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Comunicações do ISER

Número 73 - Ano 40 - 2021

EVANGÉLICOS
À ESQUERDA
NO BRASIL

ENTREVISTAS COM
LIDERANÇAS E
COLETIVOS NAS
ELEIÇÕES DE 2020
ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 1
COMUNICAÇÕES DO ISER Nº 73
PUBLICAÇÃO SAZONAL DO INSTITUTO DE ESTUDOS DA RELIGIÃO
Rio de Janeiro - dezembro - 2021 / www.iser.org.br

Diretora executiva Conselho do ISER Organizadores deste


Ana Carolina Evangelista Pedro Strozenberg número
(presidente) Christina Vital da Cunha
Diretor executivo adjunto João Luiz Moura
Clemir Fernandes Alice de Moraes Amorim
Vogas
Assessoria editorial
Diretora de operações Barbara Musumeci Mourão
Brenda K. Souza
Luna Rozenbaum Ronilso Pacheco da Silva
Vilma Maria dos Santos Reis Diagramação
Coordenação acadêmica
Luan Cândido
Regina Novaes
Conselho editorial
Bruna Portela Capa
Assistente editorial
Fernanda Xavier Maia
Lucas Bártolo Lívia Reis
Isabel Pereira
Secretária
Moema Salgado Iniciativa apoiada por
Helena Mendonça

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Maurício Amormino Júnior, CRB6/2422)

C741 Comunicações do ISER / Organizadores Christina Vital, João Luiz


Moura. – Ano 40, n. 73 (dez. 2021). – Rio de Janeiro RJ: ISER, 2021.

30 x 22 cm

ISSN 0102-3055

1. Instituto de Estudos da Religião – Correspondências. 2.Eleições


– Brasil. 3. Evangélicos – Esquerda e Direita (Ciência política). I. Vital,
Christina. II. Moura, João Luiz.

CDD 361.7
Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422
EVANGÉLICOS
À ESQUERDA NO BRASIL
ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS
NAS DE ELEIÇÕES DE 2020
SUMÁRIO

Apresentação
“Identidades, números e histórias de evangélicos nas eleições 2020”
Christina Vital e João Luiz Moura 7

Entrevista com Ariovaldo Ramos


Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito 14

Entrevista com Nilza Valéria


Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito e
Rede de Mulheres Negras Evangélicas 30

Entrevista com Samuel Oliveira


Movimento Bancada Evangélica Popular 43

Entrevista com Tiago Santos


Movimento Cristãos Contra o Fascismo 53

Entrevista com Jonatas Arêdes,


Fellipe Gibran, Djenane Vera e KeniaVertello
Integrantes da Candidatura Coletiva Plural (MG) 66

Epílogo
“Evangélicos e eleições: anotações para uma agenda de pesquisa”
Regina Novaes 80
APRESENTAÇÃO

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 5


6 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL
COMUNICAÇÕES DO ISER
1
Professora Associada
do Departamento
de Sociologia e
do Programa de
Pós-graduação
em Sociologia,
coordenadora do
LePar-Laboratório
IDENTIDADES, NÚMEROS E HISTÓRIAS de Estudos Sócio
Antropológicos em
Política, Arte e Religião,
DE EVANGÉLICOS NAS ELEIÇÕES 2020 na Universidade Federal
Fluminense (UFF).
2
Mestre em Ciências da
Christina Vital da Cunha1 Religião, pesquisador
visitante no Instituto
João Luiz Moura2 de Estudos da Religião
(Iser), membro do
grupo de pesquisa
O fascículo Evangélicos à esquerda no Brasil traz entrevistas com Estado e Direito
no Pensamento
lideranças e coletivos nas eleições 2020, de Comunicações do Iser, traz para Social Brasileiro sob
um público amplo reflexões de atores religiosos, notadamente evangélicos coordenação do
professor Doutor Silvio
e evangélicas, sobre as eleições 2020. Desde a movimentação orgânica de Almeida (Mackenzie).
católicos e evangélicos para elegerem representantes ao Congresso Nacional Membro do grupo
de pesquisa A
naquela legislatura (1987-1990) que seria marcada pela elaboração da nova Crítica do Direito e a
Constituição, após 21 anos de ditadura militar no Brasil, o conservadorismo Subjetividade Jurídica,
sob coordenação
religioso ganhou destaque em trabalhos acadêmicos e na mídia secular. do professor Doutor
Contudo, a partir das eleições presidências de 2010, a ênfase na participação Alysson Mascaro (USP).
desses atores religiosos se avolumou atingindo uma espécie de culminância 3
A retórica da perda
“pode ser considerada
nas eleições 2018, quando parte dos evangélicos foram identificados como como uma tática
o principal grupo de apoio a Jair Messias Bolsonaro, vitorioso naquele discursiva articulada
pleito. Na maior parte das abordagens, uma forma de pensamento binário por diferentes
lideranças sociais e
se pronunciava tornando opaca a diversidade de posicionamentos políticos, políticas (dentre elas,
sociais e até mesmo doutrinários/teológicos/cosmológicos presentes no religiosas) baseada
em um imperativo:
interior dos grupos religiosos no Brasil. Certamente, o Brasil, assim como o retorno da ordem,
outros países das Américas e da Europa, passou por uma efervescência da previsibilidade, da
segurança, da unidade,
conservadora (Soares, 2019; Saad Filho, Morais, 2018; Guadalupe e Carranza, da autoridade. É
2020; Fonseca, 2019) que fez desmoronar conquistas de grupos sociais um discurso que se
contrapõe a mudanças
minoritários, políticas públicas inclusivas, programas de assistência social, sociais experimentadas
(Natividade, Sousa, Rocha, 2021; Natividade 2021 entre outros) um modelo socialmente no mundo
de gestão no qual a participação popular era incentivada. a partir dos anos 1990 e,
no Brasil, especialmente
Na América Latina e nos Estados Unidos, essa efervescência conservadora a partir de meados
dos anos 2000. A
contou deliberadamente com o incremento de líderes e empresários insegurança moral e até
evangélicos e com parte da cúpula católica. Já os fiéis dessas e outras tradições ontológica produzida
por mudanças em
no Brasil vinham fazendo suas escolhas eleitorais cada vez mais guiados paradigmas sobre
por sentimentos de ameaças que se apresentavam sobre vários âmbitos de corpo e sexualidade,
suas vidas (renda/empregabilidade, patrimonial, física – com o aumento da somado ao aumento
da violência armada
violência no campo e na cidade, moral/valores de referência). Nesse contexto, no campo e na
narrativas que acentuavam as perdas partilhadas por diferentes grupos sociais cidade produziu
em um contingente
diante de sucessivos governos identificados com a esquerda tiveram sucesso. significativo da
Uma retórica da perda3 (Vital da Cunha, 2020) foi sendo elaborada com vistas população um desejo
de retorno a um status
às eleições ganhando mentes e corações. As disputas não eram tão somente quo ante no qual
no campo das objetividades políticas, mas na construção e consolidação de não se sentia tantas
ameaças físicas, morais
uma ética conservadora aquecida paulatinamente desde os anos 1990 por e patrimoniais” (Vital da
atores diversos (Rocha, 2020). Em contraposição a essa retórica da perda Cunha, 2020:34).

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 7


4
Para acessar uma (Vital da Cunha, 2020) e do ódio (Rocha, 2020), uma narrativa amorificada4
discussão sobre
o “cristianismo que explorava sentimentos de esperança, utópicos, tornava-se proeminente
da batalha” e em diferentes grupos sociais de esquerda e centro esquerda, religiosos ou não.
o “cristianismo
motivacional” a partir Entre religiosos cristãos, notadamente católicos e evangélicos, essa narrativa
da arte urbana na qual amorificada emergia como um reflexo natural da (segundo eles, como veremos
grafiteiros evangélicos
e católicos cobriam nas entrevistas que integram este volume) correta leitura do Novo Testamento,
muros da cidade dos ensinamentos de Jesus Cristo.
com palavras, cores
e formas nas quais o Um estímulo ao voto pela lealdade à fé evangélica tornou-se imortalizada
amor se pronunciava,
ver Vital da Cunha no livro Irmão vota em Irmão (Sylvestre 1986). Nele, o autor, líder assembleiano
(2014). e assessor no Senado Federal, exortava a vida política com elaborações do
5
Link https:// tipo: “Bastaria o argumento do amor cristão para fazer com que os crentes
cpadnews.com. votassem nos crentes. Porque quem ama não quer ver o seu irmão derrotado
br/assembleia-
de-deus/45558/ (...). Crente vota em crente, porque, do contrário, não tem condições de
cgadb-conclama- afirmar que é mesmo crente” (Sylvestre, 1986:53-54). Algumas décadas
assembleianos-a-
orar-pelo-pais.html. se passaram e sucessivos pleitos iam ganhando seus próprios contornos,
Publicado em 6 de
setembro de 2018.
contudo, conservadores evangélicos identificados pela bibliografia
Acesso em: 22 jun. especializada como hegemônicos (Burity; Giumbelli, 2020), foram marcando
2019.
socialmente, e no interior das igrejas, o que era ser evangélico “de verdade”
6
Vale lembrar que e como deveria ser o voto desse segmento religioso.
há um quantitativo
de candidaturas Em 2018, vimos a importante atuação de líderes evangélicos de perfil
de religiosos que
militam politicamente moderado e mais à direita levantarem campanhas de oração, incentivo à
levando em conta sua sensibilização política dos membros de suas igrejas como se toda a nação
identidade religiosa,
mas que não se estivesse sob uma ameaça. Nas redes sociais da Convenção Geral das
apresentam a partir Assembleias de Deus do Brasil (CGADB) líamos:
dela em seus registros
no TSE. Uma crise moral, social, econômica e política, tem assolado nossa nação nos
últimos anos, e a nossa principal esperança de mudança é o Senhor Jesus. Por isso,
nestes trinta dias que antecedem as eleições majoritárias, a Convenção Geral das
Assembleias de Deus no Brasil (CGADB), convida você Pastor, Membro da Igreja
Evangélica Assembleia de Deus a fazer parte de uma Campanha Nacional de Jejum
e Oração. Serão trinta dias ininterruptos [...] clamando ao Senhor, jejuando, orando
por nosso país; em seu lar, sempre que estiver reunido com sua família em um
momento de adoração a Deus, clame pelo Brasil; em todos os cultos e reuniões
da Igreja que está sob seus cuidados, de igual modo, faça uma oração especial
pelo Brasil. Oremos para que Deus nos direcione a votar em homens, mulheres
comprometidos não só com o bem e o futuro da nação, mas acima de tudo,
comprometidos com Deus e a sua palavra, que afirma “Quando os justos governam,
o povo se alegra” Pv. 29:2a; não fique de fora deste projeto, mobilize a Igreja do
Senhor no seu bairro, município, estado, a fazer parte deste momento especial.5

Nas eleições seguintes, em 2020, o clima era de grande expectativa


entre diferentes segmentos sociais que lhes atribuíam um caráter fatal: ou
a direita autoritária estabelecida no governo federal ganharia capilaridade
tornando a vida democrática no país uma quimera ou a esquerda organizada
em diferentes arranjos se reergueria nas urnas e produziria uma barreira ao
crescimento das forças políticas antagônicas com vistas a uma inversão do
jogo nas eleições presidenciais de 2022 (Vital da Cunha, 2021).
No campo religioso, uma intensa disputa por mentes e corações estava sendo
travada. Do ponto de vista quantiativo, essa disputa se revelou, por exemplo,
em um percentual maior de candidaturas registradas com título religioso para
vereança no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Um total de 12.269 para as eleições
de 2020. Desse total, 10.195 eram evangélicas (autoidentificadas como pastor,
pastora, irmão, irmã, missionária, missionário, diácono, diaconisa, entre outros).6

8 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


Gráfico 1 – Total de candidaturas com registro
como evangélicas para a vereança no TSE em 2020.

500.000
480.661

400.000
No de candidatos

300.000

200.000

100.000

10.195 0

Não Sim
Evangélicos

Fonte: Pesquisa Esquerda evangélica nas eleições 2020


- Iser/HBS. Gráfico de Matheus Pestana.

Foi nesse ambiente que se organizaram diferentes atores e grupos de


esquerda evangélicos para ganhar espaço na sociedade, na política eletiva
e disputar o que seria a identidade evangélica com seus irmãos de fé
conservadores. Essa espécie de levante culminou em 2.152 candidaturas de
evangélicos em partidos de esquerda nas eleições 2020. Desse total, 1.804
concorreram à vereança.

Gráfico 2 – Número de candidaturas à vereança por segmento ideológico.

6.332
6.000
No de candidatos

4.000

2.059 2.000
1.804

0
Centro Direita Esquerda
Ideologia

Fonte: Pesquisa Esquerda evangélica nas eleições 2020


– Iser/HBS. Gráfico de Matheus Pestana.

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 9


7
A pesquisa teve início
em julho de 2020 e Evangélicos de esquerda nessas eleições se apresentaram em candidaturas
encerrou o período de individuais e coletivas, umas independentes de denominações ou do
coleta de dados em
dezembro do mesmo movimento social, outras ligadas a coletivos como a Rede de Mulheres Negras
ano. A sistematização Evangélicas do Brasil, Movimento Negro Evangélico, Frente de Evangélicos
desse material se
encontra em curso. A Pelo Estado de Direito, Cristãos Contra o Fascismo etc.
equipe diretamente As entrevistas a seguir são resultado da pesquisa Esquerda evangélica
envolvida no projeto
contou comigo como nas eleições 2020, realizada pelo Instituto de Estudos da Religião (Iser) em
proponente do projeto parceria com a Fundação Heinrich Boll (SHB).7 Inicialmente, tínhamos como
e coordenadora e
com João Luiz Moura objetivo acompanhar em profundidade o movimento Bancada Evangélica
como assistente direto. Popular (BEP), resultado de uma articulação da Frente de Evangélicos pelo
Durante a realização de
entrevistas e para suas Estado de Direito com outras organizações ligadas ao movimento social
transcrições contamos evangélico e os Cristãos Contra o Fascismo (CCF), um coletivo formado por
com integrantes
do LePar (Gabrielle cristãos (evangélicos e católicos) decididos sobre a importância de interferir
Herculano, Rafaela no processo político a partir do oferecimento de candidaturas de esquerda
Marques e Wallace
Cabral). Gabrielle militando pela afirmação da democracia e da vida plena, conforme sua leitura
Abreu e Matheus da Bíblia.8
Pestana trabalharam
diretamente no O material reunido neste número de Comunicações do Iser conta com cinco
acompanhamento
das campanhas entrevistas realizadas com lideranças evangélicas, algumas concorrendo
de candidatos de às eleições 2020 em candidaturas individuais, outras em candidaturas
direita e de esquerda
evangélicos nas coletivas. São eles: Ariovaldo Ramos, Nilza Valéria, Samuel Oliveira, Tiago
mídias sociais, sob a Santos e os integrantes da Candidatura Coletiva Plural. Ari, como é mais
coordenação de Magali
Cunha. Matheus foi conhecido, ministra na Comunidade Cristã Reformada, em São Paulo. À
ainda responsável pela época da entrevista, era o coordenador nacional da Frente de Evangélicos
elaboração de vários
bancos de dados, pelo Estado de Direito, ao lado de Nilza Valéria, nossa segunda entrevistada.
alguns já disponíveis Eles foram fundadores do movimento em 2016, logo após o impeachment da
na plataforma Religião
e Poder, do Iser. presidenta Dilma Rousseff. Valéria atuou na Visão Mundial Brasil, no mandato
Semanalmente havia da deputada estadual Mônica Francisco (PSOL-RJ), e atualmente integra a
a reunião de todos
os integrantes dessas Rede de Mulheres Negras Evangélicas. Samuel de Oliveira é coordenador
pesquisas como àquela do movimento Bancada Evangélica Popular e foi candidato pelo PCdoB à
dedicada à investigação
sobre as candidaturas Câmara de Vereadores de São Paulo em 2020. Tiago Santos é idealizador
de direita evangélicas, e coordenador do movimento Cristãos Contra o Fascismo, criado em 2018.
realizada pelo Iser com
apoio da Fundação É teólogo de formação e concorreu nas eleições de 2020 pelo PSOL-RS
Ford, sob coordenação a uma cadeira na Câmara Municipal de Porto Alegre, em uma candidatura
de Lívia Reis. Nessas
oportunidades todos, coletiva. Por fim, contamos com a colaboração de Jonatas Arêdes, membro
de modo integrado, da 2ª Igreja Presbiteriana de Belo Horizonte e pequeno produtor rural, Fellipe
partilhávamos
achados de pesquisa, Gibran, pastor, advogado e integrante da Comunidade Evangélica Unidade
reflexões e leituras. em Cristo, Djenane Vera, professora de artes plásticas na rede pública de
Em cada encontro,
Regina Novaes, Ana ensino, ceramista e frequentadora da Igreja Cristã Maranata e KeniaVertello,
Carolina Evangelista estudante de pedagogia e membro da Igreja Batista Connect. Esses quatro
e Clemir Fernandes
nos brindavam jovens integravam o Coletivo Plural, candidatura que concorreu naquelas
com importantes eleições a uma vaga na Câmara Municipal de Belo Horizonte pelo recém-
comentários sobre
os temas levados ao criado partido Unidade Popular.
debate.
Agradecemos aos entrevistados pelo tempo dispensado à interlocução
8
Além do
acompanhamento conosco neste trabalho de pesquisa, a toda a equipe do Iser, aos integrantes
desses dois grupos do Laboratório de Estudos Socioantropológicos em Política, Arte e Religião
e de algumas outras
candidaturas em (LePar – UFF) e ao apoio da Fundação Heinrich Boll, em especial à Annete
diferentes regiões do Von Schönfeld e Marilene de Paula.

10 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


Referências
BURITY, Joanildo; GIUMBELLI, Emerson. “Minorias Religiosas: identidade e política Brasil ao longo da
em movimento”. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 40(1): 1-246, 2020. campanha eleitoral
oficial, monitoramos
FONSECA Alexandre Brasil. Discursos evangélicos de uma nova direita cristã à também outro
grupo de atores
brasileira. São Paulo: Editora UNIFESP, 2019. políticos naquelas
eleições: candidaturas
GUADALUPE, José Luis Pérez. CARRANZA, Brenda (org.). Novo ativismo político evangélicas de
no Brasil: os evangélicos do século XXI. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer Stiftung, esquerda em oito
2020. cidades brasileiras
(Porto Alegre, Rio de
Janeiro, São Paulo,
NATIVIDADE, Marcelo; SOUSA, Bruno Alves; ROCHA, Rômulo do Nascimento. Recife, Salvador,
“Políticas sexuais, saúde e violência em tempos de pandemia da Covid-19”. n. 39, Goiânia e Belém).
jul./dez. 2021. Essa coleta de dados
foi realizada em uma
NATIVIDADE, Marcelo. “Refazendo centros e margens: notas de pesquisa para parceria entre Iser,
Núcleo de Estudos da
avaliação da política sexual no Brasil atual”. Revista Aval. v. 5, n. 19, 2021. Disponível Religião (NER-UFRGS)
em: http://periodicos.ufc.br/aval/article/view/71624/197173. Acesso em: 20 de e Grupo de Estudos
Afro (GeAfro – UFRGS)
novembro de 2021. nas pessoas de Ari
Pedro Oro e Érico
SAAD FILHO, Alfredo; MORAIS, Lecio. Brasil: neoliberalismo versus democracia. São Carvalho. As análises
Paulo: Boitempo, 2018. sobre esse material
serão publicadas
SOARES, Luiz Eduardo. O Brasil e seu duplo. São Paulo: Todavia, 2019. em uma coletânea
com outros produtos
SYLVESTRE, Josué. Irmão vota em irmão. Brasília: Pergaminho, 1986. relativos à pesquisa
maior sobre religião
VITAL DA CUNHA, Christina. “Retórica da Perda nas eleições presidenciais brasileiras nas eleições 2020
em 2018: religião, medos sociais e tradição em foco”. Revista Plural: Antropologías realizada pelo Iser
com apoio da HBS e
desde América Latina y el Caribe. Año 3, n. 6, p. 123-149, 2020. Fundação Ford sob
coordenação de Lívia
VITAL DA CUNHA, Christina. “Irmãos contra o império: evangélicos de esquerda nas Reis.
eleições 2020 no Brasil”. Debates do NER, Porto Alegre, ano 21, n. 39, p. 13-80, jan./
jul. 2021.
VITAL DA CUNHA, Christina; LOPES, Paulo Victor Leite e LUI, Janayna. Religião
e Política: medos sociais, extremismo religioso e as eleições 2014. Rio de Janeiro:
Fundação Heinrich Böll: Instituto de Estudos da Religião, 2017.

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ENTREVISTAS COM
LIDERANÇAS E
COLETIVOS NAS
ELEIÇÕES DE 2020

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ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020
Crédito da imagem de fundo:

13
Rede de Mulheres Negras Evangélicas (2019).
ENTREVISTA COM
ARIOVALDO RAMOS

COORDENADOR NACIONAL DA FRENTE


DE EVANGÉLICOS PELO ESTADO
DE DIREITO (FEED)
Por Christina Vital,9 Wallace Cabral Ribeiro,10
João Luiz Moura,11 Gabrielle Herculano12

9
Professora Associada Ariovaldo Ramos (63 anos) é um líder evangélico com uma ampla história
do Departamento de atuação em movimentos sociais. Integrou o Movimento Progressista
de Sociologia e
do Programa de Evangélico nos anos 1990, foi presidente da Associação Evangélica Brasileira
Pós-graduação (AEVB), missionário do Serviço de Evangelização para a América Latina (Sepal)
em Sociologia,
coordenadora do e presidente da Visão Mundial Brasil. Mais recentemente, em 2016, fundou a
Laboratório de Estudos
Socioantropológicos
Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito. Foi seu coordenador, ao lado de
em Política, Arte e Nilza Valéria, até os meses iniciais de 2021. Atualmente ministra na Comunidade
Religião (LePar), na
Universidade Federal
Cristã Reformada, em São Paulo, além de ser escritor, articulista e conferencista.
Fluminense (UFF). Nesta entrevista, realizada em setembro de 2020, tivemos a oportunidade
10
Doutorando de ouvi-lo sobre os movimentos evangélicos de esquerda nos últimos 50 anos
pelo Programa de
Pós-graduação destacando pontos de contato e de fricção entre as agendas que organizavam
em Sociologia da os ativistas no passado e no presente. A temática da espiritualidade e a
Universidade Federal
Fluminense (PPGS- agenda política nacional também foram alvo de sua reflexão apresentando
UFF), mestre e questões relativas à identidade evangélica progressista, às teologias que são
bacharel em Sociologia
pela mesma instituição, mobilizadas entre líderes evangélicos ontem e hoje e a renovação dos modos
membro do LePar e de fazer e estar na política no tempo presente.
do Núcleo de Estudos
Friedrich Engels (Nefe).
11
Mestre em Christina Vital – Ariovaldo, Bancada Evangélica, principalmente,
Ciências da Religião,
pesquisador visitante agradeço, em nome do grupo de a tentativa de desenhar um perfil
no Instituto de Estudos pesquisa, por aceitar nos conceder único para os evangélicos. Então,
da Religião (Iser),
membro do grupo esta entrevista. Gostaríamos de protestamos e fizemos questão de
de pesquisa Estado e começar ouvindo você sobre a disputar a narrativa, mas, desde o
Direito no Pensamento
Social Brasileiro, sob Bancada Evangélica Popular (BEP). início, percebemos que uma disputa,
coordenação do O que é esse movimento e como mesmo de narrativa, aconteceria
professor doutor Silvio
Almeida (Mackenzie). ele se formou? Quais as pretensões se nos opuséssemos a eles como
Membro do grupo para as eleições de 2020? Quem alternativa político-partidária.
de pesquisa A
Crítica do Direito e a são as pessoas que compõem esse Não era função da Frente nem era
Subjetividade Jurídica, movimento? possível, porque a Frente desde
sob coordenação
do professor doutor Ariovaldo Ramos – Quando a o início, se estabeleceu como
Alysson Mascaro
gente começou a Frente, em 2016, suprapartidária justamente para
(USP).
algo que ficava claro era que tínhamos poder enfrentar os vários embates e
12
Assistente Social,
mestranda pelo PPGS- tomado uma posição, não só contra não produzir desconfianças injustas
UFF e membra do o golpe de Estado, mas também e desnecessárias. Eu acho que nós
LePar.
contra a tentativa de hegemonia da escolhemos bem, e, por isso, qualquer

14 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


possibilidade de ajudar a formar um fiquei tão chocado com aquilo, tão
grupo partidário, pluripartidário, no envergonhado, tão ofendido como
caso, estava distante, até porque não cristão que disse: “gente, se nós não
havia esse engajamento evangélico nos contrapusermos, isto aqui vai
com a formação da Frente, e seu virar uma ‘bandalha’, isto aqui vai
consequente crescimento sem virar uma loucura, a gente tem que
número de evangélicos começou achar um jeito de se contrapor.”
a se dar conta da necessidade de Naquela época, ainda não era
envolvimento político-partidário. possível, mas ali eu comecei a
Então, faltava o quê? Uma referência perceber que a direita tinha ido
para enfrentamento das eleições muito mais rápido do que todos nós
propriamente dita. E aí que nasce a pensaríamos, e que os pastores líderes
Bancada Evangélica Popular, que não tinham perdido totalmente o pudor e
é ligada à Frente – tem muita gente decidiram usar as suas denominações
que saiu ou que foi despertada pela como peso e moeda de troca no
Frente –, outros que já tinham prática mundo político partidário. Então,
político-partidária, mas estavam ali acho que ali eu fiquei consciente, “se
soltos. a gente não se organizar...” E quando
Muitos evangélicos que tinham veio o golpe de estado, era hora
prática partidária estavam soltos, de gritar, a gente gritou um pouco
a Igreja é alheia a isso, e a Igreja antes, mas as pessoas que estavam
majoritariamente só aceitava aqueles apoiando o grito refluíram e aí
que se comprometiam com algumas nasceu a Frente de Evangélicos pelo
teologias: teologia da prosperidade, Estado de Direito. A gente, desde
teologia da batalha espiritual, e então, já tinha essa consciência, “nós
que se submetessem aos caciques. precisamos fazer esse enfrentamento
Então, você tem de fazer valer o que nas urnas”; se a gente não fizesse
o cacique quer. Eu me lembro uma enfrentamento nas urnas, todo o
vez em que eu estava pregando nosso discurso “morre na praia”. E
em uma igreja, em uma série de foi quando o Samuel Oliveira, que já
pregações durante a manhã, em uma era um cara envolvido com o Partido
grande denominação, e, terminada Comunista do Brasil, veio conversar
a pregação, outros pregadores e eu, comigo, era da Frente. Eu comecei,
um elenco, fomos almoçar, e o líder conversei com ele sobre o que estava
máximo da denominação levou um no meu coração desde sempre: criar
deputado estadual e a sua esposa, um movimento de apoio aos irmãos
que seria candidata à vereadora. e irmãs que quisessem ir para via
E, aí, ele começou, sem nenhum político-partidária e que precisavam
pudor mesmo, vendo ali outros que de formação antes de mais nada... E
não eram da denominação dele, a precisava de apoio porque o sujeito
escalar os pastores quantos votos vai para essa cena, para esse campo,
queria de cada um e a dar tarefas: e não está minimamente preparado.
“você vai conseguir tantos votos na Em primeiro lugar, ele está sozinho,
vereadora, você tanto, tanto, tanto, inclusive para se manter na fé, para
tanto.” E eu fiquei chocado que ser protegido das várias tentações
a senhora candidata à vereadora que o mundo político partidário
não dizia uma palavra, o marido brasileiro oferece, porque você sabe,
dela é que falava o tempo todo, tanto quanto eu, ou mais, certamente,
conversava, era um interlocutor que você tem dois ou três partidos
dela com o pastor, com o líder da no Brasil, o resto é aluguel, o resto é...
denominação, não é só o pastor local, negócios, negócios... É assustador, é
que é um líder também, mas... Eu vergonhoso, é antidemocrático, mas

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 15


há mais de 30 partidos no Brasil, e posições, puseram o nome popular
você pode separar quatro, cinco sobre para não despertar ou irritar
os quais pode dizer: “não, isso aqui suscetibilidades desnecessariamente,
são partidos, esse aqui é de direita, mas são todos progressistas, até
esse aqui é de centro, esses aqui são porque vêm desse movimento
de esquerda, eles têm ideologia, têm progressista evangélico que se
programa, disputam o poder etc.” A estabeleceu no país de uma forma
maioria dos outros são negócios, é maior do que eu imaginava.
só isso. Tem umas novas tentativas Quando a gente estava no saguão
chegando, alguns rapidamente do sindicato, o Anivaldo [Padilha]
viraram um negócio também (risos), disse para mim “olha, nós podemos
são os “Novos” da vida, rapidamente conversar com os senadores, mas
ficaram envelhecidos. precisamos de um movimento,
Então, nasceu a ideia, que conta alguma coisa assim, de uma frente”.
com o apoio de uma formação do Eu falei: “a gente fez um manifesto
Rudá Ricci, que tem muita qualidade. fantástico, mas o pessoal que estava
O Rudá cria um curso de formação comigo saiu, eu fiquei ‘pendurado no
para quem quer a militância político- pincel’, os caras levaram a escada,
partidária. E, a gente pede que todo então, não tem nada aqui que você
mundo da Bancada faça esse curso. sugere?” Aí, estava a Nilza [Valéria],
E a ideia da Bancada é primeiro ele e eu... “não, vamos fazer uma
ser um abrigo para quem está frente, então, vamos fazer uma
chegando... está tentando conseguir frente”. Aí, nasceu, ali, uma frente
a legenda no seu partido, mas é de evangélicos para não cair no
minoritário, obviamente, acabou de erro da bancada evangélica. “Mas
chegar, não tem ambiente e precisa quem vocês representam? Nós e
de apoio, precisa de formação, todos os que concordam que isso
precisa de apoio na sua fé, inclusive aqui é um golpe de estado e que o
para o desenvolvimento de uma país foi entregue, nós precisamos
espiritualidade que eu chamo de reagir, todo mundo que pensa
espiritualidade progressista, precisa assim a gente representa”. E a ideia
ter um projeto. Eu tenho ministrado embrionária estava lá o tempo todo
para o pessoal sobre o que chamo esperando nascer. Nasceu e deu mais
de ecossocialismo cristão dentro da repercussão do que eu imaginava
espiritualidade progressista. – inclusive, acho que o próprio
Então, precisa ter um lugar pessoal imaginava, e tem boas
para voltar todo dia, toda hora. chances, tem gente em várias partes
Funcionaria dentro desse espírito do país já fazendo parte. A ideia
dos “gabinetões”, que o pessoal está é... alimentar esse pessoal o tempo
falando por aí... É mais ou menos todo com textos, com ajuda, com
nessa linha. E nasceu, assim. análises de conjuntura e até porque
não sabemos quantos conseguiram
Quem cuida de verdade é o
mandato, mas a ideia não é ter só
Samuel Oliveira, eu fui só o sujeito
o movimento se houver mandato,
que deu a ideia, e disse “vai em
porque isso é uma caminhada
frente e faz, eu não tenho vocação
que pode levar dois, três, quatro
político-partidária, então, não vou
pleitos, importante é isso. Agora não
estar lá, mas, se eu puder ser útil, é
vão falar em nome da Bancada, é
só me avisar, o que precisar de mim
popular, Bancada Popular é só um
estou aqui”.
movimento de apoio, eles vão falar
Assim, eles fizeram um manifesto, em nome de seus partidos... votos
alinharam, mais ou menos, as suas nas suas áreas de atuação dentro das

16 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


suas respectivas representatividades católicos e evangélicos por enfatizar
e estão fechados na questão do a dimensão política e econômica em
Estado laico e na questão de uma detrimento da dimensão emocional
ênfase cristã, que, naturalmente, pelo e espiritual. Como você enxerga essa
menos para esse ciclo, esse grupo, se questão e em que medida a dimensão
inclina para o socialismo. da sensibilidade (o emocional) está
CV – Ariovaldo, gostaria que sendo tratada no BEP?
você falasse um pouco mais sobre AR – Bom, é verdade,
essa questão da “espiritualidade principalmente no caso da Teologia
progressista”. Se puder falar um da Libertação, eles não conseguiram
pouco mais sobre o curso mencionado fazer essa ponte, eles, na verdade,
anteriormente e sobre a articulação terceirizaram a revolução, apoiaram
das candidaturas seria ótimo. a revolução proletária e apareceram
AR – Bom, em relação à em um segundo momento, dizendo o
espiritualidade progressista, foi algo lado que Deus está e todas as leituras
que trabalhei bastante com a Frente bíblicas deles, que são maravilhosas,
em São Paulo, e nos encontramos em diga-se passagem, de uma qualidade
várias sextas-feiras para falar sobre impressionante, aquela série deles,
o assunto. Então, com base em que como ler Efésios, como ler Atos...
nossa espiritualidade é progressista? Aquilo é extraordinário, mas é sempre
Porque o progressismo é naturalmente como o momento segundo.
cristão, a fé cristã é naturalmente Eu ouvi uma vez uma ilustração
progressista... E até trabalharmos a do Hugo Assmann que, para mim,
questão do ecossocialismo como sintetiza a questão. Quando
parte dessa espiritualidade... Sobre perguntado sobre o que era a
isso falei basicamente com a Frente, Teologia da Libertação, ele ilustra
foram três ou quatro encontros só dizendo que: imagine um grupo de
para falar desse tema. proletários trabalhadores e
Em relação a candidaturas, por trabalhadoras indo ao encontro, na
exemplo, tem o Felipe Gibran, luta dos seus direitos, de encontro ao
de Minas Gerais, que está se palácio de governo, indo para atacar
candidatando pela UP, União Popular mesmo, para tomar o palácio, e eles
pelo Socialismo, esse é o nome que veem aquela composição fantástica,
eu me lembro, assim, de primeira. mas quando entram na avenida que
Em São Paulo é onde tem mais, vai desembarcar no palácio do
naturalmente, porque o movimento governo, eles dão de cara com os
nasceu aqui, mas tem outros estados policiais da tropa de choque,
já. O Samuel [Oliveira] tem essa armados até os dentes, esperando
relação de nomes, eu, infelizmente, por eles no meio da avenida. E...
não a tenho, mas, pelo menos um eu param, tem aquele impasse, aquele
lembrei agora. E tem o curso do Rudá momento de silêncio, ninguém sabe
Ricci, que eu acho que vale a pena quem vai tomar a iniciativa, e, então,
conversar com ele, porque é um curso alguém pega o megafone e dá a
de muita qualidade de formação de palavra de ordem dizendo
candidatos e candidatas à militância “companheiros, avancemos, porque
político-partidária especificamente. Deus está ao nosso lado”. E o
Assmann diz: “isso é a Teologia da
CV – Existem algumas
Libertação.” Então, isso é fantástico,
interpretações que sinalizam que
eu lembro, eu ouvi isso saindo do
a Teologia da Missão Integral e
seminário, faz muito tempo (risos)...
a Teologia da Libertação teriam
Então, todos nós que ouvimos aquilo
perdido espaço nas igrejas e entre fiéis
saímos com “sangue nos olhos”, só

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 17


que era um segundo momento, nós revolucionária da Missão Integral, até
não éramos os estimuladores da porque virou moda, e virar moda é
revolução, nós éramos os apoiadores uma desgraça, Mas a Teologia da
da revolução. Nesse sentido, a Missão Integral tem essa pegada que
Teologia da Missão Integral se saiu a Teologia da Libertação não
melhor, porque chama o teólogo, a conseguiu. Primeiro, porque o
teóloga, para ser o estimulador da movimento já se propôs a ser um
revolução, o que dá o tom, que dá as segundo movimento, e, em segundo
bases bíblicas para a revolução, não lugar, mais importante, é que quando
apenas aquele que diz que Deus está os teólogos da libertação se deram
a favor da revolução, mas que abre o conta disso e começaram a fazer a
texto e diz: “ó, Deus está a favor da mudança necessária – porque não
revolução só não, Deus é o pode esquecer que a Teologia da
revolucionário.” E... se saiu melhor e Libertação começa a reagir a essa
conseguiu ligar isso com oração, ausência dessa ponte e começa uma
conseguiu ligar isso com busca pelo construção dessa ponte –, mas
Espírito Santo, converteu na Teologia quando eles começam isso, você vê,
da Libertação, converteu a revolução, principalmente no Leonardo Boff e
a Teologia da Missão Integral outros que vão até mexer com a
converteu a trindade, a trindade sistemática, com a dogmática etc., e
virou revolucionária, a construção vão tentar fazer essa ponte entre a
trinitária é revolucionária, e ação trindade e a revolução, eles são
trinitária é revolucionária, e isso se tolhidos pelo João Paulo II, são
manifesta nos profetas. Então, a tolhidos pelo Bento XVI, aí, eles
Teologia da Missão Integral busca, perderam, porque são “romanos”, e a
nos profetas, essa conversão da Igreja de Roma detém a salvação
trindade, na verdade, conversão é só deles, e o Papa é o magistério da
uma forma de dizer, vai lá dizer que a igreja e acabou, eles não vão escapar
trindade é revolucionária, a trindade disso, porque eles não querem ser
é revolucionária como dizia aquela excomungados. Então, essa virtude
filósofa anglo-americana, Karl Marx é protestante entre todas, que no
o último dos profetas hebreus. Então, mundo protestante a redenção não é
tem essa coisa de que você coloca, da instituição, a redenção é sua, não
não a gente com o segundo há nenhum mediador entre você e
momento, mas a revolução como Deus além do próprio Deus em Cristo
desembocar natural do movimento Jesus. E ninguém pode ameaçar o
profético. Essa mudança é crucial, que lhe é mais caro que a sua
porque chama você à oração, quer redenção, enquanto, nos “romanos”,
dizer, a oração, agora, é revolucionária, eles podem ter a redenção ameaçada,
a espiritualidade é revolucionária, o o camarada diz: “você vai ser
batismo com o Espírito Santo é excomungado”, o cara treme, porque
revolucionário, a trindade se o cara é como eu, ele crê como eu, só
converteu em emuladora, que ele crê que a redenção dele está
estimuladora da revolução. Trindade na mão da Igreja, e eu creio que a
propõe a revolução. Então, isso é Igreja não é a senhora da redenção e
uma tentativa da Missão Integral, o resultado da redenção... E faz uma
agora, claro, quando eu falo isso, diferença do tamanho do mundo.
estou pensando nos valores Então, essa é uma questão séria
originários. Porque, depois do [René] nessa construção da espiritualidade.
Padilha, do [Samuel] Escobar e Esse trabalho, inclusive, que eu tive a
[Orlando] Costas, pouco se graça de desenvolver junto com a
mantiveram fiéis à proposta Frente de São Paulo sobre a

18 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


espiritualidade progressista cristã, camarada ficar tranquilo, quando a
evangélica progressista, e é revolução acontecer isso acaba, todo
importante o título evangélico, não mundo ter acesso a tudo, legal, isso é
só para fazer a disputa da narrativa, utopia, como dizia o [Eduardo]
mas é porque o princípio é Galeano, é o que faz a gente andar,
protestante. No mundo protestante, mas o cara não... nessas horas, o cara
a trindade não pode ser senhoreada não quer utopia, ele quer escatologia,
por ninguém, inclusive, a trindade ela quer a certeza de que tem alguém
consegue ser 100% abscondita sem que administra a história da redenção,
deixar de ser a protagonista natural que é capaz de interferir, aqui e
da história da redenção. Então mais agora, porque, aqui, agora, “meu
ou menos nessa linha que a gente filho está morrendo”. Tem que ter
trabalhou... E acho que essa questão alguém que guiou seu choro, do meu
da espiritualidade estar sempre em filho, quando como ouviu o choro de
jogo, porque a questão emocional, Hagar. Eu quero a revolução, mas eu
com você diz, é tão cara quanto não posso esperar a revolução para
qualquer outra questão humana, resolver isso. É essa ponte que a
você não pode desprezar isso, os gente não pode perder, eu me lembro
seres humanos choram, os seres de ter conversado com um colega, e
humanos têm filhos, os filhos ficam ele disse assim: “mas é injusto você
doentes, os seres humanos precisam estar no mundo ocidental, que é dos
comer, precisam beber, precisam de males o menor, acabando por Deus,
trabalho, precisam de casa e, mesmo quando tem tanta gente passando
que você estabeleça um sentido de fome etc.” Olhando de um ponto de
vida simples, mesmo o mais simples vista eminentemente pragmático, é
dos estilos de vida, ainda vão verdade, mas olhando do ponto
necessitar comer e beber, vão teológico não é, porque Deus é
precisar morar em algum lugar, bastante suficiente para todo o
precisar se esconder da tempestade, mundo, ele é bastante suficiente para
vão ter que fugir do calor, fugir do o sujeito que está aqui no Brasil,
frio e vão ter filho, e vão ter o futuro, como o sujeito que está no Butão,
e o futuro é amedrontador, simples como sujeito que está agora no
assim, você não tem como controlar Iêmen desesperado, naquela loucura
o futuro, mas também não tem como que a Arábia Saudita está fazendo,
fugir dele, então, quem cuida disso? que ninguém fala – diga-se de
Quem cuida disso? Quem me ajuda passagem – e o camarada que está
no meio dessas intempéries todas? angustiado na Coreia do Norte, e
Quem sabe no universo? Quem pode passando fome nos Estados Unidos...
me responder? Quem pode vir aqui Então, tem um Deus que é bastante
em casa? Quem está em todo lugar? suficiente para toda essa gente, e o
Quem está aqui? Então, isso é segredo é ter realmente a prática da
importante e você não pode reduzir oração, a certeza de que estou
isso à luta de classes, que é orando pelo cara do Iêmen, eu estou
absolutamente válida, absolutamente dizendo para a trindade “em nome
clara, cada dia mais visível, mas o de Jesus, ouve o grito de um cara
trabalhador chora, olha para o filho, que acha que ninguém mais ouve”. E
olha para a filha, olha para sua eu falo isso aqui no Ocidente com a
ausência de possibilidades e, fé de que a trindade que está no
principalmente, olha para a universo vai fazer isso, vai interferir
enfermidade, tem que ter alguém no na história e um homem que está
universo que se importe, não pode gritando e ninguém ouve vai ser
ser... Eu sempre posso dizer para o ouvido, e a trindade vai fazer alguma

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 19


coisa enquanto nos estimula à irmão a se manterem fortes, diante
revolução. Então, se não souber fazer das pressões que virão, vocês sabem
essa ponte aí, você perde a pessoa, como é que funciona este país, haverá
você pega o ser humano, porque o pressão de tudo quanto é lado. E eu
ser humano tem Teologia, tem me lembro de uma história de um
escatologia, mas tem o dia a dia. vereador na cidade de Campinas,
João Luiz Moura – Ariovaldo, como o primeiro vereador evangélico na
o BEP articula a disputa teológica e história deles, e aí, ele está no saguão
política? Nesse sentido, como o BEP ou no corredor da câmara, e um
tem trabalhado e articulado entre colega chega para ele e pergunta
seus integrantes e no debate público se ele já tinha recebido os dois lotes
questões como orientação sexual, dele, e ele disse “que lotes?”, “Ah,
gênero, questão racial, entre outros da construtora, Incorporadora XYZ”.
presentes na agenda de esquerda? “Como assim recebido os dois lotes?”
Aí, o homem diz: “aqui as leis de
AR – Bom, é a mesma pegada que
loteamento são muito complexas...”
a gente tem na Frente. A gente diz o
Ou seja, o cara nunca vai conseguir,
seguinte: a Frente é de evangélicos.
elas foram criadas para isso mesmo,
Só que quem define se a pessoa
então... O que que ele precisa? “Ele
é ou não evangélica é ela, então,
precisa vir à câmara e, aí, a gente
eu pergunto para a pessoa: “você
aprova. E, como parte do acordo, a
é evangélica?” “Sou”. “Temos uma
gente aprova loteamento, e eles dão
frente de evangélicos, você é bem-
lotes para nós, cada um pega um ou
vindo”, “ok? “Tá”, tudo certo. “Não,
dois, dependendo da sua força na
mas eu sou do gênero X”. “Não foi
decisão”. Aí, ele vira para o colega
isso que eu perguntei para você,
e diz assim – ele, bem evangélico,
perguntei se você se considera
e assim: “não, eu não quero lote
evangélico?” “Se alguém perguntar
nenhum, tem mais, eu vou denunciar
para você, você diz o que sobre
qualquer um que pegar um lote aqui,
a sua fé?” “Ah! eu sou evangélica
eu vou denunciar, eu vou pôr a boca
ou eu sou evangélico”. “Bom, é só
no trombone, eu vou espalhar para
isso que precisa dizer, a Frente de
toda a cidade o que está acontecendo
Evangélicos.” Segunda pergunta é:
aqui.” Conclusão, ele impediu o
“você é progressista? você é contra
movimento, porque ninguém quer ser
a quebra do estado de direito? Você
denunciado, ainda mais de dentro da
é contra o liberalismo? Você é contra
casa, mas, em compensação, ele não
esse movimento escravista que está
conseguiu mudar nome de rua, então,
por detrás desse golpe de estado?”
ele passou quatro anos sem conseguir
“Sou”. “Olha, então, você está no
alterar o nome, dar nome para uma
lugar certo”. “Só não dá para vir aqui
rua, porque os caras o fecharam. Não
se você apoia isso aí, se você apoiar,
é assim “eu vou lá”, você tem que
não importa se você é evangélico, nós
estar nas comissões, você tem de ter
somos evangélicos contra você, mas
apoio do seu próprio partido, você
se você aceita isso, essa é sua luta,
tem que ter força partidária para que
olha, essa é a nossa, seja bem-vindo.”
seus projetos possam ser levados à
Na Bancada, as coisas continuam na
discussão... Sozinho, isolado, você
mesma pegada: “você é evangélico?
não faz mesmo.
Sou, pronto.” Então, essa é a pegada
da Frente e a mesma pegada da Conclusão, ficou quatro anos sem
Bancada, agora qual vai ser o grande poder dar nome de rua, terminou o
acompanhamento da Bancada é mandato, ele tenta a reeleição, e os
o de ajudar o camarada se manter eleitores não votaram nele porque ele
progressista, entende? A irmã e o não fez nada, na verdade, ele foi, de

20 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


fato, o único que fez algo lá. Agora, Aeon, outro sistema, outra era, que é
por que isso aconteceu? Porque ele a era do reino de Deus, que se opõe
estava sozinho, porque os irmãos não ao sistema vigente, senão você fica
sabiam o que ele estava passando, pensando que a História se resolve
não tinha mais ninguém sabendo, ele na ausência da História, isso não é
não tem ninguém apoiando ele que verdade, isso é alienação. Então, na
pudesse fazer mobilização popular, medida em que você vai trabalhando,
que pudesse ocupar as salas na você tem que ter apoio, porque
câmara, que pudesse fazer discussões você vai entrar na vereança, tem um
nas salas da câmara, nas audiências bocado de lei lá que é absolutamente
públicas, estava sozinho, é isso que injusta, é legal, mas é injusta. Por quê?
não queremos que o cara esteja, que a Porque é construtora de um sistema
moça, o moço, o irmão, a irmã, esteja. maligno, que não é a mera ocupação
Sempre que estivermos sozinhos, de satanás de mentes e corações,
eles vão ser tragados pelo sistema, não, mais do que isso: é construção
porque o problema todo é isso que de estrutura, da qual você não escapa,
as escrituras já dizem, “que o mundo você não escapa da estrutura.
jaz do maligno”, os evangélicos CV – Você acredita que o BEP
entendem “que o mundo que jaz no tem uma linha de continuidade,
maligno” são as pessoas, mas o que uma atuação próxima a do MEP
você lê lá é o sistema, se o sistema (Movimento Evangélico Progressista)
é maligno, se você não enfrentar na década de 1990?
o sistema na sua malignidade, não
AR – Bom, o BEP foi uma
avança, e você não vai enfrentar o
evolução, ele começou chamando
sistema na sua malignidade, você não
MCDC – Movimento Cristão
vai enfrentar o império, porque disso
Democrático de Centro, depois ele
que Jesus estava falando, é disso
evolui pra MEP e finalmente termina
que os apóstolos estavam falando
em EPJ (Evangélicos Pela Justiça),
do império, o império é maligno,
embora ainda exista o MEP, mas
o sistema é maligno, esse sistema
ele evolui para o EPJ. Então, é um
socioeconômico político é maligno,
movimento, o MCDC e o MEP têm a
é preciso enfrentar esse sistema. Mas
figura do Robinson Cavalcanti como
você não vai enfrentar sozinho, você
grande pensador do movimento, e
tem de criar comunidades de amor,
o Robinson, no momento em que
como Cristo ensinou, que apoiam as
começa o retorno pluripartidarista no
lutas intestinas no sistema. Porque, de
Brasil, assume a posição de centro,
fato, ou a fé cristã propõe um outro
inclusive, se aproxima do antigo
sistema... a fé cristã não é ingênua,
PP, que não existe mais, que era do
no sentido de não compreender que
Tancredo Neves, do cara do Itaú,
você precisa ter organização, que
que eu não lembro mais o nome, e
precisa ter estrutura, como você vai
era um movimento de centro, liberal
administrar sem estrutura? Você tem
democrático. Aí, ele vai andando e
que ter uma estrutura, que pode e
vem para o MEP, onde o Robinson
deve ser mínima possível, mas ela
[Cavalcanti] já tinha perdido a ilusão
existe, e essa estrutura do céu enfrenta
com o movimento de centro, já tinha
a estrutura do inferno, sozinho... É
perdido com o PP, com o PSDB e,
a ideia do Reino de Deus como um
agora, ele já está com Partido dos
sistema que se opõe ao império.
Trabalhadores e todos nós estamos
Então, você resiste ao Aeon mudando
migrando para a esquerda. Então,
os seus paradigmas, e quando você
é um caminho, e depois o MEP dá
muda os seus paradigmas o que você
ensejo ao EPJ, que é uma tentativa
está fazendo? Está mexendo outro
de ser mais abrangente, mas que

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 21


se torna, na verdade, movimento igreja estava se dividindo e que mais
de intelectuais e muito menos um cedo ou mais tarde essa divisão seria
movimento de construção de uma inevitável. Então, a Bancada já nasce
alternativa política evangélica para progressista, ela já nasce nessa
as massas. Eu sei disso porque pegada, o espírito de que vamos
acompanhei tudo, eu estava nesse ter que participar dessa história é o
negócio... Eu tinha um profundo, mesmo.
e ainda tenho, respeito pela figura Eu lembro, há anos, quando o Davi
do Robinson [Cavalcanti]. E, aí, Alencar era pastor na Igreja Batista,
quando ele migra para o MEP, em Santo André, e convidou uma “pá”
começa a trabalhar a lógica da de pastores para conversar com o frei
missão integral, que rompe com a Betto, e o crescimento evangélico já
teologia da libertação. Eu estava estava se manifestando com essa
lá vendo tudo isso e participando velocidade que demonstrou ter. E eu
ativamente, eu estava sempre ao me lembro que eu perguntei ao frei
lado do Robinson [Cavalcanti], na Beto: “logo, logo, nós vamos estar
medida do possível. Desde o início, ao lado de vocês como responsáveis
sempre fui mais à esquerda do que pelo pensamento ético brasileiro, o
ele, então, eu tinha certa dificuldade que você me aconselharia? O que
com algumas coisas, mas eu entendia que você nos aconselharia? Já que
a lógica dele, que é: “precisamos vocês estão aí há quatro séculos,
criar uma coisa que tudo quanto é cinco séculos se responsabilizando
crente não se sinta inviabilizado.” sozinhos pela ética brasileira e agora
Com o tempo, fui descobrindo que nós estamos chegando e dividindo
isso é possível e que você tem que espaço, o que que você aconselha?”
fazer escolha, e tem de se sentar na E, aí, ele disse a mesma coisa que os
cadeira que você construiu e chega. irmãos de Jerusalém disseram para
E, aí, você diz: “ó, essa cadeira aqui Paulo e Barnabé: “não se esqueçam
é nossa, se você quiser tem espaço dos pobres, não se esqueçam dos
para um montão de gente, se você pobres, vocês têm de tomar posição
não quiser, a cadeira está definida”. ao lado dos pobres.” E isso se tornou,
Então... é uma evolução, a Bancada naquele dia, a minha divisa, porque
Evangélica Popular, o BEP, como era o mesmo que eu tinha ouvido
você fala, ela tem, sim, ligação, não quando eu li a palavra do primeiro
como um intercessor lógico, mas é Concílio, “não se esqueçam dos
o mesmo espírito de que mais cedo pobres”, Jesus disse que o passe
ou mais tarde a gente tem que se dos pobres era sinal do reino. Então,
envolver com a política partidária. a Bancada já nasce nessa pegada,
Isso era inevitável, é lógico, com enquanto o MEP vem de uma
o crescimento da população batalha intestina, da gente... aquela
evangélica, era inevitável que a lógica evangélica de ser amigo de
gente se envolvesse com a política todo mundo, então, é melhor ser
partidária, inevitável. E a gente de centro, porque no centro, pelo
precisava construir um pensamento centro, e até que a história se impôs
comum, que foi o grande equívoco a nós, o sistema maligno se impôs
dos movimentos evangélicos mais a nós, e nós chegamos à conclusão
progressistas, como a Associação de que o centro não é um lado, o
Evangélica Brasileira, e depois da centro não é nada aqui, o centro e
AEVB, do Caio Fábio. Nós não nada é mesma coisa, o centro vira só
construímos um pensamento comum uma desculpa para enriquecimento
e fomos trabalhando essa coisa sem responsabilidade e para a
eclética sem nos dar conta de que a exploração, não tem nada, não tem

22 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


proposta nenhuma. Então, a gente sua opinião, qual a importância que
tinha que tomar uma posição, eu o tema da corrupção terá nestas
acho que a tendência do Robinson eleições?
[Cavalcanti], na época, foi tomar AR – Pois é, o ponto básico é que a
posição trabalhista, que era o melhor direita – e a maioria dos evangélicos
naquele quadro, mas o primeiro está à direita –, não se ocupa da
movimento trabalhista no Brasil corrupção de jeito nenhum, a direita
foi de conciliação de classes, e a é corrupta, ponto. A direita só usa
história demonstrou que isso foi um a corrupção como desculpa para
equívoco, então, agora, temos de alienação do povo, principalmente
trabalhar como nós vamos escapar porque fica trabalhando a corrupção
desse equívoco. como um problema atinente a um
E a Bancada vai nessa pegada, partido ou outro. Então, elege o
agora, é claro, você sabe como partido da corrupção, partidos da
é trabalhar com evangélico... vez para ser combatido por causa
evangélico é gente boa toda vida, da corrupção. Mas, na verdade,
mas, assim, é superficial, é movido a corrupção é um desvio de
por modas. Então, você tenta falar caráter, e os partidos de direita
para ue o fundo é mais embaixo, mas têm demonstrado ser um reduto
o cara anda... toca na parede e pensa de corruptos e de corruptores. Os
que já chegou no fundo e você diz partidos de esquerda, principalmente
“não, não, o fundo é mais embaixo, os mais bem organizados, são os
não é aí”. E, aí, escolhe as bandeiras mais resistentes a esse desvio de
da época, escolhe as bandeiras caráter, porque eles são mais bem
da moda, e, aí, você diz: “olha, isso organizados, então, o sujeito sabe
é legal, é legítimo, mas cuidado, que está sendo vigiado. E, nos
isso aí não é o fundo, isso não vai partidos de direita, o sujeito não é
mudar nada na luta de classe, e, se vigiado, porque ele não serve aos
não mudar na luta de classes, não interesses populares, eles servem a
mudou nada, não pode perder isso interesses da elite, que está pouco
de alvo, você tem de alterar a relação preocupada com a corrupção,
das classes, senão você não mudou desde que os seus interesses
nada.” Então, essa conciliação das sejam satisfeitos. E os evangélicos
classes foi um equívoco, agora, se o se acostumaram à corrupção,
governo popular voltar, certamente principalmente os fundamentalistas,
volta diferente. Então, a bancada já eles se acostumaram à corrupção,
vai com essa pegada, tem que ser eles mudam estatutos para manterem
diferente, não é possível conciliação o mesmo presidente por vários
de classes. E, no Brasil, então, com mandatos, eles aceitam pastores
essa elite econômica, mas não ladrões, eles permitem que esses
é possível mesmo... Essa elite é pastores se locupletem, eles fazem
escravista. vistas grossas ao enriquecimento
CV – Para finalizar, gostaríamos ilícito desses pastores, eles fazem
de fazer uma pergunta relacionada vistas grossas aos desvios morais
ao tema da corrupção. Mesmo com desses pastores, eles, que tanto
o pleito de 2020 sendo municipal, falam de moralismo, fazem vistas
as questões tendem a ganhar grossas às violências machistas,
dimensões mais gerais, em vista da aos movimentos misóginos, os
centralidade que a política assumiu evangélicos se corromperam, com
na sociedade diante de fatos que raras exceções, que são os que
se avolumam desde, pelo menos, a resistem, mas eles se corromperam.
campanha presidencial de 2014. Em Quando você vê denominações que,

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 23


para quem antes a divisão entre o A massa evangélica se corrompeu,
Estado e a Igreja era dogmática, as estruturas evangélicas se
“não pode, não tem nada a ver, corromperam, viraram autocráticas.
liberdade de consciência” etc., irem Nós passamos a sancionar tiranos,
para os vídeos “dizerem”: “não vota então, não tem nenhuma dificuldade
nesse partido, vota naquele outro” mais para os evangélicos a
etc. Você sabe, se não é corrupção, convivência com a tirania. Se a tirania
se corrompeu, e, assim, é uma estiver dizendo o que eles querem
corrupção que afeta uma história de ouvir, os fundamentalistas fizeram
séculos, a corrupção não pode, sua isso, o equívoco neopentecostal fez
denominação não permite isso, está isso, a incapacidade pentecostal de
nos seus dogmas, não pode, mas faz. sustentar a sua fé fez isso. Então,
Quando você vir senhores, e... são isso se degenerou. Então, as pessoas
senhores mesmo, verdadeiramente ficam assustadas, por exemplo,
adornados de autoridade e com quando veem um presidente ir à
aquele ar circunspecto de seriedade Assembleia Geral da ONU mentir
absoluta, mudando o seu estatuto descaradamente e não ter uma reação
para que determinado sujeito seja dos evangélicos que o apoiam, da
presidente duas, três, quatro, cinco, liderança evangélica que o apoiou,
seis vezes, quando você olha para porque a liderança evangélica faz
tudo isso – e para tudo isso tem um isso todo dia, todo dia as pessoas
nome só: corrupção. E os evangélicos ouvem mentiras, vão às igrejas e aos
se acostumaram à autocracia, púlpitos e destilam mentiras, a vida
os evangélicos abandonaram a dos líderes é uma vergonha, e não
democracia, que era própria da porque eles pecam assim ou assado...
reforma protestante, que era grita é aquilo que Jesus dizia dos fariseus,
da reforma protestante inclusive, e “vocês dizem uma coisa e vivem
voltaram à autocracia, e disfarçaram outra”, “vocês colocam sobre o povo
isso dizendo que “a pessoa é ungida um peso que, para carregar vocês,
pelo Senhor”, disfarçaram isso não prestam um mínimo de força
dizendo que “é o que o Senhor de vocês, um mínimo de esforço”, é
quer para manter a igreja em pé”. corrupção o tempo todo, é mentira
As desculpas são muitas, mas o o tempo todo. Então, essa questão
fato é: tudo isso é corrupção. E da corrupção não vai mexer com os
o sujeito ungido do Senhor pode evangélicos, os fundamentalistas,
tudo, homem e mulher, você está uma boa parte deles já foi convencida
vendo as acusações de assassinato de que corrupto é o Partido dos
serem tratadas assim, as acusações Trabalhadores, e que todos os outros
de pedofilia serem tratadas assim, estão tentando corrigir a corrupção
as acusações de violência contra do Partido dos Trabalhadores.
as mulheres serem tratadas assim, Nós vamos ter que aprofundar
ungido do senhor pode tudo, a a reforma protestante, porque esse
ungida do senhor pode tudo. O modelo nacional naufragou, esse
camarada pode ser presidente modelo denominacional naufragou,
n vezes, muda-se o estatuto e mesmo modelo das igrejas
quantas vezes for necessário... independentes naufragou, porque,
porque ele enseja... o nome disso no fundo, as igrejas independentes,
tudo é corrupção. Não importa que no primeiro momento era um
se isso foi decidido no concílio, o grito de libertação em relação às
concílio foi comprado, o concílio foi denominações, se tornou reino
contaminado, é corrupção, mudou a particular, entende? Na verdade,
lei, mudou o Estado de direito. império particular, porque reino

24 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


é o do senhor Jesus, e, então, se submete às condições análogas à
naufragou, inclusive. Entendo que nós escravização, outros se submetem,
progressistas vamos ter de aprofundar “você está fora”. E o grande trunfo é
a reforma da reforma protestante, nós “você precisa comer”, e foi criado um
vamos ter de reinventar a reunião da sistema de destruição da indústria,
comunidade, vamos ter de reinventar do parque industrial brasileiro, que
a lógica comunitária e retomar o já caiu 27%, que transformou a gente
evangelho de fato. Agora, é uma de 10ª força industrial do mundo em
atividade hercúlea, e é uma atividade 16ª. Antes da pandemia, já tinha 17
que não pode ter fim, para que não declarações de falência por dia em
haja nenhum dono da verdade, ela São Paulo, na Fiesp, que transformou
tem que estar sempre em movimento, o Brasil num país extrativista, agrário,
o tempo todo. Não é natural do ser agropecuário, porque renunciou ao
humano fazer isso, porque nós extrativismo mineral, porque passou
queremos conforto, e o movimento o extrativismo mineral para as forças
constante não traz conforto. estrangeiras. Então, é o extrativismo
Então, eu acho que, nas eleições agropecuário, que, para isso, não
municipais, vamos ter retomada as poupou os biomas e não vai poupar,
eleições de 2018, a mesma lógica do haja vista o que está acontecendo.
“bolsonarismo”, estre aspas mesmo E o presidente mente de maneira
porque esse movimento de fato não insolente, ele retomou “novilíngua” de
existe, e com o agravante de que os 1984, do George Orwell, ele redefine
partidos de esquerda estão indo para as palavras todo dia, e a esquerda não
o pleito municipal, como se o Brasil tem a menor noção disso, nenhuma
estivesse em estado de normalidade, noção. Primeiro, a esquerda atribui
os partidos de esquerda não se deram ao Bolsonaro uma liderança que ele
conta de que estamos em regime de não tem, eles acham que tem um
exceção, não se deram conta de que bolsonarismo no Brasil, e não tem.
estamos sob uma ditadura disfarçada, O que tem no Brasil é uma elite
mais bem disfarçada do que a ditadura retrógrada que quer ganhar tudo o
de 1964, mas é a mesma ditadura, máximo que puder e que colocou um
com os mesmos protagonistas. Vide papagaio lá na frente, e um papagaio
o número de militares neste governo, que não tem medo de passar vergonha
são os mesmos protagonistas e e de nos envergonhar, e que não tem
com um discurso, agora, descarado, projeto nenhum e que também muda
protagonizado por um filho de Belial e porque gostou do poder – acho que
assumido por pastores, apoiado pelas isso a elite escravista não esperava,
Forças Armadas de modo cada vez que ele gostasse do poder –, ele
mais indisfarçado, que já abriu mão gostou, e, aí, de vez em quando, ataca
do discurso da corrupção, porque os interesses da elite quando ataca o
já se acertou com o centrão, era só [Paulo] Guedes, que é o suprassumo
uma desculpa necessária para ganhar do projeto desse governo. O projeto
as eleições. Ganhou, se estabeleceu, desse governo é esse liberalismo
colocou o seu sistema em ordem, angustiante e deletério, destruição
protagonizou... acabou com a pela destruição, vai restar ao
relação de trabalho, tirou os direitos trabalhador e à trabalhadora o
dos trabalhadores e trabalhadoras, trabalho análogo à escravidão. Eu
precarizou o trabalho, na verdade, lembro que a primeira vez que eu
precarizou o trabalhador, porque o fui chamado para falar sobre o que
trabalhador é substituível o tempo tinha acontecido no Brasil, logo no
todo, ele é reciclável, trabalhadora início do golpe, eu disse: “eles, a
virou um objeto reciclável. Se você não elite brasileira, estão com saudade

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 25


da escravidão e vão caminhar nessa irresponsável, e que vai, no final das
direção.” Eu não sabia, mas eu estava contas, destruir vocês, porque, daqui
fazendo uma profecia, porque foi isso a pouco, a mensagem de vocês não
que aconteceu, estão com saudade significa nada. A esquerda brasileira é
da escravidão e vão levar o Brasil do mesmo jeito, a esquerda brasileira
de volta à escravidão, vão fazer isso é de soldados rasos, então, o sujeito
da forma mais disfarçada possível, está feliz porque tem uma grande
mais amparada possível na lei. Só chance de o [Guilherme] Boulos ser
que você não consegue convencer a o prefeito da cidade. Ótimo! Tomara
esquerda disso. Os caras estão indo que seja mesmo, mas quem está
fazer eleições como se estivessem construindo a câmara municipal
no governo popular, em que a do Boulos? Onde está consciência
democracia funcionava. Eles não têm popular? Quem disse que o prefeito,
noção de que estamos em um regime o governador e o presidente não
de exceção, que nós tínhamos de criar fazem semipresidencialista? Como
a Frente Democrática já, e denunciar ele vai resistir às pressões que vai
já que só tem um regime de exceção, e, sofrer? Quem lida com isso? Quem
inclusive, já se precaver para a fraude está com ele? E essas rupturas todas
e criar um sistema de vigilância, mas na esquerda vão cobrar o que lá no
a esquerda não consegue pensar com legislativo? E você olha para tudo isso
essas categorias. e diz “meu Deus, se o Senhor não tiver
Eu me lembro, quando eu olho para misericórdia de nós...”. Então, eu acho
a esquerda brasileira, com exceção que nós vamos ter uma repetição
do Lula, antigamente, com exceção de 2018, as pessoas naturalizaram
do Lula e do Brizola, mas, agora, só tudo que o presidente falou, elas
do Lula... Sempre que eu ia falar com naturalizaram as mortes, nós temos
os pastores, eu chegava no conselho quase 140 mil mortos, e as pessoas
de pastores indignado, porque eu nem falam mais disso, e estão na rua
venho aqui e penso que estou falando sem máscaras, nas praias e nos bares,
com generais, mas estou falando com elas naturalizaram a morte. Quando
soldado raso. A vitória do soldado raso você olha para uma população que
é voltar para casa vivo, soldado raso naturalizou a morte, o que você espera
vai para a batalha e volta para casa disso? Que nível de consciência você
vivo, ele venceu a guerra dele, voltou espera disso? E que trabalho está
para a casa dele. O general só venceu sendo feito para isso? A corrupção
a guerra quando o general inimigo já foi naturalizada também, porque
depõe armas, vocês não pensam a direita convenceu o brasileiro, a
assim, não pensam estrategicamente, brasileira, que a corrupção acabou
vocês não pensam taticamente, por com a queda do PT, enquanto isso,
exemplo, qual o projeto que vocês eles corrompem e são corrompidos.
têm para chegar à universidade? Então, o Brasil naturalizou
Qual o projeto que vocês têm para tudo, Brasil naturalizou os filhos
chegar aos pobres? Qual o projeto de [Jair] Bolsonaro, os milicianos,
que vocês têm para chegar às ou seja, nós estamos achando
escolas? Qual o projeto que vocês natural sermos governados pela
têm para apoiar a transformação da máfia, nós naturalizamos o conluio
cidade em uma cidade justa? Qual entre as Forças Armadas, as forças
o projeto de vocês? Vocês não têm auxiliares e a milícia. Assim como
projeto nenhum, vocês têm projeto nós naturalizamos a corrupção.
de adesão, então, é uma desgraça, Então, embora pareça que eu esteja
porque adesão facilita a vida de descrevendo um quadro terrível,
todo mundo para aumentar a adesão sem esperança, isso não é coisa

26 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


de crente, muito menos de pastor, MDB agora, de novo, não quis nem
mas, na verdade, estou tentando governar com eles, esse imbecil,
construir uma esperança a partir da fez uma droga de um “partideco”
realidade que vejo. Primeiro, a fé, se tornar segunda bancada no
na intervenção divina, eu acredito congresso, esse imbecil tem o apoio
nisso, e não no determinismo dos do presidente da câmara, que nem
calvinistas, então, eu creio em um é do partido dele, aliás, ele nem
Deus que ouve oração, que interfere tem mais partido, ele não precisa
na História, isso em primeiro lugar. de partido, imagina um presidente
Em segundo lugar, entendo que só que prescinde do partido. Ninguém
gente com absoluta consciência para e pensa nisso, como esse cara
pode ter esperança. A esperança não prescinde do partido e não perde
pode ser ausência de consciência, de apoio e continua governando? E
lucidez, a esperança tem que ser a bota um militar como chefe da Casa
grande contribuição da fé, a lucidez e Civil, que é o cara que faz as relações
a consciência, e ninguém pode lutar político-partidárias do governo?
contra o que não sabe. Então, tem E a outra coisa que nós precisamos
que saber contra o que nós estamos entender, nós progressistas, a
lutando, e eu acho que a esquerda democracia não interessa mais
está apostando que os fiascos do ao capitalismo internacional. A
[Jair] Bolsonaro vão acordar nossa democracia era uma grande desculpa
nação, mas, pensa comigo, você é para atacar o Pacto de Varsóvia,
presidente da república, você vai depois da queda do muro em
abrir Assembleia Geral das Nações 1989, o capitalismo foi se tornando
Unidas, você sabe tudo o que está hegemônico, o nível de acumulação
fazendo, você sabe e o mundo sabe, se exponencializou. A democracia
aí, você sobe à tribuna e mente não interessa mais, e não sou eu que
descaradamente com um sorriso nos digo isso, é o Elon Musk que disse “dei
lábios, que mensagem você mandou golpe mesmo, e vou dar golpe tantas
para todo o mundo? vezes quanto precisar, eu quero o lítio
As pessoas pensam que o deles, e daí? E a Bolívia não entrega
sarcasmo do [Jair] Bolsonaro é fruto de um jeito, entrega do outro”. E esse
da incompetência intelectual dele, é um movimento hoje, por exemplo, o
mas todos os que pensam assim é Brasil, em termos de PIB, vale menos
porque fazem parte da elite, a elite do que a Apple. O que tem de normal
acadêmica, que acha que só eles são nisso? Nada! Nada, mas todo mundo
inteligentes e só eles sabem e que só o naturaliza, quantos economistas
saber deles é que vale, ou seja, isso se falam disso, nem de esquerda falam
chama preconceito. Então, o mesmo disso, nem de esquerda falam que,
preconceito que eles tinham com o no tempo de Lula, em 2010, que o
Lula, eles têm com o Bolsonaro, com nosso PIB já estava em mais de 4
o Lula eles reparavam o preconceito, trilhões de dólares e agora é menos
que, afinal de contas, o Lula é um de dois. Então, é esse quadro que fica
trabalhador, mas eles ficavam todos diante de mim o tempo todo, eu nem
incomodados com a falta de precisão falo muito, porque não quero matar
do Lula, com a norma culta da língua. as pessoas de angústia, mas como
Mas era o Lula, é um líder, “esse aí vocês estão fazendo uma pesquisa...
é um imbecil”, dizem eles, só que CV – Muito obrigada por esta
esse imbecil está na presidência da importante contribuição para a
república, esse imbecil derrotou o pesquisa e para a história dos
PSDB, quase anulou o partido, esse movimentos de esquerda evangélicos
imbecil ridicularizou o PMDB, ou no Brasil.

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 27


ENTREVISTA COM NILZA
VALÉRIA ZACARIAS
NASCIMENTO

COORDENADORA NACIONAL DA FRENTE


DE EVANGÉLICOS PELO ESTADO
DE DIREITO E FUNDADORA DA REDE
DE MULHERES NEGRAS EVANGÉLICAS
Por Christina Vital,13 Gabrielle Herculano,14
João Luiz Moura,15 Wallace Cabral Ribeiro16

13
Professora Associada
do Departamento Nilza Valéria (50 anos), ou simplesmente Valéria, como é mais conhecida,
de Sociologia e é jornalista de formação, ativista e evangélica. Foi uma das fundadoras e,
do Programa de
Pós-graduação até o início de 2021, coordenadora nacional da Frente de Evangélicos pelo
em Sociologia, Estado de Direito, ao lado de Ariovaldo Ramos, e fundadora da Rede de
coordenadora do
LePar – Laboratório Mulheres Negras Evangélicas. Atuou na Visão Mundial Brasil, no mandato
de Estudos da deputada estadual Mônica Francisco (PSOL-RJ), e atualmente integra a
Socioantropológicos
em Política, Arte Rede de Mulheres Negras Evangélicas. Em abril deste ano, valendo-se de sua
e Religião, na expertise como especialista em comunicação comunitária e desenvolvimento
Universidade Federal
Fluminense (UFF). transformador, passou a coordenar um projeto de comunicação de sua
14
Assistente Social,
concepção, no âmbito do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
mestranda pelo – MST, cujo objetivo é dialogar com a comunidade evangélica a partir de
Programa de Pós- pautas do campo popular.
graduação em
Sociologia na PPGS- Nesta entrevista, realizada em setembro de 2020, tivemos a oportunidade
UFF e membra do
LePar. de acompanhar suas reflexões aguçadas e provocadoras sobre o campo
15
Mestre em evangélico de esquerda no Brasil na atualidade. Valéria colocou em evidência
Ciências da Religião, ambiguidades, fragilidades, mas também a potência desses evangélicos que
pesquisador visitante
no Instituto de Estudos se apresentam, muitas vezes, pendularmente, como de esquerda, populares
da Religião (Iser), e progressista. Sua história de militância é apresentada nesta entrevista
membro do grupo
de pesquisa Estado e através de marcadores afetivos, familiares e teológicos. A experiência racial
Direito no Pensamento atravessa seu relato enriquecendo a complexa trama que marca a presença
Social Brasileiro, sob
coordenação do de negros e negras em igrejas evangélicas no país.
professor doutor Silvio
Almeida (Mackenzie).
Membro do grupo Christina Vital – Valéria, muito Direito se posiciona em relação ao
de pesquisa A
Crítica do Direito e a obrigada por aceitar esta conversa pleito.
Subjetividade Jurídica, conosco hoje. Gostaríamos de
sob coordenação Nilza Valéria Zacarias – Em
do professor doutor começar perguntando sobre quais relação à Frente, quando a gente se
Alysson Mascaro são as suas expectativas para estas
(USP). posicionou na eleição de 2018, a gente
eleições 2020 e sobre como a Frente entendia que o que tínhamos ali era o
16
Doutorando pelo
Programa de Pós- de Evangélicos pelo Estado de estabelecimento de um projeto não

28 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


democrático com a eleição de [Jair] endossaríamos candidaturas, foi
graduação em
Bolsonaro. No primeiro turno, a Frente vencida pelo grupo que construía a Sociologia da PPGS-
se absteve, porque entendíamos Frente nos estados. UFF, mestre e bacharel
em Sociologia pela
que havia diversas candidaturas e A gente criou um processo de mesma instituição,
todas elas eram válidas, desde que membro do LePar e
tomar decisão, enfim, como são os do Núcleo de Estudos
não representassem, obviamente, encontros de movimentos. A gente Friedrich Engels
o aprofundamento do golpe. No (Nefe).
tinha, ali, alguns temas para colocar
segundo turno, a Frente girou o seu na mesa, e definiu-se, então, que a
apoio para a candidatura, entendendo Frente não endossaria candidaturas.
a importância de fazer esse confronto Nesse momento, a gente tem alguns
com o que era compreendido como o candidatos que, inclusive, por conta
aprofundamento do golpe. A eleição da militância na Frente, começaram
de [Jair] Bolsonaro significava, a sua militância política e caíram
então, mais uma fratura em nosso nesse lugar político-partidário, mas
sistema democrático. Essa foi a que a Frente não está endossando
nossa posição, e a Frente foi com suas candidaturas. Então, a
tudo que nós tínhamos naquele gente tem percebido, e eu tenho
momento para o segundo turno da percebido com muita curiosidade,
eleição presidencial. porque tudo é muito novo ainda na
Desde o surgimento da Frente, Frente. A gente está falando de um
em 2016, a gente foi percebendo movimento de 4 anos, e é a primeira
figuras, pessoas, irmãos, crentes vez que a gente está enfrentando
que estavam no movimento e que uma eleição municipal. É a primeira
já demonstravam interesse pelo vez que a gente está passando
processo político-eleitoral. Então, como movimento por isso. Então, os
estou falando de dois movimentos meninos de Belo Horizonte, que é a
distintos, o de 2018 e dessa percepção candidatura Plural, Jonatas [Arêdes],
que nós tínhamos ao longo do tempo, Fillipe [Gibran], eles surgem a partir
que se manifestaria com as eleições da Frente; eles vão para a luta.
municipais. É muito curioso, porque, Quando a Frente começa a juntar as
tanto eu quanto o Ari [Ariovaldo pessoas nos estados, eles aparecem,
Ramos], entendíamos que a Frente eles se constituem como lideranças
podia endossar candidaturas. da Frente em Minas Gerais. Em torno
Essa era a nossa posição até dessa militância, cria-se a candidatura
setembro de 2019: a gente tinha deles, e eles, agora, apesar de serem
um movimento crescente na Frente da Frente, não são os candidatos
e seria natural que endossássemos da Frente. Há outros candidatos da
candidaturas. No entanto, em Frente em Belo Horizonte, o [Clecio]
outubro de 2019, a gente conseguiu Dornellas, se não me engano, que é
refazer um encontro nacional, trazer um candidato a vereador.
quem puxava o movimento em No Rio de Janeiro, posso dar três
alguns estados para um encontro ou quatro nomes. No Rio, a gente
presencial no Rio de Janeiro. Foi tem o Sólon [Rubem], um rapaz
um marco incrível a gente conseguir da Maranata, candidato a vereador.
trazer 12 pessoas e nos reunirmos Eu nunca imaginava que ele tivesse
durante três dias, intensamente, interesse na vida político-partidária.
para pensar um movimento A gente tem o Igor Bonan, que
naquele momento. Curiosamente, é candidato a vice-prefeito de
a minha proposta ou a proposta da Friburgo. Tem o [Willian] Siri, que
coordenação nacional da Frente, é candidato a vereador aqui no
que seria essa proposta minha e Rio, e têm alguns outros nomes.
do Ari [Ariovaldo Ramos] de que Eu posso fazer uma lista, porque

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 29


a gente está acompanhando, eu CV – Quais os argumentos centrais
peço para o pessoal dos estados, para não endossarem?
e eles vão me dando notícias, e NVZ – Eu acho que o pessoal
alguns eu sei porque vejo e estão tinha medo de se comprometer, e
nos grupos. A Frente assumiu essa parte do grupo tinha a compreensão
posição de que, como movimento, do que a gente está falando. Que
não endossa esse processo isso podia levar o movimento para
eleitoral, mas temos candidaturas, um reducionismo de a gente se
basicamente, de pessoas ligadas à tornar somente um processo de
Frente, que têm esse pertencimento apoio para um projeto eleitoral,
em quase todos os estados que quando, na compreensão de uma
nós estamos... eu tenho dúvidas, defesa da democracia, a nossa
agora, só sobre o Ceará, porque o posição, a nossa relevância seria
rapaz desistiu da candidatura. Ele continuar contribuindo com o
foi candidato a senador pelo PSOL- debate mais amplo. Lembrando que
Ceará, e foi uma grande discussão toda essa liderança que surgiu da
na época, inclusive, porque ele veio Frente é gente que não tinha até
com o título de pastor em uma então liderado processos, gente que
candidatura de esquerda e foi o começou a fazer militância porque
primeiro a lançar o “pastor” Simões era crente e acreditava em alguma
[Jamieson Rodrigues Simões]. coisa. Então, ali em 2019, a gente
Ele se candidatou a senador, foi o respeitou essa decisão para estas
nome que o PSOL precisava, mas eleições, porque a gente propôs,
a estratégia deles sempre foi a naquele momento, uma decisão
vereança. A meta dele era fazer o colegiada. Esse processo eleitoral tem
nome para ser vereador, só que ele sido observado por nós com muita
teve que desistir da candidatura por atenção, primeiro pelo despertar
problemas pessoais. Eu não sei se popular de candidaturas evangélicas
no Ceará a gente tem outra pessoa. progressistas. Nesse momento, como
Em Pernambuco, eu tenho; na isso se comporta? Eu não gosto mais
Paraíba, eu tenho; na Bahia, a gente do termo [progressistas], acho que
tem a Elizabeth, que é da Frente e banalizou muito, assim, o pessoal
está dentro de um desses mandatos entender a questão da disputa
coletivos. Em Brasília, eu tenho; em de narrativas. Mas como a gente
São Paulo, tem o pessoal da Bancada também vai continuar construindo o
Ativista, e alguns deles passam e têm que se apropriou com essa narrativa?
a sua trajetória cruzada com a da A gente, eu digo, todo esse campo
Frente, o próprio Samuel [Oliveira]. de termos que são comuns e usados
Todo mundo, em algum momento, pela direita, a própria Bancada
cruza com esse movimento. Então, Evangélica Progressista [sic]. Em
voltando ao encontro do ano alguns casos, a titulação, que é algo
passado, a gente decidiu em uma que, historicamente, a gente rechaça,
decisão colegiada, que a Frente não que os títulos sejam nomes eleitorais,
iria apoiar candidaturas, e isso é uma a gente está vendo também o campo
quebra na minha posição pessoal progressista se apropriar disso. Isso,
aqui no movimento. Em um primeiro nessa eleição, está muito espalhado.
momento, entendi que a Frente Você não sabe dizer quem é direita
podia endossar candidaturas, e todas e esquerda, e o pessoal achando
as que vejo, a quantidade de pessoas que, com isso, está ressignificando a
que surgiram, eu continuo ainda em narrativa (risos).
dúvida se a decisão colegiada foi de Com a questão da pandemia,
fato a melhor. eu não vou falar que o movimento

30 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


está em stand-by, mas acho que a campo da esquerda, ou melhor, no
gente acendeu só umas luzes de campo progressista. Ela foi lançada
observação nesse processo eleitoral, dentro desse tema, como muitos
sendo feito dessa forma, que, por outros temas que não deveriam ser
definição, não pode ser feito na rua, lançados com viés ideológico.
né? Um processo eleitoral muito A questão ambiental foi lançada
diferente, que não pode ser feito em dentro do tema progressista e tem
rua. A Frente fez essa opção, mas até um episódio que eu observei
não significa que encerrou o assunto. na semana passada com o Carlito
Acho que a gente só está olhando [Paes], que é o pastor de uma
para esse tema de uma forma, com grande Igreja Batista, em São José
esse tanto de candidatura que gira, dos Campos. Ele começa com um
que passou e que atravessou o modelo que deu muito certo nos
movimento. É um movimento que Estados Unidos, que é a Igreja com
está se construindo e que ainda Propósito. Então, ele foi aos Estados
segue em construção. Unidos e é a pessoa que certifica
CV – Valéria, em sua opinião, a Igreja com Propósito no Brasil –
quais as questões que cercam algo que o mundo Batista entrou de
essa identidade progressista entre cabeça. E o Carlito tem essa grande
evangélicos? igreja, um negócio gigante em São
NVZ – Eu tenho preferido José, e se manifestou pró-Bolsonaro
usar o termo “de esquerda” a desde a primeira hora. Foto com
“progressista”. Parece que ser Bolsonaro, “eu oro pelo presidente”.
progressista é comprar um pacote Ele se manifestou pró-Bolsonaro
completo, inclusive de pautas, e eu com a história das queimadas, e eu
não sou contra pautas identitárias, falei: “alguns caras com o mínimo
mas é como se, nesse momento, ser de noção, como defenderiam a
progressista significasse só olhar a posição do Salles?” Então, o Carlito
partir das pautas identitárias. Não gritou nas mídias sociais dele contra
sei se isso faz sentido, mas tem sido as queimadas, contra o governo,
um problemão para a gente que está que ele está defendendo desde a
muito tempo na luta dentro desse primeira hora – isso não significa
segmento, está fazendo uma bela que ele mudou de lado –, mas ele fez
confusão. Então, nesse encontro uma crítica contundente à questão
de 2019, a gente começou a pensar ambiental, à política ambiental
o quanto era interessante a Frente do governo. Curiosamente, os
se assumir como “de esquerda”, seguidores dele o atacaram
porque, quando a gente surge em chamando o de “comunista”; foi uma
2016, não é em uma perspectiva reação imediata. E você pensar na
de direita ou esquerda, pensando figura do cara, que sempre foi quem
ideologicamente. A gente surge criou parte desse movimento, que
como um movimento de defesa responde pela parte “limpinha” desse
da democracia, e o nosso texto movimento, foi atacado, colocado no
inicial, em 2016, era aberto, então, mesmo campo que a gente, porque
qualquer pessoa que defendesse a fez a defesa da causa ambiental,
democracia, fosse ela, inclusive, um ainda que momentaneamente.
liberal, não tinha por que não aderir. Achei muito curioso, e tem a ver
Assim, com toda essa polarização com esses termos. Então, tem me
que o país vive, que o mundo ou parte incomodado muito a terminologia
do mundo está vivendo, porque não “progressista”, a questão moral, a
é um problema exclusivo nosso, a questão identitária, tudo foi jogado aí
defesa da democracia foi lançada no dentro e, se a gente não compra todo

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 31


o pacote, começam a dizer que nós o Estado Democrático de Direito?”
já não somos mais desse campo. A Esse pessoal estava gritando Lula
Frente, especificamente, lida com isso Livre junto com a gente, como a
desde 2016, a gente apanhou muito gente explica agora que a gente está
por conta disso, a gente recebeu falando a mesma coisa.
muito “fogo amigo”, que insiste ainda. CV – Poderíamos dizer que,
Tem um problema, uma bobagem historicamente, os segmentos de
que deu uma dorzinha de cabeça, esquerda se levantaram contra o
quando alguém diz que a gente tinha establishment, e isso, muitas vezes, se
que assumir um posicionamento confundiu com um questionamento
de denuncismo contra um suposto, do Estado, uma confrontação da
não que eu duvide da história, eu ordem social e até da democracia
vou chamar de suposto abusador, liberal. O jogo político no Brasil
porque ele não foi julgado. Eu sou atual, pós-eleição de Jair Bolsonaro
de um movimento pela defesa do como presidente em 2018, desafia
Estado Democrático de Direito, não esse posicionamento das esquerdas
posso nunca fazer um movimento que se veem mobilizadas pela
de denúncia sem que todo o rito conservação do Estado, da ordem
processual seja cumprido. E a gente social democrática, das conquistas
foi duramente atacado nos últimos populares espelhadas em políticas
dias, porque não compreenderam ou públicas. Como você analisa
não respeitaram a posição da Frente essa questão tendo em vista o
em dizer que a gente só podia fazer posicionamento de evangélicos?
denúncia com o rito cumprido, sem
NZV – Está muito tensa toda essa luta
rito, eu não posso. A gente sempre
e estar nesse lugar, como evangélica,
defendeu a questão do Lula Livre, por
nesse momento, vendo toda essa
exemplo. Como movimento, a gente
construção. Também vem sendo
integra o comitê Lula Livre, que era
um desafio de muito aprendizado,
justamente isso de dizer que até o
porque, para determinados grupos,
cara ter todo o processo tramitado e
isso virou o grande motivo. É como
julgado, ele não pode responder por
se ser evangélico e ser aliado desse
isso. Mas movimentos identitários
projeto estivesse posto. Ninguém
evangélicos começaram a exigir da
também se preocupou muito em
Frente uma posição. Estou trazendo
fazer essas divisões, e o pessoal foi
isso aqui à tona para mostrar, para
quebrando nessa lógica de quebrar
mim, a confusão com a qual a
o sentido das instituições. Se quebra
gente está lidando com os termos
também muito o valor da igreja como
e como esses movimentos todos se
uma instituição.
encalacraram num negócio muito
doido. E isso esquentou muito a Quando a gente vai para todos
minha cabeça, inclusive, a minha voz esses movimentos evangélicos, é
está falhando. Gente, é estresse puro. praticamente inexistente os vínculos
dessas pessoas que estão na luta
Há poucos dias, começaram
com as suas igrejas locais. Isso é algo
a pipocar notas contra a Frente,
que a gente também tem observado
porque a gente “não deu ouvidos
nessas candidaturas evangélicas.
à vítima”, sabe? E todos vindos de
Esses candidatos, tirando dois ou
movimentos identitários. A gente
três, não têm mais vínculo com a
monitorando, a nossa comunicação
igreja local. Aqui do Rio de Janeiro
monitorando, era assim: “ah! se diz
mesmo, dos que eu conheço,
progressista, mas não acredita na
só o Sólon, que é esse rapaz da
palavra da vítima”, e eu falo: “gente,
Maranata, que tem vínculo com a
como a gente diz o que é defender
igreja local, os outros não têm mais

32 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


essa conexão. Os meninos de Belo eu sou crente, ah! eu sou crente”; e
Horizonte romperam com as suas essas pessoas estavam militando.
igrejas, quando muito, estão em Então, essa questão do vínculo com
comunidades alternativas, essas que a igreja local é algo, para mim, muito
a gente chama de progressista ou sensível, e é o que dá sentido a toda
alternativas, ou grupos fora da igreja essa luta, porque, se eu não tenho
institucional. Isso é algo que a gente esse vínculo, estou falando o quê?
foi percebendo e, agora, lá na Paraíba, No espaço acadêmico? Estou falando
a gente alterou um pouquinho essa com quem? Estou gerando minha
situação. O pessoal, a liderança da comunicação com quem? Então, essa
Frente até encontrou uma igreja lá e é uma questão para mim, sei que para
começou a frequentar. Mas teve um o Ari [Ariovaldo Ramos] e outras
tempo, na Paraíba, que eu achei que lideranças locais da Frente é muito
até o grupo da Frente não iria vingar, sensível que a gente consiga dialogar
porque todo mundo que chegava – com crentes, senão não faz sentido.
e chegou muita gente – não tinha CV – Tem uma questão geracional
vínculo com a igreja local. Então, a envolvendo esta da vinculação ou
gente vai falar com quem? Qual é o não institucional evangélica, Valéria?
sentido? Se é para dialogar, a gente
NZV – Dos que eu conheço que
está dialogando com quem? Isso não
estão dentro desse processo, é a
significa que a pessoa está obrigada
pastora Eliad [Dias], da Metodista
a ir à igreja, não (risos), mas qual é o
da Luz. É uma mulher que tem mais
nosso link? A gente está falando para
de 40 anos e que está numa igreja
quem ouvir a gente, se eu também
institucional. Mas uma igreja... eu
não gosto? Eu disse isso algumas
vou falar, assim, em confiança... uma
vezes em reunião da Frente.
igreja dessas sem membresia. A
A minha preocupação era se todo Igreja Metodista da Luz não reúne 15
mundo que estava nesse negócio, pessoas nas celebrações dominicais,
de fato, gostava de crente ou não. e isso é um dado muito importante,
Porque está na moda não gostar de porque a gente está falando de uma
crente. Ninguém gosta de crente, e igreja, de uma pessoa, que soma
se a gente não gosta de crente, qual nessa luta, mas a gente está falando
é o sentido do que a gente faz e para de 15 contra o cara que reúne 2 mil
quem? Porque espaços de militância na igreja dele no domingo de manhã.
sempre existiram, então, se é só Esses projetos que estão associados
mais um espaço de militância, eu ao [Jair] Bolsonaro, e eu não vou
não preciso. Eu tive minha formação nem para o mundo neopentecostal,
política nova. Eu não precisava da eu vou falar do conforto do meu
Frente para militar, minha militância mundo de Batista. Se eu pegar a
se dava em outros espaços, e eu Igreja Batista Atitude, que é a igreja
não precisava ser crente e militante, da mulher do [Jair] Bolsonaro, todo
eu posso militar por outros grupos, domingo de manhã, no mínimo, são
como eu fazia antes. 2 mil pessoas. Eu fui lá no templo
Eu fui do movimento estudantil deles, não sei a capacidade, talvez 2
uma boa parte da minha vida, e ou 3 mil pessoas ali dentro. Eu não
a minha condição religiosa não sei se o João [entrevistador] conhece
atravessava isso, não mudava o fato a igreja da Barra [da Tijuca], mas
de que eu era crente. Quando a gente deve ser em torno disso, e cheio aos
começou com a história da Frente, domingos de manhã. Estou falando
começou a organizar um movimento, da igreja do Carlito, que tem, sei lá,
a gente chegava em sindicato e 6 mil membros, então, aos domingos
vinham assim: “ah! eu sou crente, ah! de manhã, ele reúne, no mínimo,

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 33


2 mil pessoas. E eu fico surpresa Como eu disse, desse confronto da
de a gente achar vitória quem está Frente, a gente teve um confronto
reunindo 15. E estou em uma igreja direto com a pastora Eliad, porque
nova, que tem uma perspectiva a Frente somava lá com ela nesse
de manter o vínculo dela, mas eu culto da mulher, que acontecia uma
sempre brinco com isso, é um ponto vez por mês na Metodista da Luz; e
de tensão meu com meu marido, eu mesmo quando era culto da mulher,
falo: “a gente, todas as igrejas ditas e que outros coletivos somavam
progressistas no Rio de Janeiro, vai a presença, no máximo, eram 15
juntar, quando muito, 500 pessoas pessoas, isso quando abria. Então,
e olhe lá”. Estou forçando a barra a localização da igreja não favorece,
aqui, mas só dos que eu conheço, se é muito bem localizada, mas é
eu juntar o Marco Davi, que é o meu uma região... João [entrevistador]
marido, Júlio Oliveira, o Vladimir [de está em São Paulo. Eu estive aí
Souza], o Henrique [Vieira], estou quinta-feira, até passei na porta da
falando de 500 pessoas. Isso é algo igreja, uma região perigosa para
que acho que vai sair na Frente, quem chega, uma membresia que
entender essa complexidade. envelheceu, que é o problema dessas
Dos mais velhos que eu conheço igrejas todas. A gente vê muito
e que celebra é a Eliad. A Elizabete, isso hoje com as primeiras igrejas
da Bahia, é uma negra retinta, isso é de cada cidade. Elas acabaram
uma informação importante, porque ficando em regiões que, por conta
é uma candidatura toda negra, ela de mil fatores, foram regiões que o
deve ter uns 40 anos também, e os transporte se tornou difícil. Eu falo
outros são mais novos. E Wesley de batista com propriedade, mas isso
[Teixeira], 25, que é assumidamente é uma lógica muito denominacional,
evangélico e se identifica nesse lugar, sobretudo das tradicionais.
e estava desde a primeira reunião da Quando eu fui a São Paulo, passei
Frente, no Rio de Janeiro, junto com na porta da Primeira Igreja Batista
a gente. Wesley é muito novo, o Igor de São Paulo, e a Cracolândia se
[Bonan] deve ter uns 30 anos no deslocou para a porta da igreja.
máximo. O [William] Siri também é Ela tem uma praça na porta, praça
muito novo, eu imagino que não deve Princesa Isabel, que depois que
ter nem 26 anos. O Sólon [Rubem] jogaram o jato d’água nos usuários
não tem 40, eu acho, tem 30 anos. da Cracolândia, está todo mundo
De fato, é uma turma muito nova na porta da igreja, literalmente
que eu tenho observado, o rapaz da na porta. E aí eu me lembro que
Paraíba é muito novo, os de Recife a Frente chegou a fazer uma
são todos novos, que estão aí no atividade, uma audiência popular
pleito, eu estou falando de gente, no sobre a questão da Cracolândia, em
máximo, de 30 anos. 2017 ou 2018, não me recordo bem,
CV – Como pensar sobre e nós lotamos. Foi um evento que a
representatividade desse gente fez na Primeira Igreja Batista
segmento evangélico frente à de São Paulo, com cerca de 100
desinstitucionalização, por um lado, pessoas, era dia 12 de junho, lembro
e, por outro, do baixo número de que era Dia dos Namorados... um
membros nas denominações ditas frio... e lotou, porque os membros
progressistas ou de esquerda? Por da igreja estavam já agoniados,
onde passa a força política e religiosa sofrendo com aquela situação que
desses atores e grupos? girava em torno da igreja, e foi um
momento muito simbólico para a
NVZ – Isso é um detalhe que eu
Frente ter feito aquela audiência
observei, me chamou muita atenção.

34 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


ali, naquele lugar. Mas ficou muito NVZ – Eu acho que, quando a
evidente esse envelhecimento, que Frente não endossa, naturalmente,
ninguém pensou que as realidades se criou, eu diria. Claro, eu sou
nas cidades mudariam. suspeita para falar, eu vou ver muito
Quando eu fui olhar mais valor, historicamente, na Frente, mas
detalhadamente a situação da se tem algo que eu posso destacar já
pastora Eliad, do grupo para quem ela de imediato é que a partir da Frente
estava falando, a igreja, eu fiquei um surgiram muitos movimentos.
pouco pensando nisso. A gente aqui Acho que – desculpa a expressão
no Rio tem apoio de algumas igrejas que eu vou usar – a “porrada” que
que também são muito tradicionais, a gente tomou em 2016 foi muito
históricas, muito antigas. A Igreja grande, quando a gente deu a cara
Batista da Esperança, que fica aqui a tapa de falar: “vamos criar um
no centro do Rio, na Visconde de movimento?” Eu vejo isso, e pode ser
Inhaúma, é uma igreja que já teve com o meu olho romantizado, por ter
uma grande importância no cenário criado esse movimento, é como se a
religioso protestante do Rio de gente tivesse aberto uma picada e
Janeiro, e hoje está esvaziada. Então, foi dizendo para todo mundo: “olha,
a gente consegue fazer qualquer se organizem”, e as pessoas foram
encontro lá dos nossos coletivos, se organizando, inclusive para bater
a Frente usa, o Movimento Negro na gente também dentro do mesmo
Evangélico usa, qualquer grupo, é campo – que é o “fogo amigo”. Então,
aberto para tudo. Mas é uma igreja foi todo mundo ganhando fôlego ali.
que a membresia talvez tenha, sei Se você for observar, eu diria que
lá, 30, 40 membros que participam 80% desses coletivos evangélicos
ativamente. que a gente cita hoje, que a gente
Em nosso mapeamento, a gente conhece, surgem a partir de 2016
não conseguiu encontrar uma grande ou não muito antes. Acho que antes
igreja que tem o discurso afinado nós temos o Movimento Negro
com o nosso. A gente tem até um ou Evangélico, que já vinha de uma
outro pastor simpatizante, que aqui solitária, solitária... os caras estavam
ou ali apoia, mas quando chega na – desculpa a expressão religiosa que
igreja, talvez pela manutenção do eu vou dizer aqui – pregando no
próprio ministério ou do status quo, deserto há muito tempo. A gente tem
não sei, eles assumem uma postura registro dessa militância negra há
mais neutra mesmo, não abordam mais de 40 anos. Outro dia, o Marco
esse discurso. A gente não tem apoio [Davi] estava conversando com o
de igrejas e, eu digo a gente, não só reverendo Olímpio Santana, que já
a Frente, é uma observação de todo está com oitenta e poucos anos, um
o movimento progressista evangélico. pastor metodista, que foi um dos
Se alguém quiser me corrigir..., mas eu primeiros. O Hernani [Francisco] é um
não conheço nenhuma grande igreja cara da nossa geração que cansou.
que apoia um movimento nosso. A Hoje em dia, ninguém fala do Hernani,
Igreja Batista de Coqueiral, em Recife, que também é de São Paulo, da zona
é uma igreja de bairro, talvez seja a leste, que puxou muito a questão
maior exceção, mas já é uma igreja que racial, ele era uma cara da igreja O
não está muito dentro do sistema, ela Brasil para Cristo. Hoje ele cansou,
está ali, à parte do sistema, é talvez o cansou de tudo, cansou de apanhar
que a gente tem de maior hoje. e parou. E Marco, quando foi falar
João Luiz Moura – Qual a sua de questão racial, foi no Congresso
participação na formação da Brasileiro de Evangelização II, em
Bancada Evangélica Popular? 2003, em Belo Horizonte.

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 35


Se eu fosse dividir as fases, Frente. Ele soma com outras pessoas
claro, grosso modo, eu não sou porque as lutas não se excluem. Os
historiadora, mas esse movimento espaços se encontram e, naquele
negro, eu tenho essa primeira fase momento, então, surge a Bancada
do reverendo Olímpio, que já está com uma proposta muito clara
com 80 anos; depois, do Hernani; de endossar essas candidaturas.
2003 vem o Marco; depois, aqui Não houve conflito, acho que são
muito perto da gente, tem toda essa construções momentâneas.
meninada chegando para discutir Estou na Frente e também na Rede
esse tema: Ras André [Guimarães], de Mulheres Negras, ainda que hoje
Ronilso [Pacheco]. Isso tudo a gente eu tenha minhas ressalvas a algumas
está falando basicamente de uma posturas desses movimentos que
girada, de 2015, no máximo, para acirraram muito nos últimos tempos,
cá. Até outro dia, eu brincava, acho eu me mantenho em ambos os
que foi a última mensagem que eu movimentos, não são contraditórios.
troquei com Ronilso, que ele mesmo Eu acho que o movimento da
migra para questão racial. Quando Bancada, com a presença do Ari,
eu conheci o Ronilso, ele não falava foi justamente esse, não havia
na questão racial, ela falava de contradição. O que a gente zelou,
forma mais abrangente dos direitos e está zelando, é [que a] Frente –
humanos, a questão racial é muito que está penando, construindo a
nova para ele, talvez 2017, 2018, sua marca, sua identidade – não
esse tema tenha entrado. Então, endossasse agora esse processo, o
tem o Ras, o Jackson [Augusto] lá que não significa também que, daqui
de Recife. O Jackson, por exemplo, a pouco, isso não mude. Até porque
é mais um que chega, de quem me a gente não se institucionalizou, é
recordo, desde a primeira reunião da movimento, pode ser que, daqui a
Frente, não militante. quatro anos, essa seja uma condição
Tornou-se bacana perceber o modificada por quem estiver
quanto de gente chegou. A decisão, liderando na época, porque a gente
talvez, por a gente perceber vai construindo isso.
que a Frente tinha que perder CV – João Luiz Moura e eu
características personalistas, e a estávamos conversando sobre a
gente sempre teve esse cuidado de abordagem teológica desse grupo
evitar, sabia que era importantíssimo. de esquerda reunido em torno do
A figura de um pastor sempre foi BEP. Você identifica convergências
muito significativa. O meu trabalho teológicas na abordagem que
vem da Visão Mundial e sempre propõem da política, do ser de
foi um trabalho de back office, esquerda, progressista ou popular
nunca de aparecer. Eu relutei muito, nesta campanha, neste contexto
apareço o necessário para ajudar o político do país?
movimento a se firmar e acho que
VZ – Estou acompanhando muito
quando a gente junta o grupo, em
a do Wesley [Teixeira], por diversos
2019, foi também para dizer: “olha
motivos, tem meu vínculo pessoal
esse aqui é um movimento, tem que
com ele, sou madrinha de casamento
ser construído com a coletividade.”
do Wesley. Teve toda essa questão
Então, voltando a esse movimento recente da campanha dele, como o
[da Bancada], que para a gente foi recurso... eu tenho acompanhado
muito importante, é o movimento muito. Inclusive, na questão do
que apareceu. E o Ari [Ariovaldo trabalho, também fui autorizada
Ramos] vai para o movimento da pela Mônica [Francisco] para
Bancada respeitando a decisão da acompanhar a candidatura. Ele se

36 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


vale muito da identidade evangélica, O pessoal da Bancada, assim
não tem uma construção teológica. como o pessoal de Minas [Gerais],
Eu diria, e tenho conversado com eu também não tenho visto uma
ele, que era preciso ter um discurso construção teológica, apenas
mais para dentro da igreja, o que muita repetição desse discurso
não há. Tem para dentro da igreja de progressista. Aí, a gente arruma
quem está no mesmo campo que ele como se fôssemos evangélicos
e eu. Falar com outras pessoas que legais, e sempre destacando: “olha,
são esses membros, essas pessoas tem evangélico legal, eu sou um
que vão às igrejas, que são os 2 mil, e deles; olha, tem evangélico legal e
não aos 15 – não há essa construção. nós somos esses evangélicos legais, a
Então, se o Wesley for eleito, ele não gente está aqui, a gente é evangélico
vai ser eleito com voto evangélico. também.” É isso, mas não construção
Se é que existe esse voto evangélico, teológica.
ele não é um candidato. Ele é um A Ana Paula é candidata a
candidato do campo progressista vereadora numa cidade do lado de
jovem, de [Duque de] Caxias, e Belo Horizonte... e fui observar o
dentro desse campo progressista discurso dela, porque ela era uma
jovem, tem crentes. liderança da Frente em 2017, em
Quem eu tenho observado, que Minas. O companheiro dela é muito
também é da Frente (eu esqueci meu amigo, a gente conversou um
dele), é uma figura ótima para ser pouco sobre isso, e aparece só essa
analisada, é o Daniel Elias, que é coisa “mulher evangélica”. Então,
da Assembleia de Deus, do PT e é a construção pela identidade está
candidato a vereador também em sendo muito forte, mas o que é ser
Caxias. Ele é o cara lulista que tem esse evangélico? Eu tenho visto
foto com a Gleisi Hoffmann, garoto mesmo todo mundo se apossando
da Benedita [da Silva]. Ele tenta fazer da identidade, como se isso fosse
uma construção teológica, faz análise o ponto principal. E acho que a
do texto bíblico nas postagens dele, construção dessa teologia, dessa
pega o texto bíblico e diz: “por que forma, ajudaria a gente, se a gente
a bíblia diz que eu tenho que tratar tivesse com quem falar.
bem a mulher, por que a Bíblia diz Eu tenho desconfiado muito
que eu tenho que tratar bem o da nossa capacidade de falar com
homossexual?” Eu já estive com ele nossos irmãos, acho que esse tem
umas três vezes, não sei o quanto isso sido o meu cansaço – meu cansaço
é intencional ou se é intuitivo, não me da luta vem justamente disso. Eu me
parece muito planejado. Eu lembro lembro que nas últimas reuniões de
que eu o conheci há mais ou menos comunicação da Frente, eu sempre
quatro anos, e não tinha nenhuma tenho dito: “gente, tenham cuidado
construção ali, não era o cara de um de não serem pautados pelas mídias
pensar teológico mesmo, ele dizia isso. sociais...” Vou dar um exemplo, me
Aí, eu vi foto dele numa Assembleia lembrei de a gente se posicionar
de Deus, ainda está mais dentro entre a Natura e o Thammy [Miranda],
desse ambiente, com discurso mais sabe? Claro que eu vou defender o
evangélico, mas, ao mesmo tempo, direito de o Thammy ser o Thammy
também muito mais partidário; ele e vou respeitar isso, mas não é isso
é o cara que se reafirma, em vez de que está em xeque. Parece que todos
ele falar “porque nós, do campo da os movimentos giram em torno da
esquerda”, ele vai dizer que “nós, polêmica do momento, e isso faz
petistas”, entendeu? Ele compra essa com que a gente só fale para a gente,
briga partido a partido mesmo. quem de novo a gente está trazendo

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 37


para essa discussão? Eu me lembro esse convite? Como você o recebeu?
que, nessa reunião de comunicação NVZ – A Tatiana Roque me
com o pessoal da Frente, foi no Dia procurou, acho que há um ano, me
dos Pais, e eu falava: “a gente não perguntando se eu queria. Ela foi
vai cair na coisa fácil de defender o candidata à deputada federal, e o
Thammy ou a Natura, não é essa projeto dela era para ser deputada
discussão. A gente vai defender federal, e o grupo dela buscava
o trabalho precarizado de muita alguém para apoiar para a eleição
mulher que só tem a revistinha para para vereador no Rio de Janeiro. Ela,
viver, para ganhar 2, 3 reais em cada particularmente, e mais duas ou três
produto que vende.” Então, acho pessoas, por estarem acompanhando
que é um exemplo que levei para o meu movimento, a Frente – eu
a discussão da Frente na época, fui aparecendo por conta desse
porque a gente tinha um campo para movimento. E a gente travou alguns
dialogar com centenas de irmãs que diálogos, acho que, de outubro até
vivem na periferia e vivem de vender janeiro, quando encerrei a questão,
revista da Avon, complemento da sua porque não me interessava, eu não
renda. Essa tem sido minha angústia. tenho essa vocação e acho que não
Só estou compartilhando porque tenho estômago para uma luta, para
não tenho respostas, não; são muitas uma campanha política. E hoje digo
angústias em relação a essas próprias que estou muito feliz com a minha
candidaturas. Eu celebro, acho decisão, até porque nessa eleição
bacana, mas são espaços que a gente tudo vem dessa identidade, é o que
tenta abrir. E a última memória que está sendo mais explorado. Eu não
me veio foi com a própria campanha sei se bancaria um projeto, que fosse
do Wesley [Teixeira], com a história da construção de uma teologia, não
do recurso, quando o [Marcelo] seria possível com um grupo que
Freixo faz o posicionamento em não pensa teologicamente, então,
defesa do Wesley. Foi um exercício a acho que é isso que as candidaturas
gente ver os comentários da página estão enfrentando. Quem as lança e
do Freixo, e não foram comentários quem as banca não tem um pensar
de pessoas de direita, não; eram teológico, porque elas não vêm desses
comentários de pessoas da esquerda, movimentos, dessas instituições que
de seguidores do Freixo, e que pensam teologicamente; elas foram
esqueceram o primeiro assunto, que se dando por conta dos arranjos, dos
era o financiamento da campanha ou acordos e da militância, então...
recursos, e abordaram o fato de dizer Eu nunca pensei, eu reagia...
“ah, crente”, “ah, crente é picareta cheguei a conversar, tive uma série
mesmo”. A condição do recurso de reuniões com o grupo da Tatiana,
deixou de ser levada em consideração esbarrei nessa questão da construção
para ser considerado que “de um e na questão partidária, não consigo
crente, a gente espera tudo”. E isso me imaginar filiada, hoje, a um partido
foi muito recorrente em postagens como o PSOL. Eu, particularmente,
de apoio ao Wesley, “ah, é crente”, não me vejo nesse lugar. Eu não
mas ninguém discutia o cerne: conheço grupos dispostos a bancar
“dinheiro de banqueiro pode ou não candidaturas não partidárias, que
pode?” Não, o que não podia, em existem. Estão aí, mas eu não me via
última instancia, é ser “crente”, é isso. nesse lugar mesmo.
JLM – Valéria, chegou ao nosso No fim das contas, acho que eu sou
grupo de pesquisa que seu nome foi velha defensora – mesmo não sendo
indicado para concorrer às eleições. tão velha – da luta de classes (risos).
Isso é verdade? Como se construiu Eu acredito mesmo que essa coisa

38 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


é o duelo do capital para massacrar em confiança mesmo, o “Jesus da
quem não tem o capital. Se o PCB Mangueira” é o Jesus que se coloca.
tivesse me convidado, eu até pensaria E eu vi algumas pessoas dizendo
um pouquinho. Mas acho que eles que: “ah! brasileiro gosta de Jesus,
não iam querer uma candidatura de brasileiro não gosta de crente.” Eu
uma mulher preta evangélica (risos). já vi isso de grupos de esquerda, e
CV – Valéria, você poderia falar não tenho problema com o “Jesus
para nós sobre suas impressões a da Mangueira” de forma alguma.
respeito do coletivo Cristãos Contra o A minha questão, eu volto a dizer:
Fascismo? Conhece suas lideranças, se essa pessoa que se diz seguidor
seus trabalhos? Qual a relação deles de Jesus e se diz crente reconhece
com a Frente de Evangélicos pelo aquele Jesus. Essa é a minha grande
Estado de Direito? questão. Conversando com uma
pessoa crente, ela falou: “eu gosto
NVZ – Na época que a gente
muito de Jesus, sou crente, mas não
estava organizando a Frente, a
vi naqueles elementos.” Ela brincou
gente chegou no Rio Grande do
“que falta nesse Jesus, às vezes, o cara
Sul para fazer uma reunião, em
que saiu destruindo tudo quando
Porto Alegre, só que, na época, a
encontrou os vendilhões na porta do
pessoa que assumiu a Frente lá era
templo”. Acredito que ela estivesse
um cara da Igreja Bola de Neve,
falando de um Jesus que quebra a
a primeira pessoa do movimento
lógica do sistema. E acho que a gente
neopentecostal que chegou
cria esse Jesus que todo mundo
puxando um grupo da Frente no
gosta, em que constroem essa
local. Aí, na época, a gente começou
identidade de um Jesus que todo
um diálogo com o Tiago [Santos],
mundo gosta. Eu vejo Jesus em tudo,
e a pergunta do Tiago era “se o
e estou tentando não criar problema
movimento era evangélico”. A gente
ao falar isso... é obvio que eu vejo
disse que “sim” e, aí, ele, então,
Jesus em tudo, e Jesus se manifesta
falou: “ah! não, mas então a gente
em tudo, eu não tenho dúvidas disso.
vai tocar aqui o grupo que a gente
Mas a gente cria um Jesus que meio
tem, porque a gente tem católicos
que se molda a esses conceitos de
no grupo.” Esse foi o momento em
identidade que a gente foi rachando,
que o grupo surge, nessa lacuna da
e não preocupado se essa grande
Frente, quando a gente chama, ele
massa de evangélico que hoje são
diz que tinham católicos no grupo.
negros, que hoje são mulheres, que
Eles tocaram, assumiram que era são pobres, que são periféricos, que
uma luta contra o fascismo, e a gente são “ferrados”, se reconhecem nesse
entendeu, então, que é um grupo Jesus, se reconhece de fato nesse
que envolve católicos. Mas a minha Jesus. E acho que não se reconhecem.
percepção é que eles giram todos em
Eu tenho saído muito pouco,
torno do tema da igreja evangélica.
mas fui à Zona Oeste do Rio, em
No entanto, no início, esse foi um
uma comunidade perto de Moça
argumento para não endossar o
Bonita, em Padre Miguel, que tem
grupo ali da Frente, que era um grupo
aqueles conjuntos habitacionais
de cristãos, que envolveria católicos
que favelizaram. O dono do espaço
também.
é crente, e ele é o cara que estava
Foi uma surpresa quando eu vi o me chamando a atenção. E fiquei lá
Tiago [Santos] candidato, e foi uma conversando com ele por umas duas
surpresa porque não imaginava que horas, ele é o cara do Vidas negras
ele fosse se candidatar. E eu tenho importam, todas as mídias dele têm
observado – e estou falando tudo o Vidas negras importam, é o cara

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 39


da defesa da questão racial. E ele é a figura do Cristo, porque religião é
crente de uma igreja lá da Zona Oeste. experiência pessoal. Eu não posso
Quando cheguei, ele não sabia que invalidar a experiência pessoal do
eu era crente nem esposa de pastor. rapaz, mas se eu não incorporar esses
Na verdade, fui para um serviço que elementos desse Jesus nesse que
ele ia me fazer, quando ele descobriu chamo de “Jesus da Mangueira”, que
que eu era crente e esposa de pastor, é o que esse pessoal está trabalhando
automaticamente, ele desligou a na sua identidade, eu vou continuar
televisão e ligou o rádio na 93 [FM], com força de diálogo com esses caras;
como se eu gostasse de ouvir música mas se eu desprezo esse elemento do
de crente. Eu quase dizendo para ele Jesus que transformou a realidade
que não estava me agradando, mas dele, não vou conseguir ficar com ele.
me contive, até para conversar, eu Eu posso olhar para realidade dele e
me interessei pelo universo dele. E ver outra coisa, mas o que ele viu é
chegaram outras pessoas da igreja, e um garoto que foi salvo de ser... ele
a gente foi conversando. viu os amigos dele serem mortos pelo
Enquanto ele me prestava o tráfico. Ele morava lá no Antares, em
serviço, falava para mim assim: “ah! Santa Cruz, ganhou uma maquininha
eu vi que você já viajou”, eu falei “é, de cabelo da mãe, cobrava 20
viajei um pouquinho e tal”. O homem centavos de cada amigo para cortar o
que diz Vidas negras importam fala cabelo e explodiu. E, hoje, as pessoas
para mim assim: “você não acha saem daqui da Tijuca, do Flamengo,
que o Brasil só vai ter jeito quando para ir em Padre Miguel para fazer
for governado por estrangeiros?” Eu o cabelo com ele. Então, a minha
fiquei tentando entender o porquê, crítica a essa imagem de Jesus que o
e ele falou assim: “ah! porque nossa Cristãos Contra o Fascismo usa, que é
cultura não presta para isso... a gente o mesmo “Jesus da Mangueira”, é que
não tem uma cultura.” Mas é o cara falta esse elemento, desse Jesus... E
que, teoricamente, estava ali, Vidas estou muito curiosa para ler o livro do
negras importam, e eu fui percebendo rapaz lá da Bahia, não sei se vocês já
que isso tem muito a ver com o leram, o antropólogo que virou notícia
discurso que tem na igreja dele, que é no fim de semana, não sei se você viu,
uma missão, que importa um modelo sabe do que eu estou falando?
superamericano. Eu fui conversando, e CV – O Juliano Spyer?
ele não tinha ideia, apesar de ser NVZ – Sim! Estou supercuriosa
um cara ótimo, que a vida fez dele para ler o livro dele, porque ele fala
um dos melhores cabeleireiros de justamente disso. Ele ficou imerso
cabelo crespo do Rio de Janeiro. em uma comunidade em Salvador,
Coloca Vidas negras importam, mas eu li a entrevista dele na Folha de São
arrebentou com a cultura numa fala. Paulo, ele diz que as igrejas criam
Ele não sabia o que era autonomia um “Estado de bem-estar social”. Eu
ou soberania de um país. Expliquei quero até entender o que ele chama
para ele o que era soberania. Ele me de “Estado de bem-estar social”,
contando a própria experiência de mas eu desconfio que é justamente
vida, que viu o pai morrer porque desse “Estado de bem-estar social”
abusou de drogas, porque foi dirigir que esse cabeleireiro, lá de Padre
bêbado na Avenida Brasil, e ele tem Miguel, estava me falando. E é noção
um encontro com esse Cristo que o de pertencimento. Eu vi um monte
resgata da realidade dele. Então, hoje, de gente da igreja chegar ao salão
ele é um profissional bem-sucedido, e dele. E uma irmandade profunda
essa figura do Cristo é fundamental entre eles que me impressionou, e
para ele. E não estou desmerecendo olha que eu fiquei duas, três horas

40 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


ali só, e vi muita gente chegar, e ele rádio, ele não sabia que a Benedita
falou para mim: “eu só abro meu era candidata, ele não sabia. E falei:
salão de quarta a sábado, porque “tem a Benedita, pastor, vamos deixar
segunda e terça...” E me mostrou para o segundo turno, vamos tentar.”
dez vídeos, e já me mandou mais “Valéria, que bom que você me disse
uns trinta aqui no WhatsApp sobre isso, agora vou pedir votos para a
as palestras que ele dá em clínica Benedita, porque ninguém do PT me
de recuperação, contando a história falou que a Benedita é candidata.”
dele, e ele fala: “isso é um acordo que Eu brinquei com o Marco [Davi]: “oh,
eu fiz.” Ele usou uma expressão que Benedita tem que me agradecer, que
eu não me recordo agora, de que ele eu já consegui cinquenta votos para
tem que fazer isso para ajudar os ela” (risos). Porque como o conheço,
meninos ali da Zona Oeste, Antares, uma hora dessa, ele vai bater de
do Cesarão e da outra favela que porta em porta para falar da Benedita
ele falou, mas esqueci o nome, a candidata. Então, é muito esse perfil
não se envolver com droga. E estou do homem que sobreviveu depois
aqui todo dia, recebendo vídeo dele de ver o filho morto pela polícia, e
com esse discurso... porque a gente de todas as tragédias pessoais, por
começou a conversar mais sobre conta desse Jesus que não é o “Jesus
política, então, ele entende que está da Mangueira”.
fazendo política fazendo isso. O desafio é só desatar esse nó.
Eu gosto de ilustrar com essas Para mim, esse tem sido um nó de
histórias, porque é o mais comum muitas pontas, e a gente precisa
desses crentes que eu tenho visto. A desatar em conjunto. Eu não preciso
última foi do pastor Leonardo, que impor esse Jesus da transformação
é minha figura, é um pastor que me para o outro, é obvio que não, mas
levou para dentro da Cidade de Deus o outro tem que entender que esse
quando o filho dele morreu – eu já nem Jesus de fato operou alguma coisa
conto mais essa história que já está na vida daquele homem, eu acredite
muito velha. Mas pastor Leonardo me ou não. Para aquele homem, que
ligou semana passada, ele é pastor passou pela transformação, ela é
autodenominado, porque é o cara real. E a gente começa a dizer que
destemido que prega de noite, de não é real, que o cara está naquela
madrugada, sai meia-noite vai para o situação porque não teve opção, não
presídio, ele ganhou esse título, não teve escolha, e isso me choca muito,
tem formação teológica nenhuma, porque, às vezes, a gente começa a
ele não sabe construir uma frase em tirar essa autonomia do sujeito. Como
português usando o verbo, o sujeito, ele não teve escolha? Então, a gente
não sabe, e isso é o carisma dele, está dizendo o quê, ele é massa de
inclusive. E ele ligou para mim e falou: manobra a vida inteira? Que história
“Valéria, estou preocupado”, assim é essa?
mesmo, ele fica nervoso, é obvio que Essa fé mudou a história da
ele tem algum problema... ele: “Valéria, minha família, a minha pessoal, do
estou muito preocupado, Valéria, meu avô, como ele se enxergava,
a gente vai ter que fazer campanha como ele enxergava que filhos
para o Eduardo Paes, esse [Marcelo] tinham que estudar, essa fé foi
Crivella não pode ganhar de novo.” transformadora. Ele não era massa
E falei: “pastor, o senhor sabe que de manobra quando ele transformou
a Benedita [da Silva] é candidata?” o que ele acreditava, foi uma escolha
“Valéria, eu não sei”. Olha que curioso, consciente. Eu acredito nisso, ou o
ele é um homem que está conectado, que estou fazendo nesse negócio, se
tem Facebook, tem televisão, escuta as escolhas não são conscientes?

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 41


Acho que esse Jesus nosso, porque ele dizia... e não foi fácil para
trabalhado dessa forma, está ninguém.
inviabilizando, porque estou sempre E não estou trabalhando isso
colocando o outro como não sujeito como meritocracia, não, só estou
da sua história: “ah, ele é manipulado, falando que, pela narrativa familiar,
ah, ele é isso, ah, ele é aquilo”, e a figura de Jesus foi central para
desconsidero a força que essa figura esse processo de transformação, não
mítica teve. E a gente está falando de fosse a igreja, o vínculo com a igreja,
religião, religião é mítico, qualquer quando ele vem do interior do Rio,
religião. É sentimento... é o que quando a fome estava, a igreja que
transcende para realidade, a gente já ajudou, não teria tido esse processo
tem o trabalho. É o que transcende de transformação. Não é a história
de fato. de um homem que trabalhou, não,
Se eu não pegar essa dimensão o que deu força para vencer, para
do que transcende, do meu avô que transformar. É essa figura desse
era, sei lá, estivador do cais do porto, Jesus, que eu acho que a gente tem
e, se não fosse esse sentimento que entender e respeitar na história
que transcendeu, e ele dizer: “filho do outro. E acho que o movimento
meu estuda, porque, olha...” Era a que vai sair na Frente, no nosso
interpretação dele, de que: “olha, campo, tem que pensar nesse Jesus,
a gente está aqui, a gente, filho de pensar no que importa para essas
Deus, e a gente vai disputar esse pessoas, respeitar pelo menos a
espaço.” E colocou uma penca de experiência delas com esse Jesus.
filho preto na universidade na década CV – Maravilhoso, Valéria. Fico
de 1970. Tinha que trabalhar? Tinha. até constrangida. Falamos que a
Tinha que vender bala no trem? entrevista seria rápida, e estamos
Tinha, mas tinha que estudar. Então, aqui há quase duas horas. Muito
sei lá, minha mãe, minha tia, meu tio, obrigada por essa rica contribuição.
cinco filhos no ensino superior na
NVZ – Eu superagradeço, Chris.
década de 1970 e todo mundo preto,
Estamos aí.

42 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


ENTREVISTA COM
SAMUEL OLIVEIRA

COORDENADOR DO MOVIMENTO
BANCADA EVANGÉLICA POPULAR E
CANDIDATO A VEREADOR POR SÃO
PAULO NAS ELEIÇÕES DE 2020
Por Christina Vital,17 João Luiz Moura,18 17
Professora associada
Wallace Cabral Ribeiro,19 Gabrielle Herculano20 do Departamento
de Sociologia e
do Programa de
Pós-graduação
O movimento Bancada Evangélica Popular (BEP) foi apresentado ao em Sociologia,
público em 5 de julho de 2020, em uma live no Facebook. A iniciativa foi coordenadora do
Laboratório de Estudos
de oito lideranças evangélicas: Ariovaldo Ramos (pastor, fundador e então Sócio Antropológicos
coordenador da Frente de Evangélicos Pelo Estado de Direito);21 Daniel em Política, Arte e
Religião (LePar), na
Santos (pastor na Comunidade Cristã na Zona Leste/SP); Eliad Dias (pastora Universidade Federal
na Igreja Metodista da Luz/SP); João Paulo Berlofa (pastor na Igreja da Fluminense (UFF).

Garagem, coordenador do Coletivo Inadequados); Ricardo Assunção (pastor 18


Mestre em
Ciências da Religião,
na Frente de Luta por Moradia, Igreja da comunidade Metropolitana de São pesquisador visitante
Paulo); Samuel Oliveira (ativista da Frente de Evangélicos Pelo Estado de no Instituto de Estudos
da Religião (Iser),
Direito, membro na Comunidade Cristã na Zona Leste/SP, coordenador do membro do grupo
movimento Bancada Evangélica Popular e vereador por São Paulo, nas eleições de pesquisa Estado e
Direito no Pensamento
de 2020); Valéria Vilhena (pastora, coordenadora da EIG – Evangélicas Pela Social Brasileiro, sob
Igualdade de Gênero, Igreja Metodista da Luz) e William Carvalho (presbítero coordenação do
professor doutor Silvio
na Comunidade Cristã na Zona Leste/SP). Almeida (Mackenzie).
Membro do grupo
A abrangência do BEP é nacional e, nas eleições de 2020, apoiaram de pesquisa A
cinco candidaturas de evangélicos e evangélicas em cidades de diferentes Crítica do Direito e a
Subjetividade Jurídica,
regiões do Brasil. Nesta entrevista, realizada remotamente em setembro de sob coordenação
2020, tivemos a satisfação de contar com a colaboração de Samuel Oliveira do professor Doutor
Alysson Mascaro
(23 anos), mais conhecido como Samuca. Nascido em berço evangélico, (USP).
é um jovem morador de Sapopemba, periferia paulistana, membro da 19
Doutorando pelo
Comunidade Cristã da Zona Leste, fundador e um dos coordenadores da Programa de Pós-
graduação em
Bancada Evangélica Popular (BEP), militante da Frente de Evangélicos pelo Sociologia da UFF
Estado de Direito e do Partido Comunista do Brasil (PC do B) e graduando (PPGS-UFF), mestre e
bacharel em Sociologia
em Filosofia. Em 2020, se candidatou pelo PC do B a uma cadeira na Câmara pela mesma instituição,
de Vereadores de São Paulo. Não obteve vitória nas urnas, mas já assumiu membro do LePar e
do Núcleo de Estudos
um lugar de destaque na história recente do progressismo evangélico no Friedrich Engels
Brasil. (Nefe).
Nesta entrevista, tivemos a oportunidade de ouvir um dos fundadores 20
Assistente Social,
mestranda pelo PPGS-
do BEP sobre o trabalho teológico com os evangélicos de esquerda, suas UFF e membra do
estratégias para estas eleições, quais os desafios internos a serem enfrentados LePar.
para dialogar com o público evangélico a partir de um lugar que não o 21
Em fevereiro de
2021, a coordenação
hegemônico. executiva da Frente

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 43


Christina Vital – Muito obrigada CV – Samuca, os movimentos que
de Evangélicos pelo
Estado de Direito por nos conceder esta entrevista, você cita eram muito refratários à
passou a ser de Samuel. Gostaríamos de começar política institucional. Como você
Wesley Teixeira.
Wesley foi candidato pedindo que nos conte sobre sua passou a perceber na política eletiva
pelo PSOL à câmara trajetória de militância política e uma via de engajamento possível?
municipal de Duque
de Caxias, na Baixada religiosa. Alguém influenciou essas escolhas?
Fluminense, em 2020.
Acompanhamos Samuel Oliveira – Eu comecei SO – Minha militância política
sua candidatura que minha trajetória política por meio começou em 2013, mas antes ainda
obteve grande apoio
popular, partidário do movimento estudantil, em 2013. das manifestações de junho de 2013,
e de mídia. Sua Com pouco tempo de engajamento eu já estava engajado no movimento
candidatura ganhou
destaque em outubro nos movimentos sociais, fui estudantil, que foi onde eu inseri
de 2020 em razão compreendendo a importância do minha trajetória política, fazia parte
das controvérsias
que envolveram a espaço político como... não vou do Grêmio estudantil da escola. E
aceitação de recursos dizer como ápice, mas como um foi um ano importante para mim,
de campanha vindos
de Armínio Fraga. Para espaço que deve desaguar toda a na minha formação política, porque
uma reflexão sobre o luta cotidiana que a gente constrói, passei a ter contato com disciplinas
caso ler: https://www.
cartacapital.com.br/ nas nossas bases, na rua, e a partir que me ajudaram a ter uma visão
blogs/dialogos-da-fe/ disso, me dispus para a luta eleitoral; mais crítica da sociedade dentro
fundamentalismo-as-
avessas-em-tempos- entendendo que esse também era da escola, mas também foi um ano
eleitorais/. Acesso em: um campo de batalha, onde a gente onde comecei os meus estudos de
7 out. 2020.
também concentra as energias da teologia; a partir disso, também
nossa luta cotidiana e garante que passei a ter contato com uma visão
a gente possa ocupar os espaços diferente, mais progressista, porque
políticos de decisão, para promover eu fui nascido em um lar evangélico,
mesmo a transformação efetiva e crescido em Assembleia de Deus.
concreta das coisas. Nesse momento, eu estava na
Já venho de outras duas Igreja Batista, mas, geralmente, eu
candidaturas, uma primeira em só tinha passado por igrejas com
2016, também a vereador, na capital esse viés mais conservador, mais
de São Paulo, aos meus 19 anos; fundamentalista, e, em 2013, junto
e em 2018, também fiz parte do com algumas outras pessoas da
pleito como candidato a deputado minha igreja, passamos a estudar,
estadual; e, agora, pela terceira vez, a ter contato com outras lideranças
me coloco também nesse desafio do campo evangélico que já tinham
de ser candidato a vereador aqui na uma visão diferente. Foi um ano que
capital de São Paulo, já nessa terceira concentrou, ali, uma série de coisas
eleição. As três eleições pelo PC do B, em lugares diferentes. É a sociedade
Partido Comunista do Brasil, partido e sua intensa luta de classes, essa
com que, desde o início da minha dicotomia, a desigualdade, as
militância, tive bastante contato, me dificuldades e a necessidade também
identifiquei largamente... Tive uma de organização do povo para poder,
identidade política com o partido, em dentro da luta política, transformar
que eu pude me sentir representado, a realidade que a sociedade vive
no projeto de sociedade que o hoje. Comecei também a me engajar
partido tem e onde eu vi um espaço nos movimentos sociais. Como
de atuação importante, que eu eu disse, iniciei pelo movimento
pudesse contribuir também a partir estudantil, fiz parte da primavera
dessa perspectiva eleitoral, e a secundarista, dos movimentos que
partir disso, vim construindo essas fizeram as ocupações nas escolas,
movimentações. Do ano passado do fechamento, que ocuparam
para cá, uma coisa que já me a Assembleia Legislativa, enfim,
inquietava há muito tempo estava bastante engajado a partir

44 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


disso. Com isso fui tendo contato porque, mais ainda, percebo a
com outros movimentos. necessidade de a gente ter a
Fui me engajado nos movimentos contribuição de quem conseguir se
sociais e tendo ciência da dedicar a essa questão.
importância que tinha essa luta Sofria aquela dicotomia, porque,
política de cobrança das instituições quando comecei a me engajar na
políticas, para concretização das política, as coisas que eu via na igreja,
pautas e das lutas cotidianas por um lado, foi positivo, porque eu
que a gente apresentava, fui já vim da política muito preparado
compreender que o espaço onde para perceber e captar qualquer
tem uma significante importância coisa, sabendo já do “ninho de
na concretude dessa luta política cobras”, sabendo já da turma ruim;
eram as instituições políticas. mas, ao mesmo tempo, também
Passei a ter esse entendimento e percebi a turma ruim nos espaços
perceber que, além da importância em que eu já participava, então,
de me organizar em uma base fez um trabalho duplo, porque me
política, além da importância de me calejou um pouquinho para estar no
organizar no movimento social, além meio da lama, mas eu até tinha uma
dessa importância da luta cotidiana, fala quando comecei... eu dizia: “Ó,
fui percebendo a necessidade a minha disposição é a mesma para
que era de a gente ocupar esses ir no meio de uma piscina de lama
espaços políticos de decisão, e com uma esponja, um detergente e
percebi, em mim, que era alguém começar a limpar de dentro.” Não
que já tinha uma pré-disposição à vai ter lama lá para sempre, e, claro,
vida de militância dedicada integral, com isso, você vai percebendo que
em que eu pudesse me concentrar tem muita gente boa, muita gente
e me colocar à disposição das disposta. Até então era um discurso
necessidades da luta. Me percebi do senso comum, de reproduzir
como alguém que poderia também que a política é só um lugar de
ajudar no processo de ocupação coisa ruim. Na verdade, não, é um
desses espaços políticos de decisão, lugar de luta e onde você encontra
e foi quando, em 2014, mesmo que pessoas que estão dentro do nosso
ainda bastante jovem, tomei uma campo, fazendo uma contribuição
decisão de que eu gostaria de importante para a transformação
construir uma candidatura e poder da coisa; e você também tem as
contribuir dessa forma para nossa pessoas que vão estar lutando pelos
luta. seus privilégios pessoais, o que não
Apesar de já me organizar nos deixa de acontecer em qualquer
movimentos sociais e ter diversas outra instituição da sociedade,
contribuições que tive em movimentos inclusive nas igrejas onde eu cresci,
diferentes, percebi que eu poderia nas escolas, enfim... qualquer espaço
ajudar também nesse processo. social.
Em 2016, lanço a primeira CV – Como sua família recebeu
candidatura a vereador, como sua decisão?
mencionei anteriormente, e a SO – Foi relativamente tranquilo.
partir disso entendi que eu poderia Acho que minha mãe foi sempre quem
continuar construindo. Sofro pelos mais teve um pouco de resistência,
desafios eleitorais numa sociedade dos meus irmãos, tenho outros dois
com desigualdade, que reflete irmãos que ainda, de alguma forma,
também nesses momentos, enfim... incentivavam como quem incentiva
Mas, ao mesmo tempo, sempre me um irmão mais novo a se engajar
animou para luta política eleitoral, nas coisas. Agora, a minha mãe tinha

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 45


um pouco de resistência, porque ela como sempre fui alguém engajado
vem de uma lógica conservadora, na militância, claro que isso toma
ela vem da cultura evangélica mais um tempo da sua vida. Você
fundamentalista, apesar de ela não sempre percebe, na militância, uma
ter muita dimensão política da coisa. turma que tem uma contribuição
Ela às vezes fala: “poxa, Samuel, vou mais teórica, que é a turma mais
apresentar lá que você é candidato, intelectual, e tem uma turma mais da
mas, aí, falaram que você é do base, como é o meu caso, que acaba
Partido Comunista e, aí, falaram que sofrendo com essas dificuldades,
é ruim.” Então você tem esse trabalho que tem até um grande gosto pela
de desconstruir alguns discursos intelectualidade, mas que tem uma
do senso comum que ficam sendo dificuldade de conseguir conciliar,
reproduzidos. Mas, geralmente, essas coisas.
acho que desde cedo sempre tive Fiz uma tentativa, em 2017, de
uma vida muito ativa, participava do estudar, fiz um semestre, acabei,
grêmio estudantil desde a sexta série, por diversos motivos, não dando
então, eu já era um jovem bastante conta de manter os estudos, fiz e
inquieto, que ficava mais tempo tranquei a faculdade, e retornei no
na escola para fazer as coisas. Na ano passado. Retomei à faculdade
igreja eu era bastante engajado nos até para poder realmente iniciar e
ministérios. Então, essa minha vida concluir a minha formação. Faço
agitada sempre foi uma coisa normal graduação em Filosofia e faço um
dentro de casa, e, claro que com a curso livre de Teologia.
política, minha mãe também tinha
CV – Além do PC do B, há algum
suas preocupações, porque é isso,
outro grupo ao qual esteja vinculado
todo mundo acaba tendo essa visão
organicamente?
da política.
SO – Hoje a minha atuação reside
CV – Você mora com sua família
muito forte no partido e faço parte
em Sapopemba?
nos movimentos sociais evangélicos.
SO – Isso, eu sou da região de Faço parte da Frente de Evangélicos
Sapopemba, estou no processo pelo Estado de Direito, onde
de mudança agora, para região do também procuro dedicar um pouco
Aricanduva, que é bairro vizinho. da militância e, mais recentemente,
Moro somente com minha mãe. Meus na organização do movimento pela
outros dois irmãos já moram fora. Bancada Evangélica Popular.
CV – Conte-nos sobre sua escolha CV – Desde quando você integra
pela formação em Filosofia. a Frente de Evangélicos pelo Estado
SO – Quando terminei a escola, de Direito?
eu tinha mais um ano de gestão SO – Estou na Frente desde,
na União Paulista dos Estudantes mais ou menos, abril de 2018. Claro
Secundaristas, então, tomei uma que você começa com aquela
decisão de me manter ainda fora participação mais tímida. Ia em uma
dos estudos universitários para que atividade ou outra, chegando junto.
eu pudesse terminar a gestão. Enfim, Com o tempo, pude contribuir. Faço
terminar minhas contribuições, como parte do núcleo de São Paulo, que a
todo jovem da periferia enfrenta as gente divide por núcleos estaduais e
dificuldades de ir para universidade, municipais, e a gente se divide por
porque a escola não nos prepara núcleos regionais, então, temos um
para um vestibular. núcleo aqui na região onde eu moro,
Infelizmente as condições onde a gente organizava as reuniões
financeiras não nos permitem e, também de base.

46 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


CV – Você viu o movimento Acho que bem dizia Platão
Bancada Evangélica Popular quando falava que não tem nada
germinar. Como foi isso? Você pode de errado com os que não gostam
contar essa história? de política, o único problema é que
SO – Não só vi germinar, como serão governados pelos que gostam.
germinou em mim. Esse movimento Infelizmente a nossa turma não
nasce com base em uma leitura. gosta, mas precisa compreender a
Bom, eu, como todo evangélico que importância de a gente fazer isso,
vem de um meio fundamentalista e como necessidade da nossa luta.
que se desperta para uma fé mais Se não gosta pelos seus interesses
progressista, passo por um momento pessoais, tem que entender que
de indignação, de revolta com as precisa participar como ferramenta
igrejas e tudo mais. Acho que é quase de luta concreta. Então, passei a
regra isso acontecer, e momento fazer essa convergência e senti
também de indignação. essa necessidade, a partir de vários
movimentos sociais evangélicos
A Frente foi um espaço muito
que eu vinha percebendo, de
importante para eu perceber a
alguma forma, dentro da luta
possibilidade de ser evangélico e ser
política, de reunir esse conjunto de
diferente, inclusive, de me ajudar a
movimentações, não só movimentos,
compreender a importância de a gente
mas movimentações, porque a gente
entender nossa identidade enquanto
deixa mais amplo trazendo também
evangélico e, com pouco tempo, a
lideranças, trazendo também
valorizar essa militância evangélica
trabalhos de igrejas que fazem esse
progressista. A Frente me ajudou
contraponto a esse setor majoritário
bastante nesse processo, nunca perdi
conservador. Então, a partir desse
minha identidade cristã, mas, por
entendimento, comecei a partilhar
um tempo, deixei de me identificar
com algumas lideranças que hoje em
como evangélico na tentativa de me
dia dividem a coordenação comigo
dissociar desse campo majoritário.
na BEP, sob a necessidade de a
Depois da minha entrada na gente organizar um movimento que
Frente, me animei para essa questão. fosse político eleitoral de evangélicos
Com pouco tempo de militância, progressistas, que pudesse oferecer
fui, mais uma vez, fazendo um link à sociedade um contraponto, outra
entre aquele meu entendimento de perspectiva de ser evangélico, que é
ocupação dos espaços políticos de de participar da política – a política
decisão, agora, convergindo com o é um espaço importante, que dá
meu entendimento da importância projeção para muitas coisas. Se a
da militância evangélica e, com isso, gente ocupa esses espaços como
passei a perceber uma necessidade, irmãos e irmãs que apresentam outra
uma lacuna, dentre os vários perspectiva de ser evangélico, a gente
movimentos sociais evangélicos, que pode, inclusive, colaborar para um
a gente tem hoje de se dispor a ocupar processo de ruptura na própria igreja,
os espaços políticos de decisão, acho dentro de uma visão mais ampla que
que por diversos motivos. Muitos, hoje não se percebe de outra forma
porque, de alguma forma, não fogem que não fundamentalista, porque
dessa lógica do senso comum, não lhes é apresentado à outra forma
de se distanciar da participação que não a fundamentalista, que não
política institucional, o que, no meu a conservadora.
entendimento, é supernegativo, pois
Quando a gente traz um movimento
faz com que a gente dê espaço para
para a política, ajuda também a gente
quem tem interesse, que não é a
a chegar nas igrejas e ajuda a romper
nossa turma, infelizmente.

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 47


com essa lógica de que a base mas, pelo menos no raciocínio lógico
evangélica serve de base eleitoral rápido, parece que não tem, porque
para um setor mais conservador, essa turma não tem fundamento.
para um setor que está ligado ao A percepção que eu tenho hoje é
capital. Então, havia a necessidade de que a igreja foi extremamente
de a gente organizar um movimento cooptada e instrumentalizada pelo
nesse sentido, por isso, procurei capitalismo, parto dessa premissa,
algumas lideranças que hoje circulam desse entendimento, a igreja como
dentro desses movimentos sociais um todo, o campo evangélico como
evangélicos e partilhei com eles esse um todo, e as religiões como um
movimento. O que é um desafio, todo, as instituições como um todo,
porque, por mais que estejamos no foram cooptados. Não é diferente na
mesmo campo político, reunimos uma igreja evangélica, dentro do cenário
grande pluralidade de ideias políticas, brasileiro tem uma importância muito
de ideias teológicas, o que não é fácil. grande, é algo que compõe boa
Vocês devem saber bem a dificuldade parte da nossa população e que faz
que temos de dialogar mesmo com uma interferência muito discrepante
o nosso setor, com a nossa turma, no cotidiano brasileiro.
as peripécias que a gente passa no Hoje faz parte da política essa
dia a dia com os nossos irmãos, mas instrumentalização que formou uma
conseguimos fazer de forma diferente máquina muito grande a favor do
no nosso campo político, que o faz só capital, fez uma manutenção dos
pela política. Nós ainda temos a Bíblia, espaços políticos para essa turma.
o que nos ajuda a dar a linha para Você tem as lideranças que estão, aí,
que a coisa funcione de uma forma mancomunadas com o capital, mas
muito mais fraterna, de uma forma tem também uma base que reproduz
que a gente ainda consiga “chegar o senso comum, então, eu acho que
junto” e somar. Com o BEP, buscamos está na mesma tonalidade, não acho
nos posicionar contra o ódio, pela que tem a mesma participação, eu
liberdade individual das pessoas sem acho que a massa evangélica só
que a gente fira a laicidade do Estado. segue, infelizmente, um caminho,
CV – Samuel, você fala sobre uma doutrina que foi construída
a figura do “fundamentalista sobre essa lógica, mas que, na
conservador” como se os termos verdade, até mesmo pela sua base ser
fossem sinônimos. Apresenta sua majoritariamente da periferia, pobre,
mãe como sendo afinada a esse tinha que estar muito mais ligada
perfil. Como você lida com isso? a um campo progressista popular
SO – Hoje você tem uma do que o contrário. Infelizmente,
diversidade de tonalidades mesmo, ao longo da história, a gente teve
que tem dentro desse setor essa aproximação muito mais
majoritário evangélico, que é um forte dos setores mais capitalistas
setor que a gente acaba atribuindo e acho que eles encontraram no
esses nomes de conservadores, conservadorismo uma forma de
enfim, fundamentalistas. manutenção, não como forma de
crença, mas forma de manutenção
Outro dia estava refletindo,
desse instrumento político que
porque acho que a gente precisa
eles desenvolveram com as igrejas,
rever um pouco desse nosso termo
acabou gerando todo esse reflexo
de fundamentalista. Não sei se
de uma massa evangélica, hoje, mais
faz sentido a gente ficar dizendo
conservadora.
fundamentalista, mas é algo que ainda
queria me debruçar para estudar CV – Quem compõe a coordenação
um pouquinho, ver se tem sentido, do BEP com você?

48 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


SO – Hoje nós temos algumas CV – Quando exatamente você
lideranças que ajudam na começa a articular esse movimento?
coordenação. Estou junto com a SO – Essa articulação vem,
pastora Eliad, o Ricardo Mendes, relativamente, desde 2018, o
pastor de ocupações aqui de São Ariovaldo [Ramos], inclusive, e a
Paulo, o pastor Daniel Santos e o Fernanda Valinho foram as primeiras
presbítero William Carvalho, que são pessoas com quem partilhei o
da minha comunidade. O pastor João projeto inicialmente. Nas primeiras
Paulo Berlofa, que é coordenador conversas eu tinha apresentado,
do Coletivo Inadequados, um outro na verdade, a minha disposição
movimento importante no meio em ser um candidato que pudesse
evangélico também. Tem a pastora representar esse contraponto, eu,
Valéria Vilhena, coordenadora da que já vinha de uma caminhada
EIG – Evangélicas pela Igualdade de candidaturas, queria poder me
de Gênero. Tem o pastor Ariovaldo dispor a fazer a gente levantar um
Ramos, coordenador nacional da nome, fazer um contraponto, enfim,
Frente de Evangélicos pelo Estado de crescer o movimento em cima disso.
Direito. A pastora Wall Moraes, que Mas, com pouco tempo, entendi que,
entrou mais recentemente. Ela não para além da minha contribuição,
fez parte do processo de fundação, outras contribuições poderiam ser
mas, no esforço de a gente poder importantes nesse processo, e que
garantir algumas representatividades a gente poderia fazer um espaço
e algumas contribuições dentro do de atuação muito mais amplo com
grupo de organização, a gente a o movimento e não só como uma
convidou para estar conosco. E a candidatura, algo que pudesse de
Fernanda Valinho, que atua hoje na fato compartilhar com outros irmãos
Missão Cena e na ONG Rio de Paz, em e outras irmãs que estão nessa
São Paulo. empreitada também, esse desafio.
Por uma questão bastante Aí no final de 2018/início de 2019,
objetiva, a maior parte dos foi quando a gente se articulou mais
integrantes e das candidaturas para isso.
inicialmente apoiadas são de SP CV – Como é feito o apoio do BEP
porque, quando eu iniciei o processo às candidaturas?
de partilhar esse desejo, essa
SO – Bom, temos acolhido, na
intenção, esse projeto, naturalmente,
verdade, os candidatos. Dentro da
partilhei com lideranças que eu já
nossa rede de contatos, sempre
dialogava, que estavam próximas,
incentivamos as pessoas que
que eu tinha contato. Então, até no
conhecemos a vir junto, como o
processo natural de proximidade,
movimento. Obviamente, fazemos
acabei fazendo essa construção, mas,
esse trabalho, mas precisamos que
aqui na região, tirando o Ariovaldo
também os candidatos venham
Ramos, que hoje está no Taboão, e o
nos procurar na intenção de que a
[pastor] Berlofa, que está em Mogi,
gente não fique aqui botando a cara
os demais são todos da Capital de
dos candidatos sem que eles nem
São Paulo, e a pastora Wal Moraes
queiram que sejam veiculados ao
, que recentemente vem do Distrito
movimento. Infelizmente, tem muita
Federal. Procurei algumas outras
gente ainda, mesmo no nosso campo,
lideranças que têm feito esse trabalho
que tem muita resistência com o tema
importante no cenário nacional, mas,
evangélico, então, a gente também
enfim, acabei não conseguindo. A
tem que ter esse tipo de cautela e
ideia é que movimento tenha essa
compreender alguns irmãos, mesmo
projeção nacional.
que estejam na mesma empreitada,

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 49


não conseguem ainda perceber a um campo progressista, não só no
importância ou que não querem ter campo democrático, mas no campo
esse tipo de vinculação. progressista. Nós entendemos, no
O movimento precisa, movimento, que para além do esforço
minimamente, trabalhar com a turma que hoje faz o nosso campo político
que nos procura. Incentivar, nas da esquerda de fazer um diálogo
nossas redes particulares, nossos mais amplo com o setor democrático,
irmãos que conhecemos... Hoje, para poder derrotar o setor mais
temos algumas dessas candidaturas conservador, mais bolsonarista,
que você mencionou, devemos temos o entendimento que o nosso
fechar, inclusive, entre hoje e amanhã, movimento precisa ser algo muito
toda a turma que se apresentou para mais direcionado, que possa dialogar
podermos apoiar. Porque temos dentro de um campo realmente
critérios internos, no sentido de estar progressista, porque senão a gente
no campo progressista, de ter uma fé vai ter dificuldade no cotidiano, na
progressista. Esses cuidados são no construção da luta nos espaços.
sentido de não apoiar candidaturas Trabalhamos dentro de um campo
que vão fazer mais do mesmo. popular, progressista, já conseguimos
Então, entre hoje e amanhã, muito ter a dimensão dos partidos que
possivelmente, fecharemos essas devemos dialogar e da fé progressista,
candidaturas. Queremos começar, obviamente, é algo que, de alguma
ainda esta semana ou semana que forma, acaba já combinando, mas
vem, a apresentar as candidaturas nem sempre. Tem gente que vem
que vão ser apoiadas pelo de uma formação teológica mais
movimento. Vou evitar falar muitos conservadora, que chega, aqui, a
nomes para não me antecipar aqui, gente tem seus esbarros, a gente
e a gente passar por algum processo deve fixar com cada candidato, cada
de discussão interna depois, e eu candidata um compromisso com
acabar ficar devendo com isso, mas uma série de pautas, que devemos
vocês em breve vão ter um retorno trabalhar. Vocês devem, em breve,
das candidaturas que vamos apoiar. ter acesso também. Basicamente, é
Algumas são bastante objetivas, o isso, é estar dentro de um campo de
Vinicius Lima, por exemplo, esse aqui fé e político progressista. Queremos
já temos muito consenso, dentro da nos identificar como evangélicos.
Bancada, de que é um nome que Quase todo mundo que vem nos
a gente vai estar junto. O [pastor] procurar ou já conhecemos ou já
Berlofa, enfim, já temos algumas temos alguma ligação, porque faz
candidaturas que a gente consegue parte de um movimento “x” no estado,
antecipar... Danilo [Pássaro] também, porque o irmão já conhece, é um ou
enfim, tem algumas candidaturas que outro que, às vezes, vem de uma
já temos vínculo, que sabemos, que cidade mais do interior, uma pessoa
já entende aquilo como movimento. nova, uma pessoa que ainda não
CV – Quais são os critérios para se está conectada dentro dessa rede.
tornar uma candidatura apoiada pelo Como estamos trabalhando com
BEP? nicho muito específico, então, para
SO – No nosso entendimento, nós acaba ficando bastante reduzido
a perspectiva para essas eleições mesmo. Pode ser que isso aumente
municipais de agora, devemos ter em outros momentos, mas agora...
um número bastante reduzido de Enfim, não é o caso, então a gente
candidaturas, porque trabalhamos deve trabalhar com um número mais
com recorte muito específico. reduzido de candidaturas que devem
Primeiro que estamos dentro de estar dentro dessa perspectiva.

50 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


CV – Por que vocês escolheram um pouco menos, mas é algo que
o termo popular e não progressista tem sido muito significativo no
para formar o nome do movimento? cenário político, porque hoje é de
SO – Escolhemos esse termo conhecimento de todo mundo a
porque acreditamos que ele expressão que os evangélicos têm
possa dialogar mais com o povo. dentro dos espaços políticos de
Ainda temos muita dificuldade de decisão, como uma bancada que
diálogo e queremos fazer, com seja, onde se organiza, têm a sua
esse movimento, um diálogo muito identidade política e o seu caminho
específico com o setor evangélico. político. Então, acho que essa
Não à toa que é uma bancada questão vai ser importante, mas a
evangélica, não abrimos mão dessa gente quer levar muito a discussão
identidade, apesar de hoje nós termos também para as políticas públicas.
movimentos importantes, que estão É isso que queremos trabalhar,
dialogando com o setor cristão de queremos que as pessoas elejam
forma mais ampla. Nós sentimos a essa nova bancada, não porque
necessidade de ter esse diálogo com seja evangélica, mas porque vai
os evangélicos, que os evangélicos lutar pelas pessoas e, a partir disso,
pudessem ter identidade, só que a gente vai defender serviços
dentro da polarização política em públicos de qualidade, os direitos.
todo cenário político que vivemos, já É interessante, porque eu ainda
de alguns anos para cá, sabemos das chegava ouvir uns discursos do tipo:
dificuldades de criar esse diálogo, “ah! mas só fala sempre de educação,
infelizmente. saúde, sempre a mesma coisa...”,
O popular deixa claro, eu acho, só que hoje você já não tem mais
que ele faz parte desse processo, esse discurso, porque as pessoas
dá essa identidade progressista, perceberam que saúde e educação
essa identidade com o povo, com as precisam de atenção, de que não é
pessoas, enfim, mais pobres. Mas, ao mais do mesmo, não é praxe, é que
mesmo tempo, não dá essa taxação é um objeto de pauta importante,
que dá quando você chega numa porque são serviços mais básicos
pessoa que já é superfechada ao e que foram retirados diversos
diálogo, que cresceu numa lógica direitos a partir desse serviço nos
conservadora e que aprendeu que últimos anos. Então, é algo que as
progressista é coisa do PT, “que é pessoas estão sentindo, a saúde,
isso e aquilo”, e que, por ora, já vai por exemplo, agora, é algo que deve
se fechar para uma conversa porque entrar muito em conta, e aí você
já identificou, ali, algo que ela rejeita. tem projeto popular, é importante
Então, na intenção de ampliarmos para podermos, de fato, representar
nosso diálogo e não fechar portas, o povo, não representar uma classe
mas sem perder nossa identidade, religiosa com fim em si mesmo, mas
entendemos que o termo popular entender que a classe religiosa está
podia entender melhor essa questão. inserida numa classe social e que
é precisa dos cuidados, precisa de
CV – Em sua opinião, quais serão
uma sociedade.
os temas mais tratados nestas
eleições?
SO – Eu acredito muito que a CV – Como chegar às pessoas
questão da laicidade do Estado vai articulando racionalidade política
ser muito importante, apesar de você e narrativas emocionais que as
ter uma eleição, agora, municipal envolvam, as engajem? Como a
em que, talvez, essa questão pegue política pode fazer sentido para as
pessoas evangélicas?

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 51


SO – Bom, acho que, de alguma representar essa alternativa e fazer
forma, é muito mais significante no esse contraponto, de uma turma
diálogo de cada candidato, eu acho que, infelizmente, até hoje tem
que mais do que o movimento, os estado nos espaços políticos, a partir
candidatos vão ter esse desafio. É de sua identidade de fé, mas que
um desafio que ele tem, enquanto não representa, em verdade, aquilo
candidato, enquanto candidata, que o evangelho nos ensina. Então,
de se conectar com a sua base, de é uma fala que deve vir muito mais
conseguir ampliar o seu diálogo. O numa perspectiva teológica, bíblica,
movimento, claro, também vai tentar, porque é o que dá a orientação para
dentro dessa linha, criar esse diálogo o nosso setor evangélico, muito
com setor mais popular. mais a partir dessa perspectiva, mas
É claro que a gente ainda tem tentando trazer para esse campo
uma turma no campo mais popular, popular, e afastando desse campo
tem uma parte que não, e uma turma que está preocupado com outras
que não tem acesso, que está dentro questões que sequer têm a ver de
das igrejas, mas que não tem acesso verdade com o evangelho.
à internet, então, assim, a gente Christina Vital – Maravilhoso.
ainda está bastante atordoado com Parabéns e muito sucesso para você,
a questão da pandemia e com o Samuca, agora e sempre. Obrigada
público que a gente quer dialogar, pela entrevista.
mas é claro que a gente quer falar SO – Agradeço a vocês pela
a partir da perspectiva das suas oportunidade, peço perdão por
cidades cotidianamente, que sofrem qualquer coisa, estamos numa semana
com os dilemas das injustiças, e o muito corrida com os preparativos
quanto nosso evangelho de Cristo, da campanha, porque, além de tudo,
que tanto defendemos, que tanto também sou pré-candidato; então,
acreditamos, está conectado com estou extremamente cansado e, às
a reparação dessas injustiças. Acho vezes, acaba não contribuindo tanto,
mais do que qualquer outra coisa, o mas espero que possa ter ajudado
diálogo com uma turma que a gente de alguma forma com as pesquisas e,
faz a partir da nossa identidade de naquilo que vocês precisarem, estou
fé precisa ter a nossa base de fé, à disposição e também a Bancada
nossa base teológica, nossa base Evangélica Popular. Ainda somos
bíblica, então, devemos fazer um um movimento novo. Enfrentando as
diálogo conectando nossa fé, que dificuldades de qualquer movimento
é uma fé que se inquieta com as que está se formando, é coordenado
injustiças, que se inquieta com as por lideranças que vocês sabem que
opressões e que não aceita esse têm a agenda “daquele jeito”, então,
tipo de coisa, com a realidade desse temos muita dificuldade também de
episódio que essas pessoas estão nos organizar, mas temos conseguido
vivendo e o quanto é importante que fazer uma movimentação bastante
a gente transforme isso a partir da expressiva, com a graça de Deus, a
ocupação dos espaços políticos de gente vai poder ajudar na mudança
decisão; e o quanto a gente também de muita coisa.
tem uma turma que está disposta a

52 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


ENTREVISTA COM
TIAGO SANTOS

FUNDADOR DO MOVIMENTO CRISTÃOS


CONTRA O FASCISMO E CANDIDATO 22
Professora Associada
do Departamento
A VEREADOR POR PORTO ALEGRE de Sociologia e
do Programa de
Pós-graduação
NAS ELEIÇÕES DE 2020 em Sociologia,
coordenadora do
Laboratório de Estudos
Socioantropológicos
Por Christina Vital,22 Rafaela Marques,23 João Luiz Moura,24 em Política, Arte e
Religião (LePar), na
Wallace Cabral Ribeiro,25 Gabrielle Herculano26 Universidade Federal
Fluminense (UFF).
23
Jornalista, mestre
Os movimentos evangélicos e católicos identificados com a esquerda em Cultura e
política no Brasil não são novos. Antes, durante e imediatamente depois Territorialidades pela
UFF, pós-graduanda
da ditadura militar no Brasil (1964 a 1985), variados grupos se formaram, em Jornalismo
mantendo-se ativos em diferentes redes na sociedade civil. Alguns períodos de Investigativo pelo
Instituto de Direito
efervescência política ocorreram pós-redemocratização como a Constituinte Público (IDP) e
de 1987, as eleições de 1989, o impeachment do então presidente Fernando membro do LePar.
Collor de Mello, as manifestações de junho de 2013 e o impeachment da 24
Mestre em
presidenta Dilma Rousseff. Na história mais recente, este evento foi decisivo Ciências da Religião,
pesquisador visitante
para a reorganização de forças tanto de direita, quanto de esquerda no Brasil. no Instituto de Estudos
Em 2018, com a chegada das eleições presidenciais, brotaram inúmeros da Religião (Iser),
membro do grupo
movimentos, religiosos ou não, opondo-se ao crescimento das forças de pesquisa Estado e
políticas de direita que convergiam paulatinamente para a candidatura de Direito no Pensamento
Social Brasileiro, sob
Jair Bolsonaro. Nesse contexto, surgem os Cristãos Contra o Fascismo, um coordenação do
movimento nacional originado em Porto Alegre (RS) sob a liderança de professor doutor Silvio
Almeida (Mackenzie).
Tiago Santos (33 anos). Nesse movimento participam evangélicos e católicos Membro do grupo
de pesquisa A
autoidentificados como progressistas. Há, entre seus integrantes, leigos, Crítica do Direito e a
padres, freiras, pastores, missionários e fiéis de variadas denominações. Subjetividade Jurídica,
sob coordenação
Nesta entrevista, realizada remotamente em outubro de 2020, tivemos do professor doutor
a satisfação de conversar com Tiago sobre sua vida de militância política e Alysson Mascaro (USP).
sobre suas experiências religiosas. Tiago Santos estudou na Escola Superior de 25
Doutorando
pelo Programa de
Teologia, em São Leopoldo. Na juventude, foi membro de uma igreja batista e, Pós-graduação
após completar o seminário, engajou-se no colegiado pastoral em Porto Alegre em Sociologia da
PPGS-UFF, mestre
(RS), tendo concluído seu mestrado em educação na PUC-RS posteriormente. e bacharel em
Nas eleições de 2020, concorreu a vereador por essa mesma cidade, em uma Sociologia pela mesma
instituição, membro do
candidatura coletiva pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Embora fosse Laboratório de LePar e
candidato, nossa conversa se orientou por temáticas como os movimentos do Núcleo de Estudos
Friedrich Engels
sociais de esquerda religiosa no Brasil hoje, evangelização de populações (Nefe).
marginalizadas e formação política da base social. 26
Assistente Social,
mestranda pelo
Programa de Pós-
Christina Vital – Tiago, muito eleitoral. Gostaríamos de ouvi-lo, graduação em
obrigada por topar conversar inicialmente, sobre sua trajetória na Sociologia da PPGS-
UFF e membra do
conosco hoje, em plena campanha vida política e religiosa? LePar.

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 53


Tiago Santos – Perfeito, gente, bom coisas de outra forma. Aquilo que eu
dia! Obrigado por essa oportunidade entendia como um trabalho religioso,
de contribuir com a pesquisa de vocês. em certos aspectos, a gente entende
A gente vem lendo as coisas que Iser como sendo uma missão divina de
tem produzido, e estou muito feliz de acolher essas pessoas. Então, em
poder fazer parte dessa pesquisa. 2015, pedi o desligamento da igreja e
Eu sou formado em Teologia, fiz o comecei a me reunir com um grupo
Seminário Batista do Rio Grande do aqui em Porto Alegre, um grupo de
Sul, em Porto Alegre, e fiz também amigos que estudavam a Bíblia com
bacharelado em Teologia pela uma outra perspectiva. A gente se
Escola Superior de Teologia, a EST, reunia em bares da Cidade Baixa, uma
de São Leopoldo, da mesma região região boêmia aqui de Porto Alegre.
metropolitana. Comecei o mestrado E ali começou, na verdade, uma coisa
em teologia na PUC, numa pesquisa curiosa. Eu não sabia como começar,
justamente sobre a participação mas falei sobre essa ideia de que a
ou a influência religiosa na política, igreja é um espaço ensimesmado,
aquilo que o Iser vem produzindo. que está descontextualizada, não se
Não consegui uma bolsa, mas a comunica com o contexto social e
oportunidade de seguir minha político da sua época.
pesquisa na área da Educação. Quando pedi desligamento da
Então, sigo na PUC, cursando, agora, igreja, eu não sabia, na verdade, o
o mestrado em Educação, contudo que pessoas que não frequentavam
com uma pesquisa que investiga a uma igreja faziam, aonde elas iam, o
influência da religião na política e na que conversavam, qual era o assunto
educação. delas. Eu me percebi dentro de uma
Assim que terminei o seminário bolha, embora eu criticasse essa
teológico, fui convidado por uma bolha. Eu fico pensando que quem
Igreja Batista para fazer parte da não critica deve estar muito mais
equipe do colegiado pastoral da mergulhado nessa situação do que
igreja, que era formada por, mais eu, que fazia todas essas críticas, e,
ou menos, cinco pastores. Trabalhei quando saí, me percebi não sabendo
lá cerca de nove anos, mas sempre o que um não cristão fazia, onde
tive um questionamento em frequentava, o que conversava. Eu
relação à própria interpretação nem sabia o que fazer depois que eu
bíblica que, naquele meu contexto pedi desligamento. Foi então que um
religioso, era uma interpretação amigo meu, ateu, me disse que queria
mais conservadora, excludente de entender mais a Bíblia, entender
determinados grupos. E sempre melhor quem era Jesus. Ele fazia
fiz esse questionamento, sempre algumas críticas, mas elas não eram
lendo Jesus como esse que acolheu tão fundamentadas, porque ele não
os grupos marginalizados da sua conhecia o texto bíblico e tudo mais.
época – as crianças, as mulheres, Perguntou se a gente podia fazer um
os leprosos... Por que vamos estudo bíblico. Pensei: “então, beleza,
segregar e excluir os marginalizados vamos fazer.” Começamos a fazer um
da nossa época? Então, sempre estudo bíblico. Depois de um tempo,
foi um questionamento meu que um amigo de Belo Horizonte me
continuamente incomodou muito ligou dizendo que alguém de lá viria
a igreja à qual eu fazia parte, até morar em Porto Alegre, e perguntou
que, em determinado ponto, concluí se eu poderia acolher essa pessoa,
que, se eu quisesse continuar meu apresentar a cidade e tudo mais, e
trabalho, deveria me desligar da falou que ele era cristão também. Ele
igreja e seguir um outro rumo, fazer as só não tinha me dito que a pessoa

54 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


era um punk todo tatuado. Quando uma ONG de educação e assistência
ele chegou aqui, disse que queria social, e com ela a gente conseguiu
conhecer uma igreja, pediu algumas desenvolver vários projetos,
indicações, eu fiquei meio sem saber inclusive letramento religioso, com
onde indicar, porque o pessoal aqui a ideia de combater os discursos
é meio conservador, então cheguei fundamentalistas religiosos. Então,
a indicar para ele a Bola de Neve, nós tivemos um projeto de extensão,
que costuma ser uma igreja com um por exemplo, no Instituto Federal de
pessoal um pouco mais tatuado. Eu Porto Alegre, desenvolvido durante
acho que existe cota de tatuagem um ano, e atuamos também com
(risos), porque ele também não foi escolas da rede pública municipal e
aceito lá, tinha tatuagem demais, estadual.
acho que tem um limite (risos). E, Justamente pelo caráter do projeto
daí, como ele não foi aceito nesses e pelas pessoas que por meio dele se
espaços também, perguntou se eu reúnem em comunidade, é possível
não podia fazer um estudo bíblico dizer que são pessoas excluídas das
com ele. suas igrejas de origem por conta
Então, nós começamos uma dos questionamentos que faziam,
comunidade em 2015, desta forma: geralmente de cunho político. São
um teólogo, um ateu e um punk, feministas, socialistas, comunistas,
parece até anedota. Quando eu pessoas que se identificam como de
começo a contar essa história, esquerda, anarquistas… São pessoas
sempre parece piada: o que um ateu, que questionam o sistema religioso
um punk e um teólogo estão fazendo e político, o sistema econômico…
na mesa de um bar, na Cidade Baixa Como elas não se adequam ao
de Porto Alegre? Aos poucos, outras discurso hegemônico da igreja,
pessoas foram se chegando. Eram que costuma ser conservador,
pessoas que ficaram sabendo, e eram essas pessoas acabam sendo
pessoas que já tinham se desligado excluídas, marginalizadas. Então,
das suas igrejas em outras épocas, a nossa igreja está na margem do
inclusive antes de mim, pessoas de cristianismo. Entendo que existem
outras religiões, pessoas oriundas da outros movimentos e igrejas que
Igreja Católica, Assembleia de Deus, se identificam como “alternativas”
anglicana, luterana, batistas… Hoje porque se reúnem em bares,
o grupo reúne gente de tudo que se reúnem em outros espaços
é denominação. Nós começamos públicos..., mas essencialmente
essa igreja em 2015, fazendo esses o discurso delas é o mesmo, é
estudos bíblicos em bares, espaços excludente, não aceita pessoas
públicos da cidade, debaixo de um LGBTQIA+, têm a mesma ideia de
viaduto da Zona Norte, viaduto Birici. que a mulher deve ser submissa etc.
E nesse mesmo ano, resolvemos Muda um pouco a roupagem, mas o
nos organizar institucionalmente, discurso não muda. A nossa igreja
mas tínhamos uma resistência de tem o diferencial de promover, além
nos organizarmos como igreja. dos estudos bíblicos, dos momentos
Nós só decidimos nos organizar de oração e de meditação, debates
institucionalmente porque a gente em diversas áreas. Temos um grupo
queria desenvolver trabalhos, de gêneros e sexualidades, um grupo
projetos sociais de educação, de que debate racismo, um grupo que
formação, e dificultava não ter debate temas ecológicos, abordando
um CNPJ. Então, nos organizamos a forma como o governo tem lidado
como uma instituição de educação com as questões ambientais. E
e assistência social. Nossa igreja é nós já promovemos debates sobre

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 55


demarcação de territórios indígenas, teve uma adesão muito forte, que a
por exemplo. São debates que a gente não imaginava, não esperava,
nossa igreja faz e que consideramos e que chegou a ter certa repercussão
muito natural. dentro dos movimentos.
CV – Agora gostaríamos de ouvir Acho que ali havia uma ideia
mais sobre a criação do Cristãos no senso comum, e que está se
Contra o Fascismo: seu contexto de desconstruindo aos poucos, de que
formação, concepção e objetivos. todo cristão apoiava aquele discurso
TS – O grupo surge em 2018, no do Bolsonaro. E quando as pessoas
momento das eleições. Eu percebi percebem que não é assim, que esse
que as pessoas da nossa igreja, da discurso não é hegemônico, que os
nossa comunidade, nessa época, já cristãos não são um bloco monolítico,
estavam num desgaste mental muito que existem essas diferenças de
forte, que vinha desde lá da época do discurso e de interpretação, isso
impeachment da Dilma [Rousseff]. surpreende um pouco. Talvez por
Aquilo afetou pessoalmente muitos isso, a iniciativa ganhou certo
de nós, de um jeito muito forte. Talvez destaque que a gente não esperava.
por razões associadas à identidade O que para nós era natural – a gente
política-ideológica, perceber tudo já sabia que os cristãos não pensam
que vinha acontecendo no país, os igual, até porque nossas experiências
desmontes, foi difícil para alguns provam isso –, ficou evidente que,
que trabalham como assistentes para um público mais geral, era
sociais, ou na área da saúde, ou novidade.
são professores, estudantes… todos As mulheres do movimento do
foram sendo afetados diretamente #EleNão entraram em contato para a
pelo impeachment e pelos desmontes gente ajudar a construir o movimento,
que foram se seguindo. Quando nos convidaram para uma reunião
começou esse movimento de apoio e quiseram saber como a gente
ao [Jair] Bolsonaro, e essa tensão, poderia participar. E dessa forma
e a multiplicação desse discurso acho que o pessoal da nossa igreja
cristofascista, que tem uma estética se animou um pouco, as mulheres
religiosa muito forte, caminhando da nossa igreja se animaram, a
ao lado de apelos armamentistas, gente foi à reunião e participou do
violentos e antidemocráticos, eu primeiro ato do #EleNão aqui de
vi que nosso grupo não tinha mais Porto Alegre, e ajudamos a construir
força para esboçar uma resistência, os outros que vieram depois. Para
um contraponto, havia todo um nossa surpresa, pessoas de outras
desgaste emocional e psicológico cidades, do Rio de Janeiro, de São
anterior. Mas então veio o movimento Paulo, de Salvador, de Ilhéus, viram
do #EleNão, e eu estimulei o grupo a o nosso evento, copiaram a nossa
participar, mas o pessoal estava meio arte e fizeram também um evento
sem energia. Então, o que eu fiz foi dos Cristãos Contra o Fascismo na
me convencer de que iria fazer do sua cidade. Então, foi uma coisa
jeito que desse, do jeito que cada um muito orgânica, não foi algo que
conseguisse fazer sozinho. E lancei, a gente combinou. A gente não
no Facebook, um evento chamado entrou em contato com ninguém, as
“Cristãos Contra o Fascismo”, pessoas foram utilizando as nossas
convocando para ato do #EleNão, artes e fazendo o evento na sua
aqui de Porto Alegre. Aquele era cidade, convocando também para
um ato que não era organizado manifestações locais do #EleNão.
por cristãos, era organizado por Depois a gente foi entrando em
movimentos de mulheres. Logo contato com essas pessoas, e fomos

56 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


nos reunindo de forma muito natural. saíssem, porque elas supostamente
Esse movimento foi ganhando não eram cristãs. Isso porque
corpo, formando suas lideranças nos Bolsonaro foi apresentado como
estados e se desenhando. A partir representante dos valores cristãos,
daí, a gente criou uma página e um as pessoas se sentiram obrigadas,
grupo no Facebook, no WhatsApp... no fundo, a apoiar aquele discurso,
Logo no primeiro ato do #EleNão, ainda que, em algum momento,
saiu um vídeo do Cristãos Contra o elas não concordassem. Algumas
Fascismo na Mídia Ninja. E, daí, eu pessoas foram empurradas para isso.
acho que deu um boom. Eu digo que Apoiar o candidato que representa
esse movimento surge num impulso, os valores cristãos ou, então,
da nossa necessidade de mostrar “estar sendo contra Cristo”. Quem
para as pessoas que aquele discurso esboçava uma reação contrária era
do Bolsonaro não era hegemônico banido pela comunidade. Se a pessoa
[entre as comunidades religiosas]. exercia alguma função de liderança,
Muita gente que nos escreve era removida, porque começava a
dizendo: “ah, eu achava que era o representar uma ameaça, de certa
único, eu achava que só eu pensava forma, para a própria igreja. “Aquela
assim.” E essa também é uma pessoa ali, exercendo influência,
experiência nossa enquanto igreja, liderando outras, e não pensando
logo que a gente começou a nossa como a gente.”
igreja, tínhamos um pouco esse Um amigo nosso, que era pastor de
sentimento. “Mas será que estou uma Igreja Batista em Guaíba, cidade
errado, porque todo mundo diz vizinha de Porto Alegre, foi excluído
que Jesus é esse cara conservador, da sua igreja, foi pedida a exclusão
de arma na mão e que não gosta dele, e ele era o pastor da igreja. Só
de ‘viado’... Será que só eu penso que ele sempre teve afinidade com
diferente, será que só eu leio a o PT, sempre foi de esquerda, nunca
Bíblia e vejo um Jesus diferente?” escondeu isso. Naquela ocasião,
Em algum momento, a gente se então, a igreja pediu o desligamento
questiona se não é a gente mesmo dele, justamente por isso, porque
que está errado, se não tem algo “era comunista...”, enfim, aquele
errado com a gente. E eu acho que discurso todo. E quando o Cristãos
as pessoas perceberam que não, que Contra o Fascismo atingiu essa
existem outros cristãos que pensam dimensão nacional, percebemos que
assim. Com isso, as pessoas ganham essa era uma realidade em outros
um referencial, reanimam sua lugares, várias pessoas nos relataram
própria fé. Pessoas que já estavam que foram expulsas das suas
abandonando sua fé, porque comunidades, ou que não sentiram
achavam que era incompatível mais à vontade, porque o próprio
pensar daquela forma e continuar pastor ou padre, ou outras lideranças,
sendo cristão, perceberam que não, falavam no sermão que quem não
que a justiça social e essa boa-nova apoiasse o Bolsonaro não era cristão.
do evangelho de Jesus Cristo não Então, houve uma pressão religiosa
estão dissociadas, não são coisas muito forte por parte das lideranças.
diferentes. Essas pessoas não se sentiram mais
Nós tivemos muitos relatos de à vontade de estar naquele ambiente
pessoas, na época da eleição do e saíram, mas também não sabiam
Bolsonaro, que foram expulsas das para onde ir.
suas igrejas. Casos em que a pessoa CV – Você poderia nos contar sobre
não apoiava o Bolsonaro e o pastor, o Movimento Liberta e as dimensões
a liderança, pedia para que elas de luta por reconhecimento e

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 57


inclusão que estão envolvidas no grande, liderada por um pastor
pertencimento ao grupo? batista, que era professor do
TS – Nas comunidades se Seminário Batista do Paraná, e foi
constroem vínculos emocionais e expulso da sua igreja justamente por
afetivos. Então, se desligar dessas não apoiar o Bolsonaro. Ele também
comunidades é como ter se desligado ficou sem igreja, sem comunidade de
da família, ser expulso da família. Por fé e, quando ele viu esse movimento
isso, as pessoas chegavam até a gente, do Liberta, se organizou com outros
para o nosso grupo Cristãos Contra irmãos que também haviam sido
o Fascismo, com uma crise muito expulsos ou se afastado de suas
forte em relação a isso. E a gente se igrejas, e começou uma igreja lá.
sentiu um pouco responsabilizado, Também há um grupo em Osasco,
já que estava promovendo esse outro em São Paulo, outro em Ilhéus,
movimento e questionando esse e, no início de 2020, estávamos
discurso, dizendo que era possível começando a formar um grupo em
ser cristão e não apoiar o Bolsonaro, Salvador e no Rio de Janeiro, mas a
e as pessoas estavam aderindo, pandemia dificultou um pouco essa
e, ao aderir a esse discurso, elas articulação.
estavam sendo expulsas das suas CV – Tiago, você está dizendo
comunidades. Nós nos sentíamos um que o movimento Liberta tem
pouco responsabilizados em relação a pretensão de reunir e acolher
a isso, e começamos um outro pessoas que já não se sentem mais
movimento, que se articula dentro vinculadas às suas comunidades de
do Cristãos Contra o Fascismo, origem, mas ao falar em comunidade
chamado Liberta, que é a ideia de você estabelece uma diferença em
igrejas libertárias. relação à igreja, à institucionalidade?
Nós começamos a esboçar um Como é isso?
projeto de igreja. Para além de TS – A gente entende que a
esboçar um movimento político, que instituição não é necessariamente
é o Cristãos Contra o Fascismo, que o CNPJ. Quando a gente decide
tem como característica atuação que todo sábado, às 10h da manhã,
política; nós começamos a pensar vai se encontrar em tal lugar, já
em alternativas de comunidades de institucionalizou. Então... a gente
fé. Nossa atuação nem sempre foi não tem a pretensão de fugir
partidária. No início do movimento, dessa ideia de institucionalidade
não pensamos na questão partidária, porque a gente sabe que, quando
mas a gente sabia que era um a gente organizou um dia, um
movimento político. Mas veio essa horário e um local para se reunir, já
outra preocupação: “E agora, onde está institucionalizado, de alguma
essas pessoas congregam? Onde forma... A nossa ideia é apresentar
essas pessoas exercem a sua fé, se um contraponto, uma alternativa,
foram expulsas das suas igrejas?” outra perspectiva bíblica que seja
Então, a partir daquela experiência mais humana, que seja libertária.
que tivemos em nossa comunidade Nos textos bíblicos, nós temos
de fé em Porto Alegre, que eu uma teológica diferente. As figuras
mencionei no início, montamos uma femininas da Bíblia, que são várias,
cartilha com a ideia de auxiliar a geralmente são invisibilizadas. Ou, os
criação de comunidades semelhantes estudos bíblicos são apresentados
em outros lugares do país. E, de fato, de uma forma que não questiona o
um grupo se organizou em Curitiba. status quo... A passagem bíblica, por
Nós temos uma comunidade exemplo, do Antigo Testamento, em
Liberta, uma comunidade forte, que uma das mulheres é estuprada

58 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


pelo seu irmão. Normalmente, fascista, conservador, reacionário
quando esse texto bíblico é lido nas não começa com Bolsonaro, e a
igrejas, não se fala de estupro, não se gente entende que não vai terminar
fala de violência contra mulher, não com Bolsonaro. É um discurso que
fala de “n” questões, que estão ali está arraigado na nossa sociedade,
expostas e que não são abordadas vem de muito tempo. A gente tem
na igreja. Não se fala de machismo, pessoas saudosistas da ditadura há
não se fala de uma série de coisas. muito tempo, e depois de Bolsonaro,
Então, aqui, a gente tenta abordar essas pessoas vão achar um outro
aspectos, políticos também, sociais, messias, uma outra figura para
econômicos, porque a gente lembra seguir. Por isso a gente entende
os próprios discursos de Jesus contra que esse movimento tem que ser
o acúmulo de capital, contra aqueles um permanente. Só que, quando o
que desprezam os mais pobres... Tem Bolsonaro ganha as eleições, a gente
todo um discurso econômico aqui passa a ter uma outra compreensão
também, que é invisibilizado nos que é a seguinte: não adianta
espaços religiosos convencionais. A somente sairmos às ruas, denunciar
igreja forma politicamente pessoas as injustiças que estão acontecendo,
conservadoras, pessoas reacionárias. denunciar a retirada de direitos e
A gente não ignora nossa o uso do nome de Deus para isso,
responsabilidade política, inclusive, e o movimento contraditório que
em nossas reuniões eclesiásticas Bolsonaro faz quando se diz discípulo
– digamos assim. Então por isso de Jesus, que foi um homem preso,
que esse movimento, o Liberta, se torturado e morto pelo Estado, e, ao
articula junto com os Cristãos Contra mesmo tempo, diz que tem como
o Fascismo. Quem faz parte dessas livro de cabeceira a biografia de um
nossas igrejas do Liberta se sente torturador... A gente faz a denúncia
parte do movimento do Cristãos dessas contradições, mas a gente
Contra o Fascismo também. Embora entende que não basta só fazer essas
não necessariamente, porque denúncias, sair na rua, gritar “Ele
algumas pessoas querem só ter um não!”, porque a gente gritou, que não
momento de oração, não querem ia ter impeachment, e teve, a gente
fazer uma disputa política. Então, gritou “Fora Temer”, e ele ficou. A
a gente tem um espaço reservado gente disse “Ele não” e foi ele, sim.
para essa pessoa, que só quer ter Então, a gente entende que também
ali o seu momento de oração, que precisa ocupar esses espaços onde
é o encontro do Liberta, e nele se pensam as leis, onde se constrói
não precisa se articular nas ruas a política de fato. Por isso, a gente
politicamente, assim como a gente decidiu que era o momento de a
faz de forma mais intensiva no gente disputar esses espaços, assim
movimento dos Cristãos Contra o como outros religiosos fazem, mas
Fascismo. de uma perspectiva conservadora,
CV – E quanto à sua candidatura? reacionária. A bancada religiosa,
Como surgiu a ideia da sua a Igreja Universal se organizando
candidatura e das outras apoiadas como partido, com o Republicanos,
pelo Cristãos Contra o Fascismo? existe toda uma instrumentalização
da igreja na política, e a gente achou
TS – A ideia surge quando
que é necessário apresentar um
Bolsonaro ganha as eleições de 2018,
contraponto.
embora a gente já entendesse que o
Cristãos Contra o Fascismo deveria Claro que era ideal disputar
existir para além das eleições e ser a política, não o movimento do
permanente, porque o discurso Cristãos Contra o Fascismo, mas o

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 59


Brasil como um todo, apresentando Então, a gente começou a perceber
projetos, ideias. E não porque um também que era natural que vários
é cristão, um muçulmano, espírita, de nós já estivessem pensando em
batuqueiro. Mas como a ala se candidatar. E percebo que a gente
conservadora da igreja se organizou foi empurrado. Aqui, pelo menos,
dessa forma, entendemos que eles a gente se sente empurrado, não
não podem discursar sozinhos, se pela igreja, mas, sim, pela nossa
apresentando como cristãos, sem consciência de que não é mais
que exista um contraponto porque a possível que essas pessoas ocupem
sociedade acaba absorvendo a ideia esses espaços em nome de Deus,
de que quem é cristão pensa daquele em nome da fé, em nome da igreja...
jeito. Eles aparecem nos púlpitos do A gente se sente empurrado a
Congresso, nas câmaras municipais, apresentar esse contraponto. Essas
aparecem na televisão porque eles pessoas que estão se apresentando
também são donos dos canais de no mandato coletivo são pessoas
TV, não é? Então, eu entendo que a da nossa igreja. A gente combinou
impressão que a sociedade tem, de de lançar essa candidatura, mas
forma geral, é que quem não é cristão aconteceu que vários de nós, da nossa
daquela forma não é um cristão, é igreja, estavam filiados ao PSOL, eu
menos cristão ou não é um cristão de era o único que estava no PT. Então,
verdade, que é o discurso que eles foi natural a minha transição para o
tentam “colar” inclusive. Quem não PSOL. No final do ano passado, me
pensa daquela forma não é cristão filiei ao PSOL e a partir daí a gente
de verdade, é um falso cristão. Então, começou essa construção junto com
a gente entende que precisa ocupar o partido.
esses espaços e apresentar para CV – Quais são os principais temas
a sociedade que existe um outro da sua campanha?
discurso, existe o contraponto, existe
TS – Nós temos a questão da
o contraditório, existe outra forma
intolerância religiosa como uma
de pensar, ver a fé, exercer a fé.
pauta central. Em nossos discursos,
Começamos a conversar com a gente se apresenta como
algumas pessoas, que, como cristão, e isso causa um choque,
vários de nós, já vinham desde lá primeiramente, dentro do partido.
do impeachment ou desde antes, Mas é um estranhamento que passa
inclusive, com um pensamento um logo, assim que eles percebem o
pouco mais progressista. Alguns nosso discurso. Também causa um
de nós já estavam organizados estranhamento, obviamente, nas
dentro dos partidos políticos. Eu, igrejas, que se sentem ameaçadas
inclusive, cheguei a participar de ali. Cito o exemplo do jornal da Igreja
algumas campanhas do PT aqui em Universal, publicaram uma matéria
Porto Alegre, embora não estivesse para desmoralizar os cristãos que
filiado. Ajudei a organizar algumas se identificam como de esquerda.
campanhas, militei na rua, enfim... Então, a gente percebe a igreja se
Acredito que foi em janeiro ou sentindo ameaçada. Eu acho que
fevereiro do ano passado que me ainda nem tanto, porque me parece
filiei ao PT, e foi ali, mais ou menos que a ofensiva da igreja foi leve. Se
nessa época, que a gente começou foi só uma matéria no jornal, me
a discutir, dentro do movimento pareceu leve; o próprio MBL, quando
do Cristãos Contra o Fascismo, a a gente lançou a nossa candidatura
possibilidade de lançarmos uma aqui em Porto Alegre, publicou uma
bancada. Alguns de nós já estavam matéria no jornal deles, MBL News,
pensando em disputar as eleições. também questionando: “como assim

60 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


cristãos de esquerda?” Mas, talvez, pautas que a gente aborda bastante.
com essas candidaturas ganhando São muitas coisas, um mandato
espaço, talvez a ofensiva seja mais coletivo acaba nos oportunizando
forte. Eu acho também que (eles) isso, a gente abordar bastante coisa,
não estão levando muita fé de que a outras pautas, porque nós somos
gente possa ganhar outros espaços, diversos.
mas a gente espera surpreendê-los. CV – Como vocês pensam em
Em nossa candidatura a um abordar a questão, por exemplo,
mandato coletivo, temos, além de étnica, de indígenas e quilombolas,
mim, que sou teólogo — e que por no âmbito da prefeitura? Como fazer
isso estou encabeçando mais essa uma conexão com o plano municipal?
pauta em torno do tema religioso TS – Existem territórios, na
—, uma professora que faz parte do cidade de Porto Alegre, em disputa
nosso coletivo e que tem trazido pelos povos indígenas. A própria
uma abordagem sobre educação. prefeitura tem tentado retirar essas
E, por ela ser uma mulher negra, a comunidades do seu território, por
gente tem abordado também esses isso existe uma dimensão dessa
temas, questões étnicas, raciais, disputa que é municipal, que é o
questões de gênero, sexualidade... O reconhecimento desse território
Coletivo nos permite abordar várias indígena dentro da cidade de
pautas, porque nós somos diversos Porto Alegre. A Prefeitura entrou
dentro dessa construção. Nós temos com um recurso para remover uma
também um companheiro que é comunidade do Morro do Osso e
indígena Kaingang, então, nós temos ganhou, mas a Justiça determinou
abordado bastante também a pauta que a Prefeitura tinha que achar
dos povos originários, tanto indígenas outro espaço para essa comunidade.
quanto quilombolas, a questão dos A Prefeitura tem feito tentativas
territórios, da ancestralidade, da recorrentes de tirar essas pessoas do
cultura indígena. É um tema bem território, então existe uma disputa
forte de nosso mandato a questão no âmbito municipal que a gente tem
indígena, até porque junto à pauta travado. Existem outras questões
dos cristãos a gente discursa sozinho. também, por exemplo, o calendário
Aqui, a gente não tem uma outra cultural e os jogos indígenas. Essas
candidatura cristã progressista. Nós políticas de promoção desses jogos e
temos uma candidatura indígena, da cultura vêm sendo desmontadas.
que é pela UP Porto Alegre, mas a UP, Há a questão dos espaços onde os
infelizmente, por ser ainda um partido indígenas vendem artesanatos. A
pequeno, em construção, acaba não Prefeitura tenta tirá-los das ruas, que
tendo tanta visibilidade assim. E o afinal é o espaço que eles têm usado
nosso companheiro Marcos, que é para a venda dos produtos que eles
Kaingang, acaba protagonizando fazem. A disputa passa também por
um pouco mais essa pauta indígena. defender esses espaços e talvez
E nós temos um outro companheiro pressionar a Prefeitura para criar,
que trabalha na área da saúde, e a então, um espaço de referência para
gente tem falado, então, bastante a cultura e o artesanato indígena
sobre a saúde mental. Ele é psicólogo aqui de Porto Alegre. São essas as
e técnico em enfermagem, ele tem disputas que a gente faz no âmbito
atuado aqui no combate ao Covid... municipal com essa pauta.
Então, a gente tem falado bastante
João Luiz Moura – Gostaríamos de
sobre a defesa da área da saúde, do
saber se existe um diálogo entre o
SUS, sobre questões relacionadas
Cristãos Contra o Fascismo e outros
à saúde mental, e essas são outras
coletivos evangélicos de esquerda,

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 61


por exemplo, a Bancada Evangélica não era nem conhecido, então, acho
Popular. que foi por isso que a gente não se
TS – Eu percebo que existe uma encontrou antes.
diferença. A gente se organizou CV – Sobre as 42 candidaturas que
a partir de lugares diferentes, são os Cristãos Contra o Fascismo apoia,
dois grupos diferentes. Têm alguma há um perfil comum entre elas?
conexão em outros lugares, mas a TS – Nós temos cerca de 67
gente tem uma diferença geracional. candidatas. Eu tenho uma tabela com
Cristãos Contra o Fascismo é de um todos os nomes, os partidos a que
pessoal muito jovem, muitos dos essas pessoas estão concorrendo, o
nossos estão concorrendo às eleições cargo a que elas estão concorrendo
pela primeira vez, eram anônimos até – porque a gente tem candidato
ontem, estavam ali na sua cidade, à Prefeitura também –, a cidade
faziam seu trabalho cristão e não e o estado. Só que temos outras
eram conhecidos na mídia. São candidaturas coletivas, assim como
pessoas que não tinham nenhum a nossa, então no final das contas,
protagonismo nas redes sociais, e são 42 candidaturas, mas são mais
essa é uma diferença na comparação de 60 pessoas concorrendo. O que
com a Bancada Evangélica Popular, foi preciso para que essas pessoas
formada por um pessoal mais da fizessem parte dos Cristãos Contra
“Velha Guarda”, como o Ariovaldo o Fascismo? Como eu falei, o nosso
Ramos. É um pessoal que já tem movimento se organizou de forma
uma caminhada política, que já meio inesperada. Então a gente
é um pouco mais midiático, que ainda está aprendendo a se organizar
já se lançou mais de uma vez em nacionalmente, se estruturando
candidaturas, embora tenham jovens dessa forma. Temos as nossas
também, obviamente. Mas a gente lideranças em alguns estados que
percebe que é um pessoal muito foram trazendo, para o nosso grupo
envolvida com essa outra geração de coordenação, nomes de cristãos
que já estava militando politicamente que concorreriam às eleições pela
de outras formas. Nesse sentido, nos esquerda. Pessoas que ficaram
parece que agora a gente começa a sabendo: “ah, dentro do meu partido
ganhar notoriedade, até ontem, eu vai ter tal cristão concorrendo...” ou,
era o Tiago, aqui de Porto Alegre, “eu fiquei sabendo que tal cristão vai
conhecido pelos meus amigos, e concorrer, já se apresentou ali como
o Ariovaldo Ramos era, para mim, pré-candidato”, alguma coisa assim.
inatingível, era uma pessoa que eu Então, a gente entrou em contato
admirava e admiro. Então, eu percebo com essas pessoas, apresentou a
que o movimento Cristãos Contra o proposta da bancada, de usar as
Fascismo é construído por pessoas nossas redes sociais para fortalecer
que até ontem eram anônimas e essas candidaturas e publicizar,
hoje estão ganhando espaços de impulsionar com mais espaço e
protagonismo. Já o pessoal da visibilidade. Outras pessoas nos
Bancada Evangélica Popular estava procuraram. Já na pré-campanha, a
se organizando há mais tempo, é mais gente divulgava essas pessoas: “olha,
velho nessa caminhada. Agora que a nosso pré-candidato da bancada de
gente ganha também notoriedade Cristãos Contra o Fascismo em tal
e disputa esses espaços consegue região...” Então, a partir do momento
ter oportunidade de participar de que foram vendo esse movimento
reuniões com o Ariovaldo Ramos, surgindo, esses nomes sendo
por exemplo. Até ontem a gente não apresentados, algumas pessoas nos
podia porque era anônimo, a gente procuraram também. Então, a gente

62 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


foi se organizando dessa forma: Vieira. São pessoas que fazem parte
listando quem eram essas pessoas, do nosso movimento e lançaram
dando um apoio... A gente tem um o seu apoio, gravaram vídeos de
grupo só com essas candidaturas apoio para nós e comentam sobre a
no WhatsApp, onde a gente presta gente nas redes sociais, indicam para
alguma orientação também. Às vezes, quem comenta nas redes sociais,
o partido não está tão organizado “em quem eu posso votar aqui
naquela cidade. Então, várias dessas em Porto Alegre?”. A gente acaba
candidaturas não tiveram orientação sendo indicado e assim vai. Nós
jurídica, não tiveram orientação do temos outras figuras, como a Célia
que pode e do que não pode fazer na Xakriabá e a Sônia Guajajara, que
campanha, vários deles estão com são duas lideranças indígenas muito
dificuldade para impulsionar uma importantes, e que estão apoiando
publicação no Facebook, nas redes a nossa candidatura também, estão
sociais. A gente vem dando esse apoiando o nosso companheiro, o
suporte, essa orientação, de como Marcos Kaingang. A luta indígena
se conduz a candidatura, e usamos que a gente acolhe dentro do nosso
a nossa plataforma, as nossas redes mandato coletivo nos proporcionou
sociais para dar visibilidade a essas o apoio dessas outras pessoas, e
candidaturas. E, assim, a gente está a gente tem recebido um apoio
se organizando... bem forte do partido. A gente tem
CV – Quais são os apoios que percebido que em outros lugares as
vocês têm nas eleições e como eles pessoas não têm recebido um apoio
se apresentam na mídia? tão forte do partido, mas não por
fazerem parte do nosso movimento,
TS – Um dos apoios, que não
não.
só é para a nossa candidatura,
mas para o movimento Cristãos CV – É importante o que você
Contra o Fascismo em geral, é de mencionou sobre a estrutura
outro movimento (bem grande) partidária e sobre o apoio dos
chamado Advogados Antifascistas. Advogados Contra o Fascismo.
Esse grupo também presta apoio Vocês estão conseguindo ajudar
jurídico para o movimento Cristãos candidaturas que não contam com
Contra o Fascismo, porque, na nossa tanta estrutura?
caminhada, a gente chegou a entrar TS – Sim, foi esse suporte
com recursos no Ministério Público, que a gente ofereceu para essas
por exemplo, contra o Valdomiro candidaturas que eu mencionei.
Santiago, que lançou aquele “feijão Ele acontece, na verdade, por
mágico” que curava o coronavírus. duas razões: uma porque a gente
A gente entrou com outros recursos tem o apoio desses advogados e
em outros momentos, como contra que acabam nos dando algumas
a Sara Winter, quando ela divulgou orientações do que que pode, do
todos os dados daquela menina que que não pode, de como é que
menor de idade nas redes sociais... A tem que fazer... enfim, a gente acaba
gente entrou com recurso em nome tendo um suporte dessas pessoas. A
do Movimento e a gente teve o auxílio outra [razão] foi porque o PSOL de
e o apoio desse grupo de advogados. Porto Alegre, embora seja um partido
Então, esse é um apoio que a gente pequeno, é pesado. Então, antes das
tem também a nossa candidatura. Nós eleições, a gente recebeu do partido
temos, dentro do nosso movimento, uma série de orientações sobre como
pessoas que têm uma visibilidade fazer prestação de contas, como fazer
nacional, por exemplo, a reverenda impulsionamento nas redes sociais,
Alexya Salvador, o pastor Henrique a gente fez uma série de reuniões...

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 63


E essas informações a gente tem se atualizar, se reformar, e ser
passado adiante. Da mesma forma, sensível às mudanças da sociedade.
candidaturas de outros lugares, por Então, é nesse sentido que eu me
exemplo, o PDT, em São Paulo, que considero progressista. Mas, daí,
também ofereceu certa formação de novo, destaco que me parece
para o pessoal, com o material em sempre redundante ter que dizer
PDF e tudo mais. O pessoal também os dois, como se dizer cristão e
foi fornecendo, nesse grupo, feminista, como ser cristão e a favor
materiais que os seus partidos dos Direitos Humanos... Sempre me
ofereciam, dividindo conhecimento. pareceu muito redundante, mas que
Isso acabou beneficiando as outras hoje é necessário, porque a gente
candidaturas que se organizam em sabe que existe quem se diga cristão
outros partidos. Foi uma troca de e não defende nada disso. Então, é
informações bem bonita. Acho que a uma questão narrativa importante.
gente conseguiu fazer, inclusive, algo JLM – Considerando a sua
que os partidos de esquerda não experiência, acompanhando grupos
conseguiram, que foi esboçar uma no âmbito do movimento Cristãos
ideia de frente ampla, porque dentro Contra o Fascismo em todo o país,
do nosso movimento, nós temos PT, como fica o vínculo institucional das
PSOL, PC do B, PDT, Rede... Então, pessoas que aderem ao movimento?
a gente tem vários grupos, do
TS – Nós já chegamos a fazer uma
campo de esquerda, o que a própria
pesquisa interna no nosso movimento
esquerda não conseguiu.
e percebemos que somos formados
CV – Tiago, gostaríamos de te por uma a maioria de católicos. São
ouvir sobre o que você considera católicos que frequentam as suas
ser progressista, ser um progressista comunidades de fé, que frequentam
evangélico. as suas igrejas. Nós temos muitos
TS – Eu considero redundante. religiosos ali: padres, muitos padres,
Acho que quando a gente fala muitos franciscanos, muitas freiras,
cristão ou evangélico, enfim, um muitos religiosos também, não só
seguidor de Jesus, e a gente precisa leigos. Temos, no grupo, muitos
se dizer progressista, me parece pastores também, pessoas de
redundante, mas, ao mesmo tempo, diversas denominações. Nós temos
é necessário. Porque a mensagem pastores da Assembleia de Deus,
de Jesus Cristo, é progressista, no batistas, adventistas, luteranos,
sentido de ser um contraponto ao lideranças da igreja anglicana que
conservador, contrário ao status fazem parte do movimento. Então,
quo, à tradição. E essa mensagem temos muitos líderes de igrejas, não
abre possibilidades de se repensar a são só pessoas leigas, e eu acho que
sociedade, de se repensar estruturas esse é um dado importante também.
que são postas. O próprio Jesus Esses líderes enfrentam dificuldades
quebrou esses paradigmas e essas também, às vezes a gente vê a lógica
tradições em sua época. E o convite invertida. Se em outros espaços é o
é que a gente continue fazendo o líder que é conservador e impõe isso
mesmo, se atualizando. Então, para para a sua comunidade, nós temos
mim, ser progressista é estar em cenários em que a sua comunidade
constante atualização, em constante é conservadora e o líder não é. O
reforma, se aproximando da Reforma nosso representante na Paraíba, por
Protestante. Um protestante deve exemplo, é esse caso. Ele é pastor de
estar em constante reforma. A gente uma igreja evangélica lá e é um cara
não pode ficar preso à tradição, bem progressista, mas sua igreja é
preso ao passado, a gente precisa conservadora. Então, ele enfrenta

64 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


certas dificuldades, e é ele quem gente tem falado também para as
coordena o movimento dos Cristãos candidaturas, e é o que a gente tem
Contra o Fascismo na Paraíba. E, daí, apresentado como o nosso público
nós temos as igrejas católicas, onde para essas candidaturas. A gente fez
não tem muito uma contradição. um levantamento de que conseguiria
Embora tenha o movimento da alcançar 40 mil pessoas com essa
Renovação Carismática, que é mais publicidade das candidaturas nas
conservador, e então, membros deles, nossas redes sociais. Digamos,
a gente não tem. Cheguei a ver uma assim, que os outros núcleos desse
ou outra pessoa no grupo dizendo que movimento, como de liderança
era carismático, mas são só gotinhas e coordenações locais, a gente
ali no meio do movimento todo. Mas consegue dizer quantos são mais ou
os católicos, em geral, são pessoas menos. Mas, como eu falei, a origem
ligadas à Teologia da Libertação, do movimento foi muito orgânica,
à Pastoral da Juventude, Pastoral quando a gente viu, tinha gente se
da Terra e outras pastorais que já apresentando como parte do Cristãos
fazem esse debate. Dos batistas, Contra o Fascismo em outras cidades
nós temos pessoas da Convenção que a gente não conhecia... E ainda
Batista Brasileira – são pouquíssimos. hoje a gente vê isso acontecer. Volta
Tem algumas pessoas da Aliança e meia a gente faz alguma pesquisa
de Batistas, que é um pessoal mais on-line, e encontra, sei lá, Cristãos
progressista, é um movimento batista Contra o Fascismo de Itapecerica.
um pouco mais à esquerda. Eu acredito Que a gente nunca ouviu falar, mas
que são a maioria, mas a gente nunca tem um grupo se reunindo. Então,
fez uma pesquisa nesse sentido para o crescimento desse movimento
saber onde as denominações estão continua sendo muito orgânico, e a
ligadas, a quais convenções. Talvez, gente perde o controle de quantas
seja interessante fazer. pessoas são, de onde são, porque,
CV – Agora, gostaríamos de saber cada vez que a gente faz uma
sua idade e o número aproximado pesquisa, encontra um grupo novo
de integrantes do Cristãos Contra o e gente se organizando de forma
Fascismo. autônoma. O que, para nós, é muito
importante, a gente sempre quis que
TS – Certo. Eu tenho 33 anos. Hoje, é
fosse assim.
um pouco difícil contabilizar quantas
pessoas fazem parte do movimento CV – Tiago, em nome de todo
do Cristãos Contra o Fascismo. Se o grupo de pesquisa, agradeço
a gente for pegar, por exemplo, os a sua disponibilidade. Foi bom
nossos grupos... nós temos grupos demais escutá-lo. Muito sucesso
de Facebook, WhatsApp, de cidades, na campanha e em suas outras
nós temos grupos segmentados atividades políticas e religiosas.
por estados, por cidades, páginas TS – Ah, que ótimo, que bom
de Instagram, enfim... A gente já poder contribuir com a pesquisa de
calculou que, somados todos eles, vocês e conhecer vocês também.
tem 40 mil pessoas, que é o que a

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 65


ENTREVISTA COM PLURAL
CANDIDATURA COLETIVA,
BELO HORIZONTE – MG
Por Christina Vital,27 Wallace Cabral Ribeiro,28 João Luiz Moura,29
Gabrielle Herculano,30 Rafaela Marques31

27
Professora Associada
do Departamento
O número de candidaturas coletivas e compartilhadas para as Câmaras
de Sociologia e Municipais se multiplicou nas eleições 2020 no Brasil. Nesses casos, o vereador
do Programa de
Pós-graduação
ou vereadora eleito ou eleita compartilha as decisões de seu mandato com um
em Sociologia, grupo de pessoas delimitado. Esse modelo não é previsto em lei, e seu exercício
coordenadora do
LePar – Laboratório
depende de acordos informais entre seus integrantes, em alguns casos,
de Estudos mediados pelos partidos. Um levantamento do Centro de Política e Economia
Socioantropológicos
em Política, Arte
do Setor Público (Cepesp) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), feito com base
e Religião, na em dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mostra esse crescimento.32
Universidade Federal
Fluminense. Em 2012, foram feitos 3 registros de candidaturas coletivas no TSE. Em 2016,
28
Doutorando esse número passa a 13 registros, saltando para 257 nas eleições de 2020 em
pelo Programa de todo o país. Segundo o cientista político Guilherme Russo, autor do estudo,
Pós-graduação
em Sociologia da 26 partidos tinham alguma candidatura coletiva concorrendo nas eleições. O
Universidade Federal Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e o Partido dos Trabalhadores (PT)
Fluminense (PPGS-
UFF), mestre e foram os partidos com mais registros coletivos, 99 e 51, respectivamente. Apesar
bacharel em Sociologia de essas candidaturas estarem majoritariamente em partidos de esquerda e
pela mesma instituição,
membro do e do centro-esquerda (total de 211), tiveram presença também em partidos de direita.
Núcleo de Estudos Na Pesquisa Esquerda evangélica nas eleições 2020 – Iser e Fundação Heinrich
Friedrich Engels
(Nefe). Böll, realizamos uma entrevista com o Plural, candidatura coletiva concorrendo
29
Mestre em a uma vaga na Câmara Municipal de Belo Horizonte (MG) pelo partido Unidade
Ciências da Religião, Popular pelo Socialismo com o número 80.123. Esse coletivo era formado por
pesquisador visitante
no Instituto de Estudos quatro pessoas que se autodeclaravam evangélicas. O registro estava em nome
da Religião (Iser), de Jonatas Arêdes (35 anos) que se apresentou nesta entrevista como nas
membro do grupo
de pesquisa Estado e redes sociais durante a campanha como homossexual, evangélico – da 2ª Igreja
Direito no Pensamento Presbiteriana de Belo Horizonte – e pequeno produtor rural. O grupo contava
Social Brasileiro sob
coordenação do ainda com Fillipe Gibran (32 anos), amigo formado entre atuação na igreja e no
professor doutor Silvio movimento social. Fillipe se apresenta como pastor, advogado e integrante da
Almeida (Mackenzie).
Membro do grupo Comunidade Evangélica Unidade em Cristo. Aos dois se somaram Djenane Vera
de pesquisa A (47 anos), professora de artes plásticas na rede pública de ensino, ceramista
Crítica do Direito e a
Subjetividade Jurídica, e frequenta a Igreja Cristã Maranata, e KeniaVertello (28 anos), estudante de
sob coordenação pedagogia e membro da Igreja Batista Connect.
do professor doutor
Alysson Mascaro Durante nossa conversa, realizada remotamente em setembro de 2020,
(USP).
as experiências políticas eram compassadas por sentimentos, percepções
30
Assistente Social, e experiências religiosas. Desse modo, a formação da sexualidade, o
mestranda pelo
Programa de Pós- reconhecimento da negritude e o incentivo à ação política ocorre, de alguma
graduação em forma, através do pertencimento religioso. A intervenção no mundo por meio
Sociologia da PPGS-
UFF e membra do da atuação de movimentos sociais, da educação, da política partidária era vista
LePar. como uma oportunidade de realizar a “obra de Deus na terra” animados por
Jornalista, Mestre
31
uma “fé viva” que põe em contato, irremediavelmente, religião e política.
em Cultura e

Christina Vital – Em primeiro aceitarem estar aqui conosco em


lugar, gostaríamos de agradecer por plena campanha eleitoral. Dito isso,

66 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


queríamos ouvir cada um de vocês O ambiente da igreja ficou hostil
Territorialidades pela
sobre suas trajetórias tanto na igreja demais para mim, e eu descobri que UFF, pós-graduanda
quanto na política. existia um universo para além da em Jornalismo
Investigativo pelo
Djenane Vera – Sou professora, e igreja, e aí a gente é catapultado para Instituto de Direito
a militância. Estou fazendo parte da Público (IDP) e
trabalho há 17 anos no município. Dou membro do LePar, na
aula de artes. E agora sou candidata Frente de Evangélicos pelo Estado UFF.
à covereança junto com Gibran, sou de Direito, desse grupo de Cristãos 32
https://g1.globo.
Contra o Fascismo, movimento social. com/politica/
mulher preta e evangélica. Eu já tenho eleicoes/2020/
uma trajetória, não é uma grande Eu faço parte do MLD – o eleicao-em-numeros/
noticia/2020/11/12/
trajetória, mas desde 2013 estou nas Movimento de Luta por Moradias aqui candidaturas-coletivas-
ruas. Participo do Fórum Político na cidade. Que é um movimento de e-compartilhadas-
se-multiplicam-nas-
Inter-religioso que acontece aqui em luta nos bairros, vilas e favelas, que eleicoes-de-2020-
BH. Já participei da LBS e acompanho a gente é lido com os moradores de mostra-levantamento-
da-fgv.ghtml. Acesso
a Frente dos Evangélicos pelo Estado ocupação e as pessoas sem teto, e em: 18 jun. 2021.
de Direito, [com] a qual me identifico vamos na luta assim.
e admiro muito. E esses anos todos Institucionalmente, nunca tinha
estive nas ruas defendendo a pensado na política partidária, então,
democracia. Como evangélica, nasci minha primeira filiação partidária é
na Igreja Assembleia de Deus, e minha agora, junto com esses companheiros,
trajetória toda foi evangélica, e agora nesse partido, que é novo, não é o
frequento a Igreja Cristã Maranata. Partido Novo, graças a Deus, mas
Não estou membra, só frequento a é um novo partido que se formou
igreja. em dezembro, que chama Unidade
Kenia Vertello – Meu nome é Kenia Popular [Unidade Popular Pelo
Vertello, estudante de Pedagogia, e a Socialismo]. Essa nossa construção
minha trajetória política mesmo é em é nova para a gente em todos os
prol da vida dos estudantes, dentro da aspectos. Um partido novo, com essa
faculdade e sou evangélica também, formação coletiva, para nós que somos
desde o berço, há muitos anos, da povo de igreja, então, a gente também
minha avó e todos da igreja local do não tem essa experiência... tirando
bairro mesmo. Estava começando o Jonatas, que vai se apresentar,
agora na política com Gibran e que tem uma participação maior no
Jonatas nessa construção e estou partido, a gente também não tinha
participando desse curso da Frente essa formação toda partidária, são
Evangélica. Está sendo um diálogo descobertas, e a gente vai cortando o
muito bom, uma construção também dedo. É basicamente isso.
de vida, de caráter, está influenciando Jonatas Arêdes – Eu Sou Jonatas
muito positivamente. Arêdes, tenho 34 anos; assim como
Fillipe Gibran – Sou Fillipe Gibran, os três que me antecederam, também
e assim como os colegas também nasci numa família de fé evangélica e
estou imerso nesse ambiente de igreja toda minha trajetória está relacionada
desde que nasci, então, não tenho com o meu entendimento da fé, da
outro horizonte, senão esse horizonte religião, e apesar de não ter estado o
da igreja evangélica, é só que eu acho tempo todo dentro de uma instituição,
que é uma marcação muito comum sou protestante no sentido mais literal
para nós. A gente vai se descobrindo da palavra. Então, desde sempre,
militante a partir do momento em que tive confrontos com as estruturas
a gente discorda do processo da igreja, eclesiásticas, por enxergar as coisas
então a igreja foi me mostrando uma de forma diferente, do que era posto.
série de coisas que eu não gostava, Para “melhorar a situação”, sou gay
que eu não concordava, que eu não e aí eu começo a ser interpelado por
achava justo. essas duas identidades, ser gay e ser

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 67


evangélico, “como é isso?”. E tudo que no planejamento dele. Ele está em
eu conhecia era dizendo que as duas execução agora, e a gente trata
identidades não podem conviver, aspectos da nossa cidadania à luz
então, por causa dessa identidade, por da Bíblia. São encontros semanais, e
causa também do meu ativismo em cada um deles tem uma temática. A
prol dos direitos humanos, passo um gente estuda o que a Bíblia fala sobre
bom tempo fora da institucionalidade direitos, o que a Bíblia fala sobre a
da igreja evangélica. cidadania, o que a Bíblia fala do direito
Recentemente, eu comecei a ao trabalho digno, direito à educação,
frequentar a 2ª Igreja Presbiteriana direito à saúde, o que a Bíblia fala
de Belo Horizonte, que é vinculada sobre a dignidade da mulher, o diálogo
à Igreja Presbiteriana Unida, e estou com outras religiões. Nós quatros
caminhado lá já tem dois anos. Eu estamos fazendo o curso, a gente
começo aos 17 anos no movimento pensou num formato presencial, o
estudantil, fico muito pouco tempo e curso foi planejado ano passado para
já entro no movimento de juventude acontecer esse ano, mas a pandemia
partidária. E começo a militar no PT mudou nosso planejamento, então ele
aos 17 anos, de lá, a gente carrega está acontecendo de forma virtual.
muita história de militância. Já faz São 12 encontros.
alguns anos que eu não sou filiado CV – Vocês são vinculados à Frente
ao PT, nossa candidatura, inclusive, de Evangélicos Pelo Estado de Direito
é pela UP, como Gibran disse. Eu (FEED), mas não se interessaram em
me identifico enquanto pessoa de lançar a candidatura pela Bancada
esquerda e progressista, atuo hoje na Evangélica Popular (BEP)?
Frente de Evangélicos Pelo Estado de FG – A gente chegou a conversar.
Direito desde a sua formação, ali no Eu conversei com duas pessoas da
final de 2016, início de 2017, com foco Bancada Evangélica Popular, mas
em atuação em ocupações urbanas... acabou que as correrias da demanda
sendo educador popular, a gente da candidatura foram muito grandes,
oferta cursos de formação política a gente não conseguiu entender bem
para evangélicos numa perspectiva o processo, não conseguiu entender
bíblico-teológica e faço parte de um bem como funcionaria, chegamos
movimento chamado Evangelix pela até a conversar sobre o apoio da
Diversidade. É um movimento que Bancada, o que a gente precisaria
busca acolher e afirmar identidade, fazer, mas confesso que o ruído na
a comunidade LGBTQIA+ evangélica comunicação foi o fator determinante
e em diálogo com as comunidades que deixou a gente mais distante
de fé para que elas reconheçam a dessa Bancada Popular Evangélica. E
diversidade sexual como expressão acho que, talvez, muito em razão da
da multiforme graça de Deus. nossa correria com a pré-candidatura.
CV – Ah, maravilhoso! Muito Mas a proposta da Bancada Popular
obrigada. Embora tenhamos um Evangélica é excelente, uma pena que
roteiro que nos orienta, gostaria de a gente não conseguiu fechar mesmo.
elucidar alguns pontos que vocês CV – Como foi a vinculação da
trouxeram. Como é esse curso da candidatura ao partido? Foi a UP que
Frente de Evangélicos pelo Estado procurou vocês ou foi o contrário?
de Direito que vocês mencionaram?
FG – Então, como Jonatas falou,
Quem de vocês está fazendo?
nosso trabalho é anterior a esse
JA – Eu vou responder porque processo eleitoral. Do ponto de
esse curso foi planejado pela vista do campo evangélico, a gente
coordenação do núcleo mineiro da estava trabalhando nas periferias
Frente. Eu, particularmente, estive

68 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


e nas ocupações com a formação porque estão todos no movimento
de evangélicos, e nessa situação de neopentecostal, mas é evangélico,
fragilidade, coisa que a gente da então, os movimentos têm uma
Frente em Minas resolveu fazer(...) expectativa de que a gente comece a
então, a gente estava trabalhando dialogar com os evangélicos, pode ser
com esse pessoal das ocupações já que a gente consiga melhorar a nossa
há algum tempo, o Jonatas mesmo conversa com as ocupações,
estava falando, a gente tinha umas CV – Como vocês têm abordado
oficinas com as crianças, a gente das a dimensão teológica na campanha
ocupações, nós temos um caminho do Coletivo Plural? É possível (e
próximo desses movimentos de desejável) equilibrar as dimensões
ocupação aqui em Belo Horizonte. espiritual, mística e a secular/racional
Esse movimento se converteu na luta política?
num partido, o MLB [Movimento JA – A questão teológica, de fato,
de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas] a gente carrega em nosso trabalho
se tornou um partido: Unidade de base, no nosso trabalho enquanto
Popular. Então, a gente estava tudo ativista, enquanto militante na
ali, junto e misturado, agora, nós nossa vida... Durante o período de
fomos cooptados, sei lá, cooptado campanha, a gente colocou uma linha
não fomos, fomos procurados por bem tênue para que a gente fizesse
outras legendas, a gente entendeu, uma abordagem política sobre esses
inclusive, que tinha que manter a ideia temas mais variados, por exemplo,
de caminhar com o Unidade Popular, quando eu trago a pauta LGBTQIA+, eu
que foi quem abriu os espaços das não vou fazer um desmonte teológico
periferias para gente, que não valia a para falar que a homossexualidade
pena a gente, só no momento eleitoral, não é pecado durante a campanha. A
partir para outra atividade, outra coisa, gente vai falar, vai abordar, vai fazer
só em razão de promessa eleitoral; a uma abordagem teológica, porque,
gente recebeu umas promessas do PT, inclusive, é um dos slogans da nossa
do PSOL, do PDT, e a gente entendeu campanha é uma expressão dita
até que esse processo político não por Jesus, “eu vim para que tenham
representa mais a gente, de não ter vida abundante”. Como a gente vai
construção nenhuma, no último dia proporcionar vida abundante por
para fazer a filiação, os caras te ligam meio da política? A gente colocou
e te prometem metade do mundo. essa linha de que durante a campanha
A gente entendeu que não, que a gente não está tratando, não
tem de manter com a UP, então, não está se aprofundando em questões
foi meio que a UP procurou a gente teológicas. Então, o cristão que vai
ou a gente procurou a UP, a gente votar na gente, sabendo que tem
já estava junto. Mas a UP fez uma um cristão LGBTQIA+ aqui, não me
questão danada de que a gente saísse importa, no momento, se ele concorda,
como uma candidatura evangélica. se discorda, se a homossexualidade é
Depois, vocês podem procurar aí, a pecado. Eu quero disputar o fato de
grande maioria da UP é gente muito ele ser cristão e, enquanto cristão, ele
simples, muito humilde mesmo defende uma vida abundante para
– na convenção do partido, tinha todas as pessoas.
gente molhando o dedo na tinta A gente tem pensado também
para assinar. Então, é morador de nessa questão que você fala do
ocupação é jardineiro, faxineiro, e a emocional, porque a gente tem uma
maioria esmagadora dessa população crítica profunda à esquerda em não
ocupante é evangélica. Não são os dar valor aos ganhos emocionais que
evangélicos que dialogam conosco, as pessoas têm diante de uma teologia

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 69


que faz com que ela caminhe através FG – Tem um detalhe, é impossível
dessa relação mística da vida. É porque a gente falar de teologia dentro
as pessoas têm ganhos simbólicos, da nossa candidatura, a gente tem
subjetivos, quando ela tem um pastor um presbiteriano, uma Maranata,
falando com ela “olha, ter medo é falta uma batista mais renovada, mais
de fé, tenta que você vai conseguir”, e pentecostal, eu, que sou batista, então
a esquerda ignora isso, já a direita sabe é discussão teológica de acabar com
usar isso em benefício próprio, sabe a nossa candidatura aqui [risos]. E é
aproveitar desses ganhos simbólicos uma coisa que vale a pena, porque se
para ganhar eleição, para ter voto. E a gente compromete a candidatura
numa situação em que uma mulher de com questões teológicas, uma vez
periferia está com microfone na mão eleito, vou ter que reproduzir isso, e
numa igrejinha falando numa situação a nossa pegada é o Estado laico, mas
que pelo menos aparenta que ela sem a gente fazer uma abordagem
está empoderada, na hora de votar, teológica.
ela vai votar em quem valoriza isso, Já temos uma experiência da Kenia
esse momento dela. Então, a gente na comunidade dela, de ser perseguida
tem uma crítica a isso... Apesar de por estar nessa candidatura, é isso que
que a gente tem os nossos conflitos o Jonatas está dizendo, é esse papel
internos também, entre racionalidade do empoderamento que a gente está
e a mística, mas a gente tem críticas pensando em trazer que incomoda a
à esquerda por não valorizar essa igreja.
mística que faz parte da vida.
KV – A nossa candidatura está
Quando a gente vir o agravamento tomando uma proporção grande, as
da fome, da miséria, do desespero, pessoas estão comentando, devido à
da falta de moradia, da falta de divulgação e algumas entrevistas que
saneamento, a cesta básica com um saíram no jornal, aí começou a tomar
preço absurdo, a gente sabe que uma proporção negativa por ser uma
ajuda efetiva é uma prática e racional, preta, homossexual... Isso soou muito
mas as pessoas, principalmente na ruim lá, então, essa rejeição está
América Latina, têm um movimento sendo bem intensa dentro da igreja,
forte de recorrer à divindade. A fé faz está sendo muito ruim, eu não tenho
parte da vida das pessoas, então a muito o que dizer sobre isso (...).
nossa campanha colocou essa linha, e
Essa resistência ainda continua, essa
a gente tenta fazer uma abordagem
rejeição está bem forte de pessoas que
mais política, mas também não
eu tinha um diálogo muito bom, tinha
menosprezando a relação das pessoas
um envolvimento até aparentemente
com essa coisa transcendental da
agradável. Ainda tenho até receio de
vida.
retornar, então, eu prefiro ficar aqui,
É muito diferente quando você ter esse diálogo, mesmo a distância,
entrega um panfleto para uma pessoa aproveitando desses ensinos remotos.
numa região onde tem muitas igrejas, Então, realmente, a campanha não
por exemplo, e você entrega e fala está às mil maravilhas mesmo, a gente
“posso deixar meu panfleto com só começando o enfrentamento de
você, e ela fala “Deus te abençoe”, luta, de resistência, sabe? Mas vamos
sabe? Você vê que há uma expressão ver no que dá, porque ainda não
da pessoa, a fisionomia da pessoa finalizou, mas eu gosto disso porque
muda, então, a gente está tentando a gente percebe que o pessoal está,
entender todos esses processos e então, falando sobre nós, negativa
tentando fazer uma política enquanto ou positivamente, a nossa campanha
campanha ética dentro dessa relação está sendo discutida fora, então, isso
entre racional e mística também. é muito positivo.

70 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


CV – Todos vocês continuam isso, Jesus libertador, espiritualidade
frequentando as igrejas e não encarnada, isso é minha causa, um
passaram por nenhuma situação de Jesus que tem um compromisso com
constrangimento mais direto como a a justiça e com os mais necessitados.
Kenia? Independentemente da igreja,
FG – Eu também acho que isso tudo vou buscar algo nela, vou buscar
tem a ver com a nossa lógica machista um fortalecimento da minha
das igrejas, porque eu duvido que espiritualidade. É oração, mas tem
um homem branco, num partido de uma luta que é a minha luta, o que,
direita, estaria sofrendo esse mesmo para mim, era o compromisso de
constrangimento que a Kenia passa. Jesus.
E eu quis ressaltar isso, por quê? A CV – Muito bom. Obrigada.
Kenia sofre isso só por estar numa Gostaríamos de ouvir vocês sobre o
candidatura, em nenhum momento processo de formação da candidatura
ela foi fazer política dentro da igreja, e sobre a estrutura de campanha que
ela sofre isso por ser quem ela é, ela é dispõem hoje.
alguém que se posicionou sobre estar
FG – Essa proposta de candidatura
em uma candidatura de esquerda.
veio no ano passado. Mais ou menos
Na minha opinião, tem um recorte em novembro, quando estávamos às
de gênero, tem um recorte de cor, na vésperas da formação do Partido, que
minha opinião, eu duvido muito que chegou a conversar comigo e falou
um homem branco estaria sofrendo “nosso Partido vai sair, nós vamos
esse constrangimento. Veja como é disputar a primeira eleição e a gente
triste, essa menina está nessa igreja queria muito que tivesse candidaturas
desde sempre e vai dizer que não está evangélicas, queria muito que você
se sentindo mais confortável em ir aos tivesse nessa candidatura”. Naquele
cultos, poxa vida. momento, respondi para o Partido
O nosso processo não é eleitoreiro, que não tinha condição, meu filho
então, se formos eleitos, vai ser tinha acabado de nascer, graças a
maravilhoso, se não for, é maravilhoso. Deus, estou com um bebezinho aqui
O que a gente quer é dialogar com de um ano.... “não, quero curtir meu
a nossa cidade, que a gente acha filho”, aquela coisa toda.
que é extremamente provinciana, Quando o Partido, então, se
que existem outras formas de ser formalizou e foi chegando o prazo
evangélico na cidade. Então, quando a para fazer afiliação, eles reforçaram
gente recebe coisas como essa, Kenia, a ideia, e eu disse “eu vou me filiar e
a gente percebe que é isso mesmo, o depois a gente pensa, porque, se for
trabalho tem que ser feito, esse tipo o caso, já estou filiado e tal para não
de coisa que a Kenia está sofrendo, ter prejuízo”. Até nesse momento eu
isso não pode acontecer de forma estava decidido a não me candidatar.
nenhuma. Então, a gente percebe que A candidatura surgiu como uma
tem que caminhar. ideia real para mim quando os outros
DV – Eu já passei por isso em outros partidos me ligaram – todos eles no
lugares, por exemplo, na escola, mas dia 4 de abril, que era o último dia para
isso que a Kenia está passando, eu já fazer a filiação, e um dos partidos,
passei e resolvi. Mas esse convite que inclusive, me ofereceu uma vaga na
eu recebi do Jonatas, do Gibran foi Secretaria de Direitos Humanos da
coerente com a minha espiritualidade, Prefeitura. Falei “não”, “você não vai
com minha luta. Jesus é inconformado ter a vaga, não, é quando for eleito,
com o que fazem em nome de já começa agora”. Nesse momento
Deus. Isso eu já tinha, já passei por eu falei assim “caramba, mano, esse

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 71


negócio dos evangélicos é importante, fizemos essa reunião com a Kenia,
ou a gente sai para dizer que nem virtualmente, falando “ó, a gente tem
todos os evangélicos são canalhas ou esse processo, a nossa ideia não é
os caras...” eleitoral, nós queremos potencializar
Foi quando então fui pensar nesse lideranças na cidade, a gente quer
projeto; de imediato, conversei com disputar a política na cidade, o nosso
Jonatas, conversei com a Rosely, projeto é ter mais vozes, ampliar
então Jonatas e eu entendemos que o ambiente progressista e... nesse
seria interessante a gente fazer essa momento, agora, o nosso trabalho
candidatura coletiva, e a gente, desde se concentra em eleição, mas não
o início, queria uma candidatura com estamos nem um pouco a fim de fazer
paridade de gênero, que trabalhasse eleição por eleição, nós não estamos
essa questão da sexualidade, que interessados em projeto eleitoral, mas
trabalhasse a questão da negritude. em mudar Belo Horizonte”. A gente é
Seria Jonatas, a Bebel (uma menina utópico, acredita nesse negócio.
aqui de Belo Horizonte) e eu, e E, graças a Deus, Djenane e Kenia
nós ainda estávamos à procura toparam a loucura com a gente. E,
de uma outra mulher pra fechar graças a Deus, porque o que a gente
essa composição com paridade de às vezes tenta falar em discurso, o que
gênero e tudo. Mas até então todas a gente tenta reproduzir em discurso
as pessoas que a gente conversava é o que Djenane e Kenia vivem. E
não tinham disponibilidade, não foi, assim, já quase no final de maio,
queriam se aventurar nesse processo. início de junho, eu lembro que, na
A dificuldade absurda que foi de campanha do Vinicius, lá de São
encontrar mulheres pretas dentro do Paulo, me convidaram para conversar
ambiente evangélico que estivessem sobre campanha e tal... eu lembro que,
dispostas a fazer essa disputa, o que naquela época, o tanto que eu estava
denuncia para a gente que essas atrasado, campanha do Vinicius
mulheres não estão em espaços de [Lima] já estava toda organizada,
formação, de construção, de fala, e nós ainda estávamos formando o
estão em espaços de subalternidade, quarteto para sair para a campanha.
então, a gente fala assim: “não, cara, E, já encerrando, do ponto de vista
nós precisamos mudar essa lógica.” da estrutura, não é das melhores.
A Bebel, graças a Deus, estava Porque estamos num partido que
num processo seletivo em uma ONG acabou de ser formado e com
e acabou conseguindo essa vaga de gente muito humilde, com poucas
trabalho, o que a impossibilitava de pessoas, então, isso tudo dificulta
trabalhar com a gente. Então, assim um pouco. O primeiro ponto é o
que estava decolando o projeto, Partido ainda não saber ser partido,
a Bebel rompe, e ficamos Jonatas está aprendendo; segundo ponto é
e eu, e a gente saiu à procura de o processo eleitoral, é muita coisa
pessoas que quisessem compor esse para fazer, e temos poucos braços. E
projeto nos grupos da Frente de o terceiro ponto é que a maioria das
Evangélicos, conversamos com as pessoas que estão no nosso Partido
pessoas uma a uma, e marcamos uma tem uma carência desse conteúdo,
reunião para quem se interessasse. desse conhecimento. Às vezes, essa
A Djenane estava no grupo e de carência é até educacional. Por isso, o
imediato se interessou, e a Kenia, uma nosso processo é mais lento, a gente
colega que era do grupo da Frente tem menos estrutura, tem menos
de Evangélicos passou o contato recursos.
para ela. Nós marcamos a reunião, Ontem, entrei no site do
ela também se interessou e, então, TSE, o Pesquisa Cand [https://

72 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


divulgacandcontas.tse.jus.br/?], tipo de aliança de aparelhamento,
que você vê os recursos de cada não combina, não acreditamos
candidatura etc. Chega a ser que seja ético. Para vocês terem
absurda a nossa diferença para uma ideia, até o movimento que a
as outras candidaturas de Belo gente milita não apoia formalmente,
Horizonte, do ponto de vista de porque ele se declara suprapartidário,
serviços, de dinheiro, é uma loucura, inclusive, dentro dele, existem outras
nós não temos nem 10% da pior candidaturas. Temos o apoio das
candidatura de Belo Horizonte. Mas, lideranças evangélicas que são nossos
em compensação, apesar de tudo amigos, que conhecem nossa luta,
isso, a gente está muito tranquilo que estão na luta com a gente, mas
com o processo porque é nisso que apoio institucional é muito, muito,
a gente acredita. A gente não estava muito complicado, é muito difícil.
procurando um partido profissional, Quem caminha com a gente aqui
entende? Com pessoas que estão ali, em Belo Horizonte, na Frente de
vivendo... Não, a gente acredita nesse Evangélicos, e acaba que está sempre
processo do povo pobre, do povo envolvido com as nossas ações,
humilde se organizando, colhemos então, declararam apoio pessoal, tem
um 1,2 milhões de assinaturas Brasil o pastor Lins, que é o pastor de Fillipe,
afora, formando um partido, coisa da Comunidade Evangélica Unidade
que o antipresidente não conseguiu, em Cristo. Nós temos o pastor Mário
então, na primeira candidatura, tem Amaral, da Comunidade Espaço Vida,
uma candidatura coletiva, evangélica, aqui em Belo Horizonte, tenho o apoio
com paridade de gênero, discutindo dos meus pastores, o reverendo Jorge
homoafetividade, discutindo racismo. Diniz, o reverendo Felipe Costa, e o
Um bom partido que acabou de reverendo Hertson, pastor Juliano,
surgir do povo, então, para nós, que tem uma comunidade também na
independentemente do que acontecer, região de Venda Nova, Comunidade
estamos na história, porque é isso Atos, não é isso, Fillipe?
que a gente acredita, até então...
Juliano tem mais, são muitas
Por exemplo, nosso santinho chegou
lideranças assim. Tem o Fórum Político
quase dez dias depois dos santinhos
Inter-religioso, que também fez um
de toda Belo Horizonte, porque a
manifesto, uma carta de apoio, as
conta não estava legalizada, porque o
mulheres de esquerda que saíram, que
TSE bloqueou, a gente enfrenta tudo
são participantes do Fórum. A Frente,
isso dentro desse partido, mas a gente
como eu disse, tem outros candidatos,
vai com muita paixão, porque é todo
então, ela não se posiciona de jeito
mundo pobre, preto, com as mesmas
nenhum no Fórum, impulsiona as
dificuldades
candidaturas que existem dentro do
CV – Com quais apoios vocês Movimento, então, a Djenane teve
contam? A candidatura tem uma participação, uma entrevista. E,
conseguido apoio de igrejas e de então, o Fórum Político Inter-religioso
lideranças religiosas? apoia as candidaturas que saem de
JA – Bom, a gente começa a nossa dentro dele. Alguns movimentos
pré-candidatura com apoios de muitas como a Bebel, que é da Evangélicas
lideranças cristãs, era uma forma até pela Igualdade de Gênero (EIG). O
de a gente legitimar essa candidatura apoio do Bob Botelho pelo Evangélicx
como evangélica. Recebemos alguns pela Diversidade, alguns movimentos
apoios de lideranças. De instituições, evangélicos progressistas também
é mais complicado, porque uma igreja declararam apoio, não exatamente
declarar apoio é mais complicado. um apoio no sentido eleitoral, mas
A gente também não quer ter esse de reconhecer essas candidaturas

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 73


como evangélicas, progressista, é fácil, porque é tanta porrada que
como se a gente fosse um grupo de você toma que pensa: “não, eu devo
credibilidade por causa das lutas que estar viajando, o povo aqui deve estar
nossas identidades representam. certo...” Então encontrar esses apoios
FG – Tem a [Ana] Ester, o Ariovaldo é muito importante!
Ramos, Felipe dos Anjos, o frei Jão Luiz Moura – Como tem sido
Gilvander. esse apoio do Cristãos Contra o
JA – Cristãos Contra o Fascismo, Fascismo à Plural? Quais as pautas que
o frei Gilvander, que é aqui de Belo vocês têm levantado na candidatura?
Horizonte, muito conhecido nas lutas Qual o tamanho da institucionalidade
populares por moradia, por direito à da comunidade de fé de cada um de
habitação, o Fillipe falou na Ester, que vocês?
é da comunidade metropolitana, o FG – Eu sou batista, mas
Ariovaldo Ramos... foram vários apoios minha igreja não. Minha igreja é
tanto locais quanto de fora. independente, e ela tem um recorte
CV – E como são esses apoios? reformado, presbiteriano, mas
Eles aparecem nas mídias sociais com como ela é independente, é um
vocês ou é um apoio nas comunidades pouco sincrético. Então, não dá para
religiosas sem ampla divulgação? colocá-la dentro do aspecto, assim,
totalmente calvinista ou alguma coisa
JA – Está nada de “para dentro”, não,
nesse sentido, mas eu falo que sou
“eu quero que você grave um vídeo,
batista, porque cheguei lá tem dois
entendeu? Vamos colocar em nosso
anos. Mas minha comunidade, não,
Instagram.” Você está botando sua
e a minha comunidade é pequena, o
mão no fogo mesmo... [risos] A gente,
rol de membros total, lá na folha, são
como eu falei, queria o apoio dessas
70 membros, então, frequentadores
pessoas até no sentido de legitimar
devem estar em torno de 40, em
nossa luta enquanto evangélico. O
dia de culto cheio, é de 50 pessoas.
pessoal vê um grupo progressista que
Então, é uma comunidade bem, bem
trabalha na ocupação, preto, com um
pequena.
gay, então, a gente precisava desse
apoio público, manifesto, exposto, JA – A minha igreja é a segunda
divulgado, publicado, a gente só Igreja Presbiteriana de Belo Horizonte
não impulsionou ainda porque a (BH), ela é vinculada à Igreja
candidatura não tem dinheiro. Presbiteriana Unida (IPBU). Uma
denominação nacional, só que das
FG – E, para a gente, isso é muito
presbiterianas ela é a menor, se não
importante, porque a Carta Capital,
me engano, a gente não tem nem
há uns quinze dias, fez uma matéria,
50 igrejas espalhadas pelo Brasil. O
vocês devem ter acompanhado,
nascedouro da IPBU está ali no ano de
com certeza, falando que somos a
1978. Então, temos quarenta e poucos
minoria, da minoria, da minoria, os
anos.
cristãos progressistas, e esse apoio
é muito importante para a gente, Nós queríamos desde o início trazer
porque a gente toma porrada da as pautas que atravessassem nossas
igreja e da esquerda. E a igreja é identidades e nossos ofícios, então, a
majoritariamente de direita, então, gente traz muito forte a questão da
você tem esses pontos de apoio, luta da mulher, o feminismo, a questão
mesmo que, às vezes, pessoas de da negritude, antirracista, a questão
São Paulo, que não vão converter LGBTQIA+ e os nossos ofícios. Então,
na urna aqui de Belo Horizonte, mas a Kenia vem muito forte com a pauta
são pontos de motivação para a da educação, ela que é universitária
campanha, para a candidatura. Não do curso de Pedagogia, de uma

74 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


universidade pública, a Djenane ambiente religioso, institucional.
vem, além da educação, porque é Então, a Frente, que em tese é o
professora, também com a pauta da Ariovaldo, tem um posicionamento,
cultura, porque ela é professora de a Frente, enquanto grupo, reproduz,
artes, é artista plástica, é ceramista. às vezes, muito dessa perspectiva
Eu sou pequeno produtor local, institucionalizada da igreja e que eu
então, trago a economia popular e acho que, em certo ponto, é muito
solidária comigo, e o Gibran tem uma bom, mas, em outros pontos, engessa
atuação de muitos anos na área de muito o trabalho num momento
esportes, foi presidente de clube de desse, que a gente vive pós-golpe,
rugby e tal, então, vem com esporte e pós-funções de governo fascista, e
lazer. A gente acredita nessas pautas, a gente está de frente para outras
cultura, educação, economia popular, eleições, apesar de eu entender e fazer
esporte e lazer como ferramenta de parte desse acordo de cavalheiros de
transformação social, e a gente pensa que a Frente não deveria fazer política
também que aquilo nos une, que é institucional, como eu entendo
a fé evangélica, é preciso também que nós estamos vivendo um estado
defender a liberdade religiosa e todas de exceção, eu esperava outro
as expressões de fé, então, a gente posicionamento da Frente.
traz a questão do Estado laico muito É, tudo bem, não posso me frustrar,
forte. porque o combinado não sai caro,
Sobre os Cristãos Contra o mas acho que ou a gente entra nesse
Fascismo. Estamos alinhados, juntos, negócio e fortalece isso aqui para a
houve conversas antes. Acho que o gente tentar ver o que se recupera de
Gibran pode responder melhor. Com uma perspectiva democrática, ou
Tiago [Santos], com o Movimento, vão ser mais quatros anos de nota de
e acaba que os Cristãos Contra o repúdio no Facebook, no Twitter, no
Fascismo vira um grande guarda- WhatsApp etc. Então, nesse aspecto,
chuva das candidaturas que estão eu achei que os Cristãos Contra o
na luta, enquanto cristãos contra o Fascismo têm dado um salto, porque
fascismo, para sair para a política estão potencializando tudo quanto
institucional com esse selo. E, então, é candidatura de esquerda. Lógico,
a gente está caminhado junto com potencializa, no universo deles,
Tiago, a gente troca figurinha, na capacidade deles, que é ainda
nosso material que vai ficar pronto, pequena e tudo mais, mas eu acho que
amanhã ou sexta-feira, já vai sair com é nesse espaço que a gente deveria
o selo Cristãos Contra o Fascismo, e estar pensando agora, como frente
é uma candidatura muita parecida de evangélicos etc. E faço essa crítica
também, a candidatura do Tiago, lá à Frente de Evangélicos, com muita
em Porto Alegre, é coletiva. Então, liberdade, porque estou lá dentro,
temos muito em comum. construindo, não sou alguém de fora
FG – Tem um negócio que eu acho que critica a Frente, não, de maneira
interessante: a Frente de Evangélicos nenhuma, estou lá, sou um dos
tornou-se um espaço de muita coordenadores, faço parte da Frente,
liberdade. Principalmente na figura não vou sair, não vou abandonar
do Ariovaldo [Ramos], que lida com nem nada disso, mas eu acho que é
um negócio assim: “isso aqui é um importantíssimo a gente entender
movimento e tal...”, então, as pessoas onde está.
entram, e elas conseguem colocar DV – Eu não tenho o apoio
as pautas etc., só que eu acho que institucional da igreja, igual ao
as pessoas que entraram na Frente, Jonatas já falou, o Gibran etc. Mas
todas, de modo geral, são desse a igreja é enorme e tem algumas

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 75


pessoas que eu sei que vão votar em para as eleições, minha perspectiva é
mim. Pessoas, pastores, que estão me só para isso. E eu não sou assim tão
acompanhando, mas eu não tenho o esperto quanto as outras pessoas,
apoio institucional, não. Agora, a igreja mas o pouco de esperteza que eu
é composta por 63 mil membros, tenho no mundo vou percebendo que
eu acho, é muito grande. A igreja esse lance do progressismo está
não se envolve em política, a igreja complicado. Por quê?
mesmo, instituição, não se envolve em Até dentro do grupo de evangélicos
política, isso é o lema deles. que não são fundamentalistas, que não
KV – A minha também não tem é só de reacionários, existem algumas
apoio institucional, e a quantidade de discussões que eles não querem fazer,
membros é mais ou menos uns 70, discussões de gênero, discussões em
80 também, porque a nossa igreja é relação à homoafetividade e tudo mais.
pequena, de bairro, e também não se Então, percebo que essa bandeira
envolve em política. Então, apoio deve progressista tem se traduzido no
ser só de amigos bem próximos seguinte: “crente que é a favor de gay”,
mesmo, que frequentam a igreja, mas esse é a “pecha popularzona”, e é um
oficialmente não tenho apoio da igreja. grande problema, porque você vai ver,
CV – Existe um debate no meio por exemplo, uma bancada, não sei
evangélico mais à esquerda em torno se é isso o intuito, mas uma bancada
do termo progressista, inclusive o popular, porque não quer fazer a
BEP se apresenta como popular e não discussão sobre a homoafetividade,
progressista. Nesse sentido, queria claro, acho que nem tem que fazer,
saber como vocês se posicionam mas nós vamos vendo nisso esse lance
em relação a esse debate e por que do progressismo está nesses ideais de
a candidatura mobiliza a identidade crente que é gay friendly, que eu acho
progressista? que é um outro grande problema,
porque minha opinião segue, são os
FG – Vou falar aqui em particular
outros companheiros que vão ter que
porque a gente não fez esse debate
me explicar como eles conseguem ser
coletivo. Eu vou para esse espaço
evangélicos dizendo que têm cristãos
dos evangélicos progressistas e,
ou seres humanos que são melhores
em específico, em razão de um
ou piores do que os outros, pela
direcionamento de campanha,
forma como eles se relacionam, ou
porque, para mim não existe esse
pela forma como eles expressam sua
rolê de evangélicos progressistas, nós
sexualidade. Eles é que têm que me
somos evangélicos, talvez, os outros,
explicar como vão condenar pessoas
as outras, é que têm que explicar
dizendo se elas são pecadoras ou não
como elas conseguem ser evangélicas
pela forma como eles identificaram
e fundamentalistas e reacionárias,
suas perspectivas sexuais, não sei
porque, do meu recorte, da minha
nem como expressar isso, mas eu
leitura, é impossível ser evangélico
entendo que existe esse ambiente
e não pensar em um outro mundo
reacionário, quer dizer, do ponto
possível. Então, eu acho que são os
de vista político, eu até sou mais
fundamentalistas é que precisam
à esquerda, mas tem algumas
se explicar como conseguem ser
coisas que eu não quero, então, não
evangélicos...
me classifico como progressista.
Estou falando que sou evangélico
Resumindo, para mim, é um
progressista, porque, se eu disser
grande problema que nós temos
que sou só evangélico, vai dar uma
de terminologia e um grande
confusão na cabeça do povo. Então,
problema que a esquerda vive,
eu digo evangélico progressista só
que a gente vai traduzindo isso

76 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


em várias caricaturas. Caricaturas Eu também trabalho com distinção
do esquerdomacho, a gente vai dos termos esquerda e progressista,
desenvolvendo, e, no campo esquerda, para mim, está relacionado
evangélico, é a mesma coisa. Então, ao aspecto econômico, a uma política
um monte de gente que é evangélico, expansionista, à distribuição de renda,
mas pero no mucho, “até aqui eu vou, à justiça social, e eu defendo isso, e,
daqui para frente, eu não vou mais...”. enquanto progressista, exatamente
Não consigo pensar em dignidade, na contramão do conservadorismo,
em direitos humanos, é limitado, então, nós queremos a igualdade de
condicionado. Ou nós estamos gênero, dignidade para o povo preto,
discutindo direitos humanos, ou dignidade para o povo LGBTQIA+, é
estamos discutindo dignidade, reparação histórica para os nossos
nós estamos discutindo igualdade, povos originários, para os indígenas,
discutindo equidade para todo o para os quilombolas, então, acho muito
mundo, ou não venha comigo com importante trazer essas identidades.
esse discursinho. Ou a gente está A gente sabe que a igreja evangélica
ampliando isso, e a gente não negocia, hegemônica não é a criadora do
isso é uma proposta ética, ou não dá. fundamentalismo. Se a gente estuda o
Então, eu vejo isso assim, esse nome neopentecostalismo, esse movimento
progressista está complicado, eu não de trinta para quarenta anos, e a
me considero evangélico progressista, sociedade brasileira sempre foi
me considero evangélico, e eu vejo conservadora, sempre teve elementos
que muitos de nós, evangélicos de fundamentalismo nela, então, a
no campo da esquerda, não religião está apenas cooptada. É para
estamos dispostos a fazer todas dar a cara, ali, nesse momento atual,
as discursões possíveis, e nós não que a gente está vivendo para isso, é
queremos, então, estar nesse campo importante fazer essa disputa. “Olha,
progressista. Então, para mim, quem eu sou evangélico, mas sou evangélico
está lá dizendo sou evangélico progressista”, porque a igreja, a
progressista é, talvez, essa perspectiva igreja hegemônica, está cooptada,
mais revolucionária dentro da sim, por um conservadorismo e por
esquerda. O que não quer dizer que são um fundamentalismo que dificultam
pessoas maravilhosas, heroicas, não, a vida da gente. Os movimentos
tem muita gente ruim debaixo desse sociais são criminalizados, ativistas
nome de evangélico progressista, mas sociais são perseguidos, são presos,
é o que a gente tem para hoje. Essa é são mortos, têm as suas reputações
uma opinião minha. jogadas na lama, têm as suas lutas
JA – Gente, eu sou de esquerda, deslegitimadas, então, é importante a
sou progressista e sou cristão. Acho gente demarcar isso.
que a gente vive num contexto que, DV – Progressista, para mim, é
por mais que seja redundante, na quem acompanha as mudanças
minha concepção, falar que eu sou do seu tempo. A internet trouxe
evangélico e progressista, como conhecimento para a população e nos
Gibran falou, acho importante a gente fez ter noção dos direitos de outra
delimitar, a gente colocar nossas forma. Progressista é quem defende
identidades, porque a História do um Jesus para todos.
Brasil é fundada em três elementos CV – Já passamos demais o tempo
principais: machismo, racismo e combinado inicialmente. Desculpem-
latifúndio. E não tem como ser me por isso, e, mais uma vez, muito
conservador, ainda mais que eu sou obrigada a vocês quatro por esta
LGBTQIA+, se eu fosse conservador, excelente entrevista.
seria uma grande incoerência.

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 77


EPÍLOGO

78 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


EVANGÉLICOS E ELEIÇÕES
ANOTAÇÕES PARA
UMA AGENDA DE PESQUISA
Regina Novaes33

33
Coordenação Li com muito interesse a certeira introdução e as instigantes entrevistas,
Acadêmica ISER,
pesquisadora CNPq e realizadas no âmbito da pesquisa Esquerda evangélica nas eleições 2020,
Pesquisadora Visitante que compõem esse número de Comunicação do Iser. Agradeço muito a
Emérita UNIRIO
(FAPERJ). Christina Vital da Cunha e João Luiz Moura pelo convite para apresentar esses
comentários à título de epílogo. Aqui pretendo pontuar alguns aprendizados
inesperados e, sobretudo, compartilhar dúvidas que – a meu ver – poderiam
motivar novas pesquisas sobre a participação política (à esquerda) de
evangélicos no Brasil de hoje.

Espiritualidade progressista e/ou Teologia da Libertação:


permanecem as mesmas semelhanças e diferenças
entre evangélicos e católicos progressistas?
Me chamaram muito a atenção, na entrevista de Ariovaldo Ramos, suas
respostas a perguntas que buscavam as relações entre a Teologia da Libertação,
de berço católico, e a Teologias da Missão Integral e a “espiritualidade
progressista”, ambas de berço evangélico.
Examinando as interfaces entre religião e política, Ariovaldo falou sobre
o que há em comum e, também, sobre diferenças entre “os romanos” e os
“protestantes”. Em certo momento, relembrou uma conversa de “uma pá de
pastores” com Frei Beto, então conhecido porta-voz da Teologia da Libertação
no Brasil. A reunião foi convocada por Davi Alencar, pastor na Igreja Batista em
Santo André, com o objetivo de aproximar progressistas católicos e evangélicos.
Ariovaldo conta que perguntou ao Frei Beto: “Logo, logo nós vamos estar do
lado de vocês como responsáveis pelo pensamento ético brasileiro, o que você
aconselha? Fazendo uma citação bíblica, Frei Beto teria respondido: “não se
esqueçam dos pobres, vocês têm que tomar posições ao lado dos pobres.”
Possivelmente ocorrida nos anos 1980, nessa interlocução estabeleceu-se o
ponto comum entre eles. Tomar posição ao lado dos “pobres” identificava os
“progressistas” tanto dentro da Igreja Católica quanto dentro das denominações
evangélicas históricas ou de missão. Contudo, diferenças entre esses cristãos
também foram pontuadas por Ariovaldo Ramos. Lembrando das punições a
Leonardo Boff, nosso entrevistado afirmou: “quando eles [católicos] vão fazer
essa ponte entre a trindade e a revolução, eles são tolhidos (...) porque são
romanos, e a Igreja detém a salvação deles, e o Papa é o magistério da igreja e
acabou, eles não vão escapar disso, porque eles não querem ser excomungados.”
E, em seguida, demarcou a “virtude protestante” em que “a redenção não é a
instituição”, a redenção é sua, não há nenhum mediador entre você e Deus
além do próprio Cristo Jesus”.
Essa diferença, segundo Ariovaldo, teria grande repercussão para a construção
de uma “espiritualidade progressista evangélica”, pois – em comparação com

80 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


a igreja católica – a menor ênfase na igreja/instituição resultaria em menor
número de entraves para o desenvolvimento teológico engajado. Em outras
palavras, por não fazer parte de uma Igreja centralizada e hierárquica (que tem
o poder de excomungar), entre evangélicos haveria mais possibilidade de “dar
bases bíblicas para a revolução”.
Não será possível explorar aqui toda a riqueza da referida entrevista,
apenas gostaria de chamar a atenção para alguns pontos que podem merecer
espaço em outras pesquisas interessadas em desvendar as relações entre
religião e política no Brasil. Levando em conta a configuração histórica do
campo religioso brasileiro, em primeiro lugar, seria importante se perguntar
como o peso institucional (concentrado na unidade universal católica versus
fragmentado na contínua segmentação denominacional evangélica) repercute
não só nas teologias e na vivência religiosa cotidiana, mas também nas maneiras
de vincular militâncias religiosas e políticas. Essa indagação me lembrou meu
próprio trabalho de pesquisa com diferentes grupos de agricultores evangélicos
e católicos que participaram de lutas sociais em décadas anteriores.
Entre católicos — motivados pela teologia da libertação –, observei uma
“politização de categorias religiosas”, o que os faria mais propensos a agir
segundo palavras e regras constitutivas do campo político (o que – em outro
nível de reflexão – talvez possa se aproximar ao que Ariovaldo descreveu como
“terceirização da revolução”/“apoiadores da revolução”). Enquanto, entre os
“crentes”, haveria uma “religiogização de categorias políticas”, o que resultaria
em maior trânsito de palavras e símbolos religiosos em seus embates políticos
(o que poderia possibilitar algo próximo ao que Ariovaldo descreveu como
“espiritualidade revolucionária/estimuladora da revolução”).
É bom lembrar que, segundo o Censo realizado pelo IBGE, em 1980, os
católicos no Brasil somavam 89%, eram maioria. Já os evangélicos eram 6,6% (de
missão 3,4%; pentecostais 3,2 % e não determinados 0,4%). Mas não era a maioria
populacional católica que despertava grande interesse de pesquisa. Naquele
momento, por sua presença entre as camadas populares e, consequentemente,
por suas repercussões políticas nas lutas pela redemocratização do país, eram
as comunidades eclesiais de base (as CEBs) que chamavam atenção.
Ancoradas nos resultados do Concilio Vaticano II – e regionalmente
legitimadas pelos encaminhamentos dos encontros em Puebla (México) e
Medellín (Colômbia) –,comunidades de base, pastorais populares e bispos
progressistas, opondo-se ao regime militar, tornaram-se muitas vezes um
“guarda-chuva” para pessoas e correntes de esquerda. Ao mesmo tempo,
motivadas pela “teologia da libertação”, buscando aproximar “fé e vida”, as
CEBs se tornaram “celeiros de novos quadros” para partidos progressistas,
particularmente para o Partido dos Trabalhadores (PT), criado em 1980. Nesse
cenário, a vinculação política do “povo das comunidades” ao PT era vista como
algo esperado, natural.
Já no interior do reduzido mundo evangélico então considerado progressista
– geralmente ligado ao movimento ecumênico nacional e internacional – o
crescimento do “pentecostalismo” nas camadas mais pobres da população
causava bastante preocupação. O temor era de que as conversões, que se
davam sobretudo entre os mais pobres, poderiam reforçar conservadorismos
existentes e/ou produzir “alienação”, palavra corrente no campo de esquerda
de então. Ao enfatizar o “apartamento das coisas do mundo” e a “proximidade
da segunda vinda de Cristo”, os pentecostais eram imediatamente relacionados
com a negação da política.

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 81


34
Os números 2 e 3 de Portanto, enquanto das CEBs se esperava engajamento político, as notícias
Comunicações do Iser,
publicados em 1982, sobre a participação eleitoral de um ou outro “crente”, como eram mais
foram dedicados ao conhecidos, causava surpresa. No entanto, já naquelas eleições de 1982, em
tema eleições. Olhando
para seus índices, diferentes partidos (tais como PDS, PMDB, PT) apareceram candidatos que
podemos dizer que – se apresentavam como “crentes”, “evangélicos” ou “pentecostais”. Afirmando
aproximadamente e
em ordem decrescente neutralidade política e evitando falas de candidatos no púlpito, tais candidaturas
– são tratados os buscavam diferentes estratégias para ganhar votos acionando uma rede de
seguintes temas:
Catolicismo popular, “irmãos na fé”.
CEBs e Igreja Católica
Progressista (9); Na literatura,34 surgiram exemplos de “crentes” que se candidataram pelo
matriz afro-brasileira Partido dos Trabalhadores que, naquele ano de 1982, pela primeira vez, concorria
e identidade racial
(5); evangélicos e em eleições. Em “Os crentes e as eleições” (I) escrevi sobre a campanha eleitoral
pentecostais (4). De entre lavradores crentes que viviam em uma área conquistada por meio da luta
certa forma, essas
proporções refletem pela terra. A maioria era da Assembleia de Deus. Terminada a votação para
uma hierarquia de a escolha de um candidato local, alguém disse para o mais votado: “aceita,
temas que entre
estudiosos da religião irmão, é a vontade de Deus.” Na mesma frase, há dois aspectos para chamar
da época. a atenção. Primeiro lugar: naquela reunião política, chamavam-se de “irmão”
35
O retrocesso no (ainda que vez por outra se chamassem de “companheiro”, como era comum
interior da Igreja
Católica foi tão
em reuniões do mesmo partido). Em segundo lugar, a ênfase na “vontade de
significativo que Deus” colocava em segundo plano outros atributos políticos do candidato
hoje nem mesmo
a presença do
escolhido que, certamente, também operaram a seu favor (ele se distinguia de
Papa Francisco, outros “crentes” presentes por ser reconhecido militante da oposição sindical e
reconhecidamente
próximo à Teologia
liderança do Núcleo Agrícola Fluminense).
da Libertação, Também chamou minha atenção a autonomia da comunidade local para
proporcionou a
reprodução da tomar posições e lidar com discordâncias. Explico. Em uma outra reunião que
correlação de forças, se seguiu àquela da escolha do candidato, um agricultor crente iniciou uma
entre correntes
internas, similar àquela discussão dizendo: “Sou crente e não vou ficar manchado com política. Meu
que possibilitou os voto é Jesus. Na Bíblia está escrito para obedecer às autoridades da terra. E esse
melhores anos da
“Igreja Povo de Deus”. partido (o PT) é contra as autoridades, contra o governo. Crente não se mete
em política”. As reações foram enfáticas (“crente também come”; “o melhor
é fazer a política certa, a política do pequeno”; “ai daquele que mexer com o
povo de Deus”) e garantiram a continuidade da candidatura. Mas, durante a
discussão, ninguém sugeriu recorrer ao julgamento de autoridades superiores
na hierarquia religiosa de sua Igreja ou denominação.
Essas observações parecem confirmar o “princípio protestante” evocado por
Ariovaldo Ramos na referida entrevista no qual cada fiel pode se relacionar com
Deus sem a necessária mediação da instituição. O que, de certa forma, também
favorece certa espontaneidade/liberdade na aproximação de categorias
religiosas e políticas sem necessidade do aval ou controle eclesial, como ocorre
na Igreja Católica. Enfim, naqueles anos, como minoria religiosa que se expandia
em solo católico dominante, em determinados contextos de conflitos sociais,
esteve presente a possibilidade de aproximar a sensação de perseguição religiosa
e perseguição política, que era associada ao PT. Em ambos os contextos, era Davi
contra Golias. No mesmo sentido, podemos analisar a descrição que Ariovaldo
Ramos faz, na entrevista aqui publicada, sobre a resistência de um vereador
evangélico de Campinas/SP para não ser “tragado pelo sistema”.
No entanto, muita coisa mudou de lá para cá. Mudaram as estatísticas
oficiais sobre as religiões dos brasileiros: cresceram os evangélicos (sobretudo
pentecostais) e o catolicismo foi perdendo sua histórica posição hegemônica.
Mudou a correlação de forças no Vaticano acarretando perda de espaço
para progressistas e para a Teologia da Libertação.35 Também mudou muito
o chamado “mundo evangélico” no qual – apesar de continuar produzindo

82 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


novas denominações e contemplar a abertura de pequenas igrejas locais – 36
A expressão
“coronéis da fé”
estruturam-se grandes igrejas com complexos interesses institucionais. foi primeiramente
Com marcante presença nas classes populares, prisões, favelas, conjuntos utilizada por Valdemar
Figueredo Filho e hoje
habitacionais, e demais periferias urbanas e rurais, as grandes denominações tem uso corrente no
se fortaleceram com o uso (e abuso) de diferentes meios de comunicação interior das críticas
ao conservadorismo
colocados a seu dispor. evangélico.
Atualizando a mesma
Nesse processo, um cobiçado “voto evangélico” passou cada vez mais a expressão, podemos
ser – a cada eleição – disputado por candidatos de diferentes partidos e perfis pensar hoje em:
“empresários da fé”,
ideológicos. Por um lado, visitar templos sempre repletos de fiéis assíduos, “mercadores da fé”,
potenciais eleitores, passou a ser corriqueiro para candidatos crentes e não “milicianos da fé”.
crentes. Por outro lado, inspirando-se e adaptando o modelo de disputa eleitoral 37
Entre outros
inaugurado pela Igreja Universal do Reino de Deus, outras denominações se pontos, denunciava-
se que governos “de
empenharam em fazer aumentar significativamente o número de candidatos esquerda” estariam
que passaram a ter o aval de suas igrejas. Até que, sobretudo após a Constituição operando a partir do
“marxismo cultural” e
de 1998, a chamada “bancada evangélica” se propôs a articular interesses de anunciavam que havia
uma “cristofobia” a
diferentes denominações e se credenciou para falar genericamente por todas combater. Assim, o par
elas. Foi a partir daí que a categoria “evangélicos” ganhou predominância no de oposiçã o “direita/
esquerda”, que, após
espaço público, deixando em segundo plano o uso das palavras “protestante”, a queda do muro de
“crente” e “pentecostal”. Berlim, estava com
uso socialmente bem
No correr do tempo, os evangélicos eleitos, em sua maioria, foram restrito voltou a fazer
assimilando as concepções clientelísticas e as práticas de barganha eleitoral parte do vocabulário
político corrente.
historicamente presentes no fazer político em nosso país. Nesse processo, 38
Para melhor
certas lideranças de denominações evangélicas ganharam poder, tornaram- compreensão desse
se “coronéis da fé”,36 inaugurando um novo tipo de “curral eleitoral” no país. processo, consultar a
introdução – assinada
Na entrevista aqui publicada, Ariovaldo Ramos – com muita indignação por Christina Vital
– descreve uma situação criada em um almoço de pastores com um líder da Cunha e João
Luiz Moura – do
máximo de determinada denominação. Segundo seu relato, logo depois de presente número de
uma série de pregações pela manhã, o referido líder levou – para um almoço Comunicações do Iser.
com pastores – um deputado estadual e sua esposa, que seria candidata a
vereadora. E, “sem nenhum pudor mesmo”, começou a determinar quantos
votos os pastores de diferentes denominações poderiam/deveriam conseguir
para a referida vereadora.
A assimilação da “cultura política brasileira” também se manifestou nos
anos 2000, sobretudo nos governos do PT, quando representantes de certas
denominações evangélicas (classificadas como pentecostais e neopentecostais)
estiveram em cargos e buscaram espaço na implantação de políticas públicas.
Enquanto progressistas (em outras igrejas e na sociedade) fizeram avançar
suas pautas, os conservadores (fisiologicamente na base governista) fingiam
não notar que certas demandas de trabalhadores, mulheres, jovens, de negros,
de índios, população LGBT, estavam sendo introduzidas entre os direitos de
cidadania, sendo reconhecidos por lei...
Naqueles anos, nos debates públicos e mesmo entre lideranças de igrejas
evangélicas, pouco se acionava o par de oposição esquerda/direita. Entretanto,
esse tempo de trégua logo ficou para traz. Repercutindo nacionalmente a
onda conservadora que se afirmava no mundo e na região latino-americana37
e posicionando-se ao lado de forças políticas que se opunham aos governos
petistas, o conservadorismo de grupos evangélicos (até então fisiologicamente
contido), veio à tona. Foi nessa conjuntura, sobretudo após 2013, em meio a
uma crise econômica e política, que certas lideranças evangélicas ganharam
grande visibilidade pública.38 Utilizando-se de meios de comunicação, como as
novas tecnologias e seus aplicativos, lograram a se comunicar com a grande

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 83


39
Recentemente, o maioria da população e – seletivamente reforçando seus valores conservadores
grupo Católicas pelo
Direito de Decidir – influenciaram e ganharam votos para as eleições de 2018.
foi ameaçado de ser
proibido pela Justiça Por outro lado, como reação, para se contrapor àqueles que diziam falar
de São Paulo de usar pelo “povo evangélico”, surgiram novas aglutinações de progressistas de
o termo “católicas”
no nome. O despacho diferentes denominações e igrejas. Nesse cenário, o “título de evangélico”
do desembargador passou a ser intencionalmente usado por progressistas como parte integrante
afirma que a finalidade
da associação revela da “disputa de narrativa”, como indica Ariovaldo Ramos na entrevista aqui
“incompatibilidade publicada. Logrando novas aglutinações, setores evangélicos – autodesignados
com os valores
adotados pela Igreja como progressistas, populares ou de esquerda – têm buscado caminhos para
Católica”. Até onde mostrar que “conservadores” e “fundamentalistas” não obtêm o monopólio da
sei, autoridades
religiosas católicas representatividade da chamada “base evangélica” (Vital da Cunha, 2021).
não se manifestaram. Ao mesmo tempo, pesquisas mostram que tais evangélicos contam com
E nenhuma
das “católicas” aliança de lideranças e políticos católicos que aparecem menos, mas não são
participantes do grupo menos importantes na empreitada conservadora do atual governo (Fonseca
foi ameaçada de
excomunhão. 2021). Se isso é verdade no campo conservador, considerando o objetivo da
presente publicação, cabe perguntar: e no campo progressista, o que aproxima
ou separa católicos e evangélicos?
Aqui me parece importante retomar uma questão de fundo presente na
entrevista de Ariovaldo Ramos: seriam hoje ainda tão marcantes as diferenças
nas maneiras de relacionar religião e política entre progressistas “romanos” e
progressistas protestantes? Sobre isso, vejamos algumas questões que podem
motivar próximas pesquisa.
No encolhido mundo católico, em tempos de comunicação virtual, até
que ponto a hierarquia eclesiástica detém o controle dos posicionamentos
políticos do clero e dos fiéis? Até que ponto as articulações em coletivos e
redes de “católicas” voltadas para a afirmação da diversidade sexual, contra a
criminalização do aborto e outros temas polêmicos passam ao largo do controle
das paróquias, Dioceses, de Roma? Até que ponto excomunhões baseadas em
censuras teológicas (às quais se referiu Ariovaldo Ramos) perderam espaço?39
No mundo evangélico, até que ponto ainda opera a “virtude protestante” que
reconhece que a “redenção não é a instituição”? Qual a autonomia das igrejas
locais que são parte de denominações bastante centralizadas e hierarquizadas?
A “disputa de narrativa” com evangélicos conservadores se dará fora, às
margens ou dentro das Igrejas onde se concentra a base evangélica?

Dentro, fora ou às margens das Igrejas: “afinal, qual é nosso link?”


Considerando sobretudo três iniciativas de evangélicos (Frente de Evangélicos
pelo Estado de Direito; a Bancada Evangélica Popular e o Movimento Cristãos
Contra o Fascismo), em sua entrevista aqui publicada, Nilza Valéria Zacarias
do Nascimento – entre outras valiosas contribuições – identifica importantes
dilemas hoje presentes no campo progressista evangélico que se explicitaram
durante as eleições municipais de 2020.
Como se sabe, ao lado de Ariovaldo Ramos e de Anivaldo Padilha, que há
muito tempo fazem parte de movimentos protestantes progressistas, Valéria
participou da fundação da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito (FEED),
em 2016, logo após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Três anos
depois, Valéria acreditava que a Frente – já com núcleos em quase todos os
estados do Brasil – poderia endossar candidaturas nas eleições municipais em
2020. Mas, por decisão colegiada, em reunião realizada no Rio de Janeiro em
2019, sua posição foi vencida. Prevaleceu a ideia de que deveriam continuar

84 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


participando de um debate amplo evitando reduzir a Frente a um projeto 40
Essa decisão
contribuiu para
eleitoral.40 a articulação da
Bancada Evangélica
Com os seus 4 anos de atividades na FFED, Valéria reconhece positivamente Progressista (BEP)
essa experiência. Em defesa da democracia, a Frente tornou-se uma referência sobre a qual
escreveremos mais
nacional, criando núcleos por todo Brasil, em Estados e Municípios. Agregou adiante.
movimentos e coletivos evangélicos preexistentes (sobretudo voltados para 41
Para uma análise
causas de gênero e de combate ao racismo), mas também motivou a criação de aprofundada sobre
novas redes e coletivos. Certamente também influenciou na trajetória de jovens as relações raciais no
mundo evangélico, ver
que viviam suas primeiras experiências de participação social. Ao mesmo tempo, Vital da Cunha (2021).
Valeria pontuou alguns dilemas e desafios que merecem atenção quando se 42
No Rio de Janeiro,
tem o objetivo de fazer avançar o conhecimento sobre as complexas relações temos dois exemplos
de mulheres negras
entre religião e política em processos eleitorais. evangélicas, de
gerações diferentes,
Com essa perspectiva, Valeria apresenta uma série de informações sobre vindas de movimentos
o que se passa em uma parte do mundo evangélico. Identifica processos de de favelas: Benedita
da Silva (PT) e Monica
“envelhecimento da membresia de determinadas Igrejas” e novas “igrejas sem Francisco (PSOL). Para
membresia”. Igrejas com dificuldades de frequência devido a sua localização, uma sugestiva análise
dessas trajetórias, ver
bem como diminuição de vínculos de jovens com suas Igrejas. A entrevistada Fonseca (2021).
também se pergunta sobre o papel e o peso das “comunidades alternativas”
ou de “grupos fora das igrejas institucionais” podem ter para se opor ao
conservadorismo evangélico que predomina nos territórios das Igrejas.
Valéria observa ainda que não há uma “grande igreja” com “discurso afinado
com o nosso”. E, embora existam pastores simpatizantes eles – por diferentes
motivos e justificativas – assumem uma postura mais neutra em suas igrejas. Bem
realista, a entrevistada traduz em números sua inquietação: enquanto muitas
igrejas tradicionais reúnem cerca de 3 mil pessoas em um domingo de manhã,
somando quem vai a todas as igrejas “ditas progressistas no Rio de Janeiro, vai
juntar, quando muito, 500 pessoas e olhe lá”. Ou seja, a seu ver, os progressistas,
como outrora, continuam sendo minorias ativas no mundo evangélico.
Como evangélica progressista (ainda que prefira se definir como “de
esquerda”), Valéria se pergunta o que distingue a militância de um cidadão
evangélico de uma militância que aciona especificamente a “condição religiosa”.
Ela conta que participou do movimento estudantil uma boa parte de sua vida
e completa: “a minha condição religiosa, não atravessava isso, não mudava
o fato de eu ser crente.” Disse que nos sindicatos também sempre existiam
militantes crentes. Lembrou ainda que, há mais de 40 anos, históricos militantes
evangélicos denunciaram racismo e lutaram a favor da igualdade racial.41 Do
seu ponto de vista, hoje, uma militância com base em identidade evangélica só
teria sentido se fosse para se aproximar das pessoas que têm vínculos com as
igrejas e não têm contato com a “fé transformadora”.
Segundo Valéria, seria necessário pensar como ampliar o espaço progressista
no interior das igrejas. No entanto, diz ela: “eu tenho desconfiado de nossa
capacidade de falar com nossos irmãos.” A gente fala para a gente, quem de
novo a gente tem trazido para essa discussão?” Enfim, os afastamentos de
evangélicos progressistas do espaço de suas igrejas é fonte de preocupação de
Valéria. Referindo-se à Frente, ela indaga: qual é o nosso link? Para ela “a igreja
local (...) é o que dá sentido a toda essa luta (...). Em suas palavras, a aposta é
que “a gente consiga dialogar com os crentes, senão não faz sentido”.
Valeria também reflete sobre o uso de designações religiosas (como
“pastor”/ “irmão”/reverendo) como “nome eleitoral”. De maneira geral,
em gerações passadas evangélicos progressistas42 não faziam uso desse
expediente para disputar votos entre “irmãos na fé”. Mas, hoje, alguns lançam

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 85


mão desses títulos justificando que essa seria uma forma de competir/reagir,
pois candidatos conservadores e de direita cada vez mais lançam mão desses
títulos. E indaga – um tanto ironicamente: esta seria uma forma de “ressignificar
a narrativa”? Ainda com o mesmo espírito problematizador, nossa entrevistada
indaga se existe mesmo um “voto evangélico”. E observa: nem sempre um
“candidato evangélico” foi ou será eleito com um “voto evangélico”. Nem
sempre a “identidade evangélica” anunciada é acompanhada de uma
construção teológica condizente.
Certamente não é simples apreender toda gama de sentimentos que
podem estar contidos na escolha de uma estratégia eleitoral ou na escolha
de um candidato. Mas talvez não haja mesmo respostas conclusivas que
atravessem conjunturas políticas e contextos sociais diversificados. Ou seja,
as repercussões do uso do “título” religioso, bem como as razões para o voto,
só podem ser pensadas em contexto. Sendo assim, no Brasil de hoje, mais do
que nunca, é preciso se perguntar, quando, onde e para quem nomes eleitorais
que carregam títulos religiosos aproximam ou afastam potenciais eleitores
evangélicos e não evangélicos.
Com essa perspectiva, as reflexões de Valéria nos convidam a pensar em outras
variáveis que também estão presentes entre evangélicos (e não evangélicos) no
momento do voto, tais como: lealdades e relações pessoais; ações sociais locais;
acesso a outras redes de proteção e diferentes experiências de vida. Vejamos o
que dizem outros entrevistados que também são protagonistas dessa história.

Entre o mundo evangélico, os movimentos e os partidos: identidades


múltiplas e não excludentes
Samuel Oliveira tem 24 anos, cresceu na Assembleia de Deus, passou pela
Igreja Batista e por outras igrejas. Todas, segundo ele, tinham “esse viés mais
conservador, mais fundamentalista”. Ainda assim ele diz que tinha “engajamento
em Ministérios” das Igrejas. Mas, paralelamente, começou sua trajetória política
em 2013, como ele mesmo conta: “Iniciei pelo movimento estudantil, fiz parte
da primavera secundarista, dos movimentos que fizeram as ocupações nas
escolas, do fechamento, da ocupação da Assembleia Legislativa.” Participou
da gestão da União Paulista dos Estudantes Secundaristas e depois disso
enfrentou “as dificuldades de todo jovem de periferia” para ir à universidade.
Após esse período de engajamento nos movimentos juvenis, em 2016 e 2018
candidatou-se a deputado estadual pelo Partido Comunista do Brasil (PC do
B) e, em 2020 – quando foi entrevistado –, estava se candidatando a vereador
pelo mesmo partido. Para tanto, teve de superar restrições de membros de sua
Igreja que viam a política como “um ninho de cobras” e a resistência da mãe
que – mesmo sem “ter muita dimensão política da coisa” – falou que em sua
Igreja questionaram o fato de ele estar ligado ao partido comunista.
Desde abril de 2018, Samuel se aproximou da Frente de Evangélicos pelo
Estado de Direito (FEED). Faz parte do núcleo de São Paulo. Ele explica: “como
todo evangélico que vem de um meio fundamentalista e se desperta para uma
fé mais progressista”, também passou por “um momento de indignação e de
revolta com as igrejas e tudo mais”. Para ele, a Frente ajudou a compreender sua
identidade e a valorizar uma militância evangélica progressista em contraposição
ao “setor majoritário conservador”. E foi a partir dessa experiência que ele se
envolveu na articulação do movimento Bancada Evangélica Popular.
Perguntado por que usar “popular” e não “progressista” na nomeação

86 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


da Bancada, Samuel explicou: os “setores capitalistas” encontraram no
“conservadorismo” das igrejas evangélicas uma forma de manutenção de seus
interesses. Sendo assim, a base evangélica “majoritariamente da periferia, e
pobre”, que cresceu “em uma lógica conservadora” e aprendeu que progressista
é coisa do PT”, poderia ser mais receptiva ao termo “popular”. Contando com
tal receptividade, diz que é para essa “base evangélica” que querem levar a
discussão sobre “políticas públicas e defender serviços públicos de qualidade,
os direitos”. Para ele, o “evangelho de Cristo está conectado com a reparação
de injustiças”. Com essa argumentação, Samuel combina e convive com sua
“identidade de fé” e sua vinculação partidária ao PC do B.
A convivência entre identidades múltiplas e não excludentes tem sido
apontada entre as características de movimentos juvenis contemporâneos
(Novaes; Alvim 2014) e, também, aparece na entrevista com o grupo que
compõe a Plural Candidatura Coletiva, que reuniu quatro jovens evangélicos
candidatos à vereança nas eleições municipais de 2020, em Belo Horizonte. A
entrevista aqui publicada nos permite conhecer a candidatura coletiva composta
por: Jonatas Arêdes (nome registrado oficialmente), que se apresenta como
evangélico, “protestante no sentido literal da palavra”, homossexual e pequeno
produtor rural; Fillipe Gibran, que se apresenta como advogado e integrante
da Comunidade Evangélica Unidade em Cristo; Djenane Vera, que se apresenta
como professora, ceramista, mulher preta e evangélica, nascida na Assembleia
de Deus, frequentando hoje a Igreja Cristã Maranata e, por fim, Kenia Vertello,
que se apresenta como estudante “evangélica de berço”, membro da Igreja
Batista Connet.
Em comum, todos nasceram em berço evangélico e fazem parte do núcleo
mineiro da FEED, que tem sido uma referência fundamental em suas trajetórias
de vida. Todos fazem o Curso de Formação oferecido pelo núcleo local da Frente.
E, de diferentes maneiras, todos participam da “formação de evangélicos” nas
periferias e nas ocupações urbanas em Belo Horizonte atuando junto ao MLB
(Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas). Movimento esse que logrou
assinaturas suficientes para legalizar um partido chamado Unidade Popular
(UP), pelo qual registraram sua candidatura coletiva. Segundo Fillipe, foi a UP
que “fez uma questão danada de que a gente saísse com uma candidatura
evangélica”. E prossegue contando que a grande maioria dos filiados à UP é
gente simples, “humilde mesmo”, e que a “maioria esmagadora da população
ocupante é evangélica”. A expectativa, segundo Fillipe, é “de que a gente
consiga começar a dialogar com os evangélicos” e assim “consiga melhorar a
nossa conversa com as ocupações.”
Ao ser indagado sobre a dimensão teológica na Campanha do Coletivo
Plural, Fillipe traz à tona um limite: “Impossível a gente falar de teologia dentro
de nossa candidatura, a gente tem um presbiteriano, uma maranata, uma
batista mais renovada, mais pentecostal, e eu sou batista”; ao afirmar que uma
“discussão teológica poderia acabar com a candidatura coletiva”, provocou
risos dos demais participantes da entrevista. Continuando sua reflexão, em
seguida, identificou um dilema: se a gente comprometer a candidatura com
questões teológicas como garantir que “nossa pegada é de estado laico”?
No entanto Jonatas, ao responder sobre a mesma questão sobre a dimensão
teológica na Campanha do Coletivo Plural, diz que o grupo tem uma “crítica
profunda à esquerda por não dar valor aos ganhos emocionais que a pessoa
tem diante de uma teologia que faz com que ela caminhe através da relação
mística”. A fé faz parte da vida. “A gente está tentando fazer uma política

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 87


enquanto campanha ética dentro dessa relação entre o racional e mística
também.” Para ele não se trata de escolher uma só dimensão: “sou de esquerda,
sou progressista e sou cristão.”
Kenia contou que vem sendo perseguida em sua igreja por estar nessa
candidatura (que engloba questões raciais e de orientação sexual). Conta que
não tem apoio da Igreja – que é pequena, de bairro –, mas lá conta com alguns
amigos. Pessoalmente, se fortalece no curso (por “ensino remoto”) oferecido
pela Frente do qual ela participa. Já Djenane, afirmando que “progressista para
mim é quem acompanha as mudanças do seu tempo”, diz que foi “a internet
que trouxe conhecimento para a população e nos fez ter a noção dos direitos
de uma outra forma”.
Todos também concordam que “progressista é quem defende Jesus para
todos”. Para eles, a candidatura – proposta por um Partido nascido de lutas
urbanas – se define como “coletiva, evangélica, com paridade de gênero,
discutindo racismo”. Entre os apoios à candidatura à pretendida covereança
destacam, entre outros, Comunidades Atos, Fórum político Inter-Religioso,
Evangélicas pela Igualdade de Gênero, Evangélicos pela Diversidade. Como
personalidades apoiadoras, citam Ariovaldo Ramos (grande referência para
todos), Fellipe dos Anjos (pastor na Igreja Batista Água Branca/SP) e também
Frei Gilvander, católico conhecido pelas lutas populares por moradia e por
direito à habitação.
As cinco trajetórias individuais, contidas nas duas últimas entrevistas citadas,
trazem muitos pontos para nossa agenda de pesquisa sobre experiências de
ativismo entre militantes que se apresentam nos embates públicos por meio
de seu pertencimento/condição/identidade religiosa. A rigor, os relatos dos
entrevistados da Bancada Evangélica Popular e da Candidatura Coletiva Plural
não podem ser compreendidos sem que levemos em conta o que se passa nos
movimentos sociais e nos coletivos com diferentes causas que se apresentam
no espaço público.
Apresentando uma forma específica de percorrer o espaço social em
determinado campo de força religioso, eles se movimentam dentro de um
quadro relacional de postos, posições e disposições reservados à sua classe,
etnia/raça, gênero e geração. Por isso mesmo, novas pesquisas poderiam se
dedicar a mapear e a diferenciar o conjunto de trajetórias possíveis. Quais
são os diferentes percursos entre a militância religiosa e o assumir de causas
políticas? Importante também seria elencar os tipos de mediações e de
mediadores que operam para mudar rumos dessas vidas. Em suas trajetórias,
qual o lugar e peso dos grupos de igrejas e pastores; dos professores de
ensino médio; de projetos sociais desenvolvidos por organizações não
governamentais ou programas governamentais? E/ou, como indicou
Djenane – para além do que ocorre nos territórios religiosos ou seculares –,
seria a “internet” um especial espaço de socialização para o engajamento
supradenominacional e inter-religioso?

“Cristãos contra o Fascismo”: articulações ecumênicas em tempos de internet


Tiago Santos tem 33 anos, é formado em Teologia e faz mestrado em
Educação. Foi membro da Igreja Batista, mas conta que, em seu contexto
religioso, sempre teve um questionamento em “relação à própria interpretação
bíblica”, pois era “uma interpretação mais conservadora, excludente de
determinados grupos”. Lembrando que Jesus acolheu grupos marginalizados

88 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


de sua época (as crianças, as mulheres, os leprosos), pergunta: por que vamos 43
A ideia da “cartilha”
remete diretamente às
segregar e excluir marginalizados da nossa época? Segundo ele, a igreja é um CEBs, ver Lesbaupin
espaço “ensimesmado, que está descontextualizada, não se comunica com o (1982). Só que
desta vez não são
contexto social de sua época”. as dioceses que as
distribuem, mas um
Em 2015 pediu desligamento da igreja e começou a se reunir com um grupo de católicos e
grupo de amigos que estudavam a Bíblia com outra perspectiva. No início evangélicos que teve
seu reconhecimento
eram um teólogo, um ateu e um punk cristão. “Aos poucos outras pessoas via internet.
foram chegando”, pessoas oriundas da Igreja Católica, da Assembleia de
Deus, Anglicana, Luterana, Batistas... “gente de tudo o que é denominação...”
Resolveram se organizar institucionalmente como uma ONG de educação e
assistência social. A partir daí, desenvolveram vários projetos de extensão,
inclusive de “letramento religioso”, com a ideia de “combater os discursos
fundamentalistas religiosos”.
Fazem parte da ONG, “feministas, socialistas, comunistas, pessoas que se
identificam coma esquerda, anarquistas”, pessoas excluídas das suas igrejas
de origem por conta de questionamentos de cunho político. Essa OGN/Igreja
tem um diferencial: além de estudos bíblicos, dos momentos de oração e
de meditação, promove debates em diversas áreas. “Temos um grupo de
gêneros e sexualidades, um grupo de debate sobre racismo, um grupo de
debate sobre temas ecológicos”. Promoveram debates sobre como o governo
tem lidado com questões ambientais e sobre a demarcação de territórios
indígenas.
No entanto foi durante a Campanha Eleitoral de 2018, quando em apoio
ao candidato Jair Bolsonaro se multiplicou o “discurso cristofascista com sua
estética religiosa muito forte, caminhando ao lado de apelos armamentistas,
violentos e antidemocráticos,” que Tiago criou um evento no Facebook chamado
“Cristãos Contra o Fascismo”. Com essa chamada aglutinadora convocava-se
para o ato #elenão, então organizado por vários movimentos de mulheres. A
ideia era mostrar que os cristãos não eram “um bloco monolítico” e que nem
todo cristão apoiava Bolsonaro. A repercussão foi além das expectativas. Em
muitas cidades pelo Brasil afora criaram-se grupos e eventos com o mesmo
nome. Impulsionado por um vídeo na Mídia Ninja, por uma página na internet,
por postagens no Facebook e por um grupo no WhatsApp, o movimento
Cristãos contra o Fascismo ganhou dimensão nacional.
Paralelamente, para melhor acolher pessoas que foram expulsas ou deixaram
suas igrejas que sentiam falta de vínculos emocionais e afetivos, sempre
presentes em comunidades de fé, iniciou-se um novo movimento. Articuladas
por dentro do “Cristãos Contra o Fascismo”, nasceram as comunidades Liberta,
que disseminam “a ideia de igrejas libertárias”. Em Porto Alegre, a comunidade
Liberta é liderada por um pastor batista expulso de sua igreja. Em diversas
cidades, foram se formando outras. Segundo Tiago, a ideia é evitar que as
pessoas questionadoras fiquem “sem igreja”, sem “comunidades de fé”. Fizeram
até uma cartilha com a ideia de auxiliar a criação de comunidades semelhantes
em outros lugares do país.43
Nas eleições de 2020, Tiago (antes filiado ao PT) integrou uma candidatura
coletiva pelo PSOL. Faz parte da candidatura uma professora que traz o tema
da educação e – por ser mulher e negra – tem abordado outras questões
como raça, gênero, sexualidade. Também faz parte dessa candidatura um
indígena Kaingang que aborda questões de territorialidade e cultura indígena.
No conjunto, definem a candidatura como “cristã progressista” e colocam a
“questão da intolerância religiosa” como “uma pauta central”.

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 89


44
Ver análises sobre Apresentando-se como “cristãos”, por vezes, causam estranheza dentro do
essas repercussões em
Vital da Cunha (2021) e Partido. Porém, “passa logo, assim que eles percebem o nosso discurso”. Mas
Fonseca (2021). o fato de se identificarem como “esquerda” recebeu críticas no jornal Folha
Universal, da Iurd, e no MBLNews. “Como assim cristãos de esquerda?”44Nas
eleições de 2020, as candidaturas ligadas ao movimento envolveram 67 pessoas
em 42 candidaturas.
Perguntado sobre suas relações com a FEED e com a Bancada Evangélica
Popular, Tiago expressa sua grande admiração por Ariovaldo Ramos. Mas diz
que os dois movimentos citados juntam uma geração que já tem “caminhada
política, já é um pouco mais midiático”, e tem gente que já lançou mais de uma
vez sua candidatura. Enquanto Cristãos contra o Fascismo reúne pessoas mais
jovens e mais anônimas. O apoio a essas pessoas se faz, fundamentalmente, por
meio de uma plataforma na internet, de suas redes sociais, da divulgação de
vídeos de apoio de personalidades. Destaca ainda a parceria com Advogados
contra o Fascismo para resolver questões jurídicas das candidaturas.
Entretanto, talvez a maior diferença esteja no fato de o movimento se
definir como “cristão” e, assim, possibilitar diferentes formas de participação
condizentes com as trajetórias individuais de evangélicos e católicos que dele
se aproximam. Entre os evangélicos, há aqueles que, como Tiago, se desligaram
de suas igrejas por conta de pastores conservadoras – e para eles se oferece a
alternativa de “igrejas libertárias”. Todavia há também casos inversos. Pastores
(da Assembleia de Deus, batistas, adventistas, luteranos) progressistas que
enfrentam dificuldades na liderança de suas “comunidades conservadoras” que
também encontram espaço para participar pessoalmente do Cristãos contra o
Fascismo.
Entre os católicos, “nós temos padres, muitos padres, muitos franciscanos,
muitas freiras, muitos religiosos também, não só leigos” que pertencem ao
movimento, mas muitos continuam frequentando suas comunidades de fé,
suas igrejas. Sobre as correntes da igreja católica que se aproximam, Tiago diz
que chegou a ver uma ou outra pessoa no grupo dizendo que era carismático,
“mas são só gotinhas no meio do movimento todo”. Em geral, os católicos são
pessoas ligadas à Pastoral da Juventude, Pastoral da Terra e outras pastorais
que já fazem esse debate.
A partir desse quadro, algumas questões despertam interesse de pesquisa.
Quando consideramos os atuais embates entre conservadores e progressistas,
como ficam as classificações de evangélicos como históricos, de missão,
pentecostais e neopentecostais? Até que ponto podemos dizer que Assembleia
de Deus – entre as denominações classificadas como pentecostais – atualmente
se destaca no fornecimento de quadros para a “esquerda evangélica”? Ouvindo
as muitas histórias contadas pelos entrevistados em relação ao que se passa
nas igrejas locais, vale dizer que o conservadorismo (religioso e político) se
circunscreve ao “neopentecostalismo” (como está estabelecido em certo
“senso comum savant”)? Por outro lado, que mudanças nos modelos e modos
de “ser de igreja evangélica” podemos observar nas experiências relatadas?
Por fim, o que dizer sobre o “ciberecumenismo” anunciado na presença de
católicos e evangélicos no movimento Cristãos contra o Fascismo?

Nota Final
O tempo muda perguntas e exige outras respostas. Por exemplo, se um
dos nossos jovens entrevistados evangélicos fizesse hoje a um jovem católico

90 // COMUNICAÇÕES DO ISER | EVANGÉLICOS À ESQUERDA NO BRASIL


progressista a mesma pergunta que Ariovaldo Ramos fez, tempos atrás,
para Frei Beto sobre como contribuir para o “pensamento ético brasileiro”, a
resposta: “não se esqueçam dos pobres, vocês têm que tomar posições ao lado
dos pobres” seria suficiente? Ou essa resposta necessitaria ser complementada
com outras contradições que retroalimentam a pobreza e ampliam as
desigualdades sociais? Nas últimas décadas, vários coletivos e movimentos
sociais demonstram que, para tomar posições ao lado dos pobres, é necessário
simultaneamente combater os preconceitos e discriminações em relação aos
índios, à população afrodescendente, às mulheres, aos grupos LGBTQIA+.
Se é verdade que o peso relativo de cada um desses marcadores de
diferença/desigualdade não seja consenso, hoje parece não ser mais aceitável
hierarquizar os conflitos e as lutas entre “contradições principais e secundárias”
como, por exemplo, rezava a cartilha da esquerda maoísta. Se é verdade que –
historicamente falando – diferentes correntes de pensamento sempre estiveram
presentes nos processos de configuração das esquerdas (religiosas ou leigas),
hoje não é diferente. As controvérsias sobre como articular “questões de classe”
e “pautas identitárias” são frequentes, produzem debates que farão parte da
história futura das esquerdas contemporâneas.
Nesse sentido, ainda que não possamos desconsiderar as preocupações
de Nilza Valéria sobre a especificidade das tensões presentes no campo
progressista evangélico, é importante sublinhar que a articulação entre as
determinações de classe e as chamadas “pautas identitárias” é um desafio mais
geral que envolve hoje todos que se movem em espaços da esquerda no Brasil.
Ao mesmo tempo, é importante atentar para o que se passa no chamado
“mundo da participação” (Leite Lopes e Heredia, 2014), onde também há
mudanças em curso. Como aponta a literatura (Souza 2017), registra-se hoje um
conjunto heterogêneo de formas de engajamento que inclui: meio ambiente,
religião, sindicalismo, partidos políticos ou altermundismo. Ou seja, no século
XXI, a religião é destacada entre os vetores de engajamento. O pertencimento
religioso se mistura com outras características da militância e hoje não precisa
(como outrora) ser silenciado nos espaços de classificados como “de esquerda”,
em outros tempos significativamente marcados por um desejado ateísmo no
âmbito do materialismo histórico.
Nesse sentido, acionar a identidade religiosa para agir no mundo não tem
apenas repercussões em diferentes aspectos das histórias de vidas de cada
pessoa. Mas também repercute no conjunto das formas de engajamento que
compõem o repertório da ação coletiva em dado momento histórico e contexto
social. Nas entrevistas, ao articular suas trajetórias individuais aos contextos,
às gramáticas e repertórios de militâncias (Souza, 2017), os entrevistados
borram as fronteiras entre a identidade religiosa anunciada e as demais causas
acionadas para justificar tal engajamento.
Percebe-se menos fronteiras e muito mais conexões com outros tipos de
engajamentos registrados na sociedade, seja na sequência de eventos políticos
dos quais Samuel participou (manifestações de 2013, ocupações nas escolas,
eleições pelo PC do B), seja nas relações dos componentes da Candidatura
Plural com as ocupações urbanas e com outros “movimentos identitários”, seja
na sequência de acontecimentos que antecedeu a formação de Cristãos contra
o Fascismo. Assim, os militantes evangélicos entrevistados não só reproduzem,
mas também contribuem para alargar o repertório das militâncias.
Contudo, esse “alargar repertórios de militância” não suprime dilemas
específicos da “condição/identidade evangélica”. No Brasil de hoje, não há

ENTREVISTAS COM LIDERANÇAS E COLETIVOS NAS ELEIÇÕES DE 2020 91


como não lembrar, pelas igrejas evangélicas circulam os mais pobres e mais
discriminados da sociedade. Assim, e não por acaso, entre os entrevistados
também estão presentes as mesmas preocupações de Valéria sobre a
capacidade dos evangélicos progressistas “de falar com os irmãos”. Chegar à
“base evangélica” é uma quimera. Isso não só nas igrejas locais, como também
nas ocupações urbanas, nas redes sociais, nos aplicativos... Nessas buscas,
surgem novas experiências de articulação entre racionalidade e mística.
Os caminhos para articular “condição/identidade religiosa” e militância
política são diferenciados, assim como os níveis de elaboração teológica
são distintos e bastante desiguais. O “ecossocialismo cristão dentro da
espiritualidade progressista” proposto por Ariovaldo Ramos expressa uma
possibilidade que convive com outras formulações talvez menos elaboradas
e mais contextuais. De qualquer forma, o amálgama entre todos são as
referências bíblicas, principal fonte de inspiração e terreno fértil constante (re)
interpretações.
Ao mesmo tempo, em nosso país, olhando hoje para a esfera pública, não
há como não reconhecer uma situação de maior “religiogização da política”.
Vivemos um momento em que o “nome de Deus” frequenta sem cerimônia
o discurso de políticos que se assumem como “de direita”. Em contrapartida,
os atores e movimentos que pudemos conhecer na presente publicação,
combinam categorias seculares e religiosas para se contrapor à perda de direitos
das camadas populares, à intolerância religiosa, ao machismo, às injurias raciais
e discriminações homofóbicas. Nesse sentido, lembrando que as noções de
direita e esquerda, surgidas lá atrás no tempo histórico, só têm sentido como
um par relacional, podemos dizer que as experiências aqui relatadas (com
seus diferentes adjetivos qualificativos) fazem parte do campo da esquerda
(que – como sempre – é feito de controvérsias, de momentos de expansão e
de retração.) Por fim, para concluir, só nos resta reafirmar a importância da
publicação dessas generosas entrevistas.

Referências
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participativa e questões identitárias: os evangélicos como um caso bom para
pensar”. Debates do NER, Porto Alegre, ano 21, nº 39: 137-153.
LEITE LOPES, José Sérgio; HEREDIA, Beatriz. (org.). (2014), Movimentos sociais
e esfera pública. O mundo da participação. Rio de Janeiro: EdUFRJ.
LESBAUPIN, Ivo. (1982), “As cartilhas políticas diocesanas de 1981-1982”.
Comunicações do ISER, ano 1, nº 3: 35-42.
Novaes, Regina. “Os crentes e as eleições (I)”. (1982), Comunicações do ISER –
Religião e eleições, nº 2: 3-10.
NOVAES, Regina; ALVIM, Rosilene. (2014), “Movimentos, redes e novos coletivos
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juventude”. In: J. S. Leite Lopes; B. Heredia (org.). Movimentos sociais e esfera
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SOUZA, Patricia Lanes. (2017), Entre becos e ONGs: etnografia sobre engajamento
militante, favela e juventude. Niterói: Tese de Doutorado – PPGA, UFF.
VITAL DA CUNHA, Christina. “Irmãos contra o Império: evangélicos de esquerda
nas eleições 2020 no Brasil”. Debates do NER, Porto Alegre, ano 21, nº 39: 13-80.

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