governos. Edelman destaca que os DESC, no entanto, tendem a
levantar objeções dos poderosos Estados-membros da ONU, que defendem que a inclusão do direito
à alimentação no acordo não seja uma obrigação, tendo em vista a liberdade de expressão e os
“direitos” dos agentes econômicos no mercado previstos no Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos (PIDCP), cuja assinatura e ratificação ocorreu nos mesmos anos das do PIDESC (1966 e
1976).
Issso muda, segundo Edelman, com o agravamento das crises nos setores de alimentos e da
agricultura e ao aumento da pressão interna e externa pelo direito à alimentação. Essas crises tiveram
dois momentos principais: 1) a década de 1980, quando a disparada dos preços dos insumos, as taxas

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de juros muito mais altas e a rápida expansão e liberalização do comércio global de alimentos
levaram à queda vertiginosa dos preços dos principais produtos agrícolas e a falências generalizadas
nas zonas rurais de muitos países desenvolvidos e em desenvolvimento; e 2) a década de 1990,
quando a liberalização do comércio agrícola e a redução mundial do apoio estatal aos pequenos
agricultores continuaram e tiveram efeitos devastadores nas áreas rurais. É neste contexto que
representantes de 55 organizações agrícolas de 36 países fundam em 1993, em Mons, Bélgica, a Via
Campesina, rede internacional que defende os pequenos produtores e os sem-terra. Nos anos
seguintes, o movimento se expande,1 alcançando influência crescente na mídia e em instituições
internacionais de governança. Em 2002, a Via Campesina, articulada com organizações agrárias da
Indonésia e de outros países do Sudeste Asiático, começa a defender um instrumento internacional
sobre os direitos dos camponeses.
Em 2007-2008, prossegue Edelman, ocorre uma segunda crise rural, caracterizada novamente
pela escalada dos preços dos insumos mas também pela intensificação da pressão sobre a base de
recursos devido à apropriação de terras em larga escala e ao aumento acentuado dos preços dos
alimentos. Essa crise teve um impacto catastrófico sobre os pobres urbanos e sobre os moradores
rurais que eram compradores líquidos de alimentos, desencadeando reações da sociedade civil e das
instituições de governança global. Em 2008, a Via Campesina, reunida em sua V Conferência
Internacional, em Maputo, Moçambique, concorda em um projeto de texto para a Declaração dos
Direitos dos Camponeses, e decide intensificar seu trabalho junto às Nações Unidas para aprová-lo.
O documento, destaca Edelman, estava “repleto de menções à fome e ao importante papel dos
camponeses na produção de alimentos para si próprios e para os não camponeses” (p. 210). Para o
autor: “O esforço para ligar um conjunto de ‘direitos dos camponeses’ ao direito à alimentação tem
de ser entendido em relação às estratégias retóricas convergentes dos defensores dos direitos dos
camponeses e das principais instituições e indivíduos do sistema das Nações Unidas, aos laços
organizacionais e afectivos entre estes dois grupos e – muito importante – ao impacto cada vez mais
grave da crise global de alimentos e da agricultura sobre os camponeses e os pobres rurais” (p. 210).
Hoje, quase dez anos após Edelman publicar “Linking the rights”, sabemos que ao menos
esse esforço do movimento camponês foi bem-sucedido: Em 17 de dezembro de 2018, a Assembleia
Geral da ONU aprovou uma Declaração sobre os Direitos dos Camponeses e Outras Pessoas que
Trabalham em Áreas Rurais2 fortemente baseada no projeto de texto da Via Campesina. No entanto,
podemos afirmar que a luta dos camponeses para fazer valer seus direitos continua, sobretudo por
duas razões. Uma, apontada por diversos críticos e por membros da própria Via Campesina, refere-
se, conforme Edelman, à incapacidade das Nações Unidas para fazer cumprir seus pactos de direitos,
haja vista seu orçamento modesto e sua burocracia pesada, e o poder descomunal (particularmente o
veto) dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança. Outra, que podemos sugerir agora,
refere-se à complexificação crescente da questão agrária nos últimos anos, com o recrudescimento ou
agravamento progressivo de algumas das crises globais (agrícola, alimentar, climática, ecológica) e o
surgimento de outras, que também desorganizam a vida no campo e a produção de alimentos
(pandemia, guerras, apropriação de terras e deslocamentos forçados em massa etc.).
Por tudo isso, se quisermos entender a situação do campesinato e do direito à alimentação no
mundo, devemos procurar entender como a evolução normativa da abordagem de direitos desse
grupo, tão bem descrita por Edelman, está se traduzindo na experiência objetiva dos próprios
camponeses.

Referências:

1
Hoje, ele é composto de mais de 180 organizações agrárias provenientes de mais de 80 países ( VIA CAMPESINA,
2023).
2
Ver Assembleia Geral das Nações Unidas (2018).

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ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. United Nations Declaration on the Rights of Peasants
and Other People Working in Rural Areas. Nova York: ONU, 17 dez.2018. Disponível em:
<https://digitallibrary.un.org/record/1656160>. Acesso em 14 jul.2023.

VIA CAMPESINA. Who are we? viacampesina.org, 2023. Disponível em:


<https://viacampesina.org/en/who-are-we/>. Acesso em 14 jul.2023.

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Altieri e Toledo (2011)


ALTIERI, Miguel A.; TOLEDO, Victor Manuel. The agroecological revolution in Latin America:
rescuing nature, ensuring food sovereignty and empowering peasants. Journal of Peasant Studies,
v. 38, n. 3, p. 587-612, 2011. https://doi.org/10.1080/03066150.2011.582947

H á uma revolução em curso na América Latina. Uma tripla revolução – epistemológica,


técnica e social – que vem introduzindo na região formas novas e inesperadas de
autossuficiência local, de conservação e de regeneração da agrobiodiversidade, e de
produção de alimentos saudáveis com poucos recursos externos e com a participação ativa de
organizações camponesas. Essa revolução está sendo gestada pelo menos desde os anos 1980 e vem
ganhando força como alternativa sustentável ao paradigma agroexportador e produtor de
biocombustíveis do continente, que só faz ameaçar sua sobernania alimentar e aquecer o planeta.
Trata-se da “revolução agroecológica”, que vem sendo liderada por uma série de movimentos
camponeses locais, regionais e nacionais, e recebendo a adesão e o apoio crescente de ONGs, de
instituições acadêmicas e também governamentais.
Essa é a tese central defendida pelo agrônomo chileno Miguel Altieri (1950-), professor
emérito da Universidade da Califórnia Berkeley, e pelo biólogo mexicano Victor Manuel Toledo
(1945-), secretário de Meio Ambiente e Recursos Naturais do México em 2019-2020, no artigo “The
agroecological revolution in Latin America: rescuing nature, ensuring food sovereignty and
empowering peasants” (A revolução agroecológica na América Latina: resgatando a natureza,
garantindo a soberania alimentar e empoderando os camponeses, em tradução livre). Nele, os autores
mostram que a agroecologia, longe de ser uma quimera hippie ou “coisa de comunista”, já é uma
realidade objetiva e pujante em pelo menos cinco áreas do continente (Brasil, Cuba, América
Cental, Andes e México), que podem se tornar polos mundiais de inovação tecnológica, cognitiva
e/ou social.
Nas seções a seguir, resumiremos os principais achados de Altieri e Toledo sobre cada uma
delas, comentando finalmente de que maneira essas evidências e análises podem contribuir para
novos itinerários de pesquisa e para pensar uma agenda ecoagrária alinhada aos desafios de nosso
século.

Brasil
“Talvez nenhum outro país tenha experimentado uma expansão mais dramática da
agroecologia do que o Brasil”, afirmam Altieri e Toledo (p. 589). Além de seu rápido avanço, a
expansão agroecológica brasileira se distingue por seu caráter simultaneamente ativista e
institucional. Discussões sobre agroecologia aparecem no meio acadêmico do país desde os anos
1980, com destaque para o trabalho dos agronômos José Antonio Lutzenberger (1926-2002) e Anna
Maria Primavesi (1920-2020). Em 1983, surge a Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura
Alternativa (AS-PTA), que, de acordo com os autores, desempenhou um papel importante na
disseminação de informações agroecológicas entre ONGs, organizações de agricultores e estudantes
de agricultura em todo o país.
Nas décadas seguintes, ainda segundo Altieri e Toledo, os avanços da agroecologia no Brasil
estiveram ligados a três processos principais: 1) à formação de uma nova geração de agroecologistas
brasileiros, muitos dos quais se tornaram professores e pesquisadores em universidades públicas e
centros de pesquisa e extensão; 2) à reorientação do movimento da agricultura familiar para a
agroecologia; e 3) à chegada de agroecologistas a cargos-chave dos governos estaduais e federal.
Esses processos resultaram na implementação de centenas iniciativas agroecológicas pelo país.

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A partir de então, os autores elencam uma série de avanços institucionais da agenda


agroecológica no Brasil. A agroecologia é incorporada a currículos e a projetos de ensino e pesquisa,
sobretudo nas universidades públicas. O Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura
Familiar (MDA) passa a desempenhar um papel importante não só no apoio a projetos de educação e
pesquisa mas principalmente na criação de instrumentos que facilitam o acesso de agricultores
familiares a conhecimentos, crédito, mercados etc. Em 2004, é criada a Associação Brasileira de
Agroecologia (ABA), que reúne pequenos agricultores, pesquisadores e técnicos de ONGs em
centenas encontros periódicos, nacionais e estaduais, para debater e promover a agroecologia no
Brasil. Em 2006, é lançada a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), estratégica para
coordenar esforços entre organizações de agricultores, instituições acadêmicas e terceiro setor. Até
mesmo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), aparato público de pesquisa
bastante ligado ao agronegócio, desenvolveu programas de agroecologia junto à ABA, à ANA e a
movimentos sociais.
Sobre estes últimos, Altieri e Toledo ressaltam a convergência ideológica em torno da
agroecologia que vem ocorrendo, pelo menos desde os anos 2000, entre organizações que lutam
contra as enormes injustiças agrárias no Brasil, como a Confederação Nacional dos Trabalhadores
Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (CONTAG), a Federação dos Trabalhadores e
Trabalhadoras na Agricultura Familiar (FETRAF) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST).
É interessante notar que, no ano 2000, a agroecologia assume papel de destaque na orientação
das ações estratégicas do MST (SILVA, 2011, p. 55). Desde então, ela foi articulada à luta do
movimento pela terra, incorporada a seu projeto de Reforma Agrária Popular, implementada em seus
assentamentos e acampamentos, inserida na matriz curricular de suas escolas rurais, e tematizada em
novos cursos (técnicos, tecnológicos, de graduação ou de pós-graduação), bem como em incontáveis
seminários e eventos de formação política na área, organizados pelo MST país afora (MST, 2022).
Para Altieri e Toledo, há quatro razões principais pelas quais a agroecologia foi adotada pelos
movimentos sociais rurais: (a) a agroecologia é socialmente mobilizadora, uma vez que sua difusão
requer a participação constante dos agricultores; (b) é uma abordagem culturalmente aceitável, uma
vez que se baseia no conhecimento tradicional, dialogando também com abordagens científicas
ocidentalizadas; (c) promove técnicas economicamente viáveis, privilegiando a utilização dos
conhecimentos indígenas, da agrobiodiversidade e dos recursos locais, evitando assim a dependência
de produtos externos; e (d) é ecologicamente correta, uma vez que não tenta modificar os sistemas de
produção existentes, mas sim otimizar seu desempenho, promovendo diversidade, sinergia e
eficiência.

Cuba
O sistema alimentar cubano vem passando por um processo de transformação em resposta à
crise que se instalou no país com o fim da União Soviética. Essa crise, marcada pelo embargo
comercial dos EUA e pelo colapso das importações de petróleo, agroquímicos e maquinaria agrícola
do bloco soviético, limitou a capacidade de Cuba de importar alimentos e materiais necessários para
a agricultura convencional. O país voltou-se então para a autossuficiência, e o movimento
agroecológico cresceu vigorosamente. Parte significativa das cerca de 100.000 famílias de pequenos
agricultores idependentes de Cuba hoje fazem parte do movimento Campesino a Campesino (CAC).
Elas introduziram métodos de diversificação agroecológica e de agricultura urbana no sistema
alimentar cubano, e vem produzindo atualmente muito mais alimentos por hectare do que os
sistemas industriais da ilha. Da experiência cubana, Altieri e Toledo ressaltam que a
agroecologia, tal como é promovida pelo movimento Campesino a Campesino, tem se revelado
“a forma mais eficiente, barata e estável de produzir alimentos por unidade de terra, insumos e
mão de obra” (p. 601).

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América Central
De um intercâmbio entre camponeses guatelmatecas e mexicanos no fim dos anos 1980,
nasce o movimento Campesino a Campesino, que floresceria nas décadas seguintes no sul do
México e na América Central, regiões há muito deflagradas por conflitos armados. Um elemento-
chave na metodologia do CAC é o papel do promotor campesino (promotor camponês): um
agricultor que, após introduzir com sucesso uma nova tecnologia de produção, passa estimular outros
agricultores a testar sua experiência. Desenrola-se, assim, um processo autônomo de difusão do
conhecimento agroecológico, que dispensa a presença de pesquisadores ou extensionistas. Estima-se
que cerca de 10.000 famílias na Nicarágua, em Honduras e na Guatemala hoje pratiquem o método
CAC, multiplicando com ele seus rendimentos – em até 4 vezes, de acordo com alguns casos
documentados.

Andes
A região andina do Peru, do Equador e da Bolívia constitui um cenário privilegiado para o
desenvolvimento da agroecologia, dada a presença de um enorme campesinato de origem indígena,
altamente resistente e mobilizado politicamente, inclusive em defesa do legado agrícola pré-
hispânico. Nas últimas décadas, essas populações encontraram na agroecologia um novo paradigma
para sua agricultura nativa. Operando por meio de redes descentralizadas de comunidades,
cooperativas e associações de agricultores, e recentemente vêm crescendo, com o apoio da sociedade
civil, elas vêm estabelecendo um diálogo crescente com pesquisadores, técnicos, ONGs, instituições
acadêmicas e redes de consumidores urbanos. Essas parcerias propiciam uma troca intensa de
conhecimentos, e vêm se desdobrando em diversos projetos (de agroecologia, de conservação da
natureza etc.), bem como em pressão política sobre os governos, em favor das populações indígenas
e camponesas desses países.

México
A Revolução Mexicana (1910-1917) deu origem à primeira reforma agrária do continente,
deixando nas mãos de comunidades camponesas e indígenas grande parte das terras, florestas e dos
recursos genéticos nativos do México. Alcaçaram-se, assim, dois imensos avanços no país: a
recampezinação do meio rural (resultado do desmantelamento do latifúndio e da revalorização da
pequena propriedade agrícola, de 9-25 hectares) e a reinvenção da matriz mesoamericana (que
garantiu aos povos indígenas acesso à terra, por meio do reconhecimento de seus territórios
ancestrais).
Com isso, a agroecologia no México não se reduz à agricultura mas envolve sistemas
socioecológicos de gestão dos recursos naturais, incluindo as florestas, a recuperação de terras
degradadas e a conservação da agrobiodiversidade. Numerosas comunidades que recuperaram
controle sobre suas terras florestais estão empenhadas na produção de uma variedade de
produtos madeireiros e não madeireiros, por exemplo. É também digna de nota a imensa
produção de café do país, que é em sua maior parte feita por povos indígenas que mantêm
agroflorestas complexas, diferindo drasticamente das plantações industriais (subsidiadas por
agroquímicos e propensas à erosão do solo). Grande parte desses produtores é filiada a cooperativas
organizadas regional e nacionalmente, fazendo do México um dos maiores exportadores de café
orgânico certificado do mundo.

Considerações finais
Para Altieri e Toledo, “a promoção de um paradigma agroecológico baseado na revitalização
de pequenas propriedades e processos sociais que valorizam o envolvimento e o empoderamento das
comunidades é a única opção viável para atender às necessidades alimentares”, na América Latina,
“nesta era de aumento dos preços do petróleo e de mudanças climáticas globais” (p. 589). Os autores
apontam que, contrariando as previsões acadêmicas de desaparecimento do campesinato, os

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camponeses latino-americanos aumentaram sua presença cultural, social e política na região,


assumindo um novo papel na resistência contra a agricultura industrial e o neoliberalismo (p. 606).
Expressão disso é a emergência, em 1993, da Via Campesina. Essa articulação internacional
de movimentos sociais rurais agrupa numerosas organizações latino-americanas, e tem sido
fundamental para o avanço da agenda da soberania alimentar na região e no mundo. Ela também foi
chave para a aprovação, em 2018, da Declaração Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses,
das Camponesas e de Outras Pessoas que Trabalham em Áreas Rurais (VIA CAMPESINA BRASIL,
2021). Estudar como esses movimentos – em que pese sua heterogeneidade marcante em termos de
membros e contextos de origem – vêm conseguindo avançar política e institucionalmente e colocar
as pautas da fome e da agroecologia na ordem do dia pode ser um caminho para compreender e
conceber as estratégias de resiliência e de enfrentamento ao capitalismo de que hoje tanto
necessitamos.

Referências:
MST. 3 elementos chave sobre Educação em Agroecologia do Dicionário Agroecologia e Educação.
mst.org.br, 6 mai.2022. Disponível em: <https://mst.org.br/2022/05/06/3-elementos-chave-sobre-
educacao-em-agroecologia-do-dicionario-agroecologia-e-educacao/>. Acesso em 13 jul.2023.

SILVA, Priscilla Gomes da. A incorporação da agroecologia pelo MST: reflexões sobre o novo discurso e
experiência prática. 2011. 177f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2011. Disponível em: <https://app.uff.br/riuff/handle/1/16339>. Acesso em 13
jul.2023.

VIA CAMPESINA BRASIL. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses, das
Camponesas e de Outras Pessoas que Trabalham em Áreas Rurais. Tradução e Revisão: Rafael
Bastos, Tairí Felipe Zambenedetti, Tchenna Maso, Marina dos Santos e Marciano Toledo. Secretaria
da Via Campesina Brasil, 2021. Disponível em:
<https://mab.org.br/wp-content/uploads/2021/02/DECLARA%C3%87%C3%83O-DOS-DIREITOS-
DOS-CAMPONESES-E-DAS-CAMPONESAS-.pdf>. Acesso em 13 jul.2023.

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