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TEOPOÉTICA

Lucas Iglesias
Centro Universitário Adventista de São Paulo
Fundado em 1915 — www.unasp.br

Missão Educar no contexto dos valores bíblicos para um viver pleno e para
a excelência no serviço a Deus e à humanidade.

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pelos seus elevados padrões éticos e pela qualidade pessoal e profissional de seus egressos.

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Imprensa Universitária Adventista

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Editor associado Alysson Huf
Supervisor administrativo Werter Gouveia
Gerente de vendas Francileide Santos
Adriane Ferrari, Gabriel Pilon Galvani,
Editores
Jônathas Sant’Ana e Thamires Mattos
Designers gráficos Felipe Rocha e Kenny Zukowski
Lucas Iglesias
Doutor em Estudos Judaicos pela
TEOPOÉTICA
Universidade de São Paulo

1ª Edição, 2020

Imprensa Universitária Adventista


Engenheiro Coelho, SP
Orientação de estágio 2
Imprensa Universitária Adventista
1ª edição – 2020
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Engenheiro Coelho, SP CEP 13.448-900
Tels.: (19) 3858-5222 / (19) 3858-5221

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Conselho editorial e artístico: Dr. Martin Kuhn, Esp.
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Telson Vargas, Me. Antônio Marcos, Dr. Afonso Cardoso,
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Dados Internacionais da Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Campagnoni, Mariana / dos Santos, Diego Henrique Moreira


Formação da identidade profissional do contador [livro eletrônico] / Mariana Campagnoni. -- 1.
ed. -- Engenheiro Coelho, SP : Unaspress, 2020.

1 Mb, PDF

ISBN 978-85-8463-172-8

1. Carreira profissional 2. Contabilidade 3. Contabilidade como profissão 4. Contabilidade como


profissão - Leis e legislação 5. Formação profissional 6. Negócios I. Título.

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1. Contabilidade : Educação profissional 370.113
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salvo em breves citações, com indicação da fonte.
SUMÁRIO

A BÍBLIA COMO LITERATURA..................................15


VOCÊ ESTÁ AQUI

Introdução.........................................................................................16

A literatura e a Bíblia........................................................................18

A História da análise
literária da Bíblia...............................................................................20

A Bíblia como história.......................................................................34

A narrativa bíblica.............................................................................48

A poesia bíblica.................................................................................61

O poder da Bíblia como literatura....................................................73

A Bíblia e a metáfora........................................................................80

Referências........................................................................................86

A BÍBLIA NA LITERATURA.......................................91
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EMENTA

Estudo das relações e dos contatos


entre a literatura, especialmente a
poesia, e a teologia.
CONHEÇA O CONTEÚDO
Caro(a) estudante,

Bem-vindo(a) ao estudo sobre a Teopoética.


Como você sabe, a Bíblia está entre os maio-
res best-sellers de todos os tempos e é uma
obra clássica da literatura hebraica e cristã.
Seu conhecimento é imprescindível para o
conhecimento das religiões monoteístas, da
Literatura Ocidental e da cultura do Ociden-
te. Ela não se trata de um único livro, mas de
uma antologia de livros.

Apesar de a Bíblia ter muito a falar sobre


o judaísmo, nosso foco de diálogo será o
Cristianismo. Ele é tão importante para o
mundo ocidental que chega quase a confun-
dir-se com ele. É Miguel de Unamuno quem
diz, em Agonia do Cristianismo (1991), que,
se o Cristianismo desaparecer, a civilização
ocidental tende a desaparecer com ele. O
Cristianismo está na base de toda cultura,
de toda a História do Ocidente. Northrop
Frye, na introdução do seu livro Anatomia
da Crítica (2014), afirma que, apesar de a
tipologia bíblica ser uma linguagem morta e
desconhecida até por eruditos, há uma ínti-
ma ligação entre Teologia e Literatura. Isso
porque, para ele, a literatura ocidental tem
sido mais influenciada pela Bíblia do que
por qualquer outro livro.

E é dessa relação entre Teologia/Bíblia/Re-


ligião e Literatura que se trata a Teopoética.
Ela é um campo de conhecimento recente
marcado por modos diversos de leitura li-
terária de textos religiosos e de leitura reli-
giosa de textos literários. O diálogo entre a
literatura e a teologia, ou, mais amplamente,
entre a literatura e o âmbito mais geral dos
estudos sobre religião e sobre o sagrado, é o
foco deste material.

Os estudos que tratam da relação entre


literatura e religião podem ser divididos em
dois eixos de investigação atualmente. O pri-
meiro envolve o estudo da Bíblia como obra
literária, aqui exemplificado pelos traba-
lhos de Robert Alter, Northrop Frye, Frank
Kermode, Jack Miles, Harold Bloom, dentre
outros. Frye, em sua obra Código dos códi-
gos: a bíblia e a literatura (2004, p. 14), diz
que “A abordagem da Bíblia de um ponto de
vista literário não é per si ilegítimo: nenhum
livro poderia ter uma influência literária tão
pertinaz sem possuir, ele próprio, caracterís-
ticas de obra literária”.

No segundo eixo, estuda-se a Bíblia como


fonte da literatura, mesmo no caso de obras
escritas por ateus, como os textos de José
Saramago. Ainda poderíamos destacar dois
subtópicos como ramificações desse segun-
do eixo. O primeiro envolve o estudo do que
foi escrito sobre a religião a partir da crítica
literária, como é o caso de algumas obras de
Octávio Paz. Já o segundo, dedicado à inves-
tigação do papel da literatura como intérpre-
te da religião, tenta responder se a literatura
entra como hermenêutica para a expansão
dos estudos da religião.

É importante lembrar que, por mais que se


tente organizar de maneira sistematizada
essas linhas de estudo, elas estão totalmen-
te interconectadas. No livro O Código dos
códigos, por exemplo, Northrop Frye enfati-
za tanto a ideia da Bíblia como obra literária
quanto a de que ela é a fonte de toda litera-
tura. E isso é óbvio. Não há como se estudar
a influência da Bíblia na literatura universal
sem vislumbrá-la como obra literária.

Desse modo, nosso conteúdo estará divi-


dido em duas unidades. Cada uma delas,
organizada em quatro tópicos. Na primeira
unidade, nosso foco será a análise literária
de textos religiosos – em específico, a Bíblia.
Após uma visão geral da temática da unida-
de, faremos, no primeiro tópico, um breve
histórico da análise literária da Bíblia, desta-
cando seu recente surgimento. Em seguida,
no tópico dois, desenvolveremos a impor-
tância da visualização do texto bíblico como
história, destacando seu caráter não siste-
matizado. No tópico três, examinaremos,
por meio de uma análise literária, as carac-
terísticas distintivas da narrativa e da poesia
bíblica, destacando, assim, a maneira em que
a forma e o conteúdo estão intrinsecamente
relacionados nesse conjunto de livros. Por
fim, no tópico quatro, avaliaremos o poder
da Bíblia como história.

Na segunda unidade, gastaremos tempo


discutindo como a Bíblia, a religião e o
sagrado podem ser detectados na literatura
de forma geral: em textos literários não re-
ligiosos. Após uma visão geral da temática,
no Tópico 1 , vamos discutir sobre a relação
indissociável entre a realidade da palavra e
a noção do sagrado. Na sequência, veremos
como a literatura pode operar como intér-
prete da religião, sendo, em várias ocasiões,
mais fidedigna ao relato bíblico do que a
própria tradição religiosa. No tópico três
vamos examinar a manifestação de lingua-
gens e temáticas bíblicas, ou religiosas, na
literatura. Por fim, no tópico quatro, dedi-
caremos todo nosso tempo a explorar como
a religiosidade pode se manifestar na obra
de um dos maiores escritores brasileiros,
João Guimarães Rosa.

Bons estudos!
UNIDADE 1

A BÍBLIA COMO LITERATURA


OBJETIVO

- Reconhecer a importância da Bíblia como literatura;


- Identificar os benefícios de uma análise literária do texto
bíblico;
TEOPOÉTICA

INTRODUÇÃO
Em nossa primeira unidade, trataremos da primeira
vertente da Teopoética que envolve o estudo da Bíblia como
Literatura. Estudar a Bíblia como literatura requer do leitor, nas
palavras de Robert Alter (1992, p. 23), atenção refinada para
suas articulações literárias formais e humildade intelectual.

A literatura bíblica é legível porque, em muitas de suas


convenções, estratégias de organização e recursos literários
formais, há um enorme parentesco com as outras literaturas que
lemos habitualmente. Por outro lado, devem ser respeitadas as
peculiaridades de suas características literárias.

O objetivo central desta unidade é que você possa


reconhecer a importância do estudo literário do texto
bíblico. Além disso, outro objetivo é que você seja
capacitado, de maneira introdutória a identificar as
características básicas da Bíblia como obra literária tanto em
relação às suas porções narrativas como poéticas. Por fim,
objetivamos que você possa reconhecer o poder da Bíblia
como literatura.

A afirmação de que a Bíblia é uma obra literária é


aparentemente uma unanimidade entre os estudiosos da

16
A Bíblia como Literatura

Bíblia. Contudo, o engajamento literário no estudo da Bíblia


de forma mais enfática não somente é pouco explorado,
como também é enxergado com suspeita.

Alguns observam que leituras literárias são baseadas em


pressuposições que confrontam os conceitos religiosos de
Escritura. De fato, isso é verdade. Contudo, o mesmo pode ser
dito de vários pressupostos históricos e teológicos.

Se é possível, para estudiosos, empregar pressupostos


históricos e teológicos de maneira apropriada no exame das
Escrituras, também parece ser possível o de pressupostos
literários apropriados. Portanto, esperamos que ao fim
desta unidade você:

• reconheça a importância do estudo


literário do texto bíblico;

• sinta-se capacitado, de maneira introdutória,


a identificar as características básicas da
Bíblia como obra literária, tanto em relação
às suas porções narrativas como poéticas;

• reconheça o poder da Bíblia como literatura.

17
TEOPOÉTICA

A LITERATURA E A BÍBLIA
No texto bíblico, vemos Deus se comunicando de diversas
maneiras: por meio de poesias, de narrativas, de parábolas,
de músicas, de imagens, de ações simbólicas, dentre outras
(BARTON, 2010). O fato de Deus se revelar a algum escritor
bíblico, não faz com que suas características pessoais e opções
linguísticas sejam anuladas.

Encontramos, na Bíblia, livros de cânticos (Salmos), visões


com imagens impactantes (isso pode ser claramente visto,
por exemplo, no início do livro de Ezequiel, como também
em Daniel e em Apocalipse), e uma espécie de teatro de rua
(os livros de Isaías, Jeremias e Ezequiel são recheados destas
chamadas, ações simbólicas [Is 12; Jr 13, 27, 28; Ez 4]), executado
por profetas com o intuito de fazer com que o povo fosse
impactado pela mensagem divina, se arrependensse e, assim,
voltasse ao seu Deus (SWEENEY, 2005, p. 34-36).

Tanto nos poemas bíblicos como nas narrativas, vemos


diversas figuras de linguagem, metáforas, métricas e estruturações.
Percebemos ironia, humor, sarcasmo e outros recursos diversos, que
produzem um efeito retórico impactante em qualquer ouvinte ou
leitor. Afinal de contas, a Bíblia é mais do que simples literatura, mas
não menos que isso. No livro God in search of man, Heschel afirma:

18
A Bíblia como Literatura

Algumas pessoas podem perguntar: Por que a luz de Deus foi


oferecida em forma de linguagem? Como é concebível que o
divino esteja contido em vasos tão frágeis como consoantes
e vogais? Essa pergunta revela o pecado de nossa era: tratar
de forma superficial o meio que transporta as ondas de luz
do Espírito. O que mais no mundo é capaz de unir os homens
através das distâncias do tempo e do espaço? De todas as coisas
terrestres, as palavras são as que nunca morrem (1955, p. 44).

Tal variedade embeleza o texto bíblico com uma riqueza


de estilos e, ao mesmo tempo, quebra nossa tendência de
demonizar tipos específicos de linguagem. No dia a dia, nem
sempre as palavras de Deus são prefaciadas com “assim
diz o Senhor”. Há ocasiões em que algum tipo específico de
abordagem, a que talvez consideremos como possuindo a
linguagem perfeita, pode não honrar nem a Deus nem ao
próximo.

Se acreditamos que Deus é uma figura que está além da


razão e que não tem um “dono” específico, nós o tiramos das
mãos do poder, tanto religioso como político-econômico, e
o colocamos na rua para que todos possam ter acesso a ele,
podendo amá-lo ou odiá-lo, segundo a sua vontade e não
segundo qualquer tradição, religiosa ou não. Permita-se, através
dos estudos literários, olhar tanto para a religião como para a
literatura de uma maneira diferente.

19
TEOPOÉTICA

MATERIAL COMPLEMENTAR

Além de ser a Palavra de Deus, a Bíblia também é uma li-


teratura. Assista ao episódo “A Bíblia como Literatura”, do
programa Teologos, para entender a importância de se
considerar as Escrituras como literatura, as implicações
disso, o que compreender a Bíblia dessa forma nos acres-
centa, e muitos outros temas relacionado a esse estudo.

Disponível em: <https://bit.ly/33fzF7P >. Acesso em: 10 set. 2020.

A HISTÓRIA DA ANÁLISE
LITERÁRIA DA BÍBLIA
A preocupação com os aspectos literários da Bíblia não
é uma empreitada recente. Rabinos e estudiosos da Bíblia,
desde os primeiros séculos da nossa era, têm se debruçado
em examinar minúcias textuais associadas às palavras,
às estruturas e às nuances linguísticas do texto bíblico
(TRIBLE, 1994, p. 13-21). Na virada da era comum, por
exemplo, o filósofo judeu Fílon de Alexandria reivindicava
que Moisés tinha obtido o conhecimento da métrica, do
ritmo e da harmonia da escrita grega, com os egípcios.
Recursos utilizados, segundo ele, para a composição da
poesia hebraica.

20
A Bíblia como Literatura

SAIBA MAIS

Fílon de Alexandria foi um judeu que vivia na Diáspora


e buscou conciliar a filosofia grega ao Judaísmo. Para sa-
ber mais sobre esse filósofo judeu assista a palestra do
professor Carlos Nougué.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=GVLrS0imTqc>.
Acesso em: 09 set. 2020.
Fílon de Alexandria (20 a.C. – 50 d.C.)

Fonte: Wikimedia Commons (https://bit.ly/2GKpzUW)

Contudo, como veremos mais à frente, a natureza do texto


bíblico é não sistematizada. Isso significa que o texto nem é
organizado por tópicos e estilos distintos, nem categorizado
por meio de seus diversos temas ou gêneros literários. Desse
modo, não é porque grande parte das categorias literárias foram
organizadas pelos gregos, que o texto hebraico foi influenciado
por eles. Aos estudarmos o texto bíblico, notamos que o fenômeno

21
TEOPOÉTICA

literário, quase sempre, antecede sua categorização. Não é porque,


na Grécia, surgem os conceitos e os termos, que a ironia não existe
no texto bíblico ou que ele foi influenciado pelos gregos.

SAIBA MAIS

Tradicionalmente, a palavra ironia, do grego ei-


ronēia [εἰρωνεία], é uma abstração do termo em-
pregado para designar um dos personagens da co-
média grega antiga. A comédia apresenta o conflito
entre allazōn e eirōn. Allazōn pode ser identificado
como o “impostor”, e eirōn como o “homem irônico”.
Enquanto allazōn é o tolo pomposo, o fingidor que
busca aparentar mais do que realmente é, eirōn é o
dissimulador astuto, aquele que se apresenta como
menos do que realmente é. Assim, a comédia nas-
ceria tanto do fato de o espectador saber qual dos
personagens é o impostor quanto de poder assistir
à sua exposição por meio das maquinações do ho-
mem irônico.

Nas páginas iniciais de Irony in the Old Testament, Good


(1981, p. 13, grifo nosso) afirma que a “Ironia, tal qual amor,
é mais facilmente reconhecida do que definida”. A ironia é
habitualmente definida como: dizer algo contrário ao que é
intencionado ou denotado. Muecke, em seu livro Irony and the
ironic (1982, p. 7), acrescenta que o termo “ironia” não significa

22
A Bíblia como Literatura

hoje o que significava em séculos anteriores;


tampouco significa, em um país, tudo que
pode significar em outro. Não significa,
na linguagem coloquial, o que pode
significar na linguagem acadêmica, ou,
para um estudioso, o que pode significar
para outro. Do ponto de vista do autor, o
conceito de ironia é o resultado acumulativo
de se ter, de tempos em tempos, durante Aos estudarmos
séculos, aplicado o termo – algumas o texto bíblico
vezes intuitivamente e outras de forma notamos que
deliberada – a um fenômeno que carregasse o fenômeno
semelhança a outro fenômeno ao qual literário,
já tenha sido aplicado o termo. Muecke quase sempre,
(1982, p. 14-15) apresenta uma situação na
antecede sua
qual não há possibilidade de se hesitar na
categorização
identificação da ironia em Homero.

Na Odisseia, Ulisses retorna a Ítaca


e, disfarçado de pedinte, sentado em seu
próprio palácio, ouve os pretendentes
de sua esposa o ridicularizarem pelo
fato de que ele (Ulisses) jamais poderia
retornar a sua casa. Independentemente
da existência ou não do termo “ironia” no

23
TEOPOÉTICA

período da composição da obra, nota-se, aqui, um fenômeno


literário comum a qualquer texto: personagens que são vítimas
da própria ignorância. Os personagens de Homero negam
a possibilidade do que, na verdade, já aconteceu. Eles não
percebem que, diante de seus olhos, está a contradição de suas
próprias palavras. Não importa a época nem o lugar, o efeito
desse recurso no leitor é sempre o mesmo.

SAIBA MAIS

A Odisseia é, depois da Ilíada, o principal texto que


foi reunido sob o nome de Homero na cultura gre-
ga. Vem do nome do seu personagem principal,
Odisseu – ou, como ficou conhecido pela tradução
latina, Ulisses (ver: https://bit.ly/3ilpIfy). Homero foi
o primeiro grande poeta grego, e teria vivido há cer-
ca de 3500 anos. Consagrou o género épico com as
suas grandiosas obras: a Ilíada e a Odisseia. Nada se
sabe seguramente da sua existência; mas a crítica
moderna inclina-se a crer que ele terá vivido no sé-
culo VIII a.C., embora sem poder indicar onde nas-
ceu nem confirmar a sua pobreza, sua cegueira e o
seu afã de viajante, caracteres que tradicionalmen-
te lhe têm sido atribuídos. A sua atividade literária
baseia-se nas tradições orais, transmitidas de gera-
ção em geração, sobre as expedições gregas a Tróia

24
A Bíblia como Literatura

(no Noroeste da Ásia Menor). Veja alguns sites para


informações adicionais sobre Homero:
• InfoEscola. Disponível em: <https://bit.ly/2FkCoEM>.
Acesso em: 09 set. 2020;
• Wikipedia. Disponível em: <https://bit.ly/2Ffbf6f>.
Acesso em: 09 set. 2020;
• Só História. Disponível em: < https://bit.ly/35jg-
qgg>. Acesso em: 09 set. 2020.

Ainda na Odisseia, outro exemplo pode ser encontrado. No


canto XXI (HOMERO, 2011, p. 393-400):

Este estava já a manejar o arco, dando-lhe voltas, examinando


cada coisa, com medo de que o caruncho tivesse carcomido
o chifre na sua ausência. E assim dizia um dos pretendentes,
olhando para o vizinho: “O homem deve ser conhecedor
ou mercador de arcos. Ou ele próprio tem tais arcos em sua
casa, ou então quer fazer um igual, e por isso anda com ele às
voltas: que vagabundo mais experiente de coisas danadas!”

Aqui, Ulisses, ainda sem ter sua identidade revelada,


ouve, de um dos pretendentes, uma espécie de zombaria,
diante do fato de ele manejar o arco criteriosamente –
habilidade envolvida no desafio proposto aos candidatos
pretendentes. Os pretendentes, ignorantes quanto ao que

25
TEOPOÉTICA

realmente está acontecendo diante


de seus próprios olhos, proferem um
discurso saturado de ironia.

Para Muecke (1982, p. 14-15), esses


exemplos antigos de ironia situacional
e verbal apontam para o fato de que a
ironia, antes de tudo, envolve tanto algo
que se vê e a que se responde quanto
algo que se pratica. Assim, o fenômeno
da ironia deveria ser distinguido,
segundo ele, tanto do termo ‘ironia’
quanto do conceito de ironia. Muecke
Ulisses e os pretendentes
(1982, p. 15) conclui:
Fonte: Wikimedia Commons (https://bit.
ly/2F4ShPX)

Se Homero tivesse uma palavra para


o escárnio dos pretendentes não
seria ‘sarkasmos’ nem ‘eironeia’;
a primeira não adquiriu seu
significado moderno até muito tarde,
e a última não significava ironia
verbal até o tempo de Aristóteles.

Além disso, embora a ironia dos


pretendentes, na presença de Ulisses
– ao afirmar que ele não retornaria ao

26
A Bíblia como Literatura

seu palácio –, tenha sido considerada a


ironia-padrão do drama desde Ésquilo
aos dias atuais, ninguém a cognominou COGNOMINOU

“ironia” até o século 18 (MUECKE, Segundo o dicionário on-line


1982, p. 15). Assim, embora as Dicio, “cognominou” significa é
“O mesmo que: alcunhou, apeli-
categorizações literárias existam como dou, denominou, intitulou”.
conceito cronologicamente posteriores
Fonte: <https://bit.ly/3b-
ao texto bíblico, encontramos na Bíblia Gbkf8>. Acesso em: 09 set.
diversos recursos atestados por meio de 2020.
padrões internos do próprio texto.

IMPORTANTE

Os fenômenos literários precedem qualquer tipo de


conceituação ou criação de termos. A inferência de que o
texto foi influenciado pelos gregos pelo simples fato de-
les terem cunhado os termos é um perigo anacrônico na
interpretação. O anacronismo, ou anticronismo, consiste,
basicamente, em utilizar os conceitos e ideias de uma
época para analisar os fatos de outro tempo. Em outras
palavras, o anacronismo é uma forma equivocada pela
qual tentamos avaliar um determinado tempo histórico à
luz de valores que não pertencem a ele. Por mais que isso
pareça um erro banal ou facilmente perceptível, devemos
estar atentos a como o anacronismo interfere em nosso
estudo da História, da Religião e da Literatura.

27
TEOPOÉTICA

Como metodologia acadêmica, a análise literária da Bíblia


é algo recente. A disciplina de estudo literário da Bíblia data
da segunda metade do século 20. Inicialmente os estudos
literários da Bíblia envolviam duas vertentes (ambas tendo
o AT como ponto de partida). A primeira era o da literatura
comparada: palavras temas e estilos de épicos Mesopotâmicos,
como o Enuma Elish, eram comparados aos relatos bíblicos,
identificando-se semelhanças e diferenças entre ambos. A outra
vertente era a da crítica retórica: aqui destaca-se o trabalho
feito por James Muilenburg, estudioso do AT, valorizando as
características estilísticas, estéticas e artísticas do texto.

SAIBA MAIS

O Enûma Eliš é o mito de criação babilônico. Foi desco-


berto por Austen Henry Layard em 1849 (em forma frag-
mentada), nas ruínas da Biblioteca de Assurbanípal, em
Nínive (Mossul, Iraque), e publicado por George Smith
em 1876. Ele tem cerca de mil linhas escritas em babilô-
nico antigo sobre sete tábuas de argila, cada uma com
cerca de 115 a 170 linhas de texto. A maior parte do Ta-
blete V nunca foi recuperado, mas, com exceção desta
lacuna, o texto está quase completo. Uma cópia dupli-
cada do Tablete V foi encontrada em Sultantepe, antiga
Huzirina, localizada perto da moderna cidade de Şan-
lıurfa, na Turquia.

28
A Bíblia como Literatura

Este épico é uma das fontes mais importantes para a


compreensão da cosmovisão babilônica, centrada na
supremacia de Marduque e na criação da humanidade
para o serviço dos deuses. Seu principal propósito ori-
ginal, no entanto, não é uma exposição de teologia ou
teogonia, mas a elevação de Marduque, o deus chefe
da Babilônia, acima de outros deuses da Mesopotâmia.
O Enûma Eliš possui várias cópias na Babilônia e na Assí-
ria. A versão da Biblioteca de Assurbanípal data do sécu-
lo VII a.C. A composição do texto, provavelmente remon-
ta a Idade do Bronze, nos tempos de Hamurabi, ou talvez
ao início da era cassita (cerca de século XVIII a XVI a.C.),
embora alguns estudiosos favoreçam uma data poste-
rior a 1100 a.C. Dadas as suas enormes semelhanças com
a narração bíblica do Gênesis, várias discussões têm sur-
gido sobre qual das histórias é a original e qual é uma
adaptação à religião em causa. Para a cultura babilónica,
o Enuma Elish explica a origem do poder real, a sua natu-
reza, a permanência da instituição e a sua legitimidade.
A realeza humana e a terrena têm a sua origem na reale-
za divina. A divindade continuará a ser o verdadeiro rei e
o modelo a ser imitado pelo rei terreno. A existência de
um modelo divino impõe limites à realeza humana.
Disponível em: <https://bit.ly/2RcD3up>. Acesso em: 09 set. 2020;

Apesar da publicação inaugural de Roberth Lowth


(professor da Universidade de Oxford), em 1753, sobre a
poesia hebraica-bíblica, pode-se dizer que, mais uma vez,
como metodologia acadêmica, os estudos das porções em
prosa do AT foram precursores para a análise literária

29
TEOPOÉTICA

bíblica. Uma das obras que mais impulsionou o início dessa


linha de estudo foi a de Vladimir Propp, Morphology of the
Folktale, onde ele aplica abordagens associadas ao estudo
do enredo ao texto bíblico. Além disso, autores como Erich
Auerbach, Robert Alter, Frank Kermode, Meir Sternberg e
Northrop Frye também merecem destaque.

A nível de exemplo, Auerbach, no capítulo intitulado


“A cicatriz de Ulisses” (parte da sua obra Mimesis),
compara o estilo homérico de narrativa ao bíblico. Auerbach
observa que, no estilo homérico de narrar, nada é deixado
na penumbra ou inacabado. Por outro lado, o modelo de
narrativa bíblico é permeado de lacunas. Ao passo que, no
estilo homérico, todos os processos psicológicos são dados
a conhecer ao leitor (em muitos momentos, os personagens
falam para si o que não falam aos outros), no texto bíblico,
quase nunca, há esse tipo de informação.

Em Gênesis 22, por exemplo, não temos acesso aos


pensamentos de Abraão e de Isaque – tanto na viagem de três
dias como na subida ao monte, só há silêncio. Na narrativa,
não há indicação do lugar onde estão os interlocutores. A
resposta “Eis-me aqui” (Gn 22:1) está associada a um lugar
moral em relação ao chamado, não a um lugar específico
em que Abraão estava localizado. Os servos, o burro, a

30
A Bíblia como Literatura

faca, a lenha, tudo é descrito sem


epítetos. Segundo Auerbach (2013, EPÍTETOS

p. 9), no texto de Gênesis “[...] só é De acordo com o site Signifiica-


acabado formalmente aquilo que nas dos, “Epíteto significa acrescido,
posto ao lado. [...] é uma ex-
manifestações interessa à meta da ação; pressão que, associado ao subs-
o restante fica na escuridão”. O que tantivo, o qualifica como uma
acontece entre os pontos decisivos para a alcunha, um apelido ornamen-
tando o nome e o distinguindo. O
ação é inconsistente. Tempo e espaço são epíteto aparece logo após o nome
indefinidos e precisam de interpretação. da divindade, de personagens da
A consciência e os afetos dos personagens história, como monarcas, santos,
militares, entre outros.”
são sugeridos pelo silêncio e pelo
Fonte: <https://bit.ly/3k1Z77p>.
discurso fragmentário. Acesso em: 09 set. 2020.

Em seu comentário sobre a


multiplicidade de camadas dos
personagens, Auerbach (2013, p. 10, 17)
ressalta, ainda, que tal peculiaridade de
omissões constitui um artifício dos autores
da Bíblia Hebraica (BH), mas não um
exemplar mais rudimentar de narrativa:

O mais importante, contudo, é a


multiplicidade de camadas dentro
de cada homem; isto é dificilmente
encontrável em Homero, quando

31
TEOPOÉTICA

muito na forma da dúvida consciente entre dois possíveis


modos de agir; em tudo o mais, a multiplicidade da vida
psíquica mostra-se nele só na sucessão, no revezamento
das paixões; enquanto que os autores judeus conseguem
exprimir camadas simultaneamente sobrepostas da
consciência e o conflito entre as mesmas. [...] Abraão, Jacó
ou até Moisés têm um efeito mais concreto próximo e
histórico do que as figuras do mundo homérico, não por
estarem melhor descritos plasticamente – pelo contrário
– mas porque a variedade confusa e contraditória, rica
em inibições dos acontecimentos internos e externos que
a história autêntica mostra não está desbotada na sua
representação, mas está ainda nitidamente conservada.

Esse início da metodologia literária vinculado às porções


narrativas do AT se deu, muito provavelmente, por conta do
sucesso dos estudos em Narratologia no fim do século 20.
Posteriormente, estudos literários associados à poesia bíblica
foram ganhando proeminência.

SAIBA MAIS

A Narratologia é o estudo das narrativas de ficção e não-


-ficção (como a História e a reportagem) por meio de
suas estruturas e elementos. É um campo de estudos
particularmente útil para a dramaturgia e o roteiro de

32
A Bíblia como Literatura

audiovisual (cinema, quadrinhos, jogos digitais e TV). Foi


consolidada como ciência por pesquisadores franceses
(como Roland Barthes e Gérard Genette) e pela chama-
da Escola Formalista Russa, de A.J. Greimas, Vladimir Pro-
pp e outros. Outro notório estudioso da narratologia é o
italiano Umberto Eco. O termo foi proposto no início do
século XX por Tzvetan Todorov, para diferenciá-la como
campo de estudo dentro da teoria literária. Você pode
encontrar mais informações sobre esse campo de estu-
do nos sites abaixo:
• Wikipedia. Disponível em: <https://bit.ly/3igfRYg>.
Acesso em: 09 set. 2020;
• InfoEscola. Disponível em: <https://bit.ly/3bGkxUK>.
Acesso em: 09 set. 2020;

Concluindo, a análise literária da Bíblia como metodologia


acadêmica é um fenômeno recente. Vale observar que não há
uma abordagem literária, mas várias, que mudam de acordo com
o desenvolvimento do campo da crítica literária. Ao se falar de
análise literária da Bíblia hoje, é comum ignorar-se o estudo do
texto como documento histórico. Obviamente isso não quer dizer
que aquele que estuda os aspectos literários da Bíblia considera
que suas histórias não são verídicas e fidedignas.

A preocupação da análise literária repousa, antes


de tudo, no texto em sua forma final. Nela, os textos
são analisados primariamente a partir de suas próprias

33
TEOPOÉTICA

palavras, frases, imagens, sentenças, estruturas. Desse


modo, é dada prioridade às qualidades literárias intrínsecas
da obra em si.

MATERIAL COMPLEMENTAR

Aprenda mais sobre como a Bíblia tem sido vista pela crítica
literária atualmente, por meio do artigo “A Bíblia na Crítica Lite-
rária Recente”, de Antonio Carlos de Melo Magalhães.

A BÍBLIA COMO HISTÓRIA


A palavra Bíblia significa, literalmente, “livros”. Um
aspecto curioso é que esse conjunto de livros, chamado
“Livros”, também está cheio de referências a livros: em
Deuteronômio lemos que Moisés escreveu um cântico e o livro
da lei; em Jeremias há o livro (rolo), contendo palavras de
Jeremias, que é destruído pelo rei de Judá; temos o livro que
Ezequiel deve comer; em Daniel vemos livros abertos diante do
trono do Ancião de dias; em Apocalipse há o livro que é doce e
amargo; existe o livro das bênçãos e maldições, citado também
por Daniel em sua oração etc.

34
A Bíblia como Literatura

SAIBA MAIS

A Bíblia (do grego βιβλία, plural de βιβλίον, transl. bí-


blion, “rolo” ou “livro”, diminutivo de “byblos”, “papiro
egípcio”, provavelmente do nome da cidade de onde
esse material era exportado para a Grécia, Biblos, atual
Jbeil, no Líbano) é uma coleção de textos religiosos de
valor sagrado para o cristianismo.

Há também uma série de ordens para que coisas sejam


escritas, e mesmo menções de algo sendo escrito: Moisés
escreveu os mandamentos (na segunda vez); Baruque escrevia
o que Jeremias ditava; o rei Davi escreveu uma carta que acaba
por levar Urias à morte; há uma mão misteriosa escrevendo em
uma parede no livro de Daniel; o profeta Daniel diz ter escrito
exatamente o que viu em visão; Jesus escreve no chão ao ser
testado no episódio da mulher adúltera; o próprio Deus aparece
escrevendo em pedra, em Êxodo.

Fora isso, há os diversos textos em que livros são lidos


diante do povo (que os escuta) como em Êxodo, Josué, Reis, etc.
Claramente a ideia da palavra escrita é importante na Bíblia.
Deuteronômio 28:58-59 alerta que a leitura do livro é o que os
manteria longe da apostasia e manteria a aliança. Obviamente,
não só a leitura, mas a ação decorrente dessa leitura – o livro

35
TEOPOÉTICA

é o que manteria Israel a salvo. Lê-


lo e praticar o que está escrito seria a
segurança do povo de Deus.

Após a apostasia anunciada por


Moisés se cumprir, séculos depois, o
povo sofreu no cativeiro por 70 anos.
Algum tempo depois de retornar e se
reestabelecer na terra, reuniram-se e
pediram que Esdras trouxesse o “Livro
da Lei de Moisés” (Neemias 8:1) e o lesse
para eles. A leitura começou cedo pela
manhã e foi até o meio-dia. E diz o texto: Na Bíblia, há uma série
“E os ouvidos de todas as pessoas estavam de ordens para que coisas
sejam escritas
atentos ao Livro da Lei” (Neemias 8:3). O
Fonte: Shutterstock: (https://shutr.bz/3ifFfNz)
contexto todo é impressionante. Esdras
apresenta o Livro às pessoas, estando
em uma plataforma de madeira. Ao abri-
lo, as pessoas se levantam. Esdras louva
o nome de Deus. O povo levanta suas
mãos aos céus dizendo “Amém, Amém”
e, então, todos eles se curvam com rosto
em terra bendizendo o nome de Deus
(Neemias 8:4-6). Obviamente eles não
adoravam o Livro, mas o Deus revelado

36
A Bíblia como Literatura

no livro. E Suas palavras foram escritas não só para que o povo


obedecesse, mas para que lembrasse de todos os Seus feitos!

Esdras lia o livro, e ele e os levitas ajudavam o povo a


entender o que estava escrito. Um sermão simples: leitura do
Livro e explicação dele. O que impacta nessa situação específica
é o valor dado ao Livro – sua leitura em público, as explicações,
a ação resultante. A Bíblia, Livro de livros, Livro dos livros,
é a maneira pela qual Deus escolheu se revelar ao Seu povo
ao longo dos tempos. A centralidade do Livro na existência
do povo é ratificada nesse episódio com Esdras, mas está
presente ao longo de toda a Bíblia, não só no chamado Antigo
Testamento, mas no Novo Testamento também.

MATERIAL COMPLEMENTAR

Para se aprofundar no estudo da relação entre a comunidade


judaica e a Bíblia, leia os livros Os judeus e as palavras, de Amós
Oz e Fania Oz-Salzberger (São Paulo: Companhia das letras,
2015), e The jews and the Bible, de Jean-Christophe Attias (Stan-
dford, CA: Standford University Press, 2015).

É notável que cada vez mais se tem priorizado uma linguagem


de distinção e rigor no ambiente religioso. As palavras são usadas
de maneira impessoal para mera informação e definição, afastando
cada vez mais a todos do teor pessoal do texto bíblico.

37
TEOPOÉTICA

Por exemplo, nada mais pessoal do


que usarmos a linguagem no dia a dia
para contarmos histórias. Do ponto de
vista da linguagem, os seres humanos são
histórias. Curiosamente o texto bíblico
não apresenta suas verdades através
de conceitos abstratos enumerados e
organizados de forma sistematizada. A Bíblia faz
Pelo contrário, a maneira de Deus uso de todo
comunicar suas verdades ocorre por meio um arsenal de
de histórias, narrativas; a essência da recursos da
linguagem humana. arte narrativa:
enredo,
A narrativa é a forma predominante caracterização,
de exposição de ideias na BH
repetição,
(TURNER, 2017). A Bíblia tem uma
descrição física,
história a contar, e, para contá-la
dentre outros.
adequadamente, faz uso de todo um
arsenal de recursos da arte narrativa:
enredo, caracterização, repetição,
descrição física, dentre outros. A
forma discursiva predominante
empregada para transmitir questões
de suprema importância no antigo
Israel e no judaísmo do primeiro

38
A Bíblia como Literatura

século era justamente a narrativa. Foi


precisamente isso que o próprio Cristo
fez em Suas parábolas, simplesmente
dando continuidade à tradição já
estabelecida na BH, que explorava o
poder das histórias.

Este é o tipo de Bíblia que Deus


achou por bem nos dar. Se quisermos Se quisermos
ser coerentes com ela Bíblia, portanto, ser coerentes
precisamos lê-la de tal forma que se faça com a Bíblia,
justiça as suas histórias. Como Turner precisamos lê-
(2017) afirma, ao invés de apresentar um la de tal forma
compêndio com uma série de doutrinas que se faça
descritas de maneira abstrata, quando
justiça as suas
Cristo quis ensinar algo sobre salvação,
histórias.
ele disse: “Certo homem tinha dois
filhos […]” (Lc 15:11). E, como vemos,
por meio desse recurso, diferentemente
da abstração doutrinária que apenas
muito dificilmente se pode reproduzir
mentalmente, qualquer pessoa consegue
repetir a narrativa contada por Jesus
depois de ouvi-la apenas uma vez, não
importa seu nível social ou cultural.

39
TEOPOÉTICA

AGORA É COM VOCÊ

Considerando que a Bíblia não é um compêndio doutrinário organizado de


maneira sistematizada, pense nas histórias bíblicas que melhor serviriam
para abordar temas como: graça, amor, ira, justiça. Além disso, te desafio
a apresentar alguma doutrina criando uma história. Imagine um livro
doutrinário romanceado. Como poderiam ser suas histórias? As histórias
expandiriam o envolvimento das pessoas com os conceitos? Para conferir
um exemplo de histórias a partir de conceitos, sugiro que você assista à série
de dez episódios O Decálogo, produzida pelo cineasta polonês Krzysztof
Kieślowski (1941-1996). Neles, Kieślowski desenvolve os conceitos que
permeiam os Dez mandamentos por meio de 10 instigantes histórias.

De acordo com Berlin (1994, p. 11), ironicamente, embora


contar histórias seja tão importante na tradição bíblica, não há,
na BH, uma palavra para história. Vemos palavras para cânticos,
oráculos, hinos e parábolas. Contudo, não há uma para descrever
a narrativa per se. Ainda assim, no texto bíblico, temos abundância
de narrativas. Narrativas vibrantes e vívidas que causam um
impacto e mexem com todos os ouvintes e leitores, e importantes,
principalmente devido à sua dinâmica interna de envolvimento.

As narrativas são importantes, porque nós representamos


nossa identidade através da sua linguagem. Esta é a melhor
ferramenta que temos para capturar a riqueza e até as contradições
das interações humanas. Ser humano envolve contar e interpretar

40
A Bíblia como Literatura

histórias, enxergar nossas histórias como parte de histórias


maiores. As narrativas provocam a imaginação daquele que
as ouve e as lê. Na narrativa, há identificação (ALTER, 2011,
p. 79-111). O leitor/ouvinte se coloca no lugar de algum dos
personagens e se envolve com a história em níveis profundos.

No The Oxford Handbook of Biblical Narrative, Fewell (2016,


p.7) observa que estudos neurológicos recentes (baseados
nos estudos dos neurocientistas Giacomo Rizolatti e V. S.
Ramachandran) têm mostrado que a exposição a novas
histórias produz ramificações psicológicas: nosso cérebro
apresenta níveis e padrões de atividade similar àqueles
exibidos durante nossas experiências físicas, corpóreas.
Histórias lidas, ouvidas ou contadas criam sendas mentais que
se tornam parte de nossa composição psicológica. Resumindo,
histórias provocam mudanças neurológicas que alteram
nossa maneira de pensar, expandem nosso intelecto e nossas
capacidades emocionais.

Recordar uma história é recordar sua própria identidade.


O texto de Deuteronômio 26:1-11 é uma prova clara disso.
Aquele que trazia as primícias da colheita ao Santuário
recordava do que Deus havia feito aos seus antepassados por
meio de uma afirmação: “Hoje declaro ao Senhor teu Deus
que entrei na terra que o SENHOR com juramento prometeu

41
TEOPOÉTICA

a nossos pais que nos daria.” (v. 2)


Mesmo se a pessoa tivesse nascido já na
terra que Deus havia prometido (v. 1),
sempre, naquela festa, deveria ser dito:
“Hoje declaro […] que entrei na terra.”
(v. 3). Contar uma história é lembrar de
onde venho e quem eu sou. A verdade
sobre as histórias é que elas envolvem
tudo o que somos.

Enxergar a si mesmo como parte


de uma história maior, anterior, é
fundamental para religião bíblica. De
certo modo, biblicamente acreditar
é lembrar. Na tradição judaica se
comemora a festa de Pessach (a PESSACH

Páscoa cristã). Antes dessa data estar “Pessach” (do hebraico ‫פסח‬, que
relacionada à memória da morte de significa passar por cima ou pas-
sar por alto) é a “Páscoa judaica”,
Jesus Cristo, a Páscoa estava ligada à também conhecida como “Festa
recordação da libertação do povo de da Libertação” Nela se celebra a
Israel quando cativos no Egito. Assim, libertação dos hebreus da escra-
vidão, no Egito, em 14 de Nissan
na festa judaica da Páscoa, segue- do ano 1446 a.C.
se uma liturgia chamada Hagadá de
Pessach. Hagadá, em hebraico, significa
“contação” ou “narrativa”.

42
A Bíblia como Literatura

O livro que organiza a cerimônia da


noite da Páscoa é o que narra a saída do
povo de Israel do Egito, recordando aos
presentes a importância dessa história. Na
Hagadá, constata-se que quatro vezes, é
ordenado no livro de Êxodo, que um pai
conte aos filhos a história da libertação.
Por que quatro? Na tradição judaica, é
dito que são contadas quatro vezes pois
nenhum filho é igual ao outro. Assim,
temos quatro modelos paradigmáticos de
filhos: (1) o sábio; (2) o ingênuo; (3) o que
não sabe perguntar; (4) o perverso.
Hagadá de Pessach (séc
O sábio é aquele que deseja conhecer XIV d.C.)
a história de seus ancestrais. Por isso, o pai Fonte: Wikimedia Commons (https://bit.
ly/3k7TQez)
deve contar a história da libertação do Egito.
O filho ingênuo é aquele que pergunta:
“O que é isso?”. Ele vê algo de especial em
toda aquela liturgia didática permeada
de significados, mas não a compreende.
Por isso, o pai deve contar a história da
libertação de uma maneira simples, para
que ele possa compreendê-la. Ao filho
que nem sabe perguntar, também deve

43
TEOPOÉTICA

ser contada a história. Afinal como ele faria para conhecê-la? Por
fim, o filho perverso é aquele que vê toda a cerimônia e pergunta:
“Qual é o significado disso para vocês?”. O perverso se desconecta
de seus ancestrais, se exclui da comunidade. Consequentemente,
ele se sente como não fazendo parte dessa história. Perversidade é
sinônimo de exclusão da história antepassada. Nós somos feitos de
histórias, vividas por nós, ou não.

Provavelmente nossa cultura de tweets alimenta uma falsa


percepção da Bíblia. Imaginamos um livro de frases aleatórias
que servem para responder perguntas objetivas que temos
em relação à religião. Empregamos textos fora do contexto,
proporcionando um testemunho relativo quanto aos seus livros.

Como história, a Bíblia é poderosa por nos envolver. Não


sei se você já assistiu a um filme sobre um livro que já tenha
lido. Se eu te perguntar qual dos dois você preferiu, o livro ou
o filme, a resposta, quase sempre, será unânime: o livro. Por
que preferimos o livro ao filme? Simples. O livro nos envolve
de uma maneira diferente. Essa diferença está associada a
um elemento básico: a interpretação. Ao assistirmos o filme,
encontramos a interpretação de outros sobre um personagem,
um evento ou uma fala. No caso do livro, nos envolvemos com
a história ao imaginá-la. Assim, como um conjunto de histórias
a Bíblia não só nos envolve de uma maneira completamente

44
A Bíblia como Literatura

diferente com um grupo de conceitos,


mas também nos inflama a imaginação. É
muito mais fácil recordar de uma história
do que de uma doutrina.

Outra característica de destaque


associada ao poder da Bíblia como
O leitor, ao
história envolve seu caráter não
estudar o
sistematizado. Apesar de Gênesis relatar
texto bíblico,
o início de tudo, e, Apocalipse, seu fim,
os livros da Bíblia não estão organizados
deve cons-
de forma cronológica. O leitor, ao estudar
tantemente
o texto bíblico, deve constantemente se situar na
se situar na história, em uma constante história, em
dança de avançar e retroceder. Não uma cons-
só isso. Internamente muitos livros tante dança
não estão escritos com preocupações de avançar e
cronológicas. O profeta Isaías relata seu retroceder.
comissionamento, no capitulo 6 de seu
livro; mas muito provavelmente isso
tenha ocorrido antes dos eventos dos
capítulos 1 a 5. Assim, como qualquer
obra literária artisticamente elaborada,
cabe ao leitor encontrar os possíveis
motivos de sua organização.

45
TEOPOÉTICA

Associado ao caráter não sistematizado, está o fato de que,


apesar de termos a Bíblia organizada em versículos e capítulos,
essa não é essa sua forma original. Em alguns casos, não somente
não há divisão entre capítulos e versículos, como também não há
divisão entre livros. Por exemplo, embora na maioria das Bíblias
os últimos doze livros proféticos (conhecidos como profetas
menores) apareçam separadamente, não há evidências de rolos
desses livros separados. Todos os rolos encontrados que contêm
os profetas menores são com os doze unidos. Tanto é que, na
cultura judaica, os profetas menores são comumente conhecidos
como “O livro dos Doze” – um livro só. Os 12 livros eram um
bloco escrito em um único rolo.

Contudo, isso não parece ser uma coincidência, House


(1990) sugere que os livros tenham sido organizados segundo
sua principal ênfase teológica, podendo ser percebida uma
progressão, ou movimento teológico. Ele argumenta que, dentro
do plano da unidade dos 12 profetas menores, cada livro profético
introduz temas e assuntos que são desenvolvidos com mais
detalhes nos livros seguintes. O tratamento destes temas dos
livros subsequentes pressupõe a sua introdução nos livros que os
antecederam. Os profetas menores, na sua ordem canônica, estão
interligados entre si pela repetição de temas que lhes são comuns
e pelo uso de palavras e expressões-chave que são retomadas e

46
A Bíblia como Literatura

repetidas de um profeta ao outro. Assim, criar-se uma linha de


unidade que vai “costurando” um livro ao outro.

SAIBA MAIS

A BH é tradicionalmente chamada de TaNaK. Esse nome


está relacionado à sua organização em Torá, Nebiim e Ke-
tubim. Torá significa “lei; instrução” e refere-se aos cinco
primeiros livros da Bíblia. Nebiim significa “profetas” e se
refere aos Livros Proféticos, que estão divididos entre Pro-
fetas Anteriores e Profetas Posteriores. Os Profetas Anterio-
res são os livros que, no cânon cristão, são chamados de
Livros Históricos. É o caso de Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel,
1 e 2 Reis, dentre outros. Os Profetas Posteriores estão di-
vididos entre Maiores e os Doze (ou Menores, no cânon
cristão). Por fim, Ketubim significa “escritos”. Essa porção
de livros engloba a literatura sapiencial (Jó, Provérbios,
Eclesiastes, Salmos etc.) e outros livros, como o de Daniel.

Agora, voltando à questão inicial, por que a não


sistematização seria poderosa? Simples. O tipo de relação
que o leitor cria ao organizar mentalmente, por meio de um
estudo, os livros e seus assuntos, estimula o desenvolvimento
intelectual de uma maneira tão excepcional que, caso ela fosse
organizada como um compêndio de doutrinas, com absoluta
certeza, não ocorreria.

47
TEOPOÉTICA

Além disso, enxergar a Bíblia como um livro de histórias


contribui para com qualquer pessoa que faça parte de algum
sistema religioso. Ao vê-la como história, sou confrontado a não
considerá-la um amuleto sagrado que responderá de maneira
objetiva às perguntas que tenho. Não a reduzo de história para
doutrina. Através das histórias, sou estimulado a praticar a
“ruminação”. Extraio os princípios que permeiam o texto e os
aplico à vida. Mais do que um livro de respostas, através das
histórias, percebo que a Bíblia é um livro de perguntas.

Concluindo, ver a Bíblia como uma obra de arte literária


me estimula a atentar para o papel da arte na manifestação da
experiência religiosa. Na representação da experiência com o
sagrado, a arte é indispensável. Ver a Bíblia como um conjunto
de histórias artisticamente elaboradas possibilita a apreciação
da beleza, e contemplar o belo é um alimento para a alma.

A NARRATIVA BÍBLICA
A narrativa bíblica é permeada de elementos singulares.
Podemos falar de caracterização, ponto de vista, ritmo, tempo,
espaço, cenário, diálogo, repetição, enredo, dentre outros. Por mais
que haja diferenças, entre o AT e NT, em relação à manifestação
dessas características, seus princípios gerais permanecem.

48
A Bíblia como Literatura

IMPORTANTE

Embora os elementos da narrativa bíblica tenham suas peculiaridades, eles também


compartilham de nuances comuns a qualquer narrativa, mesmo as dos dias de hoje.

Dentre os principais recursos de qualquer narrativa,


está a composição de seus personagens; e, em relação a esse
fenômeno de caracterização, não é diferente com o texto
bíblico. Para Forster, os personagens podem ser distinguidos
entre os planos e os completos (AMIT, p. 71). Os planos são
construídos em torno de uma ideia ou um único conceito, sendo
que normalmente não apresentam aspectos de sua vida íntima;
os completos, por outro lado, são complexos, autoconscientes,
capazes de desenvolvimento e mudança.

MATERIAL COMPLEMENTAR

Para um maior aprofundamento quanto caracterização bíbli-


ca`, recomendo a leitura da obra A arte da narrativa bíblica, de
Robert Alter (São Paulo: Companhia das Letras, 2007).

No livro de Rute, Noemi, Rute e Boaz configuram


personagens completos, retratados de maneira profunda e

49
TEOPOÉTICA

complexa através de suas ações, discursos


e reações. Qualquer história está, ainda,
repleta de personagens que funcionam
como agentes para que os personagens
maiores/completos se desenvolvam na
narrativa. Esses personagens secundários
não são importantes em si mesmos,
mas sim na medida em que auxiliam no Considerar a
desenrolar do enredo. Orfa e o potencial análise dos
resgatador provavelmente sejam os agentes
personagens
mais importantes, afinal, contrastam com
e sua
Rute e Boaz ao escolherem exatamente o
caracterização,
oposto, quando confrontados pela mesma
opção de escolha.
por si só, já
é capaz de
Obviamente a caracterização no texto enriquecer a
bíblico é muito mais profunda e rica do leitura do texto.
que essa simples categorização flexível.
Contudo, simplesmente a disposição em
considerar a análise dos personagens (e
sua caracterização) nas histórias bíblicas,
por si só, já é capaz de enriquecer a leitura
de qualquer um que se aproxima do
texto. Por exemplo, apesar de ser o livro
de Rute, Noemi parece ser a personagem

50
A Bíblia como Literatura

principal. Todos os outros personagens aparecem em relação a


ela. Somente em Rute 1:2, Noemi é nomeada em relação ao seu
marido, Elimeleque, o que é revertido logo na sequência, no verso
3, quando o texto diz: “morreu Elimeleque, marido de Noemi”.

Outro exemplo pode ser visto em como Rute e Orfa são


apresentadas, pois, apesar de serem casadas com os filhos de
Noemi, no livro, a relação que realmente se tem a intenção de
enfatizar é a das duas com Noemi. Embora Boaz fosse da família
de Elimeleque, ele é primeiramente mencionado em referência
à Noemi: “Tinha Noemi um parente de seu marido” (Rt 2:1). E
o mais curioso é que mesmo a criança que nasceu como fruto da
relação entre Rute e Boaz aparece no texto em referência à Noemi
em Rute 4:17, onde está escrito: “A Noemi nasceu um filho”. Isso
sem contar quando é dito: “Seja o SENHOR bendito, que não
deixou, hoje de te dar um neto que será teu resgatador”(Rt 4:14),
em referência a Noemi sendo resgatada. A ideia do escritor é
apresentar a história através da perspectiva de Noemi: sua perda,
sua solidão, seu retorno à Belém, sua pobreza, sua preocupação
quanto ao futuro de Rute, sua visão quanto a Boaz e seu resgate
através do nascimento de um neto.

Contudo, há uma diferença entre ponto de vista de


perspectiva e ponto de vista de interesse. Do ponto de vista de
interesse, o foco repousa em Rute. Rute é o principal interesse

51
TEOPOÉTICA

de Noemi ao longo da maior parte da história. O leitor almeja


saber o que ocorrerá com Rute, mais do que o que ocorrerá
com Noemi. Mas obviamente isso só é possível por também
ser o que Noemi almeja. Rute parece estar em todas as cenas,
menos a do encontro de Boaz com o potencial resgatador,
embora o ponto crucial da conversa seja Rute. Em nenhum
momento da história, ela deixa de ser “vista”. Nesse sentido,
Berlin (1994, p. 84) afirma que:

Por mais que os eventos da história sejam percebidos através


do ponto de vista de Noemi, é Rute quem facilita esta
percepção de Noemi […] Isto sugere uma técnica narrativa
com certa sofisticação; uma na qual uma história pode ser
contada sobre um personagem através do ponto de vista
perceptivo de outro, e ainda por um narrador onisciente
cujo ponto de vista também parece estar presente.

Outro componente essencial do estudo da narrativa bíblica é


sua estrutura. A maioria das narrativas aparece estruturada com
os seguintes elementos (BERLIN, 1994, p. 84-85): (a) resumo; (b)
orientação; (c) ação complicadora; (d) avaliação; (e) resolução; e
(f) coda. No livro de Rute, por exemplo, a narrativa se inicia com
algumas frases que resumem toda a história. Estas frases servem
para apresentar, de forma condensada, a respeito do que a história
trata. Aparentemente não vemos isso no livro de Rute, mas

52
A Bíblia como Literatura

“Depois dessas coisas, pôs Deus Abraão à


prova […]” (Gn 22:1) é um exemplo.

A orientação é onde tempo, lugar, e


pessoas da narrativa são identificados.
No início do livro de Rute encontramos
este tipo de orientação: “Nos dias em que
julgavam os juízes […]” (Rt 1:1). Apesar
de que, para leitores modernos, essa
introdução possa parecer um indicativo de
que a intenção do livro é ser histórico, na
verdade, ela está unicamente colocando a
história em um contexto temporal. Deste
modo, o narrador se distancia da história Rute e Boaz - Gerbrand van
e conduz o leitor à estrutura temporal em den Eeckhout (1621-1674)
que ela ocorreu. Apontar exatamente em Fonte: Wikimmedia Commons (https://bit.
ly/3hsp4vu)
que momento na história dos juízes isso
aconteceu é uma preocupação moderna.
Na história, não vemos indicações de uma
data precisa. Outro exemplo, como “[…]
saiu a habitar na terra de Moabe” (Rt 1:1),
também poderia ser destacado.

A ação complicadora é o coração


da narrativa: ela narra o que aconteceu

53
TEOPOÉTICA

e quando aconteceu. Aqui, a sequência


temporal dos eventos se torna importante.
Normalmente alguns marcadores
aparecem para indicar que a ação está
iniciando. Esse marcador pode ser um
indicador temporal: específico (Et 1:3);
geral (Jz 11:4); de ação (Rute 1:6: “Então,
se dispôs ela […]”). Curiosamente, o
verbo ‫( קום‬qûm – “levantar”; “dispor”)
no completo, no início do versículo, COMPLETO

também introduz a ação principal em O completo é um modo de


Gênesis 23:3 e Êxodo 1:8, onde aparece, conjugação verbal no hebraico
que indica uma ação concluída.
em ambas as situações, após a notícia da Aproxima-se do que chama-
morte de alguém. Em alguns casos, esses mos de passado no português..
marcadores surgem como subdivisões
internas na narrativa, introduzindo, assim,
um novo episódio (Rt 2:1; 4:1).

A avalição é o que indica o cerne da


narrativa – sua raison d’être. Esse é o modo
do autor permitir que seu leitor saiba o
porquê de ele estar contando esta história,
o porquê ela merece ser contada. São várias
as formas de avaliação. Todas elas pausam
a ação e mudam seu enfoque para uma

54
A Bíblia como Literatura

faceta em particular, a fim de que pontos FACETA

específicos da narrativa sejam destacados e Conforme o dicionário on-line


o enredo ganhe sentido e direção. Dicio, a “faceta” é uma “Carac-
terística própria de algo ou de
alguém”.
No livro de Rute, há muito material Fonte: <https://bit.ly/3iisiTh>.
avaliativo nos diálogos. Isto sugere que Acesso em: 10 set. 2020.
o diálogo não serve somente como um
embelezamento, para que a apresentação
soe mais cênica; mas sim para marcar o
que possui papel vital na narrativa. Nesse
livro, notamos uma forma mais sofisticada
de avaliação: são os personagens que
apresentam-na, por meio de atos ou de
palavras. O narrador não fala sobre como
Rute é leal a Noemi; ele deixa com que
Boaz o diga em Rute 2:11, como também
em 3:10-11, onde ele afirma que ela é
“mulher virtuosa”.

O resultado diz o que finalmente


aconteceu. No livro de Rute, é o
nascimento de um filho de Rute e Boaz,
com Noemi colocando-o no seu regaço.
O resultado é o fim da ação, mas não
necessariamente o fim do discurso.

55
TEOPOÉTICA

Por fim, há uma sinalização de que a


narrativa chegou a um desfecho (coda). Para
isso, muitas vezes há uma projeção futura
para além do tempo do enredo. Algumas
vezes, para o tempo do próprio escritor;
outras, para um tempo conhecido do leitor
ou mesmo para um futuro qualquer. Um
dos finais do livro de Rute pode ser visto em
Não podemos
Rute 4:14-22, com o nascimento de Obede e
ignorar
com a genealogia. O livro fecha seu enredo,
liquidando as lacunas do início e apontando
quando há
para um futuro em um tempo diferente do
uma conexão
presente do enredo. entre estrutura
e conteúdo
Obviamente as narrativas bíblicas não na narrativa
estão limitadas a esse estilo específico de bíblica - não é
estruturação. Em algumas, componentes ocasional.
são acrescentados; em outras, subtraídos.
A questão é que, na narrativa bíblica,
quando percebemos que há uma conexão
entre a estrutura e o conteúdo que o autor
escolheu enfatizar (em outras palavras, a
decisão de organizar a narrativa de uma
forma específica), não podemos ignorar
essa estrutura – ela não é ocasional. É

56
A Bíblia como Literatura

evidente que a Bíblia é muito mais do que mera literatura, mas


ela também não é menos que literatura. No NT também existem
exemplos diversos que ilustram as características da narrativa.
Em Lucas 7:36-50, podemos discutir a construção das cenas e
dos diálogos de uma narrativa.

MATERIAL COMPLEMENTAR

Para o aprofundamento em questões estruturais do NT, reco-


mendo o vídeo onde o Dr. Carlos Olivares aborda a estrutura
sanduíche do Evangelho de Marcos.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=wURrkWcjJjA>. Acesso em: 10 set. 2020.

Lemos que Jesus é convidado a comer na casa de um


fariseu chamado Simão. Logo no início da narrativa, somos
surpreendidos por uma mulher, pecadora, de acordo com o
narrador, que invade aquele momento e começa a “regar”
os pés de Jesus com lágrimas e os ungir com uma espécie de
perfume, secando-os com seus cabelos.

Obviamente essa cena chama a atenção de todos naquele


recinto. Na cena seguinte, do relato, somos transportados para
dentro da cabeça de Simão, o dono da casa, ao ouvirmos seus
pensamentos: “Se este fora profeta, bem saberia quem e qual é
a mulher que lhe tocou, porque é pecadora” (v. 39).

57
TEOPOÉTICA

Logo na sequência, Jesus dirige-se a Simão e lhe conta a história


de duas pessoas que deviam quantias diferentes a um certo credor.
A dívida de um deles era cem vezes maior que a do outro, mas,
como o texto deixa claro, “Não tendo nenhum dos dois com que
pagar” (v. 42), foram perdoados. A história contada aparece como
que respondendo ao pensamento de Simão sobre Jesus ser ou não
um profeta. Obviamente Simão não sabe disso e nem o entende de
cara. Somente Jesus, o narrador, e nós, leitores, sabemos disso.

O texto diz que, logo ao terminar a história, Jesus se volta


para Simão e pergunta: “Qual deles, portanto, amará mais?”
(v. 42). Simão responde: “Suponho que aquele a quem mais
perdoou” (v. 43). Jesus, por fim, diz: “Julgaste bem” (v.43). Esse
diálogo é central na narrativa por alguns motivos. A descrição
deste ocorrido parece estar estruturada em três blocos de relato
+ avaliação/julgamento. Veja-os a seguir na Figura 1.

Figura 1 – Os três blocos de relato + avaliação/julgamento em Lucas 7:36-50

Introdução v. 36

Relato 1: v. 37-38 Avaliação 1: v. 39

Relato 2: v. 40-42 + Avaliação 2: v. 43

Relato 3: v. 44-46 Avaliação 3: v. 47


Fonte: elaborado pelo autor.

58
A Bíblia como Literatura

Contudo, algo interessante salta aos olhos nessa


estruturação. Tanto na primeira como na segunda avaliação é
Simão quem julga. Primeiro, estabelecendo se Jesus é profeta
e que a mulher é uma pecadora, e, depois, respondendo à
pergunta de Jesus sobre a história – “julgaste bem” (v. 43).
Acontece que, a partir do verso 44, Simão passa a entender que
há relação entre o que ele havia pensado e a história que Jesus
havia contado. É como se nos versos 44-46, os versos 37-38
fossem, agora, recontados à luz da história dos versos 40-42.

E o que acontece aqui? Simão não mais tem o papel de


julgador, mas sim de julgado. E quando ele é avaliado, uma
inversão ocorre na narrativa. Aquela mulher indigna de se
aproximar de Jesus por ser pecadora acaba se tornando uma
melhor anfitriã do que aquele que deveria ser o anfitrião. Nos
versos 44-47, lemos:

E, voltando-se para a mulher, disse a Simão: Vês esta mulher?


Entrei em tua casa, e não me deste água para os pés; esta,
porém, regou os meus pés com lágrimas e os enxugou com os
seus cabelos. Não me deste ósculo; ela, entretanto, desde que
entrei não cessa de me beijar os pés. Não me ungiste a cabeça
com óleo, mas esta, com bálsamo, ungiu os meus pés. Por isso,
te digo: perdoados lhe são os seus muitos pecados, porque ela
muito amou; mas aquele a quem pouco se perdoa, pouco ama.

59
TEOPOÉTICA

Basicamente Simão se considerava melhor do que aquela


mulher. Ao avaliar a própria vida, via poucos pecados a serem
perdoados. Seus “méritos”, o tornavam “melhor”, mais santo.
O problema é que essa história aponta para o fato de que ele
precisava do perdão, tanto como aquela mulher. O pecado que
ela tinha todos podiam ver; os dele, talvez não. Nem mesmo
o próprio Simão os enxergou. A inversão que Jesus provocou
disse a Simão nas entrelinhas: Na verdade Simão, seus muitos
pecados também precisam de perdão. Ou melhor, o verdadeiro
perdão é o perdão do muito.

Simão questiona o profetismo de Jesus pelo simples


fato de ele estar próximo, muito próximo, inclusive
numa situação constrangedora de afeto (para os outros)
a uma pecadora. E aqui, mais uma vez, o profeta bíblico
é apresentado não como aquele que se afasta do pecador;
pelo contrário, é deles de quem ele mais se aproxima. Ele é
aquele que reconhece numa demonstração sincera, o amor de
alguém que muito foi perdoado.

Perceba como, sem utilizar o grego ou hebraico (não


que as línguas originais não sejam importantes; dominá-las
expande nosso conhecimento do texto exponencialmente),
é possível fazer uma leitura atentando para detalhes de
construção narrativa.

60
A Bíblia como Literatura

A POESIA BÍBLICA
Tal qual a narrativa, a poesia bíblica também possui suas
características peculiares. Encontramos na poesia hebraica,
por exemplo: acróstico, rima, refrão, elipse, assonância,
onomatopeia, metonímia, sinédoque, oximoro, hipérbole,
eufemismo, sarcasmo, palavra-chave, metáfora, ironia e, o
principal, paralelismo, que é a essência da poesia bíblica.

MATERIAL COMPLEMENTAR

Para um desenvolvimento detalhado e exemplificado das ca-


racterísticas da poesia hebraica, recomendo a leitura da obra
Poesia Hebraica Bíblica: Uma introdução geral, de Edson Maga-
lhães Nunes Jr. (Engenheiro Coelho, SP: UNASPRESS, 2016).

No início de Cântico dos Cânticos (Ct), por exemplo,


encontramos um paralelismo polissêmico interessante:

Levanta-te, amada minha,


formosa minha, e vem.
Pois eis que o inverno passou,
e a chuva cessou e se foi;
as flores aparecem na terra;
o tempo do cântico chegou (Ct 2:10-12, tradução do autor).

61
TEOPOÉTICA

A palavra “cântico”, do hebraico zmyr (‫)זמיר‬, também pode


ser traduzida como “poda”. Ou seja, a polissemia está em que
as duas traduções são possíveis; mas não só nisso: o poeta deve
ter usado exatamente esta palavra para que os dois significados
soassem de forma simultânea. Quer dizer, o tempo do amor
não é apenas do cântico e das flores; é, também, da poda, da
colheita. Não envolve apenas a beleza; há, além disso, trabalho
a ser realizado.

IMPORTANTE

Em seu livro The Idea of Biblical Poetry, James Kugel (1981, p. 76-95) argumen-
ta que a divisão entre poesia e prosa no contexto bíblico é um rótulo recente e
anacrônico. Contudo, grande parte dos estudiosos entendem existir, por exem-
plo, o conceito de poesia bíblica, e que ele não se restringe ao uso da palavra
poesia (NUNES JR., 2016, p. 123). Autores como Alter (1985), por exemplo,
argumentam fortemente em defesa da categoria de poesia bíblica. Observa-se
que a definição de poesia, estabelecida pelo próprio texto bíblico, acontece,
em um primeiro momento, por meio de sua distinção da prosa, ao se verificar a
concentração de certos elementos comuns a ela, como o paralelismo.

Raramente um personagem é descrito de forma detalhada;


e o mesmo ocorre também em relação a paisagens. Em Ct, no
entanto, isso é revertido. As descrições são minuciosas – não
apenas dos personagens, como também dos cenários em que
eles se encontram. Alguns poemas de Ct, chamados de wasf,

62
A Bíblia como Literatura

são conjuntos de metáforas descritivas dos corpos dos amantes,


feitas por ambos. Ou seja, neste sentido, entre as narrativas
bíblicas e Ct há uma inversão. Essa é, aliás, uma de várias
inversões entre as diversas narrativas bíblicas e Ct.

Outra inversão se dá quanto à beleza. Beleza não é uma


característica muito presente na BH, a não ser que se torne
importante para alguma narrativa. Por exemplo, só se sabe
que Sara é bonita, no contexto da viagem de Abraão ao Egito,
quando ele “mente” a respeito dela ser sua irmã. Abigail (1
Samuel 25:3) já é apresentada como formosa e sensata, apesar
de estar casada com Nabal. No final, ela acaba se tornando
esposa de Davi. Bate-Seba é descrita, primeiro, em termos
de formosura, antes mesmo de seu nome ser mencionado; e
obviamente sua beleza leva o rei Davi ao pecado (2 Samuel 11).
O filho de Davi, Amon, deseja a própria irmã, porque ela era
bonita (2 Samuel 13). A beleza de José, em Gênesis 39, acaba
lhe causando problemas com a mulher de Potifar, e o fato da
mãe de José ser também declarada bela, acaba por ocasionar o
desprezo de Jacó em relação a Lia (Gênesis 29).

Aparentemente todas as descrições de beleza são carregadas


de alguma negatividade, o que parece concordar com Provérbios
31:30: “Enganoso é o charme e vã a beleza”. Mais uma vez isso é
contrastado em Ct, pois, neste livro, a beleza é exaltada o tempo

63
TEOPOÉTICA

todo, sem nenhum tipo de negatividade: “Eis


que é formosa, ó querida minha(…).” (1:15);
“Como és formoso, amado meu (…).” (1:16).

Por fim, um último exemplo de inversão,


aqui, se refere ao amor. A ideia de amor entre
homem-mulher na BH não é comum e, na
maioria das narrativas, carrega negatividade.
Jacó ama Raquel, e esse amor (mais a beleza
O amor só é
de Raquel) é responsável pelo seu desprezo
em relação à Lia. Elcana ama Ana, e isso
positivo, nas
acaba por ser um problema para a própria
narrativas,
Ana, pois a outra mulher de Elcana zombava quando
dela. Histórias de estupro contém “amor” mencionado
(Diná em Gênesis 34 e Tamar em 2 Samuel após o
13). Sansão ama as mulheres erradas, e isso casamento.
acaba por ser a sua derrocada. Salomão ama
as mulheres estrangeiras, e isso leva-o a
desviar-se do caminho.

O amor só é positivo, nas narrativas,


quando mencionado após o casamento,
como nos casos de Isaque e Rebeca (Gn
24), e Ester e o rei (Et 2:17). Essas duas
ocorrências são, basicamente, as exceções.

64
A Bíblia como Literatura

Em Ct, o amor é altamente positivo e percorre todo o livro, estando


presente antes do casamento e permanecendo depois também. 

Em diversos aspectos, o Ct é uma inversão de um modelo


anterior – as coisas, como eram, são transformadas e invertidas.
Este é o livro em que a descrição física, a beleza e o amor são
plenos, presentes e sempre positivos.

Também é um livro permeado por metáforas. “Veja até onde


chegamos!”; “Aonde estamos indo?”; “De agora em diante, não há
volta” são expressões que assumem uma visão popular: o amor é
uma jornada. Essa afirmação transporta, em si, um recurso literário
muito comum, principalmente à poesia: a metáfora.

De acordo com dois grandes estudiosos desse fenômeno,


Lakoff e Johnson (1980), nas metáforas envolvendo duas
pessoas que se amam, comumente: os amantes são viajantes
em uma jornada, com seus objetivos de vida retratados como
um destino a ser alcançado. A relação entre eles é seu veículo;
é ele que permite a ambos atingirem esses objetivos juntos. A
jornada envolve planos, mas, também, imprevistos; envolve
cansaço, mas, também, alegria.

A metáfora é o tempero da comida. Antigamente, falar por


meio de metáforas era visto como algo negativo. O conteúdo da

65
TEOPOÉTICA

fala metafórica era visto como frívolo, sem


conexão com os fatos e sem capacidade de
transmitir qualquer conteúdo. A metáfora
era vista como uma ferramenta relacionada
unicamente às emoções. Contudo, uma
ela é capaz de ensinar mais do que um
teorema ou um conceito abstrato.

A metáfora é e não é o que designa. A metáfora


Ela aponta para uma relação entre o é e não é o
visível e o invisível. Em uma palavra, que designa.,
encontramos duas dimensões distintas e, apontando
ao mesmo tempo, inseparáveis. Essa é a para uma
beleza da metáfora: o fato dela ser uma relação entre
imagem-palavra. Por fim ela é um convite
o visível e o
à intimidade. Depende do leitor/ouvinte,
invisível.
aceitar ou não esse convite. Tendo o
aceito, cria-se um elo, uma conexão
entre ele e o proponente da metáfora. A
metáfora é pessoal e exige participação.

É curioso que, no livro de Ct,


dentre as inúmeras metáforas presentes,
encontramos algumas (também algumas
símiles) que apresentam a relação entre o

66
A Bíblia como Literatura

amado e a amada por meio de imagens de comidas e banquetes.


Por exemplo:

Beija-me com os beijos de tua boca; porque melhor


é o teu amor do que o vinho (Ct 1:2).

Qual a macieira entre as árvores do bosque, tal é o meu


amado entre os jovens; desejo muito a sua sombra e
debaixo dela me assento, e o seu fruto é doce ao meu
paladar. Leva-me à sala do banquete, e o seu estandarte
sobre mim é o amor. Sustentai-me com passas, confortai-
me com maçãs, pois desfaleço de amor (Ct 2:3,5).

Os teus lábios, noiva minha, destilam mel. Mel e leite se


acham debaixo da tua língua, e a fragrância dos teus vestidos
é como a do Líbano. [...] Os teus renovos são um pomar de
romãs, com frutos excelentes: a hena e o nardo (Ct 4:11, 13).

Aqui, e em outros textos, a sexualidade é retratada em termos


de comida; a fome, associada ao desejo; o convite à cama com o
amado, relacionado ao convite à mesa. A escolha do poeta, de falar
do amor por meio de imagens culinárias, não é fortuita. Do ponto
de vista literário, os olhos do cozinheiro e do poeta se assemelham:
ambos olham uma pera e não veem uma pera. É como se a pera
fosse uma janela que se abre para outro mundo. Porque, como
afirma Bachelard (1994, p. 9), para eles “o que se percebe não é

67
TEOPOÉTICA

nada, comparado ao que se imagina”. A


poetisa Adélia Prado dizia: “De vez em
quando Deus me tira a poesia. Olho pedra,
vejo pedra mesmo”. (2001, p. 199)

Poesia e culinária envolvem qualidade


do olhar. Misturando coisas e palavras, os
poetas nos oferecem um banquete, onde
tudo que recebemos da natureza cru, duro
e sem gosto é transformado ao fogo da
imaginação em uma saborosa comida. O
poeta é aquele que cozinha o mundo em
seus versos. Tudo que o olhar do poeta toca
é imediatamente transformado. Seu olhar é
um fogo que cozinha e assa as coisas cruas Adélia Prado
que os olhos puros lhe apresentam. Fonte: Wikimedia Commons (https://bit.
ly/33kNEcA)

Assim, em Ct, esse fenômeno tem


qualidade exponencial. Além de falar
por metáforas, as metáforas escolhidas
estão associadas à comida. Agora, o que
a imagem da comida nos ensina sobre a
relação entre o amado e a amada? Comida
e casamento envolvem aliança e união. No
casamento, a união é física e é por meio

68
A Bíblia como Literatura

de um compromisso. Comer na mesma mesa era a ratificação


de uma aliança. Aqueles que comem juntos, estão unidos – são
um. Comida não se trata somente de nutrição, mas, também, de
prazer e deleite. Da mesma forma, o casamento é um convite ao
prazer, ao deleite. A união do casamento nos permite celebrar
os diferentes sabores de cada um, nunca perdendo o apetite.
Assim como o consumo de comidas puras e impuras envolvia
fidelidade a Deus, o casamento também envolve fidelidade.

Contudo, os recursos literários da poesia hebraica também


cumprem com um outro propósito, muitas vezes, não belo. Os
textos proféticos apresentam características peculiares em relação
à poesia. Para os estudarmos, é ideal recordar que os principais
objetivos do discurso profético: repreensão, provocação e
persuasão. De acordo com Brueggemann (1983, p. 135):

A destruição e edificação de mundos não é realizada da mesma


maneira que um oleiro molda a argila ou que uma fábrica
manufatura seus produtos. Ela é realizada a medida em que
um poeta ‘redescreve’ o mundo, reconfigura a percepção
pública, e faz com que o povo reexperimente sua própria
experiência. Para que isso aconteça, é necessário que o discurso
não seja convencional, moderado e previsível; ele deve chocar a
sensibilidade, chamar atenção ao que não é percebido, quebrar
a rotina, fazer com que as pessoas descrevam novamente o

69
TEOPOÉTICA

que há muito tempo parece estabelecido, e suportar excessos


de poder antes de avaliações de rotina. É nítido que essa
empreitada linguística que ‘redescreve’ o mundo é uma
atividade subversiva, e certamente pode ser o primeiro ato de
subversão. Esse discurso opera para descreditar e invalidar
os modos convencionais antigos de percepção. Quando as
coisas são vistas de maneiras diferentes, atentamos que os
slogans convencionais antigos (Jr. 7:4) são encobrimentos
ideológicos que não mais clamam por fidelidade. Tal
discurso imaginativo evoca novas sensibilidades, convida
as pessoas a ter esperança, em outras palavras, responder a
possibilidades sociais das quais a linguagem administrativa
antiga declarou inconcebíveis, irracionais e impossíveis.

Para essa empreitada profética, os meios poéticos gerais


para repreender/persuadir a audiência são:

• acusação direta;

• evocação de desastre iminente;

• sátira.

Tomemos como exemplo a sátira, recurso literário


recorrente na literatura mundial. Ao compararmos textos que
carregam sátira em poesia e prosa nos profetas, é possível
notar que o meio mais eficaz de alcançar a finalidade desejada

70
A Bíblia como Literatura

é a poesia. Indubitavelmente ela fornece um cabedal mais


extenso de ferramentas para expor e ridicularizar os valores
materialistas, egoístas e hedonistas dos transgressores, como
utópicos e inerentemente desastrosos.

SAIBA MAIS

A sátira não deve ser equiparada à ironia. Frye (2014,


p.370) afirma que a principal distinção entre elas é que
a sátira é uma ironia militante: suas normas morais são
relativamente claras e ela pressupõe padrões contra os
quais o grotesco e o absurdo são medidos.

A fim de constatar a diferença entre ironia e sátira,


comparemos brevemente duas passagens dos profetas maiores
que empregam ironia, uma em prosa e a outra em poesia. Os
dois textos selecionados (Jr 3:6-18, para prosa, e Ez 23, para
poesia) compartilham peculiaridades temáticas e retóricas. Em
ambos, os objetos da ironia militante são os mesmos e, nos dois
casos, servem-se da mesma imagem para exposição: Judá e
Israel como duas irmãs prostitutas. Quais são as diferenças?

Em primeiro lugar, notamos a ausência, na prosa, de


uma descrição efetiva da punição que virá às irmãs. Essa
descrição, em Ezequiel, figura como uma das fontes de maior

71
TEOPOÉTICA

força satírica. Por meio da descrição gráfica longa e sarcástica


da punição, o oráculo de Ezequiel promove uma reversão
intensificada. A força satírica da punição aflora por meio de
técnicas de ironia, como o uso indireto da perspectiva por
intermédio de uma lista dos amantes das duas mulheres e de
seus títulos e seus ornamentos.

Em segundo lugar, a forma como as irmãs são retratadas


é completamente diferente. Nos dois livros, elas são
caracterizadas como imitando uma a outra. Em Jeremias (v. 8),
essa realidade é expressa por meio de uma afirmação direta:
[gam hîʾ; “ela também”]. Por outro lado, o livro de
Ezequiel descreve detalhadamente que Oolibá dá um passo
a mais que sua irmã (v. 11): “Vendo isto sua irmã Oolibá,
corrompeu a sua paixão mais do que ela, e as suas devassidões
foram maiores do que as de sua irmã.”

Esse recurso poético, mais conhecido como estrutura


interna de intensificação, acentua a gravidade dos erros
de Oolibá. Há intensificação, também, na exacerbação
da gravidade de seus pecados: ao invés de fazer uma
simples referência ao pecado, imagens grotescas descrevem
detalhadamente a atitude das irmãs. Em Ezequiel 23:20,
por exemplo, lê-se: “Inflamou-se pelos seus amantes, cujos

72
A Bíblia como Literatura

membros eram como o de jumento e cujo fluxo é como o


fluxo de cavalos.”

A tendência de intensificação das imagens coincide com a


disposição em criar um catálogo: as nações com quem Oolibá se
prostitui (v. 23-24) são as mesmas que serão usadas posteriormente
como instrumento divino de punição e julgamento.

Concluindo, a poesia bíblica é riquíssima. Suas nuances


e detalhes estão totalmente associadas à natureza de seus
discursos. Como obra literária, é fundamental que se considere
as características peculiares da poesia bíblica.

O PODER DA BÍBLIA COMO LITERATURA


Olhar para a Bíblia como um livro de histórias é libertador.
Essa é a maneira como ela se apresenta a nós, e, por mais que isso
pareça uma afirmação óbvia, devemos considerá-la como tal.

Ver a Bíblia como literatura desperta o olhar do leitor para


vislumbrar nuances do texto, muitas vezes engessadas por
algum contexto religioso. Esse é o caso, por exemplo, da relação
entre o texto bíblico e o humor, ou entre a religião e o riso.

73
TEOPOÉTICA

Em um trecho do romance O nome da


Rosa, Umberto Eco explora uma temática
interessante: a relação entre o humor e
religião, ou, talvez, humor e santidade.
Tal temática aparece por meio de dois
monges (Jorge de Burgos e Guilherme de
Baskerville) que debatem se Jesus riu ou
não quando esteve na terra. Para Jorge de
Burgos, o riso é fonte de dúvida. Dessa
forma, não pode ser livremente permitido
como meio de lidar com a realidade.

Diferente da perspectiva do monge


Umberto Eco (1932-2016)
de Burgos, a Bíblia parece trazer muitas
Fonte: Wikimedia Commons (https://bit.
situações de humor e riso. Isso se dá não ly/2GIYH7A)

somente por meio de situações cômicas,


mas, também, por intermédio de descrições
que utilizam do humor. Distante de
discursos preocupados em condenar
gêneros literários e demonizar a relação da
cultura com as Escrituras, o escritor bíblico,
da mesma forma que utiliza-se da novela e
da tragédia para compor seu livro, faz uso
também da comédia.

74
A Bíblia como Literatura

Um exemplo pode ser visto na história relatada em 2 Reis


6:8-23. Essa narrativa é contada em 5 estágios:

1.  versos 8-11: Há informação vaga de que os sírios


estão fazendo guerra contra Israel e acampando em
tal e tal lugar. Essa informação apresenta, na história,
Eliseu, que informa ao rei de Israel quais são esses
tais e tais lugares. Somente Eliseu sabe quais são
esses lugares. Um toque de humor entra na narrativa
quando o rei da Síria, furioso com seus planos sendo
frustrados, acusa um dos seus de traição. Isso prepa-
ra o caminho para o 2o estágio;

2.  versos 12-14: para se capturar um homem (o profeta


Eliseu), é enviado um exército;

3.  versos 15-18: o servo de Eliseu entra em pânico ao


ver o exército sírio. Todavia, Eliseu pede para que
seus olhos sejam abertos e o servo vê o exército de
seres divinos que os estavam protegendo;

4.  versos 19-20: os Sírios perdem a visão e, quando vol-


tam a ver, estão no meio de Samaria;

75
TEOPOÉTICA

5.  versos 21-23: ao invés de ani-


quilar os sírios, o rei de Israel,
instruído pelo profeta, oferece
comida aos seus inimigos.

Por meio do jogo irônico de ideias


diferentes, o narrador molda a perspectiva
do leitor. Isso pode ser visto, por exemplo:

• no fato de que nem o rei de


Israel (Jeorão), nem o rei sírio
(Hazael) são nomeados. O
único nomeado na história é
O profeta Eliseu - Giorgio
Eliseu, o profeta de Israel; Vasari (1511-1574)
Fonte: Wikimedia Commons https://bit.
• na relação entre o verbo ‫נגד‬ ly/35mKuro)

(“informar”; “anunciar”;
“prover explicação”) nos
versos 11 e 12. No verso 11 o
rei Sírio, desconfiado de traição
de um dos seus, pergunta:
“Não me fareis saber […]?” (
ּ – Hifil, incompleto,
2a m.p.). Na sequência,

76
A Bíblia como Literatura

no verso 12, é Eliseu quem “faz saber…” (


– Hifil, incompleto, 3a m.s.);

• no verso 14, onde “cavalos, carros e fortes


tropas” ( ) dos Sírios
cercam a cidade para capturar o profeta, ao
passo que, no verso 17, praticamente a mesma
descrição aparece quando o auxiliar de Eliseu
enxerga o exército divino que os protege (
– “cavalos e carros de fogo”);

• na relação entre o que o rei Sírio envia (‫)ׁשלח‬


ao saber do profeta (v. 14 – – “enviou”
cavalos, carros e fortes tropas) e o que Eliseu
envia (‫ )ׁשלח‬quando tem o rei Sírio e seu exército
em suas mãos (v. 23 – – “despediu”
os sírios em paz). Ele não somente os despede
em paz, como também oferece comida.

Além disso, vemos um jogo irônico no uso do verbo ‫רהא‬


(“ver”; “enxergar”). O rei sírio comanda seus homens: “Ide
e vede onde ele está […] (verso 13 –  – grifo nosso) – mas o
leitor já saiba quem é que realmente vê as coisas (verso 9). Esse
verbo possui forte relação com as orações relatadas na narrativa.
Na primeira (verso 17), os olhos do auxiliar de Eliseu são abertos;

77
TEOPOÉTICA

na segunda (verso 18), o exército sírio


é atacado por uma cegueira; na terceira
oração (verso 20), essa cegueira é revertida.

Somado a isso, temos as ocorrências


da interjeição (“eis” – versos 15,17 e
20) marcando o texto, criando momentos
de clímax e tensão. O “ver” é tema central CLÍMAX

da história. Por meio dessa palavra, o texto De acordo com o dicionário on-
bíblico trata – com humor – o tema do -line Dicio, “clímax” significa “O
ponto culminante”.
conhecimento: quem conhece a realidade
Fonte: <https://bit.ly/32jaq-
e como ela é conhecida. A noção de que
SA>. Acesso em: 10 set. 2020.
a realidade possui outra dimensão, que
nem arameus nem israelitas conseguiam
enxergar, está presente nesta narrativa.

O riso provocado aqui, tanto devido


a atitude do profeta como em função da
descrição, reforça a realidade de que,
muitas vezes, quem parece ver age como
tolo. Os sírios desempenham o papel
patético de serem guiados por quem
procuravam. O auxiliar de Eliseu teme
o que vê, sem conhecer o que não vê. E
o rei de Israel, guiado puramente pelo

78
A Bíblia como Literatura

que vê, faz papel de tolo ao não ver a


possibilidade de paz à sua frente.

Diante desta realidade bíblica, vale o


conselho de Amós Oz, em seu livro Contra
o Fanatismo (2004, p. 35):

Senso de humor é uma grande cura.


Nunca vi na minha vida um fanático
com senso de humor […]. O humor
inclui a capacidade de rir de nós
mesmos. O humor […] é a aptidão
de vermo-nos como os outros podem
nos ver, é a capacidade de entender
que, por mais cheios de razão que
estejamos e por mais terrivelmente
equivocados que estejam os outros
Amós Oz (1939-2018)
sobre nós, há sempre um certo
aspecto disso tudo que é engraçado. Fonte: Wikipedia (https://bit.ly/32hSGar)

Enxergar a Bíblia como literatura nos


abre portas, muitas vezes fechadas pelos
nossos costumes ou mesmo pela nossa
religião. A dimensão literária do texto
possibilita ao leitor enxergar a experiência
com o divino de modo puro e genuíno.

79
TEOPOÉTICA

NA PRÁTICA

Faça uma lista de costumes, de convenções ou de tradições, que foram desfeitas


ao você estudar a Bíblia como literatura.

A BÍBLIA E A METÁFORA
Para concluir nossa unidade, vale retornarmos brevemente
ao recurso literário que aparentemente mais realça o caráter
pessoal do texto bíblico: a metáfora.

Ao lermos o Evangelho de João, nos deparamos inúmeras


vezes com esse recurso que contrapõe completamente com a
mentalidade de impessoalidade de linguagem. No decorrer
do livro, Jesus afirma ser “o pão da vida” (João 6:35), “a luz do
mundo” (João 8:12), “a porta” (João 10:9), “o caminho” (João
14:6), “a videira” (João 15:1), dentre outras coisas.

É curioso que o apresentar Jesus como pão, luz, porta,


caminho ou videira não cause confusão em nossa mente.
Apesar de uma videira implicar em terrenos, proporções, tipos
de galhos, tipos de folhas etc., sabemos que, aqui, o uso da
palavra é metafórico – ela é e não é o que designa.

80
A Bíblia como Literatura

A metáfora funciona como um convite


para imaginar a relação entre o visível e o
invisível. Percebemos que existe mais do
que podemos ver, ouvir, tocar ou provar.
Ainda assim, os dois aspectos (visível
e invisível) são indivisíveis. Afinal, em
uma única palavra, a metáfora transmite
a integralidade entre o que se vê e o que
se não vê, entre o céu e a terra. Ela é uma
O recurso lite-
tensão entre o que a palavra denota e o
que ela conota.
rário que, apa-
rentemente,
Por meio da metáfora, a palavra, mais realça o
ao levar o leitor/ouvinte como caráter pessoal
acompanhante, é lançada a outro do texto bíblico
domínio, de significados singulares. é a metáfora.
Normalmente vemos a palavra tendo
a utilidade de um rótulo. No entanto,
quando usada como metáfora, ela
irrompe, ganha vida. Assim, você não
consegue mais entender a palavra
consultando-a num léxico, pois já não é
ela mesma; está viva, em movimento, e te
convida a participar do significado.

81
TEOPOÉTICA

Contudo, além de ser uma


testemunha lexical da transcendência,
a metáfora nos faz participantes, tanto
do ato de criar significado como do
de entrar na ação da palavra. Quando
entramos em contato com as metáforas
que os escritores bíblicos utilizaram, nos
Além de ser
envolvemos com Deus – muitas vezes
testemunha
sem o saber ou até sem o desejar.
lexical da
transcendência,
Por que Jesus usava metáforas? Por que
a Bíblia possui tantas metáforas? Porque a
a metáfora
metáfora não é algo preciso. Se o interesse nos faz
de Jesus fosse a precisão, Ele certamente participantes
não teria saído por aí dizendo coisas como: do ato de criar e
“Eu sou a videira; vocês são os ramos” (João do ato de entrar
15:5). A metáfora exige participação, e isso a na ação da
torna completamente pessoal. palavra.

Quando Jesus diz: “Eu sou a luz”


(João 8:12), nossa imaginação começa a
funcionar. Forma-se um quadro em nossa
mente, as associações vêm à tona e tudo
ganha vida. A metáfora enraíza em nossa
consciência e começa a contar uma história

82
A Bíblia como Literatura

que nos envolve. Desta forma, se torna difícil continuarmos


como meros espectadores, gelidamente assistindo à ação. A
metáfora nos leva a uma participação.

Muitos, em seu compromisso por manter a verdade exata


e por se manter separados do “mundo”, usam uma linguagem
impessoal e controlada. Jesus – não menos comprometido com
a verdade e não menos preocupado com os perigos que nos
assaltam – usou uma linguagem intensamente pessoal, relacional
e participativa. Ele usou de metáforas que nos importunam para
percebermos que estamos envolvidos numa trama inteiramente
pessoal, que nos envolve na ação. Estudar a linguagem bíblica
nos conduz à conclusão de que o texto das Escrituras é uma obra
de arte. E como toda arte, a Bíblia possui caráter pessoal. Ela é
um convite à experiência de viver com Aquele que é a Palavra.

A linguagem com que Deus se comunica com


toda a humanidade, vista por intermédio da Bíblia, é
completamente pessoal. Primeiramente pelo simples
fato de utilizar recursos de comunicação familiares à
humanidade, de acordo com seu contexto. E em segundo
lugar, pelo caráter de graça da linguagem divina. Mesmo
após desobedecerem a Deus, é Ele quem procura o homem
e se comunica dizendo: “Onde estás?” (Gn 3:9). Mesmo nos
distanciando e não respondendo, Ele ainda fala.

83
TEOPOÉTICA

RESUMO

Nesta unidade, aprendemos que:

• a Bíblia não é apenas um tratado de doutrinas, mas sim


uma obra literária. Isso, no entanto, não diminui o texto
bíblico a uma esfera puramente humana, pois a visão
literária eleva sua natureza à dimensão do belo e da arte;

• embora a Bíblia tenha características que são


compartilhadas com a literatura geral, independente
da época ou local, as peculiaridades literárias da
Bíblia são visíveis e devem ser respeitadas;

• apesar de a Bíblia ser estudada como obra literária


desde os primórdios, as abordagens literárias da Bíblia
como metodologia são relativamente recentes;

• a Bíblia é um livro de histórias, o que implica que seu texto não


tem como objetivo final responder questões doutrinárias ou
apresentar, de maneira sistematizada, conceitos filosóficos;

• as escrituras apresentam histórias de pessoas que tiveram


uma experiência com o sagrado, com o divino;

84
A Bíblia como Literatura

• o poder de envolvimento que a Bíblia possui é diferente


do de qualquer obra conceitual e abstrata;

• a essência da Bíblia é a ação, a intimidade e o evento;

• as técnicas literárias da Bíblia possuem características


especificas, mas que, ao mesmo tempo, compartilham
elementos universais à qualquer história contada;

• por a Bíblia ser um conjunto de histórias, sua dimensão


literária sublinha seu caráter pessoal, que não está restrito ao
caráter narrativo de grande porcentagem dos textos bíblicos,
pois a porção poética também possui essa característica;

• a metáfora:

1. é uma tensão entre o que a palavra


denota e o que ela conota;

2. funciona como um convite para imaginar a relação


entre o visível e o invisível, que são indivisíveis;

2. é uma testemunha lexical da transcendência;

85
TEOPOÉTICA

3. nos faz participantes, tanto do ato de criar significado


como do de entrar na ação da palavra.

• quando entramos em contato com as metáforas que os


escritores bíblicos utilizaram, nos envolvemos com Deus;

• a Bíblia possui muitas metáforas porque elas não são precisas;

• Jesus usou uma linguagem intensamente pessoal, relacional


e participativa. Ele usou de metáforas que nos importunam,
para percebermos que estamos evolvidos numa trama
inteiramente pessoal, que nos envolve na ação;

• a linguagem com que Deus se comunica com toda


a humanidade, vista por intermédio da Bíblia, é
completamente pessoal, pois utiliza recursos de comunicação
familiares à humanidade e tem um caráter de graça.

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