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O primeiro homicida
Conta a Bíblia que, pouco tempo antes de serem expulsos do Paraíso, Adão e Eva
tiveram dois filhos chamados Caim e Abel (Gn 4). O mais velho dedicava-se à
agricultura e o mais novo era pastor. Eram muito religiosos e ofereciam os frutos de
seus trabalhos a Deus: Caim, o produto do campo e Abel, as primícias do rebanho.
Caim, porém, não quis escutá-lo e começou a alimentar o ódio contra seu irmão Abel.
Até que um dia convidou-o a ir ao campo e aí o atacou e o matou.
A expulsão do campo
Deus, então, se apresenta a Caim e lhe pergunta: “Onde está o teu irmão Abel?” E ele
respondeu com sua famosa frase: “Não sei. Acaso sou o guarda de meu irmão?” “O que
fizeste?” —perguntou ele— “Ouço da terra a voz do sangue de teu irmão, clamando por
vingança! Agora serás amaldiçoado pela própria terra que engoliu o sangue de teu
irmão, derramado por ti. Quando cultivares o solo, negar-te-á o sustento e virás a ser um
fugitivo, errante sobre a terra” (Gn 4,10-12).
Caim toma consciência do que fez e lança um grito de profunda dor: “O castigo é
grande demais para suportá-lo. Eis que hoje me expulsas da face deste solo fértil e devo
ocultar-me diante de teu rosto. Quando estiver fugindo e vagueando pela terra, quem me
encontrar, matar-me-á” (Gn 4,13-14).
Deus, comovido diante de seu pranto desesperado, com um gesto de bondade promete
vingá-lo sete vezes se alguém tentar matá-lo, e põe-lhe um sinal de proteção e salvação
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ÁLVAREZ VALDÉS, A., «Com quem se casou Caim, o filho de Adão e Eva?», in: Que sabemos sobre
a Bíblia?, Ed. Santuário, Aparecida, S.P. 1997
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para que quem o veja o reconheça e o respeite. Assim Caim sai da terra que costumava
cultivar e se refugia no deserto, onde é condenado a uma vida errante e de sofrimentos.
Quando lemos esse capítulo dessa forma, aparece uma figura de Caim bem diferente
daquela que tradicionalmente nos era apresentada. Ele não aparece tão mau, nem tão
perverso, como também não vemos em lugar algum que Abel tenha sido bom, como
sempre temos acreditado.
Que Deus tenha preferido as oferendas de um mais do que as do outro não significa que
um era bom e o outro mau. Isto se deve a uma livre escolha de Deus. Tal escolha não
suscitava, entre os antigos, problemas de moralidade, nem de bondade. Para eles era
uma experiência cotidiana ver, muitas vezes, o rei, o faraó ou o imperador fazer o que
lhes parecesse melhor com as pessoas, sem que isso significasse alguma injustiça, nem
desprezo aos demais, nem maldade com eles.
Foi a tradição que, por causa de uma valorização negativa de Caim, interpretou seu grito
—que na verdade é de dor e de penitência— como se fosse de desespero e de obsessão;
de forma que teria dito: “meu pecado é tão grande que não mereço perdão”. O que não
está de acordo com o texto.
E para piorar, o sinal de misericórdia e de salvação que Deus lhe coloca para protegê-lo
foi entendido como sinal de maldição e de vergonha diante do pecado cometido.
Mais adiante Caim convida seu irmão a ir para o campo com ele (v. 8). Mas por acaso já
habitavam cidades, quando não existiam senão eles dois e seus pais?
Depois de seu crime, Caim exclama: “Quem me encontrar, matar-me-á” (v.14). Quem
poderia matá-lo, se até que Abel morreu não existiam senão Adão e Eva?
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Mas, talvez o que mais assombre os leitores seja a leitura do versículo 17, onde se
afirma que Caim se casou e sua mulher ficou grávida. De onde apareceu essa mulher?
Alguns chegaram a supor que fosse Eva. Nada mais que a própria mãe, já que nesse
tempo não teria sido proibido o incesto.
O herói Caim
Hoje os estudos bíblicos ensinam que a história de Caim apresenta tantas incoerências
porque passou por três etapas sucessivas, até chegar onde hoje está, no livro do Gênesis.
De início era um relato popular, transmitido oralmente e independente do relato de
Adão e Eva. Nele se narrava a vida de uma antigo herói chamado Caim, que viveu numa
época já adiantada da humanidade. Por isso se falava de cidades construídas, de um
culto desenvolvido a Deus, de povos inteiros que povoavam a terra e se mencionavam a
agricultura e a criação de gado.
A história começava com o nascimento de Caim e contava como no dia em que veio ao
mundo sua mãe o celebra com uma frase de muita estima e carinho: “Ganhei um
homem com a ajuda do Senhor” (Gn 4,1). Talvez se tratasse, no relato original, de um
ser semi-divino, bastante conhecido no antigo oriente. Deduz-se que era uma figura
famosa porque, na Bíblia, costuma-se explicar o nome das pessoas importantes. E o
Gênesis dá uma explicação do nome “Caim”, dizendo que significa “adquirir”.
Quando a criança se fez grande converteu-se no fundador de uma famosa tribo beduína,
chamada “cainita”, que habitava o deserto, ao sul de Israel.
A história incluía também seu casamento, talvez com alguma das muitas jovens
pertencentes aos clãs que na época habitavam o deserto, e o nascimento de seu filho
Henoc (Gn 4,17).
O homicida Caim
Essa história, que os cainitas contavam a respeito de seu fundador, Caim, era conhecida
pelos seus vizinhos, os israelitas. Eles, no entanto, a modificarão.
De fato, chamava-lhes a atenção o fato de que tais beduínos viviam em pleno deserto,
isolados das terras cultivadas. E que, por não encontrarem em seus áridos territórios os
meios suficientes de subsistência, dedicavam-se à pilhagem e ao saque.
Perguntavam então: por que os cainitas levam vida tão penosa e errante, longe da terra
prometida e abençoada por Deus? E respondiam que se tratava de um castigo de Deus
que os havia condenado a viver errantes por causa de algum delito cometido pelo seu
fundador. Que tipo de delito? Não o sabiam, mas, como os cainitas assolavam
permanentemente as terras cultivadas de suas tribos irmãs de raça, imaginaram que o
delito de Caim era contra seu irmão.
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Uma vez que os cainitas adoravam a Javé, assim como os israelitas, puseram no relato
que “Caim oferecia seus frutos a Javé” (Gn 4,3).
Estes beduínos eram célebres pelas terríveis vinganças que perpetravam contra quem
matava um de seus membros.
Por isso acrescentaram: “Se alguém matar Caim, será vingado sete vezes” (Gn 4,15).
Assim foi que esta história entrou numa segunda etapa. Aquele legendário herói,
chamado Caim, fundador dos cainitas, a tradição hebréia o converteu, pouco a pouco,
num fratricida condenado por Deus a viver uma vida errante. Isto esclarece muito bem
algumas particularidades do relato.
Antes de tudo, o fato da narrativa bíblica colocá-lo como protagonista principal. Com
efeito, fala-se apenas dele; é o único que desempenha um papel ativo; o único com
quem Deus conversa. Por outro lado, Abel é uma figura decorativa; seu papel é
secundário e sem importância; não diz nenhuma palavra, só sofre; Deus nunca fala com
ele. E sua única razão de estar no relato é a de completar o protagonismo de seu irmão.
Além disso, não se dá nenhuma explicação do nome de Abel, como se fez com o de
Caim. Mais ainda: em hebraico seu nome significa “nulidade”, “vazio”, ou seja, algo
sem importância. Permanece tão sem importância que nenhum outro personagem
bíblico vai usá-lo jamais.
Mais tarde, na época do rei Salomão, a história de Caim passou para uma terceira etapa.
Um escritor judeu anônimo que a conhecia, se deu conta que ela oferecia muitas
possibilidades. Este lavrador, expulso da terra cultivável e condenado a vagar errante
para sempre, se prestava perfeitamente para aprofundar a explicação da presença do mal
no mundo. E, com alguns retoques, resolveu acrescentá-la como continuação do relato
de Adão e Eva, apesar das incoerências que apresentaria, como o fato de aparecer se
casando, quando Caim era ainda a terceira pessoa da humanidade.
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Contudo, esse diagnóstico ainda era insatisfatório. Nosso autor o sabia. Dizer que só
quando o homem peca contra Deus é que se produz uma desordem no mundo, era dizer
a metade. Ao contrário, com a história de Caim, condenado a uma vida penosa e dura
por faltar contra seu irmão, pode completar seu ensinamento, dizendo que o mal
também vai crescendo no mundo pelos delitos contra os demais homens.
Por isso, ao falar de Abel destaca com insistência sua condição de “irmão”, que é
apenas a única coisa que lhe interessa. Essa ideia é tão obsessiva que chega a repeti-la
até sete vezes neste breve texto. Como se quisesse ensinar que todo homem, por
pertencer à humanidade, é irmão do resto dos homens.
O relato de Adão e Eva tinha quatro partes: a) o mandato de Deus (não comerás da
árvore da ciência do bem e do mal); b) desobediência do homem (tomou o fruto e o
comeu); c) castigo de Deus (porque fizeste isto...); d) esperança da salvação (Javé
reveste o homem e sua mulher com túnicas de pele).
O pecado de Caim e Abel tem a mesma estrutura: a) mandato de Deus (se ages bem,
poderás levantar a cabeça, mas se não...); b) desobediência do homem (Caim matou seu
irmão); c) castigo de Deus (maldito serás longe deste solo); d) esperança de salvação
(Javé pôs um sinal em Caim para que ninguém o matasse).
Ou seja, propõe o mesmo tema do relato de Adão e Eva: a origem do mal. Agora,
porém, com uma resposta diferente. Naquele o escritor sagrado explicava que o mal no
mundo dependia das relações do homem com Deus. Neste, completa a informação e
acrescenta que o mal não nasce unicamente pela ruptura do homem com o Criador. Há
como que um segundo “pecado original”: o da ruptura de relação com o irmão.
Por isso na narrativa de Adão e Eva é a voz de Deus que adverte os primeiros pais que
pecaram. Na de Caim, porém, é o sangue de Abel o acusador: “Ouço da terra a voz do
sangue de teu irmão, clamando por vingança!”.
A pergunta “com quem se casou Caim?” não tem, pois, nenhuma importância. Era um
dado que pertencia ao relato primitivo e que ficou deslocado ao ser inserido aqui. O
importante era sua mensagem.
Como dissemos, o autor inspirado escreve esta página da Bíblia durante o governo do
rei Salomão. Nessa época, tanto a classe governante como os funcionários e sacerdotes
ensinavam oficialmente que só era um bom israelita aquele que cumprisse suas
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obrigações para com Deus. Insistia-se em oferecer os sacrifícios no templo, em pagar os
dízimos e em prestar serviços ao rei, representante de Deus. Mas o rei, sob o pretexto de
servir a Deus, explorava o povo, abusava dele e o usava de forma gratuita e sem
escrúpulos nos canteiros de obras, para a construção de seus palácios e de seus grandes
edifícios.
O autor desse texto, ao colocar aqui o relato de Caim, completa ousadamente essa
doutrina emanada do palácio, denunciando que, segundo Deus, para ser um bom crente
é preciso também preservar a vida dos homens, seus irmãos, cuidar dela e zelar por ela.
A ampliação de Jesus
Os judeus, porém, consideravam irmão apenas os outros judeus, excluindo o resto das
nações. Por isso Jesus, muitos séculos mais tarde, voltaria a atualizar este mesmo
ensinamento. Quando lhe perguntaram qual era o mais importante mandamento da Lei,
respondeu que não era apenas um, mas dois: amar a Deus de todo o coração e amar o
próximo como se ama a si mesmo. E quando lhe perguntaram quem era o próximo,
ampliou a interpretação desta palavra e a estendeu a todos os homens com os quais nos
encontramos nos caminhos da vida (Lc 10,25-37).
Lá nos começos da pré-história bíblica, o relato de Caim ensina-nos que, para encontrar
o equilíbrio da vida é necessário levar a sério os dois.