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Revista de História, 1, 2 (2009), pp.

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http://www.revistahistoria.ufba.br/2009_1/r01.pdf

Valter Guimarães Soares, Cartografia da saudade: Eurico Alves e a invenção


da Bahia sertaneja, Salvador, Edufba, Feira de Santana, Eduefs, 2006. 157 p.
ISBN 85-23205-77-5.

É [o baiano] loquaz, polido, sentimental e amabilíssimo. [...] A riqueza em sua mão é generosa.
O traço humano de seu espírito é a bondade, é a franqueza, é o discernimento.
Revista Bahia Ilustrada, abril de 1921.

Mesmo para um leitor descuidado, esse ral da Universidade Estadual de Feira


recorte em epígrafe provoca forte estra- de Santana e que a partir de agora
nhamento porque os qualificativos passo a resenhar.
relacionados nessa descrição do baiano
diferenciam-se bastante dos elementos Atualmente, Soares é aluno pós-douto-
que, aos olhos de boa parte da popula- rando da linha de pesquisa Cultura e
ção brasileira, integram a “baianidade”. Sociedade da Faculdade de Filosofia e
Onde estão a alegria, a negritude, o Ciências Humanas da Universidade
modo festivo de ser, a hospitalidade e a Federal da Bahia – onde cursou a
indisposição para o trabalho, tão “tipica- graduação –, desenvolvendo um traba-
mente” baianos? lho em que investiga o surgimento das
formulações “imagéticas” sobre o sertão
Essa surpresa pode nos levar a pensar – e a Bahia, notadamente a partir dos
nós, estudantes de história que somos – anos de 1940, usando como fonte
no caráter histórico da construção das materiais produzidos por grandes escri-
identidades regionais e nas observações tores baianos – Jorge Amado, Wilson
feitas a esse respeito por alguns dos Lins, Walfrido Morais, etc. –, pela
influentes historiadores franceses que, imprensa baiana e por entidades como o
nos anos de 1970 e 1980, foram em Instituto Geográfico e Histórico da
busca da atualização da Nova História Bahia e a Academia de Letras da Bahia.
em face da corrosão do lugar social e Cartografia da saudade guarda
institucional da “história das mentalida- semelhanças com essa segunda
des”. pesquisa. Trata-se de uma descrição e
análise do empreendimento intelectual
Interessado nessa mesma temática da realizado pelo poeta, cronista e ensaísta
elaboração de identidades baianas e feirense Eurico Alves Boaventura.
tributário, em boa medida, daquela
“viragem antropológica francesa” de Nascido em 1909 e falecido em sua
que fala Peter Burke, Valter Guimarães cidade natal em 1974, depois de se ter
Soares publicou no ano corrente o seu formado em Salvador e, posteriormente,
livro Cartografia da saudade: Eurico esquadrinhar os sertões da Bahia no
Alves e a invenção da Bahia sertaneja, exercício da magistratura jurídica, Alves
originalmente dissertação de mestrado demonstrou, desde o início de sua traje-
defendida no Programa de Pós-Gradua- tória intelectual, paixão pela arte literá-
ção em Literatura e Diversidade Cultu- ria. Seu talento foi reconhecido por
Carlos Chiacchio, que o convidou para
integrar um grupo de jovens divulgado-
cartografia discursiva euriquiana e suas
dissonâncias e confirmações a respeito
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res da estética modernista na Bahia do que escreviam Euclides da Cunha,
organizados em torno da revista Arco & Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior,
Flecha. Nelson Werneck Sodré, Capistrano de
Abreu e outros ilustres do pensamento
Embora a sua sensibilidade artística social brasileiro. E, finalmente, no
tenha apreciado o futurismo e a vida último capítulo, Soares evidencia a
moderna urbana – enquanto viveu na angústia que moveu Eurico Alves e a
capital –, essa primeira “fase” foi substi- sua saudade de um mundo tradicional
tuída por uma segunda, em que pesou a que então se diluía em razão do avanço
experiência anterior de vida que então da modernidade, apontando, portanto,
se enriqueceu graças às viagens que para o seu conservadorismo; procura,
realizou pelos sertões baianos. A partir nessa seção, classificar Alves entre
desse momento, Boaventura propôs-se, historiador ou memorialista. O texto
sobretudo no longo ensaio “Fidalgos e ainda traz uma introdução, em que o
vaqueiros”, a escrever sobre esse autor delimita o objeto e seus pressu-
espaço geográfico, cultural e histórico, postos de leitura, e uma conclusão, em
descrevendo-o em suas qualidades, que se retomam as lições gerais da
contra os preconceitos e as deprecia- argumentação desenvolvida em torno da
ções que então lhe dirigiam as elites obra.
intelectuais do litoral e em oposição à
displicência dos próprios sertanejos. Esse esquema e a disposição dos assun-
tos são bem inteligentes. Realmente, as
O empenho de Soares em estudar o “condições de possibilidade” para a
belíssimo resultado desse esforço – poesia de Alves Boaventura dizem
poemas, crônicas, ensaios, mensagens – respeito a um contexto intelectual
explica-se em parte pelo prazer que específico que não poderia deixar de ser
sempre nutriu pela literatura, desde os explanado, sob pena de não se compre-
tempos de sua graduação – tempos ender bem o seu significado. Quanto às
áridos para os estudos históricos sobre citações literais, não se preocupe o
essa arte na Faculdade de Filosofia –, e leitor, pois elas não são excessivas como
também pela relação telúrica e afetiva em geral ocorre em trabalhos acadêmi-
que manteve e mantém com o sertão – cos, e Soares bem sabe respeitar a
espaço onde viveu boa parte de sua capacidade do leitor em ler e interpretar
vida. Observe o leitor, então, que o que está escrito nas passagens do
Guimarães Soares é, de alguma forma, poeta. Entretanto, acredito que os
uma “representação” do seu próprio capítulos poderiam ser mais concentra-
objeto Eurico Alves. dos nos temas enunciados, evitando
algumas repetições e adiantamentos dos
O seu livro estrutura-se em três capítu- objetos tratados posteriormente, pois
los. No primeiro, o poeta Alves é esse equívoco não permite ao leitor uma
inserido num contexto histórico, princi- apreciação perfeita das inquietações do
palmente intelectual, dos mais ricos do tempo de Alves.
Brasil – anos de 1920 e 1930. No
segundo, talvez o mais importante, Embora Soares se mostre aberto ao
descrevem-se, com citações literais, a diálogo com diferentes autores, inclu-

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sive marxistas, destaca-se sobre os seus
escritos a forte influência da obra de um
ria cultural do social”. Em seus desen-
volvimentos, essas crenças “neo-sofísti-
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historiador brasileiro e um francês. Na cas” parecem exigir uma constante
defesa de sua tese central, apoia-se com diluição das fronteiras entre a literatura
firmeza na explicação de Durval Muniz e a historiografia e a nivelação de seus
de Albuquerque para a emergência da conteúdos e mensagens, o que se me
identidade nordestina, ocorrida a partir afigura como algo negativo. Seriam tais
dos anos de 1920 e que se expressou proposições algum tipo de desconsidera-
nos mais diversos campos do saber. ção pelo escrúpulo ético do pesquisador
Talvez o seu trabalho possa ser visto em buscar sempre a explicação mais
como um estudo de caso confirmando a plausível para as informações apresen-
explicação de Albuquerque sobre o tas pela documentação? Qual a extensão
motivo de Eurico Alves integrar a gama desse conceito?
de pensadores que formularam identida-
des para o sertão-nordeste. Por outro Embora retrate bem a “luta de represen-
lado, na marca dessa influência, Carto- tações” travada entre Alves e os intelec-
grafia da saudade revela a sua fraqueza: tuais da sua época – luta de bainhas sem
o fato de apresentar uma contextualiza- espadas –, Soares não explorou bem um
ção histórica baseada em pesquisa de potencial do conceito, importantíssimo:
fontes secundárias. a preocupação pelas “apropriações do
discurso” e suas repercussões sociais.
O leitor reconhecerá que a possibilidade Apenas indica o grupo de leitores
da defesa e a própria concepção do enunciado, em seu livro, pelo próprio
texto parecem depender da posição Boaventura, o seu horizonte de audiên-
central que a crença na “substanciali- cia ou recepção, mas não afirma se tais
dade” da linguagem ocupa na maneira pessoas realmente leram essa obra. Ou
como pensa Guimarães. Essa crença, seja, quem leu ou deixou de ler os textos
por sua vez, baseia-se na adoção do de Eurico Alves? Que tipo de interpreta-
conceito de “representação”, que possi- ções se realizou?
bilita uma inusitada maneira de se
conceber a literatura, ou seja, como Entretanto, é preciso ter em mente as
“dizer instituidor da realidade”, dificuldades que envolveriam uma
conforme preconiza o próprio forjador pesquisa dessa natureza e que tais
daquela noção – Roger Chartier, o detalhes não afetam a qualidade da obra
segundo pensador a influenciar Soares. que acabo de resenhar. O seu valor
Assim, em Cartografia da saudade, os baseia-se no carinho com que o autor
escritos euriquianos não são apenas empreendeu a pesquisa e a escritura do
usados como documentos a serem texto... poético texto. Seu valor baseia-
comparados à realidade histórica, mas se também na grandiosidade da obra de
como textos capazes de criar identidade Eurico Alves, pois o próprio fato de que
mediante a função pedagógica e, dessa nos é estranha a imagem euriquiana do
forma, “criar o real”, segundo Guima- sertão é um claro indício de que algo
rães. falhou em seu projeto. Talvez, a médio
prazo, a sua versão não tenha repercu-
Esse conceito não deixa de ser tido tanto quanto outras. No entanto,
altamente incômodo a um leitor não confere riqueza aos seus trabalhos a
familiarizado nem adepto dessa “histó- maneira como pôde mesclar ciência,

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arte, memória e experiência de vida em
um mesmo trabalho. Também se mede,
De uma maneira geral, esse livro é
valioso por demonstrar um uso preciso
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portanto, a importância de Cartografia dos conceitos da história cultural e,
da saudade – um bom exemplar de histó- principalmente, por nos ensinar que, em
ria cultural sobre um poeta sertanejo – história, a literatura pode ser usada não
por ele ser um livro divulgador da obra somente como mais um documento a ser
desse genial artífice e por ter conser- comparado com a realidade, ou como
vado sua memória, além de ter tratado texto em que o real a influencia, mas
de um tema tão fascinante quanto o sobretudo como uma elaboração que
sertão. “institui esse real” por criar identidades.

Jonas Brito
Graduando em História
Universidade Federal da Bahia

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